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I Prefácio ao Glosas Críticas... de Marx Ivo Tonet [email protected] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas, membro da Editoria da Revista Práxis. O objetivo do presente prefácio é apresentar um texto de Marx muito pouco conhecido, cujo conteúdo possui enorme atualidade. Trata-se do Glosas críticas marginais ao artigo "O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano", publicado, no jornal alemão, de tendência democrática, Vorwärts! (Avante!), nos dias sete e dez de Agosto de l844, n os 60 e 64. Em junho de l844, havia eclodido na Silésia, província alemã, uma revolta dos trabalhadores na tecelagem contra as péssimas condições de trabalho e os baixos salários. Os operários haviam destruído máquinas, livros comerciais e títulos de propriedade. Sua ira se voltara contra industriais e banqueiros. Esse fato teve uma grande repercussão na Alemanha e até no exterior, pois representava um primeiro gesto público de revolta do proletariado alemão. É nesse momento que "o prussiano", identificado como Arnold Ruge, publica o artigo acima citado, criticando um outro artigo publicado no jornal francês La Réforme. Em síntese, o autor afirmava que a sociedade alemã, dado o seu caráter não-político, isto é, atrasado relativamente ao desenvolvimento burguês, é incapaz de compreender a dimensão universal desse fato singular. Na ótica do prussiano, o intelecto político tem um caráter de universalidade e é precisamente a sua falta que faz com que os alemães considerem a revolta dos tecelões como um simples fato local qualquer e o rei a trate como um mero problema administrativo. Por esse mesmo motivo – a falta de intelecto político –, diz Ruge, os trabalhadores alemães também são incapazes de ter uma visão mais ampla do processo social em curso e de suas implicações. Marx faz uma dura crítica às idéias de Ruge e aproveita para explicitar a sua posição quanto a um conjunto de questões da mais alta importância e que farão parte do núcleo central de sua nova proposta teórico-prática. 1

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I

Prefácio ao Glosas Críticas... de Marx

Ivo Tonet [email protected]

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas, membro da Editoria da Revista Práxis.

O objetivo do presente prefácio é apresentar um texto de Marx muito pouco conhecido, cujo conteúdo possui enorme atualidade. Trata-se do Glosas críticas marginais ao artigo "O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano", publicado, no jornal alemão, de tendência democrática, Vorwärts! (Avante!), nos dias sete e dez de Agosto de l844, nos 60 e 64.

Em junho de l844, havia eclodido na Silésia, província alemã, uma revolta dos trabalhadores na tecelagem contra as péssimas condições de trabalho e os baixos salários. Os operários haviam destruído máquinas, livros comerciais e títulos de propriedade. Sua ira se voltara contra industriais e banqueiros. Esse fato teve uma grande repercussão na Alemanha e até no exterior, pois representava um primeiro gesto público de revolta do proletariado alemão.

É nesse momento que "o prussiano", identificado como Arnold Ruge, publica o artigo acima citado, criticando um outro artigo publicado no jornal francês La Réforme. Em síntese, o autor afirmava que a sociedade alemã, dado o seu caráter não-político, isto é, atrasado relativamente ao desenvolvimento burguês, é incapaz de compreender a dimensão universal desse fato singular. Na ótica do prussiano, o intelecto político tem um caráter de universalidade e é precisamente a sua falta que faz com que os alemães considerem a revolta dos tecelões como um simples fato local qualquer e o rei a trate como um mero problema administrativo. Por esse mesmo motivo – a falta de intelecto político –, diz Ruge, os trabalhadores alemães também são incapazes de ter uma visão mais ampla do processo social em curso e de suas implicações.

Marx faz uma dura crítica às idéias de Ruge e aproveita para explicitar a sua posição quanto a um conjunto de questões da mais alta importância e que farão parte do núcleo central de sua nova proposta teórico-prática.

Texto e Contexto

Três ordens de questões são importantes para uma boa compreensão desse texto. A primeira se refere ao momento histórico alemão. Ao contrário da Inglaterra e da França, onde a revolução burguesa alcançara os seus objetivos fundamentais, na Alemanha a burguesia ainda era fraca e nunca tivera a coragem de suas congêneres de liderar as transformações que eram do seu interesse, compondo-se sempre com a classe dos latifundiários. Mesmo assim, parte da burguesia alemã forcejava por sacudir o jugo feudal. Desse modo, a questão democrática era o centro de intensos debates entre a intelectualidade que gravitava ao redor dessa classe. O papel da atividade política, a natureza e as tarefas do Estado eram, naquele momento, questões candentes.

A segunda questão diz respeito ao momento da trajetória intelectual de Marx. O ano de l844 é decisivo no seu percurso teórico. Com efeito, é nesse ano que ele começa a lançar os fundamentos metodológicos que nortearão toda a sua obra. E não é por acaso que tal momento tem um acento marcadamente filosófico. A maioria dos comentaristas tende a considerar isso como uma deficiência. Como se a passagem da filosofia à economia representasse um progresso no sentido do abandono da especulação em favor da ciência. Discordamos inteiramente dessa tese. Certamente, a

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partir de um dado momento, a problemática econômica se tornou o centro das atenções da sua investigação. Mas isso só foi possível porque suas descobertas anteriores lhe tinham permitido ver que o trabalho é o fundamento ontológico do ser social. A clareza que ele atingiu nesse ano – como ele mesmo atesta no Prefácio à Contribuição à crítica da economia política, de l859 –, de que o fundamento da sociedade é o conjunto das relações de produção, não é de modo algum uma simples questão de economia ou de história ou de sociologia. É uma questão eminentemente filosófica, pois é a resposta à pergunta: qual é o fundamento ontológico do processo de tornar-se homem do homem? Deste modo, não é o abandono, mas a efetivação prática – no trabalho científico – daquelas determinações ontológicas, descobertas no ano de l844, que permite a Marx realizar a crítica da economia política. Sem aquelas determinações, sua obra fundamental não seria uma crítica, mas apenas mais uma obra de economia política. Com isto não queremos afirmar que Marx planejou conscientemente essa trajetória. Apenas que entre esses dois momentos há uma continuidade essencial e não uma negação do primeiro em favor do segundo.

A terceira questão se refere ao fato de que o texto das Glosas foi escrito praticamente na mesma época de A Questão Judaica e dos Manuscritos Econômico-Filosóficos. O que permite afirmar que, apesar das diferenças, eles refletem uma base comum, um conjunto de aquisições que Marx já tinha realizado até aquele momento. Parece, pois, razoável, interpretar o texto das Glosas à luz desses outros textos. Dizemos isto porque certos conceitos, como, por exemplo, o de emancipação política ou de essência humana, que apenas são aflorados nas Glosas, podem ser encontrados de forma bem mais explícita nesses outros textos.

Uma última observação relativa à importância desse texto. A sua tese central, de que o Estado e a política devem ser extintos numa sociedade socialista, choca-se de frente com toda a reflexão política ocidental e com todas as tentativas de levar à prática as idéias expostas por Marx. Não é por acaso que ele é praticamente desconhecido. Também não basta virar-lhe as costas e declará-lo utópico. É preciso examinar com vagar os argumentos, que estão longe de ser meramente de caráter político. Eles supõem o exame da entificação do ser social desde o seu ato fundante, que na perspectiva marxiana é o trabalho. Num momento em que o aperfeiçoamento da ordem social existente é posto pela quase totalidade dos intelectuais – inclusive os que se pretendem de esquerda –, como o horizonte insuperável da humanidade, o velho-jovem Marx aponta na direção oposta. Considerando que o que está em jogo não é apenas uma teoria, mas o destino da própria humanidade, não parece demais se deixar interpelar pelas questões suscitadas nesse texto.

Questões metodológicas

O primeiro equívoco apontado por Marx no artigo de Ruge é de caráter metodológico. Segundo Ruge, os alemães são incapazes de compreender a dimensão universal da revolta dos tecelões porque lhes falta o intelecto político. Se isto fosse verdade, diz Marx, então a Inglaterra, que é um país político por excelência, deveria dar o exemplo da capacidade de compreender em profundidade os problemas sociais e de atuar conseqüentemente para eliminá-los. O que se constata, no entanto, é que o intelecto político inglês atribui os males sociais, ora à política dos partidos adversários, ora à falta ou ao excesso de assistência social, ora à própria lei de assistência aos pobres, ora aos próprios trabalhadores pela sua falta de educação ou sua indolência, ora à falta de recursos para atender às necessidades de uma população que cresce mais do que os bens produzidos. Em conseqüência dessas concepções, comuns aos políticos, aos cientistas e à imprensa, a política social inglesa oscilou, nos últimos trezentos anos, entre o assistencialismo e a repressão, sob as mais diversas formas.

Mas isto não acontece apenas na Inglaterra. Também na França, no período da revolução de l789 e após, pode-se constatar a falsidade da tese do prussiano. Tanto a Convenção quanto Napoleão, que representavam "o máximo da energia política, da força política, do intelecto político", tentaram em vão eliminar a miséria social.

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Esses dois exemplos mostram, segundo Marx, que o intelecto político, por mais aperfeiçoado que seja, é incapaz de identificar as raízes dos males sociais. Não só. Seu grau de capacidade é inverso ao seu grau de perfeição. "Quanto mais agudo ele é" – diz Marx – "quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais".

Está aí uma afirmação de extraordinária importância. E a crítica não se refere apenas à posição de Ruge, mas à ciência social burguesa em seu conjunto. Isso fica claro quando Marx, referindo-se ao exame da experiência inglesa, diz: "A expressão mais clara da interpretação inglesa do pauperismo (...) é a economia política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação econômica nacional inglesa". Como se vê, não se trata simplesmente de opiniões de burgueses ou de políticos, que pudessem expressar os interesses de uma classe. Trata-se da ciência social por excelência, que é a economia política. E, com certeza, tal crítica pode ser estendida à ciência social burguesa até hoje. Pois, afinal, o que faz essa ciência senão atribuir os males sociais, ora à imperfeição humana, ora à falta de recursos, a falhas administrativas, à falta de vontade política, à insensibilidade do governo e/ou das classes dominantes, à indolência dos próprios pobres, à falta de educação, a políticas sociais equivocadas, à falta de assistência. Enfim, nenhuma novidade decisiva em relação a quatrocentos anos atrás. E a mesma coisa acontece com os remédios prescritos, que, no fundo, re-sumem-se também à assistência e à repressão.

O que Marx está afirmando é que não se trata de um defeito, de uma falha tópica, que pudesse ser sanado com o tempo e o aperfeiçoamento, mas de uma limitação essencial, ineliminável. A questão é: porque o intelecto político é incapaz de compreender as causas dos males sociais e qual a origem desta sua incapacidade?

A isto responde Marx dizendo que esta incapacidade essencial deriva da própria natureza do intelecto político, ou seja, do fato de ser político. E ele explicita o que isto significa: "O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política". E acrescenta: "O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, conseqüentemente, tanto mais incapaz de descobrir a fonte dos males sociais".

Para compreender o que é o intelecto político é importante ter claro que há uma polarização que perpassa todo o texto. Essa polarização se expressa na contraposição entre intelecto político e intelecto social, entre emancipação política e emancipação humana, entre revolução política e revolução social. Uma polarização entre o político, que expressa a perspectiva burguesa, e o social, que expressa a perspectiva proletária. Donde se depreende que os dois intelectos não expressam apenas pontos de vista pessoais mas, como veremos a seguir, perspectivas mais amplas.

O equívoco metodológico consiste, pois, em tomar a esfera da política, que é parte, momento da totalidade social, como princípio, como fundamento da inteligibilidade dos fenômenos sociais. Ora, agir deste modo é pressupor que o ser social não é uma totalidade, não é um complexo de complexos cuja matriz é a economia. Deste modo, o sujeito pode, arbitrariamente, eleger qualquer parte do todo social como princípio de inteligibilidade como se este – o ser social – não tivesse uma lógica própria que devesse ser respeitada. A pretexto de defender a autonomia dos diversos momentos do ser social e de evitar o economicismo, a ciência burguesa suprimiu os nexos íntimos, essenciais entre esses momentos e, principalmente, eliminou a economia como raiz deste ser. Assim, as relações entre as diversas partes da totalidade social e a sua matriz se tornaram frouxas e arbitrárias, impedindo a sua correta compreensão1.

Para Marx, no entanto, essa limitação essencial não é gratuita e nem pode ser debitada ao sujeito individual. Ela é conatural ao ponto de vista de uma classe cujo horizonte também é necessariamente limitado. O intelecto político é a expressão teórica da perspectiva da classe burguesa. Por isso mesmo, o alcance possibilitado por ela não pode deixar de ter um caráter

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limitado. Admitir como decisiva a categoria da totalidade, o que implica – em sua concretude – em admitir o trabalho como raiz ontológica do ser social, teria como conseqüência a identificação da própria burguesia como responsável fundamental pelos males sociais. Ora, como diz Marx: "Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida". Não é por outro motivo – obviamente não intencional – que há um esforço cada vez mais intenso da epistemologia e da filosofia da ciência para provar que o fundamento da ciência é o singular e que a totalidade é incognoscível.

A conseqüência teórica desse fundamento metodológico equivocado é que a raiz dos males sociais é buscada em todos os lugares, menos onde ela efetivamente se encontra e que o remédio é sempre alguma medida de reforma e nunca a revolução. Como diz Marx: "O Estado jamais encontrará no Estado e na organização da sociedade o fundamento dos males sociais (...). Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não se acha ele, mas o seu partido adversário, ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado".

No entanto, se, por um lado, o ponto de vista da parte e a razão fenomênica caracterizam a perspectiva burguesa, o ponto de vista da totalidade e a razão ontológica marcam o ponto de vista da classe trabalhadora. A própria natureza desta classe, enquanto classe que só pode realizar-se plenamente abolindo todas as classes e libertando toda a humanidade – portanto, tem uma vocação intrinsecamente universal –, põe o fundamento a partir do qual se eleva uma razão que tem na categoria da totalidade a sua pedra angular e na revolução social o remédio mais efetivo para a superação dos males sociais. Por isso mesmo, diz Marx, enquanto os trabalhadores se orientarem pelo intelecto político, resultará equivocada a orientação das suas lutas. Quando, pois, os teóricos que se pretendem de esquerda, propõem a substituição desta forma de Estado por uma outra forma de Estado, como caminho para eliminar os males sociais, o que fazem senão "pensar do ponto de vista da política" e, como conseqüência, desorientar, teórica e praticamente, a luta dos trabalhadores?

Dificilmente se pode exagerar a importância desta crítica metodológica. A compreensão do ser social tem seu eixo completamente modificado quando entra em cena a razão social, razão que expressa a perspectiva da classe trabalhadora. É radicalmente diferente a compreensão que resulta da arquitetura do ser social, da natureza da sociedade civil, do Estado, dos males sociais e dos seus remédios. E mais. Marx está fixando, aqui, uma das teses centrais do seu pensamento, vale dizer, a tese da determinação social do conhecimento, do caráter histórico e social da razão. Na Introdução..., de l859, ele dirá que essa questão já estava clara em l844 e a enunciava com esta formulação: "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser: é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência"2. Esta tese foi e continua sendo combatida encarniçadamente pela ciência social burguesa. Max Weber quis fazer pilhéria com ela, afirmando que os marxistas tratavam o materialismo histórico como se ele fosse uma carruagem da qual poderiam descer à hora em que bem quisessem. Ora, nesse texto, Marx já desmente Max Weber, pois ele afirma que todas as perspectivas são geradas socialmente, expressando os interesses mais profundos de determinadas classes sociais. E é exatamente esta sua articulação com as classes sociais que explica as suas possibilidades e os seus limites.

Esta tese marxiana compõe aquilo que chamamos de núcleo da incomensurabilidade, ou seja, aquele conjunto de teses que definem uma ruptura radical com a perspectiva burguesa e que jamais poderão ser objetos de consenso. E é interessante notar como a crítica a essa tese se torna mais intensa precisamente hoje, quando o horizonte da burguesia se estreita cada vez mais. Em contrapartida, o que é apresentado como o dernier cri, o que haveria de mais avançado na filosofia da ciência, é a afirmação de que o fazer científico é um processo puramente lógico, sem nenhuma vinculação substantiva com o que se passa na realidade social externa a ele. Do ponto de vista marxiano, esta

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logicização do processo científico nada mais é do que a expressão socialmente necessária dos gravíssimos impasses em que se encontra a própria burguesia. Incapaz de encontrar soluções para os problemas que a humanidade enfrenta, porque também não pode compreender as causas deles, ela se refugia – no plano teórico – no puro e asséptico mundo da lógica, onde tudo não passa de mero jogo de linguagem.

A natureza do Estado, a raiz dos males sociais e os seus remédios

Quanto à questão do Estado, Marx defende, fundamentalmente, quatro teses. Primeira tese. Há uma relação essencial, de dependência ontológica, do Estado para com a sociedade civil. Em total oposição às teses vigentes do liberalismo, que vê no Estado o resultado de um pacto social e à concepção hegeliana, para a qual o Estado é o princípio superior de ordenamento da sociedade civil, Marx afirma que o Estado tem a sua raiz no antagonismo das classes sociais que compõem a sociedade civil. Vejamos o texto: "O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade"; "O Estado (...) repousa sobre esta contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares". Como já se sabe, a vida privada, os interesses particulares, é o que caracteriza a sociedade civil. "Com efeito, esta dilaceração, essa infâmia, essa escravidão da sociedade civil é o fundamento natural onde se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis".

A afirmação desta dependência do Estado em relação à sociedade civil supõe a concepção de que o ser social tem um ordenamento cuja matriz é a economia. Recordemos que em l859, no Prefácio à Introdução á Crítica da Economia Política, ele esclarece que já em l844 tinha chegado à conclusão de que "O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social"3. Que tal dependência tenha sido interpretada em sentido mecanicista, como se o Estado fosse uma emanação direta ou epifenomênica da economia, apenas mostra que a maioria dos intérpretes não compreendeu a natureza do padrão de conhecimento instaurado por Marx. A dependência de que fala Marx é de caráter ontológico, ou seja, expressa uma relação entre fundante e fundado em nível do ser. A única coisa que ele afirma é que o Estado encontra a sua razão última de ser, a sua essência, na sociedade civil e expressa esta razão de ser. E que, neste sentido, nenhuma inversão é possível. Mantida essa questão essencial, tudo o mais é discutível. As próprias análises dele, em outras obras, mostram claramente tanto o caráter ativo quanto a autonomia relativa do Estado frente à sociedade civil. Não há contradição alguma entre autonomia relativa e dependência ontológica.

Veremos, mais adiante, como a quebra dessa dependência ontológica por parte da teoria política e das concepções da "esquerda democrática" têm graves conseqüências para a luta social.

Segunda tese. O Estado é, essencialmente, uma expressão e um instrumento de reprodução dos interesses das classes dominantes, portanto, um instrumento de opressão de classe. "A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis", diz o autor. É evidente que a escravidão a que ele se refere é no sentido da opressão de classe. Esta segunda tese é uma decorrência lógica da primeira. Se a sociedade civil é atravessada por contradições de classe, a reprodução desta situação exige a existência de um poder voltado, essencialmente, para a defesa dos interesses das classes dominantes.

É importante observar que nesse texto, como em outros do mesmo período, Marx está dando forma inicial a uma ontologia do ser social. Vale dizer, sua preocupação não vai no sentido de fazer análises concretas de fenômenos ou fatos históricos, mas de, tendo como base o movimento do real, apreender aquilo que o caracteriza em sua generalidade e essencialidade. Assim, por exemplo, quando ele afirma, nas Glosas, que "A existência do Estado e a existência da escravidão são

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inseparáveis", isto tem o mesmo sentido daquela afirmação posterior do Manifesto, onde é dito que "O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra"4. Com isto, Marx não está afirmando que o Estado se resume à coerção, mas que ele é, essencialmente, coerção, dominação de classe.

Vale a pena frisar que a ontologia marxiana tem na historicidade e na continuidade/descontinuidade duas de suas notas essenciais. De modo que aquilo que caracteriza essencialmente determinado ser com certeza mudará, ao longo de sua trajetória, sem deixar de guardar a sua identidade fundamental. É precisamente o que acontece com o Estado. Que ele assuma a forma imperial, autocrática, absoluta, democrática, constitucional etc., é muito importante quando se trata de sua análise concreta, mas em nada altera o fato de que ele é, essencialmente, opressão de classe. Do mesmo modo, que a opressão se dê sob a forma direta da coerção ou sob a forma indireta do consenso ou articulando as duas formas, não muda um jota da sua essência opressiva.

É infundado, pois, afirmar, como fazem alguns autores, que neste momento, Marx tem um conceito restrito de Estado, que se oporia a um conceito ampliado de outras obras. O que Marx colhe, aqui, são apenas os momentos essenciais do fenômeno do Estado. Ora, o conceito concreto de Estado se compõe destes momentos ontológicos e de suas determinações históricas. Este conceito concreto de Estado aparece claramente nas obras de análise política. Portanto, ao nosso ver, não há em Marx dois conceitos de Estado, mas dois momentos diferentes de apreensão do mesmo fenômeno.

Terceira tese. Também como decorrência da primeira, o autor constata que o Estado é impotente para alterar a sociedade civil. Pois, ao mesmo tempo em que Marx evidencia a natureza do Estado e suas relações com a sociedade civil, também mostra que os males sociais fazem parte essencial dela. É certo que ele mesmo levará anos para compreender concretamente os mecanismos de produção desses males. Mas, para ele, neste momento, uma coisa está clara: a degradação da vida dos trabalhadores não é um simples defeito de percurso, é o resultado ineliminável da forma das relações sociais de trabalho. Ora, na medida em que o Estado é um instrumento de reprodução destas relações sociais, é-lhe vedada a possibilidade de tomar medidas que eliminem os problemas sociais. Sua atividade só pode ser "formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder", diz Marx. E mais: "Frente às conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil (...) a impotência é a lei natural da administração". Dada, portanto, a sua natureza, "Quando o Estado admite a existência de problemas sociais ele os procura ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração que depende dele. Como não pode atinar com as causas fundamentais destes males, só resta ao Estado tomar medidas paliativas. Em resumo, o Estado, é insuperavelmente impotente face aos problemas sociais. E conclui: "Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela".

Isto parece ter sido escrito nos dias de hoje, tamanha a sua atualidade. O simples texto de Marx evidencia a imensidade do equívoco da teoria política e social na sua reflexão sobre o Estado e os problemas sociais. Quanto esforço não tem despendido a teoria política na busca do aperfeiçoamento do Estado e da política, acreditando estar, com isto, no caminho da construção de uma sociedade de bem-estar para todos. Quanto esforço não tem gasto a ciência social procurando desvendar a origem dos problemas sociais, elaborando políticas e programas sociais. E o pior é que a "esquerda" colabora nisto, apostando em que o seu Estado e as suas políticas sociais serão melhores do que o Estado e as políticas sociais dos outros.

Quarta tese. A tese da extinção do Estado. Dela trataremos quando falarmos da emancipação humana.

Emancipação política versus emancipação humana6

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Segundo Marx, os trabalhadores silesianos, tão desprezados pelo prussiano por fazerem parte de uma sociedade não-política, é que apontam o verdadeiro caminho, tanto teórico quanto prático, evidenciando que, nas ciências sociais, a questão metodológica decisiva não é o rigor, lógico ou epistemológico, mas o ponto de vista de classe. Ao questionar, praticamente, o pilar básico da ordem social vigente, que é a propriedade privada, eles mostram a relação correta entre economia e política, identificam com precisão a raiz dos males sociais e indicam o caminho acertado para a sua superação.

Segundo o prussiano, a causa da revolta dos tecelões seria "O desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais". O que, traduzido, significa que os operários teriam se revoltado por se sentirem excluídos da comunidade política, ou seja, da cidadania.

Ao contrário, diz Marx. O que a revolta dos tecelões traz à tona é a radical diferença entre emancipação política e emancipação humana. Sem dúvida, diz ele, toda revolta tem como raiz a exclusão de uma parte dos homens da comunidade. Interpretar esse gesto dos trabalhadores como uma revolta contra a exclusão da comunidade política é "pensar do ponto de vista da política", é acreditar que a emancipação política é o horizonte mais alto da humanidade. Ora, o que caracteriza a emancipação política, diz o autor, é a "tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder". E é este, precisamente, o sentido mais profundo da revolução burguesa. Mas não da revolução proletária.

Lembremos que já em A Questão Judaica, o autor tinha definido com precisão o sentido da emancipação política. Diz que esta se configurou pela superação da forma de sociabilidade feudal, em que o modo de produção fundava uma desigualdade jurídica e política explícita entre as classes sociais. Ao contrário, a forma de organização das relações de produção na sociedade capitalista, cujo núcleo básico é a compra e a venda da força de trabalho, dá origem a uma sociedade civil marcada pela divisão entre público e privado, pela oposição dos homens entre si, pela exploração, pela dominação, pelo egoísmo, pelo afã de poder, enfim por uma fratura ineliminável no seu interior. Por isso mesmo exige, para que possa reproduzir-se, a instauração da igualdade jurídico-política de todos os homens, isto é, sua transformação em cidadãos. Com isto, porém, não se elimina, antes se consolida a desigualdade social. Enquanto participantes da esfera da produção, que é a base da sociedade, os homens permanecem realmente desiguais, de modo que se torna impossível a construção de uma autêntica comunidade. No entanto, para evitar mal-entendidos, ele mesmo esclarecia: "Não há dúvida de que a emancipação política representa um grande progresso e, embora não seja a forma mais elevada da emancipação humana em geral, é a forma mais elevada da emancipação humana dentro da ordem do mundo atual".

Em resumo, a emancipação política, expressa pela cidadania e pela democracia, é, sem dúvida, uma forma de liberdade superior à liberdade existente na sociedade feudal, mas, na medida em que deixa intactas as raízes da desigualdade social, não deixa de ser ainda uma liberdade essencialmente limitada, uma forma de escravidão. A inclusão dos trabalhadores na comunidade política não ataca os seus problemas fundamentais, pois eles podem ser cidadãos sem deixarem de ser trabalhadores (assalariados), mas não podem ser plenamente livres sem deixarem de ser trabalhadores (assalariados).

A emancipação humana, diz Marx, é algo inteiramente diferente. A própria noção de comunidade adquire aí um sentido radicalmente diverso. "Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado, é uma comunidade inteiramente diferente, e de uma outra extensão, da comunidade política. Esta comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o prazer humano, a essência humana. A essência humana é a verdadeira comunidade humana. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita, quanto mais infinito é o homem em relação ao cidadão e a

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vida humana em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde sob as formas mais colossais, um espírito estreito".

Esse trecho é de uma riqueza, de uma profundidade e de uma atualidade incomparáveis. Ao nosso ver, ele bastaria para desbancar a tese da cesura entre o jovem e o velho Marx. Com efeito, toda a sua obra posterior nada mais é do que uma explicitação dos mecanismos básicos que produzem a separação dos trabalhadores da autêntica comunidade humana. Mecanismos estes dos quais o autor, naquele momento, ainda não tinha conhecimento. Contudo, tais parâmetros ontológicos lhe permitiam ver em que direção eles deviam ser buscados. A análise da forma do trabalho, no capitalismo, possibilitou-lhe por a nu esses mecanismos que roubam a "essência humana", ou seja, a "vida física e espiritual", a atividade mais autenticamente humana. É claro que isto pressupõe a idéia – que se encontra nos Manuscritos Econômico-Filosóficos – de que a atividade mais autenticamente humana supõe o domínio consciente do homem sobre o seu processo de autoconstrução. Se isto lhe é vedado pelo processo de trabalho, o resultado será o estranhamento, a desumanização.

Embora seja impossível discuti-la longamente, não podemos deixar de referir-nos, aqui, à vexata quaestio da essência humana. O uso desse termo comprova, segundo a maioria dos críticos, a forte influência de Feuerbach sobre Marx, neste momento. Se Feuerbach tinha um conceito metafísico de essência – e dizemos se, porque não conhecemos suficientemente a obra dele – o texto e o contexto não parecem autorizar tal interpretação em Marx. Como se sabe, a historicidade de todo ser – não por acaso enfatizada nos Manuscritos – é essencial na ontologia marxiana. O conceito de essência, em si, embora faça parte da tradição metafísica ocidental e tenha aí um caráter a-histórico, não é necessariamente a-histórico. E precisamente a historicização, a concretização do conceito de essência, constitui um dos elementos decisivos da ruptura marxiana. Lukács mostra isso longamente na sua Ontologia do Ser Social. Muito provavelmente, a incompreensão e a rejeição desse conceito têm a ver com o intenso clima empirista, positivista e neopositivista que marca fortemente a tradição desde a modernidade até hoje. Mas, para Marx, o homem é um ser que se autoconstrói, na sua totalidade, em processo e de forma social, de modo que se há – como, para ele, de fato, há – elementos universais, com um caráter de continuidade; também estes elementos são históricos. Quando ele afirma que o trabalho (no capitalismo) separa o trabalhador da comunidade humana, está pressupondo duas coisas. A primeira, que o homem é um ser que se constrói socialmente e que, portanto, quanto mais rica – material e espiritualmente – for a totalidade social, mais ricos serão os indivíduos e vice-versa. A segunda, que há elementos que vão constituindo-se como elementos universais, que marcam essencialmente o ser social, tais como a atividade (no sentido da criação do novo, da objetivação consciente, da auto-expressão), a efetivação cada vez mais ampla e diversificada de potencialidades, a consciência do pertencimento ao gênero humano. Ora, quando tudo isto está fundado numa forma de trabalho que tem por núcleo central a compra e venda da força de trabalho, o resultado é o entrave a que esta efetiva associação ontológica (comunidade plenamente humana) entre os homens tenha aberto o caminho da sua entificação. O que não está dito, mas está suposto, é que só o trabalho associado é a base capaz de permitir a construção de uma autêntica comunidade humana.

Para Marx, pois, comunidade política é uma coisa, comunidade humana outra. Não se trata, como querem muitos críticos e o "marxismo-leninismo" fez predominar, de menosprezar a comunidade política ou de considerá-la como algo ilusório e daí até passar a suprimir as liberdades que definem o homem como cidadão. Trata-se, simplesmente, de apreender esta forma de sociabilidade no seu ser-precisamente-assim, colhendo, deste modo, as suas possibilidades e limites. Na medida em que a comunidade política tem a sua matriz ontológica na forma capitalista de trabalho, ela é incapaz , por sua própria natureza, de permitir a plena realização de todos os homens.

A conclusão lógica de tudo que o autor afirmou até aqui é que a instauração de uma verdadeira comunidade humana tem como conditio sine qua non a realização de uma revolução social. Revolução social, aqui, significa uma transformação que modifique, a partir da raiz, – que é a

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sociedade civil – a velha ordem social. Como diz Marx, uma "revolução política com alma social". O prussiano, como todos os que, depois dele até hoje, pretenderam fazer uma revolução democrática quer, na verdade, fazer uma "revolução social com alma política", ou seja, uma revolução que altere até profundamente a sociedade, mas que não eliminará o poder político e as bases sobre as quais ele repousa. Do que se trata, agora, diz Marx, é de fazer uma revolução que inverta os termos. Mas ele chama imediatamente a atenção para o fato de que não se trata de construir um novo Estado, um "estado proletário". Diz ele: "A revolução em geral (...) é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político".

Eis aqui, posta com toda clareza, a necessidade – não ética ou política, mas ontológica – da extinção do Estado. Para ele, a esfera da política expressa e reproduz relações de exploração e opressão, de modo que não pode fazer parte de uma autêntica comunidade humana. A política pode ser um instrumento nas mãos dos trabalhadores para preparar o terreno para a revolução social, destruindo a velha máquina do Estado. Nada mais.

Se pensarmos que toda a reflexão política ocidental, desde os gregos até os nossos dias, toma o Estado como um dado natural, como um componente ineliminável do ser social e que toda a sua preocupação gira ao redor de como eliminar os defeitos dessa dimensão, teremos a medida da ruptura que Marx estabelece com essa tradição, aí incluída a chamada "esquerda democrática". Entre os grandes pensadores, Marx é o único que não propõe o aperfeiçoamento , mas a extinção do Estado. Porém, não a propõe, como outros o fizeram, como um ato de vontade, mas como efetivação de uma possibilidade objetiva que, certamente, para sua realização, requer o concurso da vontade. O raciocínio de Marx é inteiramente coerente. Se a sociedade civil é o fundamento do Estado; se ela é atravessada pela contradição entre interesses de classes antagônicas; se o Estado repousa sobre esta contradição e se a sua finalidade precípua é reproduzir aquela contradição, então, ao ser transformada radicalmente a sociedade civil, de forma a que se eliminem as classes sociais, a extinção do Estado será uma decorrência natural. Se não há exploração, não há necessidade de instrumentos para mantê-la.

O argumento de que a extinção do Estado significa a anarquia é desprezível, pois se baseia na crença de que só é possível haver organização com base na dominação. O mesmo seja dito em relação à questão da autoridade.

Aparentemente, como afirmam certos autores, a esquerda estaria, hoje, num beco sem saída. Não pode abandonar o conceito marxista de Estado, sob pena de perder a sua identidade enquanto esquerda. Por outro lado, se mantiver o conceito estará condenada à lata de lixo. E aí vem o conselho amigo. É preciso, de qualquer modo, rever o conceito marxista, assumindo, de vez, a democratização do Estado e do mercado como o único caminho viável. É uma lógica aparentemente impecável, inclusive porque parece basear-se em fatos (sacrossantos fatos!). Como já argumentamos, extensamente, em artigo publicado na Práxis, nº3, que apresentar essa via como horizonte para a humanidade é buscar a quadratura do círculo, não nos deteremos mais nisto. Porém, somente a determinação social do pensamento, ao nosso ver, é capaz de explicar porque a quadratura do círculo é mais aceitável do que o caminho da extinção do Estado e do mercado!

A "esquerda democrática" argumenta, ainda, que, não sendo mais viável, hoje, o modelo (sic) leninista de revolução, dada a complexificação da sociedade, o melhor caminho é apoderar-se do Estado para colocá-lo a serviço das classes subalternas. Contudo, esse pequeno passe de mágica só é possível se tiverem sido desfeitos os laços ontológicos entre sociedade civil e Estado. É a isto que essa "esquerda" tem se dedicado desde Kautsky e Bernstein. Lamentavelmente, parece que não se aprende nada com a história. Pois, o que esta tem mostrado é que, em todos os lugares onde a esquerda se apoderou do Estado e não se realizou a revolução social – e em nenhum lugar isto

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aconteceu –, mais cedo ou mais tarde, "toda a merda anterior se repôs", conforme previu Marx em A Ideologia Alemã. Além disso, a história também tem mostrado que é possível, através do Estado, realizar transformações que redundem em benefícios para as classes subalternas. Mas a conclusão mais profunda de tudo isso é que, em nenhum momento, a essência do Estado foi alterada; ele permaneceu sempre um instrumento de dominação do capital sobre o trabalho. Não pode existir "Estado proletário". Esta foi uma ficção criada pelo estalinismo para esconder a verdadeira natureza do Estado soviético. Falar em "Estado operário" é pensar do ponto de vista da política. Com efeito, quando se fala em revolução, sempre se tende a pensar que é um processo social, sim, mas comandado pela política. Por isso se julga que é importante – aliás, hoje, praticamente exclusiva – a luta eleitoral-parlamentar para, por meio do Estado, fazer a revolução. A social-democracia dizia que se propunha a fazer isso, do mesmo modo o eurocomunismo; agora chegou a vez do socialismo democrático. Todos eles invertem a equação posta por Marx que afirma que a revolução socialista só pode ser uma revolução política com alma social. Já se vê que não se pode culpar Marx pelos insucessos da esquerda, uma vez que não é pelos ensinamentos dele que ela se pauta.

Mas, argumenta a "esquerda democrática", rejeitar a revolução democrática significa voltar ao conceito restrito de Estado e ao conceito explosivo de revolução, de Marx e Lênin. Talvez convenha ir com mais cautela. Primeiro, ao nosso ver, em Marx encontramos, em determinados momentos - como no caso das Glosas –, uma apreensão dos elementos essenciais, e apenas destes, do Estado; em outros momentos, um conceito concreto de Estado, que articula os elementos essenciais com as determinações históricas. Os elementos essenciais permanecem contínuos na sua mutabilidade. O conceito concreto varia conforme os momentos históricos. Segundo, não se deve confundir a essência da revolução com a forma que ela assumiu na Rússia e que foi transformada, inteiramente em oposição ao espírito marxiano, em modelo universal. O que Marx afirma é que a revolução socialista deve ser comandada, perpassada pela alma social. E, para ele, muito claramente, alma social significa a natureza das tarefas essenciais que ela tem que realizar, ou seja, a dissolução das relações capitalistas de produção e a construção de novas relações. Por isso, a revolução socialista tem que ter o seu eixo fundamental fora do parlamento. A luta parlamentar deve estar subordinada e orientada pela luta social. Respeitado este princípio, tudo o mais está em aberto. É impossível prever que forma concreta a revolução terá, menos ainda prescrever-lhe um "modelo". Falar em modelo de revolução é um contra-senso. Revolução é criação do novo e não há modelo para criar-se o novo. Uma revolução não tem modelos, mas também não é uma invenção arbitrária. Uma revolução tem parâmetros. E é isto que Marx faz nesse texto. Delinear parâmetros, que foram mais tarde desenvolvidos e consolidados, porém nunca abandonados. Basta ler A Ideologia Alemã, O Manifesto, O Dezoito Brumário, A Guerra Civil em França etc.

É preciso tirar as conclusões corretas do colapso do leste europeu. Ao invés de comprovar a falência do socialismo e do marxismo, aqueles fatos são uma prova da atualidade da proposta socialista e da veracidade da teoria marxiana, ou seja, de que "a existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis". Caso se queira ser logicamente rigoroso e tirar dos fatos apenas o que eles permitem, é preciso dizer que não houve, até hoje, nenhuma revolução política com alma social, nem mesmo a soviética, porque todas elas se realizaram onde a alma social não tinha a possibilidade de ser o eixo organizador. A leitura politicista que a "esquerda" faz daqueles acontecimentos apenas consolida o equívoco. A "esquerda" pensa que a revolução nunca teve êxito porque se menosprezou a democracia. Pelo contrário, o fracasso se deveu, essencialmente, ao fato de que, onde as tentativas se deram, sequer era possível instaurar a democracia – que é a forma da emancipação política – porque não havia condições materiais para realizar as transformações sociais capazes de permitir a ultrapassagem da democracia e a construção da autêntica comunidade humana. Pode-se dizer que ante festum era difícil ter clareza a respeito dessas questões. Isto é inegável. Mas que post festum se proponha o caminho da revolução democrática, ou seja, atribua-se ao Estado a tarefa de suprimir os seus próprios fundamentos, a razão mesma da sua existência, é de pasmar!

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Conclusão

Recordemos as teses fundamentais desse texto:

a) a sociedade civil como fundamento do ser social;

b) a natureza contraditória da sociedade civil;

c) a dependência ontológica do Estado em relação à sociedade civil;

d) a natureza essencialmente opressora do Estado;

e) a extinção do Estado como conseqüência da extinção do antagonismo de classes existente na sociedade civil;

f) a impotência do Estado, por sua própria natureza, face aos problemas sociais;

g) a natureza essencialmente paliativa de todas as políticas sociais;

h) a determinação social do conhecimento;

i) a limitação essencial da emancipação política;

j) a natureza essencial da emancipação humana e sua superioridade sobre a emancipação política;

k) a possibilidade e a necessidade ontológicas da revolução.

Tudo isso está contido nesse pequeno texto de l844. Essas teses foram desenvolvidas, ampliadas, aprofundadas. Nunca renegadas. E elas se chocam, de frente, com a filosofia política, a teoria política e a ciência social que sempre predominaram. Também se opõem frontalmente ao marxismo vulgar e às concepções da "esquerda democrática". Elas compõem, juntamente com outras, o núcleo essencial de uma perspectiva efetivamente revolucionária. É inegável que apenas tais elementos, de caráter genérico e essencial, são insuficientes para dar conta da complexidade do Estado atual. Mas também é verdade que sem eles é impossível elaborar um conceito concreto, que capture o Estado na sua integralidade. E é, precisamente, o método marxiano, de caráter ontológico, que articula os momentos essenciais com as determinações históricas, que permitirá – o que ainda está por ser feito – a elaboração desse conceito concreto de Estado.

1 - Sobre a questão da autonomia relativa, ver o nosso artigo "A crise das ciências sociais: pressupostos e equívocos"; in: Rev. Serviço Social e Sociedade, ano XIV, no 4l; SP, Ed. Cortez, l993.

2 - MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Lisboa, Ed. Estampa, l973, p. 28.

3 - Idem. Ibidem.

4 - MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e outros Escritos. São Paulo, Ed. Grijalbo, l977, p. l04.

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II

Glosas críticas marginais ao artigo'O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano.' 1

Karl Marx

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O jornal Vorwärts, no 60, contém um artigo intitulado: O rei da Prússia e a reforma social, assinado: "Um prussiano".

O assim chamado prussiano começa referindo-se ao conteúdo da ordem do gabinete do rei da Prússia sobre a insurreição dos trabalhadores silesianos e à opinião do jornal francês La Réforme sobre a ordem do gabinete prussiano. La Réforme entende que a ordem do gabinete foi motivada pelo "terror e pelo sentimento religioso" do rei. E até descobre nesse documento o pressentimento das grandes reformas que ameaçam a sociedade civil. O "prussiano" ensina ao Réforme nestes termos: "O rei e a sociedade alemã não chegaram2 ainda ao pressentimento de sua reforma" e menos ainda as insurreições silesiana e boêmia deram origem a tal sentimento. É impossível, para um país não-político como a Alemanha, compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e muito menos que representa um problema para o conjunto da sociedade. Para os alemães, esse acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso o rei o considera como um defeito de administração ou de assistência. Por esse motivo e também porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões, a demolição das fábricas e das máquinas não incute nenhum "terror", nem ao rei, nem às autoridades. Além do mais, a ordem do gabinete nem sequer foi ditada pelo sentimento religioso: trata-se de uma sóbria expressão da arte política cristã e de uma doutrina que não deixa subsistir nenhuma dificuldade diante do seu único remédio, "a boa disposição dos corações cristãos". Miséria e crime são duas grandes calamidades: quem poderá repará-las? O Estado e as autoridades? Não, mas, ao contrário, a união de todos os corações cristãos".

O suposto prussiano nega o "terror" do rei, entre outras coisas, porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões.

Ora, em um país no qual banquetes com brindes liberais e espuma liberal de champanhe – lembre-se a festa de Düsseldorf – provocam uma ordem do gabinete real pela qual não houve necessidade de um só soldado para acabar com os anseios de liberdade de imprensa e de constituição de toda a burguesia liberal; em um país em que a obediência passiva está na ordem do dia; em um tal país não seria um acontecimento e um acontecimento aterrorizante ter que recorrer à força armada? Considere-se ainda o fato de que os frágeis tecelões saíram vencedores no primeiro choque. Apenas mediante consideráveis reforços de tropas é que foram vencidos. A revolta de uma massa de trabalhadores é por acaso menos perigosa pelo fato de não ser necessário um exército para sufocá-la? Que o inteligente prussiano compare a revolta dos tecelões silesianos com as revoltas dos operários ingleses e os tecelões silesianos lhe parecerão tecelões fortes.

Partindo da relação geral da política com os males sociais, poderemos esclarecer porque a revolta dos tecelões não podia infundir nenhum "terror" particular ao rei. Por ora seja suficiente isto: a revolta não era dirigida diretamente contra o rei da Prússia, mas contra a burguesia. Como aristocrata e monarca absoluto, o rei da Prússia não pode amar a burguesia; menos ainda se pode aterrorizar se a sua submissão e a sua impotência forem acrescidas de relações tensas e difíceis com o proletariado. Além do mais: o católico ortodoxo é mais hostil ao protestante ortodoxo do que ao ateu, assim como o legitimista é mais hostil ao liberal do que ao comunista. Não porque o ateu e o comunista tenham mais afinidade com o católico e o legitimista, mas porque eles são mais estranhos do que o protestante e o liberal, uma vez que se situam do lado de fora do seu círculo. Enquanto homem político, o rei da Prússia tem, na política, o seu antagonista direto no liberalismo. Para o rei, o antagonismo com o proletariado existe tão pouco quão pouco o rei existe para o proletariado. O proletariado já deveria ter alcançado uma força decisiva para sufocar as antipatias, os antagonismos e atrair sobre si a total hostilidade da política. Por último: para o bem conhecido caráter do rei, desejoso de coisas interessantes e significativas , devia constituir de fato uma surpresa agradavelmente excitante o fato de encontrar no seu território aquele "interessante" e

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"tão falado" pauperismo, e com isso uma ocasião para fazer com que falassem novamente de si. Como deve ter-lhe sido agradável a notícia de que ele já possuía o seu "próprio" real pauperismo prussiano.

O nosso "prussiano" é ainda mais infeliz quando nega que o "sentimento religioso" seja a fonte da ordem do gabinete real. Por que o sentimento religioso não é a fonte dessa ordem de gabinete? Porque é "uma muito sóbria expressão da arte política cristã", uma "sóbria" expressão da doutrina que "diante do seu único remédio, a boa disposição dos corações cristãos, não deixa subsistir nenhuma dificuldade".

O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã? Não se funda no sentimento religioso uma doutrina que possui o seu remédio na boa disposição dos corações cristãos? Uma expressão sóbria do sentimento religioso deixa de ser uma expressão do sentimento religioso? Mais ainda: eu afirmo que é um sentimento religioso muito cheio de si, muito apaixonado aquele que procura o "remédio para os grandes males" na "união dos corações cristãos", negando-o ao "Estado e às autoridades". É um sentimento religioso muito apaixonado aquele que – segundo admite o "prussiano" – particulariza todo o mal na falta de sentido cristão, remetendo as autoridades ao único meio para reforçar este sentido, à "exortação". A disposição cristã é, segundo o "prussiano", o objetivo da ordem do gabinete. É claro que, quando o sentimento religioso é apaixonado, quando não é sóbrio, ele se considera o único bem. Lá onde descobre males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem, também é somente ele que pode produzir o bem. A ordem do gabinete, ditada pelo sentimento religioso, dita por sua vez, como conseqüência, o sentimento religioso. Um político com sentimento religioso sóbrio, na sua "perplexidade", nunca procuraria o seu "auxílio" na "exortação do piedoso pregador ao sentimento cristão".

Como demonstra, então, o suposto prussiano, ao Réforme, que a ordem do gabinete não é uma emanação do sentimento religioso? Apresentando sempre a ordem do gabinete como uma emanação do sentimento religioso. Pode-se esperar que uma mente tão ilógica seja capaz de penetrar nos acontecimentos sociais? Ouçamos um pouco as suas conversas sobre as relações da sociedade alemã com o movimento dos trabalhadores e com a reforma social em geral.

Distingamos aquilo que o "prussiano" negligencia, distingamos as diferentes categorias que são compreendidas na expressão "sociedade alemã": governo, burguesia, imprensa, enfim os próprios trabalhadores. Essas são as diferentes massas de que se trata aqui. O "prussiano" toma essas massas todas juntas e, do alto do seu elevado ponto de vista, condena-as todas em massa. Para ele, a sociedade alemã nem sequer chegou ainda a pressentir a sua reforma.

Por que lhe falta esse instinto?

"Num país não-político como a Alemanha", responde o prussiano, "é impossível compreender que a miséria parcial dos distritos industriais é uma questão geral e menos ainda que é um dano para o conjunto da sociedade. Para os alemães, o acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso, o rei o considera como um 'defeito de administração e de assistência'."

O "prussiano" explica então essa concepção invertida da miséria dos trabalhadores, através da peculiaridade de um país não-político.

Admitir-se-á que a Inglaterra seja um país político. Admitir-se-á, além do mais, que a Inglaterra seja o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Por isso, o exame da Inglaterra é a experiência mais segura para conhecer-se a relação de um país político com o pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se limita aos distritos industriais, mas se estende aos agrícolas. Aqui, os movimentos não estão numa fase inicial, mas acontecem periodicamente há quase um século.

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Como, então, concebem o pauperismo a burguesia inglesa e o governo e a imprensa a ela ligados?

Na medida em que a burguesia inglesa admite que o pauperismo é uma responsabilidade da política, o whig considera o tory e o tory o whig a causa do pauperismo. Segundo o whig, o monopólio da grande propriedade fundiária e a legislação protecionista contra a importação de cereais são a fonte principal do pauperismo. Segundo o tory, todo o mal reside no liberalismo, na concorrência, no exagerado desenvolvimento industrial. Nenhum dos partidos encontra a causa na política em geral, pelo contrário, cada um deles a encontra na política do partido adversário; porém, ambos os partidos sequer sonham com uma reforma da sociedade.

A expressão mais clara da interpretação inglesa do pauperismo – referimo-nos sempre às opiniões da burguesia inglesa e do governo inglês – é a economia política inglesa, isto é, o reflexo científico da situação econômica nacional inglesa.

Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que conhece a situação atual e deve ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade burguesa, um discípulo do cínico Ricardo, MacCulloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa preleção pública, em meio a manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia: "O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu juízo, progrida pouco a pouco e supere um depois do outro os obstáculos que impedem como montanhas o curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro, onde a natureza se expõe diante dos olhos em toda a sua beleza e onde, por meio de uma senda em cômodo declive, pode-se descer até os últimos detalhes da prática".

Bom ar puro a atmosfera pestilencial das habitações nos pardieiros ingleses! Grande beleza da natureza os fantasiosos trapos com que se vestem os pobres ingleses e a carne mirrada e enrugada das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que jazem no esterco; os abortos provocados pelo excesso de trabalho no uniforme mecanismo das fábricas! E os graciosíssimos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a forca!

Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular, mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e sem graça.

Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo Recent meausures for the promotion of education in England, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo! Com efeito, por falta de educação o operário não entende "as leis naturais do comércio", leis que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí a sua rebelião. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês, abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade das instituições políticas e sociais".

A tal ponto chega a desconsideração da burguesia inglesa e de sua imprensa pelo pauperismo, por esta epidemia nacional da Inglaterra.

Admitamos, porém, que sejam fundadas as recriminações que o nosso "prussiano" faz à sociedade alemã. Será que o motivo reside na situação não-política da Alemanha? Contudo, se a burguesia da não-política Alemanha é incapaz de tomar consciência da importância universal de uma miséria parcial, a burguesia da política Inglaterra é capaz de desconhecer a importância universal de uma miséria universal, de uma miséria que evidenciou a sua importância universal, tanto através do seu retorno periódico no tempo como através da sua difusão no espaço e também através do fracasso de todas as tentativas de remediá-la.

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O "prussiano" atribui ainda à situação não-política da Alemanha o fato de que o rei da Prússia encontre a causa do pauperismo numa falha de administração e de assistência e procure, desse modo, em medidas de administração e de assistência, os meios contra o pauperismo.

Por acaso, será exclusivo do rei da Prússia este modo de ver? Dê-se uma rápida olhada à Inglaterra, o único país no qual se pode falar de uma grande ação política contra o pauperismo.

A atual legislação inglesa sobre a pobreza data da lei contida no Ato 43 do governo de Elisabeth3. Em que consistem os meios desta legislação? Na obrigação imposta às paróquias de socorrer os seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na beneficência legal. Essa legislação – a assistência por via administrativa – durou três séculos. Depois de longas e dolorosas experiências, quais são as posições do parlamento no seu Amendment Bill de l834?

Antes de mais nada, o assustador aumento do pauperismo é atribuído a uma "falha de administração".

Por isso, a administração do imposto para os pobres, constituída por empregados das respectivas paróquias, é reformulada. São constituídas Uniões de cerca de vinte paróquias, unidas em uma única administração. Um comitê de funcionários – Board of Guardians – eleitos pelos contribuintes, reúne-se em um determinado dia na sede da União e avalia os pedidos de subsídio. Esses comitês são dirigidos e supervisionados por delegados do governo, da Comissão Central da Somerset House, o ministério do pauperismo, segundo a precisa definição de um francês4. O capital de que essa administração cuida quase eqüivale à soma que a administração militar custa na França. O número de administrações locais que dependem dela chega a quinhentas e cada uma dessas administrações locais, por sua vez, ocupa, pelo menos, doze funcionários.

O parlamento inglês não se limitou à reforma formal da administração.

Segundo ele, a causa principal da grave situação do pauperismo inglês está na própria lei relativa aos pobres. A assistência, o meio legal contra o mal social, acaba favorecendo-o. E quanto ao pauperismo em geral seria, de acordo com a teoria de Malthus, uma eterna lei da natureza: "Uma vez que a população tende a superar incessantemente os meios de subsistência, a assistência é uma loucura, um estímulo público à miséria. Por isso, o Estado nada mais pode fazer do que abandonar a miséria ao seu destino e, no máximo, tornar mais fácil a morte dos pobres".

A essa filantrópica teoria, o parlamento inglês agrega a idéia de que o pauperismo é a miséria da qual os próprios trabalhadores são culpados, e ao qual portanto não se deve prevenir como uma desgraça, mas antes reprimir e punir como um delito.

Surgiu, assim, o regime das workhouses, isto é, das casas dos pobres, cuja organização interna desencoraja os miseráveis de buscar nelas a fuga contra a morte pela fome. Nas workhouses, a assistência é engenhosamente entrelaçada com a vingança da burguesia contra o pobre que apela à sua caridade.

Como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo aumento do pauperismo, não a necessária conseqüência da indústria moderna, mas antes o resultado do imposto inglês para os pobres. Ela entendeu a miséria universal unicamente como uma particularidade da legislação inglesa. Aquilo que, no começo, fazia-se derivar de uma falta de assistência, agora se faz derivar de um excesso de assistência. Finalmente, a miséria é considerada como culpa dos pobres e, deste modo, neles punida.

A lição geral que a política Inglaterra tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi configurando-se

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como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma administração ramificada e bastante extensa, uma administração, no entanto, que não tem mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo. Essa administração renunciou a estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe, com ternura policial, um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial. Bem longe de ultrapassar as medidas de administração e de assistência, o Estado inglês desceu muito abaixo delas. Ele já não administra mais do que aquele pauperismo que, em desespero, deixa agarrar-se e prender-se.

Até agora, portanto, o "prussiano" não mostrou nada de particular no comportamento do rei da Prússia. Mas, por que, exclama o grande homem com rara ingenuidade: "Por que o rei da Prússia não determina imediatamente a educação de todas as crianças abandonadas? Por que se dirige antes às autoridades, esperando seus planos e projetos?

O inteligentíssimo prussiano se tranqüilizará quando souber que o rei da Prússia é, nisso, tão pouco original quanto o é no resto das suas ações e que, pelo contrário, trilhou o único caminho que o chefe de um Estado pode trilhar.

Napoleão queria acabar de um golpe com a mendicância. Encarregou as suas autoridades de preparar planos para a eliminação da mendicância em toda a França. O projeto demorava: Napoleão perdeu a paciência, escreveu ao seu ministro do interior, Crétet, e lhe ordenou que destruísse a mendicância dentro de um mês, dizendo: "Não se deve passar sobre a terra sem deixar traços que relembrem à posteridade a nossa memória. Não me peçam mais três ou quatro meses para receber informações; vocês têm funcionários jovens, prefeitos inteligentes, engenheiros civis bem preparados, ponham ao trabalho todos eles; não fiquem modorrando no costumeiro trabalho de escritório".

Em poucos meses tudo estava terminado. No dia cinco de julho de l8O8 foi promulgada a lei que reprime a mendicância. Como? Por meio dos depósitos5, que se transformaram em penitenciárias com tanta rapidez que bem depressa o pobre chegava aí exclusivamente pela estrada do tribunal da polícia correcional. E, no entanto, naquele tempo, o senhor Noailles du Gard, membro do corpo legislativo, exclamava: "Reconhecimento eterno ao herói que assegura à necessidade um lugar de refúgio e à miséria os meios de subsistência. A infância não será mais abandonada, as famílias pobres não serão mais privadas de recursos, nem os operários de estímulo e ocupação. Nos pas ne seront plus arrêtés par l'image dégoûtante des infirmités et de la honteuse misère"6.

O último cínico período é a única verdade desse panegírico.

Mas, se Napoleão se dirigia ao discernimento dos seus funcionários, prefeitos e engenheiros, por que não o rei da Prússia às suas autoridades?

Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a pergunta do "prussiano": Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas as crianças abandonadas? Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada menos que a eliminação do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo.

A Convenção teve, por um momento, a coragem de determinar a eliminação do pauperismo, não certamente "de modo imediato", como o "prussiano" exigiria do seu rei, mas depois de haver encarregado o seu Comitê de Salvação Pública de elaborar os planos e as propostas necessários, e depois que esse utilizou os amplos levantamentos da Assembléia Constituinte sobre as condições da miséria na França e propôs, através de Barère, a fundação do

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Livre de la bienfaisance nationale7 etc.. Qual foi a conseqüência da determinação da Convenção? Que houvesse uma determinação a mais no mundo e que um ano depois mulheres esfomeadas cercassem a Convenção.

E, no entanto, a Convenção era o máximo da energia política, da força política, e do intelecto político.

Assim, de modo imediato, sem um acordo com as autoridades, nenhum governo do mundo tomou medidas a respeito do pauperismo. O parlamento inglês chegou até a mandar, a todos os países da Europa, comissários para conhecer os diferentes remédios administrativos contra o pauperismo. Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da administração e da assistência.

Pode o Estado comportar-se de outra forma?

O Estado jamais encontrará no "Estado e na organização da sociedade" o fundamento dos males sociais, como o "prussiano" exige do seu rei. Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de Estado.

O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração, que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.

Finalmente, todos os Estados procuram a causa em deficiências acidentais intencionais da administração e, por isso, o remédio para os seus males em medidas administrativas. Por que? Exatamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado.

O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração,de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente às conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga – francas antíteses clássicas – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo de traficantes, hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que

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ele só existe como antítese dela. Mas nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que murmuram contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as conseqüências necessárias dessa liberdade.

Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de compreender os males sociais. O período clássico do intelecto político é a Revolução francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais, os heróis da Revolução francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das más condições políticas. Deste modo, Robespierre vê na grande miséria e na grande riqueza um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, conseqüentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais. Não é preciso argumentar mais contra a insensata esperança do "prussiano", segundo a qual o "intelecto político" é chamado a descobrir as raízes da miséria social na Alemanha.

Foi loucura não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e Napoleão juntos tiveram; foi loucura exigir dele um modo de ver do qual o inteligente "prussiano" está pelo menos tão longe quanto o seu rei. Toda essa declaração foi ainda mais insensata na medida em que o "prussiano" nos confessa: "As boas palavras e as boas disposições são baratas, o que é caro são a perspicácia e as ações eficazes; neste caso, elas são mais do que caras, estão muito longe da possibilidade de efetivação".

Se estão muito longe da possibilidade de efetivação, imagine-se quem, então, a partir daí tentar alcançar o possível. No mais, deixo a critério do leitor julgar se, neste caso, a linguagem mercantil, de cigano, na base do "barato", "caro", "mais do que caro", "longe da possibilidade de efetivação", possa ser incluída na categoria das "boas palavras" e das "boas disposições".

Suponhamos, porém, que as observações do "prussiano" sobre o governo alemão e sobre a burguesia alemã – esta última está, sem dúvida, compreendida na sociedade alemã" – tenham pleno fundamento. Será que essa parte da sociedade é mais irrefletida na Alemanha do que na Inglaterra ou na França? Pode-se ser mais irrefletido do que na Inglaterra, onde a irreflexão foi erigida em sistema? Se, hoje, em toda a Inglaterra pipocam manifestações de trabalhadores, é porque a burguesia e o governo locais não estão hoje mais lúcidos do que no último trintênio do século dezoito. Seu único juízo é a força material e uma vez que a força material decresce na mesma medida em que cresce a extensão do pauperismo e a consciência do proletariado, do mesmo modo aumenta, em proporção geométrica, a irreflexão inglesa.

Enfim é falso, efetivamente falso, que a burguesia alemã desconheça inteiramente a importância geral da revolta silesiana. Em várias cidades, os mestres artesãos procuram associar-se aos aprendizes. Todos os jornais liberais, os órgãos da burguesia liberal, estão repletos de referências à organização do trabalho, à reforma da sociedade, à crítica aos monopólios e à concorrência etc.. Tudo isso em conseqüência dos movimentos dos trabalhadores. Os jornais de

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Tréveris, Aquisgrana, Colônia, Wesel, Mannheim, Breslau e até de Berlim trazem freqüentemente artigos sociais facilmente compreensíveis, dos quais o "prussiano" pode até aprender alguma coisa. Mais ainda, em cartas da Alemanha se exprime constantemente o espanto diante da fraca resistência da burguesia contra as tendências e idéias sociais.

O "prussiano – se tivesse maior familiaridade com a história dos movimentos sociais – teria formulado a sua pergunta ao contrário. Por que também a burguesia alemã vê na miséria parcial uma miséria relativamente tão universal? De onde provém a animosidade e o cinismo da burguesia política, de onde provém a falta de resistência e as simpatias da burguesia não-política para com o proletariado?

Vorwärts!, no 63, sete de Agosto de 1844.

 

Vamos agora aos oráculos do "prussiano" sobre os trabalhadores alemães.

"Os alemães pobres", graceja, "não são mais inteligentes do que os pobres alemães, quer dizer, não enxergam nada além do seu lar, da sua fábrica, do seu distrito; até agora toda a questão está ainda abandonada pela alma política que penetra em tudo".

Para poder comparar a situação dos trabalhadores alemães com a situação dos trabalhadores franceses e ingleses, o "prussiano" deveria comparar a primeira etapa, o início do movimento dos trabalhadores franceses e ingleses com o movimento alemão que começou agora. Mas ele negligencia isto. Deste modo, o seu raciocínio cai em obviedades, como essa de que a indústria na Alemanha ainda não está tão desenvolvida como na Inglaterra, ou então de que um movimento no seu início se apresenta diferente do que numa etapa posterior. Ele gostaria de falar das particularidades do movimento dos trabalhadores alemães. No entanto, não diz uma palavra a respeito desse assunto.

Que o "prussiano" se situe, pois, do ponto de vista correto. Verá que nenhuma das revoltas dos operários franceses e ingleses teve um caráter tão teórico e consciente como a revolta dos tecelões silesianos.

Lembre-se, antes de mais nada, a canção dos tecelões, aquela audaz palavra-de-ordem de luta na qual lar, fábrica e distrito não são mencionados uma vez sequer e na qual, pelo contrário, o proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este caráter superior. Não só são destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o banqueiro, o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta de trabalhadores ingleses foi conduzida com tanta coragem, reflexão e duração.

No que concerne à condição ou à capacidade cultural dos trabalhadores alemães em geral, remeto aos geniais escritos de Weitling, os quais, sob o aspecto teórico, muitas vezes ultrapassam o próprio Proudhon, embora permaneçam aquém dele no que se refere à forma. Onde poderia a burguesia – incluídos os seus filósofos e eruditos – exibir uma obra igual à de Weitling: Garantien der Harmonie und Freiheit, relativa à emancipação da burguesia, à emancipação política? Caso se compare a insossa e tola mediocridade da literatura política alemã com essa enorme e brilhante estréia literária dos operários alemães; caso se compare esse gigantesco calçado de criança do proletariado com a disforme pequenez do gasto calçado político da burguesia alemã, deve-se prognosticar para a Cinderela alemã uma figura de atleta. Deve-se admitir que o proletariado

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alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o seu economista e o proletariado francês o seu político. Deve-se admitir que a Alemanha tem uma vocação tão clássica para a revolução social quanto é incapaz de uma revolução política. Com efeito, assim como a impotência da burguesia alemã é a impotência política da Alemanha, assim a disposição do proletariado alemão – ainda que prescindindo da teoria alemã – é a disposição social da Alemanha. A desproporção entre o desenvolvimento filosófico e o desenvolvimento político na Alemanha não é nenhuma anormalidade. É uma desproporção necessária. Somente no socialismo pode um povo filosófico encontrar a sua práxis correspondente e, portanto, somente no proletariado o elemento ativo da sua libertação.

Mas, nesse momento, não tenho nem tempo nem disposição para explicar ao "prussiano a relação da "sociedade alemã" com a revolução social, e, a partir dela, de um lado a fraca reação da burguesia alemã contra o socialismo e, de outro, as excelentes disposições para o socialismo do proletariado alemão. Na minha Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel (Deutsch-Französische Jahrbücher), ele encontrará os primeiros elementos para compreender esse fenômeno.

A inteligência dos alemães pobres está, portanto, em uma relação inversa com a inteligência dos pobres alemães. No entanto, pessoas para as quais qualquer assunto deve servir para exercícios públicos de estilo, vêem-se levadas, através dessa atividade formal, a um conteúdo equivocado, enquanto o conteúdo equivocado, por sua vez, imprime novamente à forma o selo da banalidade. Deste modo, a tentativa do "prussiano", em uma ocasião como essa das revoltas dos operários silesianos, de expressar-se na forma de antíteses, leva-o à maior antítese contra a verdade. A única tarefa de uma mente pensante e amiga da verdade frente à primeira explosão da revolta dos trabalhadores silesianos, não consistia em desempenhar o papel de pedagogo desse acontecimento, mas, pelo contrário, em estudar o seu caráter peculiar. Para isto, requer-se, antes de mais nada, uma certa perspicácia científica e um certo amor pela humanidade, ao passo que, para a outra operação, é suficiente uma fraseologia ligeira, embebida em uma complacência vazia.

Por que o "prussiano" julga com tanto desprezo os trabalhadores alemães? Porque ele acha que toda a questão" – isto é, a questão da miséria dos operários – está abandonada "ainda até hoje" pela "alma política que penetra tudo". Eis como ele vai derramando o seu amor platônico pela alma política:

"No sangue e na incompreensão serão sufocadas todas as revoltas que explodem nesse desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais; mas logo que a miséria tiver gerado o intelecto e o intelecto político dos alemães tiver descoberto as raízes da miséria social, então também na Alemanha esses acontecimentos serão percebidos como sintomas de uma grande mudança".

Permita-nos o "prussiano", antes de mais nada, uma observação estilística. Sua antítese está incompleta. Na primeira metade, diz-se: a miséria gera o intelecto e na segunda metade: o intelecto político descobre as raízes da miséria social. O intelecto simples, na primeira metade da antítese, torna-se, na segunda metade, um intelecto político, como a miséria simples da primeira metade da antítese torna-se, na segunda, uma miséria social. Por que motivo o nosso estilista tratou de maneira tão desigual as duas metades da antítese? Não creio que tenha notado isso. Vou mostrar-lhe o seu verdadeiro instinto. Se o "prussiano" tivesse escrito: "A miséria social gera o intelecto político e o intelecto político descobre as raízes da miséria social", nenhum leitor atento teria deixado de perceber a falta de sentido dessa antítese. Todo mundo se teria perguntado, antes de mais nada, por que o anônimo não opõe o intelecto social à miséria social e o intelecto político à miséria política, como manda a lógica mais elementar. Mas vamos ao que interessa!

Tão falso é que a miséria social gere o intelecto político, como mais verdadeiro é antes o contrário, isto é, que o bem-estar social gera o intelecto político. O intelecto político é um

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espiritualista e é concedido a quem já possui e desfruta das comodidades. Que o nosso "prussiano" ouça, a esse propósito, um economista francês, o senhor Michel Chevalier:

"No ano de l789, quando a burguesia se sublevou, para ser livre faltava-lhe apenas a participação no governo do país. Para ela, a libertação consistiu em arrebatar das mãos dos privilegiados que tinham o monopólio dessas funções, a direção dos negócios públicos, as mais altas funções civis, militares e religiosas. Sendo rica e ilustrada, podendo bastar-se e dirigir-se a si mesma, ela queria subtrair-se ao régime du bon plaisir"8.

Já demonstramos ao "prussiano" quanto o intelecto político é incapaz de descobrir a fonte da miséria social. Apenas mais uma palavra sobre essa sua concepção. Quanto mais evoluído e geral é o intelecto político de um povo, tanto mais o proletariado – pelo menos no início do movimento – gasta suas forças em insensatas e inúteis revoltas sufocadas em sangue. Uma vez que ele pensa na forma da política, vê o fundamento de todos os males na vontade e todos os meios para remediá-los na violência e na derrocada de uma determinada forma de Estado. Demonstração: as primeiras revoltas do proletariado francês. Os operários de Lyon julgavam perseguir apenas fins políticos, ser apenas soldados da república, enquanto de fato eram soldados do socialismo. Deste modo, o seu intelecto político lhes tornou obscuras as raízes da miséria social, falseou o conhecimento dos seus objetivos reais e, deste modo, o seu intelecto político enganou o seu instinto social.

Mas se o "prussiano" acha que a miséria gera o intelecto, por que então coloca junto os "sufocamentos no sangue" e os "sufocamentos na incompreensão"? Se a miséria é, em geral, um meio, a miséria sangrenta será então um meio muito agudo para gerar a compreensão. Portanto, o "prussiano" deveria ter dito: o sufocamento em sangue sufocará a incompreensão e trará à compreensão uma oportuna lufada de ar.

O "prussiano" prognostica o sufocamento das revoltas que irrompem no "desesperado isolamento dos homens da comunidade e na separação de suas idéias dos princípios sociais".

Já demonstramos que a revolta silesiana de modo nenhum se realizou num estado de separação entre as idéias e os princípios sociais. Temos agora que nos haver com o "desesperado isolamento dos homens da comunidade". Por comunidade se deve entender aqui a comunidade política, o Estado. É sempre a velha cantilena da não-politicidade da Alemanha.

Por acaso não rebentam todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do homem da comunidade? Será que qualquer revolta não supõe necessariamente esse isolamento? Teria havido a revolução de l789 sem o desesperado isolamento dos cidadãos franceses da comunidade? Ela estava destinada exatamente a suprimir esse isolamento.

Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado é uma comunidade inteiramente diferente e de uma outra extensão que a comunidade política. Essa comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho, é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o prazer humano, a essência humana. A essência humana é a verdadeira comunidade humana. E assim como o desesperado isolamento dela é incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório, do que o isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita quanto infinito é o homem em relação ao cidadão e a vida humana em relação à vida política. Deste modo, por mais parcial que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito.

O "prussiano" fecha dignamente o seu artigo com esta frase:

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"Uma revolução social sem alma política (isto é, sem uma visão organizativa do ponto de vista da totalidade), é impossível".

É óbvio. Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque – mesmo que aconteça apenas em um distrito industrial – ela é um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista do indivíduo singular real, porque a comunidade, contra cuja separação o indivíduo reage, é a verdadeira comunidade do homem, é a essência humana. Ao contrário, a alma política de uma revolução consiste na tendência das classes politicamente privadas de influência a superar o seu isolamento do Estado e do poder. O seu ponto de vista é aquele do Estado, de uma totalidade abstrata, que subsiste apenas através da separação da vida real, que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual do homem. Por isso, uma revolução com alma política organiza também, de acordo com a natureza limitada e discorde dessa alma, um círculo dirigente na sociedade às custas da sociedade.

Gostaríamos de confidenciar ao "prussiano" o que é "uma revolução social com uma alma política"; com isso também lhe revelamos o segredo de porque ele não consegue, mesmo nos seus torneios estilísticos, elevar-se para além do limitado ponto de vista político.

Uma revolução "social" com uma alma política ou é um completo absurdo, se o "prussiano" entende por revolução "social" uma revolução "social" contraposta a uma revolução política e apesar de tudo confere à revolução social uma alma política, além de social, ou, então, uma "revolução social com uma alma política" não é mais do que uma paráfrase do que já se chamou uma "revolução política" ou "simplesmente uma revolução". Toda revolução dissolve a velha sociedade; nesse sentido é social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido é política.

Que o "prussiano" escolha entre a paráfrase e o absurdo! Contudo, se é parafrásico ou absurdo uma revolução social com uma alma política, é racional, ao contrário, uma revolução política com uma alma social. A revolução em geral – a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações – é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade desse ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça o seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político.

Toda essa prolixidade foi necessária para rasgar o tecido de erros que se esconde em apenas uma coluna de jornal. Nem todos os leitores podem ter a cultura e o tempo necessários para perceber uma tal charlatanice literária. Não tem, portanto, o "prussiano", diante do público leitor, o dever de renunciar momentaneamente a qualquer atividade de escritor no campo político e social, bem como às declamações sobre a situação da Alemanha, e de começar um consciencioso exame da sua própria situação?

Vorwärts!, no 64, 10 de Agosto de 1844.

1 - "Razões especiais me induzem a declarar que o presente artigo é o primeiro por mim enviado ao Vorwärts!". (NA) Este artigo foi escrito por Marx em Paris, no dia 3l de julho de l844, e publicado no Vorwärts, no 63, em 7 de agosto de 1844. O segundo saiu a 10 de agosto de 1844, no 64. Ambos foram uma réplica ao O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano, que havia sido editado no mesmo jornal, no 60. (NT) Tradução: Ivo Tonet, a partir do texto em espanhol; in: Carlos Marx e Frederico Engels (Obras Fundamentales I); México, Fondo de Cultura Económica, 1987, pp. 505-521. (NE)

2 - Note-se a falta de sentido estilístico e gramatical: "O rei da Prússia e a sociedade alemã não chegou ainda ao pressentimento de sua" (a quem se refere "sua"?) "reforma". (NA)

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3 - Para o nosso objetivo, não é necessário remontar ao estatuto dos trabalhadores sob Eduardo III. (NA)

4 - Eugène Buret.

5 - Institutos vigiados pela polícia.

6 - Não enfrentaremos mais os obstáculos de uma visão desagradável das doenças e da vegonhosa miséria.

7 - Livro da beneficência national.

8 - Regime do arbítrio.

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