glauco honório teixeira

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS Escola de Design Programa de Pós-Graduação em Design – PPGD INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORÂNEOS: TRANSFORMAÇÕES NA ATUAÇÃO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE GLAUCO HONORIO TEIXEIRA Belo Horizonte 2011

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Glauco Honório Teixeira

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

    Escola de Design

    Programa de Ps-Graduao em Design PPGD

    INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS:

    TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE

    GLAUCO HONORIO TEIXEIRA

    Belo Horizonte 2011

  • INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS:

    TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE

    GLAUCO HONORIO TEIXEIRA

    Belo Horizonte 2011

  • GLAUCO HONORIO TEIXEIRA

    INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS: TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do

    Estado de Minas Gerais como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em

    Design, na rea de concentrao em Design, Inovao e Sustentabilidade.

    Orientador:

    Prof. Jairo Jos Drummond Cmara Dr.

    Co-orientadora:

    Prof. Rita de Castro Engler Dr.

    Belo Horizonte 2011

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde

    que citada a fonte

    Ficha Catalogrfica

    T266i Teixeira, Glauco Honorio

    Interiores residenciais contemporneos: transformaes na atuao dos profissionais em Belo Horizonte/ Glauco Honorio Teixeira. - - Belo Horizonte, 2011.

    143 f. (enc.): il. Color. grafs. tabs. ; 31cm

    Orientador: Jairo Jos Drummond Cmara Co-orientador: Rita de Castro Engler Dissertao (Mestrado) Universidades do Estado de Minas Gerais / Escola de Design / Mestrado em Design, 2011.

    1. Decorao de interiores - Teses. 2. Arquitetura de Habitaes Sc. XXI. 3. Designers Belo Horizonte. I. Cmara, Jairo Jos Drummond. II. Engler, Rita de Castro. III. Universidade do Estado de Minas Gerais. IV. Ttulo.

    CDU: 747

  • INTERIORES RESIDENCIAIS CONTEMPORNEOS: TRANSFORMAES NA ATUAO DOS PROFISSIONAIS EM BELO HORIZONTE

    Autor: GLAUCO HONORIO TEIXEIRA

    Esta dissertao foi julgada e aprovada em sua forma final para a obteno do ttulo de

    Mestre em Design no Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais.

    Belo Horizonte, 24 de novembro de 2011

    __________________________________________ Prof Sebastiana Luiza Bragana Lana, PhD.

    Coordenadora do PPGD

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Rita de Castro Engler, Dr. Co-orientadora

    Universidade do Estado de Minas Gerais

    Prof. Marcelina das Graas Almeida, Dr. Universidade do Estado de Minas Gerais

    Prof. Tito Flvio Rodrigues de Aguiar, Dr. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

    Prof. Carlos Alberto Miranda, Dr. Universidade do Estado de Minas Gerais

    Suplente

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu amigo e orientador, professor Jairo Jos Drummond Cmara, que

    acreditou no nosso projeto de pesquisa e confiou na nossa capacidade de lev-lo a bom termo.

    co-orientadora e incentivadora, Rita de Castro Engler. Por tudo. Por todas as

    leituras, e principalmente pela imensa pacincia e o apoio nas horas de aperto.

    Aos colegas do mestrado, em especial ao Srgio Luciano pela reviso e as ajudas

    providenciais com os conceitos e teorias.

    Maria Lcia Machado pela ajuda, apoio e sugestes preciosas.

    A todos os profissionais que responderam pacientemente ao questionrio pelas

    informaes gentilmente confiadas pesquisa.

    Ao meu pai, pela enorme ajuda com a digitao do texto, e minha me por me

    apoiar em todas as circunstncias em que precisei de apoio.

    Ao Erico, pela ajuda com os grficos e planilhas.

    E, por fim, mas mais importante, Claudinha e ao Nuno por estarem ao meu lado

    me incentivando a ir sempre em frente.

    Obrigado.

  • RESUMO

    TEIXEIRA, Glauco H. Interiores residenciais contemporneos: transformaes na

    atuao dos profissionais Belo Horizonte. 2011. 143 f. Dissertao (Mestrado) - Escola de

    Design, Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais,

    Belo Horizonte, 2011.

    Este trabalho busca identificar como as principais transformaes em curso dos ltimos dez

    anos- de 2001 a 2010- influenciaram os projetos de interiores em Belo Horizonte. O sculo

    XXI, depois de decorridos dez anos de seu incio, apresenta significativas transformaes que

    tiveram origem no sculo anterior, mas que somente agora comeam a sedimentar. Essas

    mudanas se deram no mbito da economia, agora globalizada; no social e as novas relaes

    entre as divises de trabalho, produo e consumo; no tecnolgico onde a informtica e a rede

    mundial de computadores criaram possibilidades de comunicao e troca de informaes

    inimaginveis; e principalmente, no espao urbano inchado pelo translado da populao rural

    para as cidades. Tudo isso se d com reflexos inevitveis no modo de vida dessa populao

    urbana, acarretando mudanas no comportamento e no cotidiano das pessoas. Posto este

    cenrio, buscou-se averiguar se essas transformaes causaram tambm mudanas no modo

    de morar e, consequentemente, na configurao dos espaos residenciais contemporneos, do

    ponto de vista do design de seus interiores. A partir do entendimento de que o design uma

    traduo do contexto social, cultural e econmico em que est inserido, estudaram-se aqui as

    transformaes ocorridas nesses mbitos como forma de melhor compreender as mudanas

    por que passa o design de interiores residenciais, suas mais novas demandas e as novas

    questes que trazem para a praxis projetual do profissional de interiores. A abordagem dessas

    questes se deu em duas etapas, onde inicialmete se buscou estudar as principais

    transformaes dos modos de vida ao longo do sculo XX e seus reflexos nos modos de

    morar do sculo XXI. Em seguida se levantaram os dados estatsticos referentes a essas

    transformaes nos modos de morar constantes nas estatsticas oficiais, complementados

    pelos dados obtidos atravs de questionrios aplicados a profissionais de design de interiores

    para que se possa, confrontando os dois conjuntos de informaes, determinar quais

    transformaes se refletem na atuao dos profissionais de design e na configurao dos

    espaos de moradia em Belo Horizonte no perodo estudado.

    Palavras-chave: Interiores residenciais contemporneos. Modos de morar. Moradia no sculo XXI.

  • ABSTRACT

    TEIXEIRA, Glauco H. Contemporary residential interiors: changes in the work of the

    professionals in Belo Horizonte. 2011. 143 f. Dissertao (Mestrado) - Escola de Design,

    Programa de Ps-Graduao em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo

    Horizonte, 2011.

    This work means to identify how the changes happened in the last ten years- from 2001 to

    2010- influenced the projects of interior design in Belo Horizonte. The twentieth-first century

    displays significant changes that begun back in the past century, but are only getting settled

    nowadays. Those changes happened in the fields of global economy; in the new social

    relations in work, production and consumption habits; in technological improvements such as

    the world wide web and informatics that enable new communication possibilities and

    information exchanges never imagined before; and mainly, in the urban spaces crowded by

    the great rural inhabitants migration. All these changes reflect unavoidably in the ways of

    living of the urban inhabitant, bringing on changes in their behavior and routine. The present

    work intends to investigate if those changes also changed the way people live inside their

    houses and, consequently, in contemporary interior residential spaces. Since we understand

    design as a consequence of social, cultural and economic circumstances, this works studies

    the changes happened in that circumstances as a way of understanding changes in the interior

    design, its new demands and the new project issues that emerge from them. The approach to

    these issues was made in two stages, first studying the main changes in the ways of living

    during the 20th

    century and its consequences in dwelling in the 21st century. Afterwards, the

    official statistics of the changes in the dwelling ways were researched and were completed

    with the data from the questionnaire submitted to the professional interior design, in order to

    appoint which of that changes are detected in the work of that professionals and in the design

    of the interior spaces of the houses in Belo Horizonte in the studied period.

    Key words: Contemporary interior design. Ways of living. Dwelling in the XXI century.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Interior burgus........................................................................................................................20

    Figura 2 - Interior moderno......................................................................................................................20

    Figura 3 - Mapa Crescente Frtil.............................................................................................................27

    Figura 4 Casa Medieval.........................................................................................................................28

    Figura 5 Fechadura de Joseph Bramah................................................................................................35

    Figura 6 Privada a vlvula com vedao hidrulica de Joseph Bramah...............................................35

    Figura 7 - Interior da exposio da casa modernista de Warchavchik.....................................................47

    Figura 8 - Planta de Comisso Construtora da Nova Capital 1895......................................................98

    Figura 9 - Casa tipo A ou B....................................................................................................................100

    Figura 10 - Mapa do municpio de Belo Horizonte com rea projetada original em destaque...............103

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Participao percentual no PIB por setores 2003-2007.........................................................67

    Tabela 2 Percentual pessoas ocupada por setor de atividades 2004/2009.........................................68

    Tabela 3 Renda familiar por classes.....................................................................................................74

    Tabela 4 Taxa de atividade das mulheres no Brasil e pases selecionados.........................................82

    Tabela 5 Taxa geral de separaes e divrcios...................................................................................83

    Tabela 6 Taxa de fecundidade 2009.....................................................................................................84

    Tabela 7 Esperana de vida ao nascer 2009........................................................................................85

    Tabela 8 Proporo de idosos no Brasil 1999/2009.............................................................................86

    Tabela 9 Distribuio dos tipos de arranjos familiares..........................................................................87

    Tabela 10 Percentual de tipos de arranjos familiares nos domiclios...................................................88

    Tabela 11 Nmero mdio de pessoas por domiclio.............................................................................91

    Tabela 12 Evoluo da populao de Belo Horizonte........................................................................102

    Tabela 13 Percentual de mudanas na forma de trabalhar................................................................110

    Tabela 14 Perfil dos clientes por faixa etria......................................................................................111

    Tabela 15 Percentual grupos domsticos...........................................................................................112

    Tabela 16 Percentual famlias por nmero de membros....................................................................113

    Tabela 17 Percentual dos tipos de imveis........................................................................................114

    Tabela 18 Percentual das principais alteraes nos espaos............................................................116

    Tabela 19 Percentual caractersticas dos mveis...............................................................................118

    Tabela 20 Percentual mdias e equipamentos....................................................................................120

    Tabela 21 Percentual de aes para sustentabilidade.......................................................................122

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ABD Associao Brasileira de Designers de Interiores

    ABEP Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    AMIDE Associao Mineira de Decoradores de Nvel Superior

    ANATEL Agncia Nacional de Telecomunicaes

    CAD Computer Aided Design

    CD Compact Disc

    DVD Digital Video Disc

    ED Escola de Design

    ESAP Escola Superior de Artes Plsticas

    ESDI Escola Superior de Desenho Industrial

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FUMA Fundao Mineira de Arte

    HDF High Density Fiberboard

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    LCD Liquid Cristal Display

    LED Light Emitting Diode

    LP Long Playing

    MASP Museu de Arte de So Paulo

    MDF Medium Density Fiberboard

    MIT Massachussets Institute of Technology

    NICs- Newly Industrializing Countries

    OPEP Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo

    PBH Prefeitura de Belo Horizonte

    PIB Produto Interno Bruto

    SENAC Servio Nacional do Comrcio

    UEMG Universidade do Estado de Minas Gerais

    UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

    UMA - Universidade Mineira de Arte

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

    USP Universidade de So Paulo

  • SUMRIO

    1 INTRODUO......................................................................................................................................11

    1.1 Objetivos..................................................................................................................................13

    1.2 Metodologia.............................................................................................................................14

    1.3 Estrutura dos captulos............................................................................................................17

    Captulo 2 - Referencial terico e contextual...........................................................................................18

    2.1 Pressupostos tericos e conceituais.......................................................................................18

    2.2 As primeiras transformaes: a era pr-industrial...................................................................26

    2.3 As transformaes da era industrial........................................................................................30

    Captulo 3 - As transformaes do sculo XX.........................................................................................40

    3.1 A primeira metade do sculo XX.............................................................................................41

    3.2 A segunda metade do sculo XX.............................................................................................48

    3.3 As transformaes sociais e culturais......................................................................................54

    3.4 A era ps-industrial..................................................................................................................65

    Captulo 4 - O Contexto do sculo XXI....................................................................................................70

    4.1 Os novos modos de produo.................................................................................................77

    4.2 O design no contexto do sculo XXI........................................................................................79

    4.3 As transformaes da famlia no sculo XXI...........................................................................81

    4.4 As transformaes nos espaos residenciais..........................................................................89

    4.5 Os espaos residenciais em Belo Horizonte...........................................................................97

    Captulo 5 - Anlise dos dados..............................................................................................................104

    5.1 O perfil do profissional...........................................................................................................106

    5.2 Atualizao na formao profissional....................................................................................108

    5.3 Mudanas na forma de trabalhar...........................................................................................109

    5.4 Perfil dos clientes- faixa etria e faixa de renda....................................................................110

    5.5 Perfil das famlias e grupos domsticos................................................................................112

    5.6 Perfil dos imveis residenciais...............................................................................................114

    5.7 Alteraes nos espaos.........................................................................................................115

    5.8 A flexibilizao nos projetos...................................................................................................116

  • 5.9 As mudanas nos mveis......................................................................................................117

    5.10 As novas mdias e equipamentos........................................................................................119

    5.11 Os novos materiais e tecnologias........................................................................................120

    5.12 As aes para a acessibilidade...........................................................................................121

    5.13 As aes para a sustentabilidade........................................................................................122

    6 CONCLUSES..................................................................................................................................124

    REFERNCIAS......................................................................................................................................129

    APNDICE A - Modelo do questionrio.................................................................................................136

  • 11

    1 INTRODUO

    A constatao de que o mundo contemporneo passa por uma srie de

    transformaes importantes no nova e, desde a dcada de 1960, vem sendo tema de anlise

    de diversos autores de campos variados do pensamento cientfico. Autores como Daniel Bell

    (1919- 2011), Darcy Ribeiro (1922- 1997), Domenico de Masi, Eric Hobsbawm, Felix

    Guattari (1930- 1992), Krishan Kumar, Zigmunt Bauman, Milton Santos (1926- 2001), Rafael

    Cardoso, Roberto DaMatta e muitos outros, procuram identificar e avaliar os reflexos dessas

    transformaes no planeta como um todo e no contexto brasileiro em particular. Kumar

    (1997, p. 9) inicia sua obra dizendo: Ao longo do ltimo quarto de sculo, temos ouvido

    persistentes afirmaes de que as sociedades do mundo ocidental ingressaram em uma nova

    era de sua histria; e finaliza concluindo: Vivemos, de fato, em um mundo saturado de

    informaes e comunicaes. A natureza do trabalho e a organizao industrial esto de fato

    mudando com uma rapidez alucinante (KUMAR, 1997, p. 210). Apesar dessas anlises se

    realizarem nas reas da sociologia, da antropologia e da histria, o campo de estudo do design

    de interiores tem grande interesse em detectar a medida desse fenmeno de forma a conseguir

    incorporar em sua prxis parmetros e requisitos cada vez mais em sintonia com a sociedade

    brasileira contempornea e seu carter multicultural e multitnico.

    Questes importantes se colocam nesse contexto complexo a todos os que se

    dedicam prtica e ao ensino do design. E para que sejam equacionadas de maneira menos

    equivocada, necessrio levar em conta toda essa complexidade nos campos social,

    econmico, ambiental e tecnolgico. Em todos esses campos, novas demandas para o

    exerccio do design esto surgindo a partir das transformaes que se iniciaram no final do

    sculo XX, e agora se mostram mais sedimentadas e ento podem ser compreendidas e

    analisadas no contexto adequado. So demandas de ordem social que dizem respeito

    incluso da diversidade de novos grupos, minorias tnicas, etrias, religiosas e outras; h

    tambm as demandas por acessibilidade para portadores de necessidades especiais, dos idosos

    e crianas no ambiente urbano e no interior dos edifcios. Essas reflexes tambm devem

    incluir a compreenso de como os diversos grupos dessa sociedade se comportam na sua

    interao com os espaos. No caso dos grupos domsticos investigamos, alm da tradicional

    famlia nuclear - pai, me e filhos-, que novos arranjos esto surgindo, em que proporo, e

    como seus espaos so configurados.

  • 12

    No mbito das transformaes econmicas no Brasil, assistimos a uma transio

    dos nossos modos de produo, em um curto espao de quatro dcadas, de uma sociedade

    primordialmente agrcola- nos anos 1960- para uma sociedade ps-industrial consolidada no

    final do sculo XX. O pas passou nesse intervalo por um processo de industrializao forada

    que, associado globalizao, apresenta desdobramentos de ordem tecnolgica e ambiental

    ainda em pleno andamento (MORAES, 2006, p. 102).

    A forma como somos afetados pelos efeitos decorrentes de tantas e to rpidas

    mudanas provocam a sensao de estarmos em descompasso com o nosso tempo, com a

    velocidade do mundo contemporneo e com a tecnologia. A atividade profissional de

    conceber, projetar e configurar espaos sempre foi muito influenciada pelas mudanas dos

    modos de vida, das tecnologias e dos contextos polticos e econmicos. Como veremos, os

    modos de morar so um reflexo da poca em que se vive. Quando se trata de ensino de projeto

    de interiores, as maiores dvidas sempre se relacionam compreenso do contexto e da

    complexidade decorrentes dessas transformaes.

    Identificar que tipos de espao residencial melhor caracterizam os modos de vida

    atuais e sempre foi de difcil resposta em qualquer contexto de anlise. As incertezas quanto

    ao papel das novas tecnologias e seus usos, as questes ambientais e sociais cada dia mais

    urgentes, os papis sociais cada vez mais indefinidos e a avalanche de informaes

    desconexas que nos bombardeiam dia a dia, tudo isso torna muito complicada a tarefa de

    pensar, propor e projetar espaos melhor identificados com o nosso contexto atual.

    Desenvolvemos, ao longo dos tempos, uma relao com o espao que transcende uma mera

    construo, organizao e utilizao, no raro assumindo uma dimenso simblica, afetiva e

    at espiritual.

    A pertinncia dessa pesquisa tem alicerces na relevncia que o espao construdo

    assume em todas as nossas atividades, das mais cotidianas e ntimas s pblicas ou formais.

    No mundo moderno, a experincia da vida humana se desenrola principalmente em espaos

    interiores, como Pile (2005) afirma:

    A maior parte do tempo, a maioria de ns vive dentro de uma casa, um apartamento

    ou um cmodo. Ns dormimos, comemos, tomamos banho e gastamos o tempo livre

    em casa- que significa dentro. [...] O design de interiores, seja profissional ou no,

    um aspecto da vida ao qual impossvel escapar. (PILE, 2005, p. 10, traduo

    nossa).

    E, por entendermos ser a residncia o espao das aes mais ntimas e mais

    essenciais nossa existncia, o design do interior residencial foi escolhido como objeto de

    estudo dessa pesquisa. Ficou claro quando iniciamos os trabalhos que era preciso estabelecer

  • 13

    um conjunto bsico de conceitos e definies que pudessem servir de base para se estabelecer

    um vocabulrio prprio da rea do design de interiores, uma vez que no h muitas

    referncias nem muitos autores que se dediquem sistematicamente a refletir sobre o tema. Em

    seguida, procuramos apontar as principais transformaes ocorridas ao longo da histria que

    influenciaram as moradias e seus interiores, com mais nfase naquelas transformaes cujos

    efeitos ainda se fazem sentir hoje em dia. Finalmente, pesquisamos junto aos profissionais de

    interiores quais so as mudanas na forma de trabalhar, nos espaos, nas famlias, tecnologias

    e mobilirio que mais tm influenciado os projetos dos interiores residenciais em Belo

    Horizonte nesses primeiros dez do sculo XXI. Como essas questes sempre estiveram

    presentes nas atividades profissionais e acadmicas dos designers de interiores, essa pesquisa

    se prope a respond-las ou, ao menos, indicar caminhos para se encontrar algumas respostas

    que sirvam para nortear o enfrentamento da prxis do projeto de interiores.

    Dada a natureza mutvel dos espaos internos e, principalmente sua durabilidade

    cada vez menor, percebemos que tentar definir que tipos de espaos esto predominando no

    sculo XXI tarefa fora das possibilidades dessa pesquisa. Entretanto acreditamos que a

    contribuio desse trabalho seja no sentido de iniciar uma discusso que se faz necessria h

    muito tempo e, quem sabe estimular outras pesquisas na rea dos interiores residenciais e dos

    modos de morar. Estamos convencidos de que [...] a existncia humana tem uma dimenso

    espacial que parte da prpria experincia do homem no mundo, pois todas as aes humanas

    ocorrem no espao. (MALARD, 2006, p. 25).

    1.1 Objetivos

    1.1.1 Objetivos gerais

    Pesquisar como os profissionais do design de interiores, na primeira dcada do

    sculo XXI, esto incorporando em seus projetos as transformaes provenientes das

    mudanas nos modos de vida, nas tecnologias e nos comportamentos. Estudar a relao entre

    as transformaes ocorridas no mbito social, econmico, tecnolgico, ambiental, e as novas

    formas de morar e de configurar o espao interno das moradias pelos profissionais de Belo

    Horizonte entre 2001 e 2011.

  • 14

    1.1.2 Objetivos especficos

    Identificar quais as principais transformaes no contexto social, econmico,

    tecnolgico e ambiental que tiveram implicaes nos modos de vida contemporneos.

    Mostrar quais as principais conseqncias dessas transformaes nos espaos

    interiores residenciais e nos modos de morar do sculo XXI.

    Investigar se novas formas de organizao do espao residencial esto surgindo

    no contexto dessas transformaes, e como atendem s necessidades dos novos grupos

    domsticos emergentes na ltima dcada.

    Verificar que inovaes tecnolgicas, que novos tipos de mobilirio, materiais,

    equipamentos e mdias vm sendo incorporados aos projetos de espaos residenciais.

    1.2 Metodologia

    Esta pesquisa foi organizada em duas partes: primeiro uma reviso bibliogrfica e

    em seguida a pesquisa de levantamento de dados sobre a atividade dos designers de interiores

    em Belo Horizonte, atravs da aplicao de questionrios. A pesquisa bibliogrfica visou

    determinar os conceitos, definies e termos ligados ao tema dos interiores residenciais,

    habitao, modos de morar e seus significados; tambm entraram na reviso bibliogrfica o

    levantamento das transformaes e mudanas nos fatores histricos, sociais, tecnolgicos,

    econmicos e polticos que mais afetaram as moradias e seus interiores ao longo do tempo,

    com mais nfase nos seus reflexos no sculo XX e XXI.

    O levantamento de dados junto aos profissionais de design de interiores-

    arquitetos e designers- foi executado atravs de questionrios aplicados com o objetivo de

    identificar o perfil desses profissionais, as mudanas na sua forma de trabalhar, as

    atualizaes profissionais efetuadas, o perfil dos seus clientes e de seus imveis, as

    modificaes nos imveis mais freqentes, as demandas por espaos flexveis, os tipos de

    mveis mais usados, os novos materiais e tecnologias, os equipamentos e mdias incorporados

    aos interiores e as demandas por acessibilidade e sustentabilidade nos projetos, tudo isso no

    intervalo dos dez primeiros anos do sculo XXI- entre 2001 e 2011.

    Foram entrevistados dezesseis profissionais formados em curso superior e

    atuantes no mercado de interiores e decorao de Belo Horizonte, de todos os nveis de

  • 15

    experincia profissional, dos mais experientes at aqueles com pouco tempo de formados. A

    validade desse nmero aparentemente pequeno deve-se convico de que, no universo dos

    profissionais em atividade, tem uma representatividade satisfatria para o objetivo dessa

    pesquisa, pois so registrados na AMIDE1 600 profissionais em todo o Estado; na ABD

    2 so

    19 associados no Estado, sendo 17 deles em Belo Horizonte. A seleo dos profissionais

    entrevistados se deu atravs de uma pequena lista inicial de trs profissionais que se

    dispuseram a ser entrevistados pessoalmente e cada um deles indicou outros colegas de

    profisso que julgavam dispostos a participar da pesquisa e responder os questionrios. Esses,

    por sua vez, tambm indicaram outros colegas, at que atingimos o nmero de vinte e um

    profissionais. Ento, vinte e um questionrios foram aplicados, dezoito enviados pela internet

    e aqueles trs iniciais foram novamente submetidos ao questionrio com a nossa presena.

    Desses, somente dezesseis foram respondidos a tempo de serem tabuladas suas respostas e

    includas suas informaes no texto final.

    O questionrio foi definido a partir da primeira entrevista onde propusemos a uma

    profissional uma srie de questes que pretendamos abordar. Essa, por sua vez, muito

    contribuiu sugerindo outras questes e o delineamento final das questes propostas

    inicialmente. A entrevista foi registrada em vdeo para posterior checagem e reviso do seu

    contedo, e dela nasceram as questes presentes no questionrio aplicado (ver apndice A).

    1.2.1 Caracterizao da pesquisa

    A pesquisa proposta aqui tem como caracterstica principal o seu recorte temporal:

    os dez anos entre 2001 e 2011, seu campo: design de interiores, e seu objeto: os espaos de

    morar em Belo Horizonte. Entende-se aqui que pesquisa [...] envolve um conjunto de aes

    que permitem chegar a concluses que respondam s questes colocadas no incio do

    processo (COELHO, 2008, p. 258). Assim optamos pelo seguinte conjunto de aes e

    procedimentos, segundo os quais caracterizamos a pesquisa da seguinte maneira: pela

    natureza, uma pesquisa aplicada, pois tem carter local; pela forma, uma pesquisa mista

    com caractersticas primordialmente qualitativas, mas com vis quantitativo; e pelos

    objetivos: uma pesquisa exploratria, se levamos em conta o pouco estudo anterior na rea

    1 Associao Mineira de Decoradores de Nvel Superior- informaes disponveis em: .

    Acesso em 21/09/2011. 2 Associao Brasileira de Designers de Interiores- informaes disponveis em . Acesso em

    21/09/2011.

  • 16

    especfica. De acordo com os procedimentos: uma pesquisa bibliogrfica, e de levantamento

    de dados (DIAS, 2010).

    1.2.2 Procedimentos metodolgicos

    Pesquisa, reviso bibliogrfica, fichamento, reproduo e anotaes dos ttulos,

    artigos e publicaes relacionadas aos temas: metodologia de pesquisa, conceitos de design,

    design enquanto atividade projetual, transformaes histricas, transformaes sociais e

    culturais, transformaes tecnolgicas e econmicas, cultura e sociedade ps-industrial,

    globalizao, sustentabilidade e design de interiores, cotidiano, modos de vida, modos de

    morar, famlias e grupos domsticos, conceitos de espao, evoluo dos espaos interiores,

    contextualizao e conceitos de espao.

    1.2.3 Levantamento de dados

    Pesquisas de dados estatsticos sobre demografia, grupos domsticos, domiclios,

    economia e urbanizao, a partir dos Censos, Pesquisas e estatsticas oficiais efetuadas pelo

    IBGE.

    Entrevistas e questionrios com designers e arquitetos profissionais atuantes em

    Belo Horizonte nos dez anos a partir de 2001, com objetivo de detectar as transformaes nos

    seus modos de trabalhar e nos modos de configurar os espaos residenciais no perodo. O

    questionrio foi estruturado conforme descrito anteriormente e contempla as questes mais

    importantes para que se determine as principais transformaes na formao e atualizao do

    profissional, no seu modo de trabalhar, no perfil dos seus clientes, no perfil dos imveis

    residenciais submetidos sua interveno, nos materiais empregados, nas tecnologias e

    mdias incorporadas aos projetos residenciais, no mobilirio e tambm no modo de abordar as

    importantes questes da sustentabilidade e da acessibilidade nesses projetos.

    Registro de dados: gravao das entrevistas e/ou filmagem. Anotaes.

    Fichamento. Tabulao de dados em planilhas eletrnicas e gerao de grficos a partir desses

    dados.

  • 17

    1.2.4 Anlise dos dados

    Anlise dos dados obtidos, estudo dos grficos e planilhas, reflexes e concluses,

    no contexto da anlise das transformaes que so objeto desse estudo e no mbito dos

    espaos residenciais projetados por profissionais.

    1.3 Estrutura dos captulos

    A dissertao se desenvolve em seis captulos. Sendo o primeiro a Introduo, o

    segundo o Referencial terico e contextual, o terceiro as Transformaes no sculo XX, o

    quarto o Contexto do sculo XXI, o quinto a Anlise dos dados da pesquisa e o sexto a

    Concluso.

    Na introduo, resumimos o que a pesquisa, qual so sua pertinncia, seus

    objetivos e a metodologia adotada.

    No captulo 2, estabelecemos os conceitos e definies mais importantes do campo

    do design de interiores e contextualizamos as principais transformaes ocorridas nos espaos

    domsticos desde o advento da agricultura at o final do sculo XIX.

    No captulo 3, nos dedicamos a contextualizar as principais transformaes

    ocorridas no sculo XX e suas influncias nas moradias.

    O captulo 4 trata do contexto do sculo XXI, indicando quais as transformaes

    ocorridas nos seus dez primeiros anos que influenciam os interiores residenciais.

    No captulo 5, fazemos a anlise dos dados obtidos no levantamento junto aos

    profissionais da rea de interiores e no contexto estabelecido nos captulos anteriores.

    Nas concluses, apresentamos como os objetivos foram alcanados e as reflexes

    que induziram s concluses.

  • 18

    Captulo 2

    REFERENCIAL TERICO E CONTEXTUAL

    Para compreender como os interiores das residncias esto sendo configurados na

    primeira dcada do sculo XX, preciso identificar as transformaes da tecnologia, da

    economia, dos modos de vida, dos modos de produo e do cotidiano que mais influenciaram

    na configurao dos espaos residenciais dos nossos dias. Sabemos que qualquer proposta de

    reflexo a respeito do desenho e da produo dos espaos domsticos contemporneos deve

    levar em considerao o contexto em que tais transformaes ocorreram no mbito da famlia

    e seus novos arranjos- os novos grupos domsticos- e suas relaes com os padres

    econmicos de produo e consumo, mas tambm com as inovaes tecnolgicas: novas

    mdias, materiais e equipamentos introduzidos no espao residencial.

    Antes de entrarmos na anlise das transformaes e seus contextos ao longo do

    tempo, optamos por estabelecer os fundamentos conceituais necessrios para servir como base

    para essa reflexo. Como forma de melhor organizarmos esse estudo, em primeiro lugar

    buscamos definir a natureza do objeto de pesquisa: os interiores das habitaes, como so

    produzidos no contexto da atividade profissional e suas peculiaridades prprias. Em segundo

    lugar, procuramos colocar os principais conceitos e definies mais estreitamente associadas

    atividade de produzir interiores e objetos e os seus significados dentro de suas relaes com o

    homem/usurio/habitante e com a sociedade na qual so gerados esses espaos.

    2.1 Pressupostos tericos e conceituais

    Para a contextualizao do objeto dessa pesquisa partimos do seguinte

    pressuposto: o design dos interiores dos edifcios tem uma natureza muito diversa do design

    de produtos e do design grfico, porque seu produto so espaos ou ambientes. Esses sem

    dvida apresentam uma diversidade muito maior de funes, formas, escalas, materiais e

    informaes do que aqueles gerados pelo design de produto e grfico. Apesar de os espaos

    inclurem produtos, objetos e elementos grficos em sua composio, sua natureza no

    definida exclusivamente por eles, mas pela interao de todos os elementos entre si, com a

    estrutura construda e, principalmente, com os usurios.

    importante ressaltar que a natureza do objeto produzido no design de interiores

    no criada somente pelo designer. Diferentemente do que ocorre no design de produto e no

  • 19

    grfico, o profissional de interiores trabalha sobre uma base anteriormente estabelecida pelo

    arquiteto, pelos engenheiros e construtores que a projetaram e executaram. Assim o trabalho

    do designer de interiores previamente delimitado por uma moldura configurada pela

    arquitetura, e a natureza do espao arquitetnico parte intrnseca da configurao dos

    espaos internos projetados pelo designer. Por isso que alguns dos conceitos e valores

    relativos arquitetura podem ser aplicados tambm aos seus interiores, na sua relao ntima

    com o edifcio. Pile (2005, p. 11, traduo nossa) chega mesmo a afirmar que [...] o design

    de interiores est inextrincavelmente ligado arquitetura e s pode ser estudado dentro de um

    contexto arquitetnico [...], pois os interiores so [...] parte integral das estruturas que os

    contm [...]. Entretanto, sabemos que s vezes essa integrao no se d de forma harmnica.

    No nosso entendimento, assim se d a relao entre o espao interno e a sua

    arquitetura: esta o envoltrio composto de paredes, tetos, aberturas, estrutura, alicerces, etc.

    que define e delimita o vazio interno que chamamos de interior onde efetivamente ocorrem as

    aes humanas. a arquitetura que estabelece, com todos os seus componentes, a fronteira

    entre o exterior e o interior, entre o lado de dentro, o privativo domnio do conhecido e da

    proteo, em oposio ao lado de fora, que pblico, domnio do desconhecido, da exposio

    e da ausncia de proteo. E, portanto a arquitetura estabelece a primeira conformao do seu

    interior.

    No campo do design, h que se distinguir o que objeto do que produto no

    contexto da cultura contempornea. Produto o artefato que homem fabrica. E, conforme

    ensina Maria Eugnia Dias de Oliveira (2004), o produto se torna objeto quando investido

    da funo-signo, ou seja, quando passa a ser considerado como algo que comunica a funo

    que exerce. Assim, o homem no s usurio do objeto, ele tambm se comunica atravs do

    objeto. Dessa forma, a sociedade atual passou de uma sociedade de produo, de fabricao

    de produtos, para uma sociedade que produz conceito, produz funes-signo. Roland Barthes

    (2001, p. 44) afirma que a partir do momento em que existe sociedade, todo uso torna-se

    signo daquele uso. O fato de existirem talheres em nossa sociedade indica o hbito de levar o

    alimento boca com eles. Neste caso temos um exemplo de funo-signo, j que o objeto

    funcional e ao mesmo tempo comunica a funo que desempenha. (OLIVEIRA, 2004).

    Em O Sistema dos Objetos, Baudrillard (1973) se prope analisar as relaes do

    homem com seus objetos do ponto de vista da semiologia3. Ele estabelece os conceitos de

    estruturas do arranjo e estruturas da ambincia, tendo como base o interior residencial

    3 Semiologia ou semitica (semeion= sinal) entendida como a teoria dos sinais, que pressupe que a cultura pode

    ser estudada como comunicao. (OLIVEIRA, 2004).

  • 20

    tradicional burgus e os interiores modernos para ilustrar seus argumentos. Temos que fazer

    aqui uma ressalva, uma vez que Baudrillard no v o interior moderno como produto do

    design e atividade criativa, nem se prope a discutir o papel do designer nesse contexto,

    conforme relata Deyan Sudjic (2010, p. 8). Entretanto ele mesmo reconhece que [...] desde

    as imprecises de O sistema dos objetos, de Jean Baudrillard, poucos crticos submeteram o

    design mesma anlise minuciosa (SUDJIC, 2010, p. 8).

    Segundo Baudrillard, o arranjo diz respeito configurao ordenada dos objetos-

    mobilirio- de forma a desempenhar uma funo- sala de jantar, quarto de dormir, etc.-, mas

    tambm de forma a comunicar a estrutura hierrquica do grupo familiar, seus valores e suas

    relaes pessoais. E a importncia desse conceito fica evidente quando ele afirma que [...] a

    configurao do mobilirio uma imagem fiel das estruturas familiais e sociais de uma

    poca (BAUDRILLARD, 1973, p. 21). Atravs da disposio dos mveis de uma casa

    podemos saber sobre os valores, os gostos e a formao da cultura dos seus moradores.

    Assim, os interiores modernos, mais flexveis e funcionais proporcionam uma grande

    diversidade de usos no mesmo ambiente, e so a expresso da famlia e do homem modernos;

    enquanto os interiores burgueses do sculo XIX refletiam os modos rgidos e hierarquizados

    do homem daquela poca, quando cada funo ocorria em um espao destinado

    especificamente a ela.

    Figura 1: Interior burgus Figura 2: Interior moderno Fonte: http://www.englishheritageprints.com Acesso: 21/09/2011 Fonte: < http://www.guiasaude.org> Acesso: 21/09/2011

    No sem razo que Le Corbusier, um dos cones da arquitetura moderna

    considerava deplorvel o [...] hbito burgus de colecionar mveis- ele ridicularizava suas

    casas como sendo labirintos de mveis (RYBCZYNKI, 2002, p. 196). Nessa mesma obra,

    Rybczynski (2002) investiga as origens da idia de casa e do conceito de conforto, desde a

  • 21

    Idade Mdia at o sculo XX. Ele mostra que a ideia de casa e o conceito de conforto tiveram

    significados diferentes em pocas diferentes, e que os arranjos dos interiores sempre

    refletiram essas diferenas. Tambm os arranjos dos interiores medievais, renascentistas,

    barrocos, rococs, dentre outros, cada um sua maneira, podem ser entendidos como uma

    expresso da sociedade e da cultura na qual foram gerados. Desta forma, organizar e criar

    arranjos para os objetos to importante dentro de uma cultura quanto criar os objetos.

    O arranjo produz a ambincia. E a estrutura da ambincia definida como o uso da

    cor, dos materiais, das formas e do gestual combinados na constituio dos espaos. Segundo

    Baudrillard (1973, p. 37), o arranjo como tratamento do espao torna-se de resto tambm ele

    elemento de ambincia. A estrutura do arranjo mostra a estrutura hierrquica, os valores e as

    relaes de poder no seu contexto. A estrutura da ambincia, por sua vez, [...] revela os

    aspectos do chamado estilo de vida [...], conforme a leitura que Malard (2006, p. 40) faz

    desse conceito de Baudrillard. Enquanto estilo de vida, Baudrillard percebeu que a ambincia

    dos interiores atuais virou objeto de consumo sujeito s variaes ditadas pela moda, como a

    autora mostra nesse exemplo:

    [...] nos ltimos cincoenta anos, o conceito de ambiente agradvel tem sido progressivamente ligado noo do que est em moda. No Brasil, por exemplo, essa

    moda tem sido ditada pelas novelas de televiso. Percebe-se pouca diferena entre

    os ambientes mostrados nas novelas e os showrooms das lojas de mveis. Isso quer dizer que, hoje em dia, a noo de um ambiente agradvel est ligada ao que est em moda para os ambientes interiores. (MALARD, 2006, p. 42)

    O conceito de consumo definido por Baudrillard no se limita concepo do

    consumo como uma conseqncia da nossa civilizao industrial ou ps-industrial, ou seja,

    ele no se presta somente satisfao das necessidades. Na sua viso, o consumo [...] um

    modo de atividade sistemtica e de resposta global no qual se funda todo nosso sistema

    cultural. [...] uma atividade de manipulao sistemtica de signos (BAUDRILLARD, 1973,

    p. 206). E para ele um signo um elemento qualquer que recebe arbitrariamente um

    significado determinado por conveno. Nesse conceito, os objetos perdem a sua coerncia

    enquanto smbolos e tradicionais mediadores de situaes vividas para adquirir sentido

    somente em relao a outros objetos-signos e em relao a quem os consome. Parece,

    portanto, que [...] o que consumido nunca so os objetos e sim a prpria relao (idem,

    ibidem p. 207), ou seja: hoje consumimos o significado que os objetos tm para ns e para os

    outros e no o objeto em si. Chegamos ento ao ponto em que o autor critica a nossa relao

    com o consumo ao afirmar que [...] os objetos no existem absolutamente com a finalidade

    de serem possudos e usados, mas sim unicamente com a de serem produzidos e comprados.

  • 22

    (idem, ibidem, p. 172). Assim tambm se d com os interiores atuais mostrados na televiso,

    nas revistas e nas mostras de decorao: na maioria das vezes no so feitos para serem

    usados, mas para serem mostrados.

    Retomando a idia de que o espao arquitetnico estabelece a delimitao entre o

    interior e o exterior, o sagrado e o profano, abrigo e desabrigo, Malard ([2003b?], p. 4) define

    a ambincia de um espao como [...] o conjunto de qualidades que fazem de um lugar um

    domnio sagrado, e acrescenta que a ambincia se forma no processo de apropriao do

    espao, [...] um processo sem fim de construir, arranjar, arrumar, modificar, cuidar e

    embelezar os lugares. E nesse processo o homem se apropria dos espaos humanizando-os,

    modificando-os para dot-los de sua prpria natureza. (Idem, ibidem, p.4).

    Assim, humanizar um espao aqui entendido como o processo de apropriao em

    que o espao passa a se adequar ao uso humano. Por outro lado, apropriao quer dizer

    interao recproca usurio/espao, onde o usurio atua no sentido de moldar os lugares

    segundo suas necessidades e desejos. Os lugares, em contrapartida, tornam-se receptivos

    (MALARD, [2003b?], p. 4). Pode-se afirmar ento, a partir desses conceitos, que [...] as

    pessoas e os grupos encontram sua identidade nos lugares em que vivem em razo dessa

    influncia mtua entre usurio/espao (ibidem, P. 4), e esse processo se d por intermdio da

    ambincia do espao. Como a ambincia depende dos valores estabelecidos pela cultura, ela

    no depende de classe social ou econmica, j que se estabelece no mbito do desejo e

    aparece no cotidiano das interaes usurio/espao. (Ibidem, p. 5).

    Mas, Malard ([2003b?], p. 4) tambm identifica na ambincia aspectos de outra

    ordem, diferentes dos aspectos subjetivos- a combinao de formas, materiais, cores e texturas

    para compor o ambiente- os aspectos objetivos da ambincia so descritos como as

    sensaes corpreas que se experimentam num lugar (idem, ibidem, p. 4), aqueles

    determinados pelas condies de iluminao, trmicas, acsticas e das dimenses do lugar. A

    diferena entre os dois aspectos reside no fato de que [...] os subjetivos so relacionados

    cultura, enquanto os objetivos so inerentes condio humana (idem, ibidem, p. 4).

    Entretanto, ambos afetam o comportamento dos usurios do espao. Portanto, as sensaes

    fsicas- aspectos objetivos de uma ambincia- devem estar em conformidade com os

    parmetros e necessidades biolgicas dos seus usurios para que os aspectos subjetivos

    possam estabelecer as relaes afetivas que permitem a identificao das pessoas com seus

    espaos. Um exemplo disso quando uma pessoa est sentindo muito frio ou muito calor em

    um ambiente. Essa pessoa no se sentir vontade nem confortvel e, mesmo que o espao

    seja muito atraente, a interao espao/usurio no vai se estabelecer a ponto de possibilitar a

  • 23

    apropriao daquele espao pelo o usurio. (Idem, ibidem, p. 4). Se o aspecto do conforto

    trmico objetivo, ele pode ser mesurado, como diz Rybczynski (2002, p. 231), possvel se

    medir em que temperaturas as pessoas sentem calor ou frio, para se determinar entre esses

    extremos uma rea de conforto trmica para maioria das pessoas. Mas, o conforto tambm

    uma experincia pessoal de satisfao e portanto subjetivo nesse aspecto.

    O ser humano, nas suas interaes com o espao construdo, no tem no envoltrio

    arquitetnico o lugar das suas aes, nesse contexto ele primordialmente objeto de

    percepo visual e simblica. na sua interao com o interior do edifcio que se estabelecem

    a maioria das relaes entre o sujeito e o espao. Ento o espao interno funciona como uma

    interface4 que faz a mediao entre o usurio, a arquitetura e todos os seus sistemas,

    instalaes e conexes, atravs das quais ele se relaciona com a habitao e nela desenvolve

    suas aes. no interior que o homem mora, habita.

    Precisamos aqui definir em que se constituem a experincia de morar e o objeto

    onde essa experincia se d, ou seja, a casa. Podemos discernir que casa e lar so conceitos

    diferentes, com origens distintas e que descrevem fenmenos bem diferentes. Entretanto,

    casa, na nossa lngua, tanto pode ser o objeto que podemos comprar ou vender, como pode

    indicar o lugar onde moramos- o lar. Muitos se referem ao lar como nossa casa ou l em

    casa. Casa e lar se confundem na lngua portuguesa. Em ingls, as palavras home e house se

    referem a lar e casa, e distinguem duas entidades muito diferentes. Todavia, o objeto casa

    pode ser o lugar de uma experincia existencial, transformando-se a partir de ento na nossa

    morada, no nosso lar. Bachelard (1978) descreve atravs de diversas imagens poticas o

    significado que a casa tem para o homem, comparando ocupar uma casa e todos os seus

    cantos com o ato de tomar conscincia de ns mesmos, no nosso ntimo. Para Bachelard:

    A casa nosso canto no mundo. [...] a casa abriga o devaneio, a casa protege o

    sonhador, as casa nos permite sonhar em paz. [...] Sem ela o homem seria um ser

    disperso. Ela mantm o homem atravs das tempestades do cu e das tempestades da

    vida. Ela corpo e alma. o primeiro mundo do ser humano. [...] em nossos

    devaneios, a casa um grande bero. (BACHELARD, 1978, p. 200 e 201)

    Por fim, descrevemos o conceito de habitabilidade, associado ao significado de

    morar. Morar tomado como sinnimo de habitar significa no somente estar sob um abrigo,

    mas principalmente [...] estar enraizado num lugar seguro e pertencer quele lugar

    (MALARD, [2003?], p. 12). Pode-se perceber que nem todo edifcio que abriga (escritrio,

    4 A interface [...] indica a possibilidade de adaptao, de interconexo, de comunicao (grifo do autor) entre

    dois ou mais sistemas, equipamentos, unidades, etc. que, de alguma forma apresentam diferenas [...] (COELHO, 2008, p. 208).

  • 24

    fbrica, hotel) constitui uma moradia nesse sentido relatado acima, pois o abrigar se refere a

    algo de carter temporrio, enquanto que morar de carter definitivo. V-se que ambos tm

    diferentes significados nesse contexto. Quando nos hospedamos, de passagem, em um hotel,

    ns no moramos nele, mas o habitamos durante nossa estada. Portanto, casa ou hotel, [...]

    ambos so habitaes, pois servem como abrigos do homem na sua lida com o mundo. [...]

    no importando quais sejam as suas finalidades funcionais (ibidem, p. 12). Assim, a

    habitabilidade pode ser definida como o conjunto de caractersticas e qualidades que as

    edificaes devem possuir para permitir que o morador experimente o morar de forma plena.

    A forma como Michel de Certeau aborda o conceito de morar, dentro de suas

    reflexes sobre o cotidiano, privilegia a idia de espaos privados como a casa da gente, o

    espao domstico, [...] o territrio onde se desdobram e se repetem dia a dia os gestos

    elementares das artes de fazer (DE CERTEAU; GIARD & MAYOL, 2003, p. 203). Ele

    afirma que temos a necessidade de proteger o espao privado de olhares indiscretos, uma vez

    que a moradia revela a personalidade do seu ocupante e [...] confessa sem disfarce o nvel de

    renda e as ambies sociais (Idem, ibidem, p. 204). Essa abordagem mostra uma

    proximidade com os conceitos desenvolvidos por Malard em relao ao tema, mas acrescenta

    outros aspectos da moradia como um [...] lugar protegido, onde a presso do corpo social

    sobre o corpo individual descartada, onde o plural dos estmulos filtrado [...] (Idem,

    ibidem, p. 205). A nossa intolerncia com o barulho dos vizinhos, por exemplo, vem do

    sentimento de invaso desse filtro protetor que experimentamos nas grandes cidades

    contemporneas.

    Outros aspectos do morar em De Certeau, Giard e Mayol (2003) podem ser

    identificados com os conceitos de DaMatta (1986) quando naquela obra se afirma que [...]

    nesse espao privado, via de regra, quase no se trabalha, a no ser o indispensvel: cuidar da

    nutrio, do entretenimento e convivialidade [...] (DE CERTEAU, GIARD E MAYOL,

    2003, p. 205). Mas, a virada do sculo XX para o XXI vem mostrar que o trabalho em casa,

    que predominava antes da revoluo industrial inventar a fbrica como lugar primordial do

    trabalho, pode voltar a ser incorporado ao programa das atividades e finalidades das casas

    atuais, tornando-se mais uma das qualidades necessrias nova habitabilidade

    contempornea.

    Diversos autores vo elaborar o conceito de casa a partir dessa oposio entre

    interior/exterior, ordem/caos, dentro/fora. O antroplogo Roberto DaMatta parte da dualidade

    casa/rua, vida privada/vida pblica, tranqilidade/movimento para estabelecer o conceito de

    casa no Brasil do ponto de vista das cincias sociais. Ele distingue casa de lar, sendo o lar o

  • 25

    lugar da identidade do grupo que ocupa a casa. A definio dessa identidade muitas vezes se

    d [...] mesmo quando so residncias baratas ou casas de vila, construdas de modo idntico,

    algo marca e revela sua identidade: [...] um pedao de azulejo estrategicamente colocado

    prximo a uma janela, [...] flores e jardins; a cor de suas janelas e portas (DAMATTA, 1986,

    p. 26). Nos anos 1980, DaMatta percebeu uma forte distino entre a casa como local das

    relaes familiares, caseiras, tradicionais e ntimas, em oposio ao trabalho como atividade

    que se dava fora da casa. O brasileiro no considerava o trabalho domstico como trabalho,

    em casa no se trabalhava. No sculo XXI, novas definies esto surgindo no mundo das

    relaes casa-rua, que parecem estabelecer novas relaes entre casa e trabalho, tpicas da

    sociedade ps-industrial, j que no h mais um lugar especfico (fbrica) para o trabalho e as

    modalidades de trabalho em casa mediado pelo computador, fax, internet e outras mdias

    despontam como opes viveis e at desejveis no mbito do sistema produtivo atual.

    Pode-se supor que os interiores residenciais esto a caminho de transformaes

    que possibilitem sua apropriao para outros usos diferentes dos que prevaleciam no sculo

    XX. A importncia da questo da moradia e suas possveis configuraes no sculo XXI

    merecem uma maior reflexo e compreenso dos fenmenos em curso e suas conseqncias

    para a casa como lugar do homem contemporneo, de seus sonhos, seus comportamentos e

    aes. Entendemos que o espao parte essencial dessas aes e no somente o palco onde

    elas ocorrem, pois o homem um ser espacial, suas aes se do no espao que ele habita. O

    espao habitado transcende o espao geomtrico, de acordo com Bachelard (1978, p. 227), e

    na relao do homem com o espao que esse estabelece seus verdadeiros limites e sua

    verdadeira essncia: a natureza do espao vivido. Seu significado se encontra nas experincias

    que esse espao proporciona, no na sua geometria ou na sua arquitetura.

    Vimos que lidar com o espao de morar lidar ao mesmo tempo com formas,

    dimenses, cores, texturas, materiais, arranjos, ambincias, percepes e emoes. Mesmo se

    tratando dos interiores domsticos mais simples, estaremos sempre no territrio de

    significados complexos, de requisitos essenciais existncia humana, de expectativas e

    desejos, mesmo que impulsionados pela mdia e o consumo. Consideramos que nos dias

    atuais a relao da nossa sociedade com a produo e o consumo, inclusive de espaos, passa

    por importantes transformaes. Sos essas transformaes que vamos analisar em seguida,

    suas origens e suas principais conseqncias para os espaos interiores.

  • 26

    2.2 As primeiras transformaes: a era pr-industrial

    Quando o ser humano deixou de ser nmade e passou a se fixar em determinados

    locais, por volta de 10.000 antes de Cristo, o desenvolvimento da agricultura fez com que

    aqueles grupos no precisassem mais se deslocar atrs de alimentos. De fato, a domesticao

    de plantas e animais foi uma mudana que pode ter demorado milnios, mas significou uma

    transformao crucial, pois possibilitou o aparecimento das primeiras comunidades agrcolas,

    aldeias e vilas que originaram as primeiras cidades. certo que [...] a civilizao, como a

    conhecemos hoje, origina-se das comunidades agrcolas (WILLIAMS, 2009, p. 33).

    Essa primeira evoluo tcnica importante marca o incio de uma nova sociedade e

    de uma nova era: a era agrcola ou pr-industrial. Foi uma longa era, de quase seis mil anos,

    caracterizada principalmente pelas atividades de caa, pastoreio, pelo trabalho agrcola e, no

    seu final pela grande transformao mercantil. Bell (1999), ao descrever a era pr-industrial,

    mostra o contraste de sua grande durao com a era industrial relativamente pequena que se

    seguiu, destacando as limitadas condies de vida da poca:

    Nos primeiros cinqenta e cinco dos ltimos cinqenta e sete sculos, a maior parte

    da populao mundial vivia em geral de economias de subsistncia baseadas em

    indstrias extrativistas- agropecuria, minerao, pesca e extrao de madeira. E

    nesse grande perodo, o aumento da populao estava sujeito a surtos de doenas,

    exausto dos solos e esgotamento dos recursos naturais. (BELL, 1999, p. xi,

    traduo nossa).

    Entre as descobertas e inovaes do incio da era pr-industrial, o uso seguro e

    controlado do fogo, as primeiras tcnicas de construo de estruturas mais durveis e as

    primeiras formas de escambo e trocas de bens e artefatos foram fundamentais para a evoluo

    das moradias. Em seguida, a inveno da linguagem e da escrita, a inveno do calendrio

    para as colheitas, entre outros, definiram os modos de vida da humanidade dali em diante.

    Surgem as primeiras cidades conhecidas- Jeric, Damasco, Tebas, Beirute, Jerusalm- todas

    localizadas na regio conhecida como Crescente Frtil5, onde, ao que tudo indica, a

    agricultura surgiu. (PILE, 2005, p. 18; WILLIAMS, 2009, p. 34).

    5 Uma rea que cobre cerca de 3000 km desde o vale do rio Jordo, ao norte do Mar Morto, at o Golfo Prsico-

    ao longo dos vales dos rios Eufrates e Tigre. Ali o solo, o clima e a mdia de precipitao pluviomtrica, eram

    apropriados para o cultivo. (WILLIAMS, 2009, p. 34). Ver figura 1, p. 18.

  • 27

    Figura 3 - Mapa Crescente Frtil Fonte: Acesso em 21/09/2011

    Depois das primeiras cidades, surgiram os grandes imprios antigos, os estados e

    as naes; os transportes se expandiram com os veculos a roda e os navios de madeira;

    moinhos de gua ou de vento foram construdos e aumentaram a produo de alimentos.

    Gutemberg aperfeioou a impresso por tipos mveis, dando incio imprensa moderna e

    difuso de idias por todo o mundo alfabetizado. Surgiram as primeiras universidades.

    Enormes progressos se deram em quase todas as reas do conhecimento humano, inclusive a

    expanso do mundo ento conhecido com o descobrimento do novo continente.

    Em se tratando dos interiores residenciais e das atividades domsticas da era pr-

    industrial, tantas evolues se deram no decorrer de perodo to longo, que seria difcil

    enumer-las todas. Algumas foram to importantes que permaneceram at hoje incorporadas

    nos modos como organizamos nossas casas. Alguns exemplos so os mveis como mesas e

    cadeiras, poltronas e sofs, armrios e camas; tapetes e papis de parede; velas e lampies a

    leo; lareiras, braseiros, foges e fornos, quase sempre usando madeira ou carvo como

    combustvel; utenslios de cermica e porcelana; bacias e panelas de ferro, ao e cobre. Mas

    quase tudo isso era luxo existente s nas moradias da minoria mais rica, enquanto que para a

    maioria das pessoas, a casa no passava de uma edificao simples de um s cmodo

    construdo com o material disponvel nas proximidades- madeira, pedra e tijolos de barro seco

    ao sol. (WILLIAMS, 2009, passim).

    Uma grande mudana seu deu no tamanho e na formao das famlias desde a

    Idade Mdia, quando o grupo familiar era composto de empregados, criados, aprendizes,

  • 28

    amigos e afilhados, alm da famlia direta. Tal grupo chegava com freqncia a vinte e cinco

    pessoas que dividiam no mximo dois compartimentos e no conheciam a privacidade. A casa

    medieval era um lugar pblico. O trabalho e os negcios se misturavam s atividades

    domsticas (RYBCZYNSKI, 2002, p. 41). Somente no sculo XVII, na Holanda, que essa

    situao comea a mudar devido s condies econmicas e sociais peculiares do pas, que

    possibilitaram o surgimento de uma classe mdia predominante e urbana. A famlia holandesa

    normalmente j no contava com tantos integrantes, e na maioria das casas morava somente o

    casal com seus filhos.

    A moradia deixa de ser pblica e se transforma na casa de famlia particular,

    passando a ser mais ntima. Essa mudana tem repercusso no s no espao fsico, mas

    tambm na formao da nossa conscincia da casa como lugar dos sentimentos de

    domesticidade, sossego e privacidade. (Idem, ibidem, p. 61 e 85). Essa trajetria tambm

    confirmada por Tramontano (1993), que diz haver no sculo XVI uma noo de cl ainda

    forte, que aos poucos vai sendo substitudo pelo grupo familiar mais restrito [...] que

    resultar, s portas do sculo XX, na aceitao da famlia nuclear como o modelo de famlia

    moderna (TRAMONTANO, 1993, p. 7). Este modelo predominou at o final do sculo XX,

    e que tem na casa sua referncia de intimidade e privacidade, mas outros arranjos domsticos

    vo surgir no limiar do sculo XXI.

    Figura 4: Casa Medieval: moradia e trabalho Fonte: Acesso: 21/09/2011

  • 29

    Roger Chartier (2009) v esse processo que definiu uma nova forma privada de

    viver como uma evoluo no linear e no regular ocorrida entre os sculos XVI e XVIII. Ele

    identifica trs premissas bsicas para que essa privatizao se estabelecesse: [...] a busca de

    um individualismo de costumes, separando o indivduo do coletivo; [...] a multiplicao dos

    grupos de convivialidade [...]; por fim, a reduo da esfera do privado clula familiar

    (CHARTIER, 2009, p. 398). Nesse contexto a famlia passou a ser o objeto quase exclusivo

    dos investimentos afetivos e da intimidade. Mesmo no sendo linear e apresentando uma

    grande complexidade, conflitos e contradies, essa trajetria acabou levando, no sculo XIX,

    a um antagonismo entre o espao do trabalho e o espao domstico, dissociando de forma

    permanente as condutas profissionais e pblicas dos comportamentos familiares. (Idem,

    ibidem, p. 399). A casa, como abrigo dessa nova existncia privada, passa a ser a

    concretizao espacial da conquista da soberania e da intimidade da famlia, assim Chartier

    (2009) demonstra essa relao da casa com o novo modo de vida do homem moderno do

    sculo XVI em diante:

    Assim a famlia se torna a sede por excelncia do privado. Por um lado, identifica-

    se com um espao prprio, distinto: o da habitao domstica. Para a maioria das

    sociedades antigas, esta consiste numa casa que abriga os recm-casados, depois as

    crianas resultantes da unio; todavia, mesmo onde persiste a coabitao de vrios

    casais de uma s famlia, cada um possui um espao protegido que esconde sua

    intimidade. Mesmo na cidade, na promiscuidade obrigatria dos imveis urbanos, o

    quarto, o cmodo mobiliado ou o sto constituem frgeis refgios para o indivduo

    sozinho, o casal ou a famlia estrita. (CHARTIER, 2009, p. 401)

    No sculo XVII, inicia-se a Modernidade e, segundo Kumar (1997, p. 87), seus

    marcos mais evidentes so a plvora, a imprensa e a bssola, mas tambm as obras de

    Montaigne, Francis Bacon e Descartes com o seu Discurso do Mtodo de 1637. Apesar de

    tantas importantes transformaes sociais, culturais e tcnicas, as casas do homem comum ou

    da pequena burguesia pouco mudaram depois da transio da casa medieval pblica para a

    casa de famlia particular. O trabalho deixa de ser feito em casa, e a economia progride com a

    expanso comercial martima liderada pela Inglaterra que atinge todo o globo. Entretanto as

    principais fontes de fora e energia da era pr-industrial ainda eram a trao humana ou

    animal, a fora do vento e das guas. (WILLIAMS, 2009, passim). Essas limitadas fontes de

    energia eram o grande gargalo da produo de bens e do crescimento econmico. At que

    outra transformao nos modos de produo viesse revolucionar outra vez a forma como as

    pessoas viviam, produziam e se organizavam em sociedade.

  • 30

    2.3 As transformaes da era industrial

    A prxima transformao importante s foi ocorrer com o advento da

    industrializao, por volta do final do sculo XVIII. o processo que Cardoso (2004) chama

    de primeira Revoluo Industrial e assim a define: [...] uma srie de transformaes nos

    meios de fabricao, to profundas e to decisivas que costuma ser conceituado como o

    acontecimento econmico mais importante desde o desenvolvimento da agricultura

    (CARDOSO, 2004, p. 18). Alguns autores, como Eric Hobsbawn (1996) e Nicolau Sevcenko

    (1998) estabelecem seu incio por volta de 1780. Domenico De Masi (2000, p 12), delimita a

    ocorrncia da fase que ele chama de sociedade industrial nos dois sculos entre meados do

    sculo XVIII e a meados do XX, quando ento sucedida pela era denominada ps-industrial.

    Hobsbawm (1996) d o nome de dupla revoluo- dual revolution- ao perodo

    que vai de 1789 a 1848, quando eclodiram a Revoluo Francesa e a primeira revoluo

    industrial, na Inglaterra. Esses dois eventos transformaram as sociedades nas quais se

    originaram, e a partir delas, propagaram suas mudanas para todo o resto do mundo. Ele

    considera que os fatos ocorridos nesse perodo ainda repercutem nos dias de hoje no mundo

    todo e define assim sua importncia:

    [...] constitui a maior transformao da histria humana desde os tempos remotos em

    que o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado.

    Esta revoluo transformou e continua a transformar o mundo inteiro.

    (HOBSBAWM, 1996, p. 1, traduo nossa).

    Conforme o autor, em determinado momento da dcada de 1780, a humanidade

    superou os limites impostos produo de bens e servios pela sua estrutura social agrria,

    sua cincia e sua tecnologia deficientes. Essa primeira fase industrial, baseada na nova fonte

    de energia da mquina a vapor desenvolvida por James Watt em 1784, levou criao de um

    sistema de fabricao mecanizado que produz em grandes quantidades e a um custo cada vez

    mais baixo a ponto de no mais depender da demanda existente, mas de criar seu prprio

    mercado (HOBSBAWM, 1996, p. 32). A mecanizao do sistema de produo o fator que

    melhor define a industrializao e, [...] atravs de uma srie de inovaes tecnolgicas entre

    o final do sculo XVIII e o incio do XIX foi permitindo o aumento constante da

    produtividade (CARDOSO, 2004, p. 19). Desse modo, com custos cada vez menores, os

    produtos se tornavam acessveis a uma grande parcela da populao que antes da mecanizao

  • 31

    no teriam como adquiri-los. um marco fundamental da sociedade industrial: pela primeira

    vez a produo passa a gerar demanda em vez de apenas atender quela pr-existente.

    A criao de novas demandas para uma enorme variedade de produtos um dos

    sustentculos da sociedade de consumo do sculo XX como foi definida anteriormente por

    Baudrillard. Entretanto, Rafael Cardoso (2004, p. 19) diz que no sculo XVIII em alguns

    pases da Europa j existia [...] seno uma sociedade de consumo, pelo menos uma classe

    consumidora numerosa, que detinha um forte poder de compra e j comeava a exigir bens de

    consumo mais sofisticados. Alguns fabricantes, para incrementar a qualidade de seus

    produtos, contratam artistas ou desenhistas para conceber o projeto do objeto e assim surgem

    os primeiros designers, quando se d a separao entre a execuo e o projeto dentro da

    produo na fbrica, ainda no sculo XVIII. (CARDOSO, op. cit., p. 21-23)

    No perodo inicial da industrializao, apesar de todo o esforo de mecanizao,

    diviso de tarefas e estandardizao, as mudanas que deram melhor resultado foram

    mudanas derivadas da forma de se organizar o trabalho, a produo e a distribuio e no a

    utilizao de novas mquinas. Isso quer dizer que foram mudanas mais sociais que

    tecnolgicas. As idias de Adam Smith e Frederick W. Taylor de diviso de tarefas e

    gerenciamento cientfico dos mtodos de trabalho tiveram impacto positivo na produo. Mas,

    Rafael Cardoso afirma que o maior impacto foi causado pela transformao simultnea nos

    meios de transporte e de comunicao que se seguiu [...] introduo das estradas de ferro,

    da navegao a vapor, do telgrafo, da fotografia e de outras inovaes [...] alterou

    inteiramente as perspectivas para a distribuio de mercadorias e de informaes [...]

    (CARDOSO, op. cit., p. 35). At hoje sentimos as consequncias dessas transformaes

    atravs do processo de globalizao que vem se instalando no mundo.

    At a dcada de 1830 a indstria do algodo foi a maior responsvel pelo

    formidvel crescimento econmico da Gr-Bretanha, onde gerou a construo de parques

    industriais, mquinas, inovaes qumicas, mecanizao industrial, uma frota mercante, entre

    outras atividades. Entretanto, esse progresso produziu tambm grandes problemas. Os mais

    graves foram os problemas sociais com o surgimento da misria e o descontentamento, que

    eclodiu na forma de revoltas dos trabalhadores das indstrias e dos contingentes de pobres das

    cidades. Mas a indstria algodoeira britnica chega a um limite e se v estagnada por volta de

    1830, com seus ndices de rentabilidade em declnio, queda de preos e das margens de lucro

    (HOBSBAWM, 1996, passim). Ento, na segunda metade do sculo XIX, inicia-se a segunda

    fase do desenvolvimento industrial: o surgimento de uma indstria bsica de bens de capital.

  • 32

    A segunda etapa de revoluo industrial baseada na produo de ferro, ao e de

    carvo mineral. O carvo foi a principal fonte de energia industrial do sculo XIX e tambm

    um combustvel domstico essencial num pas que tinha poucas florestas para extrao de

    madeira. Foi o crescimento de cidades como Londres que provocou um grande incremento na

    minerao do carvo, em cuja extrao se fez uso, pela primeira vez das recentes mquinas a

    vapor para bombeamento de gua e para rebocar vages no transporte dos minerais para fora

    das minas. (WILLIAMS, 2009, p. 157; HOBSBAWN, 1996, p. 44). A inveno bsica que

    iria transformar as indstrias de bens de capital e se tornaria o smbolo da segunda fase da

    industrializao na Inglaterra era a ferrovia movida a carvo e vapor.

    Segundo Williams (op. cit., p. 148), a primeira estrada de ferro- de Stockton a

    Darlington- ligava uma mina de carvo ao litoral e foi inaugurada em 1825, na Inglaterra. Mas

    a Estrada de Ferro Liverpool-Manchester foi a primeira ferrovia pblica inteiramente movida

    a vapor, inaugurada em 1830. Ambas se provaram investimentos viveis e lucrativos e

    desencadearam uma verdadeira [...] mania de ferrovia, quando em meados do sculo XIX

    foram investidos 250 milhes de libras, 250 mil empregos foram criados, e rede britnica

    chegou a 16 mil quilmetros (WILLIAMS, op. cit., p. 149). O fato de ser o nico meio de

    transporte de longa distncia rpido e barato explica seu enorme sucesso em no s no Reino

    Unido, mas em todo o mundo. A ferrovia foi a inovao da revoluo industrial que mais

    mexeu com a imaginao das pessoas, Hobsbawm (1996, p. 45, traduo nossa) diz que ela

    foi [...] o nico produto da industrializao do sculo XIX totalmente incorporado ao

    vocabulrio imagtico da poesia erudita e popular. Em pleno sculo XIX nada se comparava

    velocidade e fora de uma locomotiva- que podia chegar a 96 quilmetros por hora- e isso

    explica a atrao exercida sobre as pessoas que viam no seu poder o smbolo de uma nova era

    de triunfo do homem pela tecnologia (HOBSBAWM, loc. cit.). Nessa era em que as

    distncias se encurtaram e a velocidade da vida nunca mais voltou a ser como antes,

    percebemos tambm o incio de uma transformao nos comportamentos, no cotidiano da

    vida domstica e nas conscincias. Isso pode ser exemplificado nas palavras de um grande

    projetista de ferrovias do sculo XIX, Henry Booth: O que era devagar agora rpido; o que

    era longe agora perto, e essa mudana em nossos conceitos impregna a sociedade como um

    todo (WILLIAMS, op. cit., p. 149).

    Pode-se compreender a evoluo da moradia atravs do estudo da evoluo

    tcnica, social e cultural e, principalmente dos modos de vida das sociedades ocidentais, como

    fazem Rybczynski (2002) e Tramontano (1993), uma vez que [...] s transformaes da

  • 33

    sociedade correspondem- ao que parece- transformaes nos espaos de morar, para melhor

    ou para pior, planejadas ou no (TRAMONTANO, 1993, p. 1). Os novos modos de vida

    demandados pela indstria transformam radicalmente o cotidiano dos seus trabalhadores, a

    maioria formada por camponeses ou pequenos artesos que no tinham as habilidades e

    qualificaes necessrias, nem estavam habituados ao ritmo regular de trabalho dirio e

    ininterrupto. Portanto todo operrio tinha que aprender a trabalhar da maneira adequada

    indstria, e s podemos imaginar hoje o impacto que essa mudana deve ter causado na vida,

    na famlia, na sade fsica e na mentalidade de um enorme contingente de pessoas e, mais

    importante ainda, o impacto nas cidades e na sociedade como um todo (HOBSBAWM, 1996,

    p. 50). Por tudo isso que se aplica o nome de revoluo a esse evento que explodiu- para

    usar um termo de Hobsbawm- no mundo no final do sculo XVIII.

    Entre as principais consequncias da revoluo industrial, Hobsbawm (op.cit., p.

    169) cita o crescimento da populao, que impulsionou a economia e a o mesmo tempo foi

    impulsionada por ela, pois criando mais empregos, produziu tambm mais consumidores.

    Essa exploso demogrfica deu incio no sculo XIX ao fluxo constante e irreversvel de

    migrao do campo para as cidades industrializadas, inchando-as. Outra importante mudana

    decorrente da j mencionada revoluo dos transportes e das comunicaes, que

    possibilitaram unir campo e cidade, regies pobres e ricas, a ponto de amenizar os problemas

    de escassez de alimentos em pocas de quebra de safras e reduzir a fome e a mortalidade.

    Todavia, a consequncia mais impressionante dessas transformaes para a

    histria do mundo foi [...] estabelecer o domnio do globo por uns poucos regimes

    ocidentais- especialmente pelos britnicos- que no tem paralelo na histria (HOBSBAWM,

    op. cit., p. 3, traduo nossa). Esse domnio ocorreu devido necessidade das indstrias

    britnicas de exportar os excedentes de sua produo, principalmente da indstria de tecidos

    de algodo. Os mercados representados pelas colnias ultramarinas incrementaram muito

    essas exportaes, quando as guerras napolenicas e os bloqueios econmicos interromperam

    o comrcio da Inglaterra com os pases europeus. sia, frica e Amrica eram grandes

    importadores, estabelecendo-se um monoplio da indstria britnica em relao aos pases

    menos desenvolvidos dessas regies. Entre os maiores importadores de produtos ingleses se

    destacavam a ndia e a Amrica Latina, principalmente depois de sua separao de Portugal e

    Espanha, quando se tornou quase totalmente dependente economicamente da Gr-Bretanha

    (HOBSBAWM, op. cit., passim). A diviso entre pases adiantados e subdesenvolvidos tem

    origem nessa poca e, como diz o autor, [...] nenhum outro fato determinou a histria do

    sculo XX de maneira mais forte (Idem, ibidem, p. 181, traduo nossa). Foi assim que

  • 34

    nasceu a separao do globo entre o primeiro, o segundo e o terceiro mundo que predominou

    at o final do sculo XX.

    A etapa industrial foi de seminal importncia para o design como o entendemos

    hoje, pois essa atividade surgiu como uma profisso a partir das possibilidades abertas pelos

    avanos e pelas transformaes geradas pela industrializao dos modos de produo. A

    profisso do designer de interiores- tambm chamado de decorador- surgiu no fim do sculo

    XVIII, quando a arquitetura era considerada antes uma arte que um negcio e no haviam

    ainda escolas de arquitetura na Inglaterra. Os arquitetos estavam mais empenhados em

    resolver bem a aparncia dos edifcios do que seu bom funcionamento, e tambm davam mais

    ateno ao seu exterior que ao interior. O arranjo do interior ficava geralmente a cargo do

    dono da casa, que na maioria das vezes ficava sem saber o que fazer diante da quantidade e

    variedade de objetos colocados disposio no mercado pelas indstrias. A ajuda era

    fornecida pelo estofador, que era um comerciante de tecidos e coberturas de estofamentos,

    mas passou a incluir em seus servios toda a decorao interna, sendo promovido ento a um

    fornecedor de orientao especializada necessria ao dono da casa. Rybczynski (2002, p. 135)

    assim descreve o surgimento da profisso, e acrescenta num tom de crtica:

    Quando os arquitetos perceberam que haviam perdido o controle da arrumao da

    casa, j era muito tarde. Os estofadores, ou os decoradores de interiores, como foram

    chamados mais tarde, comearam a dominar o conforto domstico cada vez mais.

    (RYBCZYNSKI, 2002, p. 136)

    No final do sculo XVIII, especialmente na Inglaterra, os interiores [...]

    comearam a ser vistos como um local para se realizar atividades humanas; no eram mais

    simplesmente um espao bonito, mas estavam se tornando um lugar (RYBCZYNSKI, 2002,

    p. 128). Isso quer dizer que estavam comeando a se humanizar, conforme o conceito de

    Malard [ver captulo 2]. Ou seja, a noo de conforto da poca passou a incluir a utilidade

    junto ao bem-estar fsico e ao encanto visual, atributos da ambincia. Mas antes do incio da

    revoluo industrial, poucas coisas haviam mudado nos interiores das residncias, de acordo

    com Rybczynski (2002). No havia ainda pias, nem gua encanada, usava-se uma tigela para

    a gua; no havia banheiros nem saneamento, usava-se o urinol; no havia aquecimento, mas

    lareiras ou fornos de porcelana; e iluminao desde a Idade Mdia era luz de velas. Dessa

    forma, a casa do sculo XVIII ainda no tinha incorporado nenhuma inovao tecnolgica

    importante. (Idem, ibidem p. 134).

  • 35

    Entretanto, no final daquele sculo, com os avanos industriais, a tecnologia

    domstica comeou a se desenvolver lentamente. Surge a primeira privada a vlvula com

    vedao hidrulica, em 1778; a fechadura prova de arrombamento, do mesmo inventor da

    privada, Joseph Bramah; o lampio Argand a leo, de 1783, melhora a qualidade da

    iluminao; as lareiras passam por aperfeioamentos para reduzir a fumaa e irradiar mais

    calor, em 1795; a iluminao a gs foi adotada tanto nos interiores quanto na de rua, na

    dcada de 1800; sistemas para ventilao e renovao do ar; e at fornos e foges a gs so

    desse perodo. Dentre essas mudanas, destaca-se a grande melhoria trazida pela iluminao a

    gs, pois os interiores mais claros possibilitavam a leitura noite, o que resultou num

    aumento nos nveis de instruo, alm um aumento da limpeza domstica e pessoal

    (RYBCZYNSKI, op. cit., p. 132-150). A tecnologia comeou ento a invadir o espao

    domstico e nunca mais parou.

    Figuras 5 e 6: Fechadura e privada a vlvula com vedao hidrulica inventadas por Joseph Bramah por volta de 1778 Fonte: Acesso: 21/09/2011

    Paralelamente a essas melhorias nos interiores, as tcnicas de construo tambm

    passam por inovaes, mesmo que de forma lenta e pouco abrangente. Diversos edifcios

    comuns como casas, lojas e pequenos prdios ainda so construdos com os mesmos

    princpios, mesmos materiais e processos ao longo dos ltimos trs sculos ou mais. Ao

    longo da histria, a indstria da construo tem sido, em geral, muito conservadora e a

    construo do sculo XX mostrou no ser exceo (WILLIAMS, 2009, p. 239).

    Mesmo assim a revoluo industrial trouxe importantes avanos em novos

    materiais e novas tcnicas. O ferro fundido comea a ser usado primeiramente em pontes e

  • 36

    ferrovias, por volta de 1780, e logo passa a ser adotado como estrutura para edifcios

    industriais- fbricas e armazns- e estabelecimentos comerciais, associado a alvenarias nas

    vedaes de pisos e paredes. Embora o ferro no seja combustvel, ele perde sua resistncia

    mecnica quando aquecido a altas temperaturas, podendo entrar em colapso no caso de um

    incndio. A alternativa que veio solucionar esse problema foi o aperfeioamento da produo

    do ao laminado, que substituiu por completo o ferro fundido nas estruturas dos edifcios. A

    mais famosa construo do mundo em ferro a torre Eiffel, de 1889, com seus trezentos

    metros, e foi tambm provavelmente a ltima construo importante com esse material.

    A partir de 1890 o ao passou a ser uma alternativa disponvel e foi amplamente

    usado desde ento. (WILLIAMS, op. cit., p. 240). A primeira utilizao da estrutura de ao

    em edificaes residenciais se deu em Chicago, nos Estados Unidos. A cidade foi destruda

    por um grande incndio em 1871 e na sua reconstruo surge a oportunidade de se empregar

    essa nova tcnica construtiva para construir edifcios de muitos pavimentos, pois a demanda

    crescente por habitaes resultou na necessidade de se aproveitar ao mximo os terrenos

    melhor localizados e mais valorizados. Depois da inveno do elevador, em 1854, a altura dos

    edifcios em estrutura de ao aumentou cada vez mais. (TRAMONTANO, 1993, p. 34).

    Outro material essencial para a indstria da construo civil surgido no sculo XIX

    no bojo das inovaes da revoluo industrial o concreto armado. Os romanos da

    antiguidade j conheciam e faziam uso de um tipo de concreto conhecido como pozolana, que

    era obtido por uma mistura de cal e cinza vulcnica. O cimento, que semelhante pozolana

    dos romanos, foi inventado na Inglaterra em 1824 e passou a ser muito empregado por

    construtores e engenheiros devido ao seu baixo custo e facilidade de uso e manuseio, e

    quando misturado a areia e cascalho pode ser moldado em formas de diversos formatos. O

    concreto armado surge de uma tentativa de melhorar sua resistncia flexo, quando so

    embutidas hastes de ferro no concreto. Esse sistema foi patenteado por Joseph Monier, na

    Frana em 1867 (WILLIAMS, op. cit., p. 242). Desde ento o concreto armado foi

    amplamente empregado na construo de casas, prdios de muitos pavimentos, pontes,

    represas, silos. Segundo Marcelo Tramontano (1993, p. 35), a primeira edificao residencial

    em concreto armado data de 1903, na Frana, da autoria de Auguste Perret, e consistia num

    edifcio de apartamentos de sete andares em Paris. Sua estrutura independente das paredes

    permitiu que o uso de divisrias leves e mveis para as vedaes deixasse a planta das

    unidades completamente independentes umas das outras. Esse recurso ainda viria a ser uma

    das premissas da arquitetura modernista do sculo XX.

  • 37

    Como resultado das transformaes sociais da Revoluo Francesa e das

    mudanas econmicas da revoluo industrial, a burguesia se estabelece como classe

    predominante. Mesmo no sendo uma classe homognea, todos adotam um mesmo sistema de

    valores e prticas sociais similares. Tramontano (1993, p. 10) afirma que a habitao burguesa

    como uma grande vitrine do seu xito social, pois o lugar da famlia e seus valores. A casa

    burguesa toma forma no sculo XIX e estabelece um padro que, de certa forma, usado at

    hoje no sculo XXI. A principal caracterstica dessa conformao a [...] tripartio

    burguesa da habitao: espaos sociais, ou representativos; espaos de servio, ou de rejeio

    e espaos ntimos (TRAMONTANO, op. cit., p. 12). Os valores burgueses ficam claramente

    expostos na forma como suas casas so divididas, com seus cmodos de mais prestgio- salas

    e s vezes quartos- voltados para a fachada principal; os banheiros e cozinhas pequenos, mal

    iluminados e ventilados e os quartos que devem ter sua privacidade resguardada a todo custo.

    A cozinha da casa burguesa aos poucos vai sendo equipada com utenslios e

    equipamentos com acabamento esmaltado, suas paredes passam a ser lisas e sem reentrncias,

    cobertas com ladrilhos ou pintura brilhante impermevel,