folha trainee - folha.uol.com.br · divórcio como sinal de que algo fracassou no relacionamento....

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30% dos paulistanos têm insônia 28% dormem mal 28% dormem menos que o suficiente Um em cada três paulistanos tem insônia folha T RAINEE P ÁGINA ESPECIAL 1 ¤ S ÃO PAULO, SEXTA- FEIRA,3 DE DEZEMBRO DE 2004 Serviço de atendimento ao assinante: Grande São Paulo 0/xx/11/3224-3090 Demais localidades 0800-703-8080 Tel.: 0/xx/11/3224-4274 E-mail: [email protected] Fax: 0/xx/11/3224-3624 Pesquisa Datafolha revela a qualidade do sono em São Paulo PAULA LEITE THIAGO REIS ..................................................................................................................................................................... DA EQUIPE DE TRAINEES Um em cada três paulistanos sofre de insônia e 28% dizem dormir mal, revela pesquisa Datafo- lha sobre o sono na cidade de São Paulo. O nú- mero de insones equivale a 3,2 milhões de pes- soas. Embora, na média, o paulistano durma se- te horas e seis minutos —menos do que o consi- derado satisfatório por médicos—, 65% dizem dormir o suficiente e outros 7%, mais que o sufi- ciente. A vida urbana piora a qualidade do sono, afir- ma o médico Ronaldo Guimarães Fonseca, da Unesp (Universidade Estadual Paulista). “As pessoas cada vez mais levam trabalho para casa. A jornada fica maior e o indivíduo dorme me- nos. A sociedade estimula a privação de sono.” Este caderno mostra que a rotina descrita pe- lo médico chega a atingir até as crianças. Dentre os adultos, os que apresentam mais problemas de insônia são os separados. Os dados do Datafolha mostram que mulhe- res de 41 anos ou mais, divorciadas, com filhos e com renda abaixo dos R$ 1.300 compõem o perfil dos que enfrentam mais problemas na hora de dormir. Quem dorme melhor são os homens de 16 a 25 anos, sem filhos e com ren- da familiar acima de R$ 2.600. As mulheres são mais atingidas pela insônia que os homens: 35% delas têm o problema, contra 25% deles. Para especialistas em sono, a culpa é dos hor- mônios. O médico Sergio Tufik, presidente do Instituto do Sono da Unifesp (Universidade Fe- João Wainer/Folha Imagem deral de São Paulo) e da Sociedade Brasileira do Sono, diz que, por causa da variação hormonal, há dias em que a mulher fica mais sensível ao estresse e à insônia. Entre os homens, os grandes problemas são a apnéia (pe- quenas paradas respiratórias durante a noite) e o ronco, que atrapalham o sono. Às vezes, como mostra reportagem do caderno, o problema do marido incomoda a mulher a ponto de causar dores. Ganhar menos também parece atrapalhar o sono, de acordo com a pesquisa. Entre as pessoas com renda abaixo de cinco salários mínimos, 32% têm insônia. A porcenta- gem é a mesma para quem ganha mais de 5 a 10 salários mí- nimos, mas cai para 21% entre os que ganham mais de dez salários mínimos. Medo de perder o emprego, da violência e de faltar comida em casa são fatores que levam os mais pobres à insônia, diz Tufik. A estudante de direito Beatriz Müller, 25, faz exame de polissonografia no Instituto do Sono da Unifesp, em São Paulo

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30%dos paulistanos

têm insônia

28%dormem mal

28%dormem menos que o suficiente

Um em cada três paulistanos tem insônia

folhaTRAINEEPÁGINA ESPECIAL 1 ¤ SÃO PAULO, SEXTA-FEIRA, 3 DE DEZEMBRO DE 2004

Serviço de atendimento ao assinante:Grande São Paulo 0/xx/11/3224-3090Demais localidades 0800-703-8080

Tel.: 0/xx/11/3224-4274E-mail: [email protected]

Fax: 0/xx/11/3224-3624

PesquisaDatafolha revelaaqualidadedo sonoemSãoPaulo

PAULA LEITETHIAGO REIS

.....................................................................................................................................................................

D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Um em cada três paulistanos sofre de insônia e28% dizem dormir mal, revela pesquisa Datafo-

lha sobre o sono na cidade de São Paulo. O nú-mero de insones equivale a 3,2 milhões de pes-

soas. Embora, na média, o paulistano durma se-te horas e seis minutos —menos do que o consi-

derado satisfatório por médicos—, 65% dizemdormir o suficiente e outros 7%, mais que o sufi-

ciente.A vida urbana piora a qualidade do sono, afir-

ma o médico Ronaldo Guimarães Fonseca, daUnesp (Universidade Estadual Paulista). “As

pessoas cada vez mais levam trabalho para casa.A jornada fica maior e o indivíduo dorme me-

nos. A sociedade estimula a privação de sono.”Este caderno mostra que a rotina descrita pe-

lo médico chega a atingir até as crianças. Dentreos adultos, os que apresentam mais problemas

de insônia são os separados.Os dados do Datafolha mostram que mulhe-

res de 41 anos ou mais, divorciadas, com filhose com renda abaixo dos R$ 1.300 compõem o

perfil dos que enfrentam mais problemas nahora de dormir. Quem dorme melhor são os

homens de 16 a 25 anos, sem filhos e com ren-da familiar acima de R$ 2.600.

As mulheres são mais atingidas pela insôniaque os homens: 35% delas têm o problema,

contra 25% deles.Para especialistas em sono, a culpa é dos hor-

mônios. O médico Sergio Tufik, presidente doInstituto do Sono da Unifesp (Universidade Fe-

João

Wain

er/Folh

aIm

agem

deral de São Paulo) e da Sociedade Brasileira doSono, diz que, por causa da variação hormonal, há dias emque a mulher fica mais sensível ao estresse e à insônia.

Entre os homens, os grandes problemas são a apnéia (pe-quenas paradas respiratórias durante a noite) e o ronco,que atrapalham o sono. Às vezes, como mostra reportagemdo caderno, o problema do marido incomoda a mulher aponto de causar dores.

Ganhar menos também parece atrapalhar o sono, deacordo com a pesquisa. Entre as pessoas com renda abaixode cinco salários mínimos, 32% têm insônia. A porcenta-gem é a mesma para quem ganha mais de 5 a 10 salários mí-nimos, mas cai para 21% entre os que ganham mais de dezsalários mínimos. Medo de perder o emprego, da violênciae de faltar comida em casa são fatores que levam os maispobres à insônia, diz Tufik.

A estudante de direitoBeatriz Müller, 25, fazexame depolissonografia noInstituto do Sono daUnifesp, em São Paulo

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A 2 sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 T R A I N E E AB

Renato Stockler/Folha Imagem

FOTO4.7032.0Z

ZZ

INSÔNIASONO

A jornalistaElane Martins,que teve insôniadepois do divórcio

Metadedosseparadosrolasozinhanacama

COMO FUNCIONA O SONOO sono do seres humanos é dividido em duas partes: operíodo em que ocorrem os sonhos, o REM (sigla eminglês que significa “movimento rápido dos olhos”,porque mexemos os olhos enquanto dormimos), e oNão-REM, dividido em quatro diferentes estágios

SONO NÃO-REM Fase 1 (1% a 5% do sono)

É a transição entre o estágio de vigília (acordado) e osono. Nessa fase, o hormônio melatonina, que induz osono, é liberado

Fase 2 (50% do sono)Nesse estágio, os ritmos cardíaco e respiratóriodiminuem, os músculos relaxam e a temperatura docorpo cai

Fases 3 e 4 (20% do sono)É nessa fase que ocorre a liberação dos hormôniosresponsáveis pelo crescimento, pelo controle dasaciedade e pela regulação imunológica

SONO REM (20% a 25% do sono)É quando ocorrem os sonhos. Normalmente, esse é oestágio mais profundo do sono. As freqüências cardíacae respiratória aumentam e acontece um relaxamentomuscular quase que total

ARQUITETURA DO SONOCada seqüência de estágio Não-REM e REM forma umciclo do sono. Em uma pessoa que tem o sono normal,cada ciclo dura entre 90 e 120 minutos e ocorre entre4 e 6 vezes por noite.À medida que a pessoa dorme, o sono evoluigradativamente por todas as fases do sono Não-REMaté chegar no estágio REM, quando se completa oprimeiro ciclo do sono. Concluído esse momento inicial,o sono da maioria das pessoas volta para a fase 1 erepete o ciclo

SONOREM

FASE2

SONONÃO-REM

FASE 1

FASES3 e 4

48%dosdivorciados edesquitados têm insônia e 44%nãodormembem

D A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

Os paulistanosdivorciadosdor-mem pior e têm mais insônia quesolteiros, casados e viúvos. Deacordo com os números do Data-folha, 48% dos separados sofremde insônia, 36% dizem que dor-mem menos do que gostariam e44%nãodormembem.

“O processo de separação émuito difícil. É uma reavaliaçãoda vida. Enche a cabeça da gentede problemas, de questionamen-tos. Essas preocupações tiram osono”, afirma a assessora políticaCristina(nomefictício),51.

Seu casamento durou 24 anos.Há dois, ela está divorciada. Des-de então, toma remédio para con-seguir dormir. “A gente estranha.A cama fica enorme e você ficamuito pequenininha nela”, dizCristina.

Amanda Abud, 26, desempre-gada, tem o mesmo problema. Elafoi casada durante quatro anos,separou-se há dois e ainda tem di-ficuldade para adormecer. “Eu sóconsigo dormir com a televisão li-gada. Talvez seja o fator presen-ça”,afirma.

Os relatos dos separados pare-cem um eco da canção “Volta”,escrita por Lupicínio Rodriguesna década de 50: “Quantas noitesnão durmo/A rolar-me na cama(...) Não consigo dormir sem teubraço/Pois meu corpo está acos-tumado”.

Para a psicóloga Magdalena Ra-mos, coordenadora do Núcleo de

Casal e Família da PUC-SP, a faltado parceiro é um dos principaismotivos da insônia dos divorcia-dos. “Dormir acompanhado, nu-ma situação afetiva estável e con-fortável, tranqüiliza”,diz.

Os viúvos, apesar da perda, dor-mem melhor que os divorciados:25% sofrem de insônia, 28% di-zem não dormir bem e 14% delesreclamam de dormir menos queosuficiente.

Para Carmen Proença, psicólo-

ga que fez seu mestrado sobre dis-túrbios do sono, a sociedade vê odivórcio como sinal de que algofracassou no relacionamento. Jáos viúvos não sentem que falha-ram. “A morte aconteceu, foi obrado destino, a pessoa não sente quefoiculpadela.”

A jornalista Elane Cristina Mar-tins, 30, divorciou-se há um ano,depois de cinco anos de casamen-to. Ela e seu filho de dois anos nãoconseguiam dormir depois da se-

paração do casal. “Acordada, mi-nha pergunta era: ‘Por que ele melargou? O que aconteceu? Comomeu filho vai ficar longe do pai?’”,contaElane.

Os números mostram que oscasados estão mais perto da mé-dia da população: 32% têm insô-nia e 32% não dormem bem. En-tre os solteiros, a incidência de in-sônia é de 27%, mas apenas 21%reclamam de não dormir bem.

(THIAGO REIS E PAULA LEITE)

Jovens*dormem

mais

MULHERES DORMEM PIOR

OS NÚMEROS DO DATAFOLHA

s.m.: salário mínimo * 16 a 25 anos Fonte: Datafolha

Dormem mal Não dormemo suficiente

Têm insônia

4432 28 21

CasadosDivorciados Viúvos Solteiros

36 3014

28

4832 25 27

DIVORCIADO DORME PIOR QUE CASADO, SOLTEIRO E VIÚVO

32 3221

30 24 18

26 a 40anos

41 anosou mais

SONO PIORA COM A IDADE16 a 25anos

Dormem mal

33 2918

Têm insônia37 32

19

Mais de 5a 10 s.m.

Até 5 s.m.

RENDA MENOR AFETA SONOMais de10 s.m.

Dormem malTêm insônia

Têm insôniaDormem malNão dormem o suficiente

HomensMulheres353231

252325

7,8Divorciados

dormemmenos

6,3horashoras

VejacomofoifeitaapesquisasobresonoemSPD A EQ UIP E DE T RAI NEES............................................................................................

A pesquisa do Datafolha éum levantamento por amos-tragem estratificada por se-xo e idade, com sorteio alea-tório dos entrevistados. Apopulação acima de 16 anosda cidade de São Paulo é to-madacomouniverso.

No levantamento, foramrealizadas 618 entrevistasentre os dias 9 e 10 de no-vembro. Levando-se emconsideração um nível deconfiança de 95%, a margemde erro é de quatro pontospercentuais, para mais ouparamenos.

Umanoiteembuscadosonotranqüilo CADERNO ÉPRODUTO DETREINAMENTO

Este caderno é o trabalho deconclusão do 38º Programa deTreinamento da Folha, cursointensivo de 13 semanas emque estudantes e recém-formados aprendem a trabalharem jornal.

Coordenado pelo editor deDomingo, Alcino Leite Neto, ocaderno Folha Trainee foi ela-borado nas últimas trêssemanas do treinamento, como objetivo de colocar em práticaos conceitos e técnicas jornalís-ticas aprendidos durante o cur-so. Além dos exercícios de jor-nalismo (pauta, reportagem,edição, entre outros), ostrainees tiveram aulas dedireito, economia, português einformática.

O caderno tem também, desdea última turma de treinamento,uma versão expandida online(www.folha.com.br/treinamento/sono), com textos comple-mentares, íntegras de entrevis-tas e links para os principaissites sobre o tema de cada umadas páginas.

EXPEDIENTE

Editora de TreinamentoAna Estela de Sousa Pinto

Editor do Folha TraineeAlcino Leite Neto

Projeto Gráfico eDiagramaçãoMárcio Freitas

Thea Severino

Júlia França

38º Programa deTreinamentoAmauri Arrais

Ana Paula Boni

Carlos Iavelberg

Clovis Castelo Junior

Flávia Mantovani

Luísa Brito

Marcelo Salinas

Paula Leite

Thiago Reis

Viviane Yamaguti

InfografiaMarcelo Pliger

Apoio técnicoHeide Vieira

Juliana Laurino

LUÍSA BRITOTHIAGO REIS........................................................................................

D A EQ UIP E DE T RAI NEES

A clínica é do sono, mas a pre-paração parece a de um salão decabeleireiros. Pentes, presilhas esecadores de cabelo à mão, os téc-nicos Gilmar, Débora, Priscila eCésar se preparam para começara sessão de “penteados”. Os ins-trumentos são usados para abrirespaço no couro cabeludo e fixaros eletrodos que irão registrar aatividadeelétricadocérebro.

São 21h30 de sexta-feira, 19 denovembro, no Instituto do Sonoda Unifesp (Universidade Federalde São Paulo), na capital paulista.Dois pacientes já estão nos quar-tos. Os outros seis aguardam a ho-ra de ir para a cama. Eles malolham a TV, ligada num canto al-to da sala. Aproveitam para con-tar suas histórias e compartilharos problemas da hora de dormir.Todos fazem o exame gratuito pe-loSUS(SistemaÚnicodeSaúde).

Só uma paciente quase não fala.A dona-de-casa Santana Amo-rim, 60, é a única que tem insônia.Os outros acreditam sofrer de ou-tro distúrbio, a apnéia (leia qua-dro na pág. Especial 3).Elesnão se

acanham em contar os problemasqueoroncojá lhescausou.

A auxiliar de serviços MariaInês de Oliveira, 60, por exemplo,diz que chega a dormir no traba-lho e é alvo de gozação dos cole-gas. Seu chefe, revela, quase a des-pediu,sempedirexplicações.

A paciente espera a técnica Dé-bora colocar os eletrodos em seucorpo (cabeça, rosto, peito e per-nas) —“operação” que chega ademorar 30 minutos. Maria Inêsfica imóvel. Não tem escolha: estácoberta por fios, esparadrapos,usa duas cintas —uma sobre o tó-rax e outra sobre o abdômen— etem um aparelho no dedo para re-gistrarasaturaçãodeoxigênio.

Um a um, todos os pacientes,vestindo os pijamas trazidos decasa, vão sendo preparados para apolissonografia. Oexameregistra,durante o sono, a atividade cere-bral, os movimentos oculares e ascontraçõesdosmúsculos.

A aparelhagem, de início, assus-ta. “Vou ter de estar com muitosono para conseguir dormir”, co-menta o mecânico Flávio Firmi-no, 44. Operado para se curar deuma apnéia que o deixava até umminuto sem respiração, Flávio fa-zia o exame para saber se ainda

vai precisar usar o CPAP (sigla eminglês para pressão positiva contí-nua das vias aéreas), aparelho queoajudaarespirarpelonariz.

Passar a noite em um lugar dife-rente mudou os hábitos da auxi-liar de enfermagem aposentadaMercedes Pires, 59. Ela levou otravesseirinho que sempre colocaentreas pernas,mas acabouusan-do-o ao lado do rosto. Tambémnão ficou virada de lado, como decostume. Permaneceu de frente ecomosjoelhosflexionados.

Apesar de ter dormido quase otempo todo, Mercedes acordouqueixando-se de cansaço e de osono ter durado apenas meia ho-ra. Segundo os técnicos, ela podenão ter entrado nas fases do sonoprofundo.

Noite sem terrorA madrugada foi tranqüila. To-

dos os pacientes, à 1h, já estavamna primeira fase do sono. Deu atépara os técnicos se revezarem e ti-rarem um cochilo. Só os chama-dos dospacientesosfaziamlevan-tar da cadeira, já que acompanha-vam tudo pela tela do computa-dor (na qual eram registrados ossinais dos eletrodos) e pela TVcomasimagensdosquartos.

Mas a rotina não é sempre essa.Quando o paciente tem terror no-turno ou distúrbio comporta-mental do sono REM (leia qua-dro), a atenção é reforçada. “Umcara já se levantou dormindo equebrou o quarto todo. Os técni-cos não puderam fazer nada. Fi-caram na porta olhando para evi-tar que ele se machucasse”, diz atécnicaDéboraTang,21.

Apesar de trabalhar num localonde o que importa é o sono, otécnico Gilmar Guedes, 34,dormeapenas quatro horas por dia. Nasmadrugadas em que não está noinstituto, ele é segurança do Hos-pital São Paulo. À tarde, faz cursotécnicodeenfermagem.

Horade acordarSeis horas. O primeiro “bom

dia” é dado à paciente Hercília Sil-veira, 74. Ela acorda animada, dizque dormiu melhor que em casa edánotaoitoparaanoite.

Pouco depois das 7h, todos es-tão acordados. Alguns tentam sa-ber dos técnicos o queo exame re-velou, mas ficam sem resposta.Para quem esperou mais de doismeses para ser atendido, aguar-dar uma semana até o resultadonãoémuitotempo.

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AB T R A I N E E sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 A 3

Males do sono ganhamnovaclassificação

PRINCIPAIS DISTÚRBIOS DO SONOINSÔNIA - é o que atinge a maior

parcela da população mundial.Existem diversos tipos deinsônia, mas todas têm emcomum a dificuldade em iniciarou manter o sono

NARCOLEPSIA - doença do sistema nervoso central,causa sonolência excessiva durante o dia e podeprovocar repentinos cochilos curtos. Outro sintoma éa perda súbita de força muscular (cataplexia), em geralrelacionada a emoção ou estresse

APNÉIA - paradas respiratórias seguidas durante osono. Em alguns casos, chegam a ocorrer dezenas devezes por minuto e, se nãotratadas, podem causarpressão alta,problemascardíacos e atémesmo levar àmorte

FIBROMIALGIA -distúrbio caracterizadopor diversos pontos de dormuscular espalhados pelo corpo

SONAMBULISMO - estado em quea pessoa, ainda dormindo, realizamovimentos como sentar na cama ouandar pela casa. Mais comum em meninos

BRUXISMO - movimento repetitivo da mandíbulaque provoca o ranger dos dentes durante o sono

TERROR NOTURNO - despertar súbito e parcialseguido de um grito ou choro, mais comum entrecrianças. Normalmente, a pessoa não sabe que estáacordada e não se lembra do corrido no dia seguinte

PESADELO - é considerado distúrbioquando provoca o despertar súbito.Normalmente, a pessoa acorda

assustada e desorientada

SÍNDROME DAS PERNAS INQUIETAS -distúrbio caracterizado por um desconforto queprovoca uma irresistível vontade de mexer as pernas.Pode ocorrer em outros grupos musculares e atrapalhao início e a retomada do sono

DISTÚRBIO COMPORTAMENTAL DO SONOREM - acordar vivenciando de forma intensa o queestava acontecendo no sonho. A pessoa leva algunssegundos para perceber o que está acontecendo

Fonte: Academia Americana de Medicina do Sono

Distúrbios passamde 80;médicos afirmamque diagnóstico é tardioCARLOS IAVELBERG........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Embora existam dezenas dedoenças capazes de prejudicar osono, quem sofre com alguma de-las pode levar mais de dez anospara descobrir e, então, iniciar otratamentoadequado.

Nesse período, quem tem umdistúrbio de sono é tratado comoindolente e preguiçoso. Em al-gunscasos,podeatémorrer.

Para tentar diminuir essa de-mora e melhorar a troca de infor-mação entre os médicos, a AASM(academia americana de medici-na do sono) deve divulgar umanova Classificação InternacionaldosDistúrbiosdoSonoem2005.

A Folha teve acesso a uma ver-são preliminar da nova lista. Porenquanto, não é possível afirmarquantas doenças serão classifica-das, mas médicos brasileiros quetambém viram a relação dizemque elas serão cerca de cem. Aatual lista, editada em 1997, con-tém88distúrbios.

Para fazer a nova versão, o psi-cólogo Peter Hauri, da AASM,chefiou uma equipe decerca de 80especialistas internacionais queanalisaram pesquisas sobre dis-túrbiosdosonopordoisanos.

“A importância do trabalho éque pessoas de diferentes países eque falam diferentes línguas po-dem conversar entre si porquetêm as mesmas definições dosdistúrbios”,dizHauri.

Médicos afirmam que, comomuitas vezes as pessoas dormem

menos do que as oito horas acon-selháveis por causa de algum des-ses distúrbios,a nova classificaçãoéumaferramentaimportante.

“Sabemos que uma doença dosono pode influenciar negativa-mente a vida do sujeito quandoele está acordado. Um indivíduoque dorme mal corre maior riscode ter acidente de trânsito e aci-dente pessoal”, diz o neurologistaRonaldoGuimarãesFonseca.

DistúrbiosDa insônia à apnéia, que provo-

ca paradas respiratórias duranteosono, alguns distúrbios podem le-varàmortesenãoforemtratados.

Foi o que o jornalista MárcioDurigan, 40, ouviu de seu médicohá dez anos, depois de realizar apolissonografia —exame queavaliaaqualidadedosono.

Durante as oito horas em quefoi monitorado, Durigan teve 800paradas respiratórias, chegando aficar1min40ssemrespirar.

Em casos graves como esse, aapnéia, que pode começar comum simples ronco, causa pressãoaltaeproblemascardíacos.

Mesmo que se durmaoitohoraspor noite, a doença impede que osono seja de boa qualidade e fazcom que a pessoa acorde cansada.Por isso, Durigan passou 13 anosdormindo mal e com sonolênciaexcessivaduranteodia.

Até descobrir o problema, o jor-nalista conta que sofreu precon-ceito. “A apnéia traz complica-ções sociais e profissionais muitosérias. Você passa a ser o vaga-

bundo, o indolente, o cara quenão tem vontade para nada e estásemprecansado”,afirma.

A solução para Durigan foi usarum aparelho chamado CPAP (si-gla em inglês para pressão positi-va contínua das vias aéreas), queauxilia a respiração durante o so-no. Logo na primeira noite comele, o número de paradas respira-tóriasdojornalistacaiupara11.

Diagnóstico tardioAntes de descobrir que tinha

apnéia, Durigan procurou médi-cos que não diagnosticaram seuproblema. A suspeita de que so-fria da doença veio depois de lerumareportagemsobreoassunto.

Dos primeiros sintomas até odiagnóstico, Durigan levou 13anos para descobrir que tinha ap-néia. Especialistas afirmam que ademora em diagnosticar algumasdoenças do sono varia, em média,de8a12anos.

A estudante de direito Joana(nome fictício), 26, também en-controu dificuldades para saberque tinha narcolepsia —doençado sistema nervoso central quecausa sonolência excessiva diurnae que pode levar a pessoa a ter so-noscurtosde10a25segundos.

Joana só desconfiou que seuscochilos eram uma doença depoisque sua tia viu uma reportagemna televisão. A estudante passou apesquisar o distúrbio na internet.“De todas as características de umnarcoléptico, se eu não tinha100%,tinha98%”,recorda.

Além de sofrer quatro acidentes

de carro porque dormiu ao volan-te, Joana tinha dificuldades parase manter acordada durante asaulas e concentrada para ler os li-vrosdafaculdade.

Agora, depois que iniciou o tra-tamento com remédios, come-mora. “Estou lendo o primeiro li-vro em muitos anos. Ontem con-segui ler 46 páginas e nem acredi-tei”, conta, enquanto aponta paraa mesa ao lado da cama onde está“OPoderdaCabala”.

O estudante de música da Uni-versidade Estadual Paulista Mar-cos Pantaleoni, 24, também sofrede narcolepsia. Alémdadificulda-de em se concentrar, ele enfrentaa cataplexia —perda repentina deforça muscular— que, em geral,está relacionada a alterações deemoçãoouestresse.

Em momentos de nervosismoou felicidade, o narcoléptico podedesfalecer. Isso porque, enquantoestá acordado e consciente, seucorpo está dormindo, como se es-tivesse no estágio mais profundodo sono, o REM (leia quadro napág.Especial2).

Em uma ocasião, enquanto as-sistia a uma peça humorística,Pantaleoni perdeu toda a força docorpo depois de dar gargalhadas.“Estava na cadeira assistindo àpeça e fiquei jogado para o lado.Minha namorada teve de me pu-xaremeendireitar”,conta.

NA INTERNET - Avalie sua sonolênciadiurna em www.folha.com.br/treina-mento/sonoAssociação Brasil-Apnéia do Sono([email protected])

João Wainer/Folha Imagem

Maria Inês deOliveira, 60, realizaexame para avaliar aqualidade deseu sono

Roncodemaridos provocador nasmulheres, revela estudoAMAURI ARRAIS........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Há 21 anos a operadora de caixaVera Lúcia Pereira Siqueira, 46,nãosabe oque édormirbem.Esseé o tempo de seu casamento comRoberto LeiteSiqueira,48, que so-fre de apnéia, obstrução parcialou total das vias aéreas que fazcom que o portador tenha para-dasrespiratóriasduranteosono.

As noites maldormidas ao ladodo marido provocam sonolência,fadiga e irritação no dia seguinte.Nos últimos anos, Vera passou ase queixar também de dores nascostaselombares.

Assim como ela, 81% das mu-lheres casadas com apnéicos,além de sofrerem os efeitos dapreocupação e do cansaço, quei-xam-se de dor, mostra uma pes-quisa realizada pelo Instituto doSono da Unifesp (UniversidadeFederal de São Paulo). Na popula-ção feminina adulta de mesmafaixaetária,o índiceéde25%.

Segundo a neurologista AnnaKarla Smith, que realiza o traba-lho como tese de doutorado, emtorno de 50% das mulherespreencheram os critérios para fi-bromialgia, síndrome que se ca-

racteriza por dores difusas em, nomínimo, 11 pontos distintos espa-lhadospelocorpo.

Iniciado há dois anos, o estudoenvolve 20 mulheres casadas comhomens que roncam e têm índicede apnéia de moderada a grave,isto é, já ultrapassaram a barreiradas 15 paradas respiratórias porhoradesono.

É o caso do aposentado SiemensValdambrini, 78, cujos exames noInstituto do Sono detectaram pi-cos de 54 paradas respiratóriaspor hora de sono. “Uma hora nãodurmo porque ele ronca, outrahora porque ele pára de roncar.Chega a ficar mais de um minutosemrespirar”, conta suamulher,aaposentadaMariadeLourdes,65.

Os dois, que eram viúvos, estãocasadoshá três anos. Desde então,ela diz que dorme menos de trêshoras por noite. “No dia seguinte,estou um bagaço, chego a dormirem pé. Sinto uma dor enjoada natesta”,reclama.

“Atendemos muitos pacientescom apnéia e, muitas vezes, quan-do as esposas sabem que há umreumatologista, se queixam dedores aqui e ali. Observamos quemuitas delas apresentavam sinto-mas de fibromialgia”, afirma a

reumatologista Suely Roizenblatt,orientadoradapesquisa.

Há anos ela vem se dedicandoao estudo das correlações entredor e sono, como a presença dedistúrbios do sono em pacientescom fibromialgia, artrite reuma-tóideeartrosenojoelho.

Nos últimos anos, seus estudosse direcionaram também para ocaminho contrário: de como umdistúrbio do sono pode levar à

dorpormeiodoestresse.Aconselhada por uma amiga, a

operadora de caixa Vera Lúciachegou a usar protetores de ouvi-do escondida do marido, “paranão magoar”. Mas, preocupadacom as paradas respiratórias dele,cada vez mais freqüentes, aban-donouométodo.

“As pessoas em geral pensamque, quando dormem, dão umapausa na vida. Isso não é verdade.

Dormir é um processo tão ativoquanto a vigília porque durante osono são produzidas diversassubstâncias para o organismopermanecer em equilíbrio. Se vo-cê privar animais completamentede sono, depois dealguns dias elesmorrem”,dizRoizenblatt.

SerotoninaA ligação entre o estresse provo-

cado pela apnéia dos maridos e ossintomas de dor nas mulheres, se-gundo a médica, pode estar emneurotransmissores importantespara a sensação de bem-estar, co-mo a serotonina, que, quando es-tá em baixa no organismo, tornaas pessoas mais intolerantes, sen-síveis a dor e com maior tendên-ciaadepressão.

Entre as mulheres pesquisadas,foi observada ainda a ocorrênciade sono de ondas rápidas na fasedo sono mais profundo, de ondaslentas. “Isso causa uma superfi-cialização do sono e mexe com al-guns transmissores, fazendo comque a mulher sinta dor durante odia”, explica a pesquisadora AnnaKarlaSmith.

A questão ainda é controversa.O neurologista Rubens Reimão,que preside o grupo de pesquisa

avançada em medicina do sonodo Hospital das Clínicas da USP,afirma não conhecer na literaturamédica casos comprovados emque um distúrbio do sono possalevaraumquadrodedor.

No entanto, reconhece que cer-ca de metade das mulheres aten-didas com sintomas de fibromial-gia no HC tem histórico de insô-niaedepressão.

“Embora causa ainda seja des-conhecida, sabe-se hoje que a fi-bromialgia está ligada a alteraçõesnos neurotransmissores respon-sáveis pelo sistema de recepção dador”,diz.

A pesquisa do Instituto do Sonoentrevistou as mulheres afetadas,cujas respostas mostraram que otempo em que os sintomas de dorcomeçaram a se manifestar coin-cidia com o de convivência com aapnéiadosmaridos.

Estudos em medicina do sonohá algum tempo tentam afirmarque uma má qualidade do sonopode vir a gerar uma queixa dedor. “Se conseguirmos provarque esta situaçãoestá provocandoos sintomas fibromiálgicos nessasmulheres, vamos colocar maisum tijolo em favor dessa hipóte-se”,dizaautoradatese.

FOTO2.019.0

Roberto Siqueira, apnéico, e Vera Lúcia, que se queixa de dor

Matuiti Mayezo/Folha Imagem

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A 4 sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 T R A I N E E AB AB T R A I N E E sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 A 5

Faltade rotinaprejudicaosonodepais e filhos

Dormirpoucopodeajudarinsoneadormirmelhor

Númerodequeixas sobre insônia infantil cresceunosúltimosdez anos, dizemespecialistasRemédios apenas não curamo transtorno; especialistas sugerem técnicas e terapias

MARCELO SALINAS........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Cansado da insônia que o perse-guia havia 30 anos, o analista fi-nanceiro Thomas Tevjovits, 38,resolveu procurar ajuda. Duranteum ano, tratou-se com remédiospara dormir. O sono veio, mas elenão queria ficar dependente dosmedicamentos. Bastava ficar umanoite sem eles para que o proble-mavoltasse.

Decidiu abandonar as pílulas e,encorajado pelo médico, tentouuma terapia pouco conhecida:passou a se esforçar para dormirmenos do que dormia normal-mente. “Antes de tentar o trata-mento terapêutico ou com remé-dio, eu ia dormir à 1h e só pegavano sono lá pelas 4h, para acordaràs7hdamanhã”,afirma.

A orientação era para que ele sófosse para a cama quando fossedormir de fato —às 3h ou 4h— esaísse às 7h, mesmo que só tivesseconseguidocairnosonoàs5h.

Em dez dias, depois de muitosofrimento e uma mudança dehábitos, conseguiu pôr fim aoproblema da insônia. “Fiquei trêsdias sem conseguir dormir nada.No quarto dia, dormi quase qua-tro horas. A partir daí, a situaçãofoi melhorando. Hoje, durmo à 1heacordoàs7h”,dizTevjovits.

Em termos gerais, a idéia da te-

rapia de privação do sono —co-mo é conhecida— é a de limitar otempo passado na cama para quea pessoa acumule cansaço e tenhasonolênciamaiscedo.

Segundo o psiquiatra OrestesForlenza, do Laboratório de Neu-rociências do Instituto de Psi-quiatria do Hospital das Clínicas,“a técnica é eficaz, mas requer dis-ciplina e bom senso. O pacientetem de estar engajado na resolu-ção do problema, o que nem sem-preacontece”.

Como tratarO caso de Tevjovits ilustra aafir-

mação de médicos e psicólogos deque o uso de remédios não é a so-lução definitiva para o problema,apesar de ser eficaz para amenizartemporariamente osofrimentodequemnãoconseguedormir.

Para que o tratamento seja ade-quado, é preciso diferenciar a in-sônia primária daquela causadapor transtornos em que a insôniaé apenas sintoma de um proble-ma físico ou psiquiátrico maior,como depressão, ansiedade, reu-matismo ou dores crônicas de ca-beçaounocorpo.

Cerca de 80% dos casos se origi-nam desse último diagnóstico, se-gundo o psiquiatra Marcelo Feijó,professor da Unifesp (Universi-dadeFederaldeSãoPaulo).

De acordo com o especialista,

quem tem insônia primária podecurá-la com medidas de “higienedo sono” (leia quadro no alto des-ta página), isto é, com uma mu-dança nos hábitos que agravam eacabam reforçando o problema.Esse tipo de paciente, em geral,não precisa de remédios, mas po-de utilizá-los durante um períodolimitado. “É mais prejudicial ficarsem dormir, ansioso, do que semmedicamento”,afirmaFeijó.

O médico, porém, faz uma res-salva: “Deve-se evitar o uso pro-longado de indutores do sono[hipnóticos] ou de sedativos [an-siolíticos], pois podem provocardependência”.

Terapia cognitivaOutra terapia indicada para o

tratamento da insônia é a cogniti-vo-comportamental, que tratauma das maiores causas do pro-blema,aansiedade.

O objetivo é fazer com que o in-sone se livre de comportamentose pensamentos que o deixam an-sioso, como, por exemplo, ir paraa cama pensando nos problemasque tem de resolver depois deacordar.

De acordo com Flávio Alóe,neurofisiologista do Laboratóriodo Sono do Hospital das Clínicas,é comum o paciente culpar-se pornão conseguir dormir ou apre-sentar idéias irracionais sobre o

sono, como achar que passarámal no dia seguinte ou que teráum colapso nervoso caso nãodurma. “A terapia visa a eliminaresses vícios cognitivos. Apesar deser mais lenta para gerar resulta-dos, mantém efeitos mais dura-douros que a farmacoterapia [tra-tamento à base de remédios]”,afirmaoespecialista.

Para o psicólogo americano Jos-hua Fogel, do Instituto de EstudosComportamentais da Universida-de Nova York, a terapia cogniti-vo-comportamental é eficaz e tema vantagem de não apresentarefeitos colaterais, como os medi-camentos. Mas, segundo disse àFolha, “não é muito prática, poisnem todos os pacientes estão dis-postosa se submeter a dois ou trêsmeses de terapia semanal, apesarde, em alguns casos, os resultadosaparecerem rapidamente, emduasoutrêssessões”.

Quem, há mais de um mês, sen-te dificuldades para pegar no so-no ou acorda no meio da noite enão volta a dormir deve procurarum médico. A insônia crônicacausa irritabilidade, estresse, ten-são e cansaço, prejudicando orendimentofísicoemental.

NA INTERNET - O Hospital das Clínicas(www.hcnet.usp.br/ipq/ipq.htm) e o Ins-tituto do Sono da Unifesp (www.so-no.org.br) oferecem consultas gratuitaspelo SUS (Sistema Único de Saúde), mashá fila de espera

“ F E C H A D A D E O L H O ”ANA PAULA BONI........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Especialistas ouvidos pela Folhadizem que, nos últimos dez anos,aumentou o número de reclama-ções de pais sobre o sono dascrianças. Entre pediatras, psicólo-gos infantis, neurologistas e psica-nalistas, os 12 entrevistados afir-maram que a principal causa paraas reclamações é a falta de rotina aqueacriançaestácondicionada.

O psicólogo Haim Grunspun,professor da PUC-SP, conta quehoje os problemas relacionadosao sono são as queixas mais co-muns em clínicas, tomando o lu-gar de reclamações sobre rendi-mentoescolarealimentação.

O pediatra Ricardo Halpern, daSociedade Brasileira de Pediatria(SBP) no Rio Grande do Sul, esti-ma que, em seu consultório, 50%dasqueixassãosobresono.

Para a neuropediatra MárciaPradella-Hallinan, coordenadorada pediatria do Instituto do Sonoda Unifesp, o número fica em tor-node40%.

Os especialistas dizem que, en-tre os motivos que levam à falta derotina da criança, o fato de a mãetrabalhar o dia todo fora de casa éomaiscitado.

Antes a mãe supria a ausênciado pai. Hoje os pais se sentem cul-pados por não estarem presentesno dia-a-diado filho e,quando es-tão em casa, não conseguem im-por limitesàcriança.

Outro motivo para a falta de ro-tina é quando os pais são divor-

ciados e o filho tem cotidianos di-ferentes. A pediatra Denise Kana-rek, da SBP, cita que deixar o filhoo dia todo com a babá ou os avóstambém faz com que ele crie ou-tras referências diárias e tenhaproblemasparaseguirrotinas.

Segundo a psicanalista LisandreCastello Branco, doutora em edu-cação pela USP, o sentimento deculpa faz com queospaisqueiramcompensar a falta e tenham difi-culdade para estabelecer normasnaeducaçãodofilho.

“Criança deve ter horário parair para cama. Hoje isso é cada vezmenos freqüente. Os pais estimu-lam o filho a ficar acordado atéqueelescheguememcasa”,diz.

Ricardo Halpern conta que ospais contribuem para o agrava-mento do distúrbio do sono por-que não entendem que o relógiobiológico da criança funciona di-ferentedoorganismodoadulto.

“O problema é atender a criançaà noite de forma indiscriminada.Os pais costumam achar que ape-nas uma noite fora das regras nãovai prejudicar. Isso acostuma malacriança”,diz.

Além disso, uma agenda cheiade atividades, como aulas de in-formática, inglês e prática de es-portes, pode gerar estresse e pro-blemasemocionais.

“A criança quer ir bem em tudoque faz e se frustra, devido ao ex-cesso de atividades, o que gera‘depressão’, por não correspon-der aos resultados que ela supõeque esperam dela”, diz CastelloBranco. Assim, os problemas

emocionais atrapalham o bem-estar da criança e, conseqüente-mente,seusono.

MausHábitosA neurologista infantil Magda

Lahorgue, da SBP no RS, diz que,extintas as causas orgânicas, co-mo problemas respiratórios, amaioria dos distúrbios está ligadaa hábitos inadequados. SegundoLahorgue, o bebê não deve dor-mir no quarto dos pais a partirdosseismesesdevida.

Pradella diz que as rotinas no-turnas com horários estabeleci-dos (tomar banho, jantar, ler umlivro) criam uma referência paraacriançaeajudamosonoachegar.

Segundo a neuropediatra doInstituto do Sono, o problema équando a criança vai dormir epercebe, pelo barulho, que os paisestão vendo TV. “Os pais devemse disciplinar, principalmente nafrente das crianças, para que elasaprendamaterhorários”,diz.

Pradella também alerta os paispara que não dêem remédio cal-mante para o filho. Os indutoressó são indicados com receita mé-dicaemcasosespeciais.

Outros problemas devem sertratados com mudanças de hábi-tos: não deixar a criança dormirna cama dos pais, colocá-la paraestudar à tarde se perceber que elarende menos pela manhã, e regu-lar o tempo para jogar video-ga-meeassistiràTV,porexemplo.

NA INTERNET - Leia texto sobre verda-des e mentiras sobre sono de criança emwww.folha.com.br/treinamento/sono

Cochilopodeser causade 1/4dosacidentesAdemir Baptista/Folha Imagem

Carlos Alberto Xavier, 51, em seu caminhão; no ano passado, ele não conseguiu chegar ao hotel onde sempre fica hospedado, em Torres (RS), e dormiu ao volante

Pesquisa“engana”ocorpocomluzTHIAGO REIS.....................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

O caminhoneiro Carlos Alber-to Xavier de Borba, 51, estavaacordado havia 26 horas e meia;14 horas e meia ao volante. Nãoencontrou na beira da estradaum lugar onde pudesse tirar umcochilo e capotou próximo a Cri-ciúma (SC), na BR-101. “Quandoa polícia rodoviária chegou, euestava de roda para cima no bar-ranco. O policial perguntou: ‘Vo-cê tomou uma fechada?’ Eu falei:‘Foi fechada, sim, seu guarda. Fe-chadadeolho.’”

Borba faz parte de uma estatís-tica preocupante: 25% dos aci-dentes nas rodovias federais bra-sileiras são provocados por mo-toristasquedormemaovolante.

O dado resulta de uma pesqui-

sa do médico Sérgio Barros, daSociedade Brasileira do Sono,que estima que 25,6 mil aciden-tes tenham sido causados por so-nolência e fadiga em 2001. Docu-mentos da Polícia RodoviáriaFederal indicam um númerobemmenor:1.787.

Nos relatórios da polícia, a ex-plicação para a maior parte dos102,5 mil acidentes registradosem2001é“faltadeatenção”.

A imprecisão do termo e a au-sência de uma estatística oficialno país fizeram com que, duran-te todo o ano passado, Barrosanalisasse os boletins de ocor-rência dos acidentes de 2001 naBahia e no Espírito Santo. Os da-dos permitiram ao médico esti-marumíndicenacional.

No estudo, Barros levou emconsideração fatores como o ho-

rário e o tipo de colisão. Boa par-te dos casos revela colisão com oveículo da frente ou com objetosfixos na parte lateral da estrada,indicadores de sonolência e fadi-ga. Os períodos de maior inci-dência são o final da tarde e amadrugada.

Pistas retasOs números mostram que

67,6% dos acidentes acontece-ram em pista reta e 75,5%, emboas condições climáticas —fa-tores queinduzem o sono por di-minuírem a concentração docondutor.

O caso de Borba confirma osíndices: o caminhoneiro dirigiade madrugada, com tempo bome em trecho reto no momentoemquecapotou.

Em 2001, houve 47.448 aciden-

tesenvolvendocaminhões.O presidente da Sociedade

Brasileira de Neurofisiologia Clí-nica, Geraldo Rizzo, aconselhaos motoristas a parar o carro ca-so sintam sonolência, a jamaisdirigir se, na véspera, tiveremdormido mal e a evitar guiar so-zinhos durante a noite. Para Riz-zo, não adianta “tapear” o sono:“Abrir a janela e aumentar o somdorádionãofunciona”.

Marco Túlio de Mello, do Cen-tro de Estudos Multiprofissionalem Sonolência e Acidentes, su-gere que as empresas planejemuma escala de trabalho para osmotoristasprofissionais.

Barros colocou isso em práticanuma empresa de ônibus do Es-pírito Santo e montou oito salasde descanso nos principais pon-tos das rodovias do Estado. Ne-

las, os motoristas passam 20 mi-nutos sob uma luz artificial queativaaproduçãodemelatonina.

Para tentar reduzir os aciden-tes, as montadoras também têminvestido na pesquisa de apare-lhos que, se eficientes, podem setornar itens de série no futuro(leiaquadroabaixo).

A maioria dos médicos, no en-tanto, tem dúvidas quanto à uti-lidade desses aparelhos. Na opi-nião de quatro especialistas ou-vidos pela Folha, as empresasacabam deixando de atuar nacausa do problema. Segundoeles, faltam programas de cons-cientização.

Os médicos acreditam queprogramar paradas para cochi-los e evitar a ingestão de alimen-tos pesados e bebidas alcoólicasaindasãoasmelhoresopções.

Samir Baptista/Folha Imagem

Percaavergonhaparaacharobomcolchão

PAULA LEITE........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

“Eu preferia trabalhar à noite. Éo mesmo serviço, mas tem menosgente mandando. De dia temmuito chefe.” Durante 19 anos,Bernardino Duarte operou umaempilhadeira na fábrica da Ford,no turno da noite. Porém não sãotodos que, como ele, se acostu-mam a trabalhar enquanto amaioriadorme.

Inácio Rosa trabalhou durantemais de três anos à noite, na fábri-ca da Unilever em Vinhedo. Elediz que nunca se adaptou e queessa foi uma das razões por quepediu para sair da empresa, emoutubro. De dia, não conseguiadormir. “Tembarulho, aquelesal-to-falantesdevendedores”,diz.

Ele não tinha horáriosfixosparacomer e deitar e diz que o caloratrapalhava o sono. Quando nãoconseguia dormir à tarde, Ináciodiz que ficava com sono depois daceia,entre1he3h.

No corpo humano, tudo funcio-na regulado pelo ciclo de ativida-de e descanso, explicou à Folha opesquisador alemão Till Roenne-berg, da Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique. Osolhos detectam a luz solar e “di-zem”aocérebroqueédia.

Os trabalhadores noturnos sãoexpostos a uma luz muito maisfraca que a solar. Quando saem

do trabalho e quando acordam esaem de casa sãoexpostos à luz dodia. O cérebro “entende” que é diaequeelesdevemficaracordados.

Por isso, diz Roenneberg, essaspessoas têm sono quando traba-lham, dormem mal depois do tur-no e podem até desenvolver pro-blemas digestivos, já que o estô-mago produz menos ácido gástri-coànoiteemaisdedia.

Roenneberg e seu grupo fize-ram uma pesquisa de campo emuma fábrica da Volkswagen emWolfsburg, na Alemanha. Metadeda linha de produção foi ilumina-da normalmente, enquanto a ou-tra metade recebeu luz mais forte,projetada para iluminar o am-

biente de forma difusa. O objetivoera ser mais parecida com o sol e“enganar”ocorpo.

Segundo Roenneberg, resulta-dos preliminares mostram que ostrabalhadores melhoraram suaconcentração à noite e estão dor-mindo melhor. Eles disseram tergostado muito da luz mais forte,contaopesquisador.

Eurípedes de Paula, 65, coorde-nador de segurança da empresaPires, trabalhou à noite durante25 anos. Ele diz que só passavatempo com a mulher e os dois fi-lhos nas folgas. Sair com os ami-gos, só se fosse com os do turnoda noite. De Paula e seus colegasdeixavam o trabalho às 6h e mui-

tas vezes iam ao bar. Quando opessoal do turno do dia chegava,viaalgunstomandocervejaàs7h.

Manoel Soares da Silva, 59, éporteiro de um prédio nos Jardinse trabalha à noite há 26 anos. Elediz que não tem sono no trabalho,mas que, “às vezes, de madruga-da, dá uma arriaçãozinha. Quasetodovigiadeprédiocochila”.

As estratégias para ficar acorda-do incluem TV e radinho. Manoeldiz que quem trabalha à noitenem sempre consegue dormir di-reito. “Tem que obrigar um pou-co pra não arriar. A gente levanta,tomaumcafezinho,volta.”

Colaborou Flávia Mantovani

D A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

O colchão dos sonhos não exis-te. Especialistas em medicina dosono, ortopedia e reumatologiaafirmam não haver estudos cien-tíficos que provem a eficácia docolchãoparaumbomrepouso.

De acordo com médicos e pro-fissionais do setor, o produtodevemanter a coluna alinhada, sercompatível com o peso e a alturada pessoa e proporcionar confor-to (leia quadro ao lado). Uma su-perfície macia reduz aschancesdea pessoa se virar na cama e acabaracordando.

Para o médico Dirceu Vallada-res, da Clínica do Sono de BeloHorizonte, o conforto não está li-gado só ao colchão. “No Nordes-te, pessoas que dormem em redenãosentemdiferençasnosono.”

Segundo especialistas, na pro-cura por um bom colchão, o con-sumidor deve deixar a vergonhade lado e deitar no produto ex-posto na loja. Se for colchão de ca-sal,osdoisdevemtestar juntos.

Há uma tabela que indica qualdensidade é compatível com o pe-so e a altura do usuário. Atual-

mente, é possível encomendarum colchão com densidades dife-rentes quando um dos parceiros émaispesadoqueooutro.

Outra dica é respeitar a validadeestabelecida pelo fabricante. Emgeral, um colchão de espuma du-radetrêsacincoanos.

Para saber se o produto atendeànorma da ABNT (AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas),sobre fabricação de colchões deespuma (NBR 13.579), o consu-midor deve checar se ele possuiselodecertificação.

Segundo o diretor-executivo doIner (Instituto Nacional de Estu-dos do Repouso), Antônio Go-mes, grande parte dos 14 milhõesde colchões produzidos no paísnãosegueasregrasdaABNT.

Quem tem problema de colunadeve procurar um especialista.Para o vice-presidente da Socie-dade Brasileira de Coluna, CarlosHenrique Maçaneiro, “é mais im-portante a postura ao dormir doque o tipo de colchão”. De acordocom ele, o melhor é deitar de lado.Admite-se, também, dormir debarriga para cima, mas nunca debruços. (LUÍSA BRITO)

Manoel daSilva éporteiro ànoite há 26anos; parapassar otempo, vê TV

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A 6 sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 T R A I N E E AB

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SONHO

FlávioFlorid

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Cientistareabilitaidéias de

Freud

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CLOVIS CASTELO JUNIOR.......................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Unir conhecimentos de neuro-ciência e psicanálise pode levar anovas terapias, baseadas em in-tervenções mais precisas, defendeo neuropsiquiatra sul-africanoMarkSolms.

Solms envolveu-se em polêmi-cas com os psicanalistas clássicosquando afirmou que os sonhossão fenômenos psíquicos, mas defundo biológico. Eles seriam re-sultado da evolução da espécie eresponsáveis pelo equilíbrio imu-no-fisiológicodoorganismo.

Solms também sofre forte opo-sição de neurocientistas como oamericano Allan Hobson (leia en-trevista ao lado), ao afirmar queas recentes descobertas científicassobre a localização das funçõescerebrais são coerentes com algu-mastesesdeFreud.

De Londres, o professor da Uni-versidade de Cape Town (Áfricado Sul) e da London School ofMedicine falou à Folha por telefo-nesobresuasdescobertas.

Folha - O que são os sonhos? Paraque servem?

Mark Solms - São pensamentosque ocorrem du-rante o sono e quetomam forma dealucinações. Naverdade não sabe-mos com certezaqual é a funçãodos sonhos para oorganismo. Ne-nhuma teoria ain-dafoiprovada.

Poderia dizer,no entanto, quesua principal fun-ção é a de nos re-presentar em nos-sas mentes para realizar, no ima-ginário, algo que não poderíamosquandoacordados.

Folha - Por que o sr. mudou deidéia a respeito das teses de Freud?

Solms - As evidências encontra-das parecem ser coerentes comsua teoria. O que nós pesquisáva-mos no início dos anos 90 pareciasugerir que Freud falhara, masnóséqueestávamoserrados.

Os sonhos são gerados pelaspartes do cérebro responsáveispela motivação, instintos e emo-ções, mecanismos altamente ati-vos durante o sono. O que é coe-rentecomoqueFreuddizia.

Também sabemos que, no so-no, quando esses mecanismos es-tão em atividade, outros que oscontrolam estão desativados, co-mo os ligados à racionalidade eorientados pela realidade. Issonão prova que ele estava certo ouerrado, mas estamos chegandopertodepoder,aomenos, testar.

Folha - Quais são seus pontos dediscordância com as teses de Freudsobre os sonhos?

Solms - A meu ver, a parte maisfraca da teoria refere-se aos signi-ficados ocultos dos sonhos. Issopode confundir o sonhador e oanalista numa ginástica mentalcomplicada. Eu não digo queFreud estava errado, apenas con-sidero improvável que sua expli-caçãosejaocaminhomaisviável.

Folha - Como seria a nova abor-dagem terapêutica combinando aneurociência e a psicanálise?

Solms - Todos têm algo a ensi-nar. Nós podemos aprender so-

bre como a mente funciona doponto de vista da experiência sub-jetiva, algo que nunca podería-mospelasciências físicas.

Vice-versa, há coisas que nuncavamos aprender cientificamentesobre a mente, apenas conversan-do com as pessoas. Precisamos fa-zer pesquisas, sermos capazes defazer medições e manipular variá-veisexperimentalmente.

O ganho óbvio ao unirmos asduas abordagens é que teremosum entendimento melhor sobre ofuncionamento da mente. Sabe-remos com mais precisão o quefazer. As novas terapias poderãoser baseadas em intervençõesmaisespecíficas,maisdefinidas.

Folha - Então seria possível no fu-turo os sonhos serem vistos de umaoutra maneira?

Solms - Sim.Nósjásabemos,porexemplo, que há quatro instintosbásicos no cérebro dos mamífe-ros, todos igualmente importan-tes para a geração de sonhos: osinstintos de medo, raiva, da buscadoprazereogregário.

Para os psicanalistas clássicos,os sonhos são influenciados so-mente pela busca do prazer, pelodirecionamento da libido. Masnada indica que esse sistema é omais importante. Os psicanalistasdizem que o medo é secundário, aprimeira causa é o desejo. Esse éum dos pontos que a psicanálisepoderiarever.

Folha - É possível alterar sonhosusando medicamentos?

Solms - Sim,épossívelalterarso-nhos quimicamente. Mas não épossível dizer que faremos umapessoa sonhar com algum temaespecífico. Também não pode-mos fazer alguém sonhar mais oumenos vezes, ter sonhos mais ou

menos bizarrosouintensos.

Folha - Haveriaquestões éticas aousar esses medica-mentos?

Solms - Comotudo em medici-na, isso pode serusado para o bemou para o mal. Omesmo pode serdito de toda a ma-nipulação quími-ca do funciona-mento cerebral.

Nós não sabemos exatamente co-mo isso pode ajudar no contextodoprocessoterapêutico.

Folha - É fato que alguns neuro-cientistas se interessam pelas teo-rias de Carl Jung sobre sonhos?

Solms - Principalmente paraAllen Braun e Allan Hobson, quehoje têm simpatia pela concepçãojunguiana sobre sonhos. Elesacham que elas retratam melhoras preocupações do sonhador. Émais compatível do que afirmarque os sonhos têm significadosocultos. O que vemos é o que te-mos,segundosuasafirmações.

Folha - Qual é sua opinião sobre atese de Hobson de que os sonhossão apenas produto da atividadecerebral durante o sono?

Solms - Para começar, AllanHobson diz coisas diferentes emdiferentes momentos. Inicial-mente ele afirmava que os sonhossão aleatórios e sem significado.Tentarinterpretá-losseria inútil.

Agora não diz que eles não te-nham significado, mas que esse éóbvio. Você não precisa de um te-rapeuta para interpretá-los. Pen-so porém, que não é tão óbvio as-sim. Se você pesquisar, 95% daspessoas não sabem o que seus so-nhos significam. De fato, a maiorparte das vezes não conhecemostodos os significados dos sonhosdenossospacientes.

Hobson também admite hojeque os sonhos revêem basica-mente o estado emocional e moti-vacional no cérebro. Acho que elenão quer ser visto como alguémque,nofinal,estavaerrado.

Para psiquiatra,além da buscapelo prazer,medo tambéminfluencia osonhar

D A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

A interpretação de sonhos noprocesso terapêutico, como faz apsicanálise, é um erro, diz um dosmais comentados neurocientistasamericanos dedicados ao estudodo sono e dos sonhos, JamesAllanHobson.

Psiquiatra e professor da Escolade Medicina da UniversidadeHarvard (EUA), Hobson se desta-ca, desde o final da década de 70,como um crítico persistente dateoria psicanalítica clássica sobreossonhos.

Sua própria teoria, chamada“hipótese da ativação-síntese”, foielaborada a partir de observaçõesdofuncionamentocerebral.

Segundo essa teoria, os sonhosseriamum produtodaintensaati-vidade do cérebro durante o sonoe de estímulos que sensibiliza-riam regiões específicas do córtexresponsáveispelasemoções.

Os sonhos não teriam, então,nenhum significado oculto e se-riamsemelhantesaosdelírios.

Hobson defendeu suas teses emlivros como “The DreamingBrain” (“O Cérebro Sonhador”) e“Dreaming as Delirium” (O so-nhocomodelírio),dentreoutros.

Recentemente, entretanto, elerevisou parte desua antiga teoria epassou a admitirque os sonhos têmalgum significado,mas que estes sãoóbvios e não pre-cisariam de umainterpretação so-fisticada.

Hobson, no en-tanto, tambémenfrenta muitascríticas dentro daprópria comuni-dade científica,como as do neuropsiquiatra sul-africano Mark Solms (leia entre-vista ao lado) que argumenta queas descobertas recentes não po-dem descartar completamente ateoriafreudianasobreapsique.

Pesquisador reconhecido e es-critor prolífico (mais de dez livrospublicados), Hobson falou, portelefone, de seu escritório emHarvard, à Folha sobre a funçãodossonhos.

(CLOVIS CASTELO JUNIOR)

Folha - O que são os sonhos?Allan Hobson - São experiências

psicológicas subjetivas que ocor-rem durante o sono regular. O fa-to científico interessante está naintensidade dos aspectos dos so-nhos que estão relacionados à ati-vidadecerebral.

Se há uma grande atividade du-rante o sono, o cérebro se tornaaltamente ativado e começamos aver coisas como se estivéssemosnumcenáriodefilme.

Normalmente se pensa que, du-rante o sono, o cérebro está apa-gado como uma lâmpada, masnão é verdade. Mesmo quandodormimos, 80% do cérebro per-maneceativo.

Sabemos que a inconsciênciafunciona num alto nível de ativi-dade cerebral. As memórias, en-tretanto, são um indicador muitopobre do que acontece. Entãoprecisamos estudar as pessoas emestadodevigília.

Folha - Qual é a função do sonhopara o organismo humano?

Hobson - Sonhar parece não seraltamente essencial para a sobre-vivência. Tanto assim que há pes-soas que nunca se lembram deseus sonhos e vivem bem. Pode-ríamos dizer que sonhar ajuda aentendermos melhor a nós mes-mos. Isso não é essencial para asobrevivência.

Entretanto, quando observa-mos o sono REM de outros ma-míferos (algo que compartilha-mos com eles), percebemos queos sonhos são importantes para ocontrolede temperaturacorporal.Mas aí já é outra história. É umaquestão de vida ou morte. Aforaisso, eu acho que sonhar prova-velmente não tem outra funçãorelevante.

Folha - Os sonhos têm algum sig-nificado?

Hobson - Todo o conceito dasimbologia dos sonhos é um erro.Sonhos são estranhos porque esseé o jeito que o cérebro é ativado.Mas isso não significa que elesnão tenham significados. Fatoresemocionais das pessoas são mui-to bem refletidos noconteúdodossonhos. Mesmo que eles pareçamum pouco malucos, indicam umestímuloemocional.

Nesse sentido, Freud estava cer-to, pois rememorar sonhos é re-ver fatos emocionais. E vê-los emsonhos talvez seja mais evidentedo que quando acordados. Mas aidéia freudiana sobre significadosocultosnãotemsentido.

Folha - O relato de sonhos seriainútil em um contexto terapêutico?

Hobson - Eu não diria que é inú-til, mas que os sonhos não são tãosignificativos como as pessoasacham. Eu sou um terapeuta e fa-lo bastante sobre sonhos commeus pacientes. Eu falo com mi-

nha família sobreos meus. É umaboa maneira dedescobrir as cau-sas de ansiedadenas pessoas, porexemplo. Mas amaior parte dascoisas que podemnos deixar ansio-sos nós já conhe-cemos. Ficamosansiosos por per-dermos reuniões,por chegarmosno horário, com o

modoadequadodenosvestiretc.Eu tenho colecionado sonhos

por 30 anos, tenho centenas de re-latos. E não acho que eles sejamtão fundamentais. Exceto, talvez,para um melhorentendimento dadinâmicadocérebro.

Folha - É verdade que alguns neu-rocientistas passaram a olhar cominteresse a abordagem de CarlJung para os sonhos ?

Hobson - É verdade. Acho que osjunguianos vão gostar disso...Mas o problema é que Jung ficoumais louco que Freud. Acho que asua visão sobre sonhos é mais ra-zoável, mais realista. Mas nãoconsidero válido o que ele dissesobreanima,sombra,self...

Folha - Qual é sua opinião sobreas teses de Mark Solms, que tentadar validade científica para as es-truturas freudianas?

Hobson - Ele é um psicanalista, oque mais posso dizer? Uma vez je-suíta, sempre jesuíta. Entretanto éimportante dizerque seu trabalhoé bem interessante. Especialmen-te útil por suas descobertas com ouso do PET-Scan [tomografia poremissão de pósitrons, técnica quepermite fazer imagens do cérebroem funcionamento], que contri-buíram muito no entendimentodas estruturascerebraisessenciaisparaosonho.

O problema é a interpretação.Ele quis misturar com psicanálise,de maneira bem intenciona-da.Masachotolice, francamente.

NA INTERNET - Leia a íntegra da entre-vistas em: www.folha.com.br/treinamen-to/sono

Para cientista,significado dossonhos é óbvioe dispensainterpretaçõessofisticadas

Flora (nome fictício), que tem surtos repentinos de sono, em casa

INTERPRETAÇÕES DO SONHO

Fontes: Encyclopedia Britannica; Enciclopédia Delta Larrouse; EnciclopédiaLarrouse Cultural; Enciclopédia Barsa; Enciclopédia Mirador Internacional

NA ANTIGÜIDADE

Vários povos da Antigüidade acreditavam que o sonhoera enviado por deuses e seus significados erammensagens divinas ou sobrenaturais. Por meio deles,

pensavam ser possível prever o futuro e indicar a curapara doenças

EgitoO chamado “papiro de Chester Beatty” é o mais antigoregistro conhecido da tentativa do homem para dar

sentido para seus sonhos. Eles seriam mensagens dadeusa Ísis

Grécia antigaApesar da crença disseminada no poder do sonhos,os filósofos Heráclito (544-483 a.C.) e Aristóteles (384-

322 a.C.) desenvolveram a idéia de que o sonho estáligado ao aspecto interior do indivíduo. Eles são metáforas efragmentos de lembranças e refletem o estado do corpo.Hipócrates (460 - 357 a.C.), pai da medicina, escreveu o “Tratadodos Sonhos”, sobre o diagnóstico através da atividade onírica

NA PSICANÁLISE

Em 1900, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856 -1939)argumenta em sua obra “A Interpretação dos Sonhos” que os

sonhos são o resultado daatividade psíquica, têm a

função de preservar osono e,

principalmente, desatisfazer desejosinconscientes eelaborar conflitosreprimidos(principalmentede natureza

sexual)

NA BÍBLIA

Na Bíblia os sonhos exercem importante papel comoeventos sobrenaturais e proféticos, e como uma formaespecial na comunicação de Deus com o homem

O livro do Gênesis apresenta em seus capítulos 15,20,27,31,37,40,41 histórias onde os sonhos têm papelcentral, como o sonho da escada de Jacó e os sonhos

do Faraó egípcio interpretados por José

Hácoisasquenuncavamosentender sobre

amentehumanaapenas

conversandocomaspessoas

Todooconceitodasimbologiados sonhoséumerro. Elessãoestranhosporqueécomoocérebroéativado

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AB T R A I N E E sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 A 7

Aparelhosprometeminterferirnossonhos

YUMEMI KOUBOU

Em um diário que vem junto com oaparelho, o usuário registra com detalheso sonho que deseja ter

Ele afixa na máquina, então, umafotografia que evoque esse sonho

Em seguida, escolhe uma música euma fragrância e grava três palavras-chave relacionadas à cena imaginada

Antes de dormir, ele deve relaxar ementalizar a situação com a qual quer sonhar

O aparelho entra em ação após seis horas e meia de sono,período em que a duração da fase REM é maior

Música, fragrância e palavras-chave são ativadas por umahora e 20 minutos

Pela manhã, o usuário é acordado por uma luz cujaintensidade vai aumentando aos poucos

Segundo a Takara, é preciso dormir por pelo menos oitohoras para que o aparelho seja eficaz

Fonte: Takara Corporation

Site: www.takaratoys.co.jp (em japonês)

Aparelho criado pela Takara, companhiajaponesa. Promete programar os sonhos

Foto

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NOVADREAMER

Possui sensores que detectam operíodo de REM (movimento rápidodos olhos), quando ocorremos sonhos, e acionam luzesque piscam sobre aspálpebras do usuário

Esses sinais passam a fazer parte do sonho e, se a pessoa forcapaz de reconhecê-los sem acordar, poderá agirconscientemente durante o sonho, segundo o Lucidity Institute

Quem tem sono pesado pode aumentar a freqüência e aintensidade dessas luzes e introduzir sons

Para ter certeza de que as luzes ou sons do sonho sãoresultado da ação do NovaDreamer e de que, portanto, estárealmente sonhando, o usuário precisa “testar a realidade”,ou seja, identificar, no cenário de seu sonho, algo que sejaimpossível na vida real, diz o fabricante

Esse teste pode ser feito de várias maneiras. Uma delas édar um pulo. De acordo com o Lucidity Institute, se estivermesmo sonhando, a pessoa provavelmente conseguirá voar

Fonte: Lucidity Institute

Máscara criada pelo Lucidity Institute, centro de pesquisa dos EUA.Tem o objetivo de induzir a consciência durante o sonho

Site: www.lucidity.com (em inglês)

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Norte-americanos e japonesesinvestememnegócio inusitado

FLÁVIA MANTOVANIVIVIANE YAMAGUTI.......................................................................................

D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Podem ser apenas mais duas in-venções mirabolantes de ameri-canos e japoneses, mas a idéiachama a atenção. Dois aparelhosainda pouco conhecidos prome-tem intervir num campo tido co-moincontrolável:ossonhos.

Um deles é o Yumemi Koubou—ou “oficina de sonhos”—, queutiliza estímulos sensoriais paraajudar as pessoas a sonharemcom o que desejam. O outro é oNovaDreamer, máscara de dor-mir que pretende induzir a cons-ciênciaduranteosonho.

A máscara foi criada por Ste-phen LaBerge, 56, doutor em psi-cofisiologia pela UniversidadeStanford (EUA). Ela é resultadode estudos realizados no LucidityInstitute, centro de pesquisa so-bre sonhos lúcidos fundado porLaBergenaCalifórnia.

Sonhar lucidamente significater a consciência de que se está so-nhando durante o próprio sonho.Uma pesquisa feita por um grupodo departamento de psicobiolo-gia da Unifesp (Universidade Fe-deral de São Paulo) com 70 adul-tos mostrou que 30% já tiveramessaexperiêncianaturalmente.

Segundo Dominick Attisani, as-sessor do Lucidity Institute, so-nhos lúcidos podem proporcio-nar “crescimento pessoal”. “O ce-nário do sonho pode ser um am-biente de treino para o mundoreal”, diz. LaBerge, um dos pou-cos pesquisadores do assunto, éconsiderado referência pelosadeptosdaprática.

Para induzir a consciência du-rante o sonho, o NovaDreamerpossui sensores que detectam operíodo de REM e acionam luzesque piscam sobre as pálpebras dousuário. Esses sinais passam a fa-zer parte do sonho e, se a pessoafor capaz de reconhecê-los semacordar, poderá agir consciente-mente(leiaquadroaolado).

Todo ano, o Lucidity Instituterealiza seminários para ensinar“técnicas de indução de lucidez”,que, se bem treinadas, suposta-

mente dispensam o uso de qual-quer aparelho. O próximo seráemManaus(AM),emjaneiro.

Fora do mercado desde o iníciodo ano, quando era vendido peloLucidity Institute por US$ 250(cerca de R$ 680), o NovaDrea-mer foi lançado em 1992. LaBergejá desenvolveu uma nova versãodo aparelho, mas ainda não hádata para comercialização. Attisa-ni não forneceu dados sobre ven-das —falou, apenas, em “milha-res”deunidades.

EngenhocaorientalO Yumemi Koubou é fabricado

pela companhia de brinquedosTakara, responsável por inven-ções como tradutores de miadoselatidos.

A idéia de criar o aparelho sur-giu de discussões sobre tecnolo-gias futuristas. Eiko Matsuda, es-pecialista em pesadelos e profes-sora da universidade Edogawa,ajudouadesenvolvê-lo.

Para programar um sonho como Yumemi Koubou, o usuário de-ve afixar no aparelho uma foto-grafia, escolher uma música euma fragrância e gravar três pala-vras-chave relacionadas ao quedeseja sonhar. Esses estímulossensoriais serão ativados durantea noite (leia quadro ao lado) e, se-gundo a Takara, influenciarão oconteúdodosonho.

Testes clínicos feitos pela com-panhia japonesa mostraram queo Yumemi Koubou aumenta emquase quatro vezes a chance de sesonhar com algo relacionado aoquesedesejouantesdedormir.

Segundo Kennedy Gitchel, re-presentante da empresa, a inten-ção é “proporcionar entreteni-mento numa área geralmentepoucorelacionadaaisso”.

O aparelho está à venda no Ja-pão por 15.540 ienes (cerca de R$400). Desde o lançamento, em se-tembro, mais de 10 mil unidadesforamvendidas.

Não há planos para a venda doproduto no Brasil. Segundo a Ta-kara, ele ainda não pode ser im-portado, pois foi criado para pa-drões elétricos japoneses e nãopossuimenusemoutros idiomas.

Especialistas duvidamde controle do ‘enredo’

NovaDreamer já foitestado por brasileira

D A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

O neurologista Luciano Ribei-ro, do Instituto do Sono da Uni-fesp, conhece o trabalho de Ste-phen LaBerge e acredita que a ca-pacidade de sonhar lucidamentepodeserdesenvolvida.

O psiquiatra e psicanalista Al-fredo Colucci também diz queuma parte da mente pode ficar“observando” o sonho, mas ad-verte que, a longo prazo, a práticapode causar cansaço: “A parteconsciente não relaxa. O ideal équeamentetodadurma”.

No caso do Yumemi Koubou,Ribeiro afirma que o mecanismofaz sentido, pois o sonho pode in-corporar estímulos externos.“Um apito que toca enquantodormimos pode entrar no nossosonho transformado no barulhodeumafábrica”,exemplifica.

O que não pode ser controlado,segundo o neurologista, é o que

nossa mente fará com o estímulo,ou seja, o “enredo” que o sonhoterá. Para ele, o responsável porisso é o sistema límbico, conjuntode estruturas cerebrais que co-mandaasemoções.

Os psicanalistas Fani Hisgail eAlfredo Colucci também dizemque o “enredo” do sonho inde-pendede nossa vontadee,portan-to, não pode ser controlado poraparelhos. Segundo Hisgail, orga-nizadora do livro “A ciência dossonhos”, é nosso inconscienteque seleciona quais estímulosaparecerão no sonho e de que for-ma eles serão combinados paracriaranarrativa.

O Lucidity Institute afirma nãobasear seus estudos na psicanáli-se. A Takara diz que o YumemiKoubou foi projetado não paradar um roteiro ao sonho, mas pa-ra elevar a chance de que o temaescolhido antes de dormir apare-çanele. (FM E VY)

D A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

O sonho lúcido favorito de Bea-trice Guimarães, 41, foi o de voar ese fundir com uma estrela. “Deuumasensaçãodeplenitude”,diz.

Professora de artes plásticas,Beatrice ouviu falar pela primeiravez no tema quando, trabalhandona Alemanha com computaçãográfica, em 2000, conheceu umadepto da teoria de Stephen La-Berge. Em maio de 2001, ela foi aoHavaí para participar de um se-minário do americano sobre téc-nicasdeinduçãodelucidez.

Ao longo de dez dias, relata, osparticipantes repetiam o mesmoritual: de manhã, reuniam-se paracontar o que haviam sonhado; àtarde, passeavam pela ilha e, ànoite, assistiam a filmes como“Matrix” ou a palestras do gurudos sonhos lúcidos. “Fiqueimuitobem impressionada; não tem na-dademístico“,comenta.

Durante a viagem, Beatrice ex-perimentou o NovaDreamer. An-tes mesmo de o aparelho entrarem ação, porém, já estava lúcida.Ela sonhou com uma barata gi-gante e, quando o aparelho come-çou a agir, acordou. Comisso,nãopôde se livrar da barata no sonho.“O aparelho não incomodanaho-ra em que adormecemos, masseusflashessãomuitofortes”,diz.

Segundo Beatrice, o uso do No-vaDreamer exige prática, porqueé necessário tempo para ajustar aintensidade das luzes. Em vez deusar o aparelho, ela prefere dedi-car-se às técnicas de indução deconsciência ensinadas por LaBer-ge. “Geralmente, eu dou um puli-nho. Se saio voando, é porque es-tousonhando”,diz.

A professora diz que gostade tersonhos lúcidos para simular si-tuações: “Se a gente sonha comum leão, pode ir lá e bater nele. Is-sodáumafortalecida”. (VY)

Samir Baptista/Folha Imagem

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Noites em claro inspiram artistasPAULA LEITE........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Glauco Mattoso acorda depoisde um pesadelo, como acontecepraticamente todas as noites. Nãoconsegue voltar a dormir. Parapassar as longas horas de insônia(ele fica oito horas na cama, masdiz que dorme cerca de metadedisso), compõe poemas mental-mente. Mattoso memoriza ospoemas e no dia seguinte não pre-cisa mexer muito neles. O temadeles, muitas vezes, é a seqüêncianoturna de sono, pesadelo, vigília,orgasmo e sono novamente porqueelepassa.

O poeta perdeu a visão há cercade dez anos e tem pesadelos porcausa disso. “Meus pesadelos, de-pois que eu fiquei cego, são muitonítidos. Eu me lembro de tudopor causa da memória visual.Quando acordo, o susto é maiorainda, porque aí eu lembro de no-vodacegueira.”

Mattoso, 53, não quer tomar re-médios para insônia: “Se eu co-meçar a usar, eu sei que não vouparar mais”. Ele toma chá para setranqüilizar e também tem orgas-mos para relaxar. Para Mattoso, osexoéumaespéciedeterapia.

O poeta diz que as coisas queaconteceram com ele se repetem

nos pesadelos. “No sonho, eu soucego, mas vejo tudo o que aconte-ce em volta e está tudo colorido.Ou então eu sonho que estou en-xergando e vou ficar cego. Essessãoosmaisapavorantes.”

Milton Hatoum, 52, escritor,acredita que sua insônia não temefeitos negativos. Ele não conse-gue dormir antes das 2h, masacorda entre 6h30 e 7h, por forçado hábito. Em Manaus, onde mo-rava, Hatoum acordava cedo por-que gostava do sereno das ma-nhãs. “Sou de uma região ondeainda existe uma alegria solar”,diz. Ele mora em São Paulo desde1999, mas já tinha morado na ca-pitalpaulistanosanos70.

Autor de “Relato de um CertoOriente” e “Dois Irmãos”, Ha-toum diz que a noite está presenteem sua obra e cita a personagemsurda-muda do “Relato”, guiadapor uma sensibilidade noturna.“Muita gente vê a insônia comoum transtorno. Eu acho que éumaespéciedeiluminação.”

Assim como Hatoum, o artistaplástico Luiz Paulo Baravelli valo-riza a luz, mas gosta da elétrica,que o ajuda à noite. Ele diz queseu trabalho tem a ver com essaluz difusa. Seu ateliê na GranjaViana tem a iluminação divididapor seções e ele gosta de poder

controlar a luz, apagando uma se-ção e acendendo outra parapoderse concentrar cada vez em umaobradiferente.

Baravelli acha também que a in-trospecção é natural à noite.Ele sópinta nesse período. Durante atarde, faz coisas práticas, como iraodentistaoumexernaoficina.

Segundo o artista, muitosacham que sua vida é uma farra,mas, na verdade, sua rotina é dis-ciplinada. Ele dorme às 6h e acor-da às 15h todos os dias, e come emhorários regulares, só que seis ho-rasdepoisdamaioriadaspessoas.

Baravelli diz que segue esse ho-rário desde criança. Ele conta que,no final dos anos 40, havia umprograma de músicas no rádio(“do Miguel Vacaro Neto”, conta)que começava às 23h. Baravelli ti-nha 12 anos e ficava escutando oprograma escondido, debaixo dascobertas,emvezdedormir.

Rodrigo Andrade, 42, artistaplástico, gosta do sossego da noi-te. Ele se considera notívago esente necessidadede ficar sozinhoe em silêncio. O artista diz que,enquanto de dia pensa em outrascoisas, à noite ele cria um “espaçomental”epensanotrabalho.

NA INTERNET - Veja relação de livros,quadros, filmes e músicas em www.fo-lha.com.br/treinamento/sono

SONETO INSONEGlauco Mattoso

Ser cego é como estar numa prisão.

Ficar cego é pior, parece o susto

de quem foi livre e sofre o golpe injusto,

levado para o hospício estando são.

O sonho é colorido, pois estão

bem vivas na memória, a muito custo,

imagens dum recente e já vetusto

passado de prazer e perversão.

Nenhum ouvido escuta meu apelo.

Acordo e lembro em pânico que o sonho

foi falso: a realidade é o pesadelo.

Só volto a adormecer quando componho

sonetos sobre o pé. Gozo ao lambê-lo,

e agora o escuro não é tão medonho.

O artista Luiz Paulo Baravelli em seu ateliê, onde trabalha à noite

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A 8 sexta-feira, 3 de dezembro de 2004 T R A I N E E AB

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Quem ganha menos temmais pesadelos, diz pesquisa

24%dos paulistanos com renda até 5 saláriosmínimos costumam ter esse tipo de sonho

QUAL É SEU PESADELO ?

MILTON HATOUM, escritor:“Meu maior pesadelo é com a morte. Eu acho que a morte, comodizia Cortázar, ‘é um escândalo’. Quando eu tenho esse tipo depesadelo, fico pensando nas pessoas mais queridas que estãolonge de São Paulo. Quando eu tenho um pesadelo desses, éum grande prazer acordar. O despertar realmente é quase umareverência ao mundo, à vida. Como se fosse um salto contra osalto mortal do pesadelo”

RODRIGO ANDRADE, artista plástico:“Tinha um que era recorrente: batiam à minha porta uns carasameaçadores. Eles chegavam com um cachorro morto, meiopodre, com vermes, feridas infeccionadas, e me obrigavam asegurá-lo. Eu não queria e eles me ameaçavam com facões. Umnegócio meio rústico, primitivo”

LUIZ PAULO BARAVELLI, artista plástico:“Eu tinha um pesadelo em que eu era o pesadelo. As pessoasolhavam para mim e saíam correndo”

JOSÉ GENOINO, presidente do PT:“Tive um pesadelo na noite queantecedeu a minha prisão [em1972, no Araguaia]. Sonheique estava sendo presoe, no dia seguinte, fuipreso. Estavadormindo nomato sozinhonuma rede e tiveo pesadelo.Acordei e nãosabia se estavasolto ou se estavapreso. Quandoacordei, estava solto,e voltei a dormir. Nodia seguinte, fui preso”

TOM ZÉ, cantor e compositor:“Num dos meus pesadelos, os planetas do sistemasolar se chocavam, em movimentos e colisõesabissais, para total desamparo deste terráqueoque responde a você”

Ten.-Cel. MARCOS PONTES, único astronautabrasileiro em treinamento na Nasa:

“Eu sonhei que estava no oceano, longe de tudo, longe de todos,como se tivesse sido ejetado de um avião. Estava dentro d‘água,sem chance por vários dias. Sabe como é, piloto não gosta muitode água, né?”

MARCELO MIRISOLA, escritor:“O pior pesadelo é o arrependimento. No meu caso, foi terparticipado das antologias organizadas por Nelson de Oliveira.Como se eu tivesse dado meus filhos (o pesadelo é recorrente...)para uma babá desnaturada cuidar. O resto é mel na chupeta”

JANETH, maior cestinha da história das Olimpíadas:“Já tive alguns sonhos em que, de repente, aparecia uma cobraque tentava me picar. Ela nunca conseguiu, graças a Deus”

TATI QUEBRA-BARRACO, cantora:“Meu pesadelo é minha gordura, é ser gorda”

Marcelo Min - 15.nov.2000/Folha Imagem

Sidinei Lopes - 17.jun.2004/Folha Imagem

Bruno Stuckert - 16.fev.2004/Folha Imagem

FLÁVIA MANTOVANI........................................................................................D A EQ UIP E DE T RAI NEES

Dinheiro pode não trazer felici-dade, mas a falta dele aumenta achance de ter pesadelos. De acor-do com a pesquisa Datafolha, umem cada quatro paulistanos queganham até cinco salários míni-mos (R$ 1.300) costuma ter essetipodesonho.

Entre os mais ricos —com ren-da superior a dez salários míni-mos (R$ 2.600)—, esse índice é deapenas 13%. No caso de pessoasque ganham entre R$ 1.301 e R$2.600,ataxaéde21%.

Segundo médicos especialistasem sono ouvidos pela Folha, apreocupação com itens básicos,como emprego, comida e trans-porte, explica a maior incidênciade pesadelos entre osque têm me-norrenda.

Os dados mostram que 22% dospaulistanos maiores de 16 anoscostumam ter pesadelos. Para apresidente da Sociedade Paulistade Medicina do Sono, Rosana Al-ves, esse número é elevado e estárelacionado ao tipo de vida emuma metrópole. Estresse e medoda violência deixam as pessoasmais alertas, o que favorece o apa-recimentodepesadelos.

O contexto econômico e socialtambém pode tornar os pesadelosmais freqüentes, de acordo com opresidente da Sociedade Brasilei-radoSono,SergioTufik.

Em estudos realizados em 1986e em 1995, Tufik detectou que umnúmero maior de pessoas têm pe-sadelos em períodos de instabili-dade. “Em 1986, quando o PlanoCruzado tinha ido para o brejo, onúmero de pessoas com pesade-los chegou a 70%. Na pesquisa de1995, quando o Plano Real aindaestava dando certo, deu poucomaisde20%”,diz.

Apesar de serem mais freqüen-

tes na infância, pesadelos podempersistir na vida adulta.Deacordocom Dirceu Valladares, diretor daClínica do Sono de Belo Horizon-te, indivíduos adultos mais sensí-veis são mais propensos a tê-los:“São pessoas mais vulneráveis,mais transparentes e com menosmecanismosdedefesa”.

Segundo o psiquiatra, o pesade-lo é uma forma de o cérebro orga-nizar impressões fortesqueviven-ciamos e que não conseguimos“digerir”duranteodia.

O tipo de impressão e o impactoque ela causa sobre o indivíduovariam e são de ordem subjetiva.Ver o corpo de alguém assassina-do, por exemplo, poderá chocar amaioria das pessoas, mas prova-velmente não terá o mesmo efeitosobreummédicolegista.

Quando tratarTer pesadelos de vez em quando

é considerado normal. O proble-ma, segundo Rosana Alves, équando eles passam a atrapalharo sono. Dos pacientes que a pro-curam por esse motivo, a maioriase queixa de pesadelos repetitivos—quando o mesmo sonho apare-ce durante várias noites. Nesse ca-so, a origem pode estar na síndro-me do estresse pós-traumático,que acomete pessoas que viveramexperiências muito chocantes—como guerras, seqüestros ououtrostiposdeviolência.

A retirada brusca de alguns me-dicamentos, como os antidepres-sivos, também pode aumentar afreqüênciadepesadelos.

Acompanhamento psicológicoe terapia comportamental são al-gumas saídas para esses casos. Hátambém remédios que inibem osono REM (fase em que ocorremos sonhos) e diminuem a possibi-lidade de que os pesadelos apare-çam, mas eles só são recomenda-dosparaoscasosmaisgraves.

QUAL É SEU PESADELO ?

FERNANDA PORTO, cantora:“Sonhei que estava caindo da escada e acordei assustada,achando que tinha caído mesmo”

DÉCIO TOZZI, arquiteto, autor do parque Villa-Lobos, SP:“Sonhei que eu era o super-homem e estava todo de azul e comaquele ‘S’ vermelho no peito. Estava na Madison avenue, lá emNova York, e vi um casal de certa idade, ele vestido de smoking,na calçada. De repente, eles se transformaram em Batman eRobin e me deram um grande susto. Com o sobressalto, euacordei”

GUSTAVO BORGES,nadador:

“Meu pior pesadelo foi emBarcelona-92. Um dia antes daOlimpíada, fiquei a noite inteiraacordado. Não conseguiadormir de jeito nenhum. Devoter dormido umas três horas ànoite. Quando dormia, ficavaremoendo a prova e aadrenalina já subia”

NALBERT, medalha de ouro e capitão da seleção brasileirade vôlei na Olimpíada de Atenas:

“Durante os cinco meses em que não pude jogar, enquantoestava com o ombro ruim e tendo de fazer fisioterapia, sonhavasempre que estava jogando. Quer dizer, o sonho não é ruim. Oruim é acordar e saber que não vou poder jogar”

CARLOS ALBERTO PARREIRA, técnico da seleçãobrasileira masculina de futebol:

“Sonhei que uns extraterrestres invadiam a Terra e destruíamtudo. Eu fugia, todo mundo morria, era aquele corre-corre. Nãosei se foi influência daqueles filmes que a gente vê, mas foi umahistória meio louca”

JOSÉ MOJICA, O ZÉ DO CAIXÃO, cineasta:“Eu sou o homem dos pesadelos. Não tenho sonhos normaiscomo você. Vivo de pesadelos e daí eu tiro grandes históriasminhas. O pesadelo que mais me marcou foi um em que euestava na 2ª Guerra Mundial e caí num navio japonês. Puseram-me numa câmara de tortura, uma caldeira explodiu dentro donavio e ele pegou fogo. Me joguei no mar e comecei a me afogar.Um tubarão pegou meu corpo por baixo e começou a me devorar.Eu sentia as dores da mordida do tubarão, a morte porafogamento e o corpo queimado. Acordei dando um gritodanado e foi um alívio saber que a minha cama não era realmenteo mar onde eu me afogava”

MÁRCIO THOMAZBASTOS, ministro

da Justiça:“Eu tenho umpesadelo que érecorrente. Tenhoum júri para fazer,chego atrasado e aporta já fechou. Já

tive esse pesadelodezenas de vezes.

Chego lá e o réu já estásendo julgado”

Juca Varella - 9.jul.2003/Folha Imagem

Fernando Moraes - 20.jan.2004/Folha Imagem

Alan Marques - 10.mar.2004/Folha Imagem

Renato Stockler/Folha Imagem

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Helder Magalhães, 25, queria morar em um lugar menos barulhento

Barulho faz nome darua Sonhos virar ficçãoD A EQ UIP E DE T RAI NEES.............................................................................................................

Nos 61 metros que separam aprimeira daúltima casa da rua So-nhos, uma pequena travessa semsaída em Vila Fidélis Ribeiro (zo-na leste de São Paulo), cabemmuitospesadelos.

Para o advogado Helder BarrosMagalhães, 25, eles vêm das ruasem forma de barulho. De madru-gada, Helder costuma despertarcom o ruído dos freqüentadoresde uma casa de shows próximadali,naavenidaSãoMiguel.

Durante o dia, os moradores darua, às margens do cruzamentoentre as avenidas São Miguel eAmador Bueno da Veiga, duasdas mais movimentadas da re-gião, sofrem com o barulho decarrosecaminhões.

Mas não o mecânico Silas Mi-guel, 46, para quem o tráfego nãoé incômodo. “Já me acostumei”,diz, entre uma pancada e outra na

suaoficinamecânica.Principal fonte geradora de ruí-

do em São Paulo, o tráfego colocaa cidadeentre asmaisbarulhentasdo mundo, ao lado do Rio de Ja-neiro, Tóquio e Nova York, se-gundo o documento Informe GeoCidade de São Paulo, elaboradopela Secretaria Municipal do Ver-de e Meio Ambiente em parceriacom o IPT (Instituto de PesquisasTecnológicas).

Da rua em que os moradores di-zem sonhar pouco, ninguém sabede onde veio o nome. Apesar dis-so, Miguel, nascido na época emque a via eraconhecidapeladeno-minação de “travessa 3”, gosta daatual. “Tem coisa melhor do quesonhar?”,questiona.

Já para o vizinho Helder, a “ruados sonhos” poderia ser até nomesmo bairro, mas não exata-mente ali. “Só queria morar numlugar menos barulhento”, diz.

(AMAURI ARRAIS)