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129 A personalidade de Grams- ci é poliédrica: linguista, jornalista, escritor, crítico literrio, filósofo, educador, professor, cientista e dirigente político. O que mais se destaca é o cientista e dirigente polí- tico. Não é difícil, porém, perceber um seu perfil de professor. O texto é uma contribuição ao im- portante tema da relação entre arte pe- dagógica e arte política. Gramsci avalia as duas artes por dupla significação: conservadora e revolucionria. Pela pri- meira, é “natural” que os subalternos deleguem passivamente aos especialistas a competência do saber e da organiza- ção social; pela segunda, as atividades do professor e do político, com base na filosofia da prxis, se compenetram na forma do professor + político 2 , o que o levou a afirmar que «Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma re- lação pedagógica» 3 . É uma afirmação importante e contun- dente, merecedora de múltiplas anlises, não apenas do interior do pensamento do autor e sim também do “exterior”, de sua trajetória biogrfica, correlacionan- do circunstâncias de vida e evolução do pensamento. Nesta perspectiva, o forte perfil professoral de Gramsci unido à pratica política direcionou sua reflexão sobre a complexa dialética entre ativi- dades pedagógicas e o processo de ‘he- gemonia’, criticando tanto o professor «tipo tradicional e vulgarizado de inte- lectual» como o «tradicional» polítiqui- ro, burocrtico 4 . Gramsci professor político 1 di Paolo Nosella * ABSTRACT Gramsci’s personality is multifaceted. The most known aspect of that is about his being scientist of politics and faction’s director. At the same time we have the chance to detect his strong professor’s profile, and I would like to evidence his way to teach, especially when he says «Every authoritative relationship become inevitably a pedagogical relationship» (Q. 10, § 44). This abstract shows the development of the relation between politic art and the pedagogical one in connection with life’s situations and way of thinking’s development. * Università Federale di São Carlos/SP (UFSCar).

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A personalidade de Grams-ci é poliédrica: linguista, jornalista, escritor, crítico

literario, filósofo, educador, professor, cientista e dirigente político. O que mais se destaca é o cientista e dirigente polí-tico. Não é difícil, porém, perceber um seu perfil de professor.

O texto é uma contribuição ao im-portante tema da relação entre arte pe-dagógica e arte política. Gramsci avalia as duas artes por dupla significação: conservadora e revolucionaria. Pela pri-meira, é “natural” que os subalternos deleguem passivamente aos especialistas a competência do saber e da organiza-ção social; pela segunda, as atividades do professor e do político, com base na filosofia da praxis, se compenetram na

forma do professor + político2, o que o levou a afirmar que «Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma re-lação pedagógica»3.

É uma afirmação importante e contun-dente, merecedora de múltiplas analises, não apenas do interior do pensamento do autor e sim também do “exterior”, de sua trajetória biografica, correlacionan-do circunstâncias de vida e evolução do pensamento. Nesta perspectiva, o forte perfil professoral de Gramsci unido à pratica política direcionou sua reflexão sobre a complexa dialética entre ativi-dades pedagógicas e o processo de ‘he-gemonia’, criticando tanto o professor «tipo tradicional e vulgarizado de inte-lectual» como o «tradicional» polítiqui-ro, burocratico4.

Gramsci professor político1

di Paolo Nosella*

abstractGramsci’s personality is multifaceted. The most known aspect of that is about his being scientist of politics and faction’s director. At the same time we have the chance to detect his strong professor’s profile, and I would like to evidence his way to teach, especially when he says «Every authoritative relationship become inevitably a pedagogical relationship» (Q. 10, § 44). This abstract shows the development of the relation between politic art and the pedagogical one in connection with life’s situations and way of thinking’s development.

* Università Federale di São Carlos/SP (UFSCar).

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O texto objetiva ilustrar o percurso do amadurecimento teórico de Grams-ci, de forma contínua do jornalismo em Turim ao Ordine Nuovo, da fundação do Partido Comunista da Italia ao car-cere, que o levou a diferenciar o signi-ficado ordinario da palavra “professor” do seu sentido revolucionario/político, rejeitando todavia maniqueísmos abstra-tos, burocraticos, uma vez que «o certo torna-se verdadeiro na consciência da criança», mas o “verdadeiro” fundamen-ta-se sempre no «certo […] e uma data é sempre uma data», ou «Dizer a verdade é revolucionario»5.

1 _ No jornalismo (1916-1918)

Faltavam poucos exames para Gramsci terminar o curso de Filologia Moderna na Universidade Estadual de Turim. O intenso trabalho jornalístico, a participa-ção das atividades de carater político e as extenuantes aulas particulares (perdera a bolsa de estudo por problemas de saúde) não lhe permitiram concluir a tese.

Fora nomeado, em dezembro de 1915, Diretor do Colégio Consorcial (ou gi-nasial) de Oulxt6, de cujo cargo, porém, desistiu, porque assumira a função de re-dator das recém-criadas paginas turinen-ses do jornal socialista Avanti!, além da ja intensa colaboração com outro jornal socialista de Turim Il Grido del Popolo.

Com isso, a partir do ano de 1916, o nosso jovem de vinte e cinco anos pas-

sou a ser jornalista militante socialista full time. Seus artigos polemizavam a guerra, a política burguesa nacional e internacional, o oportunismo e o refor-mismo político e cultural do Partido So-cialista Italiano (PSI), enaltecendo valo-res, anseios e potencialidades históricos do proletariado. Metodologicamente, tomava ocasião de fatos locais, nacionais e internacionais; de eventos de carater cultural7. Seu estilo, comparado ao da tradicional literatura socialista italiana, quase sempre doutrinaria, apresentava-se muito original: chamava a atenção o método socratico do jornalista “profes-sor” Gramsci.

Exemplo desse estilo professoral é o artigo Socialismo e cultura. È quase uma carta manifesto intervindo na disputa entre as lideranças socialistas: enquanto uns acusavam os outros de «extremistas economicistas», estes acusavam os pri-meiros de «oportunistas culturalistas»; os primeiros priorizavam a formação cultural, os outros a pratica de classe. Anos depois, do carcere, relembrando essa polêmica, escreveu:

Na realidade nem os primeiros nem os segun-dos podiam ser “justificados”, nem nunca se-rão justificados. Suas posições devem apenas

ser “explicadas” realisticamente como dois aspectos da mesma imaturidade e do mesmo

primitivismo8.

Com indisfarçavel postura professo-ral, explicava para todos a correta con-

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ceituação de cultura socialista. O artigo é uma verdadeira aula magna! Funda-mentando-se no princípio “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates, politicamente interpretado por Vico9, diz:

É preciso perder o habito e deixar de con-ceber a cultura como saber enciclopédico, […]. A cultura é algo bem diferente. É or-

ganização, disciplina do próprio eu interior, posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior, por meio da qual se

consegue compreender o próprio valor histó-rico, sua função na vida, seus direitos e seus deveres. […] Mas isso não pode acontecer

por evolução espontânea10.

No final do ano, reforçando sua linha de raciocínio, publica outro artigo muito polêmico L’universitá popolare em que critica a direção política e pedagógica desta iniciativa do Partido Socialista:

Em Turim, a Universidade Popular nem é universidade nem é popular. Seus dirigentes são amadores quanto à organização cultural. O que os move é um tênue e palido espírito

de beneficência, não um desejo vivo e fecun-do de contribuir na elevação espiritual das

massas por meio do ensinamento […]11.

A vocação “professoral” de Gramsci, evidente em todos os escritos jornalísti-cos, destaca-se, ainda mais, na singular experiência jornalista de fevereiro de 1917, quando a Federação Juvenil So-cialista Piemontesa decide editar um

número único intitulado La città futu-ra12. Andrea Viglongo haveria de ser o “curador” responsavel pela preparação desse número único. Gramsci pediu ao coletivo que deixassem para si próprio a tarefa de prepara-lo, pois assim o núme-ro resultaria homogêneo e coerente com o programa formativo proposto pela Fe-deração. O pedido foi aceito. Ou seja, to-dos admitiam a competência e liderança do “professor” Gramsci. O número úni-co foi inteiramente redigido por ele e re-sultou num conjunto orgânico de textos para a formação dos jovens socialistas. É um pequeno compêndio, um verdadeiro instrumento didatico. Tenho em mãos um exemplar desse número único13 de 4 paginas (duas folhas de 32 X 45 cm.). O tom geral dos conteúdos é de anima-ção e incitamento à participação política: «Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão e de tomar parti-do. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso, odeio os indiferentes»14.

Nas duas folhas do meio, Gramsci in-cluiu textos de importantes autores não militantes no movimento socialista: um de Gaetano Salvemini sobre a definição de cultura e dois respectivamente de Be-nedetto Croce e Armando Carlini, apre-sentados por ele com a manchete Due inviti alla meditazione «cuja leitura e es-tudo aconselhamos com ênfase»15. O nú-mero único não ficou isento de críticas dentro do movimento juvenil socialista «por incluir dissertações intelectuais que

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dificilmente são compreendidas pelos leitores proletarios»16.

A Revolução Russa de 1917 é o even-to que mais marcou a personalidade de Gramsci. Em fevereiro, o Partido Men-chevique tomara o poder do Czar Nico-lau II, pondo fim ao absolutismo monar-quico. Na Italia, não era facil entender o que estava acontecendo na Rússia, mas Gramsci apostou em sua analise na vitó-ria da revolução proletaria. Ainda em 29 de abril escreveu: «Nós, entretanto, esta-mos convencidos que a revolução russa é, além de um fato, também um ato pro-letario, e que essa, necessariamente, deve desaguar no regime socialista»17.

Com efeito, no mês de outubro, a vi-tória de Lênin e do partido Bolchevista acabaram dando razão a Gramsci que distinguira, em seu texto, o conceito “fato” do conceito “ato”, uma vez que para ele a vontade subjetiva do prole-tariado é a força motora da história, opondo-se ao determinismo fatalista e ao evolucionismo economicista (fato)18. Ou seja, o texto de 29 de abril não era uma previsão; era uma importante con-tribuição política a favor do posicio-namento de Lênin, consoante às mani-festações populares que gritaram “viva Lênin” durante a visita em Turim da de-legação do governo russo menchevique (13 de agosto). Tamanha perspicacia de Gramsci foi observada «pelos socialis-tas italianos, inclusive fora do ambiente turinês»19. Desse momento em diante, suas responsabilidades políticas nacio-

nais só aumentaram. Gramsci foi indi-cado secretario da Comissão Executiva Provisória da seção de Turim20. Assu-miu a direção do Il Grido del Popolo e «reafirmando seu perfil professoral, em outubro, cura mais um número especial (instrumento didatico) inspirado no li-berismo econômico sobre Os socialistas e a liberdade alfandegária21.

Gramsci estava convencido que o pro-letariado socialista italiano não possuía a formação intelectual necessaria para ser classe hegemônica. Pensava: assim como a Revolução Francesa fora precedida e acompanhada por um grande movimen-to cultural de artistas, escritores, políti-cos, cientistas, educadores (Iluminismo), mais ainda a Revolução Proletaria ne-cessitara ser precedida e acompanhada por um extremo trabalho cultural. Por isso, em dezembro, propõe em Turim a criação de uma Associação de Cultura visando:

A integrar a atividade política e econômica com um órgão de atividade cultural, para

discutir, desinteressadamente, isto é, sem o a angústia da atualidade, temas de interesse

geral para as lutas do proletariado, refletindo sobre as premissas teóricas e espirituais da

ação socialista22.

Sua proposta “culturista” era consi-derada por algumas organizações sindi-cais mera «bizarria intelectual»23.

Enfrentando a oposição anticulturista do Partido, com a obstinação do profes-

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sor convencido de sua tese, cria um Club di vita morale, justificando que «não bas-ta o doutrinamento verbal dos princípios e das maximas morais»24. Certamente, desejava reunir uma turma, numa verda-deira sala de aula. Reuniu Attilio Carena, Andrea Viglongo e Carlo Boccardo25. Era um pequeno grupo, mas, finda a guerra, a turma poderia aumentar. Tomou a coi-sa tão a sério que escreve, em março de 1918, nada menos que para um dos mais renomados pedagogistas do momento: Giuseppe Lombardo Radice26, solicitan-do-lhe opinião sobre o método didatico do Clube, anexando à carta a resenha de Andrea Viglongo sobre um livro do próprio Lombardo Radice O conceito da educação. Reconhece e admira a obra desse importante pedagogista, mesmo que, quanto à guerra, militassem em lado contrario:

Gostaria muito que o Senhor, que segue com interesse todas as novas experiências peda-

gógicas, tivesse a bondade de […] me ajudar com algum conselho, traçando uma direção

que possa integrar e complementar meus propósitos27.

O Clube de vida moral é justificado pela necessidade de se criar em Turim iniciativas ou alternativas culturais con-cretas, novos exemplos de associacionis-mo que deverão «necessariamente ser instituídos na chegada da civilização so-cialista»28:

Por isso, ha pouco, surgiu um Clube de vida moral. Nele, nos propomos de acostu-

mar os jovens que aderem ao movimento político e econômico socialista à discussão desinteressada sobre os problemas éticos e

sociais. Queremos acostuma-los à pesquisa, à leitura feita com disciplina e método, à

exposição simples e serena de suas convic-ções. As atividades desenvolvem-se dessa

forma: eu, que tive de aceitar a incumbên-cia de excubitor29 porque dei início à asso-ciação, atribuo a um jovem uma tarefa: sua

brochura sobre a educação, um capítulo de Cultura e vida moral de B. Croce, dos Pro-

blemas educativos e sociais de Salvemini, da Revolução francesa ou da Cultura e laicidade

do mesmo Salvemini, sobre o Manifesto dos comunistas, uma anotação de Croce na

“Crítica” ou outro que, porém, reflita o movimento idealístico atual. O jovem lê,

anota um esquema, e depois numa reunião expõe os resultados de suas pesquisas e

reflexões. Alguém dos presentes, caso este-ja preparado ou eu mesmo, apresentamos objecções, propomos diferentes soluções,

alargamos a posse de um conceito ou de um raciocínio. Abre-se assim uma discus-

são que procuramos não fechar até que todos os presentes tenham sido postos em condições de entender e apropriar-se dos resultados mais importantes do trabalho

em comum30.

Essa atividade professoral de Gramsci sera confirmada, mais tarde, pelo teste-munho do aluno e sócio do Clube, An-drea Viglongo:

134 _ Gramsci professor político

[…] ainda existem folhas que registram as aulas de Gramsci ministradas nos círculos de

bairros aonde ele ia […]. Gramsci dava a aula e depois, como encaminhamento para uma melhor preparação, pedia que cada um dos

jovens presentes fizesse um resumo. […] Na reunião seguinte, Gramsci recolhia as folhas e

as corrigia31.

2 _ Na política (1919-1926)

Em dezembro de 1918, a Direção Nacio-nal do Partido Socialista Italiano decidira pela «Instituição da República Socialista e pela Ditadura do proletariado» e, em março de 1919, aderiu à recém-criada Internacional Comunista em Moscou. As imensas frustrações populares decorren-tes da Guerra32 e as promissoras perspec-tivas revolucionarias que se abriam pela revolução dos bolcheviques russos mo-tivaram o Partido para essas decisões33. Gramsci concorda, sem abrir mão, po-rém, de sua específica contribuição «pro-fessoral»34.

Em 1º de maio de 1919 sai o primei-ro número de L’Ordine nuovo – rassegna settimanale di cultura socialista, cujo título foi proposto por Gramsci, com 28 anos, o mais velho do grupo, figura prevalente de referência e secretario da revista. Os temas de aprofundamento e de estudo que o se-manario pretendia desenvolver eram:

Dos classicos do pensamento socialista às experiências revolucionarias em curso; dos

problemas da construção do socialismo na Italia às questões da organização econômica e

administrativa de um novo regime social; da problematica agraria ao problema escolar35.

Sobre a necessidade da maxima for-mação cultural e científica para o prole-tariado italiano, a sintonia entre Tasca e Gramsci era plena. Mas, sobre o método didatico, a diferença logo emergiu: Tasca evidencia uma postura mais tradicional, abstrata, com tons acadêmicos, conteu-dísticos; Gramsci, “encantado” com a Re-volução Russa, toma esse acontecimento como ponto principal de referência, bus-cando “traduzi-lo” em termos italianos.

Para ele, o ponto de partida do pro-cesso educativo das massas não poderia ser a literatura ou alguma escola políti-ca abstrata, mas os fatos e as estruturas reais portadores do “novo”, da “nova ordem”, da “cidade futura”. É a fórmula socratica, o método “maiêutico”, o “co-nhece-te a ti mesmo” aplicado à política.

Em novembro (1919), Ordine Nuovo inaugura sua «Escola de cultura e pro-pagando socialista». Os cursos eram noturnos, com aulas «uma ou duas ve-zes por semana»36. Uma experiência muito satisfatória. A reflexão brotava do vivido, do ja conhecido que precisa ser esclarecido:

Isso não seria possível se nesses operarios o desejo de aprender não brotasse de uma

concepção de mundo que a própria vida ensinou-lhes e que eles sentem necessidade

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de esclarecer para possuí-la completamente, para podê-la plenamente concretizar (atuar).

É uma unidade preexistente que o ensino pre-tende confirmar, é uma vivente unidade que

nas escolas burguesas em vão busca-se criar37.

Para realçar a vivacidade didatica da escola de Ordine Nuovo, retrata por con-traste o ambiente das escolas burguesas, «a tediosa experiência de alunos e a dura experiência de professores»38:

Ambiente frio, opaco a toda luz, impermeavel a todo esforço de unificação ideal, aqueles

jovens [estão] reunidos nas salas de aula não pelo desejo de melhorar e de compreender,

mas pelo escopo arrivista, talvez não declara-do, mas claro e único para todos, de adquirir um “título”, de impor sua própria vaidade e

preguiça, de enganar hoje a si mesmos e ama-nhã aos demais39.

A diferença didatico-metodológica com Tasca explode um ano depois (agos-to 1920), quando Gramsci e Togliatti, armando um verdadeiro “golpe redacio-nal”, mudarão a linha de ação da revista:

O que entendia o companheiro Tasca com cultura? Entendia “lembrar”, não entendia

“pensar”; e entendia “lembrar” coisas gastas, coisas deterioradas, a pacotilha do pensamen-

to operario40.

O jornal, depois dessa mudança re-dacional, conseguiu nova vitalidade e maior difusão junto aos operarios:

Por que os operarios amaram Ordine Nuo-vo? […] Porque os artigos não eram frias

arquiteturas intelectuais, mas brotavam da nossa discussão com os operarios melhores, elaboravam sentimentos, vontades, paixões

reais da classe operaria de Turim, eram quase um “tomar consciência” (prendere

atto) de acontecimentos reais, vividos como momentos de um processo de íntima liber-tação e expressão de si mesma por parte da

classe operaria41.

Ordine Nuovo recebe uma legitima-ção diretamente de Lênin que declara:

No que se refere ao Partido Socialista Italia-no, o IIº Congresso da IIIª Internacional [de 19/07 a 07/08 de 1920] considera como fun-

damentalmente justas as críticas a esse Partido e as propostas praticas que foram publicadas, como orientação da seção turinense ao Con-selho do Partido socialista italiano, no jornal

Ordine Nuovo de 8 de maio de 1920 e que correspondem integralmente a todos os prin-

cípios fundamentais da III Internacional42.

Em 1º de janeiro de 1921, a Resenha Semanal de cultura Socialista muda para Cotidiano Comunista, sendo Gramsci Diretor. Na primeira pagina, estampa-se a epígrafe de Lassalle: «Dizer a verdade é revolucionario». Quinze dias depois, Gramsci com alguns companheiros fun-da o Instituto de Cultura Proletaria, seção do Prolet’kult de Moscou. No dia 21 do mesmo mês é criado o Partido Comunista da Italia (PCd’I), seção da III Internacio-

136 _ Gramsci professor político

nal, rompendo com o Partido Socialista Italiano (PSI)43.

Infelizmente, a onda revolucionaria na Italia era em refluxo. O movimento fascista mostrava a que veio: para sufo-car o radical desejo de mudança das mas-sas trabalhadoras. Os que perceberam o sentido do avanço fascista, receavam a separação do PSI Gramsci entre eles:

Pode existir um Partido comunista (que seja um partido de ação e não academia

de puros doutrinarios e politiqueiros que pensam “bem” e falam “bem” em matéria de comunismo) se não existe no meio das

massas o espírito de iniciativa histórica e a aspiração à autonomia industrial que de-

vem encontrar seu reflexo e sua síntese no Partido comunista?44.

Num desabafo professoral, poucas se-manas antes da criação do PCd’I, escre-vera, rindo-se de quem o acusava de ser voluntarista ou pragmatista ou, muito pior (façam o sinal da cruz) bergsoniano:

Decididamente, a filosofia, entre as fileiras do Partido socialista italiano e na mente de seus teóricos e de seus leaders, é destinada

a nunca ter sorte. […] Para encontrar o caminho correto é preciso remontar a Karl Marx e a Friedrich Engels, os quais, de um

pensamento filosófico tiraram uma doutrina de interpretação histórica e política. Mas eles passaram pelo idealismo e, ainda antes, eram pessoas que os filósofos os tinham lido, com-

preendido e assimilado45.

Em março de 1922, no II Congresso do PCd’I, formou-se uma minoria que defendeu a tatica da “frente única”, isto é, socialistas, comunistas e liberais democratas taticamente unidos contra o fascismo. A tese era apoiada pela In-ternacional e também por Gramsci que, então, foi designado a representar o Par-tido em Moscou. Partiu para Rússia em 26 de maio de 1922.

Em Moscou, no IV Congresso da In-ternacional Comunista (13 de novem-bro), com o tema «Cinco anos da Revo-lução Russa e perspectivas da Revolução Mundial», Lênin discursa se desculpan-do por não poder apresentar um grande relatório: fara apenas uma introdução às questões mais importantes. Ao referir-se às teses «A edificação da organização dos partidos comunistas, os métodos e os conteúdos do trabalho», aprovadas ha um ano no III Congresso Internacional Comunista, diz que, relendo o documen-to, ainda o considerava excelente, mas notava nele um grave defeito:

Nós não compreendemos como se deve levar a nossa experiência russa aos estrangeiros.

[…] Penso que o mais importante para todos nós, tanto para os russos como para os ca-

maradas estrangeiros, é que depois de cinco anos de revolução russa devemos estudar46.

Gramsci estava presente. Linguista de formação e paixão entendeu que o pro-blema situava-se no âmbito da “traduzi-bilidade”. Não se tratava, obviamente,

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da tradução da língua russa, conforme o próprio Lênin discursara. Faltava tradu-zir a experiência, a cultura e a linguagem da revolução bolchevique. Lênin acres-centa ter conversado com alguns delega-dos estrangeiros. Certamente, também com Gramsci que conhecia e apreciava. Não é descabido pensar que ele próprio tenha percebido o fracasso da “tradu-ção” da revolução russa pelas conver-sas com o professor político Antonio Gramsci. Lênin, educador e aluno, con-clui que o desafio da tradução podera ser enfrentado só por meio de muito estudo:

Devemos aproveitar cada momento livre da atividade militar, da guerra, para estudar, e desde o princípio. […] Mas também os

camaradas estrangeiros devem estudar […]. Eles devem assimilar uma parte da experiên-

cia russa. Como se verificara isso, não sei47.

As palavras de Lênin prestigiaram e confirmaram a linha política de Grams-ci: estudar a revolução russa, os sovietes; traduzi-la para a cultura ou linguagem italiana; estudar o mundo operario e camponês russo e italiano, as instituições das sociedades ocidentais e orientais; a reforma escolar e a proposta da Escola Única do Trabalho na Rússia para tradu-zi-la na Escola Unitaria italiana etc. Era um plano de trabalho plenamente con-dizente com o espírito, as condições e as propostas do Nosso professor político.

Não podendo entrar na Italia porque condenado à revelia, estabelecera-se em

Viena, onde ficou de dezembro de 1923 a maio de 1924, com a incumbência de manter as ligações entre o Partido Co-munista Italiano e os demais partidos comunistas48.

Nos 23 meses que passou fora da Ita-lia, em Moscou e em Viena, afastado das responsabilidades político-burocraticas diretas49, Gramsci estudou novas reali-dades, debateu assuntos teóricos com importantes intelectuais locais, escreveu cartas, artigos e, muito importante para o nosso tema, acompanhou dois grandes debates nacionais sobre Reforma Esco-lar, o da União Soviética e o da Áustria, referências para a elaboração da propos-ta de Escola Unitaria do Caderno 1250.

Sobre o debate russo, suas fontes de informação eram privilegiadas: mantinha longas e amigaveis conversas com a irmã de Júlia, Eugênia Schucht, secretaria pessoal da mulher de Lênin, Nadezska Krupskaia, chefe do setor responsavel pela Instrução Escolar junto ao Comissa-riado Popular da Educação; relacionava-se, também, amigavelmente, com Anato-lij Lunacarskij, que falava bem italiano, comissario do povo para educação51.

A reforma escolar russa enfrentava dois problemas cruciais: o da alfabetiza-ção e o do ensino técnico (politécnico ou tecnológico). Em Moscou, Gramsci pre-senciou ao lançamento da primeira gran-de campanha de alfabetização, quando todos os recursos disponíveis, humanos e financeiros, foram mobilizados:

138 _ Gramsci professor político

Se pense nas implicações de alfabetizar as crianças cada uma em sua própria língua

materna (cerca de setenta línguas); era neces-sario reformar ou até mesmo instituir ex novo um sistema de escrita e ainda produzir todos

os livros didaticos52.

Quanto ao ensino secundario, visan-do torna-lo Escola Única do Trabalho, de um lado, a Rússia desejava adequa-lo à sua plena industrialização, de outro lado, escrevera mais tarde Gramsci, para Lênin o conceito de Escola Unitaria, an-tes que uma questão pedagógico dida-tica, «tinha significação demonstrativo-teórica de um princípio político»53.

Sobre e reforma escolar na Áustria, uma das regiões mais desenvolvidas do continente europeu, o Nosso interessa-se num assunto que muito se condiz à sua personalidade: a reforma escolar. As ques-tões mais polêmicas da reforma austríaca, implementada pelo Partido Social Demo-cratico à luz do Movimento internacional da Escola Nova, diziam respeito à laici-dade da escola e à relação “democratica” entre professor-aluno54. Do lado progres-sista, defendia-se a reforma; a oposição propunha a volta da escola confessional e do autoritarismo jesuítico55.

Eleito Deputado pela circunscrição de Veneza, portanto “protegido” pela imunidade parlamentar, Gramsci vai para Roma. Era necessario disfarçar sua função política. Pitoresco, mas significa-tivo, escreveu à esposa dizendo que re-presentava o «professor sério sério»56.

Os dirigentes do PCd’I são encarcera-dos. Gramsci, pela contingência política, assume o cargo de Secretario Geral do Partido57 e dispõe-se a organiza-lo com vigor e criatividade. As massas de tra-balhadores, desagregadas, escreve, têm baixa consciência do que seja realmente a liberdade. Os italianos são desejosos de enriquecer sem produzir, são amantes do jogo, da loteria, buscam as bênçãos da igreja e o compadrio dos poderosos58. Cabe ao Partido Comunista, portanto, desenvolver um vasto programa de ati-vidades educativas, molecularmente, de longo prazo e teoricamente profundo. Del Roio59 sintetiza as atividades prin-cipais: o jornal l’Unitá para as massas; a revista L’Ordine Nuovo para a vanguarda operaria; um anuário (agenda) da classe operaria; uma biblioteca de textos funda-mentais para as escolas de partido e um curso por correspondência:

O curso por correspondência deve se tornar a primeira fase de um movimento para a cria-

ção de pequenas escolas de partido, capazes de criar organizadores e divulgadores bolche-

viques, não maximalistas, que tenham, por-tanto, cérebro, além de pulmões e garganta60.

Para quem gostava do socratico mé-todo da maiêutica, um curso por corres-pondência levanta perplexidades e dúvi-das metodológicas: «corre-se o risco dos alunos tomarem o conteúdo das apos-tilas como oro colato, isto é, ouro puro, doutrina infalível e perene»61.

Paolo Nosella _ 139

Ou seja: o posicionamento metodo-lógico de Gramsci, nos anos do terror fascista, oscila entre a necessidade de se utilizar um método doutrinario e a preo-cupação pelos vícios de argumentação causados pelo mesmo. “Forçado” (pelas circunstâncias) a organizar o curso por correspondência, reconhece, porém, que a melhor escola é a do debate presencial:

O tipo melhor de escola, sem dúvida, é o da escola falada, não o da escola por correspon-

dência. Na escola falada, o professor tem diante de si os alunos reunidos num local: os

conhece, ou termina por conhecê-los, a todos individualmente; pode avaliar as capacidades

e as fraquezas de cada um e pode elaborar um método e uma forma de exposição mais adequados a desenvolver as potencialidades

e suprir às fraquezas, pode, vez por vez, corrigir as falsas interpretações, esclarecer os equívocos, os mal entendidos, as obscurida-des, insistir sobre as noções menos obvias e

mais complexas, buscar, em suma, como fazer viver a escola de forma que haja um contínuo

desenvolvimento de cada um e que esse de-senvolvimento seja orgânico e sistematico. O tipo de escola por correspondência não pode

dar imediatamente os mesmos resultados62.

A questão metodológica é tão séria a ponto de Gramsci afirmar que a postura doutrinaria é impedimento para a com-preensão do marxismo. Podera aproxi-mar ao marxismo, suscitar o desejo de conhecer, jamais aprofundara sua dialé-tica historicista. A postura doutrinaria e

burocratica põe o militante em situação de dissonância teórica com o movimento da história:

Um perigo muito grave se apresenta: as mas-sas do partido, acostumando-se na ilegalidade

a pensar somente nos expedientes necessa-rios para se protegerem contra as surpresas

do inimigo, […] vendo como os dominantes aparentemente tenham vencido e conserva-do o poder por obra de minorias armadas e militarmente enquadradas, sem o perceber,

afastam-se da concepção marxista sobre a atividade revolucionaria do proletariado e,

enquanto parece radicalizar-se, dado que fre-quentemente ouvem-se discursos extremistas e frases sanguinolentas, na realidade tornam-

se incapazes de vencer o inimigo63.

Togliatti representava em Moscou o PCd’I. Entendia que deveria apoiar in-condicionalmente a política de Stalin. Gramsci divergia. A diferença esta regis-trada na conhecida correspondência de outubro de 1926, quando Gramsci cri-tica o modo como o Partido Comunista Russo pretendia enfrentar as oposições:

Os companheiros Zinoviev, Trotski, Kamenev contribuíram poderosamente para nos educar

para a revolução; algumas vezes nos corrigi-ram com muita energia e severidade. Foram

nossos mestres64.

Caríssimo Èrcoli [Togliatti], sua carta pare-ce-me por demais abstrata e esquematica na

forma de raciocinar. […] Todo seu raciocínio

140 _ Gramsci professor político

é viciado de burocratismo. […] A autoridade do Partido não pode ser inculcada por mé-

todos de pedagogia escolásticos, mas somente por métodos de pedagogia revolucionaria, isto é, somente pelo fato político de que o

Partido russo no seu conjunto esta convenci-do [de que é possível construir o socialismo]

e luta unitariamente. Saudações cordiais. Antonio65.

Estava posta a ruptura metodológica entre Gramsci, professor político, e To-gliatti, político político.

3 _ No cárcere (1926-1937)

Gramsci, em 08/11/1926, é preso e con-finado na ilha de Ústica, em detenção provisória. Escreve para Tânia: «Minha impressão de Ústica é ótima sob todos os pontos de vista. […] A saúde esta indo bem. Até engordei»66.

Sem perder tempo, organiza algo de que gosta, condizente ao seu perfil de professor: uma escola para todos que a desejarem. È razoavel pensar que, de re-pente, desimpedido das angustiantes res-ponsabilidades político burocraticas, sua tendência professoral se soltasse. Escre-ve ao amigo Sraffa que financeiramente lhe garantia quantos livros desejasse:

Estamos em Ústica em 30 condenados políticos: ja começamos toda uma série de cursos, basicos e de cultura geral, para os diversos grupos de confinados; […] eis a

razão pela qual encomendei determinados livros. […] Todos estão contentes de ter a escola que é frequentada com muita assi-

duidade e diligência67.

As cartas denotam satisfação por par-ticipar de uma escola diferente da do Partido de dois anos atras. Era um mini sistema escolar, articulado em cursos e níveis conforme a formação dos alunos e as competências dos professores: pri-mario, complementar, francês basico e avançado, alemão, história, economia, filosofia:

Em suma, procuramos equilibrar a necessi-dade de uma sequência escolar gradual com

o fato de que os alunos, embora às vezes semianalfabetos, intelectualmente são desen-

volvidos. […] Com a escola, que também é frequentada por alguns funcionarios e mora-

dores da ilha, evitamos os perigos de avilta-mento que são grandíssimos68.

Na ilha permanece pouco mais de dois meses, mas a escola continua e, pelo tom como os colegas companheiros o in-formam, era reconhecido como o profes-sor e organizador principal. Por exem-plo, o colega Berti, responsavel do curso de filosofia, em julho de 1927, escreve-lhe detalhando a metodologia de ensino que utilizava e solicitando conselhos di-daticos: «Escrevo-lhe para solicitar con-selhos gerais e específicos. Indique-nos livros, material e dê-nos alguma ideia genial, porque disso aqui carecemos»69.

Paolo Nosella _ 141

Do carcere de Milão, Gramsci res-ponde assumindo a autoridade pedagó-gica que lhe é atribuída. Considera «in-teressante o argumento tratado na carta do amigo»70. Propõe solução didatica conforme o método maiêutico: partir da situação vivida pelos alunos e das expe-riências pedagógicas dos professores:

Do meu ponto de vista, uma das atividades mais importantes a ser desenvolvida pelos professores é registrar, desenvolver e coor-

denar as experiências e as observações peda-gógicas e didaticas; só desse trabalho ininter-

rupto pode nascer o tipo de escola e o tipo de professor exigido pelo ambiente71.

A tematica o entusiasma. Logo imagi-na quão interessante seria produzir um livro de didatica embasado no registro dessas experiências: «Que belo livro po-der-se-ia fazer sobre essas experiências e como seria útil»72.

Quanto ao curso de filosofia, discorda dos conteúdos, excessivos e ideológicos, propostos por Berti73. Sua posição é pre-cisa: a escola formativa é sempre escola de cultura “desinteressada”74. Por isso, propõe que no curso de filosofia se ofe-reça:

Um panorama resumido da história da filoso-fia e se insista no estudo de um sistema filo-

sófico concreto, o hegeliano, esmiuçando-o e criticando-o em todos os seus aspectos. […].

Dever-se-ia oferecer, inclusive, um curso de lógica [formal] etc. e de dialética75.

Nos atos do processo contra Gramsci, 14/01/1927, o juiz instrutor Enrico Ma-cis refere-se ao imputado como:

Gramsci, prof. Antonio deputado ao Parla-mento. A expressão prof. Antonio mais que

registrar a efetiva profissão do acusado, regis-trava a percepção que os órgãos de investiga-ção tinham da figura pública do imputado76.

Reforçando essa percepção, a Revis-ta alemã Weltbühne (Mundo Cena) de 11/10/1927 refere-se ao processo contra Gramsci com essas palavras:

Entre os acusados ha um dos mais impor-tantes teóricos do movimento operario, de

apenas 36 anos e bem conhecido pelo inteiro mundo científico, […] o qual, em 1919, re-

cebera convite para assumir uma catedra na Universidade de Hamburgo que recusou por-

que não quis desistir de seus compromissos políticos77.

A condenação definitiva (20 anos, 4 meses e 5 dias) ocorrera em 04/06/1928, mas, ja do início de seu aprisionamento, percebia que uma grande mudança esta-va acontecendo78. Escreve a Tânia:

Você lembra o meu texto, rapidíssimo e su-perficialíssimo, sobre a Italia meridional e

sobre a importância de B. Croce? Pois bem, gostaria de desenvolver amplamente a tese que tinha então esboçado, de um ponto de

vista “desinteressado”, “für ewig”79.

142 _ Gramsci professor político

Muito se disse sobre a expressão für ewig (para sempre) acompanhada às vezes pela palavra «desinteressado»80. Gramsci se refere a um tipo de trabalho intelectual realizado de um ponto de vista científico mais acurado do que as analises e polêmi-cas escritas no calor dos acontecimentos e na pressa da publicação jornalística. Sem negar valor teórico aos trabalhos anterio-res, no carcere, a dimensão “desinteressa-da” se aprofunda. Não reflete, porém, um sentimento de resignação, restritivo, do tipo: ja que nada posso escrever sobre a cotidianidade política, forçosamente limi-tar-me-ei a trabalhos do tipo acadêmico. Ao contrario, abre para o prisioneiro um horizonte mais amplo, promissor e inte-lectualmente mais satisfatório de estudo. Emprestando palavras de Italo Calvino: I quaderni del carcere de Gramsci «são obra classica porque tendem a relegar as atua-lidades à posição de barulho de fundo, sem, ao mesmo tempo, prescindir desse barulho de fundo»81.

A obra de Bucharin (1921), por exemplo, causava um notavel “baru-lho de fundo” «impondo à esquerda a necessidade de enfrentar a questão da hegemonia mundial»82. Gramsci com-preendeu o perigo. Por isso, enquanto em 1925 incluiu essa obra na bibliografia da Escola de Partido83, do carcere, cin-co anos depois84, a desanca criticamente nas muitas paginas do Caderno 11: Ob-servações e notas críticas sobre uma tenta-tiva de “Ensaio popular de sociologia”. O bolchevismo marxista, inclusive na ver-

são de ultra bolchevismo estalinista, era quase universalmente aceito pelos parti-dos comunistas do mundo, o que, para Gramsci, era absolutamente inadequa-do. Sua crítica ao Manual Popular de Sociologia Marxista começa alvejando o ponto de partida abstrato e academista: «O Ensaio popular erra por partir (im-plicitamente) […] dos grandes sistemas das filosofias tradicionais […]. Deveria ter partido da analise crítica da filosofia do senso comum»85.

Pelo Manual, a história é governada por leis “científicas”, evolui conforme as leis das ciências da natureza, obedece às leis estatísticas dos grandes números:

A extensão da lei estatística à ciência e à arte política pode ter consequências muito graves

se dela nos utilizarmos para construir pers-pectivas e programas de ação. Ela pode ter

como resultado verdadeiras catastrofes, cujos “secos” prejuízos jamais poderão ser ressar-

cidos86.

4 _ Conclusão

Como dissemos, a dimensão professo-ral de Gramsci, unida à pratica política revolucionaria, contribuíu para ele afir-mar que «Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagó-gica»87, chave de leitura essencial do seu pensamento. Alicerça-se em dois princí-pios: na unidade de teoria e pratica e no conceito de “hegemonia”.

Paolo Nosella _ 143

Todas as díades de Gramsci (ne-cessidade e liberdade, ação e filosofia, homo faber e homo sapiens, estrutura e superestrutura, objetivo e subjetivo, so-ciedade política e civil, «guerra de mo-vimento e guerra de posição» etc.) con-fluem na unidade de teoria e pratica, recorrente, diz ele, em toda a história da filosofia88.

Forte objeção contra a integração de teoria e pratica provinha de certa leitura da XIª tese sobre Feuerbach de Marx, o qual afirmaria, na interpretação de En-gels, que «os filósofos somente interpre-taram de forma diferente o mundo, ao contrário trata-se de transforma-lo»89. Gramsci traduz: «Os filósofos somen-te interpretaram o mundo de diferentes modos; trata-se agora de muda-lo»90. Ou seja, fiel à original fórmula marxiana, des-considera a preposição adversativa aber (=mas, porém, entretanto, ao contrario) de autoria enghelsiana e conclui:

A tese XI […] não pode ser interpretada como um gesto de repúdio de toda filosofia, mas somente de tedio dos filósofos e de seu

psitacismo e de enérgica afirmação da unida-de entre teoria e pratica91.

Com isso, Gramsci, ao mesmo tem-po, se contrapõe ao carater “científico” determinista do marxismo92 bem como ao idealismo de Croce que afirmava ter Marx «suplantado não somente a filoso-fia hegeliana e sim todo tipo de filosofia pela atividade pratica»93.

Um segundo argumento que funda-menta a reciprocidade da relação pe-dagógica e de “hegemonia” decorre do conceito de hegemonia próprio de Gramsci, cujo termo ele põe entre as-pas (frequentes em Gramsci), indicando a complexidade conceitual. Embora o Nosso tenha utilizado apenas duas vezes a expressão «hegemonia civil» (Caderno 8, § 52 e 13, § 7), o contexto evidencia importante evolução teórica:

No período após 1870, com a expansão colo-nial europeia, todos esses elementos [referen-

tes ao período de 1789] mudam, as relações organizativas nacionais e internacionais do

Estado tornam-se mais complexas e maciças e a fórmula da “revolução permanente” própria de 1848 é elaborada e superada na ciência po-

lítica na fórmula de “hegemonia civil”94.

Corolarios do conceito de «hegemonia civil» são categorias tais como «incorpo-ração do indivíduo singular ao homem coletivo»95 e «importância da questão lin-guística geral para alcançar coletivamente um único clima cultural»96.

Existem, obviamente, diferenças de rituais e procedimentos entre as ativi-dades dos políticos e dos professores: uns põem em primeiro plano o poder e o jogo da correlação de forças; os ou-tros a verdade, a escolha e o estudo dos autores de referência. Então, em que sentido ocorre reciprocidade entre polí-ticos e professores? No sentido de que:

144 _ Gramsci professor político

[Ambos estão] conscientes do carater polí-tico da cultura, isto é, do fato que somente elaborando «as concepções mais gerais, as

armas mais refinadas e decisivas» [da cultura] (Gramsci, 309), pode-se herdar em plenitude

o passado, propondo a ele uma alternativa concreta97.

Na mesma direção, conclui Liguori:

Gramsci revoluciona o conceito de Revo-lução e o leva à altura da época presente

[…]. Entendia uma mudança profunda da sociedade e do mundo que partisse da cul-tura, do senso comum, da ideologia, capaz de evitar a revolução passiva e de conduzir

os subalternos a uma nova hegemonia98.

_ note1 _ Saggio sottoposto a doppia revisione cie-

ca. Quem escreve sobre Gramsci, escreve também sobre si próprio. Aqui, quem escreve “traduz” Gramsci, ha muitos anos, para alunos brasileiros que o desejam, explicando o que ele diz, por que o diz e também o que dizem os pesquisadores especialistas do tema. É a chave de leitura para entender o contínuo recurso ao entrelaçamento entre biografia e pensamento.

2 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, a cura di V. Gerratana, Einaudi, Torino 1975, p. 1551.

3 _ Ivi, p. 1331.4 _ iD., L’Ordine Nuovo 1919-1920, a cura

di V. Gerratana e A.A. Santucci, Einaudi, Torino 1987, p. 571.

5 _ iD., Quaderni del carcere, cit., pp. 1541-1543.

6 _ iD., Epistolario 1. Gennaio 1906-dicembre 1922, Istituto della Enciclopedia Italiana, Roma 2009, pp. 426-427.

7 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li. Antonio Gramsci dal socialismo al comunismo (1914-1919), Carocci, Roma 2011, p. 62.

8 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, cit., p. 1112.

9 _ «Vico afirma que Sólon, com o dito “co-nhece-te a ti mesmo» quis aconselhar os plebeus, que acreditavam ser de origem bestial enquanto os nobres seriam de origem divina, a refletirem sobre si mesmos para se reconhecerem de igual nature-za humana que os nobres e, por conseguinte, para pretenderem ser-lhes igualados no direito civil» (A. GramsCi, Cronache torinesi, a cura di S. Caprio-glio, Einaudi, Torino 1980, p. 28).

10 _ Ibidem.11 _ Ivi, p. 673.12 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-

li, cit., p. 68.13 _ Em 1952, o Editor Andrea Viglongo,

homenageando esse folho especial La città futura, reproduziu fotograficamente um limitado número de exemplares.

14 _ A. GramsCi, La città futura, a cura di S. Caprioglio, Einaudi, Torino 1982, p. 11.

15 _ Ivi, p. 21.16 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-

li, cit., p. 69, nota 92.17 _ A. GramsCi, Scritti (1910-1926). 2. 1917,

Istituto della Enciclopedia Italiana, Roma 2015, p. 255.

18 _ Ver A. GramsCi, La rivoluzione contro il Capitale, in La città futura, cit., p. 513; iD., Il nos-tro Marx, a cura di S. Caprioglio, Einaudi, Torino 1984, p. 132.

Paolo Nosella _ 145

19 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li, cit., p. 72.

20 _ A. GramsCi, Epistolario 1, cit., p. 427.21 _ F. Lo PiParo, Il professor Gramsci e Wi-

ttgenstein. Il linguaggio e il potere, Donzelli, Roma 2014, p. 141.

22 _ A. GramsCi, Scritti (1910-1926). 2. 1917, cit., p. 661.

23 _ L. raPone, Cinque anni che paiono secoli, cit., p. 79. Havia semelhante polêmica “culturalista” no movimento operario russo. Gramsci no artigo La cultura nel movimento so-cialista («Il Grido del Popolo» de 01-06-1918) cita, em defesa de sua posição, um artigo de Lunaciarschi, então Comissario do Povo para a Pública Instrução na República dos Soviets, que diz: «junto com as três atividades funda-mentais do movimento operario, especifica-mente reconhecidas pelos congressos, ou seja, a atividade política, econômica e cooperativa, [tinha] que ser reconhecida, equiparada às ou-tras, a atividade cultural de autoeducação e de criatividade proletaria» (A. GramsCi, Il nostro Marx, cit., p. 77, nota).

24 _ A. GramsCi, Epistolario 1, cit., p. 177.25 _ G. berGami, Il giovane Gramsci e il mar-

xismo (1911-1918), Feltrinelli, Milano 1977, pp. 121 ss.

26 _ Colaborador da revista «La voce» di Prezzolini e de L’unità di Salvemini. Professor de Pedagogia na Universidade de Catânia, colabora-dor e amigo de Giovanni Gentile que lhe confiara a direção das escolas primarias. A partir de 1924, recusou encargos públicos e passou à militância antifascista. Foi Professor de Pedagogia ao Magis-tério de Roma (A. GramsCi, Epistolario 1, cit., pp. 478-479).

27 _ Ivi, p. 177.28 _ Ibidem.29 _ Excubitor, do verbo latim excubo,

«guarda, sentinela, estar deitado fora da porta, velar, vigiar» (Dicionário Latino-Português de J. Cretella Junior e G. de Ulhoa Cintra, 3ª edi-ção revista, Companhia Editorial Nacional, São Paulo 1953, p. 431).

30 _ A. GramsCi, Epistolario 1, cit., p. 176. O italico é de Gramsci. A resposta de Lombardo Radice foi imediata, brevíssima e dura. Acusava os socialistas de indireta colaboração com os ale-mães, contra a Italia. Concluia: «Não é o momen-to para as academias pedagógicas, mas da ação em favor da Patria e das Patrias! Viva a Italia e não esqueçamos MAZZINI!» (ivi, p. 179).

31 _ F. Lo PiParo, Il professor Gramsci e Wit-tgenstein, cit., p. 136.

32 _ O Armistício do fim da Primeira Guerra Mundial foi assinado em 11 de novembro de 1918.

33 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li, cit., pp. 96-97.

34 _ Uma nota ao texto Il fenomeno Serrati confirma que Gramsci era visto pelos operarios como professor: «Os operarios sabem que, as-sim como Treves é advogado, também o é Ter-racini; assim como Turati é jornalista, também o é Pastore; assim como Mondolfo é professor também o são Gennari e Gramsci» (Antonio GramsCi, L’Ordine Nuovo 1919-1920, cit., pp. 790-791).

35 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li, cit., p. 97.

36 _ a. GramsCi, L’Ordine Nuovo 1919-1920, cit., p. 361.

37 _ Ivi, pp. 361-362.38 _ Ibidem.

146 _ Gramsci professor político

39 _ Ivi, p. 361.40 _ Ivi, p. 620.41 _ Ivi, p. 622.42 _ Lênin, ivi, p. 629.43 _ G. Fiori, Vita di Antonio Gramsci, La-

terza, Roma-Bari 1977, p. 170.44 _ a. GramsCi, L’Ordine Nuovo 1919-1920,

cit., p. 571.45 _ A. GramsCi, Socialismo e fascismo – L’Or-

dine Nuovo 1921-1922, Einaudi, Torino 1978, p. 12.

46 _ V.I.U. Lenin, Obras escolhidas, v. 5, Edi-ções Progresso-Moscovo; Edições “Avante!”, Lis-boa 1986, p. 354.

47 _ Ivi, pp. 354-355.48 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, cit.,

p. Lv.49 _ F. Lo PiParo, Il professor Gramsci e Witt-

genstein, cit., p.144.50 _ G. sChirru, Antônio Gramsci e os pro-

blemas da educação, III Seminario internacional da educação, UNINOVE, São Paulo 2010, p. 4.

51 _ Ibidem.52 _ Ibidem.53 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, cit., p.

1489.54 _ G. sChirru, Antônio Gramsci e os proble-

mas da educação, cit., p. 5.55 _ «l’Unità», 18/06/1926.56 _ A. GramsCi, Lettere 1908-1926, cura di

A. Santucci, Einaudi, Torino 1992, p. 370.57 _ Gramsci foi formalizado como Secreta-

rio Geral exatamente na reunião do Comitato Cen-trale do PCd’I de 13 e 14 de agosto de 1924, mas a indicação para que assumisse o cargo de dirigente principal do Partido partira da Executiva da Inter-nacional Comunista ja em 1923.

58 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li, cit., cap. 2.

59 _ M. DeL roio, Gramsci e a educação do educador, UNESP, Marília 2006, p. 8.

60 _ A. GramsCi, La costruzione del partito comunista 1923-1926, Einaudi, Torino 1974, p. 23.

61 _ Ivi, p. 58.62 _ Ivi, p. 59. Artigo de introdução à segunda

apostila da Escola Interna do Partido, La vita della scuola (ivi, p. 58).

63 _ Ivi, p. 51.64 _ Ivi, p. 130.65 _ Ivi, pp. 134-137.66 _ A. GramsCi, Lettere dal carcere, a cura di

S. Caprioglio ed E. Fubini, Einaudi, Torino 1975, p. 28.

67 _ Ivi, p. 25.68 _ Ivi, pp. 30-31.69 _ Ivi, pp. 101-103.70 _ Ibidem.71 _ Ivi, p. 101.72 _ Ibidem.73 _ Ivi, pp. 102-103.74 _ Numa carta de 1932, Gramsci explicara

a Júlia que «a existência de artista “desinteressa-da”, não quer dizer estampada nas nuvens, mas “interessada” no sentido não imediatista ou mecâ-nico da palavra» (ivi, p. 598).

75 _ Ivi, p. 102.76 _ F. Lo PiParo, Il professor Gramsci e

Witt genstein, cit., p. 153. A linha de defesa de Gramsci era afirmar que ele, mais do que um alto orgânico do Partido comunista, era um comunis-ta intelectual, escritor, professor. Daí, sua revol-ta quando recebeu carta que, conforme leitura de Gramsci «confirmava ser ele um dirigente do Partido e, portanto, sufragava a acusação ou, pelo

Paolo Nosella _ 147

menos, algumas motivações das acusações que lhe eram feitas» (ivi, pp. 159-160).

77 _ Ivi, p. 160. «A informação, fornecida por Enzo Collotti, in Carl von Ossietzky e la “Weltbüh-ne”, «Belfagor», XX, não foi retomada e aprofun-dada pelos biógrafos gramscianos» (ibidem).

78 _ No carcere, exigiu condições especiais regularmente reservadas para encarcerado inte-lectual, professor: revistas, livros, papel, caneta etc. Exige também uma cela particular para poder escrever.

79 _ A. GramsCi, Lettere dal carcere, cit., p. 58.

80 _ A. Castronuovo, La questione del für ewig, in N. Novello, Envoi Gramsci: cultura, filoso-fia, umanismo, Campanotto, Pasian di Prato 2017, pp. 141-148.

81 _ I. CaLvino, Por que ler os clássicos, Com-panhia das Letras, São Paulo 1993, p. 15.

82 _ L. raPone, Cinque anni che paiono seco-li, cit., p. 179 nota.

83 _ Na tradução, contudo, observa-se a «re-lutância de Gramsci na utilização da palavra “lei” frequentemente utilizada por Bucharin, substi-tuindo-a quase sempre com expressões diversas como “normalidade”, “regularidade”, “relação entre causa e efeito”» (F. Frosini, Bucharin, in Dizionario gramsciano, a cura di G. Liguori & P. Voza, Carocci, Roma 2009, p. 85).

84 _ Entre os dois momentos, ocorrera «a derrota política de Bucharin por parte de Stalin. […] Todavia, [independente disso] a Teoria, publicada em 1921 e recolocada em

numerosas edições e traduções nas principais línguas europeias, continuava a exercitar uma função de primeira importância no movimento comunista internacional […]. Portanto, o livro de Bucharin era um projeto de “elevação inte-lectual das massas”, embasado numa postura teórica contraria à de Gramsci» (ibidem).

85 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, cit., p. 1396.

86 _ Ivi, p. 1429.87 _ Ivi, p. 1331.88 _ Ivi, p. 1482.89 _ F. Frosini, L’eredità culturale dell’opera

di Antonio Gramsci, in N. Neil, Envoi Gramsci, cit., pp. 144-158. A analise filológica e hermenêu-tica de Frosini é convincente. (O italico é meu).

90 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere 1. Qua-derni di traduzioni (1929-1932), a cura di G. Cos-pito e G. Francioni, Istituto della Enciclopedia Italiana, Roma 2007, p. 745.

91 _ iD., Quaderni del carcere, cit., p. 1270.92 _ F. Frosini, L’eredità culturale dell’opera

di Antonio Gramsci, cit., passim.93 _ A. GramsCi, Quaderni del carcere, cit.,

pp. 1270, 1492.94 _ Ivi, p. 1566.95 _ Ibidem.96 _ Ivi, p. 1331.97 _ F. Frosini, L’eredità culturale dell’opera

di Antonio Gramsci, cit., p. 22.98 _ G. LiGuori, Cultura e revolução,

«CULT», 222, abril 2017, São Paulo, pp. 32 35.