fröbel - pestalozzi - gambi

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A PEDAGOGIA ROMÂNTICA DE PESTALOZZI A FRÖBEL 1 O século XIX abre-se com uma grande "revolução cultural", herdeira das vozes mais heréticas do iluminismo (de Rousseau a Kant, de Herder a Jacobi em filosofia, só para exemplificar), bem como do espírito da Revolução Francesa (ligado à idéia de liberdade), mas que se contrapõe nitidamente a muita cultura setecentista pela sua referência ao indivíduo e ao sentimento, à história e à nação, à tradição e ao irracional, contra o predomínio da "crítica" e da "razão". A nova forma cultural - que abrangeu literatura e filosofia, ciência e arte, política e historiografia, música e costumes, acendendo amplos debates e operando uma transformação radical do gosto – qualificou-se como "romântica", remetendo às tradições da Europa cristã medieval e exaltando os estados d'alma indefinidos e conflituosos como geradores da nova cultura (como o Streben, a pura tendência para, ou o rêve, o sonho), produzindo assim um estilo de pensamento, em todo setor cultural, caracterizado por fortes tensões ideais, por uma igualmente forte consciência histórica, por uma nítida oposição aos aspectos menos "nobres" do processo de modernização (a industrialização e a democracia, o tecnicismo e a massificação) para exaltar, ao contrário, os valores do sentimento, da pertença a uma estirpe, da transcendência religiosa que ilumina e resolve o 1 Texto extraído de: GAMBI, Gambi. História da Pedagogia. 701 p. SP, ed. UNESP, 1999. pp. 414-436. Seleção, digitação, diagramação e impressão de José Lino Hack. Pelotas, FaE/UFPel, março de 2003. mistério da existência, sempre dramática e lacerada, sempre ameaçada pela morte. Tal revolução cultural teve seu epicentro na Alemanha, onde a oposição ao iluminismo foi mais radical e onde os novos temas do romantismo se desenvolveram em todo campo com mais força e com maior organicidade. Entre o Sturm und Drang e a Naturphilosophie, entre o idealismo transcendente de Fichte, Schelling e Hegel e o idealismo mágico de Novalis, entre a estética romântica dos Schlegel e de Wacheuroder e as pesquisas sobre o nacional-popular dos irmãos Grimm, até o pessimismo filosófico de Schopenhauer e a hermenêutica religiosa de Schleiermacher, até o nacionalismo heróico do jovem Wagner - embora com alguma resistência: exemplar, em filosofia, a do realismo de Herbart -, veio se delineando um amplíssimo movimento cultural que abrangeu depois toda a Europa e produziu, nas diversas áreas nacionais, uma retomada/variação dos temas alemães, ligados a uma cultura fortemente espiritualista, tradicionalista e liberal ao mesmo tempo, atenta aos temas do conflito, do trágico, do heróico, assim como aos da nação, do povo e da história. O romantismo foi um evento realmente europeu e influenciou em profundidade cada âmbito da cultura: até a pedagogia. No âmbito da pedagogia, o período romântico produziu uma profunda renovação teórica - sobretudo teórica - que ativou, por um lado, uma nova idéia de formação (como Bildung, como desenvolvimento espiritual através da cultura) ligada a uma nova concepção do espírito humano (posto como centro do mundo, como presença ativa, através de múltiplos itinerários da cultura e em luta contra aquele mundo natural, e histórico em que está imerso e que deve tender a dominar), mas também da cultura e da história (vistas não como entremeadas de 1

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A PEDAGOGIA ROMÂNTICA DE PESTALOZZI A FRÖBEL 1

O século XIX abre-se com uma grande "revolução cultural", herdeira das vozes mais heréticas do iluminismo (de Rousseau a Kant, de Herder a Jacobi em filosofia, só para exemplificar), bem como do espírito da Revolução Francesa (ligado à idéia de liberdade), mas que se contrapõe nitidamente a muita cultura setecentista pela sua referência ao indivíduo e ao sentimento, à história e à nação, à tradição e ao irracional, contra o predomínio da "crítica" e da "razão". A nova forma cultural - que abrangeu literatura e filosofia, ciência e arte, política e historiografia, música e costumes, acendendo amplos debates e operando uma transformação radical do gosto – qualificou-se como "romântica", remetendo às tradições da Europa cristã medieval e exaltando os estados d'alma indefinidos e conflituosos como geradores da nova cultura (como o Streben, a pura tendência para, ou o rêve, o sonho), produzindo assim um estilo de pensamento, em todo setor cultural, caracterizado por fortes tensões ideais, por uma igualmente forte consciência histórica, por uma nítida oposição aos aspectos menos "nobres" do processo de modernização (a industrialização e a democracia, o tecnicismo e a massificação) para exaltar, ao contrário, os valores do sentimento, da pertença a uma estirpe, da transcendência religiosa que ilumina e resolve o mistério da existência, sempre dramática e lacerada, sempre ameaçada pela morte.

Tal revolução cultural teve seu epicentro na Alemanha, onde a oposição ao iluminismo foi mais radical e onde os novos temas do romantismo se desenvolveram em todo campo com mais força e com maior organicidade. Entre o Sturm und Drang e a Naturphilosophie, entre o idealismo transcendente de Fichte, Schelling e Hegel e o idealismo mágico de Novalis, entre a estética romântica dos Schlegel e de Wacheuroder e as pesquisas sobre o nacional-popular dos irmãos Grimm, até o pessimismo filosófico de Schopenhauer e a hermenêutica religiosa de Schleiermacher, até o nacionalismo heróico do jovem Wagner - embora com alguma resistência: exemplar, em filosofia, a do realismo de Herbart -, veio se delineando um amplíssimo movimento cultural que abrangeu depois toda a Europa e produziu, nas diversas áreas nacionais, uma retomada/variação dos temas alemães, ligados a uma cultura fortemente espiritualista,

1 Texto extraído de: GAMBI, Gambi. História da Pedagogia. 701 p. SP, ed. UNESP, 1999. pp. 414-436. Seleção, digitação, diagramação e impressão de José Lino Hack. Pelotas, FaE/UFPel, março de 2003.

tradicionalista e liberal ao mesmo tempo, atenta aos temas do conflito, do trágico, do heróico, assim como aos da nação, do povo e da história. O romantismo foi um evento realmente europeu e influenciou em profundidade cada âmbito da cultura: até a pedagogia.

No âmbito da pedagogia, o período romântico produziu uma profunda renovação teórica - sobretudo teórica - que ativou, por um lado, uma nova idéia de formação (como Bildung, como desenvolvimento espiritual através da cultura) ligada a uma nova concepção do espírito humano (posto como centro do mundo, como presença ativa, através de múltiplos itinerários da cultura e em luta contra aquele mundo natural, e histórico em que está imerso e que deve tender a dominar), mas também da cultura e da história (vistas não como entremeadas de erros, mas valorizadas em todos os seus aspectos); por outro, uma reafirmação da educação, da relação educativa, da escola e da família como momentos centrais de toda formação humana e que devem ser assumidos em toda a sua - complexa - problematicidade formativa, relativa - justamente - a uma formação do espírito. Todas as grandes pedagogias do romantismo, especialmente alemão, se dispõem sobre essas duas frentes, entrelaçam esses dois motivos, seja com o grande mestre da pedagogia romântica Pestalozzi - que revive em primeira pessoa o drama da educação (os projetos, as dificuldades, as derrotas), reativa uma noção espiritual de educação (animada pelo amor) mas também se engaja nas problemáticas sociais e políticas da própria educação, construindo um modelo complexo e problemático, inquieto e agudíssimo de pedagogia -, seja com o Sturm und Drang de Schiller e o neo-humanismo de Goethe e de von Humboldt, seja com Hegel, com Richter ou com Fröbel (figuras magistrais que animam a vanguarda da pedagogia alemã entrelaçando-se e opondo-se, mas fazendo assim nascer um novo modelo de pedagogia impregnada dos postulados da filosofia romântica) e até com o anti-idealista Herbart, nutrido de espírito kantiano e atento intérprete das dinâmicas espirituais da educação.

A pedagogia alemã - como a filosofia, a literatura, a música etc. - também fez escola na Europa; seus temas - e seus autores - circularam largamente nos outros países: sobretudo a teoria da educação escolar teorizada por Pestalozzi em Yverdon, que teve "sucesso nos meios anglo-saxões e protestantes, ou seja, em toda a Europa setentrional, desde a Inglaterra até a Holanda, a Escandinávia e a Prússia" (Bowen); o modelo dos jardins-de-infância elaborado por Fröbel, que teve difusão em toda a Europa, também na Itália, até o fim do século XIX, e nos Estados Unidos; a abordagem de Herbart sobre a pedagogia, a educação e a escola, que foi uma voz presente em nível mundial durante toda a segunda metade do século XIX, e até mais tarde. Com o romantismo pedagógico alemão

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estamos diante de uma fase intensamente criativa da pedagogia moderna, que fez amadurecer uma nova consciência epistemológica do saber educativo (reconhecendo-o como situado entre filosofia e ciência e colocado problematicamente no seu ponto de intersecção), uma nova consciência educativa (social e histórica, ligada às necessidades do povo e aos objetivos da nação e/ou do Estado, mas também relativa ao "comportamento educativo e docente", capaz de agir para a liberdade do aluno, harmonizando autoridade e liberdade, nutrindo-se de conhecimento psicológico e de "amor penseroso") e uma imagem igualmente nova dos dois maiores agentes educativos: a família, que deve reorganizar-se em torno de seu próprio papel educativo - pense-se em Pestalozzi -, e a escola, que deve tornar-se escola de todos e para todos, capaz de formar ao mesmo tempo o homem e o cidadão, organizada segundo perfis - profissionais e educativos - diferentes, mas justamente por isso capaz de agir em profundidade no tecido social.

No cruzamento entre posições setecentistas (a idéia da educação da humanidade; o governo iluminado; a adesão aos ideais revolucionários, embora condenando o extremismo) e comportamentos românticos (a atenção ao povo; a visão orgânica da sociedade; o papel do sentimento e a referência à formação espiritual) coloca-se a figura de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827). Nascido em Zurique, filho de um pastor protestante de origem italiana, estudou na cidade natal e participou do movimento pela independência suíça. Foi influenciado - na fase juvenil - pelo pensamento de Rousseau e por alguns aspectos do movimento romântico (em particular, a exaltação da imaginação). Em 1767, inicia sua atividade de empresário-educador em Neuhof (nova feitoria), onde se interessa pelos problemas da população agrícola, com iniciativas de educação profissional. Em 1770, nasce o filho Jean Jacques, e a partir de 1774, acolhe em Neuhof rapazes órfãos, para educá-los através de leitura, escrita, cálculo e trabalho. Em 1781, publica a sua primeira obra pedagógica de longo fôlego, o romance Leonardo e Gertrude, precedido dos aforismas de Os serões de una solitário, em 1780. O pensamento pedagógico juvenil de Pestalozzi é orientado pelos princípios rousseaumanos da educação segundo a natureza, da educação familiar e da finalidade ética da educação. A seqüência do romance, publicada em 1783, 1785 e 1787, ampliou a fama de Pestalozzi na Europa. Interrompendo em 1779 a experiência de Neuhof, até 1797 dedicou-se à pesquisa teórica, marcada por desânimo e pessimismo, alimentados também pela derrota da revolução na França. Em 1798, dirige o Jornal do Povo Suíço, no qual difunde suas idéias pedagógicas. Enquanto isso, ia também enriquecendo sua cultura política e pedagógica, pelo contato com Fichte, que encontra em 1793, do qual exalta as afinidades com seu

próprio pensamento e a referência comum a Kant, que Pestalozzi coloca de certo modo no centro do seu trabalho de 1797: Minhas pesquisas sobre o curso da natureza no desenvolvimento do gênero humano. Em 1798, dirige também um instituto para órfãos em Stans, organizado como uma família e destinado a educar intelectual e moralmente os rapazes afiliados. Aqui, Pestalozzi desenvolve os princípios fundamentais do seu ensino: o método intuitivo e o ensino mútuo. Interrompida a experiência em Stans, ele a continua em Burgdorf, com sucesso, fazendo seu instituto tornar-se uma meta européia das "viagens pedagógicas" de estudiosos e de políticos. Mas é em 1805, em Yverdon, no cantão de Vaud, que Pestalozzi organiza o seu método educativo na forma mais completa: o seu instituto internacionaliza-se e terá visitantes excepcionais (Fröbel, Madame de Staël); o seu pensamento pedagógico está agora maduro. A sua experiência, ademais, coloca-se como modelo educativo para toda a Suíça. Mas as dificuldades internas e externas afetarão profundamente essa experiência educativa, tanto que o próprio Pestalozzi a encerrará em 1825. Completa, ainda - em 1826 -, duas obras autobiográficas: 0 canto do cisne e Destinos da minha vida. Morre em Brugg, em 1827.

No centro do pensamento pedagógico de Pestalozzi colocam-se três teorias: 1. a da educação como processo que deve seguir a natureza, retomada de Rousseau, segundo a qual o homem é bom e deve ser apenas assistido no seu desenvolvimento, de modo a liberar todas as suas capacidades morais e intelectuais. Isso significa que a educação deve desenvolver - harmonicamente - todo o homem, pondo ênfase sobre a "unidade das faculdades", embora sublinhe que, na fase da maturidade, existe na natureza humana "preguiça", "ignorância", "ganância" e "leviandade" que só a educação pode ajudar a superar, como educação positiva e não apenas negativa; segundo Pestalozzi - como também para Rousseau -, a criança já tem em si todas as "faculdades da natureza humana": "ela é como um botão que ainda não se abriu", mas "quando se abre cada pétala se expande e nenhuma permanece no seu interior", e assim "deve ser o processo da educação"; 2. a da formação espiritual do homem como unidade de "coração", "mente" e "mão" (ou "arte"), que deve ser desenvolvida por meio da educação moral, intelectual e profissional, estreitamente ligadas entre si; a formação do homem é um processo complexo que se efetua em torno da Anschaung, entendida como "observação intuitiva da natureza", que promove o desenvolvimento intelectual, o qual por sua vez promove um desenvolvimento moral, de modo a produzir no sujeito "um sentimento de harmonia tanto com o mundo exterior quanto com o interior", que realiza a "elevação do homem à autêntica dignidade de ser espiritual", como escreve ele numa carta de 1818; a formação moral - em Pestalozzi - delineia-se em termos cada vez

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mais nitidamente kantianos: como submissão a um imperativo interior que a disciplina também permite realizar, despertar e desenvolver; 3. a da instrução, à qual Pestalozzi dedicou a mais ampla atenção e que desenvolveu particularmente em Como Gertrude instrui seus filhos, de 1801, segundo a qual, no ensino, é necessário sempre partir da intuição, do contato direto com as diversas experiên-cias que cada aluno deve concretamente realizar no próprio meio. Sem "fundamento intuitivo", toda "verdade", para os rapazes, é apenas "um jogo tedioso" e "inadequado às suas capacidades"; partindo da intuição, Pestalozzi desenvolve uma educação elementar que parte dos "elementos" da realidade, tanto no ensino lingüístico como no matemático, analizando-os segundo o "número", a "forma" e a "linguagem"; essa didática da intuição segue as próprias leis da psicologia, a infantil em particular, que "procede gradativamente da intuição de simples objetos para a sua denominação e desta para a determinação das suas propriedades, isto é, a capacidade da sua descrição e desta para a capacidade de formar-se um conceito claro, isto é, de defini-los".

Ao lado dessas teorias pedagógicas e didáticas, porém, o pensamento de Pestalozzi desenvolve também uma precisa reflexão sócio-política que está estreitamente relacionada com a sua elaboração pedagógica e interagindo com ela. Ele critica a ordem social do seu tempo (despótica em política, conflituosa e confusa em economia) e, colocando-se do lado do povo, pede reformas em direção de uma verdadeira liberdade e igualdade (como queria a Revolução Francesa, que depois traiu esse princípio) para fundar uma "sociedade ideal" que tenha as características da comunidade (modelada sobre a família) e na qual vigorem fortes princípios éticos destinados a "nobilitar a humanidade". Um Estado que garantia a autonomia civil e a liberdade e que tendia a realizar uma igualdade da propriedade tinha existido na Suíça do século XV. Nesse horizonte fortemente rousseauniano insere-se como fator-chave a educação: todo homem deve ser eticamente aperfeiçoado para agir como cidadão e tal aperfeiçoamento é obra, sobretudo, da educação e não apenas da natureza. E de uma educação que conjugue a formação da humanidade de todo homem à consciência nacional, ao patriotismo que deve realizar "a unificação das virtudes bélicas com as da paz".

Escreveu Bowen: "À época da sua morte, Pestalozzi era a mais importante personalidade européia no âmbito educativo"; encarnava as idéias de Rousseau e a sua fama superava a de Fichte; tinha efetuado uma "revolução prática" paralela à de Rousseau, mas sobretudo tinha revivido, como educador, os problemas da pedagogia tal como se punham nos albores da sociedade contemporânea (industrial e de massa) e os tinha enfrentado à luz de uma teoria pedagógica talvez não muito rigorosa

nem orgânica, mas alimentada pelos grandes princípios da cultura romântica e iluminada por uma nítida e forte concepção da educação como formação humana, ao mesmo tempo espiritual e sociopolítica. A grandeza de Pestalozzi reside na experimentação educativa constantemente retomada e aprofundada, e também na precisa finalidade antropológica e política que reconhece para a atividade educativa e a reflexão pedagógica. Podemos dizer que Pestalozzi, melhor que Rousseau, colhe a pedagogia e a educação em toda a sua problematicidade, e também na sua centralidade e densidade históricas. E por isso continua a ser um dos grandes mestres da pedagogia contemporânea.

A pedagogia mais propriamente romântica acha-se exposta nas posições de Schiller, de Goethe e de von Humboldt, de Fichte e de Schleiermacher, de Fröbel e de Richter, enquanto numa dimensão mais crítica se dispõe o pensamento educativo de Hegel e, numa dimensão de nítida alteridade, a grande lição pedagógica de Herbart.

É com Friedrich Frõbel (1782-1852) que a pedagogia romântica atinge o seu ápice: "Fröbel é o pedagogo do romantismo. O mundo inteiro para ele é a imagem sensível do devenir do espírito humano. Na sua concepção, as idéias de Rousseau e de Pestalozzi nascem para uma nova vida", impregnando-se da filosofia romântica (Blättner). Nascido em Turíngia, formou-se em Iena onde, a partir de 1799, seguiu cursos de filosofia, matemática etc., sofrendo a influência de Schelling e da sua filosofia da natureza. De Schelling ele retira o princípio de que "tudo é unidade", segundo o qual por ela tudo se move e a ela retorna. Em 1805, faz a sua iniciação de educador em Yverdon junto a Pestalozzi, destacando a fragilidade do método do pedagogo suíço para a primeira infância. Estuda depois ciências naturais e lingüística em Göttingen e Berlim e, em 1817, funda em Keilhau um Instituto de Educação Alemão Universal; fechado o instituto pela oposição dos reacionários, publica, em 1826, sua obra principal, A educação do homem, na qual desenvolve originalmente temas de Rousseau, Pestalozzi e Richter. Sucessivamente, faz obra de propaganda para a formação pedagógica de docentes e pais e, em 1839, abre em Blaukenburg o "jardim-de-infância", que será a realização mais alta da sua obra de educador. Em 1844, publica Cantos maternos e carícias, um guia para as mães e professoras do jardim. Morre em Marienthal, na Saxônia, onde tinha também fundado um jardim-de-infância.

Três aspectos devem ser sublinhados no pensamento educativo de Fröbel: 1. a concepção da infância; 2. a organização dos Jardins-de-infância" (Kindergarten), bem diferentes dos "abrigos-de-infância" difundidos na Europa da Restauração; 3. a didática para a primeira

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infância, que constitui o "coração" do método fröbeliano e que tanta difusão teve na práxis escolar do século XIX. Quanto à concepção da infância, Fröbel parte de um pressuposto religioso, que vê Deus imanentemente presente e coincidente com a natureza, mas também transcendente a ela como sua unidade e seu centro motor. Com base em tal pressuposto - que ele define como "cristão" -, a natureza é sempre boa e o é enquanto partícipe da obra divina. E o é de maneira mais nítida quando se subtrai às manifestações da sociedade, quando é mais genuína e espontânea, como na criança. Se na infância está depositada a voz de Deus, a educação deve apenas deixá-la se desenvolver, agindo de modo que se reconheça como "o divino, o espiritual, o eterno", por meio de uma comunicação profunda com a natureza e a constituição de uma harmonia entre o eu e o mundo. É necessário, portanto, reforçar na criança a sua capacidade criativa, a sua vontade de mergulhar no mundo-natureza, de conhecê-lo, dominá-lo, participando da sua atividade criativa com o sentimento e pela arte (com cores, ritmos, sons, figuras etc.). Assim, a atividade específica da criança é o jogo, que é também "o mais alto grau do desenvolvimento do espírito humano" e, já na infância, é uma atividade "séria", como dizia Richter, mesmo se depois, longe da primeira infância, o jogo seja substituído pelo trabalho, que tem, porém - na infância -, profundas conexões com o jogo e deve encontrar espaço na escola.

Os "jardins-de-infância" são locais não só de recolhimento de crianças (abrigos), mas também espaços aparelhados para o jogo e o trabalho infantil, para as atividades de grupo (canto), organizados por uma professora especializada que orienta as atividades, sem que estas jamais assumam uma forma orgânica e programática, como ocorre nas escolas. No jardim, é a "intuição das coisas" que é colocada no centro da atividade, é o jogo que predomina. No jardim, existem canteiros e áreas verdes, de modo a estimular as mais variadas atividades na criança, sob a orientação do educador.

O método fröbeliano, além de invocar a importância do jogo e do canto, da atividade lúdico-estética como central na organização do trabalho dos jardins, desenvolve também uma teoria dos "dados", que foi o aspecto mais criticado do fröbelianismo, pelo seu caráter apriorístico, artificioso e matematizante, portanto abstrato. Os "dados" são uma espécie de material didático, constituído de objetos geométricos; estes devem iniciar a criança na compreensão da essência da natureza, sendo dotados de valor simbólico além de didático. Podem ser usados de múltiplas maneiras, mas ao mesmo tempo iniciam a uma leitura "filosófica" (simbólica) do mundo, referindo-se à unidade, ao dinamismo etc., e fixando na mente infantil estes princípios. Brincando com os "dados", compondo-os e decompondo-os, a criança apreende as formas elementares do real,

além de exprimir a própria atividade criadora. Os "dados" são a esfera (símbolo da unidade e do movimento); um cubo e um cilindro; um cubo dividido em oito cubinhos; um cubo dividido em 27 tijolinhos; depois, outras figuras geométricas sólidas, de variada composição.

Para além do formalismo dos "dados", a pedagogia fröbeliana fixou uma imagem da infância como idade criativa e fantástica, que deve ser "educada" segundo suas próprias modalidades e que é, talvez, o momento crucial da educação, aquele que lança as sementes da personalidade futura do homem e que, portanto, deve ser enfrentado com forte consciência teórica e viva sensibilidade formativa. Com Fröbel, estamos diante de um pedagogo que, pela primeira vez depois de Rousseau, redefiniu organicamente a imagem da infância e teorizou a da sua "escola".

e 3 AS PEDAGOGIAS DE HEGEL E DE HERBART

Abertamente críticas em relação ao romantismo pedagógico foram as reflexões educativas elaboradas por dois grandes mestres alemães do historicismo - Hegel - e do realismo - Herbart. Em ambos, é central a oposição ao subjetivismo e ao intuicionismo, e a uma concepção da Bildung que desenvolve seus aspectos não-racionalistas e não-científicos, como também a referência a uma formação humana que se entrelace intimamente com a experiência do real, histórico e científico. Embora muitos princípios da educação romântica - a começar da própria Bildung - continuem a operar neles, mas profundamente transformados.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi o primeiro grande filósofo do idealismo alemão. Ele desenvolveu uma concepção do real como razão e como história, reelaborou a visão da dialética (escandindo-a como processo triádico de tese-antítese-síntese e tomando-a como "mola" do real) e interpretou a autoconsciência filosófica como o ponto culminante da história do mundo, como o momento em que ela se torna autotransparente, se compreende conceitualmente e portanto se conclui. O seu historicismo racional foi amadurecendo em contato com uma formação juvenil teológica (no Stift de Tubingen) que tendia a colher sobretudo a "positividade da religião cristã" (isto é, seu papel histórico) e com uma tomada de consciência política em favor da Revolução e da liberdade. Depois de uma temporada em Frankfurt de 1797 a 1800, transfere-se para Jena até 1808 (onde lança as bases de seu pensamento maduro e compõe a sua primeira grande obra, A fenomenologia do espírito, com a qual se opõe nitidamente à cultura do romantismo), depois para Nuremberg. Em 1818, é chamado à Universidade de Berlim, onde seu

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ensino tem enorme sucesso. Entrementes, publicou outras obras importantes: a Ciência da Lógica, em 1816, e a Enciclopédia, no

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ano seguinte. Em Berlim, próximo agora da política conservadora do estado prussiano, elabora os Princípios da Filosofia do Direito (1821) e escreve as suas Lições (de filosofia da história, de história da filosofia, de filosofia da religião, de estética) que concluem o seu riquíssimo sistema filosófico e que serão publicadas postumamente.

Hegel jamais tratou de maneira explícita e exaustiva o problema peda-gógico, embora, na complexa reflexão do filósofo, encontremos uma aten-ção constante para o problema da formação humana (entendida seja como formação do homem em geral, seja como formação do cidadão), além de algumas observações - ainda que menos desenvolvidas e tratadas sobretudo nos anos de Nuremberg (nos quais, como reitor do Ginásio e depois conselheiro escolar, se ocupou dos problemas das várias ordens de escola, da escola confessional, do funcionamento da vida escolar, abordando problemas até bastante minuciosos, como os ligados ao valor educativo da jardinagem e da arte militar, da música e da dança) - de natureza genuinamente didática, referentes sobretudo ao ensino da filosofia.

Em geral, a pedagogia hegeliana caracteriza-se como um "humanismo integral" que interpreta o homem como um desenvolvimento dialético. O desenvolvimento da consciência passa da naturalidade à objetividade do espírito mediante um contato cada vez mais rico e amplo com a realidade histórico-social, que gradativamente se torna uma "segunda natureza" do homem. Em tal processo, o ponto de chegada é constituído pela realização de uma síntese harmônica entre o eu e o mundo histórico, que é atingida pelo empenho da vontade em ligar-se ao plano da ética social, pela participação na vida da cultura (estética e religiosa, jurídica e filosófica) e o reconhecimento do trabalho como atividade específica do homem como gênero. O homem, do qual Hegel traça as formas e as etapas de uma for-mação integral (Bildung), não é mais o indivíduo ético de Kant, dominado pelo imperativo categórico que fala diretamente à consciência, nem o "ho-mem da natureza" rousseauniano que parece contrapor-se à sociedade de maneira abstrata e utópica, mas um homem que só reconhece a si mesmo no vínculo com a realidade histórico-social, entendida no seu mais genuíno significado espiritual, isto é, como cultura e civilização. "O indivíduo sin-gular deve percorrer igualmente, segundo o seu conteúdo, os degraus da

formação do Espírito universal, mas como figuras já abandonadas pelo Espírito, como estágios de um caminho que já foi aberto e aplainado. Ve

HISTORIA DA PEDAGOGIA 429

mos assim, com respeito a conhecimentos que em tempos passados ocu

pavam o espírito amadurecido dos homens, que eles desceram ao nível de

conhecimentos, exercícios e mesmo jogos da idade juvenil, e assim se re

conhecerá no progresso pedagógico, esboçada como numa silhueta, a his

tória da civilização", escreve no prefácio da Fenomenologia do espírito.A Bildung exige que o homem "saia de si" e mergulhe na objetividade

histórica. Assim, alheando-se de si próprio e entranhando-se na realidade, o sujeito humano supera o seu próprio ser natural, o seu próprio imediatismo vital e participa da experiência da humanidade em geral. A arte, a religião, a filosofia são as etapas fundamentais dessa formação que é, sobretudo, uma saída da clausura da consciência e a ascensão para a autoconsciência, que se delineia como conhecimento da profunda unidadeidentidade do eu e do mundo histórico-social. Nessa viagem da individualidade através da cultura, Hegel atribui um papel fundamental à vontade, vista como o instrumento essencial, ao lado da atividade teórica, dessa desnaturação e dessa historicização -socialização do homem. Portanto, o aprendizado deve ser entendido como dura disciplina, como superação do "infeliz prurido" de educar pelo pensar por si e pela produção autônoma.

A atitude profundamente antiespontânea, por assim dizer, de Hegel tende também a valorizar, em particular, a função positiva do hábito, tanto no plano ético quanto no plano cognitivo. O hábito é o mecanismo central da educação, já que sem ele nada pode ser construído e tudo permanece num contínuo "dissipar-se" que corrompe e não forma a consciência do sujeito. A aprendizagem, mediante o empenho voluntário e o hábito, deve estar voltada para os vários conteúdos da cultura, dispostos em ordem sistemática, pelo menos no que diz respeito à última etapa da formação cultural representada pela filosofa, que Hegel tratou de modo mais específico e exaustivo, ainda que, para os graus inferiores da instrução, ele reconheça a validade de uma aprendizagem mais estreitamente vinculada ao sensível e à experiência imediata. Nas três classes superiores, a filosofia se articula em estudo do direito, da moral, da

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religião (primeira classe), da lógica e da psicologia (segunda e terceira classes) e, enfim, (quarta classe) da enciclopédia filosófica, pondo assim em destaque a exigência de concretitude histórica e empírica que deve distingui-Ia.

Simultaneamente, porém, o homem se forma também pela participação na vida social, pelas várias instituições nas quais está inserido o seu pro-

430 FRANCO CAMBIHISTÓRIA DA PEDAGOGIA 431cesso formativo. Família, escola, sociedade civil e Estado são os

momentos essenciais desse crescimento individual orientado para uma ligação cada vez mais ampla com a vida da coletividade. As várias instituições "educativas" são, de certo modo, os graus de desenvolvimento da ética do indivíduo, ou seja, da sua capacidade de participar intimamente da "atmosfera do seu povo", e as etapas da formação do cidadão. Já a família tem como tarefa libertar o sujeito humano da sua própria naturalidade e inseri-lo numa nova trama de relações e de normas, especificamente humanas e sociais. O papel da escola é, ao mesmo tempo, social e intelectual. Essa é "a esfera intermediária que guia o homem do círculo da família para o mundo, das relações naturais da sensibilidade e da inclinação para o elemento da objetividade substancial". Na escola o indivíduo é iniciado para a posse do patrimônio da cultura e a sua própria experiência vai se tornando mais universal. Pela vida escolar, o indivíduo entra na sociedade civil, caracterizada em grande parte pelas relações econômicas e da qual o sujeito humano participa pelo trabalho. Nele, tem lugar uma "educação prática" que nasce do "hábito da ocupação em geral", da "limitação do próprio fazer" e que se articula como "disciplina de atividade objetiva e de atitudes válidas universalmente". Na sociedade civil, o sujeito participa também das normas jurídicas, que se tornam a forma substancial da sua ética, e das crenças religiosas, que o vinculam à vida de todo um povo. Por meio do vínculo com a vida do povo vista como "um mundo já pronto e válido, que ele deve assimilar", o indivíduo entra na história, isto é, na vida da comunidade. Tal comunidade se concretiza, porém, na realidade do Estado, enquanto este interpreta o elemento universal da consciência subjetiva e o articula numa vida unitária e comum, e como tal representa o ponto de chegada da libertação do homem e da formação da sua consciência especificamente humana.

A nova paidéia hegeliana ressente-se profundamente das concepções antropológicas e educativas do neo-humanismo alemão de Schiller e Goethe. O ideal de um homem integralmente formado e caracterizado pela harmonia entre natureza e razão, a própria noção de Bildung, entendida como formação humana por meio do contato com a cultura, a própria valorização do jogo, que Hegel também reconhece como uma

característica fundamental do homem-criança, são elementos que provêm

das posições do neo-humanismo. Embora no filósofo de Stuttgart se tenha uma maior acentuação do aspecto histórico-social da formação humana, além de uma desvalorização do momento estético em relação

aoda pura reflexão como elemento fundamental para operar um novo

equilíbrio no sujeito humano, as dívidas de Hegel para com o Stunii und Drang pedagógico permanecem constantes e centrais.

Johann Friedrich Herbart (1776-1841) forma-se pelas obras de Wolff e de Kant, embora em Iena - a partir de 1794 - siga os cursos de Fichte. O seu pensamento terá desde o início unia conotação explicitamente anti-romântica. Leciona em Göttingen, depois, de 1809 a 1833, em Königsberg, depois de novo em Göttingen. Já desde os primeiros anos do século XIX, elaborou um sistema filosófico inspirado no realismo e alimentado pelo pensamento de Kant (pelo criticismo e pelo dualismo entre fenômeno e númeno) e de Leibniz (sobre cujo modelo das mônadas teoriza os "reais", isto é, as diversas realidades objetivas imutáveis, das quais o conhecimento deve inteirar-se). Para Herbart, como para Kant, a filosofia é "elaboração de conceitos" e fundação de uma metafísica crítica realística. Aspectos importantes do pensamento filosófico de Herbart são também a psicologia, indagada mediante o método matemático-mecânico, a ética e a estética, que dizem respeito aos Juízos estimativos" que são animados por cinco ideais (da liberdade, da perfeição, da benevolência, do direito e da eqüidade). Psicologia e ética remetem depois diretamente à pedagogia e aos processos de formação humana que ela ilumina e projeta.

O pensamento filosófico de Herbart está contido, em particular, na Filosofia prática geral (de 1807), na Psicologia como ciência f fundamental sobre a experiência (1824-1825), na Metafísica geral (1828-1829); o pedagógico nas obras Sobre a representação estética como tarefa fundamental da educação (1806), Pedagogia geral (1806) e Esboço de lições de pedagogia (1835).

Com Herbart emerge, com plena clareza, um empenho da pedagogia de constituir-se como "ciência", ainda que como ciência filosófica, e por-tanto o início de uma pesquisa epistemológica em pedagogia. O outro

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caráter fundamental dessa concepção educativa está ligado ao profundo humanismo que a inspira. O objetivo final da pedagogia permanece o de formar o homem e formá-lo como totalidade harmônica e como pessoa

responsável, mostrando a importância do "caráter" no âmbito da educação

moral e da educação estética.Na base da construção pedagógica de Herbart encontra-se uma precisa tomada de posição em relação às várias correntes da pedagogia

mo-

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derna: de Locke a Rousseau, dos idealistas pós-kantianos a Pestalozzi, os vários protagonistas do pensamento pedagógico de todo um século (e além) são enfrentados nas páginas herbartianas. Locke, segundo Herbart, limitou-se na sua teoria pedagógica ao "convencional", vinculando os pro-cessos educativos aos objetivos imediatos de uma sociedade e perpetuan-do assim "os males presentes". Rousseau postulou uma "natureza" boa na criança que o levou, no seu romance-tratado, a dois paradoxos: de equiparar o educador ao educando, fazendo do primeiro o protagonista da educação, e de educar uma criança anti-social, que deverá porém viver em sociedade e "numa sociedade muito diferente dele". Os idealistas afirmaram a existência de uma liberdade transcendental, com a qual vêm porém negar todo processo educativo verdadeiro, enquanto eliminam seu caráter de "tarefa" e de "esforço". Pestalozzi, entretanto, é de certo modo o pedagogo a quem Herbart considera como um guia. Ele elaborou uma concepção mais realista da infância e desenvolveu uma reflexão orgânica no terreno da dialética, reconduzindo a pedagogia à sua tarefa de "téc-nica", embora não tenha dado uma forma rigorosa ao seu pensamento.

A pedagogia para Herbart deve, porém, realizar-se como ciência e ter "força de pensamento" e pode fazer isso pondo-se "a refletir com a maior precisão possível sobre os conceitos que lhe são próprios" assim como cultivando "um pensamento independente". Ela é ciência filosófica que tem como objeto e fim "o governo das crianças" e foi sendo elaborada pela colaboração da psicologia e da ética, que resultam como os elementos estruturais e caracterizantes do seu aspecto científico enquanto definem rigorosamente seus "meios" e seus "fins". A cientificidade pedagógica, porém, não é redutível à das ciências naturais, já que, por versar sobre o

homem, ela se liga intimamente à reflexão filosófica, especialmente à "filosofa prática" da qual é o prolongamento e o coroamento. A da pedagogia é uma cientificidade filosófica que conjuga teoria e prática, "ciência" e "arte", e põe a pedagogia num lugar específico e eminente entre as várias ciências (psicologia, ética, metafísica etc.) enquanto cons-titui sua síntese final.

A psicologia em Herbart caracteriza-se como uma pesquisa experi-mental, que usa modelos explicativos de tipo mecânico e matemático e se articula numa "estática" e numa "dinâmica", isto é, num estudo dos obstáculos (processos por meio dos quais se elabora o equilíbrio entre as

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várias representações) e das conexões (ou relações entre as várias representações). Ela renova o terreno das pesquisas psicológicas tradicionais, ligadas às "faculdades" e às suas dinâmicas separadas, deslocando-as para um plano mais preciso e coerente, mas permanece ancorada a pressupostos espiritualistas gerais, como o dualismo da alma e do corpo e o primado da liberdade do eu.

A ética herbartiana é, kantianamente, uma ética do dever que se ela-bora conjugando os dados da experiência e a reflexão teórica. Em relação a Kant, porém, Herbart reavalia o recurso à experiência e rejeita a abs-tração do rigorismo. Ela exige empenho e esforço, e tende a realizar no homem e na criança uma personalidade autônoma e responsável, mas harmonicamente desenvolvida. A moral como elemento unifcante da per-sonalidade humana é o "fim" da educação e o critério-guia da pedagogia. Esta deve realizar a formação do "caráter" visto como "unidade do querer moral".

À luz das indicações da psicologia e da ética, chega-se a determinar o "governo" da criança, que abrange pais e educadores e implica, ao mesmo tempo, uma relação de autoridade e de amor. O objetivo do "governo" é tornar moral a natureza "sem vontade" da criança, caracterizada por "sel-vagem desregramento" e "rudes tendências", preparando-a para o exer-cício da autogestão. Portanto, o "governo", em parte, "consiste em evitar prejuízos para os outros e para a própria criança", em parte, "em evitar o conflito, que é por si mesmo um inconveniente" e, enfim, "em evitar a colisão, que conduziria a sociedade ao conflito". O exercício do "governo" deve, porém, passar das "ameaças" à "autoridade" (que "faz dobrar o es-pírito"), ao "amor" (que é "difícil" e, muitas vezes, "passageiro e fugaz", especialmente na criança, mas "tão importante também para a verdadeira educação"). O "governo" prolonga-se e desenvolve-se no ensino ver-dadeiro, que deve, porém, ser entendido no sentido amplamente formativo,

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enquanto parte dos interesses da criança e da sua "plurilateralidade", que deve levar a um "desenvolvimento harmônico das várias faculdades". Essa tarefa é confiada essencialmente ao educador, o qual "representa o homem futuro na criança", e deve, portanto, ser harmonicamente desenvolvido como personalidade e consciente de que "múltiplos devem ser os cuidados com a educação", como são "múltiplas as tendências humanas".

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Um aspecto verdadeiramente central e original da pedagogia herbartiana é justamente aquele ligado à "plurilateralidade" do interesse que se desenvolve, por um lado, numa concepção plástica da vida da criança, que sublinha "o movimento da alma" da criança, a alternância da "concentração" e da "reflexão", e, por outro, numa fadiga educativa que, no estímulo dos vários interesses infantis, visa à criação de uma "ordem", à afirmação de um "método" que torne claros os conteúdos das experiências e suas associações. Clareza (ligada à decomposição dos objetos de estudo em

seus "elementos") e associação (que relaciona o objeto com outros semelhantes e já "conhecidos"), "sistema" (orientado para a conexão não empírica, mas científica) e "método" (isto é, aplicação por meio de exercí-cios) apresentam-se como os princípios fundamentais em torno dos quais se estrutura o processo de ensino e constituem os "graus formais" deste.

A "pluralidade" do interesse desenvolve-se, entretanto, segundo as duas trajetórias do "conhecimento" - pela aquisição de representações sempre novas, articuladas como conhecimento da multiplicidade, das suas "conformidades e leis" e das suas "relações estéticas" - e da "participação", que visa à "humanidade" e à sociedade, como a "relação de ambas com o ente supremo". Mas para que isso aconteça é necessário que intervenha a atenção, vista como o momento "preliminar" e "essencial" da pedagogia, já que justamente dela depende o crescimento dos interesses da criança e sobre ela se baseia o trabalho concreto de ensino-instrução, que se articula sobre o "observar, esperar, procurar, agir", "graus" típicos do interesse.

A instrução se dedica às "coisas", às "formas" e aos "signos", isto é, "as próprias coisas, as obras da natureza, e da arte, os homens, a família e os Estados", de um lado, às "abstrações", como "as figuras matemáticas", os

"conceitos metafísicos", de outro, e, enfim, às "línguas". Ela deve ir da "simples representação" para a análise, depois para a síntese, de modo a ligar organicamente o "particular" ao "universal" e colocar no centro tanto o ensino científico-matemático, importante também para a formação ética da criança mediante a aquisição de uma atitude de ordem e de rigor, quanto o ensino histórico-literário, centralizado, para a infância, na leitura da Odisséia, que aproxima as crianças das fontes da cultura ocidental.

O trabalho escolar é teorizado por Herbart de maneira atenta e mi-nuciosa, procurando conjugar as exigências de Basedow com as do neo-humanismo humboldtiano, à luz de alguns pressupostos pestalozzianos.

Ao ledo da centralidade da ciência e da literatura se dispõem as várias disciplinas de estudo, mas tudo deve ser dosado e organizado em relação às exigências individuais do aluno, sem planificações demasiado rígidas e uniformes. O trabalho deve desenvolver-se de acordo com "episódios", de modo a oferecer uma suficiente coordenação dos argumentos e a pos-sibilidade de um desenvolvimento mais personalizado do estudo, e se-gundo aplicações "de exercício", que permitam uma recuperação e um aprofundamento das noções aprendidas.

Um papel fundamental na didática herbartiana é exercido também pela educação estética cuja tarefa é a de "fazer surgir o belo na fantasia do aluno". Esta se desenvolve por meio da "apresentação do assunto", a "conversação" sobre ele que mantém "ocupada a fantasia" e a visão da obra de arte. E isso vale tanto para "um drama clássico" quanto para um trecho de música.

As escolas secundárias, das quais Herbart se ocupou predominantemente, devem distinguir-se em escola técnica e ginásio, separadas por objetivos e programas, mas para ambas "a atividade oficial" que as caracteriza deve "inserir-se num todo". O professor, a quem é confiado o bom funcionamento da escola, deve ser culto e didaticamente preparado, capaz de desenvolver um trabalho escolar gradual e orgânico, de dirigir-se aos rapazes com "clareza e precisão". Além disso, deverá ser um atento indagador da individualidade dos estudantes, para poder efetivamente guiá-los e educá-los.

A posição herbartiana caracteriza-se também por uma decidida defesa da autonomia da escola, em relação ao Estado e à Igreja. De fato, na escola "opera uma força constante" que o Estado pode "utilizar ou des-perdiçar", mas "cuja natureza não pode transformar" e que está ligada à livre elaboração da cultura. Assim, também a Igreja "queira evitar de imis-cuir-se nos assuntos da escola e desmanchar o círculo, que ela não tra-çou". A educação de fato não pertence ao Estado, nem à Igreja, mas à família, afirma Herbart, manifestando uma posição político-educativa

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abertamente conservadora, ainda que justificada pela exigência de defen-der a autonomia da escola.

O objetivo fundamental e final da atividade escolar, poréns, é, em substância, formar o caráter do jovem pela aquisição de uma "cultura moral" que "serve para realizar o ensino, que influirá na ulterior formação do caráter do homem agora independente", mas também "para pro-

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duzir ou não produzir desde já um princípio de caráter, determinando ou não para a ação".

Certamente que a formação sempre um tanto abstrata e o interesse freqüentemente intelectual pelos problemas da formação juvenil, como também a excessiva sistematicidade das suas teorizações representam li-mites bastante evidentes da concepção pedagógica de Herbart, mas eles não diminuem em nada os aspectos altamente significativos desse pensa-mento, ligados ao forte empenho ético que caracteriza a educação, à pre-sença de um interesse psicopedagógico que o torna bastante moderno, à capacidade de haver delineado um perfil teórico bastante claro e profundo da pedagogia e um quadro equilibrado e essencial da prática educativa. Ademais, a importância histórica da doutrina pedagógica de Herbart foi bastante ampla. O herbartismo difundiu-se sobretudo na Alemanha, nos Estados Unidos e na Itália, pondo no centro do problema educativo 0 papel do professor e um ordenamento preciso dos processos de instrução. Na Alemanha, criaram-se duas escolas, a de Karl V. Stoy (1815-1885), em Jena, e a de Tuiskon Ziller (1817-1882), em Leipzig, que fundaram dois "seminários" para a formação de professores e revistas pedagógicas de inspiração herbartiana. A tradição herbartiana continuou também no curso do século XX, onde teve um ilustre representante em Otto Wilhuann (1839-1920), que se ocupou em particular de teoria da didática. Nos Estados Unidos foi organizado, por alunos dos "seminários" de Jena e de Leipizig, um "Herbart Club" em Nova York, depois em Denver, e se prepararam numerosas traduções e estudos sobre a obra de Herbart, especialmente no decênio 1892-1901, influenciando também, e não de maneira secundária, a concepção pedagógica do jovem Dewey. Na Itália, ligaram-se ao herbartismo pedagógico sobretudo Antonio Labriola e Luigi Credaro (1860-1939) que, em 1900, publicou o primeiro estudo italiano importante sobre a pedagogia herbartiana.

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