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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DAS SÉRIES INICIAIS: DILEMAS E PERSPECTIVAS NA ATUALIDADE. Este artigo se insere no bojo de nossas discussões e preocupações com o campo da formação do professor da escola básica, tendo como ponto de partida a reflexão sobre as críticas e desafios da escola e da formação do professor na contemporaneidade. Destaca as transformações no mundo do trabalho, da comunicação e da tecnologia, que especialmente a partir das duas últimas décadas do século passado impactaram a educação, passando a exigir outro perfil de professor e consequentemente, outras formas de formação, não mais instrumentalizado na racionalidade técnica, mas norteado por outra perspectiva epistemológica, que partindo da prática, do campo profissional, estabeleceria o confronto, a problematização, em busca da unidade teoria e prática, da práxis criadora. Neste sentido, parece-nos que o Curso de Pedagogia e mais especificamente, as disciplinas de Fundamentos da Educação, teriam papel importante nesse processo. No entanto, o estudo investigativo em andamento, tem demonstrado que lentamente as disciplinas das ciências da educação têm perdido espaço, comprimido nos currículos dos Cursos de Pedagogia. Tentando problematizar brevemente essas questões, o texto apresenta a seguinte estrutura: A escola e a formação de professores na contemporaneidade; O Curso de Pedagogia e os Fundamentos da Educação e por último, as Considerações Finais. Palavras-chave: Formação de Professores. Pedagogia. Fundamentos da Educação. A escola e a formação de professores na contemporaneidade. Pode-se afirmar que em nenhum outro período como o atual, se observou mudanças tão intensas, em tão curto espaço de tempo. A era da industrialização e da informação, por exemplo, tem impactado diversos segmentos, como o contexto do trabalho, que tem exigido um trabalhador cada vez mais flexível e polivalente; a revolução da tecnologia de comunicação e informação, caracterizada por mudanças rápidas e imprevistas, vem aumentando a competitividade e as próprias alterações no cenário sócio-político, que com a queda dos regimes ditatoriais e fortalecimento da XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.005382 Edna Furukawa Pimentel UNEB/PPGEDuc

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DAS SÉRIES INICIAIS:

DILEMAS E PERSPECTIVAS NA ATUALIDADE.

Este artigo se insere no bojo de nossas discussões e preocupações com o campo da formação do professor da escola básica, tendo como ponto de partida a reflexão sobre as críticas e desafios da escola e da formação do professor na contemporaneidade. Destaca as transformações no mundo do trabalho, da comunicação e da tecnologia, que especialmente a partir das duas últimas décadas do século passado impactaram a educação, passando a exigir outro perfil de professor e consequentemente, outras formas de formação, não mais instrumentalizado na racionalidade técnica, mas norteado por outra perspectiva epistemológica, que partindo da prática, do campo profissional, estabeleceria o confronto, a problematização, em busca da unidade teoria e prática, da práxis criadora. Neste sentido, parece-nos que o Curso de Pedagogia e mais especificamente, as disciplinas de Fundamentos da Educação, teriam papel importante nesse processo. No entanto, o estudo investigativo em andamento, tem demonstrado que lentamente as disciplinas das ciências da educação têm perdido espaço, comprimido nos currículos dos Cursos de Pedagogia. Tentando problematizar brevemente essas questões, o texto apresenta a seguinte estrutura: A escola e a formação de professores na contemporaneidade; O Curso de Pedagogia e os Fundamentos da Educação e por último, as Considerações Finais.

Palavras-chave: Formação de Professores. Pedagogia. Fundamentos da Educação.

A escola e a formação de professores na contemporaneidade.

Pode-se afirmar que em nenhum outro período como o atual, se observou

mudanças tão intensas, em tão curto espaço de tempo. A era da industrialização e da

informação, por exemplo, tem impactado diversos segmentos, como o contexto do

trabalho, que tem exigido um trabalhador cada vez mais flexível e polivalente; a

revolução da tecnologia de comunicação e informação, caracterizada por mudanças

rápidas e imprevistas, vem aumentando a competitividade e as próprias alterações no

cenário sócio-político, que com a queda dos regimes ditatoriais e fortalecimento da

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democracia, dentre outros, são fatores que tem gerado impacto direto na instituição

escolar.

Isso significa, tal como afirma Enguita (1993), que se antes tínhamos uma escola

que através da ênfase no ensino e na memorização procurava promover um ensino

transmissivo, voltado para a promoção da padronização e da homogeneização de

pensamentos e comportamentos dos sujeitos, organizada para um projeto capitalista

burguês, tendo como intenção a promoção da disciplina, do controle e da obediência,

hoje, a escola é diferente, pois mesmo conservando, de certa forma, sua organização e

funcionamento, mudaram seus sujeitos, fazendo surgir novas demandas sociais.

Com esse novo perfil de sujeitos, parece-nos que as políticas educacionais ainda

não conseguiram efetivamente dá o suporte necessário à escola, pois essa instituição

tem sido demarcada na atualidade por péssimas condições de trabalho, altos índices de

violência, de indisciplina, ausência de aprendizagem, baixos salários dos profissionais

da educação, professores desmotivados, má formação profissional, enfim, os problemas

que a escola tem enfrentado são enormes, mas não são problemas que ela terá que

resolver sozinha, pois em muito extrapola seus limites.

Mesmo diante de intensas mudanças no mundo do trabalho, nas revoluções

tecnológicas e comunicacionais, nos avanços das ciências sociais, enfim, parece que as

novas teorizações, que deveriam ter ajudado a melhorar a escola, não se conseguiu

mudar muita coisa, pois não se consegue mexer com aspectos importantes como as

disciplinas, as matérias de ensino, os conteúdos do currículo e, mais do que isso, não se

consegue mexer com a forma como a escola organiza seu espaço, seu tempo e sua

gestão (MOREIRA, 2007).

No que se refere ao conhecimento, pouco inova, pouco instiga o processo de

ensino-aprendizagem, pois essa concepção de conteúdo-forma não articula às vivencias,

experiências, conhecimentos da vida cotidiana, ao contrário, a escola geralmente

desconsidera, ou minimiza a sua importância. A ênfase é dada nos conhecimentos

escolares que são apresentados como algo acabado, estático, imutável, sem que seja

considerado como produto histórico da atividade social humana.

Parece-nos que alguns desses entraves, tem relação direta com o tipo de

formação que historicamente tem-se oferecido aos professores da escola básica, pois

desde a Escola Normal até a institucionalização, na década de 1930, do Curso de

Pedagogia, com raras exceções, já existia a separação entre teoria e prática: por um

lado, os conhecimentos pedagógicos, representados pelas teorias educacionais, pelos

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aportes das ciências da educação, e por outro, a formação didática e os estágios

supervisionados. Essa racionalidade, fundada na tradição positivista, separava o aporte

teórico da prática, privilegiando a primeira.

Saviani (2009) destaca que, desde a implantação do Curso de Pedagogia, esta se

centrou na formação do aspecto profissional garantindo um currículo composto por um

conjunto de disciplinas a serem frequentadas pelos alunos, dispensada a exigência de

escolas-laboratório, de vivência das situações de ensino, de confronto entre teoria e

prática, enfim,

Essa situação, especialmente no nível superior, expressou-se numa solução dualista: os cursos de licenciatura resultaram fortemente marcados pelos conteúdos culturais-cognitivos, relegando o aspecto pedagógico-didático a um apêndice de menor importância, representado pelo curso de didática, encarado como uma mera exigência formal para a obtenção do registro profissional de professor. O curso de Pedagogia, à semelhança do que ocorreu com os cursos normais, foi marcado por uma tensão entre os dois modelos. Embora seu objeto próprio estivesse todo ele embebido do caráter pedagógico-didático, este tendeu a ser interpretado como um conteúdo a ser transmitido aos alunos antes que como algo a ser assimilado teórica e praticamente para assegurar a eficácia qualitativa da ação docente. Consequentemente, o aspecto pedagógico-didático, em lugar de se constituir em um novo modelo a impregnar todo o processo da formação docente, foi incorporado sob a égide do modelo dos conteúdos culturais-cognitivos (SAVIANI, 2009, p. 146).

Distante de uma formação profissional que, com respaldo nas Ciências da

Educação, pudesse analisar criticamente seu contexto formativo e intervir na realidade

educacional de forma propositiva, preponderou no Curso de Pedagogia o caráter

propedêutico na formação, com a preocupação centrada na transmissão dos conteúdos,

sem maiores preocupações com a escola básica, que mesmo sendo espaço de atuação do

profissional, desconsiderava sua realidade.

Essa realidade começa a ser modificada a partir das duas últimas décadas do

século XX, caracterizado em boa parte do mundo pelas demandas da reestruturação

produtiva para a formação ou qualificação do trabalhador, apoiadas na posição da

necessidade de emprego de mão-de-obra qualificada, repercutiu diretamente no Brasil,

orientadas pelas recomendações de organismos internacionais, como o Banco Mundial

e a UNESCO, colocando a educação como central para o desenvolvimento econômico

dos país da América Latina e Caribe (MORAES, 2003).

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Nesse período, a educação básica foi tema de diversas iniciativas, como da

Conferência Mundial de Educação para Todos realizada em Jomtien e o Relatório

Delors, elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI,

trazendo um conceito de educação voltado para o aprender a aprender, edificado sobre

quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, e

aprender a ser (DELORS, 2002, p. 93-94).

O relatório endossa as orientações do Banco Mundial quanto à formação inicial

e continuada, destacando a formação por competências e para a pesquisa, como eixos

articuladores dos processos formativos, tendo como norte a reflexão sobre a prática,

exigindo um determinado perfil de professor. Esse novo perfil profissional ficaria a

cargo das instituições de ensino superior, demanda essa contemplada pela LDB/96

brasileira.

A LDB 9.394/96, em seu art. 62, estabelece como regra que a formação dos

docentes para a educação fundamental e para a educação infantil far-se-á em nível

superior. A elevação da formação docente em nível superior, reivindicação antiga dos

educadores em nosso país, passa então a ser contemplada.

No mesmo art. 62, no entanto, admite-se como formação mínima para as séries

iniciais e para a educação infantil, “a oferecida em nível médio, na modalidade

Normal”. Mesmo nos parecendo um retrocesso, nas disposições transitórias da referida

lei (Título IX, art. 87, parágrafo 4º) determinam que, até o final da Década da Educação

(2007), “somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou

formados por treinamento em serviço”.

Diante das novas exigências, surge a demanda por soluções práticas e imediatas,

apresentando sérias críticas ao modelo de formação transmissivo, pautado no domínio

dos conhecimentos teórico-científico. Como alternativa, o discurso reformador propõe o

modelo da profissionalização pautado pela formação reflexiva e pela competência

(MAZEU, 2012).

No entanto, o lócus inicialmente eleito de formação foram os Institutos

Superiores de Educação, o que gerou muita polêmica e disputa com os setores

mobilizados representativos dos educadores. Nessa correlação de forças, com a pressão

e mobilização social, o governo recua, atribuindo aos ISE a condição de lócus

preferencial e não mais exclusivo de formação. Dessa forma, o Curso de Pedagogia

passa também a assumir essa função.

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Diante desse cenário, o processo de construção das DCNCP foi longo,

encharcado por lutas e desafios, que se inicia em meados da década de 1980, tendo 2006

como momento de homologação e de certa conquista dos movimentos e sindicatos

educacionais. A lógica do processo de construção da identidade do pedagogo seria a de

concluir que juntamente com a homologação do documento que define as DCNCP, esta

identidade estaria definida. Entretanto, há controvérsias e muito ainda que se discutir a

respeito, pois atualmente vemos uma infinidade de investigações e posições sobre essa

temática. Por não ser esse o nosso foco, não discutiremos essas posições.

Após a LDB/96, aprovam-se os Referenciais de Formação de Professores

(BRASIL, 1998), propondo que a formação seja orientada pela construção de

competências profissionais com vistas à resolução de situações problema e a um saber-

fazer que privilegie as aprendizagens específicas e necessárias à atuação profissional.

Para tanto, elege um modelo de formação que toma o desenvolvimento de competências

profissionais como princípio, a reflexão sobre a prática e o desenvolvimento

profissional permanente, como eixos articuladores. A base desses referenciais encontra-

se nas formulações teóricas de autores como Shon (2000); Nóvoa (1995), Alarcão

(1996), dentre outros (MAZEU, 2012).

A formação a ser desenvolvida nos cursos de licenciaturas, de forma consistente,

longa, científica, com uma relação estreita com o campo da prática educacional,

tenderia a construir outra lógica, outras bases para se pensar a escola, a atuação de seus

profissionais, o desempenho do aluno como sujeito ativo no seu processo formativo. O

desafio posto é o de romper com a lógica instrumental, aplicacionista e construir

possibilidades de rupturas, partindo da análise profunda da prática pedagógica e

educativa, de forma intencional, construiria no processo de ensino-aprendizagem a

práxis criadora. Aqui, o professor apreenderia de forma contextualizada, significativa,

na medida em que iria refletir analisar e interpretar seus referenciais teóricos a partir de

sua própria atividade profissional.

Nessa esteira, busca-se promover novas formas de mediação pedagógica, na

medida em que intencionalmente opera na direção de trazer o sujeito, a pessoa do aluno,

para o centro do processo de ensino-aprendizagem, reconhecendo suas individualidades,

estabelecendo novas formas de relação professor-aluno.

Compreender o papel da mediação do professor no sentido de ajudar o aluno a

processar as informações que adquire dentro e fora da escola converge para o

entendimento de que a escola seria um espaço de síntese, articulando as experiências

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que o aluno traz de sua vida cotidiana com a cultura formal, apresentada pela escola

através de seus conteúdos programáticos (LIBÂNEO, 2007). Neste sentido, o professor

precisaria ter a capacidade de refletir sobre sua prática, suas crenças, visão de mundo,

sobre o contexto escolar, enfim, sobre o contexto sócio-político mais amplo. Essa

postura do professor contribuiria, dialeticamente, para desenvolver no aluno sua

capacidade de reflexão crítica sobre seu contexto sócio-político, formativo, sua história

de vida, suas leituras de mundo.

Todo esse movimento tem repercutido diretamente na Universidade, que como

importante centro formativo de professores, tem sido questionada sobre seu

distanciamento do campo profissional, da prática, dos saberes e das experiências

existentes no contexto real da profissão.

Para responder essas novas demandas, algumas Universidades tem debatido sobre

o modelo organizacional dos cursos de formação inicial, seus currículos, a relação

professor-aluno, a concepção de ensino-aprendizagem, a relação com o conhecimento

científico, com o paradigma de ciência e sua relação com a sociedade (PIMENTA,

2007).

No cenário de embates e disputas pelo perfil de profissional, das séries iniciais, a

ser formado no Curso de Pedagogia, qual tem sido o papel das disciplinas de

fundamentos da educação? Qual a finalidade e a intencionalidade que tem orientado a

formação desse professor que irá atuar na escola pública? Nesse contexto, que exige um

novo perfil de profissional, crítico, reflexivo, com autonomia de pensamento,

comprometido com a construção de uma educação emancipatória, quais as

contribuições que as disciplinas de fundamentos têm dado nesse processo?

Decorridas mais de uma década da promulgação dessas peças legais é

fundamental, para este estudo, analisar se as disciplinas de Fundamentos da Educação,

no Curso de Pedagogia, têm propiciado reflexão profunda na compreensão da dinâmica

das reformas e suas implicações na formação do professor. Será que se tem conseguido

formar professor como profissional, capaz de mobilizar saberes para resolver conflitos

em seu contexto? Tem-se formado profissional que domina as epistemologias da

aprendizagem, que trabalha com o ensino em contexto, com a aprendizagem

significativa? É o que veremos na sessão a seguir.

O Curso de Pedagogia e os Fundamentos da Educação.

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Mais de uma década da aprovação da LDB/96, dos Referenciais para Formação

de Professores, dos diversos debates das entidades nacionais, os estudos têm

demonstrado poucas mudanças na formação dos professores das séries iniciais.

Esse distanciamento entre a formação teórica recebida e sua relação com

questões ligadas à prática profissional do Pedagogo foi constatado na pesquisa de

Gatti, realizada no período de 2001 à 2006, que investigando ementas de 71 Cursos de

Pedagogia, identificou que mesmo dentre as disciplinas de formação específica,

predominam as abordagens de caráter mais descritivo, com pouca preocupação em

relacionar adequadamente as teorias com as práticas (GATTI, 2008, p. 54-55).

Dentre outros elementos, a autora destaca: a) As disciplinas referentes à

formação profissional específica apresentam ementas que registram preocupação com as

justificativas sobre o por quê ensinar, entretanto, só de forma muito incipiente registram

o quê e como ensinar; b) [...] pode-se concluir que a parte curricular que propicia o

desenvolvimento de habilidades profissionais específicas para a atuação nas escolas e

nas salas de aula fica bem reduzida. Assim, relação teoria-prática como propostos nos

documentos legais e nas discussões da área também se mostra comprometida desde essa

base formativa; c) A proporção de horas dedicadas às disciplinas referentes à formação

profissional específica é de 30%. [...] nessas disciplinas de formação profissional,

predominam os referenciais teóricos, seja de natureza sociológica, psicológica ou

outros, pouco associadas às práticas educacionais; d) As ementas e grades curriculares

indicam que mesmo com denominações diversificadas há um conjunto de disciplinas

que são comuns a todos os cursos: Fundamentos como Sociologia da Educação,

Psicologia da Educação, História da Educação, Didática; e) A escola, enquanto

instituição social e de ensino, é elemento quase ausente nas ementas, o que leva a pensar

numa formação de caráter mais abstrato e pouco integrado ao contexto concreto onde o

profissional-professor vai atuar (GATTI, 2008, p. 54-55).

Há diversas variáveis que intervém no processo de ensino-aprendizagem,

contribuindo para a distância entre o discurso do professor e a práxis pedagógica: a) O

predomínio do burocrático sobre o pedagógico; b) O praticismo exacerbado, ou seja, a

prática desprovida de reflexão crítica, de análise consistente; c) A perda da

característica da totalidade; d) A abordagem simplista do ensino, omitindo a questão

política embutida; e) ausência de intencionalidade em tornar o aluno crítico e autônomo;

f) O ensino transmissivo, denunciando a postura do professor frente à aprendizagem; h)

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O desconhecimento do significado do discurso vinculado às condições histórico-sociais

de sua produção (ALARCÃO,1996).

Esses estudos demonstram que mesmo diante de certo avanço nas leis

educacionais e a defesa da perspectiva da profissionalização docente, o Curso de

Pedagogia ainda se apresenta distante de uma sólida preparação do professor,

aproximando-se pouco da realidade profissional. Ainda trabalha seus conteúdos de

forma fragmentada, descontextualizada, distante do processo educativo da escola.

Nesse contexto, como as ciências da educação, mais especificamente a

Psicologia, a Filosofia e a Sociologia da educação, que pela natureza investigativa e

reflexiva de seus campos disciplinares, poderiam contribuir na formação dos

professores das séries iniciais? Que papel essas disciplinas poderiam assumir na

formação de professores criativos, autônomos, reflexivos, comprometidos com a

transformação dessa escola, que em pleno século XXI ainda homogeneíza, controla

comportamentos e impõe padrões a serem seguidos?

Se não pensarmos urgente qual o papel dos Fundamentos da Educação, elas

continuarão exclusivamente com suas abordagens teóricas, distante da práxis, distantes

da expectativa e dos interesses dos alunos, tal como Tomazetti (2003) analisa em seus

estudos. Parece-nos que se os docentes dessas disciplinas continuarem mantendo a

mesma lógica, a tendência é que elas, aos poucos, desapareçam dos currículos dos

Cursos de Formação de Professores, como tem ocorrido atualmente nos processos de

reformulação curricular de algumas Universidades do País.

Essa realidade tem sido vivenciada no Curso de Pedagogia de uma

Universidade Estadual da Bahia. Instituído em 1998, com uma carga horária

significativa das disciplinas de Fundamentos da Educação (Psicologia da Educação,

Sociologia da Educação e Filosofia da Educação), têm-se percebido, nos últimos anos,

uma diminuição drástica de carga horária. Será que elas estão perdendo importância?

Por que isso vem ocorrendo? Qual sua importância na formação de professores? Como

os docentes que ministram essas disciplinas compreendem o papel desses campos

específicos na formação do professor das séries iniciais?

Toda essa inquietação deu origem à pesquisa de doutorado que atualmente

desenvolvemos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual

da Bahia, delineado pelo seguinte objetivo da pesquisa: Compreender como os docentes

das disciplinas de fundamentos, em especial as disciplinas de Psicologia da Educação,

Sociologia da Educação e Filosofia da Educação, dos Cursos de Pedagogia, de uma

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Universidade Estadual da Bahia, concebem o papel destas disciplinas na formação dos

professores das séries iniciais.

Para compreender como esses docentes universitários, responsáveis pelas

disciplinas de Fundamentos da Educação, no Curso de Pedagogia, concebem o papel

destas disciplinas na formação dos professores das séries iniciais, formulamos as

seguintes questões de pesquisa: a) Como os docentes das disciplinas de Filosofia da

Educação, Psicologia da Educação e Sociologia da Educação, participantes desta

pesquisa, concebem o perfil de profissionais pedagogos que estão contribuindo para

formar? b) Como os participantes da pesquisa concebem a contribuição das disciplinas

de Fundamentos na construção de atitudes reflexivas, autônomas, críticas e

investigativas dos profissionais pedagogos em formação? c) De que forma os docentes

de Fundamentos da Educação estabelecem relações entre os conteúdos trabalhados nas

disciplinas, seus procedimentos metodológicos e o campo da prática profissional do

Pedagogo?

Para viabilizar a investigação, optamos pela abordagem qualitativa, utilizando

para coleta de dados à análise documental e a análise da entrevista semi-estruturada. A

intenção será a de aprofundar questões mais específicas sobre cada disciplina (Filosofia

da Educação, Sociologia da Educação e Psicologia da Educação) e o seu papel na

formação do professor.

Os sujeitos da pesquisa serão nove docentes que atuam nas disciplinas de

fundamentos da educação, no Curso de Pedagogia de uma Universidade Publica da

Bahia.

A presente pesquisa encontra-se na etapa de realização do estudo piloto, para

testagem e validação das perguntas que irão compor o Roteiro de Entrevista,

contemplando questões como: que profissional o curso deve formar? Os conteúdos de

sua disciplina são importantes para o professor que o curso deseja formar?

Considerando os dilemas da escola pública atual, quais contribuições sua disciplina tem

dado na preparação do professor? De que forma sua disciplina tem articulado a

dimensão teórico-metodológica com o campo da prática da escolar? As disciplinas de

fundamentos têm instrumentalizado o pedagogo na perspectiva de intervir e alterar a

realidade da escola básica? Como se pode ver são questões amplas e que poderão ser

desdobradas no processo de interlocução. Para analisar os dados, será utilizada a técnica

de análise de conteúdo, na perspectiva temática, de Bardin (1979).

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Considerações Finais

Diante do exposto, parece-nos que se por um lado houve significativos avanços,

como a formação de todos os professores no ensino superior, a prática como elemento

de reflexão do fazer docente, a ampliação na concepção de docência e de formação, por

outro lado, parece-nos que até o momento, pouco contribuiu para reverter à lógica em

que estava e continua a respaldar a formação do professor, que, vinculada à dimensão

intelectual cognitiva, mesmo refletindo criticamente a teoria, desconsiderava a prática e

as vivências no processo de aprendizagem, não oportunizando as experiências em

espaços profissionais específicos e a possibilidade de imersão do aluno em situações

conflitantes. Experiências estas que poderiam contribuir para formar o profissional

professor.

Assim, mesmo apresentando diversas lacunas, dentre elas o perigo de

transformar a epistemologia da prática num praticismo, como sinalizam Kuenzer

(2003), Kuenzer; Rodrigues (2006) e outros, parece-nos que pouco foi modificado a

lógica implementada nos cursos de Pedagogia, ainda preponderando o caráter teórico,

conteudista e distante da prática profissional, apresentam limitações como: currículo

fragmentado, caracterizado por disciplinas dispersas; predomínio do caráter descritivo,

com pouca articulação com a prática profissional; realidade distante das propostas

contidas nos documentos legais; nas disciplinas de fundamentos da educação, como a

sociologia, a psicologia e a filosofia ainda existe um abismo entre a formação

acadêmica e o trabalho prático, prevalecendo o caráter abstrato, descontextualizado,

enfim, a Pedagogia não tem dado conta de preparar o professor-profissional.

Neste cenário, entendemos que as Disciplinas de Fundamentos da Educação só

terão sentido quando partirem da prática, do campo profissional, problematizando a

realidade, utilizando o acúmulo teórico-metodológico de seu campo investigativo, na

promoção de uma formação que muito além do aspecto cognitivo, promova

aprendizagem significativa, que transcenda a pura abstração e promova o pensamento

autônomo, a postura crítica, aprofundada a partir da realidade da escola, transformando

os saberes experienciais, científicos, filosóficos, em estratégias orientadoras da ação

docente.

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