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25 MARCELO EDUARDO LEITE VISUALIDADES, Goiânia v.9 n.1 p. 25-47, jan-jun 2011 Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr Palavras-chave: Fotografia, escravos, Brasil Imperial Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar parte da obra do fotógrafo Christiano Júnior, português que viveu no Brasil na segunda metade do século XIX. As imagens que aqui apresentamos e analisamos são extremamente relevantes e se originam de uma demanda bem específica, as fotografias de tipos populares. Christiano fez algumas dezenas de retratos da população escrava que vivia na cidade do Rio de Janeiro, na década de 1860. Tais fotografias são hoje uma oportunidade única para conhecer essa população e conhecer suas características.

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História da imagem no Brasil

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    Marcelo eduardo leite

    ViSualidadeS, Goinia v.9 n.1 p. 25-47, jan-jun 2011

    Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr

    Palavras-chave: Fotografia, escravos, Brasil Imperial

    Resumo

    O presente artigo tem como objetivo analisar parte da obra do fotgrafo Christiano Jnior, portugus que viveu no Brasil na segunda metade do sculo XIX. As imagens que aqui apresentamos e analisamos so extremamente relevantes e se originam de uma demanda bem especfica, as fotografias de tipos populares. Christiano fez algumas dezenas de retratos da populao escrava que vivia na cidade do Rio de Janeiro, na dcada de 1860. Tais fotografias so hoje uma oportunidade nica para conhecer essa populao e conhecer suas caractersticas.

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    Types of black: slaves in photography Christiano Jr

    Keywords: Photography, slaves,

    Brazil Imperial

    Abstract

    This paper aims to analyze part of Christiano Jniors works, who lived in Brazil during the second half of the nine-teenth century. The images here presented and analyzed are extremely relevant, they were originated from a specific demand, that means photographs of a popular type. Chris-tiano produced some of the several portraits of the slave population, which lived in Rio de Janeiro city during the 1860s. Today such photographs are the only opportunity to know this population and its traits.

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    Marcelo Eduardo Leite. Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr

    Apresentao

    O presente artigo tem como objetivo apresentar a produo do fotgrafo Christiano Jnior, realizada na cidade do Rio de Janeiro na dcada de 1860. Tais imagens so exemplos contun-dentes de uma forma muito comum de fotografia no sculo XIX, as cartes de visite de tipos exticos ou populares. Sendo, tambm, referncia para que possamos compreender o uni-verso dos escravos de ganho que habitavam as ruas da cidade.

    Nossa abordagem compreende o fotgrafo como um me-diador que interpreta o campo da cultura, fazendo uma leitu-ra especfica do mesmo. Nos termos de Kossoy, O processo de criao do fotgrafo engloba a aventura esttica, cultural e tcnica que ir originar a representao fotogrfica. (1999, p. 26). Assim, a fotografia pode ser entendida como um do-cumento e, tambm, como uma representao da realidade.

    A fotografia implica uma transposio de realidades: a transposio da realidade visual do assunto selecionado, no contexto da vida (primeira realidade), para a realidade da re-presentao (imagem fotogrfica: segunda realidade); trata--se pois, tambm, de uma transposio de dimenses (KOS-SOY, 1999, p. 37).

    Desta forma, a fotografia como objeto de nossa anlise requer uma investigao que observe alm das questes tc-nicas, outros elementos, se aproximando do meio no qual tal representao feita, entendendo seus sentidos especficos. Por conta disso que nossa misso de compreender as fotogra-fias de Christiano Jnior nos convida a conhecer mais sobre a sociedade na qual ela produzida, compreendendo melhor seus significados e formas de representar a realidade.

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    As fotografias carte de visite

    Difundidas a partir do ano de 1854, as cartes de visite so foto-grafias realizadas em estdio, e que foram desenvolvidas pelo francs Andr Disdri. Filho de um imigrante que se muda Paris no intento de fazer fortuna, Disdri o primeiro a apreender as exigncias do momento e os meios de satisfazer novas demandas, j que ele percebe que a fotografia, por ser muito cara, era apenas acessvel reduzida classe dos ricos. Cioso da importncia operacional do estdio como um fator determinante para o seu sucesso comercial, constata que os elevados preos cobrados, devido ao uso de grandes forma-tos, alm de no permitirem acompanhar a vontade popular, obrigam o fotgrafo a despender mais tempo no processo de revelao. Ao compreender essas variantes, o que revela o seu tino prtico e comercial, ele percebe que o ofcio no daria resultados, a menos que conseguisse ampliar a sua clientela e aumentar as encomendas de retratos. quando tem a ideia de desenvolver as cartes de visite (FREUND, 1986, p. 69). Tais retratos, medindo aproximadamente 5 x 9 centmetros, tem como principal inovao o fato de serem produzidos em srie, a partir de um sistema de lentes mltiplas. O que permite ao cliente sair do ateli fotogrfico com uma srie de imagens idnticas, nas quais se explicita a projeo pessoal do retra-tado. O retratado pode adquirir 12, 24 ou 36 imagens iguais, podendo, inclusive, voltar ao ateli para encomendar mais cpias, j que o negativo fica arquivado no estabelecimento. Uma vez com sua srie de imagens nas mos, o cliente divul-ga esta sua imagem construda. Como o prprio nome diz, trata-se de um carto de visita. dada como lembrana e, muitas vezes, trocada entre as pessoas. Com sua grande difu-so, aparecem alguns colecionadores que as colam em lbuns, arquivando-as. Surgem, tambm, aquelas que so vendidas em livrarias, tais como as de tipos exticos, que retratavam tipos populares como ndios e escravos, e as de celebridades, com figuras ilustres, como por exemplo, religiosos, polticos e artistas.

    Uma das principais inovaes das cartes de visite o re-trato de corpo inteiro, o que implica cercar o retratado de ar-tifcios teatrais que definem seu status, longe do indivduo e prximo da mscara social, numa pardia de auto-represen-tao na qual se unem realismo e idealizao. Estes retratos so a forma mais completa de juno da srie de elementos mobilizados na elaborao da cena fotogrfica. Tambm, ne-

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    les se observa que os clientes podem introduzir a sua prpria indumentria, trazendo desde objetos cotidianos roupa do dia-a-dia, ostentando traos da moda desejada, j que os ate-lis oferecem vestimentas muitas vezes inacessveis a eles. A verdade que estas pessoas procuram, por meio desses obje-tos, contar a sua prpria histria: muitos querem ser retrata-dos com as suas ferramentas de trabalho, com seu cone pes-soal. Estes retratos agregam os fragmentos da personalidade do indivduo, que so incorporados e reincorporados na sala de poses, local onde se estabelece a construo individual.

    No tocante difuso das cartes de visite no Brasil deve-mos, de imediato, considerar as singularidades de sua expan-so no pas. Aqui, este suporte chega e atinge novos segmen-tos da populao, mesmo tendo sido difundido de forma bem mais restrita que na Europa. Segmentos, estes, que podem se fazer representar, finalmente. Podemos exemplificar entre a clientela, o negro liberto, o imigrante, o trabalhador urbano, a elite agrria etc. Assim, devemos estar atentos s singulari-dades deste material.

    Neste sentido, observamos que primeira vista as fotogra-fias oitocentistas parecem homogneas; entretanto, um olhar mais aprofundado sobre elas, assim como um exame atento da bibliografia existente mostram a coexistncia de formas de uso diferenciadas. Esta diversidade fruto, principalmente, de dois fatores: as transformaes tcnicas da prpria foto-grafia e as mudanas sociais. Considerando que novos anseios e novos padres geram novas representaes, nossa proposta vislumbra um estudo pontual.

    Fazendo este percurso da totalidade para o recorte, a pro-posta que apresentamos demonstra as especificidades do ma-terial nacional que, a nosso ver, mesmo tendo concomitn-cia com as elaboraes cnicas de outros locais, por oferecer tambm uma lgica definida de elaboraes cnicas comuns: pose, indumentrias, formatos e meios de difuso, nos pro-porciona outro ngulo de observao, que vem dos fotgrafos e suas peculiaridades. Ou seja, a lgica, alm de no mini-mizar o papel do fotgrafo como mediador, ainda permite que ele seja fundamental na gerao do produto final, a fo-tografia carte de visite. No mesmo sentido, notamos que, em alguns casos as interferncias dos fotgrafos so observveis, em outras, a sua no interferncia que aparece. Como por exemplo, ao no esconder sinais que denunciam uma roupa emprestada pelo ateli, ou na adaptao de objetos cnicos, ou abrindo espao a segmentos que no seriam habitus em

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    outros estabelecimentos. Assim, fomos notando que, cada profissional desenvolve seu ofcio dentro de alguns parme-tros, e, no contexto de um universo mais abrangente, vemos algumas diferenas entre as produes.

    Com relao ao estudo das cartes de visite bom salien-tar que devemos, em primeiro lugar, conceder ateno cena social e ao dcor interno: equipamentos do ateli, adereos, painis de fundo, moblias e roupas. Neles esto referncias ao contexto histrico e que se colocam entre o pesquisador e o retratado como uma espcie de ponte. Literalmente, de um lado, est a realidade social. Do outro lado, o fotgrafo, seus pontos de vista e anseios, suas montagens cnicas, seu uso dos recursos tcnicos. A anlise deve, ento, desenhar um movi-mento que combina diferentes pontos de partida e de chega-da: o fotgrafo, o ateli, a cidade e o pas no qual ele atua, cada um desses plos remetendo invariavelmente ao outro.

    Tais imagens obrigam quem as estuda a reconhecer aten-tamente seus elementos constitutivos. Devemos perceber, por exemplo, pequenos detalhes, tais como, poltronas, colunas, estatuetas e, ainda, um sem nmero de chapus, bengalas, so-brecasacas e vestidos. Numa observao atenta, encontramos, ainda, inmeros painis de fundos diferentes. Enfim, o espao da sala de poses um lugar onde se estabelece uma srie de formas de representao.

    Neste sentido, na anlise destas imagens, pertinente que se d ateno aos elementos cnicos e s formas de uso das in-dumentrias, aproximando-se das vontades especficas dos re-tratados. relevante o fato de alguns componentes tradicionais, usados nas referidas imagens, tais como mveis e painis, por exemplo, serem, em alguns casos, substitudos por objetos que fazem referncia direta realidade sociocultural do retratado.

    pertinente, tambm, que procuremos no s uma apro-ximao com as interferncias do fotgrafo, mas com as suas no-interferncias. Pois, em muitos casos, notamos que ele se faz presente dando liberdade ao modelo, abrindo espao para que este se mostre independente dos modismos predo-minantes. Outro ponto fundamental para o trato analtico do material a aproximao para com o contexto histrico na qual se produz a imagem.

    Tal movimento permite melhor entendimento dos cdi-gos e linguagens prprios do meio, o que fornece elementos para a compreenso das razes de determinadas opes fei-tas por retratado e retratista. Fica claro, ento, que conhecer a tcnica fotogrfica primordial para o estudo de tais ima-

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    gens, mas preciso considerar que alm da lgica de produ-o apresentada h uma carga muito grande da influncia do contexto cultural nestes retratos.

    Atendendo s demandas sociais, evidente que a repro-duo dos valores da nova ordem poltica e social que nosso pas vive na segunda metade do sculo XIX, o uso destas foto-grafias para a construo da auto-imagem de parte da popu-lao torna-se um filo recorrente dos atelis fotogrficos, e mesmo as classes inferiores da sociedade, em menor escala, almejam participar dos novos rituais de representao. Mo-delos tpicos desse novo homem so difundidos e, em muitos casos, as representaes no conseguem esconder as diferen-as de classe, ao contrrio, as posies sociais so flagradas, apesar da mis-en-scne. As fotos denunciam que o pobre, ao se travestir de rico, acaba refm de uma pose demasiadamente rgida e, em grande parte dos casos, podemos notar certo des-conforto do retratado diante da indumentria em geral ofere-cida pelos atelis. Algumas das vestes usadas so as oferecidas pelo ateli aos clientes, vindo, inclusive, descosturadas para serem adaptadas ao corpo do retratado, o que evidencia a con-juno entre realidade e fico, verdade e sonho, imposio social e vontade individual (FABRIS, 1991, p. 21).

    Tudo isso numa sociedade - dividida em classes e em uni-versos distintos de homens e de mulheres, de adultos e de crian-as - que tem na moda um dos fatores determinantes para a representao de valores e papis sociais (LEMOS, 1983, p. 58).

    Diante do exposto, fica evidente que, para entendermos o dia-a-dia dos profissionais da fotografia no sculo XIX, e os retratos cartes de visite, devemos considerar o grau de impor-tncia da tcnica no desenvolvimento do ofcio. Constatamos tambm o papel da subjetividade contida na relao entre re-tratado e retratista, que assume uma importncia cabal no ato fotogrfico. Ao procurar o profissional da fotografia, a vontade do cliente , sem dvida, uma das determinantes do registro fotogrfico. Discutindo acerca dos seus anseios, o retratado estuda com o fotgrafo as possibilidades de construo do registro, do ponto de vista tcnico e simblico. Esta relao entre retratista e retratado se d sob num contexto social per-meado por valores culturais.

    Neste sentido, pensar as imagens fotogrficas nos obriga, num primeiro momento, a reconhecer que as mesmas so fru-to de um contexto social, e marcadas por informaes tpicas do meio que as produz. Reconhecemos, assim, que no pode-mos de forma alguma negar a influncia do meio na produo

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    das fotografias, j que elas so parte de um processo intima-mente ligado aos prprios modos de vida da sociedade que as produz. Sendo, inclusive, as significaes existentes nos registros, imagens que estas sociedades projetam de si mes-mas e que, num segundo momento, encontram seu sentido ao serem projetadas no meio social, permeados de cdigos particulares do prprio ambiente que as produz.

    Christiano Junior, as ruas do Rio de Janeiro na sala de poses

    Nascido no ano de 1832, na Ilha das Flores, arquiplago de Aores, Portugal, Jos Christiano de Freitas Henriques Jnior se muda para o Brasil no ano de 1855, chegando ao pas acom-panhado de sua esposa e dois filhos. Inicia a atividade foto-grfica por volta de 1860, na Rua do Comrcio, em Macei, Alagoas, onde mantm estdio at 1862. Pouco depois, em 1863, transfere-se para o Rio de Janeiro, inicialmente atenden-do no Hotel Brisson, na Rua da Ajuda, 57-B; um ano depois, ele est no Photographia do Comrcio, Rua So Pedro 69, tendo como scio Fernando Antonio de Miranda. Em 1865, tem ateli na Rua da Quitanda 53 (para melhor compreenso, vejamos o mapa 3, pgina 202, do acervo da Biblioteca Nacio-nal), desta feita, sozinho (ERMAKOFF, 2004, p. 122). Pouco depois, em 1866, associa-se a Bernardo Jos Pacheco e funda o ateli Christiano Jr. & Pacheco.

    Seu ateli mais um na cidade a disputar a clientela, sen-do frequentado por mais de um segmento social. Mas, o que diferencia o seu trabalho, na sua passagem pelo Rio de Janei-ro, e o que nos chama mais a ateno, so os retratos da popu-lao cativa da cidade. Realizado no suporte carte de visite, as imagens foram produzidas em dois padres: retratos de corpo inteiro e bustos. Foi em 1866 que o Almanak Laemmert anun-cia a venda de uma Variada coleo de costumes e tipos de pretos, coisa muito prpria para quem se retira para a Euro-pa, tal anncio pode ser visto na figura 1. Sua srie, vendida no seu prprio estabelecimento e tambm na Casa Leuzinger (LAGO; LAGO, 2005, p. 133).

    Pelo ano da realizao, as imagens foram feitas especifi-camente quando ele trabalha sem sociedade, mas este acervo veio a ser incorporado gama de produtos do ateli Christia-no Jr. & Pacheco.

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    Tais imagens espelham as ruas do Rio de Janeiro. poca em que as fotografias so produzidas, a populao de negros escravos que trabalham nas ruas da cidade de 55.000 pessoas, 1/3 do total da populao da capital, sendo que, em alguns mo-mentos do sculo XIX, chegou a ser metade da populao total (GORENDER, 1988, p. 93). Em algumas das fotografias, prin-cipalmente nas de busto, encontramos anotaes que identi-ficam a nao africana da qual o negro registrado originrio. Isso, a nosso ver, demonstra por parte dele uma grande preocu-pao em evidenciar a diversidade dessa populao.

    Do ponto de vista comercial, tal modalidade fotogrfica um produto da poca, e feito por outros profissionais em nos-so pas, configurando-se uma modalidade muito difundida. Dentre outros profissionais que desenvolveram trabalhos des-te tipo destacamos Alberto Henschel, em Pernambuco, Joo

    Figura 1 Reproduzida do Almanak Laem-mert 1866, Notabilidades p.27

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    Goston e Rodolpho Lindemann, na Bahia, e Felipe Augusto Fidanza, no Par, mas nenhum o fez com a dimenso do seu trabalho, pois at o momento j foram reconhecidas mais de 100 imagens diferentes (LAGO; LAGO, 2005, p. 133). Dentre o material deixado por Christiano, os retratos de corpo inteiro so aqueles que mais nos chamaram a ateno, so neles que vemos os negros executando os mais diferentes ofcios, tpi-cos dos escravos de ganho: vendedores de frutas, barbeiros, amoladores de facas, carregadores, entre outros. Estas ima-gens so vendidas no comrcio local e servem como uma es-pcie de souvenir dos trpicos, sobretudo, til ao imaginrio que acompanha os viajantes que por aqui passam. A forma de compor a imagem, deixando quase sempre o fundo sem nenhuma informao, permite que o modelo, no primeiro plano, ganhe destaque.

    Embora seja inegvel a presena de motivao merca-dolgica, esse elemento no compromete a importncia do trabalho de Christiano Jr, pois salta aos olhos a forma extra-ordinria com que ele traduziu em imagens esse segmento social. As imagens mostram por parte dele um engajamento especial, seja por sua grande quantidade de tipos, pela diver-sidade de ofcios mostrados ou pelas prprias vestimentas. Nesse sentido, seu trabalho no apenas se destaca em relao concorrncia, colocando um novo produto fotogrfico para o mercado, como tambm constri um conjunto de imagens que destacam o cerne da sociedade da capital imperial. Esses homens e mulheres, na sociedade escravocrata, desempenha-vam uma infinidade de funes, numa sociedade cuja conota-o do trabalho braal pejorativa.

    Para observarmos a forma pela qual ele registrava, abrin-do a srie de vendedores temos as figuras 2 e 3. Na figura 2, carregando uma cesta sustentada pelo brao esquerdo, o ho-mem faz uma pose que sugere que ele est a caminhar. Com um chapu na cabea e visto de perfil, a cena ganha movimen-to; seu palet est abarrotado e apresenta manchas. Sua ex-presso fechada, olhar direcionado para uma das laterais do ateli, sem, no entanto, que o modelo se coloque totalmente de lado, ele tem uma leve inclinao para a direita. Esses ho-mens circulavam pela cidade ou ficavam em pontos estratgi-cos, aguardando algum trabalho como carregador.

    Na figura 3, v-se um arteso. Ele ostenta um ar srio, que deixa sua testa franzida; seu olhar direto para o fotgrafo. Sua roupa uma cala preta e blusa branca. Na cabea, um gorro bastante justo. O retratado simula a fabricao de algum

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    objeto feito de palha, e a posio ostentada faz com que seus ps descalos ganhem um destaque especial na composio. A tcnica de trabalho empregada nessas obras com palha de origem africana, sendo assim um ofcio que, de certa forma, parece menos alienante que os demais (CUNHA, 1988, p. 25).

    Novamente fazendo uso de certa teatralidade prpria das ruas, na figura 4 vemos um casal de vendedores. O homem apresenta uma surrada sobrecasaca, sua cala, da mesma forma, est esfarrapada. O servio de carregador era um dos mais requisitados; qualquer negociante contava com um ao seu lado, pois s o escravo se prestava a esse encargo. Ocu-pando o espao das ruas, os escravos assumiram a profisso de vendedores ambulantes, dos mais variados tipos de produtos. Alguns senhores passaram a treinar novos africanos na arte de vender, em vez de servirem simplesmente de carregadores, ampliando a explorao destes. Alm de carregadores, alguns vendedores tambm levavam cestas sobre a cabea, outros le-vavam tabuleiros de madeira ou caixas; escravos de ambos os sexos vendiam de tudo:

    (...) artigos de vesturio, romances e livros, panelas e bules, utenslios de cozinha, cestas e esteiras, velas, poes de amor, estatuetas de santos, ervas e flores, pssaros e outros animais (...) (GRAHAM, 1988, p. 146).

    Figuras 2 e 3

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    Mas os carregadores de todos os tipos so os que mais chamam a ateno daqueles que passam pelo Rio de Janeiro; Debret passa a seguinte impresso acerca desse cenrio, rela-tando ser estranho que (...) nesse sculo de luzes se depare ainda no Rio de Janeiro com o costume de transportar enor-mes fardos (...), prtica essa que (...) assegura a remunerao diria de escravos empregados nos servios de rua (...) aten-dendo interesses dos proprietrios (...) cujos negros todas as noites trazem para casa os vintns necessrios muitas vezes compra das provises do dia seguinte (DEBRET, 1975, p. 238).

    Com relao aos vendedores ambulantes, as imagens 4 e 5 nos parecem ser as que, certamente, demonstram maior des-conforto dos modelos. Parte dessa impresso pode estar ligada grande complexidade da produo; aliar o equilbrio dos pro-dutos sobre a cabea, com certeza, um complicador, devido ao tempo de imobilidade necessrio para tais imagens. Na figura 4, vemos atrs dos retratados, no cho, um pano que cobre a haste de fixao, possvel notar que o homem segura em uma delas com o brao esquerdo, o que fica oculto por estar coberto pelo corpo da mulher. Ela usa uma vestimenta toda branca, o que provoca um destaque maior com relao ao fundo, fazendo com que o primeiro plano adquira maior expressividade.

    Na figura 5 vemos um negro que veste um surrado palet e segura numa das mos um chapu, o que, de certa forma, faz uma pardia dos padres de vestimenta da poca. O objeto

    Figuras 4 e 5

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    Marcelo Eduardo Leite. Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr

    que ele ostenta uma sacola, o que pode ser um indicativo de que ele seja um prestador de pequenos servios, como men-sageiros, ou encarregado de pequenas entregas. Interessante sua roupa, com calas bem postas, palet de veludo, portan-do, ainda, um relgio de algibeira, um anel com pedra, cha-pu e at um charuto. Mas um detalhe intransponvel, ele tem que andar descalo. Como todos os escravos, ele no cala sapatos, sinal indisfarvel de sua condio de cativo (ALEN-CASTRO, 1997, p. 19).

    Com relao imagem, assim como a mulher da figu-ra 4, a roupa branca tambm faz com que o modelo ganhe destaque com relao ao fundo. Alis, esse fundo apresenta um corte horizontal na parte superior, possivelmente oca-sionado pelo enquadramento mais distanciado, provocan-do o aparecimento do suporte onde poderia estar o painel de fundo. Essa opo por um enquadramento mais distante deixou o modelo menor em relao cena, aumentando a dramaticidade da composio. Trata-se de um vendedor de gua, mais um negro de ganho, vital para a vida da cida-de, so homens que buscam a gua nos chafarizes da cidade, levando-a at seus clientes.

    Sobre os carregadores em geral, Debret alerta para sua im-portncia, pois eles assumem um papel bastante significativo; nas suas palavras os (...) negros carregadores, que passeiam com o cesto no brao (...) que se d o nome de negro de ganho; espalhados em grande nmero pela cidade (...), fazem todo tipo de trabalho, tendo se tornado indispensveis para a so-ciedade (ALENCASTRO, 1997, p. 19). Na sua detalhada des-crio, tais homens podem ser vistos, em algumas ocasies, carregando minsculas cargas, pois considerado (...) des-prezvel quem se mostra no Brasil com um pacote na mo, por menor que seja (ALENCASTRO, 1995, p. 159). Os escravos urbanos esto, na sua maioria, ligados a algum tipo de ativida-de de carreto, desde carregadores de gua e dejetos humanos, passando por carregadores de cadeiras e mercadorias, outros so vendedores ambulantes de uma infinidade de produtos (KARASH, 2000, p. 267).

    As figuras 6 e 7 so bons exemplos da preocupao que Christiano Jr. tem com relao ao uso de indumentrias, ele-mentos que enriquecem a composio do modelo. Na figura 6 vemos mais um carregador, segurando o que nos parece ser um galo de leite. De todas as fotografias, parece ser essa a carte de visite na qual o modelo apresenta mais desenvoltu-ra diante do fotgrafo, j que mostra um semblante bastante

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    tranquilo. Sua postura chama a ateno, principalmente, por sua forma rgida de posar e seu olhar seguro, buscando algum ponto do ateli, mas sem abaixar o rosto. A pose de meio perfil, suas vestes so formadas por um avental branco, que cobre uma roupa da mesma cor. Ele se destaca diante do fun-do, todas as variantes narradas do uma forma especial para o primeiro plano.

    Na figura 7, o vendedor de papagaios se apresenta osten-tando alguns smbolos de status, chapu, palet e um guarda chuva que, ao servir de apoio, cumpre a funo de uma ben-gala. Inclusive, o objeto d um equilbrio cena, ajudando o retratado na sua postura, que se completa por conta do seu olhar direto e seu ar sereno. Mas a carga de informao de alguns objetos tambm est ligada referncia da sociedade civilizada; assim, guarda-chuva e chapu imprimem uma fun-o simblica. Porm, o detalhe mais interessante na elabo-rao de tal retrato est na forma pela qual o fotgrafo faz a ornamentao do ofcio representado, ornando-o com aves, dispondo-as em trs pontos diferentes. Sendo um deles de forma frontal, possibilitando uma perfeita visualizao, que se destaca por se posicionar defronte sua roupa clara. inte-ressante a preocupao descritiva do fotgrafo, sempre deta-lhista na apresentao dos objetos relacionados ao trabalho.

    Nas figuras 8 e 9 vemos mais dois tipos de vendedores. Na figura 8, ps descalos, cala escura e palet aberto, mos-

    Figuras 6 e 7

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    trando uma vestimenta na cor branca, que ganha destaque. Na posio de meio perfil, ele tem diante de si sua mesa por-ttil com mas, numa encenao do seu ritual de venda, ele aperta uma delas com a mo direita. Ele veste uma cala que est presa por um cinto de couro, uma camisa branca e, sobre ela, um casaco que faz conjunto com sua cala. Sobre a cabea uma elegante boina, tendo tambm sua barba devidamente aparada. Seu olhar se perde em algum ponto do ateli.

    Na figura 9, diante do seu tabuleiro vemos aquele que pode ser um escravo de pele clara, tal fato, mesmo ocorrendo em me-nor proporo, acontecia. O simples fato de os brancos, mesmo os mais miserveis, negarem-se a fazer tais ofcios, comprova ser mesmo uma confirmao da condio escrava do retratado (GORENDER, 1988, p. 29). Luis Felipe de Alencastro afirma que este fato foi ignorado pelo censo de 1872, que, numa deciso eminentemente ideolgica considerou todos os escravos como negros ou pardos, ignorando essa minoria de brancos filhos de mes escravas (ALENCASTRO, 1997, p. 89).

    Sigamos, observando as figuras 10 e 11. A figura 10, cujo retratado apresenta um barbeiro, personagem extremamente importante na cena urbana e anteriormente reproduzido em aquarela por Jean Baptiste Debret. Alis, segundo nos parece, provvel que Christiano tenha conhecimento acerca dos traba-lhos dos desenhistas e pintores do incio do sculo, j que suas

    Figuras 8 e 9

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    fotografias dialogam de perto com eles. Posando como a to-talidade dos modelos, ele est descalo, simbolizando inequi-vocamente, aos olhos do estrangeiro, sua condio de escravo. Ele veste cala, camisa e palet; nas mos vemos seus instru-mentos de trabalho, um pente e uma tesoura. Ser assim retra-tado, manipulando seu instrumento de trabalho, comprova de certa forma a sua habilidade para a profisso, o que indicava alguma distino, quando comparado a outras modalidades de servio, tais como carregadores, por exemplo. Depreende--se, ento, que a especialidade configura para ele uma posio mais elevada na hierarquia, podendo significar at a possibili-dade de fazer economia para comprar a prpria alforria. Outra questo relevante o fato de eles serem, ao mesmo tempo, as pessoas que poderiam, dentro do seu prprio grupo, resolver problemas odontolgicos ou da rea mdica.

    Na figura 11 atentamos para uma vendedora de legumes; usando uma espcie de turbante na cabea, ela est com um vestido cujo tecido quadriculado, e, sob este, aparece um de seus ps, denunciando a sua condio de cativa. No seu rosto tambm vemos as marcas tnicas, cicatrizes simtricas que so sinais de costumes tribais (GORENDER, 1988, p. 29). Em uma das mos, ela segura um dos seus produtos e, em mais um exemplo de encenao, o menino ao seu lado simula estar adquirindo o produto. Possivelmente, a cena transpe para a sala de poses um pedao da praa mercado de legumes, onde

    Figuras 10 e 11

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    as vendedoras se renem todas as manhs (DEBRET, 1975, p. 232). interessante pensarmos que tais fotografias so peda-os da cidade recompostos no ateli e, certamente, quando isso ocorre o retratado aquele que compreende com muito mais propriedade o seu prprio universo.

    A srie de retratos de negros de ganho de Christiano Jr., parcialmente analisadas por ns, gera discusses com enfo-ques variados. A primeira colocao sobre o material foi feita pela antroploga Manuela Carneiro da Cunha, em 1988. Se-gundo sua apreciao, nos parece que a grande diferena com relao nossa leitura radica no fato de no existir a tpica relao entre o retratista e retratado na sua elaborao. Para ela, o retratado, categorizado como coisa, surge totalmente distanciado do processo de produo das imagens, reduzido a mero objeto. Ainda, segundo a autora, se o homem livre tem a sua imagem formalizada por meio de uma carte de visite, o retrato do escravo se d na forma de carto postal: (...) um quer descrever a pessoa, digna e singular, outro descreve o personagem, pitoresco e genrico (CUNHA, 1988, p. 24). Ao que nos parece, ela cr que, ao participarem da cena fotogr-fica, os escravos perdem a sua condio humana, tornando-se objetos. Ainda segundo a autora:

    Num retrato pode-se ser visto e pode-se dar a ver, alternativas que esto francamente ligadas relao do retratado com o retratante. Quem encomenda uma fotografia mostra-se, d--se a conhecer, esparrama-se pelo papel, a si e a seus atributos e propriedades, como gostaria de ser visto, como se v a si mesmo no espelho. o sujeito do retrato. Aqui o escravo visto, no se d a ver. (...) (CUNHA,1988, p. 23).

    Entendemos que tal colocao ignora a mediao do fot-grafo que, ao estar diante de um escravo, na viso apresentada, desaparece, perdendo-se a relao de troca entre retratista e retratado. um ponto de vista que descarta toda a relao sub-jetiva que, mesmo num encontro de desiguais, subsiste. No se trata, aqui, de desqualificar a brutalidade da escravido, mas sim, de reconhecer a mediao do fotgrafo na produo da imagem. Pois, inevitavelmente, a cena que vemos elaborada num processo amplo, possivelmente iniciado na negociao, depois a chegada ao ateli, escolha de indumentria ou manu-teno da vestimenta original, e elaborao efetiva da fotogra-fia, a fixao do modelo, tarefa que, segundo observamos, no das mais fceis. Outra questo que os retratados so perso-

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    nagens cotidianamente envolvidos no ir e vir da cidade. Num certo momento, a prpria autora confirma isso e diz que:

    Os negros de ganho esto por todo o Rio de Janeiro. Ocupam as ruas da cidade. Sustentam-se, a si e a seus senhores, dos mais ricos queles cados na misria, para quem um negro de ganho, por velho que seja, o nico recurso (...) (CUNHA, 1988, p. 24).

    Ou seja, eles esto efetivamente influindo na cena local, interagindo com o cotidiano da cidade, fato que explica a ge-rao dessas imagens, frutos desse ambiente. Essa realidade vista nas fotografias no pode ser captada como algo distante e remoto, j que o objeto em questo algo permanentemen-te ligado ao dia-a-dia da cidade. Fotograf-los, para Christia-no Jr., mais uma forma de se relacionar com eles, dentre tan-tas relaes cotidianas que so estabelecidas, inclusive pelo prprio Christiano Jr., com esses indivduos

    Mais recentemente, novamente a bibliografia nacional engrossa a perspectiva de que tais imagens praticam a coisifi-cao dos retratados. Em publicao recente, Pedro Vasquez diz que o fotgrafo fez uso dos modelos para ganhar dinheiro fcil, equiparando a srie a uma coleo de insetos, presos nas vitrines da coleo de um entomologista (VASQUEZ, 2002, p. 23-24). Interessante divergirmos, promovendo uma reflexo sobre isso, pois segundo nosso vis de compreenso, constru-do nesse trabalho, o fotgrafo percebido como um mediador.

    Assim, ao direcionarmos nosso olhar para outra possibili-dade, que no refuta, mas acrescenta novas suposies que-la proposta por Vasquez, invertemos a colocao, pois o que fica patente o no reconhecimento do indivduo que faz a imagem, bem como a negao de sua relao com o retrata-do. Parece-nos que essa vertente de interpretao que coi-sifica tanto o retratado como o retratista, transformando-os em meros objetos. Um fato que parece ser ignorado refere-se existncia de uma relao de aproximao, compreenso e re-construo da imagem do outro. Se o escravo mostrado nas cartes de visite como ele visto nas ruas, porque ele no passou pelo corriqueiro processo de transformao, observ-vel na maioria das imagens deste tipo.

    Sugerimos que injusto responsabilizar o autor das ima-gens pelo fato de mostrar as coisas com certo realismo. Num certo sentido, uma forma de desvelar-se, inclusive, muito prxima daquela que determina o seu prprio olhar sobre os

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    retratados. No mesmo sentido, Sandra Koutsoukos aponta que (...) os modelos posaram para Christiano sempre com digni-dade, a eles parece que sempre foi dado um certo grau de con-trole da prpria imagem (...) (2010, p. 128). Ainda, segundo a autora, se a funo das imagens era a de servir como souvenir, hoje elas so, a bem da verdade, documentos histricos.

    Aceitando-se que o produto final objetiva vender o exo-tismo, por outro ngulo de anlise torna-se possvel assimilar que os retratos colocam os escravos no cerne da modernida-de, socializando a imagem das prprias contradies do pas. verdade, tambm, que a fotografia permite que o retratado, mesmo sendo escravo, se posicione dentro do seu prprio gru-po, j que as referidas imagens so expostas nas vitrines dos es-tabelecimentos. Inclusive, um retratado pode ter funcionado como mediador da contratao de outros modelos.

    A explorao da vertente do pitoresco no teve incio com a modalidade fotogrfica, mas j existia, tradicionalmente, nos desenhos, litogravuras e aquarelas, denotando explcitas fina-lidades comerciais. Independente do fato de a fotografia ter aderido a esse padro mercadolgico, a projeo e circulao das referidas imagens assumiu vrias outras funes, prestan-do-se a novas nuances de interpretao.

    Outra diferenciao necessria a que deve ser feita e que, a nosso ver, pode promover interpretaes equivocadas. Esta-mos nos referindo confuso entre a confeco desses retratos e aqueles voltados aos estudos antropomtricos, servindo a te-ses cientficas. Tais registros no aderem s formas clssicas de elaborao do retrato, possuindo padres prprios de produ-o. Neles, a cabea do modelo retratada sempre em duas po-sies distintas: de frente ou de perfil. Na maioria das vezes, os indivduos so retratados sem vestimenta, posicionados de p e com os braos pendentes ao lado do corpo. O que se pretende que o registro fotogrfico do corpo humano resulte em dados fotomtricos extremamente claros, que permitam a obteno de informaes confiveis e passveis de comparao. O fato que as imagens feitas por Christiano no tem a funo de con-trole, antes, so releituras da vida nas ruas do Rio de Janeiro.

    Pouco depois de fazer tais registros, por recomendao mdica, em 1866, Christiano Jr. deixa o Rio de Janeiro, seguin-do rumo ao Sul; fixou-se por pouco tempo em Santa Catarina, na cidade de Desterro e em Mercedes, no Uruguai. Contudo, seu objetivo era Buenos Aires, onde no ano de 1867 ele se ins-tala Rua Florida 159. Na ocasio o jornal La Tribuna, em 20 de outubro de 1867, anuncia a sua chegada cidade. Interes-

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    sante o fato de o estabelecimento Christiano Jnior & Pache-co se manter em atividade, mesmo com a sada de Christiano do pas, o que pode significar a manuteno da sociedade. No ano de 1872, quando sabemos que ele j no atua no Rio de Ja-neiro, o Almanak Laemmert anuncia o ateli, como podemos ver na figura 12.

    Na capital da Argentina o fotgrafo inicia uma macia produo de retratos. Estima-se que foram produzidos por ele mais de 4.000 retratos, entre 1873 e 1875. Como prova de seu sucesso, temos o fato dele ter inaugurado outro ateli, de-sta feita, voltado ao pblico infantil. Denominado Fotografia de La infncia, a casa , segundo anncio publicado no jornal La Prensa, de 04 de fevereiro de 1875, possuidora de mquinas instantneas que permiten sacar retratos de criaturas inquietas y traviesas (ABEL; PRIANO, 2002, p. 23). O Fotografia de La In-fncia destrudo por um incndio, em maro de 1875. Porm, foi reaberto logo depois, Rua Victoria 296, agora dirigido pelo filho, Jose Virgilio, que anteriormente havia sido seu ajudante.

    Ainda no ano de 1875, Christiano torna-se fotgrafo oficial da Sociedade Rural Argentina e realiza sua primeira exposio pela entidade, da qual se desliga em 1878. Aos poucos Chris-tiano amadurece a ideia de confeccionar um lbum de vistas e, em 1876, lana o primeiro volume da coleo intitulada Al-bum de Vistas y Costumbres de La Argentina. Composto por 16 imagens da cidade de Buenos Aires, o lbum possui textos explicativos em quatro idiomas.

    No ano de 1877 sai o segundo volume, contando com doze retratos de tipos populares urbanos e com vistas de constru-

    Figura 12 Reproduo do Almamak

    Laemmert 1872, Notabilidades p. 53

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    es modernas e histricas. No ano de 1878, seu estdio ven-dido para Witcomb & Mackern, exatamente quando ele estava vivendo seu melhor momento. A opo em largar o ateli motivada pelo desejo de continuar a srie de lbuns de Vistas e Costumes da Repblica Argentina. O fotgrafo, agora, se ati-ra numa fantstica peregrinao pelas mais variadas regies do pas, entre os anos de 1879 e 1883. Passa pelas cidades de Rosrio, Crdoba, Ro Cuarto, Mendoza, San Juan, San Luis, Catamarca, Tucumn, Salta e Jujuy.

    Antes de chegar s cidades, anuncia nos jornais locais que ali prestar seus servios. Monta seu estdio associado a um fotgrafo local e, em alguns casos, acompanhado de seu filho. Uma vez instalado na localidade, d incio ao trabalho no ate-li e, paralelamente, desenvolve seu projeto maior: os lbuns de vistas. Sua andana feita sobre vrias mulas, que levam uma parafernlia em equipamentos. Seu trajeto e alguns deta-lhes dessas suas viagens podem ser constatados pelos jornais das cidades por onde passa (ABEL; PRIANO, 2002, p. 32-36).

    As dificuldades financeiras para tocar um projeto to com-plexo obrigam-no a pedir ajuda nas provncias que visita, onde, infelizmente, nem sempre atendido. Desta forma, as dificulda-des financeiras atrapalham seus planos. Sua obstinao e paixo pela fotografia no so suficientes para a concluso do trabalho.

    Christiano Jnior vem a falecer, aos 70 anos de idade, no dia 19 de novembro de 1902, em Assuno, Paraguai. A revista portenha Caras y Caretas publica uma nota, na qual infor-ma que ele passou seus ltimos tempos pintando fotografias. Quando faleceu, esse homem que a tantos emprestou seus olhos estava praticamente sem nenhuma viso. As imagens deixadas no Brasil por Christiano Jnior testemunham a pe-culiaridade de seu modo de ver e, sem dvida, constituem-se na referncia incontornvel para a reflexo a respeito da hist-ria social do nosso pas.

    Referncias

    ABEL, Alexander; PRIAMO, Luis. Recordando a Christiano. Un Pas en Transicin Fotografas de Buenos Aires, Cuyo y el Noroeste. Christiano Jnior 1867 1883. Buenos Aires: Edi-ciones Fundacin Antorchas, 2002.

    ALENCASTRO, Luis Felipe (org.). A Histria da vida privada no Brasil Volume II. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (org). Es-

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    cravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988.

    CUNHA, Manuela Carneiro da. Olhar Escravo, Ser Escravo, In: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christia-no Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988.

    DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil Vol 1. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1975.

    ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do sculo XIX. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004.

    FABRIS, Annateresa. Fotografia usos e funes no sculo XIX. So Paulo: Edusp, 1991.

    FREUND, Gisle. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Dom Quixo-te, 1986.

    GRAHAM, Sandra Lauderdale. House and street. The domes-tic world of servents and masters in nineteenth-century- Rio de Janeiro. New York: Cambridge University Press, 1988.

    GORENDER, Jacob. A face escrava da Corte Imperial, In AZE-VEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escra-vos brasileiros do sculo XIX na fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988.

    KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro; 1808-1850. So Paulo: Cia. das Letras, 2000.

    KOSSOY, Boris. Realidades e Fices na Trama Fotogrfica. So Paulo: Ateli Editorial, 1999.

    KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estdio do fotgrafo. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

    LAGO, Bia Corra do; LAGO, Pedro Corra do. Os fotgrafos do Imprio. Rio de Janeiro: Capivara, 2005.

    LEMOS, Carlos. A ambientao ilusria, In MOURA, C. E. Marcondes de (Org). Retratos Quase Inocentes. So Paulo: Nobel, 1983.

    VASQUEZ, Pedro Karp. A Fotografia no Imprio. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 2002.

    NotaS1. Com a pretenso de conhecer melhor o perfil de Christiano Jnior, estive-mos, em novembro de 2004, no Archivo General de La Nacin, em Buenos Aires; na visita pudemos conhecer a produo dele no referido pas. Tal aproximao, a nosso ver, confirmou o vis etnogrfico do seu trabalho e sua busca em conhecer a cultura das sociedades na qual ele vive.

    Recebido em: 31/03/11Aceito em: 31/05/11

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    Marcelo Eduardo Leite. Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr

    Marcelo eduardo [email protected] com formao interdisciplinar, bacharel em Cincias Sociais pela UNESP e doutor em Multimeios pela UNICAMP. Atualmente Professor adjunto I de Fotografia e Fotojornalismo na Universidade Federal do Cear, Campus Cariri.