gestÃo da prova no processo penal: uma crÍtica À … · ou oportuno ao processo, a pretexto de...

22
4395 GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL: UMA CRÍTICA À LEI N.º 11.690/2008, A PARTIR DO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO MANAGEMENT OF PROOF IN THE CRIMINAL PROCEEDING: A CRITICAL TO THE LAW N.º 11.690/2008, FROM THE CONSTITUTIONAL PROCESS MODEL Felipe Daniel Amorim Machado RESUMO O presente trabalho apresenta uma discussão acerca da gestão da prova no processo penal, a partir da promulgação da Lei n.º 11.690/2008, tomando como marco teórico a teoria procedimentalista de Jürgen Habermas, na busca de uma interpretação do Código de Processo Penal (CPP) conforme o modelo constitucional de processo, como proposto por Andolina e Vignera. Para tanto, apresenta-se os sistemas de gestão da prova, inquisitório e acusatório, enfatizando a adequação do CPP ao princípio inquisitivo, muito embora se diga adotar o sistema acusatório. Em seguida, demonstra-se as teorias do processo, com vistas à compreensão do instituto “processo” como procedimento realizado em contraditório, que garante a implementação de direitos fundamentais. Na construção do modelo constitucional de processo, demonstra-se a co-dependência entre os princípios do contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação das decisões, concluindo que esta base principiológica está presente na CR/1988 devendo ser observada por qualquer processo, seja ele jurisdicional, administrativo, legislativo ou arbitral. Tal modelo pode incorporar outros princípios, formando microsistemas conforme o provimento pretendido ou o direito fundamental a ser tutelado, sendo que estes microsistemas devem sempre respeitar os princípios componentes da base. De posse desse aporte teórico, critica-se a Lei n.º 11.690/2008, especialmente seus artigos: a) 155, concluindo que tal disposição despreza o princípio da presunção de inocência; b) 156, demonstrando sua incompatibilidade com o sistema acusatório, eis que permite ao juiz buscar provas no processo, o que afronta o princípio do terceiro imparcial; e c) 157, apresentando as razões de sua inconstitucionalidade, em razão do legislador ordinário criar exceções a disposição constitucional, restringindo garantias do cidadão. PALAVRAS-CHAVES: PROCESSO PENAL – ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – REFORMA DO CPP – MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO – GESTÃO DA PROVA ABSTRACT Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

Upload: duongcong

Post on 14-Dec-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

4395

GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL: UMA CRÍTICA À LEI N.º 11.690/2008, A PARTIR DO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO

MANAGEMENT OF PROOF IN THE CRIMINAL PROCEEDING: A CRITICAL TO THE LAW N.º 11.690/2008, FROM THE CONSTITUTIONAL

PROCESS MODEL

Felipe Daniel Amorim Machado

RESUMO

O presente trabalho apresenta uma discussão acerca da gestão da prova no processo penal, a partir da promulgação da Lei n.º 11.690/2008, tomando como marco teórico a teoria procedimentalista de Jürgen Habermas, na busca de uma interpretação do Código de Processo Penal (CPP) conforme o modelo constitucional de processo, como proposto por Andolina e Vignera. Para tanto, apresenta-se os sistemas de gestão da prova, inquisitório e acusatório, enfatizando a adequação do CPP ao princípio inquisitivo, muito embora se diga adotar o sistema acusatório. Em seguida, demonstra-se as teorias do processo, com vistas à compreensão do instituto “processo” como procedimento realizado em contraditório, que garante a implementação de direitos fundamentais. Na construção do modelo constitucional de processo, demonstra-se a co-dependência entre os princípios do contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação das decisões, concluindo que esta base principiológica está presente na CR/1988 devendo ser observada por qualquer processo, seja ele jurisdicional, administrativo, legislativo ou arbitral. Tal modelo pode incorporar outros princípios, formando microsistemas conforme o provimento pretendido ou o direito fundamental a ser tutelado, sendo que estes microsistemas devem sempre respeitar os princípios componentes da base. De posse desse aporte teórico, critica-se a Lei n.º 11.690/2008, especialmente seus artigos: a) 155, concluindo que tal disposição despreza o princípio da presunção de inocência; b) 156, demonstrando sua incompatibilidade com o sistema acusatório, eis que permite ao juiz buscar provas no processo, o que afronta o princípio do terceiro imparcial; e c) 157, apresentando as razões de sua inconstitucionalidade, em razão do legislador ordinário criar exceções a disposição constitucional, restringindo garantias do cidadão.

PALAVRAS-CHAVES: PROCESSO PENAL – ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – REFORMA DO CPP – MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO – GESTÃO DA PROVA

ABSTRACT

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

4396

The present article presents a discussion about the management of proof in the criminal proceeding, from the promulgation of the Law n.º 11.690/2008, taking as theoretical landmark the proceduralist theory of Jürgen Habermas, in the search of an interpretation of the Code of Criminal Proceeding (CPP) as to the constitutional process model, as proposed by Andolina and Vignera. For in such a way, presents the systems of management of proof, inquisitorial and accusatory, emphasizing the adequacy of the CPP as to the principle inquisitive, much though it says that adopt the accusatory system. After that, demonstrates the theories of the process, to have, in the end, the understanding of the institute of the process as a procedure made in contradictory that provides the implementation of fundamental rights. In the construction of the constitutional process model, is demonstrated the co-dependence between the principles of the contradictory, broad defense, impartiality and recital of the decisions, concluding that this base of principles is present in the CR/1988 and must be observed in any process, be it jurisdictional, administrative, legislative or arbitrational. Such model can incorporate other principles, forming microsystems because of the intended decision or the fundamental right to be trusted, being that these microsystems must always respect the principles components of the base. Aimed by these theoretical background, criticizes the Law n.º 11.690/2008, especially its articles: a) 155, concluding that such disposal despises the principle of the innocence presumption; b) 156, demonstrating its incompatibility with the accusatory system, because it allows the judge to search proofs in the process, what confronts the principle of the impartiality; and c) 157, presenting the reasons of its unconstitutionality, because the legislator ordinary creates exceptions to the constitutional disposal, restricting citizen’s guarantees.

KEYWORDS: CRIMINAL PROCEEDING – STATE OF LAW – REFORM OF CPP – CONSTITUTIONAL PROCESS MODEL – MANAGEMENT OF PROOF

I – INTRODUÇÃO

Passados 20 anos, desde a promulgação da Constituição da República de 1988 algumas promessas próprias do Estado Democrático de Direito ainda se apresentam como um permanente desafio. Desafio este que exige, no campo do Direito Processual, tanto penal quanto civil, uma (re)interpretação dos códigos à luz das disposições constitucionais.

O Código de Processo Penal (CPP), Decreto-Lei n.º 3.689/1941, que há muito é denunciado em terrae brasilis como inadequado frente o atual paradigma constitucional, vem, a exemplo do Código de Processo Civil, sofrendo reformas parciais que deturpam a coesão de seu texto, gerando várias contradições sistêmicas e lacunas internas. Assim como ocorreu no CPC[1], as reformas do CPP pautaram-se exclusivamente no interesse de se garantir celeridade e eficiência ao direito processual, a fim de se possibilitar o acesso a uma ordem jurídica justa (DINAMARCO, 1998), além de, por seu viés político, acalentar o anseio punitivo que assola a sociedade contemporânea.

4397

A elaboração do CPP brasileiro, influenciada pelo Codice di procedura penale de 1930, conhecido como Codice Rocco[2], nome do Ministro da Justiça italiano à época, revelou uma legislação autoritária e não democrática. Embora hoje se diga acusatório, o CPP, em verdade, adota o sistema inquisitório “em que o arbítrio, pela voz dos predestinados – leia-se juiz – a governarem e conduzirem os povos, era o único comando de revelação de justiça e ratificação das intenções divinas” (LEAL, 2008, p. 198-199).

Com a promulgação da Lei n.º 11.690/08, esperou-se uma renovação democrática na gestão da prova no processo penal, entretanto o que se viu foi a (re)afirmação da índole onisciente e do suposto “poder” do juiz a quem caberia dizer o que é ou não pertinente ou oportuno ao processo, a pretexto de se garantir sua efetividade. Isso se verifica na nova redação do art. 156 do CPP, que outorga poderes instrutórios ao juiz, permitindo-lhe colher provas no processo penal antes mesmo de iniciada a ação penal. Assim, novamente o julgador atua no como inquisidor, podendo investigar para, ao final, julgar.

Sob o pano de fundo da reflexão sobre caráter inquisitório do CPP, se discutirá a (in)alteração da atuação do juiz no processo penal, realizada pela Lei n.º 11.690/08, tendo como marco teórico a teoria procedimentalista de Habermas (2003b), a fim de se alcançar uma compreensão do processo penal conforme ao modelo constitucional de processo (ANDOLINA; VIGNERA, 1997).

II – SISTEMAS DE GESTÃO DA PROVA E O CPP

Os sistemas de gestão da prova, após as revoluções iluministas, evoluíram de um sistema inquisitório para um modelo acusatório. Este possui origens gregas e foi aplicado também no direito romano, “instalado com fundamento na acusação oficial, embora se permitisse, excepcionalmente, a iniciativa da vítima, de parentes próximos e até de qualquer do povo” (MIRABETE, 2006, p. 21-22). Já aquele – inquisitório – tem raízes na Roma Antiga, entretanto apresentou-se, na forma como conhecemos hoje, por volta do ano de 1.231, em que se elaborou a Constitutio Excomuniamus pelo Papa Gregório IX, consolidando-se na Bula Ad Extirpanda, de Inocêncio IV, em 1.252. Com esta base jurídica o controle do processo penal passa a ser realizado pelos clérigos, assim excluindo a necessidade de um órgão acusador, visto que ao inquisidor caberia o encargo de acusar e julgar (COUTINHO, 2001, p. 18-23).

A característica fundamental do sistema inquisitório repousa no fato de o juiz ser o gestor da prova (COUTINHO, 2002). Na Idade Média, isso se dava de forma secreta, sendo que o acusado figurava como “objeto” e “meio” de prova, não sabendo o teor da acusação, além de não participar da colheita das provas que seriam utilizadas em seu desfavor.

A característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que a “vantagem (aparente) de uma tal estrutura

4398

residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os factos penalmente relevante, mesmo que não contidos na “acusação” -, dado o seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases. (COUTINHO, 2002, p. 24)

Atualmente, percebe-se na doutrina tradicional que o entendimento do sistema vigente no Brasil é o acusatório (CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2005, p. 60), em decorrência da interpretação do art. 129 da CR/1988, entretanto tal sistema é mitigado, eivando-se de características próprias do princípio inquisitivo, sendo assim chamado de sistema misto[3] (TOURINHO FILHO, 2003, p. 93).

O sistema acusatório caracteriza-se por estar acusador e acusado em simétrica paridade. Em tal sistema o juiz não figura como gestor da prova, característica própria do sistema inquisitório[4], cabendo-lhe a tarefa de “garantir as regras do jogo” (COUTINHO, 2008a, p. 12), devendo as partes apresentar suas provas, desde que obtidas licitamente. Nesse sistema o acusado atua como verdadeiro sujeito de direitos, estando em plena igualdade frente ao órgão acusatório. Aqui, no processo penal acusatório, o acusado desfruta de garantias processuais que legitimam o provimento produzido, na medida em que garante que os argumentos deduzidos pelas partes serão levados em consideração na construção da respectiva decisão (HABERMAS, 2003a).

Costuma-se dizer que a diferença entre sistema inquisitório e acusatório é a de que no primeiro haveria a concentração das funções de acusar e julgar na figura do juiz, ao passo que no segundo ocorreria a divisão de tais tarefas entre órgãos diferentes. Tal perspectiva é extremamente simplista e reduz “a complexa fenomenologia do processo penal” (LOPES JUNIOR, 2008, p. 10). Esta crítica se deve ao fato de que não adianta a separação de funções de acusar e julgar no processo se, em seu desenvolvimento, abre-se a possibilidade do magistrado buscar provas para embasar sua decisão, a fim de realizar a justiça no caso concreto (DINAMARCO, 1998), como se fosse um “justiceiro” autorizado.

Aqui é possível perceber que a principal diferença entre os modelos é aferida pela análise da atuação do juiz no processo, especificamente pela gestão da prova por este realizada. Nesse sentido, pertinente as palavras de Aury Lopes Junior, concordando com o que já era há muito alertado por Coutinho (2001; 2002; 2008a), ao afirmar que

considerávamos que a separação entre as funções de acusar e julgar era a pedra angular da distinção acusatório-inquisitório. Atualmente, pensamos de forma diferente. Na esteira do pensamento de Jacinto Nelson Miranda Coutinho e Franco Cordero, hoje entendemos que é a gestão da prova o princípio unificador que irá identificar se o sistema é inquisitório ou acusatório. Se a gestão da prova está nas mãos do juiz, como ocorre no nosso sistema, estamos diante de um sistema inquisitório (juiz ator). Contudo, quando a gestão de prova está confiada às partes, está presente o núcleo fundante de um sistema acusatório (juiz expectador). (LOPES JUNIOR, 2005, p. 71, nota de rodapé n.° 8)

4399

Nas palavras do próprio Coutinho, baseado nas lições de Kant:

Para lembrar, vale a noção de sistema processual, imprescindível, mas muito descurada. E ela, como se sabe, decorrente da posição de Kant [...], a qual só pode ser bem compreendida através do conceito de principio unificador, pensando como motivo conceitual sobre o (s) qual (is) funda-se a teoria geral do processo penal, podendo estar positivado (na lei) ou não. Como ontológico (ou unificador), principio e um mito, ou seja, a palavra edita no lugar daquilo que, se existir, não pode ser dito, dado não se ter linguagem para tanto, tudo no sentido da idéia única de Kant. Por tal via se ver que a diferenciação dos sistemas processuais entre acusatório e inquisitório far-se-á, antes de tudo, de tal principio, determinado, aqui, pelo critério referente a gestão da prova [...]. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras – mas principalmente – o acertamento de um caso penal após a reconstituição de um fato pretérito, o critério, o crime, mormente através da instrução probatória, e a gestão da prova e a forma pela qual ela e realizada que identifica o principio unificador. (COUTINHO, 2008a, p. 11)

Percebe-se que para se chegar à conclusão sobre a adoção de um sistema inquisitório ou acusatório, deve-se atentar a um princípio unificador, qual seja, o princípio da gestão da prova. Este é verificado na análise de que: aquele que julga é o mesmo que participa do processo como gestor dos elementos que fundamentarão, a posteriori, o provimento (COUTINHO, 2008b). Ao contrário do que muitos pensam a existência de partes no processo penal, acusação e defesa, não o torna um sistema acusatório, podendo citar, como, por exemplo, o Code Louis XIV – Ordonannce criminelle de 1670 (BIZZOTTO; JOBIM; EBERHARDT; 2006, p. 18).

As demais características dos sistemas, inquisitório e acusatório, apesar de não preponderantes, não devem ser desprezadas, mas sim analisadas num segundo plano. Assim, os procedimentos escritos e secretos, o não-contraditório, a prova tarifada ou sistema da prova legal, a busca da malsinada “verdade real”, bem como a função do juiz de investigar, acusar, defender e julgar são todos elementos que compõe o sistema de cunho inquisitivo. Já em se tratando do sistema que atende ao princípio dispositivo, suas características podem ser resumidas na igualdade das partes, juiz que deve ser provocado, procedimento público e oral, feito em contraditório e persuasão racional do juiz.

O Código de Processo Penal brasileiro, tanto em sua redação original quanto após a publicação da Lei n.º 11.690/08, continua elegendo o juiz como o único gestor da prova. O magistrado, conforme se vê na nova redação do art. 156 do CPP, além de atuar ativamente na busca de provas, o que atenua o ônus probatório do Ministério Público, eis que em caso de ausência de provas já há uma alternativa jurídica que é a absolvição (art. 386, VII do CPP, com redação dada pela Lei n.º 11.690/2008), atua, em determinados momentos, como um verdadeiro órgão acusatório. Isso se comprova, por exemplo, na possibilidade de o juiz decretar de ofício: a prisão preventiva (art. 311); a oitiva de testemunhas não arroladas pelas partes (art. 209); buscas e apreensões (art.

4400

242); bem como o fato dele – juiz – estar autorizado a condenar o acusado mesmo que o Ministério Público requeira a sua absolvição. Tal papel do juiz, segundo Coutinho, pode fazer com que seja

possível, nesse sistema, que o juiz, por ser o gestor da prova, tenha a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a “sua” versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro. (COUTINHO, 2002, p. 32)

Desse modo, o CPP, mesmo após a reforma, que sob o argumento de dar maior celeridade ao processo, a fim de diminuir-lhe os custos garantindo-lhe, portanto, eficiência, acaba por afrontar as disposições da CR/1988, eis que mitiga as garantias ínsitas ao Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, pertinente a crítica de Dias ao advertir que

A exigência normativa de se obter a decisão jurisdicional em tempo útil ou prazo razoável, o que significa adequação temporal da jurisdição, mediante processo sem dilações indevidas, não permite impingir o Estado ao povo a aceleração dos procedimentos pela diminuição das garantias processuais constitucionais. [...] A restrição de quaisquer das garantias processuais, sob a canhestra e antidemocrática justificativa de agilizar ou tornar célere o procedimento, com o objetivo de proferir decisão jurisdicional em tempo razoável, é estimular o árbitro, fomentar a insegurança jurídica e escarnecer da garantia fundamental do povo ao devido processo legal, em suma, deslavada agressão ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito. (DIAS, 2004, p.117).

Assim, conclui-se com Coutinho que deve-se optar

sem meias palavras, por um processo penal de defesa social, típico dos regimes autoritários, ou por um processo penal constitucionalizado, garantidor dos direitos do acusado, limitador da violência do Estado; e este último, como é evidente, é incompatível com anseios de “celeridade” no sentido de se condenar mais rápido ou se “acalmar a sociedade”, exatamente porque seu escopo é garantir que só se puna por meio de um processo legal devido, com a observação do contraditório e dos direitos da defesa. E para tanto, não cabe a pressa. (COUTINHO, 2008b – grifos nossos)

Portanto, o legislador, a fim de agregar maior celeridade ao processo penal com reformas parciais, especialmente com a elaboração da Lei n.º 11.690/08, afronta as

4401

garantias constitucionais do cidadão, eis que concede ao julgador “poderes” para intervir na instrução criminal, ou mesmo antes dela (art. 156, I do CPP), produzindo provas que serão, posteriormente, utilizadas face ao acusado. Assim, fica claro que o princípio unificador do CPP é o inquisitivo (COUTINHO, 2008a, p. 12), mostrando-se totalmente inadequado frente a compreensão do atual paradigma constitucional.

III – PARADIGMA PROCEDIMENTALISTA E TEORIA DO PROCESSO

O CPP, elaborado na égide do Estado Social, incorporou toda a frustração do Estado Liberal, erigindo o interesse estatal como sua premissa básica do Código mesmo frente às liberdades individuais, ou seja, a soberania popular se sobreporia aos direitos fundamentais do cidadão. Nesse sentido pertinente a colocação de Barros ao afirmar que, o CPP “tem forte influência da superação do processo liberal de luta das partes, para um processo de modelo de Estado Social construído a partir do ativismo judicial” (BARROS, 2008d, p. 07). Isto pode ser verificado na própria exposição de motivos do Código: “Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum” (BRASIL, 2008a, p. 343).

O estudo realizado por Jürgen Habermas (2003b) sobre os paradigmas jurídicos auxiliará na compreensão do “processo” e, por conseqüência do processo penal brasileiro, eis que cada paradigma apresenta uma perspectiva diferente para o instituto.

O Estado Liberal sustenta uma compreensão formalística de processo, visto como rito pelo rito, forma pela forma, ou então, como forma a ser cumprida em nome da legalidade dos atos processuais.

Com o advento do Estado Social, o conceito de processo passa por uma sofisticação teórica, recebendo, no Brasil, grandes contribuições do insigne jurista Cândido Rangel Dinamarco (1998), ao elaborar a teoria da instrumentalidade do processo. Esta corrente, que persiste até os presentes dias, pretendeu, no marco do Estado Social, uma teoria capaz de garantir a “pacificação social”, realizável pelo cumprimento dos escopos metajurídicos (econômicos, sociais, políticos) do processo, que auxiliam o julgador a delimitar e concretizar a justiça social, por meio do instrumento processual jurisdicional (DINAMARCO, 1998, p. 159-167). Corroborando com este pensamento Lopes Júnior (2004, p. 183) defende que o juiz no Estado Social deveria atuar ativamente no processo “como se responsável pela segurança pública fosse”.

Em suma, a teoria instrumentalista do processo, pretende que o magistrado, em sua decisão, proceda à correção prática dos equívocos cometidos por outras esferas do Estado, a fim de garantir a realização da justiça social. Tal construção teórica é de fácil adaptação a teoria da relação jurídica processual (BÜLOW, 1868), em sua máxima do processo como actum trium personarum, ou seja, o processo é realizado entre o juiz e as partes, existindo um vínculo de sujeição do réu em relação a um direito (subjetivo) do autor. Logo, da relação jurídica de direito processual emergem duas posições subjetivas, a posição de poder-dever do juiz e a de sujeição das partes, “denotando o papel

4402

preponderante do juiz no processo jurisdicional” (BARROS, 2008c), que se coloca, na crítica formulada por Gonçalves (1992, p. 97-101), como “super-parte”.

Gonçalves, apropriando da obra fazzalariana, critica o caráter hierárquico da relação jurídica sustentando que nela não há uma idéia de contraditório, como participação em simétrica paridade dos afetados pela decisão (FAZZALARI, 1992), na teoria da relação jurídica, em razão dela incorporar um vínculo entre sujeitos, autor e réu, como uma posição hierarquizada do sujeito que tem poder sobre aquele que tem sujeição (GONÇALVES, 1992, p. 91-96; 106).

Por sua vez, Fazzalari (1992) revisitando os conceitos de procedimento e processo, propõe uma nova diferenciação entre ambos, a partir de uma perspectiva lógica de inclusão, estabelecendo que procedimento é gênero, enquanto que processo é espécie, especificando-se em razão da posição “dos afetados em relação à construção do provimento final, que, assim, se realizaria em contraditório, isto é, com a garantia de participação em simétrica paridade dos afetados na construção do provimento” (BARROS, 2008d, p. 12-13). Ou seja, processo é um procedimento realizado em contraditório, sendo contraditório entendido como posição de simétrica paridade daqueles que serão afetados pelo provimento final (FAZZALARI, 1992).

Nesta proposição de processo, o juiz não possui poder, ou seja, não há uma relação de subordinação das partes perante ele (GONÇALVES, 1992, p. 97-98). Todos eles, juiz e partes, são considerados sujeitos processuais havendo uma relação de coordenação entre todos. O juiz não atua no processo como um contraditor, ele não é um interessado, ele é, em verdade, um terceiro que deve garantir às partes o pleno exercício do contraditório, eis que é entre elas – partes – que há um jogo de interesses opostos, em divergência de pretensões acerca do provimento final que é preparado através do iter procedimental (GONÇALVES, 1992, p. 120-126).

Esta é a concepção de processo que mais se adéqua ao paradigma do Estado Democrático de Direito, pois garante a legitimidade do provimento ao propiciar, em sua construção, a participação daqueles que serão por ele afetados, assim permitindo que os sujeitos se vejam como autores e destinatários da norma (HABERMAS, 2003b). Isso se revela nas palavras de Gonçalves, ao afirmar que

A estrutura do processo assim concebido permite que os jurisdicionados, os membros da sociedade que nele comparecem, como destinatários do provimento jurisdicional, interfiram na sua preparação e conheçam, tenham consciência de como e por que nasce o ato estatal que irá interferir em sua liberdade; permite que saibam como e por que uma condenação lhes é imposta, um direito lhes é assegurado ou um pretenso direito lhes é negado. [...] A instrumentalidade técnica do processo, está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia de participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos. (GONÇALVES, 1992, p.171)

4403

A teoria do processo como procedimento realizado em contraditório (FAZZALARI, 1992), vista sob a ótica do paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito (HABERMAS, 2003b), que coloca o sujeito de direitos como autor e destinatário da norma jurídica, deve ser compreendida como constitutiva de direitos fundamentais. Desse modo, é possível estabelecer uma crítica a teoria da relação jurídica, tendo em vista a atuação do juiz como “super-parte”, bem como face ao instrumentalismo, devido a perspectiva solipsista do juiz e aos escopos metajurídicos do processo jurisdicional (BARROS, 2008a), eis que possibilita uma fundamentação da decisão que extrapola os argumentos debatidos pelas partes no processo, assim ingressando no campo metafísico cognocente praticado pelo intérprete (no caso o juiz).

Nesta perspectiva, o Estado Democrático de Direito rompe com uma visão formal típica do Estado Liberal, bem como com a visão materializante do direito do paradigma social, buscando, ao contrário, proteger as condições do procedimento democrático, na medida em que o direito possa ser obedecido não em razão da sua positividade, mas em razão da sua legitimidade.

O paradigma procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático. Eles adquirem um estatuto que permite analisar, numa outra luz, os diferentes tipos de conflito (HABERMAS, 2003b, p. 183).

Desse modo, na busca de um procedimento efetivamente democrático, a interpretação do princípio do contraditório consoante a CR/88 deve ser expandida a outros princípios. Princípios estes que formam uma base de garantias processuais presentes no texto constitucional, estipulando assim um modelo constitucional de processo. Modelo este entendido como uma base principiológica uníssona, definida a partir da co-dependência entre os princípios do contraditório, ampla defesa, fundamentação das decisões e imparcialidade do órgão decisório (BARROS; MACHADO, 2008).

IV – MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO E PROCESSO PENAL

As constituições modernas agregam em seu texto garantias processuais que, reunidas, compõem uma verdadeira base principiológica que deve ser observada em qualquer processo jurisdicional, sob pena de sua plena nulidade.

Esta questão foi pensada por dois autores italianos, Andolina e Vignera (1997), que, no contexto do processo civil italiano, buscaram consolidar a compreensão de que na constituição havia um conjunto de normas[5] comum a todos os processos jurisdicionais.

4404

Le norme ed i princìpi costituzionali riguardanti l’esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all’interprete de disegnare um vero e próprio schema generale di processo, suscettiblide di formare l’oggetto de uma esposizione unitária (ANDOLINA; VIGNERA; 1997, p. 07)[6]

Nesse contexto, os autores propuseram modelo formado por um esquema geral de processo que possui três características básicas: a expansividade, a variabilidade e perfectibilidade.

a) nella espansività, consistente nella sua idoneità (conseguente alla posizione primaria delle norme costituzionali nella gerarchia delle fonti) a condizionare la fisionomia dei singoli procedimenti giurisdizionali introdotti dal legislatore ordinario, la quale (fisionomia) deve essere comunque compatibile coi connotati di quel modello; b) nella variabilità, indicante la sua attitudine ad assumere forme diverse, di guisa che l’adeguamento al modello costituzionale (ad opera del legislatore ordinario) delle figure processuali concretamente funzionanti può avvenirre secondo varie modalità in vista del perseguimento di particolari scopi; c) nella perfettibilità, designante la sua idoneità ad essere perfezionato dalla legislazione sub-costituzionale, la quale (scilicet: nel rispetto, comunque, di quel modello ed in funzione del conseguimento di obiettivi particolari) bem può costruire procedimenti giurisdizionali caratterizzati da (ulteriori) garanzie ed istituti ignoti al modello costituzionale (ANDOLINA; VIGNERA; 1997, p. 09 – grifos dos autores)[7]

Em outros termos, a base do modelo constitucional de processo é única e se encontra na Constituição, especificamente, nos princípios constitucionais do processo, entretanto tal modelo pode se expandir, formando vários microsistemas, podendo estes variar conforme seus institutos específicos, mas sempre coerentes com o modelo constitucional de processo. Nas palavras de Barros,

Tal compreensão de modelo constitucional de processo, de um modelo único e de tipologia plúrima, se adéqua à noção de que na Constituição encontra-se a base uníssona de princípios que definem o processo como garantia, mas que para além de um modelo único ele se expande, aperfeiçoa e especializa, exigindo do intérprete compreendê-lo tanto a partir dos princípios bases como, também, de acordo com as características próprias daquele processo. (BARROS, 2008c)

A CR/88 estipula um modelo constitucional de processo sendo necessário identificar quais seriam seus princípios fundantes. Assim, de acordo com o marco procedimentalista do Estado Democrático de Direito (HABERMAS, 2003b), no qual o processo é visto como garantia constitutiva de direitos fundamentais, sustenta-se a

4405

compreensão de quatro princípios co-dependentes, contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação das decisões, que formariam a base do modelo constitucional de processo brasileiro (BARROS, 2008c).

Apesar da teoria do modelo constitucional de processo ter sido proposta no contexto do processo civil, mostra completamente viável, numa perspectiva procedimentalista, a sua apropriação em termos gerais de processo assim aplicando-se ao processo jurisdicional, legislativo, administrativo e arbitral. Isto se reflete nas palavras de Barros e Machado que, com base em Habermas, afirmam que no

Estado Democrático de Direito o paradigma procedimentalista garante o direito de escolhas e de pertencimento de uma sociedade multicultural e plural, que para isto se legitima pela participação dos atingidos, compreendidos como autores e destinatários da norma jurídica (HABERMAS, 1997), seja no processo legislativo, na definição de políticas publicas, no processo administrativo ou jurisdicional. (BARROS; MACHADO, 2007)

Na análise de cada microsistema, “não se pode desconsiderar os princípios do esquema geral, isto é, do modelo constitucional de processo, mas ao lado de tais princípios, em cada microsistema existirá institutos que o especializam” (BARROS, 2008c). Ou seja, cada microsistema aperfeiçoa-se pelas suas peculiaridades, bem como pelo provimento pretendido ou pelo direito fundamental a ser garantido, lembrando que deve sempre respeitar os princípios do contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação da decisão, que compõe a base do modelo constitucional de processo. Essa noção decorre das características da expansividade, variabilidade e perfectibilidade.

Em relação ao processo penal, como microsistema que é, a característica da expansividade do modelo constitucional de processo se manifesta na incorporação de princípios como a presunção de inocência e a garantia das liberdades constitucionais do cidadão, previstas no art. 5º da Constituição da República de 1988. Portanto, além de estar de acordo com a base principiológica que compõe o modelo constitucional de processo, o processo penal deve especializar-se através da “presunção de inocência e das garantias de liberdades individuais do cidadão” (BARROS, 2008c). No marco procedimentalista do Estado Democrático de Direito, que tem o processo como garantia constitutiva dos direitos fundamentais, o processo penal se insere como garantia do direito fundamental de liberdade do cidadão frente o poder de imperium estatal.

V – LEI N.º 11.690/08: reformas sem mudanças

Por mais que se possa louvar a reforma do CPP, que há muito necessita ser revisitado, algumas de suas alterações podem ser vistas como mudanças para que tudo permaneça

4406

como sempre esteve. Embora a reforma se baseie na celeridade e no respeito às garantias do acusado, vê-se que, faticamente, somente a primeira parece ser concretizada. Isso fica claro na análise das razões do veto presidencial ao art. 157, § 4º, que sob o argumento de se garantir celeridade ao processo penal, vetou a disposição que vedava que o juiz que tivesse contato com prova ilícita proferisse sentença no respectivo processo.

Na redação original do CPP os artigos 155, 156 e 157, dispunham respectivamente, acerca das restrições à produção de provas quanto ao estado de pessoas, da distribuição do ônus da prova, no sentido de que a prova da alegação incumbe a parte que alegou, porém autoriza o juiz a determinar, ex oficio, a produção de provas para dirimir questão relevante, e, por fim, que a formação do juízo de convicção será feita pela livre apreciação da prova. Como se vê tais dispositivos concebem elementos do princípio inquisitivo, eis que colocam o juiz como gestor da prova, mitigando princípios como o do contraditório e do terceiro imparcial.

A Lei n.º 11.690[8], que altera as disposições do CPP relativas à prova, traz importantes modificações, entretanto mantém parte do texto original do Código que já vinha sendo questionado em razão de sua inadequação frente ao modelo constitucional de processo. Na respectiva lei, garantias como a do contraditório, terceiro imparcial, bem como presunção de inocência são abandonadas em prol de uma política criminal que favorece a persecução penal estatal, colocando o acusado como mero expectador da ação do Estado-juiz que participa da colheita de provas, mesmo antes de iniciada a ação penal.

A redação do novo artigo 155[9] mantém o sistema de livre convencimento motivado, o qual já existia antes mesmo da reforma. A crítica em relação ao aludido artigo repousa na possibilidade do juiz fundamentar uma sentença penal condenatória em elementos colhidos no inquérito policial.

A reforma “não teve coragem de romper com a tradição brasileira de confundir atos de prova com atos de investigação” (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 09). Na redação inicial do Projeto de Lei 4.205/2001, que se transformou na Lei n.º 11.690, era vedada a utilização dos elementos do inquérito no processo penal, justamente pelo fato deles não terem sido percebidos em contraditório. Contudo, após a reforma manteve-se a possibilidade de se utilizar os elementos carreados no inquérito, desde que subsidiados por outras provas produzidas em juízo, ou seja, com a garantia do contraditório (BARROS, 2008d, p. 21-27). Lopes Júnior, ao dissertar sobre o inquérito policial na nova redação do art. 155 do CPP, aduz que

Bastou incluir o “exclusivamente” para sepultar qualquer esperança de que os juízes parassem de condenar os réus com base nos atos do famigerado, inquisitório e superado inquérito policial. Seguiremos assistindo a sentenças que, negando a garantia de ser julgado a partir de atos de prova (realizado em pleno contraditório, por elementar), buscarão no inquérito policial (meros atos de investigação e sem legitimidade para tanto) os elementos (inquisitórios) necessários para a condenação. Significa dizer que nada muda, pois seguirão as sentenças “fazendo de conta que...” o réu está sendo julgado com base nas provas colhidas no processo, quando na verdade, os juízes continuarão utilizando as clássicas viradas lingüísticas do “cotejando a prova

4407

judicializada com os elementos do inquérito...” ou “a prova judicializada é corroborada pelos atos do inquérito...”. Quando um juiz faz isso na sentença, está dizendo (discurso não revelado) que condenou com base naquilo produzido no inquérito policial (meros atos de investigação), negando o contraditório, o direito de defesa, a garantia da jurisdição, etc. (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 9-10)

A alteração do art. 155, em relação ao inquérito policial, em nada alterou a jurisprudência já estabelecida dos tribunais. A utilização, no processo, de elementos produzidos sem a garantia do contraditório afronta o modelo constitucional de processo. Se no processo penal não foram carreadas provas que sustentem uma condenação, o juiz deve absolver o acusado por insuficiência de provas (art. 386, VI do CPP, com redação dada pela Lei n.º 11.690/2008) e não buscar, na fase pré-processual, outros elementos a fim de emitir um decreto condenatório. Buscando tais provas, o juiz atua conforme o princípio inquisitivo, revelando, portanto, a grande dificuldade de compatibilizar a legislação processual penal com a Constituição da República de 1988[10].

A questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. Por evidente que não inventei isto; os fundamentos estão em Cordero, Pisapia, dentre outros e servem para poder ler o processo penal brasileiro e seu desvario persecutório. (COUTINHO, 2007, p. 11)

Outro artigo alterado pela Lei n.º 11.690 e que merece total atenção é o art. 156[11]. Na esteira do exposto por Barros (2008d, p. 27-33), a assertiva de que o ônus da prova cabe a quem alega não trouxe nenhuma inovação, eis que tal afirmativa há muito é criticada face ao princípio da presunção de inocência. Ou seja, cabe a acusação provar os elementos constitutivos do delito e não ao acusado provar sua inocência, eis que ela já se presume (BUCH, 2008, p. 01). Em sentido oposto coloca-se Silva (2008, p. 64) ao afirmar que a disposição do art. 156 do CPP “a prova do fato cabe a quem alega” se adéqua aos “princípios gerais do direito, como a boa-fé, a obrigação de dizer a verdade, o esforço para buscar a verdade real, entre outros”. Tal posicionamento é contrário ao modelo constitucional de processo, eis que desconsidera um princípio específico do processo penal que é a presunção de inocência (BARROS, 2008d, p. 31).

Entretanto, o ponto alto da crítica ao art. 156 repousa na análise de seus incisos. A nova redação do artigo em comento mantém a possibilidade do juiz determinar de ofício a produção de provas mesmo antes de iniciada a ação penal. Como demonstrado no capítulo “II” deste trabalho a atuação do juiz na gestão da prova é resquício do sistema inquisitório que ainda impregna o CPP, mitigando, por conseqüência, o princípio do terceiro imparcial e do contraditório.

4408

A reforma insiste na manutenção de uma legislação inquisitorial, afrontando a proposta constitucional de um sistema acusatório. O exercício dos poderes instrutório do juiz permite-lhe decidir antes e, depois, sair à busca de provas para legitimar a decisão anteriormente tomada. Este é, nas palavras de Cordero (1986, p. 51), o “primato dell’ipotesi sui fatti”, ou seja, as hipóteses se sobrepõem aos fatos, o que gera um “quadri mentali paranoidi”, podendo assim o juiz tornar seu imaginário em real possível. Posição diversa é a de Silva (2008, p. 65) para quem “o juiz criminal é pago pelo Estado para fazer justiça nos casos concretos”, assim “sua missão [do juiz criminal] de fazer justiça não pode ser limitada pela suposição de quebra de imparcialidade e vício no julgamento a ser futuramente prolatado”. Como ressaltado no capítulo “III” “o reforço da atuação jurisdicional é sustentada por escopos metajurídicos do processo, próprios do instrumentalismo processual” (BARROS, 2008d, p. 31). A concepção de um juiz conformador e justiceiro é inadequada perante o modelo constitucional de processo,

pois objetiva promover a paz social, subjugando as partes à sua visão de mundo e os seus valores de justiça, sem levar em consideração os argumentos jurídicos na defesa dos direitos e garantias fundamentais das partes no processo. Sustenta a decisão no subjetivismo e na discricionariedade do juiz e não no discurso argumentativo dos sujeitos do processo para a adequada decisão judicial. (BARROS, 2008d, p. 31)

A novidade é que antes da reforma o juiz somente poderia determinar provas de ofício durante o iter processual, mas agora ele pode também determinar a produção de provas antecipadas na fase preliminar investigatória, ou seja, antes de iniciado o processo penal.

O art. 156, “I”, permite ao juiz, utilizando-se de um juízo de proporcionalidade e adequação, a possibilidade de, antes de iniciada a ação penal, ordenar a produção de provas, sem a participação das partes, abrindo assim larga margem ao seu subjetivismo. Daí, pode vir o contra-argumento de que estas provas só seriam produzidas se demonstrassem ser urgentes e relevantes; entretanto, o problema está justamente neste ponto, pois, afinal, as provas devem ser urgentes e relevantes para quem? Como se garantir a legitimidade e racionalidade do provimento jurisdicional, afastando de sua construção aqueles que serão por ele diretamente afetados?

Os critérios de necessidade, proporcionalidade e adequação estabelecem uma abertura discricionária (DWORKIN, 2002), possibilitando que a soberania popular se sobreponha aos direitos fundamentais (HABERMAS, 2003a). “A antecipação de provas nos termos postos é o estabelecimento de um estado de policia, em flagrante desrespeito ao Estado de Direito” (BARROS, 2008d, p. 32).

O princípio do terceiro imparcial é desrespeitado, eis que o magistrado ao permitir a produção de provas na fase pré-processual pode criar uma, eventual, pré-compreensão que pode levá-lo a um exercício, mesmo que inconsciente, de busca somente daquelas provas que reforçam aquilo que já foi compreendido, ou seja, primeiro se decide e depois busca-se os elementos para fundamentar aquela decisão prima facie tomada. “A

4409

mudança reforça ainda mais o caráter inquisitorial do juiz como gestor da prova, só que agora ele será o gestor da prova do inquérito!” (BARROS, 2008d, p. 33).

O juiz, senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato, privilegiando-se o mecanismo “natural” do pensamento da civilização ocidental que é a “lógica dedutiva”, a qual deixa ao inquisidor a escolha da premissa maior, razão por que “pode decidir antes e, depois, buscar, quiçá obsessivamente, a prova necessária para justificar a decisão”. (COUTINHO, 2008b)

Já a nova redação do art. 157[12] admite no processo a utilização de provas derivadas da prova ilícita[13], desde que não fique evidenciado o nexo de causalidade entre uma e outra, ou quando puderem ser obtidas por outros meios independentes. Desse modo o referido artigo contraria o disposto no art. 5º, LVI da CR/88 que dispõe sobre a proibição de se utilizar no processo, provas obtidas por meios ilícitos.

O legislador infraconstitucional criou exceções ao dispositivo constitucional, o que lhe é proibido, eis que as garantias constitucionais devem ser interpretadas de modo expansivo e não restritivo. O legislador ordinário não é competente para restringir a aplicação de normas constitucionais, especialmente aquelas relacionadas às garantias do acusado em processo penal. Como assevera Coutinho (2008a, p. 12), “os §§1º e 2º do art. 157 do CPP criam restrições onde a Constituição não criou”.

A legislação estabelece critérios abertos e gerais para não aplicação da garantia constitucional da proibição de provas ilícitas, ampliando, ainda mais, o subjetivismo do juiz que decidirá quando se trata de fonte autônoma e quando não há nexo de causalidade (BARROS, 2008d, p. 39)

O entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), expresso no recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC n.º 90376/2007), de relatoria do Min. Celso de Melo, é no sentindo da não admissão da prova derivada de provas ilícitas. Portanto, em sentido oposto ao próprio entendimento do STF, a proposta legislativa, lembre-se inconstitucional, demonstra novamente a intenção de concretizar os interesses da persecução estatal em detrimento do respeito às garantias do acusado.

Por derradeiro, cumpre tecer alguns comentários sobre o veto presidencial ao art. 157, § 4º do CPP. As razões do veto[14] se sustentam no objetivo de dar maior celeridade e simplicidade ao processo penal, “mesmo que o preço para tanto seja aviltar a democracia processual-constitucional” (COUTINHO, 2008a, p. 13).

4410

O veto presidencial não pode ser óbice à aplicação da garantia constitucional do terceiro imparcial. Nesse sentido, é claro que, mesmo se excluindo o § 4º do art. 157 do CPP, proposto pela Lei n.º 11.690/08, se demonstrado que no caso concreto não é mais possível garantir a imparcialidade do juiz, e por conseqüência, a fundamentação adequada da decisão, que não mais garante a construção participada da decisão (FAZZALARI, 1992), tal decisão deve ser declarada nula por desrespeitar o modelo constitucional de processo. (BARROS, 2008d, p. 39)

O contato do juiz com uma prova ilícita gera, mesmo que em seu inconsciente, uma pré-compreensão o que, por conseqüência, abala a sua eqüidistância em relação às partes, eis que ele poderá enxergar a parte desfavorecida por tal prova com uma presunção de culpa. Nesse sentido assevera Lopes Júnior (2008, p. 10) que “é óbvio que o juiz que conheceu da prova ilícita não pode julgar, pois está contaminado! Não basta desentranhar a prova, deve-se “desentranhar” o juiz!”.

VI – CONCLUSÃO

No presente texto se demonstrou que o CPP brasileiro é informado, a contra sensu da CR/1988, pelo princípio inquisitivo. Fez-se uma digressão histórica sobre os fundamentos dos sistemas de gestão da prova, inquisitório e acusatório, apontando suas principais características, para, ao final, concluir que a grande diferença entre eles reside em seu princípio unificador, qual seja, o princípio da gestão da prova.

Após a identificação do processo penal brasileiro no sistema inquisitório, analisou-se as teorias do processo, concluindo-se que no paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, que compreende o processo como garantia constitutiva de direitos fundamentais, o processo deve ser realizado em contraditório garantindo a participação dos afetados na construção do provimento.

Com aportes na doutrina italiana, percebemos haver uma relação de co-dependência entre os princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, terceiro imparcial e fundamentação das decisões, assim configurando uma base principiológica uníssona aplicável a todo e qualquer processo, seja ele jurisdicional, administrativo ou legislativo. Este núcleo de garantias foi concebido como um “modelo constitucional de processo”, que varia conforme o provimento pretendido ou com o direito fundamental a ser resguardado, mas sempre observando a base que é única, sendo que o microsistema do processo penal agrega garantias específicas definidas no próprio texto constitucional, como a garantia da liberdade do cidadão e a presunção de inocência.

Sob o argumento de se garantir celeridade e simplicidade ao processo penal, a Lei n.º 11.690/2008 (re)põe no processo penal uma legislação de cunho inquisitivo, que flexibiliza garantias fundamentais em prol da do princípio da eficiência, que perpassa os sistemas penais em tempos de neoliberalismo.

4411

Em se tratando de gestão da prova, o papel do juiz como seu gestor mostra-se incompatível com o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, o qual reclama a construção participada das decisões jurisdicionais, podendo tal exigência ser compreendida, no campo das provas, como a necessidade das partes participarem em simétrica paridade na valoração e valorização compartilhada dos argumentos e provas estruturados no processo. A permissão de produção de provas cautelares, com base na necessidade, proporcionalidade e adequação, mostra-se contrária ao modelo constitucional de processo, pois possibilita a formação de uma cognição sumária no julgador que pode levá-lo à busca daquelas provas que confirmem a sua pré-compreensão já estabelecida, assim desrespeitando o princípio do terceiro imparcial.

A desconsideração de garantias do cidadão, a fim de se viabilizar a eficiência do processo penal, arraigado na idéia do dever de assegurar o acesso a uma ordem jurídica justa, coloca o julgador como um justiceiro que deve corrigir as imperfeições sociais com base nos escopos metajurídicos do processo. Assim, o juiz, utilizando-se do instrumento que é o processo, muda as regras do jogo no meio do jogo, a fim de se realizar o objetivo da jurisdição que a concretização da paz social. Tal atitude contraria o modelo constitucional de processo, eis que coloca o cidadão à mercê dos objetivos estatais.

O Estado, frente a aumentos de índices de criminalidade, bem como face à ousadia dos criminosos, não pode responder com autoritarismo, eis que ele jamais poderia combater o crime se comportando como o próprio criminoso. Para se alcançar um processo penal realmente democrático deve-se resguardar as garantias constitucionais, sabendo-se, desde já, que isso poderá requerer sacrifícios.

As críticas à reforma do Código de Processo Penal, aqui apresentadas, e as reflexões em prol de uma interpretação constitucionalmente adequada visam contribuir para se re-pensar o processo penal sob o pano de fundo do projeto de redemocratização do Brasil que permeia a CR/1988 e precisa ser lembrada. Especialmente, ao se debater o respeito aos direitos fundamentais de liberdade do cidadão, eis que a Constituição é um projeto reflexivo e aberto de uma comunidade de cidadãos livres e iguais.

VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. I fondamenti constituzionali della giustizia civile: il modello constituzionale del processo civile italiano. 2. ed. Torino: Giappichelli, 1997.

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Violência Doméstica, Política Criminal e Direito: uma análise do Estatuto da Violência Doméstica a partir da compreensão dos direitos e garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito. Anais do XVI Congresso Nacional da Pós-Graduação em Direito – CONPEDI, Belo Horizonte, 2007.

4412

BARROS, Flaviane de Magalhães. A Fundamentação das Decisões a partir do Modelo Constitucional de Processo. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica vol.1, n. 7. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2008a. p.131-148.

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Produção antecipada de provas no processo penal: uma análise da reforma do CPP a partir da compreensão do modelo constitucional de processo, a discussão a respeito das garantias do acusado versus eficiência da investigação. Anais do XVII Encontro Preparatório do Congresso Nacional da Pós-Graduação em Direito – CONPEDI, Salvador, 2008b.

BARROS, Flaviane de Magalhães. O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO E O PROCESSO PENAL: a necessidade de uma interpretação das reformas do processo penal a partir da Constituição. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; MACHADO, Felipe Daniel Amorim (Orgs.). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a contribuição do Processo ao Constitucionalismo Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2008c, (no prelo).

BARROS, Flaviane de Magalhães. (RE)FORMA DO PROCESSO PENAL. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008d.

BIZZOTTO, Alexandre; JOBIM, Augusto; EBERHARDT, Marcos. Sistema Acusatório: (Apenas) Uma Necessidade do Processo Penal Constitucional in A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul: Notadez, 2006.

BRASIL, Código de Processo Penal, Decreto-lei 3.689 de 03 de outubro de 1941. São Paulo: Saraiva, 2008a.

BRASIL. Lei n. 11.690 de 09 de junho de 2008. Acesso: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11690.htm>, em 10 de setembro de 2008b.

BRASIL. Mensagem de veto n. 350 de 09 de junho de 2008. Acesso: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-350-08.htm>, em 10 de setembro de 2008c.

BUCH, João Marcos. Anotações sobre a reforma do CPP pela Lei n. 11.690/08. Centro de Estudos Jurídicos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Florianópolis, 2008. Disponível em: <httptjsc25.tj.sc.gov.bracademiacejurarquivosCPP_alteracoes_2008_-_reflexoes_Joao_Marcos_Buch_-_encarte.pdf>. Acesso em: 28.09.2008

BÜLOW, Oskar Von. La Teoria de las Excepciones Dilatórias y los Presupuestos Procesales. Trad. Miguel Angel Rosas Lichtschein do orginal de 1868. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1964.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 21 ed., 2005.

CORDERO, Franco. Guida Alla Procedura Penale. Torino: Utet, 1986.

4413

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo penal e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 175, 2007, p. 11-12.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a Gestão da Prova: segue o Princípio Inquisitivo. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 188, 2008a, p. 11-13.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A CONTRIBUIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA AO PROCESSO PENAL INQUISITÓRIO BRASILEIRO. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; MACHADO, Felipe Daniel Amorim (Orgs.). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: a contribuição do Processo ao Constitucionalismo Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2008b (no prelo).

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela Função Jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1998.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FAZZALARI, Elio. Istituzionidi diritto processuale. Padova: Cedam, 1992.

HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: Sobre el Estado democrático de derecho en términos de teoría del derecho. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia I: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia II: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

LOPES JUNIOR, Aury. (Des)Velando o Risco e o tempo no Processo Penal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). A Qualidade do Tempo: Para Além das Aparências Históricas. Rio de Janeiro: Lúmen Juirs, 2004.

LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 2005.

4414

LOPES JUNIOR, Aury. Bom para quê(m)?. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, v. 16, n. 188, p. 9-11, 2008.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18º ed. rev. atual. amp. São Paulo: Editora Atlas, 2006.

NETTO, Menelick de Carvalho. A hermenêutica constitucional sob o paradigma do estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Org.). JURISDIÇÃO E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2004. Prefácio, p. 25-44.

SILVA, Ivan Luis Marques da. Reforma processual penal de 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.

[1] Leis que reformaram o CPC: 11.276; 11.277; 11.280; e 11.341 todas de 2006.

[2] Em sua própria exposição de motivos, o CPP brasileiro faz referência expressa ao Ministro da Justiça italiano Rocco e à reforma do Código de Processo Penal italiano.

[3] Neste trabalho não se aprofundará na análise do sistema misto, entretanto necessária a menção à crítica a ele feita por Coutinho ao afirma que: “como se sabe, todos os sistemas atuais são mistos, já que se não cogita de um sistema „puro?, mas não é preciso grande esforço para entender que não há e nem pode haver um “princípio misto”, dado ser o princípio, no caso, uma idéia única e, portanto, indivisível. O modelo de sistema misto, do Code Napoléon, com a primeira fase inquisitória e a segunda fase, processual, amplamente contraditória (...), fundou-se em uma estrutura dual: investigação preliminar / processo (...). Ele nasce (o IP) [no Brasil], com a desvantagem de ser um procedimento administrativo e, de conseqüência, inviabiliza a extensão, para si, do contraditório, até porque a CR de 88 só o impôs como um direito individual quando houvesse processo. (...). Nesta esteira, o sistema processual penal brasileiro é, indubitavelmente, inquisitório, porque seu princípio unificador é o inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz, senhor do processo. (COUTINHO, 2008b).

[4] Sistema esse que sobrevive, em nosso ordenamento, seja no processo penal (art. 156, do CPP) ou no processo civil (art. 130, do CPC).

[5] O termo “norma” aqui é entendido no sentido dado por Dworkin (2002), ou seja, como um conjunto de princípios e regras.

[6] Normas e princípios constitucionais concernentes ao exercício da função jurisdicional, se consideradas em sua complexidade, possibilitam ao intérprete determinar um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, susceptível de formar o objeto de uma exposição unitária. (Tradução livre)

4415

[7] a) na expansividade, consistente em sua idoneidade (relativa à posição primária das normas constitucionais na hierarquia das fontes) para condicionar o aspecto dos procedimentos jurisdicionais singulares introduzidos pelo legislador ordinário, o qual (aspecto) deve ser compatível com as conotações daquele modelo; b) na variabilidade, que indica a possibilidade de assumir formas diversas, de modo que a adequação ao modelo constitucional (da obra do legislador ordinário) das figuras processuais concretamente funcionais possam ocorrer segundo várias modalidades em vista da realização de fins particulares; c) na perfectibilidade, que designa a sua idoneidade para ser aperfeiçoado pela legislação infraconstitucional, a qual (scilicet: no respeito ao modelo e em função do alcance de objetivos particulares) pode construir procedimentos jurisdicionais caracterizados pelas (ulteriores) garantias e pela instituição de institutos ignorados pelo modelo constitucional. (Tradução livre)

[8] Promulgada em 09 de julho de 2008, entrando em vigor 60 dias após sua publicação (art. 3º)

[9] “Art. 155 – O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.” (BRASIL, 2008b)

[10] Em sentido contrário, dissertando sobre a nova redação do art. 155 do CPP se coloca Buch (2008, p. 01) ao afirmar que “Com este dispositivo fica claro assim o que a jurisprudência já firmava, ou seja,

não é possível fundamentar a sentença exclusivamente nos elementos do inquérito, salvo cautelares, não repetíveis e antecipadas” (grifos nossos).

[11] “Art. 156 – A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” (BRASIL, 2008b)

[12] Art. 157 – São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

4416

§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.

§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.

§ 4º - O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão. (VETADO) (BRASIL, 2008b)

[13] Este dispositivo adveio da teoria do fruits of the poisonous tree, ou seja, o vício de origem que macula determinada prova transmite-se a todas as provas subseqüentes.

[14] “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso”. (BRASIL, 2008c)