gabbi jr, osmyr faria. o que é psicologia

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  • 7/22/2019 Gabbi Jr, Osmyr Faria. O que psicologia

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    O QUEPSICOLOGIA?1

    LEIS, REGRASEAPSICOLOGIZAODOCOTIDIANO

    GABBI JR, Osmyr F. O que psicologia?Leis, regras e a psicologizao do cotidiano.

    Cincia e Cultura, So Paulo, v. 38, n. 3, p.489-496, mar. 1986.

    Em 1979, participei de um simpsio em Ribeiro Preto, patrocinado pela Sociedade de

    Psicologia local, sobre o tema Ideologia e Cincia em Psicologia. Minha comunicao, na poca,

    iniciava-se compareceras seguintes palavras: Suponhamos que algum, motivado pela simples

    curiosidade, perguntasse: O que psicologia?2. Hoje, vejo com prazer que mais investigadores

    juntam-se para pensar este tema. Entretanto, no irei repetir, palavra por palavra, o que disse

    naquela ocasio. Nestes cinco anos, pude precisar, durante a preparao de cursos e em discusso

    com colegas, diversos pontos. Por exemplo, no vinculo mais de forma tao estreita a questo da

    identidade da psicologia com a da causalidade dos fenmenos psicolgicos. Procurarei mostrar,

    aqui, como vrios dos debates travados entre psiclogos decorrem de uma falta de ateno para as

    questes epistemolgicas em jogo.

    Alguns pesquisadores poderiam considerar que o prprio tema do simpsio no tem muito

    sentido. Pois, segundo eles, possvel definir a psicologia a partir do seu objeto, entendido no seu

    sentido material, enquanto aquilo que nos apresentado, atravs da percepo, com carter fixo e

    estvel e independente de ponto de vista. Entretanto, apesar de um grande nmero inclinar-se por

    uma nica definio a psicologia a cincia do comportamento , a prpria proposta est baseada

    numa crena bastante problemtica. A saber, a de que seria possvel constituir um campo de

    investigao pelo encontro de seu objeto. Isto parte da suposio de que haveria uma anterioridade

    da observao em relao teoria. Sem desejar refazer todas as crticas que podem ser formuladas

    com respeito a este indutivismo ingnuo, cumpre assinalar que a mais rudimentar tcnica j uma

    teoria em ao. Alm disso, a natureza no pode ser vista como um grande livro onde cada captulo

    um objeto, no seu sentido material, esperando por uma cincia. So as teorias que elaboram,

    constituem, determinam seus objetos. Em outros termos, uma conscincia terica que instaura um

    objeto. Por outro lado, encontramos em textos de psicologia outras definies. Por exemplo, a de

    que a psicologia seria a cincia da personalidade em todos os seus aspectos. Ou, para no ficarmos

    apensas dentro do universo da psicologia americana, a de que a psicologia seria, segundo Lagache,

    a teoria geral da conduta, sntese da psicologia experimental, da psicologia clnica, da psicanlise,

    1 36 Reunio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, realizada em So Paulo, a 7 de julho de 1984.2 Gabbi, O.A psicologia como uma trama, p. 77-84.

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    da psicologia social e da etnologia3. Estas trs definies servem para exibir uma outra

    caracterstica do campo psicolgico: a sua regionalidade. Nas definies americanas, h a

    preocupao em definir a psicologia como cincia. Lagache, exibindo maior prudncia, contenta-se

    em afirmar o seu carter sistemtico e fala de teoria. Nas duas primeiras ou se privilegia o

    comportamento (pensado como uma unidade atmica) ou a personalidade (o eu encerrado em simesmo). Em contrapartida, o francs utiliza o termo conduta para ressaltar o aspecto de interao

    entre sujeito e ambiente social. Contudo, todos erram ao supor que a unidade conceitual da

    psicologia possa ser buscada fora dos diversos projetos tericos que a constituem. Os dois primeiros

    quando pensam ach-la num pretenso objeto dado a priori. O ltimo, quando recorre pluralidade

    dos projetos para encontrar de fora, isto , na prpria comunidade dos psiclogos a unidade

    procurada.

    Evidentemente, no pretendo solucionar a questo, apenas indicar direes, ou seja, proporcaminhos que me parecem mais frutferos.

    Em primeiro lugar, preciso levar em conta que cada teoria psicolgica constitui o seu

    objeto de maneira diferente. Para ficarmos nos casos mais evidentes, tomemos lado a lado a teoria

    piagetiana sobre os processos cognitivos e a teoria da aprendizagem que se construiu sob inspirao

    skinneriana. Pode-se afirmar que elas se utilizam dos mesmos instrumentos de anlise, que os

    relatrios de observao de uma podem ser contrastados com os da outra? A resposta categrica:

    no, no podem. Piaget no est preocupado com as condies que mantm um comportamento,

    mas sim com a sua gramtica. Em outros termos, ele deseja saber se um certo comportamento pode

    ser subsumido a uma determinada estrutura cognitiva. Contudo, uma boa alma poderia afirmar: mas

    as duas teorias no nos falam de comportamento, logo, elas no estariam falando de aspectos

    distintos de uma mesma coisa? Ora, responder positivamente a isto seria acreditar que uma relao

    entre homnimos implica uma identidade entre as coisas nomeadas. A crena na existncia de um

    mesmo objeto visto de diversos ngulos decorre mais uma vez da crena de que h um objeto

    material e natural para a psicologia. As discordncias entre as teorias seriam motivadas por

    descries distintas da mesma coisa. Neste sentido, restaria ao psiclogo no dogmtico elaborar

    uma forma de traduzir uma teoria na outra, isto , a tarefa de procurar uma linguagem comum.

    Logo, qualquer ecletismo seria apenas aparente e no traduziria de nenhuma forma uma preguia do

    esprito. Contudo, as teorias so realmente incomensurveis, no h nenhuma maneira de contrap-

    las.

    Diante deste quadro, poder-se-ia pensar que a forma de escolha entre as teorias poderia ser

    dada pela sua eficincia. No so poucos os psiclogos que se inclinariam por esta soluo.

    Entretanto, h uma questo preliminar a ser considerada. Suponhamos que estejamos todos de

    3 Canguilhem, G. Qu'est-ce que la psychologie?, p. 78.

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    acordo a respeito da eficincia de uma teoria psicolgica na realidade, tal fato no ocorre , ainda

    assim, permaneceria o problema de saber de onde ela retiraria a sua eficincia. A resposta,

    aparentemente, seria bastante simples: uma teoria eficiente porque ela cientfica.

    Porm, o termo cincia aberto a mltiplas interpretaes. Portanto, se desejamos

    apresentar um mnimo de rigor e seriedade, necessrio precisar em que sentido vamos utiliz-lo.Recorrendo histria da filosofia, nos deparamos com certas consideraes que podero facilitar a

    nossa tarefa. Por exemplo, em Aristteles, na tica a Nicomono, encontramos a seguinte

    comparao: Com efeito, no procedem da mesma maneira, para descobrir o ngulo reto, o

    carpinteiro e o gemetra: o primeiro se preocupar apenas com a utilidade deste em relao ao seu

    trabalho, enquanto que o outro busca suas propriedades...4. Mais adiante, ele continua ... o

    (mesmo) ocorre quando acatamos as sugestes do pai o de um amigo, sem que haja aqui nenhuma

    analogia com o que ocorre quando acatamos as demonstraes matemticas

    5

    .Na primeira citao, Aristteles est preocupado em afirmar a distino existente entre

    conhecimento terico e saber prtico. Na cincia, h a procura do universal, daquilo que

    atemporal, que no depende de nenhuma localizao espacial especifica (o gemetra visa

    estabelecer as propriedades do ngulo reto, enquanto o carpinteiro utiliza-se dessas propriedades).

    Na segunda citao, acentua-se o carter de necessidade na cincia (acatamos o conselho do pai ou

    de um amigo porque ele nos parece bom, prudente etc., mas no porque ele seja necessrio, isto ,

    dados os seus fundamentos, haveria uma inevitabilidade dos conseqentes).

    Alguns podero, neste momento, pensar que se trata de negar cientificidade psicologia

    clnica para conferi-la psicologia experimental. Nada mais afastado dos meus propsitos. Da esma

    forma que no acredito que exista psicologia em p maisculo o que no h so psicologias ,

    tampouco acredito que tudo aquilo que se convenciona chamar de psicologia experimental seja

    cincia no sentido que estou precisando. A fim de marcar esse ponto, vou recorrer a Kant. No

    Prefcio aos fundamentos metafsicos da cincia natural, ele tece diversas consideraes a respeito

    da cientificidade da qumica. Para ele, ela no uma cincia propriamente dita porque, apesar de

    utilizar experimentos, de fazer observaes, de estabelecer leis empricas, ela no possui ainda uma

    teoria da matria que confira necessidade s relaes que ela j descobriu 6. Em outros termos, a

    qumica, nesta poca, carece de fundamentao terica. Entretanto, no esta aqui o principal

    obstaculo cientificidade da psicologia experimental. Sempre seria possvel afirmar que se trata de

    esperar um pouco. Afinal de contas, s no sculo XIX, a prpria qumica encontrou a partir de

    Dalton a sua boa teorizao. Por que a psicologia tambm no poderia ter o seu Dalton? O

    argumento Kantiano antecipa essa possibilidade e aponta para o verdadeiro obstculo

    4 Aristteles,tica a Nicomano, 1092a, p. 1178.5 Ibid, 1102b, p. 1185.6 Kant, I.Metaphysische Ausfrangsgrnde der Naturwissenschaft, p. 15-16.

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    cientificidade da psicologia: a natureza histrica do objeto psicolgico. a prpria historicidade das

    categorias psicolgicas que interdita psicologia de construir uma teoria onde as relaes sejam

    universais e necessrias7.

    Entretanto, nada nos impede de construir um objeto para a psicologia onde as relaes

    apresentem tais caractersticas. Isto ocorre, sem dvida, nas pesquisas neuropsicolgicas. Porm,neste caso, estamos bem afastados das relaes cotidianas que parecem fascinar inmeras pessoas.

    Greco parece traduzir bem o dilema quando afirma: a infelicidade do psiclogo: nunca est

    seguro de que faz cincia. Mas quando a faz, nunca est seguro de que seja psicologia8.

    Acredito que haja uma sada para essa aporia da psicologia: preciso levar em conta que ela

    est dividida em duas regies epistemologicamente distintas. Na primeira, formulam-se leis de que

    as categorias so a-histricas, h um alto nvel de abstrao, estabelecem-se invariantes. Na

    segunda, h o domnio das regras.Com o objetivo de tornar a diferena mais exata, acredito que se podem estabelecer entre

    leis e regras trs distines relevantes:

    a) leis enquanto tais tm a pretenso de serem sempre verdadeiras; regras no so nem

    verdadeiras, nem falsas;

    b) leis definem um domnio de aplicao e referem-se a relaes constantes entre elementos;

    regras so obedecidas ou no e referem-se ao domnio das interaes simblicas;

    c) basta que haja uma ocorrncia que contrarie uma lei para que esta deixe de ser considerada

    como tal, portanto a sua legitimidade afetada por qualquer caso que a contrarie; entretanto,

    a violao de uma regras no afeta a sua legitimidade o seu fundamento est sempre num

    dever ser.

    Para ilustrar o que ocorre quando se ignoram as diferenas mencionadas acima, permitam-

    me apresentar um exemplo, retirado da literatura psicolgica contempornea. Este ilustra como

    Canguilhem no est muito errado quando afirma que vrias teorias psicolgicas se aliam a uma

    filosofia sem rigor porque ecltica, uma tica sem exigncias e uma medicina sem controle9.

    Escolhi como caso de estudo a teoria rogeriana. Rogers constri a sua teoria a partir de

    mediaes que estabelece com o campo clnico. Segundo ele, ... medida que se acumulam provas

    clnicas e experimentos, inevitvel que os interessados na terapia centrada no cliente pretendam

    formular teorias que contenham e expliquem os fatos observados, e que assinalem direes

    frutferas para novas investigaes10. Na viso rogeriana, a cincia progride na medida em que ela

    observa fatos e, numa etapa posterior, elabora um referencial terico. Podemos ver que, mais uma

    7 Ibid, p. 16.8 Greco, P.pistmologie de la psychologie, p. 937.9 Canguilhem, G. Qu'est-ce que la psychologie?, p. 77.10 Rogers, C.Psicoterapia centrada em el cliente, p. 409.

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    vez, estamos diante de um adepto do indutivismo ingenuo: primeiro fatos, depois a teoria. Aqui, a

    coisa se torna interessante na medida em que Rogers acreditou que observar e participar juntos

    numa experincia teraputica poderia ser um marco muito importante na direo de suavizar

    diferenas verbais e ideolgicas11. Em outros termos, ele acreditava que as diferenas tericas

    refletiam apenas diferenas verbais. Ele prprio acrescenta: Nossas diferenas eram muito maisprofundas do que eu presumira. Havia suposto que todos ns estvamos falando sobre as mesmas

    experiencias, mas dando-lhes palavras, rtulos e descries diferentes. Claramente isto no era

    verdade12.

    Evidentemente, a questo nunca foi emprica, ela conceitual. Rogers, ao contrario, acredita

    que foi o resultado da situao experimental que mostrou que a sua suposio era inadequada. No

    lhe passa pela cabea que so as prprias suposies que constroem uma situao experimental.

    Uma vez que elas so a condio de possibilidade da situao, no se pode esperar que esta legitimeas suposies. sempre possvel interpretar o resultado na direo desejada.

    Coexistem, ao lado desse indutivismo ingenuo, certas concepes sobre a natureza humana e

    o mundo. Para ele, Todo indivduo vive em um mundo continuamente mutvel de experiencias no

    qual ele o centro13.

    Tal mundo Inclui tudo o que experimentado pelo organismo, seja, estas experincias

    percebidas conscientemente ou no14. A diferena entre conscientes e inconscientes dada pelo

    fato das primeiras serem simbolizadas. Rogers esclarece a diferena atravs de um exemplo, onde

    afirma: A presso da cadeira contra as minhas ndegas algo que estive experimentando durante

    uma hora, porm, s quando penso e escrevo a respeito disso, a simbolizao dessa experiencia se

    faz presente em minha conscincia15. Neste ponto, nota-se uma semelhana com Berkeley, este

    afirmou: Digo que existe a mesa onde escrevo, isto , vejo-a e sinto-a 16. Para ele, o ser da mesa

    o de ser percebida. Para os que acham que Rogers tambm no marcha na direo de um firme

    solipsismo, basta atentar para a seguinte citao: No importa quo adequadamente pretendamos

    medir o estmulo..., e no importa como pretendamos medir o organismo que percebe, continua

    sendo vlido que o indivduo o nico que pode saber como foi percebida a experincia17. Aliada a

    essas crenas sobre o mundo, h uma outra a respeito da linguagem. Ele endossa a tese de que:

    Palavras e smbolos tm com o mundo da realidade a mesma relao que um mapa tem com o

    territrio que o representa18. Se relacionarmos as proposies acima, chegamos s seguintes

    11 Rogers, C.Psychoterapy today or where do we go from here?, p. 3.12 Ibid, p. 410.13 Rogers, C.Psicoterapia central em el cliente, p. 41014 Ibid, p. 410.

    15 Ibid, p. 410-411.16 Berkeley, G. Tratado sobre os princpios do conhecimento humano, p. 13.17 Rogers, C.Psicoterapia centrada em el cliente, p. 411.18 Ibid, p. 412.

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    concluses:

    a) o territrio enquanto experincia do indivduo s conhecido pelo prprio indivduo;

    b) as palavras so o modelo do territrio.

    Ora, a aceitao das duas concluses leva-nos a uma terceira: deve existir uma linguagem

    privada. Pois, como Wittgenstein demonstrou, h uma equivalncia lgica entre afirmar que umapessoa nunca pode conhecer a percepo que a outra est experimentando e afirma: que a

    linguagem natural aplicada percepo necessariamente intransmissvel19.

    Berkeley fugia do solipsismo recorrendo ao Eterno; Rogers, ao critrio da maioria. Cito

    Rogers: Este escritrio real' porque a maioria das pessoas de nossa cultura o perceberia de uma

    maneira muito semelhante quela como eu o percebo20. Sem dvida, gostaramos de saber de onde

    ele retira tal certeza, dadas as suas premissas.

    A esses pressupostos metafsicos, recolhidos aqui e ali, acrescenta-se uma viso de cinciadecididamente ingenua. A sada para a psicologia cientfica est em imitar os detetives da televiso,

    ou seja, nas palavras de Rogers, Somente os fatos, por favor, senhora, somente os fatos21. Para

    realizar esse projeto, ele elabora um programa de quatro pontos:

    a) necessrio fazer uma grande observao naturalstica atravs da gravao de filmes,

    vdeos-tapes de sesses teraputicas;

    b) devem ser utilizados testes;

    c) deve-se partir para o laboratrio;

    d) deve-se usar tcnicas de descrio fenomenolgica, tcnicas de diferencial semntico22.

    Em nenhum momento, nota-se a menor preocupao em saber se h uma compatibilidade

    entre a teoria rogeriana e os testes. Em relao crena de que a cincia se inicia com os fatos, creio

    j ter mostrado o seu carter de absurdo. Misturam-se no mesmo texto uma posio positivista

    ingenua com um vocabulrio que parece retirado de reao romntica alem ao Iluminismo no final

    do sculo XVIII. Fala-se em crescimento interior, valorizao dos sentimentos, em auto-realizao,

    em espontaneidade. Na medida em que os estatuto terico da concepo rogeriana bastante

    nebuloso, ou seja, fazendo-se a caridosa suposio de que ele exista, no h como controlar a

    eficacia dos tratamentos propostos. Podemos concluir, a partir desse rpido exame, que, de fato, a

    teoria de Rogers parece aliar uma filosofia sem rigor a uma medicina sem controle.

    Contudo, o mais interessante est naquilo que obtemos quando se investigam as suas

    19 A demonstrao est baseada em dois argumentos: a) impossvel para um homem utilizar uma palavra com umsignificado que ningum, em principio, poderia entender; b) somente a prpria pessoa pode verificar conclusiva ediretamente que ela tem certas experiencias.Se se aceita o argumento b, no se pode sustentar o argumento a. Logo, a aceitao do b equivalente a endossar a

    possibilidade de uma linguagem privada. (ver Castaeda, H.,Private language problem, p. 459-460.20 Rogers, C.Psicoterapia central en el cliente, p. 412.21 Rogers, C.Psychoterapy today or where do we go from here?, p. 9.22 Ibid, p. 9-10.

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    suposies morais. Rogers entende a liberdade como algo ... essencialmente interior, algo que

    existe na pessoa viva, inteiramente parte de qualquer das escolhas externas entre alternativas em

    que tantas vezes supomos consistir a liberdade23. Para entender este enunciado que promete o

    paraso no no cu mas dentro de ns, preciso passar por algumas consideraes ticas. Rogers, a

    partir de certas distines feitas por Morris, considera que h dois tipos de valores:a) valores operativos - trata-se simplesmente da escolha do valor indicado pelo

    comportamento quando o organismo se detm num objeto e rejeita outro;

    b) valores concebidos - a preferencia por um objeto simbolizado24.

    A interiorizao desses valores d-se da seguinte maneira: Ao contrrio do que ocorre com

    a maioria de ns, a criana sabe do que gosta e do que no gosta, e a origem dessa opo do valor

    reside estritamente dentro dela (...) O menino puxa os cabelos de sua irmzinha e acha bom ouvir os

    seus gritos de dor e protesto. Ouve, ento, dizerem-lhe: voc um menino levado e mau, omenino vai, aos poucos, aprendendo que se sentir bem , com freqncia, mau aos olhos dos

    outros. Ocorre, ento, o estgio seguinte, (...). Agora, ao puxar os cabelos da irma, ele entoa,

    solenemente: mau, menino mau!. A, perde o contato com o seu prprio processo orgnico de

    avaliao25.

    Como podemos constatar, a cultura pensada como algo que deturpa a sabedoria interna.

    Neste sentido, Rogers considera uma pessoa como adulta no momento em que ela se torna integral;

    nos seus termos, o adulto capacita-se de que, se pode ter toda confiana em si prprio, os seus

    sentimento e intuies ho de ser mais perspicazes que a sua inteligncia26.

    A valorao de determinadas condutas em prejuzo de outras decorre dessas crenas ticas.

    Contudo, elas no so apresentadas como regras a serem seguidas, mas como resultado de uma srie

    de investigaes clnicas, dotadas de cientificidade.

    Posto isso, o momento de retomar a diviso que eu havia feito entre o domnio das leis e

    das regras. Desejo sugerir que muitos projetos psicolgicos que de direito deveriam colocar-se na

    regio das regras apresentam-se como se estivessem na regio as leis. Entretanto, permanece a

    questo de saber por que h por parte da psicologia essas vontade de aprender cientificamente o

    cotidiano. Em outras palavras, porque se deseja falar cientificamente sobre o homem, sobre as

    relaes que ocorrem entre os homens. Um sintoma evidente de que tal desejo encontra ressonncia

    no social est na freqncia com que psiclogos falam e pontificam, nos rgos de comunicao de

    massa, sobre o cotidiano. Falam em nome do qu? Onde est a superioridade deles sobre as nossas

    avs? A resposta cndida: est na cientificidade de que se dizem portadores. Contudo, para

    23 Rogers, C.Liberdade para aprender.24 Ibid, p. 226-6.25 Ibid, p. 227-8.26 Ibid, p. 234.

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    poderem fazer cincia, precisa, como foi mostrado, fazer do homem um invariante.

    Tal necessidade leva a um erro que pode ser resumido a partir de uma parfrase do texto

    Humano, demasiadamente humano de Nietzsche: Todos os psiclogos tm em si o defeito

    comum de partirem do homem do presente e acreditarem que, atravs de uma anlise dele, atingem

    o alvo. Sem querer, o homem paira diante deles como uma verdade eterna, como algo quepermanece igual em todo o vrtice, como uma medida segura das coisas. Tudo o que o psicologo

    enuncia sobre o homem, no fundo, nada mais do que um testemunho sobre o homem de um

    espao de tempo muito limitado. Falta de sentido histrico o defeito hereditrio de todos os

    psiclogos; muitos, sem se deram conta, at tomam a mais jovem das configuraes do homem, tal

    como surgiu sob a presso de determinadas religies, e mesmo de determinados acontecimento

    polticos, como a forma firme de que se tem de partir27.

    Em resumo, para poderem fazer uma cincia do homem, os psiclogos so levados a tom-lo como algo a-histrico, como algo que possa ser descrito com categorias no-histricas. Portanto,

    no nos deve surpreender que algumas teorias, como a de Rogers, acreditem que haja dentro do

    homem, uma tendncia interna para o crescimento que seria impedida, inibida pela sociedade. Tal

    fato acarretaria uma ciso dentro dele, criando uma alienao entre o homem e o seu desejo.

    Evidentemente, ningum se interroga se o mesmo ocorreria para um grego no seculo de Pricles ou

    para povos que, imersos na tradio, no concebem qualquer subjetividade. Os psiclogos de uma

    orientao mais experimental, por conseguinte, mais cientfica, se perguntariam se no haveria por

    trs dos diversos comportamentos exibidos, independente de poca, os mesmo mecanismos. E ns

    respondemos, mesmo que fosse possvel chegar a leis do comportamento no sentido forte de lei, o

    que aparenta ser ainda muito difcil, a importncia delas para a compreenso de um comportamento,

    retirado do cotidiano, a mesma que tem a lei da gravidade para compreendermos o que ocorre com

    uma criana que deixa a sua bola cair da janela de um prdio 28. Entretanto, todos pretendem dar

    conta do cotidiano. O resultado uma moral imposta que se desconhece enquanto tal. As

    prescries do psiclogo so dadas a partir de um aval autoconcedido de cientificidade e no como

    realmente so, ou seja, como diretivas morais.

    Foucault, em um texto bastante antigo, Doena mental e psicologia, procura mostrar como

    a constituio da psicologia solidria de uma certa atitude que o Ocidente tomou em relao

    loucura h cerca de trezentos anos. A genealogia do saber psicolgico revela que Toda estrutura

    epistemolgica da psicologia atual consolida-se neste acontecimento que aproximadamente

    contemporneo da Revoluo, e que concerne relao do homem consigo prprio. A 'psicologia'

    somente uma fina pelcula na superfcie do mundo tico no qual o homem moderno busca a sua

    27 Nietzsche, F.Menschliches, Allzumenshliches. I, p. 24-5.28 Em outros termos, as leis esto presentes no conhecimento do cotidiano, mas no enquanto leis produzidas ou

    derivadas desse conhecimento.

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    verdade e a perde29.

    Se isto for verdadeiro, e Foucault acredita que seja, ento o estudo da loucura que nos

    esclarece sobre uma parte da psicologia e no o inverso. Em outras palavras, a psicologia s se

    tornou possvel porque, a partir de um determinado momento, a relao do homem com a loucura

    passou a ser vivida em dois planos. Um externo, marcado pela segregao e o castigo o asilocomo local de isolamento e de reeducao e um interno governado pela sano moral e pela culpa

    o louco transgride a moral e deve perceber o que fez.

    Tal diagnostico no resulta de uma histria da loucura no sentido corrente de historia, ou

    seja, de encontrar um objeto j pronto, a loucura, que daria margem ao surgimento de um saber

    positivo sobre ela, a psicologia. Ao contrrio, a pesquisa de Foucault genealgica. Em outros

    termos, ela procura dar conta da constituio de saberes, de discursos, de domnio de objetos etc.,

    sem ter que se referir a um sujeito dado a priori, ou que progressivamente vai constituindo a suaidentidade30. A pesquisa genealgica parte de uma heterogeneidade de registros, alguns discursivos,

    outros institucionais, para mostrar a partir de que jogos de fora produz-se um saber, uma

    disciplina. Isso possibilita examinar historicamente como se produzem efeitos de verdade no

    interior desses discursos que no so em si nem verdadeiros nem falsos. Alis, a verdade para

    Foucault, como o era para Nietzsche, s existe num sentido moral, como produto de uma violncia

    com que se faz as coisas. Portanto, no se trata somente de denunciar que a psicologia interdita a

    fala do louco em nome de uma outra considerada cientificamente mais adequada. Mas de

    evidenciar o carter produtivo do discurso psicolgico, isto , aquilo que ele cria, seja ao nvel das

    coisas, do prazer, do saber e mesmo do discurso. Se os conselhos so dados, ouvidos e at

    perseguidos, porque se acredita que aquele que fala, sabe.

    Entretanto, no se deve pensar que o genealogista chega a essas concluses porque ele

    procura e encontra uma origem, ao contrrio, ele a denuncia como um mito. No existe e nunca

    existiu este momento onde uma unidade seria forjada e o tempo se encarregaria de dispers-la. A

    psicologia no surgiu unitria com Wundt e a partir da encontrou a sua dispora.

    Se a pretenso cientificidade no preenchida as anlises epistemolgicas parecem

    sempre confirmar isto no se deve perguntar em que condies ela o seria, mas sim interrogar a

    prpria pretenso de ser uma cincia. Por que se d afinal de contas tanta importncia a 1879?

    segundo Foucault, as questes a serem colocadas so as seguintes:

    a) que tipo de saber se deseja desqualificar no momento em que se afirma uma cincia?

    b) que sujeito falante, que sujeito de experiencia ou de saber se deseja tornar inferior quando se

    afirma: eu, que formulo este discurso, enuncio um discurso cientfico e sou cientista?

    c) que vanguarda terico-poltica se deseja exaltar a fim de separ-la de todas as inmeras,

    29 Foucault, M.Doena mental e psicologia, p. 85.30 Foucault, M. Verdade e poder. In:Microfsica do poder, p. 7.

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    circulantes e descontnuas formas de saber?31

    Questes sem dvida inquietantes mas que podem iluminar a prtica do psiclogo e que

    apontam para o sentido do se desejo de apreender cientificamente o cotidiano. Por outro lado,

    tambm apontam para uma das linhas de fora da investigao de Foucault: a relao entre a

    vontade de verdade e o poder.Na Ordem do Discurso, aula inaugural proferida no College de France, Foucault declara

    que dos trs sistemas de excluso que atingem o discurso, a palavra interditada, a partio da

    loucura e a vontade de verdade, do terceiro que ele fala mais longamente32. A psicologia parece

    responder a esta vontade. Acredita-se que ela possa produzir essa verdade sobre o sujeito, que ela

    possa torn-lo bom filho, bom pai, bom esposo, bom trabalhador, bom cidado, recentemente, bom

    amante etc. No h a uma certa promessa de felicidade? No lugar da salvao, no encontramos

    hoje a sade?

    33

    Quando a psicologia reclama de sua cientificidade ela o faz para poder emprestaraquilo que ela afirma um mnimo de credibilidade. Contudo, o homem um ser histrico, um ser

    em transformao. O corpo uma realidade biopoltica, para utilizarmos uma definio de

    Foucault34. O termo bio aparece para impedir que uma outra boa alma venha nos recordar pela

    ensima vez que o homem tambm um ser biolgico. Em contrapartida, o termopoltico aparece

    para assinalar a historicidade desse homem, para revelar que por trs da psicologizao da vida

    cotidiana est a invisibilidade do poder. Esse no se torna mximo, como nos recorda Skinner em

    Walden II, quando desejamos o desejvel?

    A noo de poder que apareceu no incio da obra de Foucault como sendo da ordem da

    excluso, da represso, em suma, como poder no sentido poltico, como encarnao de uma

    soberania, vai dar lugar, a partir de 1970-72, durante as pesquisas sobre o sistema penitencirio,

    uma conexo positiva do poder. nesse sentido que se deve entender a afirmao feita h pouco de

    que a psicologizao do cotidiano aponta para a invisibilidade do poder. Esse passa a ser concebido

    como um feixe de relaes e no mais como uma substancia que se possa possuir. O poder do

    Estado, para ser efetivo, necessita da sua reproduo e multiplicao atravs de uma imensa vida

    cotidiana. Na medida em que algumas das teorias psicolgicas so teorias morais, elas podem

    exercer esse papel policial que Canguilhem, em 1956, no ensaio O que psicologia?, denunciava

    com muita propriedade35.

    Essas rpidas consideraes, que no fazem justia complexidade do tema, sugerem,

    entretanto, que nas cincias ditas humanas a anlise epistemolgica leva muito rapidamente

    anlise scio-poltica. Ignorar a segunda ou tentar suprimi-la permanecer na iluso de um saber

    31 Foucault, M. Genealogia e poder, In:Microfsica do poder, p. 172.

    32 Foucault, M. L'ordre du discours, p. 21.33 Foucault, M.Nietzsche, Freud e Marx, p. 30.34 Foucault, M. O nascimento da medicina social. In:Microfsica do poder, p. 80.35 Canguilhem, G. Qu'est-ce que la psychologie?, p. 91.

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    problemtico que, contudo, produz efeitos inegveis sobre o social.

    REFERNCIAS

    1. Aristteles. tica a Nicomano, p. 1169-1310. In: Aristteles, Obras, Madrid, Aguilar.

    2. Berkeley, G. 1980. Tratado sobre os princpios do conhecimento humano. p. 13-44. In:

    Berkeley-Hume, Os Pensadores, So Paulo, Abril Cultural.

    3. Canguilhem, G. 1956. Qu'est-ce que la psychologie? Cachiers pour l'Analyse, n. 1/2, Paris,

    Seuil, 1966, p. 77-86.

    4. Castaeda, H. 1967. Private language problem. p. 458-464, In: Edwards, P. The

    encyclopedia of philosophy. Vol. 6, Nova York, Macmillan & The Free Press.5. Foucault, M. 1975.Doena mental e psicologia. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

    6. Foucault, M. 1971.L'ordre du discours. Paris, Gallimard.

    7. Foucault, M. 1975.Nietzsche, Freud e Marx. Porto, Cadernos de Teoria e Conhecimento.

    8. Foucault, M. 1981.Microfsica do poder. Rio de Janeiro, Graal.

    9. Gabbi Jr., O. F. 1979. A psicologia como uma trama. Anais da IX Reunio Anual de

    Psicologia. Ribeiro Preto, p. 77-84.

    10. Grego, P. 1967. Epistmologie de la psychologie. p. 927-989. In: Piaget, J., Logique et

    connaissance scientifique. Paris, Gallimard.

    11. Kant, I. 1982 (1786). Schriften zur Naturphilosophie. Werkausgabe Band IX. Frankfur,

    Suhrkamp Verlag, 1982.

    12. Nietzsche, F. 1980 (1978). Mensachliches, Allzumenschliches I, Samtliche Werke, Band 2,

    Berlim, Deutscher Taschenbuch Verlag. 1980.

    13. Rogers, C. 1969 (1951).Psicoterapa centrada en el cliente. Buenos Aires, Paids.

    14. Rogers, C. 1966 (1961). Psychoterapy today or where do we go from here? p. 33-11. In

    Stollak, G., Guerney, B. E Rothberg, M. (org.) Psychoterapy research. Chicago, Rand

    McNally.

    15. Rogers, C. 1971 (1969). Liberdade para aprender. Belo Horizonte, Interlivros de Minas

    Gerais.