“professor, quero ser oprimida!”: situação-limite e atos-limites no habitus professoral

18
551 “Professor, quero ser oprimida!”: situação-limite e atos-limites no habitus professoral Carlos Alberto Lopes de Sousa Universidade de Brasília Resumo Esse artigo tem por objetivo apresentar e discutir episódio ocorrido no ensino superior em que estudante, tendo estudado a Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987), demanda explicitamente a condição de ser oprimida pelo professor. O episódio registrado em diário de campo é analisado sob a ótica dos conceitos de situação-limite, inédito-viável, ambos de Paulo Freire (1992), e o de habitus, este último conceito de Bourdieu (1983). O conceito de habitus é posicionado no texto em perspectiva heurística, sendo denominado habitus professoral, nos termos de Silva (2003). O texto conclui que o pensamento freireano deve ser assumido como utopia sustentada no habitus professoral, expressando a negação do fugaz ou insatisfação momentânea e associado a movimento coletivo pela superação do estado das coisas e condições de existência desumanizadoras. Palavras-chave: Habitus professoral. Bourdieu. Paulo Freire. Inédito-viável. Utopia. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

Upload: larissa-guedes

Post on 22-Sep-2015

226 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Carlos Alberto Lopes de SousaUniversidade de BrasíliaEsse artigo tem por objetivo apresentar e discutir episódio ocorrido no ensinosuperior em que estudante, tendo estudado a Pedagogia do Oprimido (Freire,1987), demanda explicitamente a condição de ser oprimida pelo professor. Oepisódio registrado em diário de campo é analisado sob a ótica dos conceitos desituação-limite, inédito-viável, ambos de Paulo Freire (1992), e o de habitus, esteúltimo conceito de Bourdieu (1983). O conceito de habitus é posicionado no textoem perspectiva heurística, sendo denominado habitus professoral, nos termosde Silva (2003). O texto conclui que o pensamento freireano deve ser assumidocomo utopia sustentada no habitus professoral, expressando a negação do fugazou insatisfação momentânea e associado a movimento coletivo pela superaçãodo estado das coisas e condições de existência desumanizadoras.

TRANSCRIPT

  • 551

    Professor, quero ser oprimida!: situao-limite e atos-limites no habitus professoral

    Carlos Alberto Lopes de SousaUniversidade de Braslia

    Resumo

    Esse artigo tem por objetivo apresentar e discutir episdio ocorrido no ensino superior em que estudante, tendo estudado a Pedagogia do Oprimido (Freire, 1987), demanda explicitamente a condio de ser oprimida pelo professor. O episdio registrado em dirio de campo analisado sob a tica dos conceitos de situao-limite, indito-vivel, ambos de Paulo Freire (1992), e o de habitus, este ltimo conceito de Bourdieu (1983). O conceito de habitus posicionado no texto em perspectiva heurstica, sendo denominado habitus professoral, nos termos de Silva (2003). O texto conclui que o pensamento freireano deve ser assumido como utopia sustentada no habitus professoral, expressando a negao do fugaz ou insatisfao momentnea e associado a movimento coletivo pela superao do estado das coisas e condies de existncia desumanizadoras.

    Palavras-chave: Habitus professoral. Bourdieu. Paulo Freire. Indito-vivel. Utopia.

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 552

    Professor, I want to be oppressed!: limit-situations and limit-acts in e professorial habitus

    The goal of this article is to present and discuss an event occurred in a higher education environment, when a student, having studied Pedagogy of the Oppressed (Paulo Freire), explicitly demands to be oppressed by the professor. The episode, recorded in field notes, is analyzed from the perspective of the concepts of limit-situations and untested feasibility, both by Paulo Freire (1992), and Bourdieus (1983) concept of habitus. The concept of habitus is employed in the text in a heuristic perspective, being expanded and qualified as professorial habitus, as defined in Silva (2003). The text concludes that Freires thought should be adopted as a utopia sustained by the professorial habitus, expressing the negation of the fugacious or of fleeting dissatisfaction and associated with a collective movement for overcoming the state of things and dehumanized conditions of existence.

    Keywords: Professorial habitus. Bourdieu. Paulo Freire. Untested feasibility. Utopia.

    Profesor, quiero ser oprimida! : Situacin lmite y actos lmites en habitus profesoral

    Este artculo tiene como objetivo presentar y discutir un hecho ocurrido en la educacin superior en el que un estudiante, habiendo estudiado Pedagoga del Oprimido (Paulo Freire), exige explcitamente la condicin de ser oprimida por el profesor. El episodio registrado en diario de campos y analiza desde la perspectiva de los conceptos de situaciones lmite, indito viable de Paulo Freire (1992) y de la concepcin de habitus de Bourdieu (1983).El concepto de habitus es utilizado en una visin heurstica, siendo ampliado y calificados como habitus profesoral, segn Silva (2003). El texto concluye que el pensamiento de Freire debe asumirse en la utopa apoyada en el habitus profesoral que expresa la negacin de la in satisfaccin momentnea y fugaz, o asociado con el movimiento colectivo de superar el estado de cosas y las deshumanizador as condiciones de existencia.

    Palabras clave: Habitusprofesoral. Bourdieu. Paulo Freire. Indito viable. Utopa.

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 553

    Introduo

    Paulo Freire alargou as nossas percepes de mundo, alimentando os desejos e iluminando a necessidade do desenvolvimento de uma pedagogia tica e utpica para a mudana social (Torres, 2003, p. 211). O projeto educativo de Paulo Freire o da integrao reconstrutiva da pedagogia do oprimido como uma pedagogia voltada para a descolonizao do mundo (Torres, 2003, p. 206). Os argumentos e as imagens presentes nas narrativas de Paulo Freire tambm nos reconstituem pelo fato de no nos destinar a um lugar de observadores externos e nos provoca internamente, sacudindo conformismos e nos fazendo reconhecer nossos limites, tal qual afirma Linhares (2001, p.48): [...] a incompletude de que somos feitos e a necessidade de recomear, reavaliando nossas organizaes como estratgias para ir rompendo processos de submisso que nos aprisiona.

    No campo dos estudos em sociologia da educao, o nome de Paulo Freire, junto com o de Illich1, citado como utpico ou proftico (Gomes, 1994). Embora considere que seja utopia falar de sociedade igual, Demo (2004, 2004, p.19) ressalta a necessidade desse conceito negativo para combater tudo que existe e est aqum das nossas esperanas. Seguindo a tradio da Teoria Crtica, Demo (2004, p. 19) trata do conceito de utopia e utopismo. Critica o conceito de utopismo por ser integrante de uma dialtica no antagnica, sendo um funcionalismo barato. Diz que utopismo querer implantar na histria pretenses absolutas como sociedade igual, expurgada de problemas sociais, estabelecendo como regra o tratamento igual a gente desigual, padronizaes e estruturaes de poder em que s resta ao dominado obedecer. Assim, a meno que o autor faz ao conceito de utopia, como tipicamente negativo, deve ser considerada na relao crtica ao conceito de utopismo. Acrescenta-se aqui, distintamente do horizonte do utopismo, a constatao de que as utopias diferem em seus contedos e funes, constituindo-se pelo sentido atribudo a elas por seu autor e a quem se destina. A utopia freireana mobilizou prticas educativas nos campos da educao popular, educao de jovens e adultos e em torno da perspectiva da escola pblica popular.

    A pedagogia freireana foi influenciada por matrizes tericas advindas do pensamento humanista, inspirando-se no personalismo de Emmanuel Mounier, no existencialismo, na fenomenologia e no marxismo, sendo possvel encontrar na estrutura do pensamento de Paulo Freire ecos dos trabalhos de Karl Marx, Antnio Gramsci, Weber, entre outros (Torres, 2003; Gadotti, 1989). Pode-se afirmar que o pensamento de Paulo Freire heterodoxo e multirreferenciado, considerando suas fontes de inspirao. Nesse aspecto, Paulo Freire recebeu crticas por se

    .

    Illich foi um ex-padre catlico que escreveu o livro Sociedade sem Escolas, defendendo entre outras ideias que a educao compulsria deveria ser abolida, sendo a escola uma organizao custodial.

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 554

    afastar de teses marxistas ou pregar uma simples renovao da pedagogia nova. O pensamento de Paulo Freire conseguiu avanar no nvel metdico, isto , enquanto filosofia educacional que se faz prtica educativa, que se reconstri, maneira dos crculos de cultura e enquanto perspectiva da relao entre seres no, com e do mundo. Nesse sentido, o pensamento utpico de Paulo Freire no se constitui utopismo, sendo prtica efetivamente engendrada e testemunhada.

    Encontrei Paulo Freire na dcada de 80, em meio s experincias coletivas que vivenciei no Movimento de Educao de Base MEB. O MEB, criado na dcada de 60, foi um movimento de grande amplitude em termos de alcance, e de forte ao local, principalmente no segmento da educao popular e educao de jovens e adultos. Os componentes pedaggicos e polticos do pensamento freireano se fizeram presentes na proposta educativa do MEB, embora com variaes, intensidades e retrocessos, em face dos perodos histricos de turbulncia experimentados por essa entidade poca de vigncia da ditadura militar no Brasil, afetando tambm outros programas de educao popular criados na dcada de 602.

    O nome de Paulo Freire esteve e ainda est presente em muitas iniciativas de educao popular e alfabetizao de adultos quando das crticas s pedagogias ditas bancrias e ao sistema educacional a servio dos sistemas de dominao e opresso e inspira processos educativos com nfase em pedagogias voltadas humanizao e transformao social. Cunha Filho (2003, p. 71) destaca que:

    A quase reduo do nome de Paulo Freire temtica da alfabetizao de adultos foi, em grande parte, menos o resultado da leitura de suas obras e mais uma decorrncia dos fatos que, no Brasil perodo anterior ao Golpe e no exlio, terminaram por envolv-lo na problemtica do analfabetismo adulto.

    O chamado mtodo Paulo Freire contribuiu para que esse educador se tornasse mundialmente conhecido e por quase escondero que havia de fundamental em sua proposta pedaggica, que a concepo do conhecimento como uma construo dos sujeitos que interagem (Cunha Filho, 2003, p.71). A rigor, no se poderia falar em mtodo Paulo Freire, pois este consiste em teoria do conhecimento e filosofia da educao (Gadotti, 1989, p. 32).

    A contribuio do pensamento de Paulo Freire no se reduz dimenso epistemolgica da sua produo. As dimenses antropolgicas e polticas tambm esto presentes. Cunha Filho (2003, p. 73) afirma que no pensamento de Paulo Freire a dimenso epistemolgica se configura na viso do homem como ser

    .

    Para um estudo mais aprofundado destes programas, cf. PAIVA, Educao Popular e Educao de Adultos; GOS, De P no Cho tambm se aprende a Ler; CUNHA & GES, O Golpe na Educao. Essas so apenas algumas referncias importantes que tratam dos movimentos de educao e cultura popular na dcada de 60.

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 555

    inacabado, mas que se sabe inacabado e, por isso, tem de se encontrar com os outros, sendo necessidade objetiva e exigncia do processo criador. Para conquistar e transformar o mundo, os homens devem agir sobre ele e, a partir da ao que realizam, elaboram o conhecimento. O objeto do conhecimento o mundo e a prpria ao que realizam para conquistar o mundo, sendo o conhecimento fruto do encontro dos homens e de como interagem, sendo assim configurada a dimenso epistemolgica no pensamento de Paulo Freire. Na dimenso poltica, o educador sustenta que ningum pode conhecer-se como sujeito do ato, e as relaes que so estabelecidas entre os homens podem afirmar ou negar essa condio.

    Se tais relaes tiverem como pressuposto que uns conhecem e outros ignoram, ento os que sabem apresentam-se como sujeito do conhecimento, por isso devem oferec-lo aos que no sabem. Da resulta: os que sabem, pensam e ordenam, e os que no sabem apenas obedecem. neste sentido que o encontro dos homens viabiliza, na histria, a desumanizao. Mas a tarefa que o inacabamento reclama dos homens a humanizao. Esta s pode realizar-se na medida em que os homens todos so reconhecidos como sujeitos do ato de conhecer. Este pressuposto exige que as relaes estejam apoiadas no dilogo. (Cunha Filho, 2003, p.73).

    As dimenses de anlise e compreenso do pensamento de Paulo Freire avanam tambm para os aspectos ticos e estticos. Todas as dimenses podem ser vistas de forma entrelaadas, como parte do processo de crtica, autocrtica, autonomia, conscientizao e humanizao voltadas para a transformao social.

    Linhares (2001, p. 47) afirma que Paulo Freire exerce com maestria a construo de drenagens e canalizaes por onde faz fluir memrias suas e nossas, e essas vo enfraquecendo os mecanismos de opresso, no s por denunci-los, mas evidenciando como funcionam os mecanismos de produo e manuteno da opresso, convidando-nos a faz-lo, atentando para a sua precariedade histrica, seus vazios, rachaduras e contradies.

    A criana tem o hbito de fazer certas perguntas que nos deixam boquiabertos, perplexos, diante de questes realizadas numa simplicidade e espontaneidade detentoras de uma fora que nos incomoda, nos desequilibra, nos faz pensar na resposta ou no resposta. Na profisso de professor3 h vertentes pedaggicas que proclamam que o docente deve construir possibilidades de abertura s problematizaes dos alunos. Por outro lado, como valorizar as perguntas dos alunos quando o prprio professor no faz as suas prprias perguntas? Portanto, cair na imobilidade do perguntar e de trilhar dilogos com o outro interlocutores ou textos , consigo mesmo e com a natureza abre espao colonizao de

    .

    Para este texto, optei por utilizar indistintamente as expresses professor, educador, aluno, estudante, educando.

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 556

    esquemas de pensamento que paralisam a ao criativa e inovadora. Colonizao que ocorre quando no nos abrimos para pensar sobre o vivido e o concebido. Cada pessoa adulta deve fazer um esforo para retomar dentro de si a criana inquiridora.

    No contexto dessa reflexo, tomo como referncia as situaes-limites encontradas no ensinar e aprender em sala de aula, em perspectiva freireana. Quais so as perguntas inquiridoras e mobilizadoras para essa reflexo?

    Em dilogo com o pensamento freireano, e considerando o habitus professoral, como se caracteriza a situao-limite e o potencial para o indito-vivel nos atos estabelecidos na relao professor e aluno? O pensamento freireano algo concretizvel em sala de aula ou este pode apenas ser assumido como pensamento utpico? Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar episdio na prtica educativa docente em que a possibilidade do indito-vivel se evidencia em atos-limites no habitus professoral. Os atos-limites ocorrem inseridos em situaes-limites, sendo aqui pontuados tanto os elementos do mundo social quanto o sentido da ao pedaggica em sala de aula. O episdio apresentado foi extrado de dirio de campo, isto , registros das anotaes pessoais das aulasde Sociologia da Educao, quando do debate de temas e questes vinculadas ao pensamento freireano. O episdio se apresenta como disparador de outros episdios que possam provocar o estudo e a pesquisa do pensamento freireano em sala de aula.

    O conceito freireano do indito-vivel e o desafio da reconstruo do habitus professoral em situaes prticas tambm so expostos e discutidos no texto. Em relao ao conceito geral de habitus, estabelece-se dilogo com o pensamento do socilogo francs Pierre Bourdieu. Esse conceito ser situado, especificamente e principalmente, enquanto discusso no que se refere ao habitus professoral nos termos de Silva (2003). De forma geral, o conceito bourdieusiano assumido neste texto parte da perspectiva de reconstruo das tramas sociais, sem atribuir a nico fator a causa determinante das prticas educativas, por exemplo. Os fatores materiais, culturais e sociais, entre outros, formam o espao social concreto de compreenso de dado fenmeno social. Pelo exposto, no se tem aqui a pretenso de investigar as causas que determinam a relao entre os atos e a situao-limite, mas a lgica que penetra em sua manifestao.

    O artigo se desenvolve numa orientao em que no h um sujeito que escreve sobre um objeto que lhe estranho. Alis, aqui reside a concepo de um sujeito que reflete sobre o prprio sujeito e as interaes estabelecidas e registradas diante de outros, em face das situaes discursivas e prticas que defronta no campo da atuao. Nessa perspectiva que se segue a orientao epistemolgica com base na reflexividade reflexa de Bourdieu (2007). O conceito de reflexividade reflexa funda-se num olho sociolgico para perceber e controlar no campo da pesquisa os efeitos da estrutura social no contexto das formaes discursivas (Bourdieu, 2007, p. 694). A reflexividade reflexa acontece na postura do autor em

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 557

    construir o discurso, situando-o em algumas referncias do mundo social que objetiva a realidade e, ao mesmo tempo, subjetivamente produz sentidos. Tanto em termos conceituais, no caso do habitus, quanto na abordagem da reflexividade, a pretenso heurstica estar presente.

    O indito-vivel e as situaes-limites

    Nas Notas finais apresentadas no livro Pedagogia da Esperana (Freire, 1992), escritas por Ana Maria Arajo Freire (Nita Freire)4 , esta autora destaca o conceito do indito-vivel do autor, enfatizando que homens e mulheres encontram nas suas vidas pessoal e social obstculos que precisam ser vencidos, sendo esses denominados situaes-limites. Ana Maria Freire diz nas Notas que diante das situaes-limites h vrias atitudes dos sujeitos envolvidos. Uma das atitudes consiste em identificar queas situaes-limites no podem ser transpostas, ou identific-las como algo que no se quer transpor. Outra atitude reconhecer que a situao-limite existe e precisa ser rompida, ento h empenho em sua superao. O termo situaes-limites foi utilizado por Freire a partir da contribuio de lvaro Vieira Pinto, que, por sua vez, o extraiu de Jaspers, esvaziando-o da dimenso pessimista original (Nita Freire, 2009, p. 231).

    As aes necessrias para romper as situaes-limites so denominadas por Paulo Freire de atos limites. Vale destacar que as situaes-limites no podem ser vistas e analisadas sem considerar a dimenso macrossociolgica e a especificamente espao-temporal de desenvolvimento da ao educativa e pedaggica.

    As situaes-limites implicam, pois, a existncia daqueles e daquelas a quem diretamente servem, os dominantes; e daqueles e daquelas a quem se negam e se freiam as coisas, os oprimidos. Os primeiros vem os temas-problemas encobertos pelas situaes-limites da os considerar como determinantes histricos e que nada h a fazer, s se adaptar a elas. Os segundo quando percebem claramente que os temas desafiadores da sociedade no esto encobertos pelas situaes-limites quando passam a ser um percebido-destacado, se sentem mobilizados a agir e a descobrirem ondito-vivel.(Nita Freire, 2009, p. 205-206, grifo do autor)

    Mas o que define o indito-vivel enquanto pedagogia? Nita Freire (2009) diz

    .

    Ana Maria Arajo Freire tambm assina trabalhos publicados com o nome Nita Freire. Por isso, este artigo faz referncia aos nomes Ana Maria Arajo Freire e Nita Freire. No artigo da autora citado neste texto, correspondente ao ano de 2009, h o registro dos dois nomes. Optei pelo uso do nome Nita Freire quando da citao referente ao texto de 2009.

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 558

    que o conceito de indito-vivel foi criado a partir das influncias que Paulo Freire recebeu de Andr Nicolai por meio da categoria solues possveis despercebidas e de Lucien Goldman com a de conscincia possvel. Nita Freire (2009, p.231) diz ainda que o indito-vivel no a simples juno de letras ou expresso, mas sim palavrao, prxis, como possibilidade de transformar o mundo. Assim, o indito-vivel palavra na qual esto intrnsecos o dever e o gosto de mudarmos a ns mesmos dialeticamente mudando o mundo e sendo por este mudado (Nita Freire, 2009, p. 231).

    A pedagogia do indito-vivel mobiliza o sujeito para refletir sobre a viso da histria como possibilidades, e no como algo fatalista, j determinado e insupervel. Desta forma, a realidade concebida como algo que est sendo e pode ser transformado.

    Conforme sugere Freitas (2005), h quatro movimentos complementares em relao vivncia do indito-vivel como espao de prticas, vivncia:

    (1) proposio do indito - trata-se do convite reflexo atravs da vivncia de pr a mo na massa, bem como dos movimentos que precedem sua realizao o momento do acolhimento e da problematizao inicial; (2) mo na massa caracteriza-se pela vivncia da feitura do po em si, constituda por quatro movimentos mobilizadores da reflexo na ao as primeiras reaes, preparar a massa, sovar e modelar; (3) sistematizao da reflexo refere-se proposio de potencializar os momentos de espera e cuidado crescer e assar a massa at o po ficar pronto mediante a elaborao da reflexo sobre a ao atravs de relatrios em grupos, e; (4) hora da partilha consiste no momento coletivo de partilha da reflexo sobre a reflexo na ao gerada na vivncia e a partir dela mediante a apresentao dos relatrios dos grupos. A hora da partilha tambm o momento de celebrao dos resultados da feitura do po, com a sua degustao. (Freitas, 2005, p. 8).

    Tanto no espao escolar quanto no no escolar, desenvolvem-se inmeras aes pedaggicas em situaes-limites, tendo seus atos limites. Mas essas situaes-limites tero sentido enquanto olhar e interveno na perspectiva do indito-vivel e direcionamento para a construo dos processos educativos emancipatrios. Da, ento, que localizar as problematizaes iniciais no contexto do indito-vivel um primeiro movimento importante para posicionar a questo na realidade do processo pedaggico do ensinar-aprender em qualquer espao educativo.

    O habitus e o habitus professoral

    Habitus um conceito importante no pensamento de Pierre Bourdieu. Esse conceito se originou de Aristteles pelo nome de hexis, que significa uma disposio, um estado adquirido e firmemente estabelecido do carter moral que orienta

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 559

    os nossos sentimentos e desejos numa situao e, como tal, a nossa conduta. (Wacquant, s.d., p.1).

    Bourdieu (1983, p.94) define habitus como

    [...] sistema de disposies adquiridas pela aprendizagem implcita ou explcita que funciona como um sistema de esquemas geradores, gerador de estratgias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim.

    Bourdieu utiliza o conceito de habitus para designar disposies durveis nos indivduos geradas a partir da mediao entre o exterior e o interior, a sociedade e o indivduo. Dessa forma, o habitus se constitui por um conjunto de disposies no indivduo originadas a partir da sua relao com o meio social. Essas disposies durveis, ou capacidades treinadas e propenses estruturadas que configuram a conduta de cada um perante as demandas da sociedade (Wacquant, s.d., p. 2).

    As reflexes de Bourdieu sobre o habitus nos convocam reflexo crtica, lembrando-nos que as propriedades que se associam s categorias esto ligadas ao mundo do conhecimento prtico dos indivduos no mundo e por isso so, necessariamente, contextuais e sociais (Fornel, 2005, p. 228-229).

    Atento perspectiva da reflexividade reflexa, tomo como referncia que o conceito de habitus no deve ser reificado como coisa dada e que determinada ao possa ser imediatamente compreendida pelo simples a priori conceitual. Sem dvida, o conceito orienta a leitura e a interveno na realidade, mas o confronto com a realidade pode fazer emergir novos conceitos. Bourdieu prope que a prtica no o precipitado mecnico de ditames estruturais e nem o resultado da perseguio intencional de objetivos pelos indivduos, mas antes

    o produto de uma relao dialtica entre a situao e o habitus, entendido como um sistema de disposies durveis e transponveis que, integrando todas as experincias passadas, funcionando em cada momento como uma matriz de percepes, apreciaes e aces e torna possvel cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graas transferncia analgica de esquemas [sic]. (Bourdieuapud Wacquant, s. d., p. 2-3)

    O habitus mais adiante situado como habitus professoral refora, (re)produz e se atualiza espacial e temporalmente em prticas educativas desenvolvidas em estruturas as mais diversas econmicas, polticas, sociais, culturais, simblicas e de linguagem , devendo ser objeto constante da nossa curiosidade, autocrtica e capacidade de recriar-se subjetivamente, reconstruindo-se teimosamente, para melhor agir no mundo.

    A elaborao do conceito de habitus professoral nos termos de Silva (2003) tem sua fonte no s em Bourdieu mas sobretudo em sua experincia educativa tanto da formao inicial quanto para a docncia.

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 560

    Silva (2003) analisou memrias e experincias de professores, em consonncia com o aporte conceitual de Valter Benjamin, Bourdieu e E. P. Thompson. Em Benjamin, entre as vrias ideias que Silva (2003, p. 11) destaca est a de que ouvir experincias vividas por outras pessoas um ato generoso e, acrescenta a autora, tambm humano e que est em desuso. Em Thompson, a autora destaca que o conhecimento produzido na vida prtica no deve ser desprezado e a apreenso desse tipo de saber forjada no jogo que se estabelece entre o aporte conceitual e os dados empricos e exige o mesmo rigor cientfico presente nos estudos eminentemente tericos (...) (Silva, 2003, p.12).Partindo de Bourdieu, Silva (2003, p. 12, grifo no original) afirma que o habitus constitudo ao longo de nossa vida e suas caractersticasdependem daquilo que vimos, ouvimos, praticamos e reproduzimos com as informaes advindas das representaes que constitumos sobre as coisas.

    A experincia utilizada como instrumento metodolgico permite compreender os modos pelos quais os sujeitos efetivam, historicamente, as prticas sociais (Silva, 2005, p. 34).Silva (2005) diz que a experincia permite uma maior aproximao da realidade, j que ela se origina de vivncias concretas e complexas, devendo-se levar em considerao que as experincias de cada um so significadas por meio das representaes. Estas contam ao mesmo tempo com elementos mentais e recursos do mundo vivido. As prticas educativas devem ser tanto objeto e contedo da nossa curiosidade e sistematizao quanto aposta na sua possibilidade de reconstruo.

    Para colocar em prtica uma educao que respeite a compreenso do mundo dos educandos, desafiando-os a pensar criticamente, e que no separe o ensino do contedo, exige-se formao permanente dos educadores e educadoras,

    [...] mas sobretudo, exige um empenho srio e coerente no sentido da superao das velhas marcas autoritrias, elitistas, que perduram nas pessoas em que elas habitam sempre dispostas a ser reativadas. E sem o exerccio dessa tentativa de superao, que envolve a nossa subjetividade e que implica o reconhecimento de sua importncia, to menosprezada e minimizada pelo dogmatismo que a reduz a mero reflexo da objetividade, toda tentativa de mudana da escola para p-la numa direo democrtica, tende a no vingar. (Freire, 1992, p. 168-169).

    Embora sem se utilizar do conceito de habitus, Paulo Freire afirma ideia nessa direo, ao dizer:

    s vezes, ns que no percebemos o parentesco entre os tempos vividos e perdemos assim a possibilidade de soldar conhecimentos desligados e, ao faz-lo, iluminar com os segundos, a precria claridade dos primeiros. (Freire, 1992, p. 19).

    Nos espaos-tempos vividos manifestam-se conscientemente ou inconscien-temente as influncias da formao escolar e familiar, por exemplo. As nossas

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 561

    A expresso objetividade humanstica e subjetividade engajada consta no livro de Freire (1992).

    prticas educativas representam uma das oportunidades do estabelecimento das ligaes entre o fruto das influncias das estruturas do mundo social e a nossa subjetividade. O pensamento pedaggico de Paulo Freire marcado pela serie-dade crtica, pela objetividade humanstica e pela subjetividade engajada, sempre aliadas e presentes em suas obras5 .

    Assume-se neste artigo que a natureza do ensino na sala de aula constituda por uma estrutura estvel, porm estruturante, isto , uma estrutura estvel mas no esttica, que denominamos habitus professoral (Silva, 2005, p. 153, grifo no original).

    Professor, quero ser oprimida!

    O episdio a seguir evidencia a vivncia concreta e complexa no ensinar e aprender em perspectiva freireana. Encontrava-me junto aos alunos no ltimo encontro de discusses sobre o livro Pedagogia do Oprimido (Freire,1987). Os estudantes eram oriundos de vrios cursos acadmicos e com uma mdia de 21 anos de idade. Entre os temas em aprofundamento estava o medo da liberdade de que se faz objeto o oprimido, mas que tambm se instala de modo diferente nos opressores. Paulo Freire afirma que, nos oprimidos, o medo da liberdade o medo de assumi-la, sendo que estes introjetam a sombra dos opressores e seguem suas pautas. Os oprimidos, medida que expulsam a sombra dos opressores, devero preencher o vazio, estabelecendo suas pautas, seus contedos e assim exercendo a autonomia com responsabilidade.

    Concludos o estudo e o debate em torno das ideias do livro de Paulo Freire e estando este autor/professor mobilizado pela perspectiva de que os estudantes assumissem a sua autonomia, elegendo livremente para o trabalho final da disciplina temas ou questes relacionadas aos autores discutidos em sala de aula, entre esses Paulo Freire , uma aluna levantou a mo e dirigiu-se a mim dizendo: Professor, eu quero ser oprimida! Diga-me o tema ou questo que devo desenvolver. No quero escolher o meu tema livremente! De imediato, a interveno da aluna tornou-se um obstculo a ser vencido em uma situao-limite. Pensei: Como possvel essa afirmao categrica aps a discusso do livro Pedagogia do Oprimido?

    Diante da situao e perante a turma, o habitus professoral acionou esquema gerador constitudo dos seguintes atos, a saber: a interveno, a devoluo e os

    .

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 562

    encaminhamentos6, sendo partes da estratgia geral de sustentao da proble-matizao como algo a ser conhecido e aprofundado a partir da experincia.

    Cada elemento do esquema gerador realizou-se:

    1) intervindo, transitando entre o apelo autoridade moral do professor pelo discurso do sentido da atividade para que os alunos sassem da sombra do professor e estruturando algumas problematizaes para que os estudantes tambm fizessem as suas perguntas e levantassem as suas hipteses. Para tanto, a pergunta da aluna foi devolvida aos estudantes da seguinte forma: como cada um retomaria em situaode docncia a questo da estudante, elegendo como ponto de partida a experincia de ensinar e aprender em Paulo Freire em sala de aula? Complementarmente, foram realizadas duas outras problematizaes: quais as questes que o grupo faria em relao interrogao da aluna? Quais as hipteses do grupo para explicar o fato de a aluna solicitar ser oprimida?

    2) devolvendo, sob forma de estruturao do contedo situao vivenciada em sala de aula e texto de Freire , o tema da autonomia e autoria na construo do conhecimento e de como a liberdade de escolha repercute na formao dos estu-dantes, acrescentando ainda a indispensvel presena do professor no processo de orientao dos trabalhos e da relao entre os estudantes.

    3) encaminhando agendamento de encontro especfico com a aluna, escutando-a em relao sua prpria questo e ao exerccio da sua liberdade, sem espao para licenciosidade ou autoritarismo docente e retomando, coletivamente, o assunto da aula7.

    A devoluo da sistematizao das questes turma teve como resposta alguns minutos de silncio. Uma das hipteses para o apelo da estudante era que, por ter a oportunidade de exercitar a liberdade, seria arriscado exerc-la, julgando que talvez o professor no fosse gostar do tema, elaborando algo que poderia acarretar nota ruim. A opo pela escolha do tema ou questo seria arriscada. Seria mais seguro pedir um tema ao professor. Nesse aspecto h algo presente: o poder do professor. H uma questo de poder emergente na relao porque o educando se espelha no poder da autoridade do professor. Quem fala o qu e sobre o qu, e em quais circunstncias?

    .

    .

    Em aula subsequente, cada estudante socializou o seu tema e as questes de estudo e pesquisa, discutindo-os com o restante da turma.

    Participei nos anos 90 de curso de formao promovido pelo MEB e ministrado por Madalena Freire. Nesse curso as etapas da interveno, devoluo e encaminhamento foram tanto praticadas quanto houve aprofundamento conceitual. Essas etapas foram resgatadas do meu aprendizado conceitual e do aprofundamento da discusso pedaggica.

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 563

    O tipo de postura da estudante condizente com aquela interpretao de Charlot (2009, p. 95), quando este afirma que os alunos foram desapropriados e desapropriaram a si mesmos do sentido do que fazem: avaliam o trabalho como algo chato e aborrecido e do valor apenas nota que obtm do trabalho submetido ao crivo do professor. Operou no habitus professoral um duplo movimento tensionante: i) o movimento de realizar atos e estratgias de trabalho em sala de aula para que os estudantes conhecessem e aprofundassem o pensamento de Paulo Freire a partir da perspectiva terica e crtica e ii) o movimento de tomar a demanda da aluna como contedo e experincia para vivenciar, coletiva e criticamente, a Pedagogia do Oprimido em sala de aula, problematizando a demanda da aluna pelo tema e projetando a reorientao das aulas planejadas e desenvolvidas at ento. Vale frisar que, nesse segundo movimento, resurgia a influncia das experincias no MEB no campo da educao popular e educao de pessoas jovens e adultas, idealizando para aquela situao a constituio de uma espcie de crculo de cultura freireano no espao acadmico, por meio do qual emergiriam os temas e as questes geradoras de leitura e estudo.

    Esses movimentos ampliavam o aprender em perspectiva freireana, considerando as relaes com o mundo, mas as situaes-limites se impunham objetivamente e subjetivamente no habitus professoral, envolvendo tanto a percepo do mundo social quanto as prticas e o sentido dessas inseridas no cotidiano do trabalho docente.

    No mundo social, os sujeitos lutam pela sobrevivncia e buscam o ideal da prosperidade por diversas vias (obter certificao; buscar formao continuada, cursos e trabalhos rpidos para no pensar muito; terminar o curso para fazer concurso pblico o mais rpido possvel). Nesse mundo catico, que foge capacidade de controle, o conhecer cria problemas complexos e mal definidos, provocando situaes problemticas no s no ensinar e no aprender; para alm disso, repercute na prpria condio biopsicossocial do sujeito (depresso, doenas relacionadas ao trabalho) e promove a reafirmao de teses perversas e globais do mundo social uma boa eptome desta constatao a sentena Time is money!.

    Os atos pedaggicos em sala podem se configurar como burocrticos, caracterizando-se pela centralidade e exposio erudita do docente apenas. Vale esclarecer que a exposio erudita do professor no se constitui problema em si. O problema reside no fato de o estudante no ser provocado a sair da sombra do professor. O professor se apega ideia do programa a cumprir, reclamao em torno da leitura dos textos pelos alunos, a questes curriculares, entre outros aspectos, para abrigar o lote de inseguranas na relao entre professor e aluno, muitas vezes no assumido.

    No episdio relatado, a pedagogia freireana operou no ato-limite da educao problematizadora, destacando-se o aprofundamento da relao autoridade e liberdade no ensinar e aprender em sala de aula, contextualizando, ampliando o

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 564

    contedo, entendido como tambm aquele da relao que mobilizou a participao na discusso. Assim, ir alm da educao problematizadora, constituindo e estendendo o indito-vivel, era a possibilidade de radicalmente alterar e experimentar Freire, no em uma ou duas aulas, mas em toda e qualquer aula, mudando a concepo das aulas historicamente construdas e reproduzidas socialmente no ambiente acadmico at ento.

    A utopia se alimenta do reconhecimento de uma ordem no vivenciada no espao de ensino e aprendizagem, sendo a condio desejvel das aulas. Todavia, o indito-vivel se constituiu, no pela perspectiva das aulas imaginadas que queria o docente, mas nos atos-limites da experincia vivida e na viso da maioria dos alunos de que possvel posicionar o habitus professoral em um campo de relaes distintas daquelas orientadas para o silenciamento dos estudantes, sendo essa categoria mediadora da relao entre as condies de existncia no mundo social e a prtica educativa e pedaggica desencadeada.

    As problematizaes, intervenes e devolues sistematizadas da discusso, instrumentos para desvelar algumas mincias da relao do tipo opressora, provocaram os estudantes a preencher o vazio do silncio coletivo que se formou no momento imediato quele em que se levantou originalmente a questo em sala de aula. No pensamento originrio de Bourdieu, o habitus concebido no horizonte das descobertas dos implcitos presentes nos mecanismos de construo e reproduo social, no sendo preocupao desse autor o enfoque no trabalho ou na atividade escolar e seu potencial enquanto desdobramento na ao dos alunos. O projeto de uma pedagogia racional que tudo fizesse para neutralizar de forma sistemtica a ao dos fatores sociais de desigualdade cultural foi abandonado no trabalho intelectual de Bourdieu. Vale salientar que, enquanto o pensamento de Bourdieu tem acento predominantemente ctico em relao escola, o de Freire expressa a esperana e a utopia sustentada. Da a opo heurstica pelo conceito de habitus, sendo a ltima viso a inspirar-me no trabalho educativo.

    Pode-se afirmar que o pensamento freireano aplicvel em sala de aula, mas no como um ditame inflexvel em termos de relao educativa, tendo perspectiva causal e determinstica nas relaes no ensinar e aprender. A relao educativa em perspectiva freireana desloca o professor da sua zona de conforto, gera tenso, mas tambm acarreta o anncio de um futuro por vir, exercendo sem dvida nenhuma a vocao humanizadora de educar. Essa vocao humanizadora no pode confundir-se com prticas educativas espontanestas, licenciosas ou que se fingem democrticas ou ainda sustentadas na ideia de dilogo que se supe um bl-bl-bl, solto, sem bom senso e rigorosidade metdica. Em termos de pensamento freireano utpico, o habitus professoral em sala aula manifesta a tenso entre o anncio de um presente que no concretiza a utopia e nem se pode esgotar no trabalho ou atividade escolar, por mais que seja inteligentemente orientada.

    Notadamente, o ato-limite tem o seu limite medida que se faz restrito a uma

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 565

    reflexividade individual da experincia do pensar criticamente e experimentada episodicamente em atividades pedaggicas em sala de aula.

    A herana da reflexividade em alunos e professores a memria da experincia, quando significativa para uns. Essa memria pode ter sua extenso e ressignificao nos espaos coletivos de engajamento, luta e transformao do mundo social, indo alm da experincia em si de desvelar o mundo, mas tendo desdobramento em termos de participao em um campo mais amplo das relaes sociais.

    Compartilho da viso de que importante levar em considerao que a anlise que envolve a interao entre as prticas e os seus contedos, entre sistema, estrutura e cotidiano deve consistir numa descrio minuciosa dos processos internos em sala de aula, sendo que esta no invalidar teses mais globais em relao ao sistema e contribuir para matiz-las e para delimitar as mediaes pelas quais a escola reproduz a desigualdade social e cultural (Perrenoud, 2001, p. 64).

    Consideraes finais Pode-se afirmar, de forma geral, que o indito-vivel conceito mobilizador

    que nos ajuda a compreender criticamente as contradies que derivam das experincias ou vivncias realizadas no campo educacional e pedaggico no espao tanto escolar quanto no escolar, ajudando-nos na elaborao de um projeto de mudana e transformao da realidade. A contradio no s categoria interpretativa do real, mas ela prpria existente no movimento do real, como motor interno do movimento, j que se refere ao curso do desenvolvimento da realidade (Cury, 1979, p. 30).

    A relao em torno de ensinar e aprender marcada pelos valores que nos orientam e que do a configurao do fenmeno educativo do qual fazemos parte e no qual somos sujeitos ativos, medida que realizamos intervenes. A histria que se incorpora nas estruturas aquela que se incorpora no nosso corpo, no nosso habitus professoral nos atos-limites.

    H tanto contradies quanto obstculos nos atos de ensinar e aprender no contedo da relao emergente no habitus professoral. H tambm a negao no enfrentamento da realidade no ensinar e aprender, trazendo consequncias tal qual a interdio do professor na sua capacidade de reconstruir-se diante da prtica j incorporada no seu cotidiano (os mesmos textos, as mesmas atividades, as mesmas avaliaes, a mesma estrutura de relao, as mesmas piadas e exemplos) e daquela sedimentada no no desafio feito ao educando para sair da sombra do professor.

    Dar-se conta disso, assumir e ter mecanismos para operar esse aprendizado contnuo desafiador na prtica educativa. Quantas falas, textos, intervenes dos alunos e do professor j foram to ricas, e foram perdidas na memria enquanto

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 566

    perspectiva da construo do conhecimento? Quantas oportunidades so perdidas em conhecer e provocar a sada dos alunos da sombra do professor? Conhecer o aluno no se restringe identificao de um perfil, pois esse no o quem vai atuar. Quem ir atuar ser o sujeito aprendiz, e no o perfil de aluno que se tem. Isso pelo fato de que muitas vezes o perfil tem mais elementos idealizados, bem verdade do que o prprio sujeito identificado na realidade concreta.

    A utopia freireana no algo que deva ser tomado como fugaz, uma insatisfao momentnea, mas algo que deve ser assumido com entusiasmo, otimismo, uma esperana sustentada em relao superao do estado das coisas, das condies de existncia desumanizadoras, que aponta para um projeto societrio humano, tico, solidrio, igualitrio e democrtico. Entre a utopia e a sua realizao existe um tempo histrico que o tempo da ao transformadora (Diana Cunha, s. d. apud Bellanova, 1996, p. 604). Particularmente, entendo que no espao e tempo da sala de aula h o potencial para engendrar algumas transformaes, mesmo no impactando e alterando substantivamente as estruturas do mundo social. Nesse espao em potencial se encontram as situaes-limites e se desenvolvem os atos-limites fundados em uma utopia e otimismo sustentado.

    Algo reconhecido como complexo exige muitas inteligncias engajadas, agindo coletivamente. S assim o recuo ideolgico no conhecimento da realidade pode ser superado, rompendo o que aprisiona o sujeito. Por fim, o educador no aquele que simplesmente forma, mas ao formar est se formando e ao mesmo tempo re-forma cotidianamente o seu processo de formao (Emerenciano; Lopes de Sousa; Freitas, 2001, p. 8).

    Referncias

    BELLANOVA, Bartolomeu. Educao e utopia em Paulo Freire: o verdadeiro realismo do devir humano. In: GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. So Paulo :Editora Cortez, 1996. p. 603-606.BOURDIEU, Pierre. Questes de sociologia.Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. _______. A misria do mundo. 6. ed. Petrpolis, RJ : Vozes, 2007.CHARLOT, Bernard. A escola e o trabalho dos alunos. Revista de Cincias da Educao, n. 10, set./dez. 2009. p. 89-95.CUNHA, Luiz Antnio, GOS, Moacir de. O golpe na educao. 7.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. CUNHA FILHO, Jos Leo da. A palavra geradora: uma aproximao entre Freire e Piaget. Braslia: Editora Universa, 2003. CURY, Carlos Alberto Jamil. Educao e contradio: elementos metodolgicos para uma teoria crtica do fenmeno educativo. 4.ed. So Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989.

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...

  • 567

    DEMO, Pedro. Sociologia da educao: sociedade e suas oportunidades. Braslia: Plano Editora, 2004.EMERENCIANO, M. do Socorro Jordo; LOPES DE SOUSA, Carlos Alberto; FREITAS, Lda Gonalves de. Ser presena como educador, professor e tutor. Colabora, Curitiba, ago. 2001. Disponvel em:. Acesso em: 20 jan. 2012. (Revista Digital da CVA RICESU)FORNEL, Michel de. Habitus e etnomtodos. In. ENCREV, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (Coord). Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 221-229.FREITAS, Ana Lcia Sousa de. Pedagogia do indito vivel. Contribuies de Paulo Freire para fortalecer o potencial emancipatrio das relaes ensinar-aprender-pesquisar. V Colquio Internacional Paulo Freire Recife, 19 a 22set. 2005.FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1987._______.Pedagogia da esperana: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Notas: Ana Maria Arajo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. _______. Seminrio de Metodologia. Instituto Cajamar. Departamento de Formao. 04 de abr. de 1988. Debate com Paulo Freire. Documento em meio impresso. FREIRE, Nita. Indito-vivel. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime Jos (Orgs). Dicionrio Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte : Autntica Editora, 2009. p. 231-234. Verbete. FREITAS, Lda Gonalves de; CUNHA FILHO, Jos Leo; LOPES DE SOUSA, Carlos Alberto; MARIZ, Ricardo Spindola. Reconstruo das prticas docentes: uma estratgia de para a formao de professores a partir da prtica. In: FREITAS, Lda Gonalves de; MARIZ, Ricardo Spindola; CUNHA FILHO, Jos Leo (Orgs.). Educao superior: princpios, finalidades e formao continuada de professores. Braslia: Editora Universa, 2010, p. 149-165.GADOTI, Moacir. Convite leitura de Paulo Freire. So Paulo: Editora Scipione, 1989.GES, Moacir de. De p no cho tambm se aprender a ler, 1961-1964: uma escola democrtica. 2.ed. So Paulo: Cortez, 1991. GOMES, Cndido Alberto. A educao em perspectiva sociolgica. 3.ed. So Paulo: EPU, 1994.LINHARES, Clia. Memrias como narraes compartilhadas. FREIRE, Ana Maria (Org). In: A Pedagogia da libertao em Paulo Freire. So Paulo : Editora UNESP, 2001. PAIVA, Vanilda. Educao popular e educao de adultos. 5.ed. So Paulo: Loyola, 1987. PERRENOUD, Philippe. A pedagogia na escola das diferenas: fragmentos de uma sociologia do fracasso. Porto Alegre: Artmed, 2001.SILVA, Marilda. Como se ensina e como se aprende a ser professor: A evidncia dohabitus professoral e da natureza prtica da didtica. Bauru, SP: EDUSC, 2003._______. O habitus professoral: o objeto dos estudossobre o ato de ensinar na sala

    Linhas Crticas, Braslia, DF, v. 18, n. 37, p. 551-568, set./dez. 2012.

  • 568

    de aula. Revista Brasileira de Educao, So Paulo, n. 29, 152-163, maio/ jun/ jul/ ago. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 11 jan. 2012.TORRES, Carlos Alberto (Org). Teoria crtica e sociologia poltica da educao. So Paulo: Cortez Editora: Instituto Paulo Freire, 2003. WACQUANT, L. Esclarecer o Habitus.New School for Social Research. Disponvel em:. Acesso em: 11 jan. 2012.

    Recebido em abril de 2012Aprovado em julho de 2012

    Carlos Alberto Lopes de Sousa doutor em Sociologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Atualmente professor de Sociologia da Educao no Departamento Teoria e Fundamentos da Universidade de Braslia na Faculdade de Educao e do Programa de Ps-Graduao em Educao, tendo como interesse as seguintes temticas: habitus, diferena e cultura no ensinar e aprender, classes populares e mdias e educao a distncia, socializao pela internet, ongs e educao. Email:[email protected]

    Carlos Alberto Lopes de SOUSA. Professor quero ser...