filosofia francesa contempornea

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Compêndio de vários artigos cuja temática central é a Filosofia Francesa.

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  • ANPOF - Associao Nacional de Ps-Graduao em Filosofia

    Diretoria 2015-2016Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Alberto Ribeiro Gonalves de Barros (USP)Antnio Carlos dos Santos (UFS)Andr da Silva Porto (UFG)Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)Maria Isabel de Magalhes Papaterra Limongi (UPFR)Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

    Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hlder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)rico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

    Equipe de ProduoDaniela GonalvesFernando Lopes de Aquino

    Diagramao e produo grficaMaria Zlia Firmino de S

    CapaCristiano FreitasDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)F487

    Filosofiafrancesacontempornea/OrganizadoresMarceloCarvalho,DirceEleonoraNigroSolis,AlexandredeOliveiraTorresCarrasco.SoPaulo:ANPOF,2015.682p.(ColeoXVIEncontroANPOF)

    BibliografiaISBN978-85-88072-38-1

    1.Filosofiafrancesa2.Sartre,Jean-Paul,1905-19803.Beauvoir,Simonede,1908-19864.Merleau-Ponty,Maurice,1908-19615.Bergson,Henri-Louis,1859-19416.Foucault,Michel,1926-19847.Ricoeur,Paul,1913-2005I.Carvalho,MarceloII.Solis,DirceEleonoraNigroIII.Carrasco,AlexandredeOliveiraTorresIV.SrieCDD100

  • COLEO ANPOF XVI ENCONTRO

    Comit Cientfico da Coleo: Coordenadores de GT da ANPOF

    AlexandredeOliveiraTorresCarrasco(UNIFESP)Andr Medina Carone (UNIFESP)Antnio Carlos dos Santos (UFS)Bruno Guimares (UFOP)Carlos Eduardo Oliveira (USP)CarlosTourinho(UFF)Ceclia Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Christian Hamm (UFSM)ClaudemirRoqueTossato(UNIFESP)Cludia Murta (UFES)Cludio R. C. Leivas (UFPel)Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE)Daniel Nascimento (UFF)Dborah Danowski (PUC-RJ)Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Dirk Greimann (UFF)Edgar Lyra (PUC-RJ) Emerson Carlos Valcarenghi (UnB) Enias Jnior Forlin (UNICAMP)Ftima Regina Rodrigues vora (UNICAMP)GabrielJosCorraMograbi(UFMT)Gabriele Cornelli (UnB)Gisele Amaral (UFRN)Guilherme Castelo Branco (UFRJ)HoracioLujnMartnez(PUC-PR)Jacira de Freitas (UNIFESP)JadirAntunes(UNIOESTE)Jarlee Oliveira Silva Salviano (UFBA)Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR)Joo Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)Jonas Gonalves Coelho (UNESP)Jos Benedito de Almeida Junior (UFU)

  • Jos Pinheiro Pertille (UFRGS)JovinoPizzi(UFPel)Juvenal Savian Filho (UNIFESP) Leonardo Alves Vieira (UFMG)Lucas Angioni (UNICAMP)Lus Csar Guimares Oliva (USP)LuizAntonioAlvesEva(UFPR)LuizHenriqueLopesdosSantos(USP)LuizRohden(UNISINOS)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)Marco Aurlio Oliveira da Silva (UFBA)Maria Aparecida Montenegro (UFC)Maria Constana Peres Pissarra (PUC-SP)MariaCristinaTheobaldo(UFMT)Marilena Chau (USP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Milton Meira do Nascimento (USP)Osvaldo Pessoa Jr. (USP)Paulo Ghiraldelli Jr (UFFRJ)Paulo Srgio de Jesus Costa (UFSM)RafaelHaddock-Lobo(PPGF-UFRJ)Ricardo Bins di Napoli (UFSM)RicardoPereiraTassinari(UNESP)RobertoHofmeisterPich(PUC-RS)SandroKobolFornazari(UNIFESP)ThadeuWeber(PUCRS)WilsonAntonioFrezzattiJr.(UNIOESTE)

  • Apresentao da Coleo XVI Encontro Nacional ANPOF

    A publicao dos 24 volumes da Coleo XVI Encontro Nacio-nal ANPOF tem por finalidade oferecer o acesso a parte dos trabalhos apresentados em nosso XVI Encontro Nacional, realizado em Campos do Jordo entre 27 e 31 de outubro de 2014. Historicamente, os encon-tros da ANPOF costumam reunir parte expressiva da comunidade de pesquisadores em filosofia do pas; somente em sua ltima edio, foi registrada a participao de mais de 2300 pesquisadores, dentre eles cerca de 70% dos docentes credenciados em Programas de Ps-Gradu-ao. Em decorrncia deste perfil plural e vigoroso, tem-se possibilita-do um acompanhamento contnuo do perfil da pesquisa e da produo em filosofia no Brasil.

    As publicaes da ANPOF, que tiveram incio em 2013, por ocasio do XV Encontro Nacional, garantem o registro de parte dos trabalhos apresentados por meio de conferncias e grupos de traba-lho, e promovem a ampliao do dilogo entre pesquisadores do pas, processo este que tem sido repetidamente apontado como condio ao aprimoramento da produo acadmica brasileira.

    importante ressaltar que o processo de avaliao das produes publicadas nesses volumes se estruturou em duas etapas. Em primeiro lugar, foi realizada a avaliao dos trabalhos submetidos ao XVI Encontro Nacional da ANPOF, por meio de seu Comit Cientfico, composto pelos Coordenadores de GTs e de Programas de Ps-Graduao filiados, e pela diretoria da ANPOF. Aps o trmino do evento, procedeu-se uma nova chamada de trabalhos, restrita aos pesquisadores que efetivamente se apresentaram no encontro. Nesta etapa, os textos foram avaliados pelo Comit Cientfico da Coleo ANPOF XVI Encontro Nacional. Os trabalhos aqui publicados foram aprovados nessas duas etapas. A reviso final dos textos foi de respon-sabilidade dos autores.

  • A Coleo se estrutura em volumes temticos que contaram, em sua organizao, com a colaborao dos Coordenadores de GTs que participaram da avaliao dos trabalhos publicados. A organizao te-mtica no tinha por objetivo agregar os trabalhos dos diferentes GTs. Esses trabalhos foram mantidos juntos sempre que possvel, mas com frequncia privilegiou-se evitar a fragmentao das publicaes e ga-rantir ao leitor um material com uma unidade mais clara e relevante.

    Esse trabalho no teria sido possvel sem a contnua e qualificada colaborao dos Coordenadores de Programas de Ps-Graduao em Filosofia, dos Coordenadores de GTs e da equipe de apoio da ANPOF, em particular de Fernando L. de Aquino e de Daniela Gonalves, a quem reiteramos nosso reconhecimento e agradecimento.

    Diretoria da ANPOF

    Ttulos da Coleo ANPOF XVI EncontroEsttica e Artetica e Filosofia Polticatica e Poltica ContemporneaFenomenologia, Religio e PsicanliseFilosofia da Cincia e da NaturezaFilosofia da Linguagem e da LgicaFilosofia do Renascimento e Sculo XVIIFilosofia do Sculo XVIIIFilosofia e Ensinar FilosofiaFilosofia Francesa ContemporneaFilosofia Grega e HelensticaFilosofia MedievalFilosofia Poltica ContemporneaFilosofias da DiferenaHegelHeideggerJustia e DireitoKantMarx e MarxismoNietzschePlatoPragmatismo, Filosofia Analtica e Filosofia da MenteTemas de FilosofiaTeoria Crtica

  • Apresentao

    A Filosofia Francesa, sendo ou no Contempornea, pode pa-recer assunto excntrico e relativamente postio para as urgncias de nossas tarefas intelectuais, das tarefas intelectuais de nosso tempo, ou de algumas delas, ao menos. Ns quem, cara plida? Ns todos que trabalhamos com filosofia, por aqui, na outra margem do ocidente. Isso colocado, no se foge regra retomar essa velha tpica sofstica do lugar da filosofia e sua relativa irrelevncia.

    O curioso que a afirmao peremptria, ademais, e, portanto, naturalmente antiptica que abre essa apresentao, decorreria, desta feita, da frequentao da prpria e tal filosofia francesa, da Ilustrao do dezoito ao engajamento sartreano. E no parece haver problema mais tematizado do que este: filsofo, para qu? na tradio de que nos pretendemos tributrios. Seria a prpria filosofia francesa que nos cobraria, do alto da sua relevncia nossa irrelevncia. O intervalo de tempo (lgico e cronolgico) escolhido no nos engana, alm do mais. Poderamos recuar a Descartes e mesmo a Montaigne de identidade terica duvidosa e ainda assim teramos que nos haver com a ques-to: qual o pensamento de nosso tempo? O que pensar no tempo em que se pensa?

    H evidentemente nisso um estilo de pensamento, muito pr-prio. E mesmo as correntes recessivas em relao a esse marcador do-minante, as filosofias do conceito, Canguilhem e Cavaills, por exem-plo (e sua oposio s filosofias da conscincia, na taxionomia de Worms) no se furtam a pensar a ao sobretudo aquela do pensa-mento e sua peculiar natureza.

    Diante disso, qual seria a resposta? Em nome da boa tcnica es-colar, eximimo-nos a pensar o que esse estilo melhor abriga e exige: o nosso tempo. Mas esse refgio possui passagens secretas. Vejamos.

  • Quando, no final dos anos noventa (de um sculo que j acabou) um jovem grupo de ps-graduandos e, de ento, jovens professores, reuniram-se e organizaram-se todos em torno do tema comum, a filo-sofia francesa contempornea, mal sabiam que um assunto estava em via de ser inventado.

    Sem querer e imbudos de uma espontaneidade escolar muito particular fundava-se um continente imaginrio que logo se comuni-caria com o real: a da filosofia francesa a se reconhecer no espelho re-flexivo de um outro, de um estranho interlocutor.

    O GT de Filosofia Francesa Contempornea da ANPOF, e no apenas ele, hoje, com sua presena em inmeras instituies efeito daquela coincidncia. Os jovens, naturalmente, j so outros, mas no exatamente o esprito.

    Essa publicao, de certo modo, consagra um esforo coletivo e continuado em torno daquele objeto excntrico.

    No apenas do GT de Filosofia Francesa Contempornea. Por vias abertas no interior desse continente, h que celebrar igualmente o encontro de dois GTs sobre o mesmo tema. Igualmente presente nessa reunio de artigos est o GT de Filosofia Contempornea de Expresso Francesa. O encontro no poderia ser mais bem vindo.

    ***Em 2009, com Frderic Worms, em La philosophie en France au XXe sicle., (Gallimard, Paris, 2009) reencontramo-nos em solo estran-

    geiro. Vejamos. L, o esforo e o cuidado de Worms no sem senti-do. Em filosofia o problema das nacionalidades e seus correlatos mais bvios lngua e pblico choca-se necessariamente com a bonomia da imagem imediatamente universal que a generosidade da filosofia devota a si mesma. E mesmo para um francs, no parece ser tarefa fcil conciliar este lugar imediatamente universal em que se pe a filo-sofia, e as contingncias que lhe sujeitam de todos os lados, como por exemplo, ser francesa.

    Ocorre que para ns, tanto esforo e cuidado soa excessivo. E isto por uma razo prpria, quase imperativa: diferentemente da fi-losofia francesa, ao que parece, s tardiamente francesa, no parece descabido dizer que entre ns, agora sim, ns, na outra margem do ocidente, a primeira experincia genuinamente filosfica de se descobrir fora do lugar da filosofia. Aqui, o lugar mais embaixo.

  • (E no so poucos os que sonham com um acento adequado ao bom tom filosfico, procurando-o, naturalmente, alhures). Tudo isso vem, subsidiariamente ao caso, quando nos damos conta que, ao tratar do problema da recepo da fenomenologia em Frana, por exemplo, um caso entre outros, podemos aprender a mensurar nossos prprios esforos de recepo, aqui nos trpicos.

    A filosofia universitria no Brasil, crescida e bem estabelecida pelo menos por hora chega a um ponto de maturao e escala nicos em nossa histria recente. Este o nosso momento. E parece-nos ser possvel pensar tanto em um objeto de estudo sistemtico, a filosofia francesa contempornea, quanto pensarmos em que medida o esforo de recepo (seja de uma recepo, seja de nosso modo de recepo) pode ser assunto filosfico por excelncia, e, mais, nosso assunto.

    Diante do lugar da filosofia francesa contempornea, a que Wor-ms chama a ateno, deparamo-nos com nossa prpria produo e es-foros (tericos e prticos), mas com um agravante que si ocorre entre ns: no s o lugar da (ou de uma) filosofia francesa contempornea, mas qual o nosso lugar diante disso.

    A leve estranheza com que La Philosophie em France au XXe sicle se depara diante de um francs que no seja mais mero lugar natural da filosofia mas sim atributo extrnseco, reaparece redobrada diante daqueles que sem o lugar e a origem que lhes garantam legitimidade, nosso no-lugar, defrontam-se com o seguinte fato curioso: o quanto de francs - atributo a filosofia francesa revela no seu laborioso tra-balho de ser filosofia...francesa... Para aqueles que no estando no lugar certo, parece ser mais adequada e fcil a tarefa de mapear o lugar de que os outros falam. E mesmo o turismo filosfico tem suas vantagens tericas. Assim, por razes que s a antropologia revela, estaramos melhor armados para ver a singularidade de um certo solo filosfico que para os originais e bem falantes nativos passaria desapercebido.

    Este descentramento, que tambm orienta os resultados de nosso GT, parcialmente apresentados aqui, j foi narrado no alvorecer da prosa:

    Ora, eu acho, retornando ao tema, que no h nada de brbaro e selvagem nessa nao, disso que me contaram, seno que cada um chama brbaro o que no de seu uso, como verdadeiro, parece, que no temos outra medida de verdade e de razo que o exemplo e a ideia de opinio e usos do pas em que estamos1.

    1 MONTAIGNE, Michel de. Essais, livro I, cap. XXXI, Des Cannibales, p. 200, in

  • Retomemos a lio: nem sempre o outro o que dele espera-mos, mas as exigncias do pensamento no nos exime de nos colocar-mos como o outro de ns mesmos.

    Nesse descentramento pensamos e no haveria de ser diferente. Boa leitura.

    Alexandre de Oliveira Torres Carrasco.Coordenador do GT de Filosofia

    Francesa Contempornea / ANPOF

    Dirce Eleonora Nigro SolisCoordenadora do GT de Filosofia

    Contempornea de Expresso Francesa / ANPOF

  • Sumrio

    A Liberdade como valor: Implicaes ticas do existencialismo sartreano

    Ktia Marian Correa 15 A concepo de liberdade e responsabilidade em Jean-Paul Sartre

    Luciana Lima Fernandes 20

    A noo de escolha no pensamento sartreano Cristina Moreira Jalil 30

    Liberdade e escolha original: Sartre e a tica do porvir Luciano Donizetti da Silva 40

    Sartre e a m f: a esquiva da responsabilidade Thiago Teixeira Santos 53

    Sartre: atesmo e liberdade

    Osvaldino Marra Rodrigues 60

    tica e poltica na filosofia de Sartre: os anos 1960 Vincius dos Santos 71

    O ciclo sartreano: Ontologia e ao no terreno da tica Marcelo S. Norberto 82

    Histria e ontologia na filosofia de Jean-Paul Sartre Igor Silva Alves 93

    A Transcendncia do Ego, de J.-P. Sartre: genealogia do psquicoAlexandre de Oliveira Torres CarrascoLeandro Cardim 102

    A negao no cerne do humano: projeo e unidade na filosofia de Sartre

    Helen Aline dos Santos Manhes 121 A projeo para o ser do passado e para o ser do futuro em Sartre

    Ana Gabriela Colantoni 129

  • O papel do imaginrio na constituio da realidade humana em Jean-Paul Sartre

    Thiago Rodrigues 140

    Mtodo e indivduo em Sartre Marcelo Prates de Souza 157

    A categoria do mgico nos textos fenomenolgicos de Jean-Paul Sartre Gustavo Fujiwara 171

    Sartre e a Escultura

    Lucila Lang Patriani de Carvalho 184

    A subjetividade e a constituio do feminino nO Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir

    Elis Joyce Gunella 192 Identidade e reciprocidade em O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir

    Juliana Oliva 203

    A diptrica de Descartes sob a ptica de Merleau-Ponty: Apresentao e crtica do discurso cartesiano sobre a viso

    Srgio Vieira Pereira 215

    Da fenomenologia da percepo fenomenologia da linguagem Mariana Cabral Tomzhinsky Scarpa 229

    A redefinio do transcendental em Merleau-Ponty

    Vitor Vasconcelos de Arajo 238 Fala Falada e Fala Falante em Merleau-Ponty(1945)

    Liamar Francisco 247

    Notas sobre a experincia do olhar na filosofia de Maurice Merleau-PontyJoo Carlos Neves de SouzaNunes Dias 251

    Merleau-Ponty e a pintura como desdobramento do visvel

    Amauri Carboni Bitencourt 268

    Drummond e o fazer reversvel Cristiano Perius 283

    Espacialidade e existncia: a motricidade em sua significao fenomnica Jos Marcelo Siviero 303

    Merleau-Ponty e Winnicott: acerca da alteridade infantil

    Litiara Kohl Dors 318

    Esttica e percepo em Bergson: a arte como modelo da filosofia Pablo Enrique Abraham Zunino 327

  • Consideraes sobre a concepo de arte em Bergson Paulo Deimison Brito dos Santos 337

    Contra a representao: a presena de Henri Bergson no teatro de Antonin Artaud

    Marine de Souza Pereira 344

    A Condio da Arte no Sistema de Alain Badiou Leonardo Dehan Brag 358

    Foucault entre retrica e filosofia Jean Dygo Gomes Soares 371

    A arqueologia das cincias humanas de Michel Foucault: implicaes epistemolgicas

    Juliana de Paula Sales Silva 389

    Biopoltica e racismo na crtica foucaultianaHden Salomo Silva Costa 400

    Racismo e produo da morte no contexto do biopoder: um estudo a partir de Michel Foucault

    Pedro Fornaciari Grabois 417

    Como a biopoltica e o racismo de Estado possibilitam o controle do corpo social?

    Alexandre de Lourdes Laudino 434

    Foucault e a governamentalidade neoliberal Fbio Henrique Duarte 442

    Michel Foucault: a tica como Esttica da existnciaTulipa Martins Meireles 455

    Exerccios Espirituais: a crtica de Hadot esttica da existncia de Foucault 473Lorrayne Bezerra Vasconcelos Colares

    Cuidado de si e forma de vida: uma problematizao sobre a sujeio e a liberdade na atualidade

    Rodrigo Cardoso Ventura 482

    O filsofo e a cidade: Michel Foucault e a noo de parrhesia Anderson Aparecido Lima da Silva 492

    O problema da interpretao em Foucault

    Carolina de Souza Noto 503

    Foucault, a existncia do discurso e a poltica Thiago Fortes Ribas 513

  • Espiritualidade cnicaAndr Pereira de Almeida 524

    Os conceitos de tcnica e tecnologia em Michel Foucault Daniel Salsio Vandresen 542

    Srie e Acontecimento em Michel Foucault Flavio Feo 559

    O Sujeito e o Poder em Kant e Foucault Ricardo Pontieri Augusto 569

    Monstros e monstruosidades: uma leitura foucaultiana do conto Na colnia penal de Franz Kafka

    Julie Leal 581 Marx e Foucault: o lugar da contradio na luta de classes

    Jorge Luiz Candido de Batista 593 O liberalismo crtico de Michel Foucault

    Daniel Luis Cidade Gonalves 607 Foucault, o neoliberalismo e ns

    Renato Alves Aleikseivz 619 O passado que no passa: tempo e perdo a partir de Jacques Derrida

    Victor Dias Maia Soares 627

    Configurao temporal e iniciativa humana segundo Paul Ricoeur Ivanho Albuquerque Leal 638

    Do confronto entre o Geist e o Alter ego em Ricoeur

    Paulo Gilberto Gubert 640

    A crtica da psicanlise : Bachelard e RicoeurConstana Marcondes Cesar 651

    Reverso do Platonismo em Simondon

    Tiago Rickli 659

    O informe e a semelhana pelo excesso Brbara de Barros Fonseca 671

  • A liberdade como valor : implicaes ticas do existencialismo Sartreano

    Ktia Marian Correa Universidade Federal de Santa MariaA liberdade possui importncia central na filosofia existencialis-

    ta de Sartre. No se trata de uma escolha que o Para-si assume, mas, sim de uma condio que perpassa toda sua existncia humana ao es-tar lanado no mundo. um compromisso com o seu prprio projeto de ser. Pois, sabe-se que o homem suas aes, suas escolhas e as con-sequncias das mesmas, ou seja, no h uma essncia humana ou na-tureza humana e sim um fazer-se, ou melhor, dizendo uma construo do que significa ser homem.

    Quando o homem realiza aes, essas no permanecem somen-te em seu projeto existencial e sim transcendem para os projetos dos outros homens, ou seja, ao escolher, o homem acaba escolhendo por todos os outros homens. De fato, no h um nico de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, no esteja criando, simultanea-mente, uma imagem do homem tal como julgamos que ela deva ser. (SARTRE, 1970, p. 5). Esse um dos motivos pelos quais possvel notar implicaes ticas no reino humano aqui lembrando, explicitado no existencialismo sartreano, alm disso, representa a responsabilida-de que resulta de uma liberdade que no solitria e sim deve ser assumida e preservada frente presena de toda a humanidade. Per-cebe, portanto que o homem retoma em suas mos seu destino para orientar sua prpria humanizao. Uma responsabilidade que no diz respeito somente para com sua vida e sim por toda a humanidade

    Carvalho, M.; Solis, D. E. N.; Carrasco, A. de O. R. Filosofia Francesa Contempornea. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 15-19, 2015.

  • 16

    Ktia Marian Correa

    como Sartre nos fala: Nossa responsabilidade muito maior do que poderamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. (1987, p. 7). Alm disso, a liberdade tomada como um valor, pois, segundo Sartre: Logo que existe um engajamento, sou forado a querer, simultanea-mente, a minha liberdade e a dos outros; no posso ter como objetivo a minha liberdade a no ser que meu objetivo seja tambm a liberdade dos outros. (1987, p. 19).

    Todos os valores que podem ser visados e intencionados pelos homens devem estar vinculados liberdade, pois, no podem ser to-mados de maneira priori. Dessa maneira, a conscincia humana perseguida pelo valor, pois, o valor habita a conscincia. Na obra O ser e o nada, Sartre diz que o Para-si um ser faltante, o que falta-lhe o si, visto que se caracteriza por ser negao total e enquanto si-como--ser-Em-si faltado. O que falta ao Para-si o si ou o si-mesmo como Em-si. (2011, p. 139). O homem se encontra no mundo como existente de um ser incompleto, por um fazer-se, o que o leva a perseguir nas situaes concretas um preenchimento de si mesmo, porm qualquer tentativa ser frustrada, visto que prprio do seu ser a negao, ser liberdade, ser falta.

    Para explicitar a questo do valor, Sartre resgata o dilogo com o pensamento de Scheler, em que possvel alcanar a intuio dos valores mediante exemplificaes mais concretas, por exemplo: pos-svel notar a nobreza como um valor por meio de um ato nobre. Mas, vale destacar que o valor captado no se d localizado no ser em um mesmo nvel do que o ato que valoriza. O valor transcende os atos, uma aspirao, um fim o qual o homem intenciona. Assim, como o valor est alm do ser, o transcende, pois, todo o ato desprende-se do ser, colocando em movimento ao fim almejado.

    unicamente devido liberdade que o valor existe. A liberdade do indivduo o nico fundamento dos valores e nada alm de sua li-berdade o abriga a adotar esta ou aquela escala de valores. Os valores, ao mesmo tempo em que se desvelam, so colocados em questo, de modo que o sujeito possa, a qualquer momento, inverter a escala de valores: essa sua possibilidade.

    Da mesma forma que h uma liberdade incondicionada e abso-luta, o valor apresenta-se como totalmente contingente, no existem

  • 17

    A liberdade como valor : implicaes ticas do existencialismo Sartreano

    essncias ou causas que estejam relacionadas ao mesmo, surgindo nas mais diversas situaes, da mesma maneira, o valor tambm se dar relativamente e, portanto em situao. Com isso nota-se que para se falar em uma moral e em uma tica em sentido sartreano e mais espe-cificamente, existencialista, o valor ser um retorno ao Para-si como faltante, como aspirando algo fora de si, como nadificao. por isso que a liberdade perseguida por ele. Sartre nos fala que:

    A conscincia reflexiva pode ser chamada, propriamente fa-lando, de conscincia moral, uma vez que no pode surgir sem desvelar ao mesmo tempo valores. Da que permaneo livre, em minha conscincia reflexiva, para dirigir minha ateno aos valo-res ou para neglicenci-los exatamente como depende de mim olhar mais particularmente, sobre esta mesa, minha caneta ou meu mao de cigarros. Mas, sejam ou no objetos de uma aten-o circunstanciada, os valores so. (2011, p. 146).

    Ora, o olhar reflexivo no o nico caminho para que um valor surja e se manifeste, tendo em vista que existe a projeo de valores do Para-si no mundo da transcendncia. Dessa maneira, percebe-se que o valor pode surgir mediante a presena do Para-outro, isto , de uma relao anloga de duas liberdades, em que o Para-si do outro surge enquanto fenmeno. Para haver liberdade, preciso que o existente humano reconhea, tambm em relao aos outros, que o ser livre um valor inestimvel. Reforando esse reconhecimento do outro: O outro, como unidade sinttica de suas experincias e como vontade, tanto como paixo, vem organizar minha experincia. (SARTRE, 2011, p. 295).

    A ajuda ao outro permite que o Para-si perceba o mundo como repleto de uma infinidade de futuros livres e finitos, em que cada um projetado por um livre querer e simultaneamente sustentado pelo querer dos outros. O que se quer uma liberdade concreta e no uma liberdade abstrata, pois essa ser a mxima ao do sujeito. O valor faz com que os outros faam existir o ser no mundo, fazer com que o futuro venha perpetuamente ao mundo com a finalidade de substituir a ideia de uma totalidade fechada e subjetiva como ideal de uma uni-dade pela concepo de uma diversidade aberta. O intuito de Sartre colocar que em todo o caso a liberdade vale mais que a no liberdade.

  • 18

    Ktia Marian Correa

    mediante o outro que possvel o apelo ao reconhecimento, se re-conhece o apelo do outro ao compreender o seu projeto existencial, com isso passa-se a tomar a liberdade compreendendo-a enquanto um valor no contexto social.

    Ser livre implica que nenhuma valorao exterior seja o modelo de minhas aes. possvel uma conscincia moral em sentido exis-tencialista? Sartre afirma que a conscincia perseguida pelo valor, pois antes mesmo de qualquer valorao intencional, o valor habita a conscincia, impelindo-a a assumir sua liberdade. Dessa maneira, per-cebe-se que a liberdade tomada por si s como um valor, pois, deve ser assumida em qualquer instncia, situao e alm do mais no por meio da realizao consciente de uma ao e ser responsvel pelas escolhas que far com que a liberdade seja assegurada. Ao contrrio disso, a liberdade atemporal, no se d somente em tempo presente e sim em qualquer instante da realidade humana.

    Nesse sentido preciso compreender o surgimento espontneo da vivncia valorativa como um tipo pr-reflexivo de vivncia, ou seja, algo sempre passvel de ser apropriado pela reflexo, pelo ato de assu-mir riscos e, principalmente, viver at as ltimas consequncias na an-gstia da liberdade. Dessa forma, necessria a tomada de conscincia de que no h, pois, determinismo algum que recaia sobre a existncia humana, e, portanto, preciso justificar-se e responder diante do seu prprio ser e dos outros homens levando em considerao suas esco-lhas e atos, deixa-se de lado todas as formas abstratas e as abandona--as para partir de uma conscincia moral. Que ser um responder pelo prprio valor da liberdade.

    Referencias

    BOCHAT, Neide Coelho. Histria e Escassez em Jean-Paul Sartre. EDUC: FA-PESP, 2011.COX, Gary. Compreender Sartre. Traduo Hlio Magri Filho. 2ed. Petrpolis: Vozes, 2010.MOURA, Carlos Eduardo de. Conscincia e liberdade em Sartre: por uma perspectiva tica. So Carlos: EDUFSCAR, 2012. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada Ensaio de ontologia fenomenolgica. Tradu-

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    A liberdade como valor : implicaes ticas do existencialismo Sartreano

    o Paulo Perdigo, 20ed. Petrpolis: Vozes, 2011.SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo um humanismo. 3 ed. So Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores)SARTRE, Jean-Paul. Crticas Literrias (Situaes I), So Paulo: EDUSP, 2009.SCHELER, Max. A reviravolta dos valores. Trad. Marco Antonio Casanova, Pe-trpolis: Vozes, 2010.SILVA, Franklin Leopoldo. tica e literatura em Sartre. So Paulo: Perspectiva, 2003.

  • A concepo de liberdade e responsabilidade em Jean-Paul Sartre: a figura do intelectual engajado

    Luciana Lima FernandesUniversidade Federal do Cear.

    comum dividir a filosofia de Sartre em dois momentos, o pri-meiro voltado para a ontologia, ou uma filosofia mais abstrata e a-his-trica, cuja obra fundamental seria O ser e o nada (1945); e o segundo, ligado ao marxismo, voltado para a prxis e para o homem concreto e histrico, tendo a Crtica da razo dialtica (1960) como obra principal. Sua biografia tambm dividida em dois momentos pelos comenta-dores mais tradicionais, um primeiro desengajado e distante das ques-tes polticas e um posterior, aps o final da Segunda Guerra (1945), mais comprometido e participativo politicamente. O presente trabalho enseja todavia complexificar tais dicotomizaes para que possamos pensar alguns elementos em torno do conceito de intelectual em Sar-tre, objetivo central de nossa investigao. Consideramos importante tratar tal temtica na medida em que nosso filsofo foi referncia para o desenvolvimento da noo de intelectual que se construiu durante o sculo XX, seja porque discutiu teoricamente o assunto, seja porque ele prprio personificou o modelo de intelectual que serviu de referncia para as discusses subsequentes. A noo de intelectual desenvolvida por Sartre est necessariamente vinculada ao engajamento, o que por sua vez se liga temtica central de sua filosofia, qual seja, a liberdade.

    Carvalho, M.; Solis, D. E. N.; Carrasco, A. de O. R. Filosofia Francesa Contempornea. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 20-29, 2015.

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    A concepo de liberdade e responsabilidade em Jean-Paul Sartre: a figura do intelectual engajado

    Desde sua juventude como estudante na Escola Normal Superior Sartre era destaque diante dos colegas, seja pela genialidade precoce, seja pelas brincadeiras espirituosas e posies crticas diante das regras hierrquicas e tradicionais da instituio. Torna-se professor no Liceu do Havre e convocado para a guerra em 1939, exercendo a funo de meteorologista, para a qual tinha se alistado. Ao voltar para Paris em 1940 funda junto com Simone, Merleau-Ponty e alguns outros um gru-po de resistncia Ocupao alem chamado Socialismo e Liberdade, com vida curta mas representativa para a vivncia poltica do filsofo. Em 1945 funda a revista Les Temps Modernes, onde tenta abranger todo tipo de manifestao escrita, desde a poesia at um documento srio, e todas as reas do conhecimento, no somente filosofia ou literatura, sempre buscando uma sofisticao terica que geralmente no se en-contrava nas outras revistas.

    A partir da crescente visibilidade de Sartre, com todas as suas publicaes at ento romances, peas, artigos nos principais jornais do perodo e na direo de uma importante revista o autor torna-se uma figura quase que de domnio pblico (para utilizar a expresso de Annie Cohen-Solal). Ele consegue, ao mesmo tempo, dialogar com o meio acadmico e com o pblico em geral, fato difcil dentro do univer-so literrio francs. Mas por que Sartre e os que estavam prximos, so-bretudo Simone e Camus, passaram a ter tamanha popularidade dentro desse cenrio do ps guerra, sendo considerados os intelectuais mais importantes de ento? Possivelmente a resposta para tal pergunta es-teja relacionada identificao que aquela gerao de 1945 encontrava nesses sujeitos, pois eles conseguiam dar voz ao que as pessoas estavam vivendo nos anos de guerra e de Ocupao nazista, porque passaram pelos mesmos sofrimentos e privaes, e estavam formulando qual seria o futuro da Frana. Ou seja, alm dessa vivncia em comum e da escrita sobre ela, eles ofereciam, a partir de seus romances, peas e textos po-lticos, heris juventude. Eles foram os responsveis (ou pelo menos acreditavam que seriam) por formular a ideologia do ps-guerra. Si-mone de Beauvoir quem escreve mais claramente sobre esse grupo de intelectuais ao qual pertencia e quais as suas ambies:

    Ns nos prometemos continuar unidos para sempre contra os sistemas, as ideias, os homens que condenvamos; a hora da

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    derrota deles ia soar; o futuro que ento se abriria, ns teramos que constru-lo talvez politicamente, em todo caso no plano in-telectual: precisvamos criar uma ideologia para o ps guerra. (BEAUVOIR, apud COHEN-SOLAL, 2008, p. 245)

    Eles eram os representantes de uma nova gerao que surgira com o advento da guerra, uma vez que os escritores de antes do conflito, como Gide e Malraux, no davam mais conta de expressar o sentimento de absurdo do mundo, como fazia Camus, por exemplo. Se uma gera-o se define a partir de dois pontos primeiro como um grupo gerido por um acontecimento fundador que teve grandes repercusses em suas vidas; segundo tendo uma outra gerao como referencial, seja para se-gui-la, seja para combat-la (SIRINELLI, 1996, p. 254-255) , podemos pensar que a gerao de intelectuais cujo principal representante seria Sartre teria a Segunda Guerra Mundial como acontecimento fundador e os escritores do entre guerras como a gerao contra qual deveriam se opor. O grupo mencionado na referida citao de Simone comporia uma estrutura de sociabilidade, ou seja, uma rede na qual h uma sen-sibilidade ideolgica e cultural comum. Sartre era considerado o centro desse grupo de intelectuais, sobretudo porque escreveu sobre a guerra. Tornou-se o narrador principal da Frana no perodo escrevendo con-tundentes textos sobre a experincia da Ocupao. Os principais so A Repblica do silncio, Paris sob Ocupao e Que um colaborador.

    Que Sartre foi um grande intelectual, talvez o mais famoso do sculo XX, no h dvida alguma. Mas afinal de contas, o que um intelectual? Inicialmente, pode-se pensar que no h necessidade de discutir e buscar uma definio para um termo to utilizado e de co-mum entendimento. Em linhas gerais, o intelectual seria aquele que no exerce atividades manuais ou utilitrias e que se ocuparia de tare-fas do intelecto, tais como o fariam professores, jornalistas, escritores, altos funcionrios do governo, entre outros. Todavia, quando se recor-re bibliografia sobre o tema possvel perceber inmeras problem-ticas que sua definio levanta, bem como as vrias discusses sobre sua funo dentro da sociedade contempornea e sua relao com a poltica e a cultura de determinado perodo.

    A respeito de sua definio, a que foi dada anteriormente parece simples e genrica em demasia, no sendo de grande serventia para

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    os propsitos a que se destina nossa investigao. Optamos ento por buscar outros significados do conceito de intelectual e duas posies foram escolhidas. A primeira defende que o intelectual existe desde muito tempo, pelo menos desde a Grcia antiga, e que em toda so-ciedade existe um ou vrios sujeitos que exera o papel do que hoje chamamos de intelectual (mesmo admitindo que o termo seja recente, surgido no final do sculo XIX). A segunda posio relaciona o apare-cimento do intelectual ao surgimento da prpria palavra, o que se deu na Frana com o conhecido caso Dreyfus e vincula-se mais estreita-mente noo de engajamento.

    possvel citar pelo menos dois estudiosos contemporneos pertencentes primeira vertente: Francis Wolff e Norberto Bobbio.1 Bobbio defende a existncia dos temas discutidos pelos intelectuais desde Plato, embora tenham recebido variadas denominaes.

    Que esses sujeitos histricos sejam prevalentemente chamados intelectuais apenas h cerca de um sculo, no deve obscure-cer o fato de que sempre existiram os temas que so postos em discusso quando se discute o problema dos intelectuais, quer esses sujeitos tenham sido chamados, segundo os tempos e as so-ciedades, de sbios, sapientes, doutos, philosophes, clercs, hommes de lettres, literatos etc.(BOBBIO, 1997, p. 110 111)

    possvel concluir, a partir da posio de Bobbio, que por existir a atividade e algum que a exercesse, ento j existia esse sujeito, em-bora com nomes diversos.

    Francis Wolff tem opinio semelhante, acreditando que o surgi-mento do intelectual tenha ocorrido junto com o aparecimento do pri-meiro filsofo, Scrates, que encarnaria as trs principais caractersti-cas do intelectual: a tagarelice, a crtica aos valores aceitos na sociedade e a intromisso em assuntos que no lhe dizia respeito. Ao falar do nascimento dos intelectuais na Grcia, atribuindo a Scrates o papel de primeiro filsofo e intelectual, Wolff prope trs condies essenciais para a sua existncia, que seriam: um certo tipo de sujeito social, um

    1 Do primeiro foi consultado artigo intitulado Dilemas dos intelectuais, presente na coletnea O silncio dos intelectuais, organizada por Adauto Novaes. Do segundo recorreu-se obra Os intelectuais e o poder, reunio de vrios artigos e conferncias do autor, realizados entre 1953 e 1992. As referncias completas podem ser consultadas na bibliografia.

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    certo tipo de objeto (universal) e um certo espao onde ele possa se exprimir(WOLFF, 2006, p. 47). Ou seja, preciso que haja indivduos capazes de exercerem atividades de criao e mediao e, portanto, um considervel desenvolvimento social e econmico na sociedade em que vive; h igualmente a necessidade de um senso comum de valores morais universais; e, por fim, a existncia de um espao pblico para a livre expresso das opinies e defesa dos valores universais. A primei-ra sociedade que reuniu essas trs caractersticas, segundo o autor, foi a Grcia do sculo X a.C., que reunia homens que tinham tempo livre para se dedicar s ideias, sua produo e difuso; uma conscincia do universal com o nascimento da razo[...]; e um regime, a democra-cia direta, que permitia a expresso das opinies[...] (WOLFF, 2006, p. 48). Seria Scrates o primeiro intelectual por reunir suas principais caractersticas: ser perseguido no por suas ideias, mas simplesmente por exercer a funo do pensamento, por ser aquele que fala ao invs de trabalhar, que pe em questo valores tradicionais de sua sociedade e que interfere em assuntos que inicialmente no seriam os seus, bus-cando assim uma defesa da coletividade.

    A segunda posio, como j mencionado, est relacionada ao surgimento do termo intelectual, o que ocorreu em 1898 na Frana com o caso Dreyfus, e vincula-se mais claramente noo de engajamento. Desde essa data o termo usado para designar aquele sujeito produtor de bens simblicos, que influencia e possui inclusive responsabilidade dentro da vida em sociedade o que no equivale dizer que as demais pessoas que a compe aceitem de forma passiva e acrtica as opinies e ideologias dos intelectuais de sua poca, mas que estes conseguiam impor-se para alm de seu pequeno mundo estreito, alcanando a comunidade nacional e muitas vezes internacional. O intelectual deve-ria, portanto, representar a sua comunidade, defender valores univer-sais e lutar pelas causas que acreditava serem justas. Ele tinha poder dentro da sociedade e, quanto maior seu poder, maior sua responsabi-lidade. (BOBBIO, 1993, p. 96)

    Ele quem possui competncia e prestgio em determinada rea do saber e, dotado desse poder, aproveita para intervir no debate scio poltico. Se no decorrer do sculo XX o intelectual passou a ser uma figura com mais poder, logo sua responsabilidade tambm cresce. Sar-

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    tre foi talvez quem melhor representou essa posio. Eis ento a justi-ficativa de se ter discutido o conceito de intelectual em nosso trabalho: a prpria noo de intelectual, essa mais estreita, vincula-se a Sartre, uma vez que remete ao engajamento e esta a principal cobrana do autor aos demais intelectuais, alm de relacionar-se diretamente ao seu principal problema filosfico, qual seja, a liberdade.

    Mas por que o filsofo possua tamanha centralidade, chegando a ser nomeado um intelectual absoluto?2 Por que quando morreu chegou-se a falar em silncio dos intelectuais?3 Por que foi to lido e seguido pela juventude? Porque representava essa gerao. Porque, como j dissemos, conseguia expressar as angstias e os sofrimentos, tanto quanto um projeto de futuro, que essa gerao sentia e ansiava. [...] ele o intelectual absoluto. Espera-se dele o que nunca se espe-rou, e que, sem dvida, nunca mais se esperar de nenhum outro. Eis sua grande fora: esperava-se algo dele; era o objeto no s de uma f, mas de um fervor, uma impacincia. (LVY, 2001, p. 33). Descontan-do-se a dramaticidade da escrita de Bernard-Henri Lvy, realmente pertinente a questo da centralidade da figura de Sartre para a Frana daquela gerao. Novamente e para concluir esse ponto a respeito da pertinncia de Sartre na discusso sobre os intelectuais, essa centrali-dade se justifica pelo dilogo atravs de muitos gneros da escrita e pela situao histrica que favorecia o surgimento desses heris e de um pblico sedento de quem os representasse, ao mesmo tempo sendo sua voz.

    Mas Sartre tem sua prpria posio a respeito do intelectual, e ela sofre mudanas ao longo de sua vida. Segundo Beauvoir, em A cerimnia do adeus,

    at ento [nas conferncias que fez no Japo], Sartre concebera o intelectual como tcnico do saber prtico que rompia a contra-dio entre a universalidade do saber e o particularismo da classe dominante da qual era produto [...]; satisfazendo sua conscincia

    2 Lvy que assim o denomina, se valendo da alcunha dada ao autor no perodo. LVY, Ber-nard-Henri. O sculo de Sartre: Inqurito filosfico. Traduo de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 18.

    3 Essa expresso utilizada por Adauto Novaes para designar a perda de poder desses sujeitos a partir da morte de Sartre, em 1980, tido por alguns como o ltimo dos seus. Novais critica tal posio e explica melhor o que seja em NOVAES, Adauto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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    atravs dessa prpria m conscincia, julgava que ela lhe permi-tia situar-se ao lado do proletariado. Agora Sartre julgava que era preciso ultrapassar esse estgio: ao intelectual clssico contrapunha o novo intelectual, que nega em si o momento intelectual, para ten-tar encontrar um novo estatuto popular, o novo intelectual procura fundir-se com a massa, para fazer triunfar a verdadeira universa-lidade. (Beauvoir, 2012, p. 15, grifo da autora).

    Pelo que explica, Sartre tinha uma posio at os anos de 1960, em que, atravs do marxismo, se aproxima mais das classes trabalhadoras, e a partir da prope uma nova concepo de intelectual. Antes desse momento acreditava que o intelectual uma contradio por defender a universalidade das leis cientficas ao mesmo tempo que a ideologia particularista de obedincia a um Estado, a uma poltica, s classes do-minantes (SARTRE, 1994, p. 26). J no segundo momento assume outra posio, que exposta em suas conferncias de 1964 no Japo, reunidas e publicadas com o ttulo Em defesa dos intelectuais, na qual acredita ser o intelectual o agente do saber prtico que contesta a ideologia que o formou. Descobrindo a contradio da sociedade a partir de sua prpria contradio, o intelectual deve se colocar ao lado das classes oprimidas, uma vez que nelas em que h a possibilidade de universalidade.

    E Sartre buscou realmente ser esse tipo de intelectual. Citaremos apenas um exemplo que mostra o quanto buscava ser participativo e prximo da classe trabalhadora. Simone narra na Cerimnia do adeus o caso da priso de um operrio que participava de um comcio, em 1970, em cujo processo Sartre tinha sido chamado para testemunha. Negando-se a assumir o papel convencional que lhe fora designado perante a justia burguesa, prefere ir pra frente de uma fbrica e, sobre um tonel, falar aos operrios ento presentes:

    Quero dar meu testemunho na rua, porque sou um intelectual e acho que a ligao do povo e dos intelectuais, que existia no sculo XIX nem sempre, mas que deu resultados muito bons deveria voltar a existir atualmente. H cinquenta anos que o povo e os intelectuais esto separados; preciso agora que sejam um s. (BEAUVOIR, 2012, p. 24)

    Sua crtica aos tcnicos do saber prtico enquanto burgueses, enquanto no contestadores da ideologia dominante e nem de sua pr-

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    pria situao enquanto pertencentes a essa classe, pode ser percebida desde seus Dirios de 1939. Embora sua concepo de intelectual tenha sofrido mudanas desde ento, est j a presente a crtica a burguesia que o intelectual deveria fazer. No seu registro de uma discusso com um colega de peloto, chamado Pieter, fica clara essa postura. Em di-logo com Pieter, Sartre lhe critica um amigo que mesmo em campo de batalha desfruta de regalias que os demais colegas no. Em contrapar-tida, Pieter acusa Sartre de ter os mesmos privilgios e de tambm ser um burgus, de ser um homem da teoria e no da prtica. Na fala de Pieter: Comeo a conhecer voc [...], no quer ser incomodado; escre-ve o dia inteiro e quando tem vontade de almoar em um restauran-te, no diz nada a ningum (SARTRE, 1983, p. 16). Sartre se defende dizendo que est entre burgueses e o que faz no estranho a eles, e Pieter o indaga a presena no meio de pessoas que tanto o aborrece. Sartre se defende dizendo que foi um erro antigo se alistar para me-teorologista, mas seu interlocutor no aceita as desculpas, acusando-o de ser um salafrrio, porque se vale dos mesmos privilgios que os de quem critica e ainda continua a receber seu ordenado de profes-sor enquanto muitos outros que esto participando da guerra no tem quase nada. Sartre rebate: diferente. Existem os privilgios da paz e existe uma sociedade baseada nesses privilgios. Em tempos de paz, no se trata de um indivduo renunciar aos seus privilgios, o que seria uma gota dgua no oceano, mas de lutar pela supresso de todos os privilgios (SARTRE, 1983, p. 18). Mesmo sabendo do problema de se separar teoria e prtica em termos to rasteiros, como faz Pieter, possvel creditar alguma validez em seu argumento contra Sartre, pois enquanto este critica o burgus que desfruta regalias, outros passam necessidades ou morrem na guerra, mas na prtica ele faz o mesmo que tais burgueses. O filsofo mesmo reconhece isso, apesar de no assumir para seus companheiros.

    preciso, porm, ir alm dessa dicotomia teoria/prtica, que re-sume o pensamento e a vivncia do autor em uma contradio: Sartre critica a burguesia, defende o engajamento do intelectual e a sua apro-ximao com os trabalhadores (no segundo momento) enquanto re-conhecidamente um burgus e seu engajamento mais literrio do que com aes diretas sobretudo durante a guerra. Mas sua escrita j era,

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    desde O muro, vinculada aos acontecimentos de ento e tinha um posi-cionamento poltico. Ele j era engajado e, mesmo reconhecendo-se bur-gus, tentava desvelar as contradies de sua posio e defender os va-lores que julgava justos e universais, tornando-se assim um intelectual.

    Ao assumir seu pertencimento burguesia, como todos os in-telectuais o so, e ao mesmo tempo procurando trabalhar em funo do proletariado, ele justifica a escrita de O idiota da famlia pela essen-cialidade de se pensar os homens, em qualquer lugar ou poca. Muito provavelmente o pblico leitor dessa obra no tenha sido o proletaria-do, ele prprio sabia que escrevia para burgueses, mas sua ideia pro-funda era que em qualquer momento da histria, qualquer que fosse o contexto social e poltico, continuava a ser essencial compreender os homens, e que, para isso, seu ensaio sobre Flaubert poderia ajudar (BEAUVOIR, 2012, p. 19).

    Referncias

    BEAUVOIR, Simone de. A cerimnia do adeus. Traduo de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Coleo Saraiva de Bolso)

    BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: Dvidas e opes dos homens de cultura na sociedade contempornea. Traduo de Marco Aurlio Nogueira. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

    COHEN-SOLAL, Annie. Sartre: uma biografia. Trad. de Milton Persson. 2. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

    DENIS, Benot. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. So Paulo: EDUSC, 2002.

    LVY, Bernard-Henri. O sculo de Sartre: Inqurito filosfico. Traduo de Jor-ge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    NOVAES, Adalto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    SARTRE, Jean-Paul. Dirio de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1983.

    _____. Em defesa dos intelectuais. Traduo de Sergio Goes de Paula; Apresen-tao de Francisco Weffort. So Paulo: tica, 1994.

    _____. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenolgica. Traduo de Paulo Perdigo. 22. Ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2013.

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    A concepo de liberdade e responsabilidade em Jean-Paul Sartre: a figura do intelectual engajado

    _____. O muro. Traduo de H. Alcntara Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, s.d.

    _____. O idiota da famlia. Traduo de Julia da Rosa Simes. 1. ed. Porto Ale-gre, RS: L&PM, 2013.

    _____. Situations III: lendemains de guerre. Paris, Gallimard, 1949.SIRINELLI, Jean-Franois. Os Intelectuais. In: REMOND, Ren. Por uma nova histria poltica. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1996.WOLFF, Francis. Dilemas dos intelectuais. In: NOVAES, Adauto. O silncio dos intelectuais. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

  • Carvalho, M.; Solis, D. E. N.; Carrasco, A. de O. R. Filosofia Francesa Contempornea. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 30-39, 2015.

    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    Cristina Moreira JalilUniversidade Federal da Bahia

    A noo de escolha atravessa todo o sistema de explicao da ao humana apresentado por Sartre. No h como abord-la sem to-car em temas como ao e liberdade, os quais se apoiam entre si e se confundem at mesmo com a prpria noo de ser do filsofo, quando coloca que, para a realidade humana, ser escolher-se1. Por esse moti-vo, faremos um breve apanhado sobre esses conceitos bsicos da onto-logia em questo sabendo no ser possvel, neste trabalho, esgot-los em sua complexidade , com o intuito de estabelecer um cenrio com-preensivo para ento abordar e discutir a escolha.

    Introduo

    Para Sartre bem como para outros filsofos como Martin Hei-degger, por exemplo , ns, seres humanos, no dispomos de uma essncia a priori, de determinaes ou estruturas pr-existentes que pudessem nos guiar e direcionar. Para ele, no h, portanto, o que se costuma chamar de natureza humana. Assim, ao existir, o homem deve forjar seu ser, deve continuamente fazer-se, j que aquilo que ele seu ser, sua essncia no lhe foi dado de incio. Esse modo de ser que o nosso denominado por Sartre de Para-si, e se contrape ao modo 1 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada Ensaio de Ontologia Fenomenolgica, 2007, p. 545.

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    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    de ser das coisas, o Em-si. Ao contrrio de ns, as coisas no se questio-nam sobre seu ser e nem possuem fissuras, vazios de ser. Elas simples-mente so em sua plenitude. atravs do humano que o nada, o no-ser aparece no mundo. No que diz respeito ao Para-si, apenas se pode falar que algum no que se refere ao ter sido, ou seja, rigorosamente, s podemos dizer sobre o ser de uma pessoa, sobre sua essncia, se nos referimos ao seu passado, ao que ela vem sendo. Embora o passado seja constituinte do seu ser, o apenas no modo do tendo sido, no poden-do funcionar como determinante para o que ele pode vir a ser.

    Se o modo de ser do humano implica em um fazer-se contnuo, sem determinaes externas ou internas, a condio da realidade hu-mana , portanto, liberdade. importante frisar que a liberdade para Sartre no implica em sucesso ou obteno daquilo que se deseja, pois, para ele, ser livre ser livre de determinao pelo que 2, o que im-plica em uma total responsabilidade de cada homem por seu ser, visto que deve fazer-se nos mnimos detalhes. Vale ressaltar que essa liber-dade sempre situada em um mundo que, embora lhe oferea resis-tncia, no a limita nem a diminui3.

    Para Sartre, a angstia4 consiste em depararmo-nos com essa condio de liberdade que a nossa, com a abertura e indeterminao que nos constitui. Isso porque, embora seja libertador, angustiante ter de fazer-se e responsabilizar-se a todo momento por si mesmo. Assim, buscamos constantemente formas de nos justificar, mascarando nossa liberdade e procurando evitar a angstia, em tentativas recorrentes e frustradas de dar unidade e identidade ao nosso ser, ao modo do ser das coisas. Buscamos, cotidianamente, dissimular nossa condio de liberdade, e nos eximir da nossa responsabilidade sobre nossa existn-cia, tentando, a todo custo, nos tomar enquanto estruturados e fecha-dos, forjar uma identidade bem delimitada e fugir indeterminao. Sartre denomina esse autoengano de m-f .

    Desse modo, frequentemente inclusive buscando bases cient-ficas que fundamentem e legitimem esse discurso explicamos nossas aes a partir do temperamento, da personalidade, do inconsciente,

    2 MORRIS, K. J. Sartre, 2009, p. 178.3 Este aspecto ser mais aprofundado em um momento posterior do texto.4 No nos deteremos neste aspecto. Sartre o desenvolve nos captulos 1 e 2 da Primeira Parte

    da sua obra O Ser e o Nada.

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    dos acontecimentos passados, da famlia, da situao socioeconmica, da vontade de deus, etc. Identificamos, assim, nossos atos como con-sequncia direta e necessria de algo que nos externo ou mesmo interno, como no caso de paixes e impulsos provenientes de proces-sos psquicos e que, portanto, nos exime da responsabilidade por eles. No entanto, como j foi dito, trata-se de uma tentativa de m-f de dissimular nossa condio de liberdade. Assim, se os aspectos refe-ridos no podem determinar nossas aes, como poderamos entender a ao humana e de que maneira esta se articula com a escolha, objeto do nosso estudo? o que buscaremos responder a seguir.

    A sistemtica sartreana da ao

    Ao falar da ao, Sartre comenta e refuta duas linhas de pensa-mento divergentes, a saber, deterministas e libertrios da indiferena estes ltimos, por entenderem o ato como gratuito e incompreensvel, ideia que Sartre recusa completamente. Aproxima-se, at certo ponto, das ideias deterministas e da psicanlise com a qual ele dialoga critica-mente ao longo da obra O Ser e o Nada na medida em que apresentam a ao como compreensvel, dotada de razo e motivo. Para o filsofo, entretanto, os atos no obedecem a uma lgica causal, linear e de neces-sidade, como pretendem os deterministas. Estes buscam estabelecer em ns uma continuidade sem brechas, sem falhas de existncia, similar ao modo de ser das coisas. Porm, como j foi colocado, isso compreen-dido por Sartre como m-f, ou seja, como uma recusa por reconhecer nossa condio de liberdade, como est expresso no seguinte trecho:

    [...] a realidade humana um ser no qual sua liberdade corre risco, pois tenta perpetuamente negar-se a reconhec-la. Psico-logicamente, isso equivale, em cada um de ns, a um intento de tomar mbeis e motivos como coisas. Tentamos conferir-lhes permanncia; busca-se dissimular o fato de que sua natureza e seu peso dependem a cada instante do sentido que lhes damos; tomamo-los por constantes: isso equivale a considerar o sentido que lhes dvamos h pouco ou ontem o qual irremedivel, por ser passado e extrapol-lo, como carter coagulado, no pre-sente. Tento persuadir-me de que o motivo como era.5

    5 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p. 544.

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    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    Desse modo, ao contrrio do que postulam os deterministas, so-mos, segundo ele, regidos pelo primado das possibilidades, e no das causalidades, e, portanto, um ato nunca determinado pelo passado ou mero efeito do estado psquico anterior.

    Para Sartre, uma ao , por princpio, intencional, ou, em ou-tras palavras, agir realizar um projeto consciente e implica na mo-dificao de uma situao. No entanto, para ele, essa modificao no pode partir do que est dado. Enquanto imersos em uma situao, a consideramos natural e a apreendemos em sua plenitude de ser, o que no nos permite identificar suas faltas e deficincias, e imaginar outros possveis. Essa modificao da situao ocorre apenas na medida em que a minha ao intenciona outro estado de coisas que no o atual. Isso se d atravs da nadificao6, termo utilizado por Sartre, que im-plica justamente na possibilidade do humano de transcender aquilo que est posto rumo ao possvel, a algo que no . Assim, s podemos considerar um evento como ato na medida em que h, em ligao com o ato, a concepo de um possvel.

    Dessa forma, Sartre inverte a lgica tradicional de explicao da ao: no uma situao insatisfatria, nem o passado, eventos ou es-tados psquicos anteriores que motivam por si s a minha ao. Para o filsofo, nenhum estado em bruto seja social, psquico, etc. pode mo-tivar por si mesmo qualquer ato. , por outro lado, a nadificao, a trans-cendncia rumo a outro de estado de coisas possvel e o posicionamento de um fim, que me permite qualificar uma situao, meu passado, um evento ou estado psquico, e eleg-lo como motivo7 para a minha ao. O motivo, ento, torna-se motivo porque eu o experimento o significo, o qualifico enquanto tal. Ele, por sua vez, no causa do ato, mas parte integrante dele. Constituem-se conjuntamente, motivo, ato e fim.

    6 O problema do nada e da nadificao so explorados pelo filsofo no Captulo 1 da Primeira Parte da sua obra O Ser e o Nada.

    7 Ao tratar da ao (Captulo 1 da Quarta Parte do Ser e o Nada), Sartre diferencia motivo e mbil, sendo o primeiro relativo captao objetiva de uma situao determinada, na medida em que esta situao se revela, luz de certo fim, como apta a servir de meio para alcanar este fim. (p. 551), enquanto o mbil considerado comumente como um fato subjetivo. o conjunto dos desejos, emoes e paixes eu me impele a executar certo ato. (p. 552). Aqui, a fim de simplificar a leitura, utilizaremos apenas o termo motivo para refe-renciar ambos os conceitos.

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    A escolha em Sartre: projetos concretos e projeto original

    atravs das minhas aes e dos fins posicionados que, a cada momento, me fao. Considerando que no h, para Sartre, determina-es a priori do meu ser, o posicionamento dos fins e a significao dos motivos, por sua vez, so fruto da minha liberdade. nessa medida que ele identifica a ao enquanto escolha, enquanto livre projeto8. As escolhas diretamente ligadas s nossas aes concretas so denomina-das projeto derivado ou concreto. Este, portanto, nada mais do que os projetos concretos e cotidianos, ou seja, a escolha dos fins e dos mo-tivos que direcionam nossas aes, desde as mais simples e a curto prazo, s mais complexas e longnquas.

    importante frisar que o conceito de escolha utilizado pelo fi-lsofo no sinnimo do uso corriqueiro da palavra. No se trata de tematizar, refletir e deliberar, embora essa seja uma maneira possvel de se escolher. Falamos, portanto, de escolha na medida em que nada alm da minha liberdade determina minhas aes, nada me impele a ser e agir de tal modo, a escolher um determinado projeto. Alm disso, so os atos que revelam e concretizam nossas escolhas, e no o con-trrio. No se trata de desejar, querer e sonhar com algo que me leva a escolher e ento agir. na prpria ao que escolho meus projetos, que me escolho.

    A escolha dos projetos derivados ou concretos tampouco se d de forma gratuita. H um sentido que atravessa e se expressa em cada escolha, em cada ao e movimento que fazemos. Algo que d certa coerncia e unidade s nossas aes e projetos cotidianos. Todas elas, assim como os fins posicionados, fazem parte da totalidade de um pro-jeto de sentido este denominado por Sartre escolha ou projeto funda-mental/original. Como j foi dito, no se trata de uma escolha delibera-da, refletida e tampouco datada. Encontra-se no mbito da conscincia

    8 A noo de projeto amplamente abordada por Sartre ao longo da Quarta Parte do Ser e o Nada, e ocupa um lugar de grande importncia no pensamento do filsofo. Em poucas pala-vras, projeto se refere ao posicionamento de fins que, como j foi colocado, constitui um dos elementos da ao, sendo que luz do projeto que os motivos e mbeis ganham sentido e valor, ou seja, se constituem como tal. Ao longo do texto, veremos os desdobramentos dessa noo e sua estreita relao com a escolha.

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    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    pr-reflexiva, ou seja, no-tematizada e no-posicionada9. A cada ao e movimento que engendro, sou conscincia pr-reflexiva do modo de ser que escolho e reafirmo nesta ao.

    Podemos definir, ento, o projeto fundamental enquanto a tota-lidade de ser escolhida livremente por cada um de ns, ou, em outras palavras, o modo de ser-no-mundo10 escolhido por cada um. O projeto no se distingue do meu ser, escolha de mim mesmo no mundo, to-talidade organizada de minhas condutas, enquanto esquema geral de meu ser, incluindo, tambm, a maneira como escolho assumir meu ser--para-outro11. na escolha fundamental que a singularidade se expres-sa. importante ressaltar que no estamos aprisionados nessa escolha do nosso modo de ser. Especialmente na medida em que a escolha ori-ginal projeto, projeo do que buscamos ser embora no possamos realmente s-lo, j que, para Sartre, somos um vazio de ser. Trata-se da busca incessante do humano de dar identidade e unidade ao seu ser, no modo de ser das coisas.

    No se trata da escolha de um projeto de ser que feita e que, a partir de ento, direciona e confere sentido s minhas aes e projetos concretos. Tampouco se trata de um impulso inicial ou de um projeto concebido e depois realizado, posto em prtica pois isso seria o mes-mo que falar em destino, essncia ou natureza a priori. Existir e agir j pr em prtica um projeto, que s ter consistncia, s poder ser conhecido e refletido, na medida em que tem sido vivido, a partir de uma anlise regressiva desta vivncia. Esta questo est ilustrada no trecho a seguir:

    Meu projeto ltimo e inicial pois constitui as duas coisas ao mesmo tempo sempre, como veremos, o esboo de uma so-luo do problema do ser. Mas esta soluo no primeiro con-cebida e depois realizada: somos esta soluo, fazemo-la existir pelo nosso prprio comprometimento e, portanto, s podemos capt-la vivendo-a.12

    9 A questo da conscincia abordada principalmente na Introduo e Primeira Parte do Ser e o Nada.

    10 Expresso heideggeriana utilizada por Sartre, que se refere condio que a nossa de ser lanado no mundo.

    11 A problemtica do Outro est apresentada na Terceira Parte do Ser e o Nada.12 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p. 570.

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    A escolha do projeto no necessria e nem determinada por qualquer fator externo prpria liberdade. A nadificao prossegue continuamente, e, por conseguinte, a reassuno livre e contnua da escolha indispensvel. Esse projeto d sentido e significado s aes e motivos, mas a prpria significao no se d de modo necessrio e determinante. O projeto fundamental, ao mesmo tempo em que pos-sibilita que se encontre sentido e certa coeso nas aes, constitudo, ele mesmo pelo sentido que atravessa e se expressa nas aes e projetos concretos no h, a nosso ver, projeto fundamental seno na prpria expresso da concretude da existncia.

    Na medida em que estas escolhas, por sua vez, so fruto da nossa liberdade, resulta que os nossos atos so, eles mesmos, fruto da nossa li-berdade. No arbitrrios e gratuitos, mas sim compreensveis e dotados de motivao. Um ato livre porque sua motivao escolhida e signifi-cada enquanto tal a partir de um livre projeto eleito pelo prprio sujeito. O ato, como colocado por Sartre, integra-se como estrutura secundria em estruturas globais e, finalmente, integra-se na totalidade que eu sou13.

    A escolha enquanto criao de sentido

    possvel notar, aqui, para alm da ao, a estreita relao entre a escolha e o sentido14. Como foi dito, ainda que eu possa tomar a mim mesma, aos motivos das minhas aes, as minhas prprias aes, mi-nhas limitaes, minha situao, etc. enquanto coisas dadas, elas ape-nas se apresentam desse modo a partir de um livre projeto, de uma posio subjetiva no mundo.

    Ns surgimos em um mundo j concebido em sua dimenso scio-histrica e material, com suas regras e orientaes. Alm disso, cada um de ns existe em uma determinada contingncia a qual Sar-tre denomina facticidade15 que consiste, dentre outras coisas, no local onde nasce, na cultura na qual se desenvolve, na famlia em que cresce e as pessoas com quem se relaciona, e at mesmo na vivncia do seu

    13 Idem, p. 566.14 Utilizaremos o termo sentido referindo-nos significao, ao dar sentido luz de um projeto.

    Trata-se, em outras palavras, do lugar que cada coisa e evento ocupa do sentido que ganha na totalidade que cada Para-si .

    15 Este conceito desenvolvido pelo filsofo no Captulo 1 da Quarta Parte.

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    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    corpo. Trata-se daquilo que no foi escolhido por ns, mas que nos constitui e que temos de ser. Tudo isso situa a ns e a nossa liberdade, mas no a limita, no a diminui, e nem determina nosso ser e nossas aes, na medida em que no determina o modo como nos relaciona-mos, como existimos, cada um de ns, nossa situao nosso corpo, nossa cidade, nossa famlia, etc.

    Esse modo, por sua vez, no determinado, mas consiste na pr-pria escolha do projeto original. Vale frisar que, segundo Sartre, no h captao da facticidade a no ser atravs do projeto fundamental de sentido sempre atravs deste que ela se manifesta. Portanto, no posso mudar o fato de que nasci em determinado local, com uma famlia e cultura, em determinado corpo e de que ocorreram em meu passado determinados fatos. Isso me constitui, algo que no escolhi e nem posso mudar. Mas, elejo o modo como me relaciono e como existo minha cidade, minha famlia, meu corpo, meu passado, ao dar sentido a tudo isso a partir de um projeto escolhido por mim. A esse respeito, Sartre diz:

    O valor das coisas, sua funo instrumental, sua proximidade e seu afastamento reais (que no tm relao com sua proximida-de e seu afastamento espaciais) nada mais fazem do que esboar minha imagem, ou seja, minha escolha. Minhas roupas (unifor-me ou terno, camisa engomada ou no), sejam desleixadas ou bem cuidadas, elegantes ou ordinrias, meu mobilirio, a rua onde moro, a cidade onde vivo, os livros que me rodeiam, os entretenimentos que me ocupam, tudo aquilo que meu, ou seja, em ltima instncia, o mundo de que tenho perptua conscincia pelo menos a ttulo de significao subentendida pelo objeto que vejo ou utilizo tudo me revela minha escolha, ou seja, meu ser. (p. 571)16

    A liberdade, portanto, no se refere escolha do mundo histri-co em que vivemos o que seria absurdo afirmar , nem s condies materiais de que dispomos. Refere-se, por outro lado, escolha de ns mesmos no mundo, no importa qual ele seja. E, ao nos escolhermos, escolhemos o mundo e sua significao, dando-lhe sentido e totalidade.

    16 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p. 571.

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    Cristina Moreira Jalil

    Encontramos assim, no sistema sartreano, o seguinte panorama: As escolhas sejam referentes aos projetos concretos ou abstra-

    tos so necessrias, na medida em que no nos dada a alternativa de no escolher. Ainda que, atravs da m-f, como foi dito anterior-mente, justifiquemos nossas aes por outros fundamentos que no a nossa liberdade, essa captao de ns mesmos e do mundo j consiste em um projeto livremente escolhido.

    As escolhas concretas, por sua vez, ganham sentido a partir da escolha original, do projeto fundamental, sem, no entanto, estabelecer com este relaes pr-determinadas, necessrias. Conhecer um projeto fundamental no nos permite conhecer e prever todos os atos futuros, ainda que ele possibilite certa consistncia e unidade. Este projeto pre-cisa ser reafirmado e escolhido a cada ao, o que implica que pode ser refutado ou modificado embora muito dificilmente isso ocorra.

    O projeto fundamental no tem qualquer fundamento que no seja minha liberdade. Prescinde, portanto, de qualquer determina-o. uma escolha necessria na medida em que no posso no es-colher, mas livre e possvel em seu contedo. necessrio escolher e escolher-se. Minhas escolhas, no entanto, esto no campo do poss-vel, no do necessrio.

    Consideraes finais

    H, de acordo com Sartre, escolha dos motivos e dos fins inten-cionados nas minhas aes, escolha da minha situao que ganha sentido e captada por mim a partir de um livre projeto , e escolha de um projeto fundamental, que a eleio de mim mesmo, do meu modo de ser-no-mundo, que implica na maneira como eu me relaciono, me posiciono no mundo.

    Para o filsofo, sou inteiramente responsvel por meu ser: esco-lho a mim e o meu mundo. Como buscamos demonstrar ao longo deste trabalho, isso se d pelo prprio carter de indeterminao e liberdade do humano, que precisa a cada vez se fazer, ou seja, se escolher. E isso significa, no limite, dar sentido ao meu ser, s minhas aes, ao meu mundo e minha existncia. Diante do que foi exposto, consideramos, ento, que seja possvel pensar a escolha em Sartre, no limite, como livre significao.

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    A noo de escolha no Pensamento Sartreano

    Ao longo da sua obra, Sartre faz colocaes que, a primeira vista podem parecer exageradas ou mesmo incmodas, inclusive no que diz respeito escolha. Os conceitos e frases, no entanto, como em qualquer outro autor, no devem ser tomados isoladamente, mas articulados dentro da complexidade e particularidades do sistema do qual fazem parte. Algumas crticas ontologia sartreana parecem tomar especial-mente os conceitos de liberdade e escolha sem as peculiaridades do uso que o filsofo faz. Esperamos aqui ter colaborado com a discusso de tais conceitos to caros ontologia em questo, alm de apontar para a importncia de investigar o lugar que o sentido ocupa na siste-mtica da ao na ontologia de Sartre.

    Referncias

    BORNHEIM, G. Sartre: Metafsica e Existencialismo. 3. ed. So Paulo: Editora Perspectivas, 2003.DANTO, Arthur, C. As idias de Sartre. So Paulo: Editora Cultrix, 1975.MORRIS, Katherine J. Sartre. Porto Alegre: Editora Artmed, 2009.PERDIGO, Paulo. Existncia e liberdade: uma introduo filosofia de Sartre. Prefcio de Gerd Bornheim. Porto Alegre: L&PM, 1995.

    SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada Ensaio de Ontologia Fenomenolgica. 15 Edio. Traduo e notas de Paulo Perdigo. Petrpolis: Editora Vozes, 2007.______. O Existencialismo um Humanismo. In: Sartre. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1987 (Col. Os Pensadores).______. A transcendncia do ego esboo de uma descrio fenomenolgica. Lisboa: Colibri, 1994.

  • Liberdade e escolha original: Sartre e a tica do porvir

    Luciano Donizetti da Silva

    Se a existncia, por outro lado, precede a essncia e se quisermos existir, ao mesmo tempo em que construmos a nossa imagem, essa imagem vlida para todos e para toda a nossa poca.Sartre, EH.

    A bibliografia especializada sobre a filosofia de Sartre unnime em indicar sua aproximao do marxismo ainda na dcada de 1950. certo que as razes e, principalmente o significado dessa aproximao, no ponto pacfico: alguns veem a a manuteno das teses de O Ser e o Nada (EN), ou melhor, o mero transplante dos problemas insolveis da ontologia para o plano social; outros, no entanto, esmeram-se por mostrar que no h sequer relao entre os dois perodos, e que a Cr-tica da Razo Dialtica (CRD) seria uma espcie de reincio completo de seu trabalho (GARAUDY, 1960 e DOUBROVSKY, 1960). Por fim, h autores que, antecipando a tese aqui defendida, declaram que na CRD Sartre teria solucionado as dificuldades de EN no tocante sociedade e histria (AUDRY, 1966). Essa divergncia na interpretao da obra do filsofo expressa ao menos trs chaves de leitura no tocante liber-dade, conceito fundante e estruturante do pensamento sartriano; difcil mesmo admitir que a liberdade seja um conceito, pois para Sartre ela o modo de ser humano no mundo, a fonte a partir da qual brotam a significao do mundo, as possibilidades de agremiao, de constitui-

    Carvalho, M.; Solis, D. E. N.; Carrasco, A. de O. R. Filosofia Francesa Contempornea. Coleo XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 40-52, 2015.

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    Liberdade e escolha original: Sartre e a tica do porvir

    o de grupos, de grupos de grupos, de sociedade e da histria como um todo.

    A liberdade na filosofia de Sartre pode at ser encarada como idealista, como mero sobrevoo das condies concretas da produo da vida; mas para tanto o leitor no pode ir muito alm da leitura da ter-ceira parte de EN (O para-outro). Na verdade, mesmo a seria preciso admitir que a relao com o outro no a algo to ruim, afinal o outro o mediador indispensvel entre mim e mim mesmo ao revelar um ser que meu sem ser-para-mim (SARTRE, 1997, pp. 289-90). No h como negar que o outro , tambm, aquele que carrega consigo meu se-gredo e, enquanto tal, ele a fonte de perigo para minha liberdade, afinal o outro negativamente me faz objeto; em termos marxistas ele, o outro, fonte de minha alienao. Mas em EN o caso no assim to dramtico, como o no teatro: Huis Clos mostra que cada outro meu inferno; EN resume-se a mostrar que ser-para-si , livre e negativamente, constituir mundo. Porm esse poder negativo prprio do ser-para-si do qual, pela negao do Ser, o homem traz o ser ao mundo (constitui mundo) o ni-co, pautando tanto minha postura em relao a ele quanto a postura dele em relao a mim: a relao com o outro conflituosa, ou O conflito o sentido originrio do ser-Para-outro (SARTRE, 1997, p. 454).

    Quando a leitura de EN fica restrita a esse impasse pode-se, a partir da, tanto justificar a aproximao de Sartre do marxismo como uma espcie de converso (o que exigiria, de sua parte, renegar EN), quanto acusar Sartre de, com sua tentativa de ajudar o marxismo, retomar com termos marxistas os erros de sua ontologia. Porm, caso esse erro de princpio seja corrigido, pode-se da liberdade mesma mostrar que a CRD sim o lugar privilegiado de soluo das possveis pendncias da ontologia, em especial a dificuldade no tocante relao entre os para--sis e sua aparente impossibilidade de agremiar-se ou organizar-se; afi-nal, e esse um refro por demais repetido para ser ignorado, o inferno o outro. Mas, a par dessa sentena, ignora-se que para Sartre esta livre necessidade de ser longe do que em forma de falta constitui a ipseidade, o segundo aspecto essencial da pessoa (SARTRE, 1997, p. 156). Ser para-o-outro matiza o modo de ser nico no mundo, descreve o mundo como negao do Ser em presena do outro. A ontognese privada, maneira francamente depreciativa e lacunar de considerar EN, perde

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    Luciano Donizetti da Silva

    em importncia ante a incmoda, porm necessria presena do outro, desse inegvel apelo superao do solipsismo.

    Inicialmente o outro aparece como uma dificuldade, como aque-le que congela minhas possibilidades e, assim, a filosofia de Sartre quan-do abandona o plano da ontognese privada, resultaria num mundo de Medusas.1 Mas longe das interpretaes de EN como um retumbante fracasso, em relao a Huis Clos Sartre afirma que ali trata-se de consci-ncias mortas; afinal como ns estamos vivos, quis mostrar por absurdo a importncia, em ns, da liberdade, isto , de mudar os atos por outros atos. (...) E se as pessoas no o quebram, ainda livremente que elas ficam nele. De sorte que se metem, livremente, no inferno (SARTRE, in CONTAT & RYBALKA, 1970, p. 101). Ora, da em diante manter a postura, seja de que Sartre tenha se convertido ao marxismo (renegado EN) ou que tenha levado problemas insolveis para o plano marxista acaba figurando mais como um ato de m-f; ou, ao menos, como falta de cui-dado (intencional ou no) em dar vazo quilo que o filsofo pretendeu com sua filosofia. Em resumo, o homem livre porque, incapaz de coin-cidir consigo, existe como negao de si e do Ser o resultado disso o mundo; ademais, todo homem livre e, consequentemente, a negao no fica restrita ao plano das coisas (enquanto fundo, negao interna, on-tolgica; ou enquanto negao desse objeto aqui, negao externa, ntica) mas , tambm, negao de outros paras-sis. E se no caso do ser a negao tem uma nica via, no caso da negao entre para-sis ela uma via de mo dupla: cada um nega o outro e , ao mesmo tempo, por ele negado.

    Se assim, em que medida afirmar que a passagem de Sartre ao plano marxista no significou mera converso nem foi apenas a re-colocao dos mesmos problemas com uma terminologia emprestada de Marx? Ocorre que desde EN o filsofo anuncia a possibilidade da superao dessa situao:

    posso voltar-me para o outro a fim de, por minha vez, conferir--lhe objetividade, j que a objetidade do outro destruidora de minha objetividade para ele. Mas, por outro lado, na medida em que o outro, como liberdade, fundamento de meu ser-Em-si,

    1 Importa dizer que no se est, aqui, admitindo que a filosofia de EN seja tal ontognese; ao contrrio, o filsofo mesmo se antecipa em informar que por questes didticas os seres para-si e para-outro so tematizados separadamente em EN, mas que efetivamente adentram o mundo num nico ato, aquele concernente ao acontecimento absoluto (apario do para-si no mundo).

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    posso tratar de recuperar essa liberdade e apoderar-me dela, sem priv-la de seu carter de liberdade (SARTRE, 1997, p. 453).

    A condio do homem em EN na sua relao com o outro gera, no h dvida, dificuldade para a agremiao humana pacfica; mas no se pode esquecer que, seja como for, cada para si cada existncia, enfim est, ontologicamente, livremente, sempre e sem qualquer pos-sibilidade de livrar-se, ligada ao outro.

    Assim, a liberdade ou para todos ou no de modo algum; e Sartre categrico: Logo que existir, para todos, uma margem de liberdade real para alm da produo da vida, o marxismo desaparece-r; seu lugar ser ocupado por uma filosofia da liberdade (SARTRE, 2002, p. 39). Noutros termos, a revoluo marxista pode sim ser con-siderada o caminho mais adequado para alcanar o reino da liberdade; mas preciso ter claro que esse reino se justifica porque o homem , ontologicamente, livre. De outro modo a liberdade seria algo que lhe viria de fora; e, caso no se parta de alguma instncia existencial, con-cernente ao modo humano de ser no mundo, que diferena haveria entre impor a opresso, a misria, a explorao ou a liberdade? E isso se torna ainda mais patente quando se considera que o para-si no tem essncia, no tem potncia: ele o que faz. A liberdade, se vinda de fora, reafir-maria a mesma situao, qual seja, a imposio social de algo; mas o projeto de realizao da liberdade humana no se concretiza seno em comunidade, seno para todos. E, ademais, para Sartre uma emprei-tada intil pensar que se possa libertar socialmente o homem se isso significar que a liberdade uma espcie de ddiva ou concesso; enfim, como algo que se pudesse acrescentar ao modo de ser-para-si, afinal se o homem no originalmente livre, mas determinado, no seria poss-vel nem mesmo conceber o que poderia ser sua libertao (SARTRE, 1947-1976, [Sit. III], p. 208).

    O homem livre. Em sociedade ele se aliena de seu ser: ontolo-gicamente pelo olhar do outro (conf. Huis Clos e EN), onticamente pela opresso, violncia, explorao. Mas ainda em EN Sartre aventou a possibilidade de recuperao da liberdade e, assim, tem-se claramente a primeira indicao tica: a atitude que visa a construo do Reino da Liberdade. E, nesse aspecto, Sartre tem em Marx um aliado de peso:

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    De fato, o reino da liberdade comea onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente im-posta; por natureza situa-se alm da esfera da produo material propriamente dita. (...) Mas, esse esforo situar-se- sempre no reino da necessidade. Alm dele comea o desenvolvimento das foras humanas como um fim em si mesmo, o reino genuno da liberdade (MARX, 1980, p. 942).

    Est claro que do ponto de vista marxista trata-se de recuperar a liberdade; e apenas pode-se recuperar algo que tenha sido perdido. Ora, no parece ento absurda a pretenso sartriana de recuperar no seio do marxismo o homem, perdido em meio a tanta pressa em totalizar, em meio fora da alienao que sim, onticamente, perda do resultado do trabalho; mas que , ontologicamente, da liberdade mesma?

    A empresa de Sartre se justifica: o marxismo est parado e cabe ideologia existencialismo ajuda-lo a superar a situao em que se en-contra; e tal ajuda teria sido engendrada pelo marxismo mesmo, afinal o marxismo como filosofia tornada mundo arrancava-nos cultu-ra defunta de uma burguesia que vegetava a partir de seu passado (SARTRE, 2002, p. 29). Para Sartre o marxismo ficou parado em razo da ortodoxia marxista que decidiu promover em seus acordos de l-deres o movimento histrico de totalizao; e de inserir a, fora, a complexidade histrica. Da que Durante anos, o intelectual marxista julgou que servia a seu partido, violando a experincia, negligencian-do os detalhes incmodos, simplificando grosseiramente os dados e, sobretudo, conceitualizando o acontecimento antes de t-lo estudado (SARTRE, 2002, p. 31); desse ponto de vista, o existencialismo entra como uma ideologia burguesa que, uma vez impedida de seguir adian-te em seu idealismo, tenta unir-se ao marxismo como meio de superar suas dificuldades e de algum modo manter seus resultados, conforme dir LUKCS (1979). Assim, para manter a liberdade Sartre teria desis-tido da ontologia, e isso justificaria sua converso ao marxismo; ou, ainda na perspectiva da insolubilidade das dificuldades de EN, Sartre tentaria resolv-las trazendo-as para o plano dialtico, para o campo da interrogao marxista.

    Nada disso. Para Sartre

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    Liberdade e escolha original: Sartre e a tica do porvir

    O marxismo tinha ficado parado: precisamente porque essa filo-sofia pretende modificar o mundo, porque visa o devir-mundo da filosofia, porque e pretende ser prtica, operou-se nela uma verdadeira ciso que colocou a teoria de um lado e a prtica de outro (SARTRE, 2002, p. 31).

    Em perfeita consonncia com Marx, para quem o ideal no mais do que o material transposto para a cabea do ser humano e por ela interpretado (MARX, 1980, p. 16), na CRD Sartre aventura-se pelos terrenos prticos da histria, tendo como modelo a liberdade ontolgi-ca de EN. Nesse campo o debate se amplia grandemente: trata-se de dar conta da maneira pela qual o homem faz a histria e, ainda assim, no se reconhece nela; trata-se de explicar a origem da alienao, seja do produto de seu trabalho, seja da liberdade; trata-se, enfim, de levar a indagao aos limites da razo dialtica mesma. E, por fim, trata-se de, nesse turbilho de Ser que se chama histria, desenhar um caminho tico; e tudo isso, assim como fora feito em EN, ser orquestrado e ter como norte a liberdade: se o marxismo reabsorveu o homem na ideia, o existencialismo o procura por toda parte onde ele est, em seu trabalho, em sua casa, na rua (SARTRE, 2002, p. 35). sobre essa base que a questo sobre uma possvel tica na filosofia dever, aps EN, assentar-se; e essa , em parte, a explicao das dificuldades enfrenta-das por Sartre para levar adiante esse trabalho.

    ---

    Em geral os comentrios sobre a filosofia de Sartre partem de uma daquelas decises tericas supracitadas (converso ao marxismo, repetio das aporias de EN em termos marxista ou soluo das dificul-dades presentes em EN na sua CRD); mas a visita de Sartre ao Brasil, da qual resultou a famosa Conferncia de Araraquara, decisiva para orientar esse trabalho. Nela o filsofo afirma que

    Se o senhor pensa (...) que h uma diferena entre O Ser e o Nada e a Crtica da Razo Dialtica por causa da maneira como os problemas so formulados mas no por causa da prpria dire-o; a direo continua a mesma (SARTRE, 1987, pp. 91-3).

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    Assim, confiando no que o filsofo mesmo afirma a respeito de seu trabalho, cabe agora adentrar o problema que norteia esse texto, qual seja, a tica do porvir e, claro, a relao dessa com a noo de es-colha original. Isso porque, do mesmo modo que Marx sugere que o reino da liberdade exigiria a superao do reino da necessidade para efetivar-se, tambm Sartre desenvolve em sua filosofia indicaes da possibilidade de efetivao de sua tica. Claro que, nesse panorama, seria foroso pensar algo prescritivo, afinal a liberdade ser o mote dessa empreitada.

    A filosofia de Sartre se move tendo por objetivo inalcanvel a constituio de uma tica; mas no se pode ignorar que o paradoxal est na prpria base da possibilidade de efetivao de uma moral, afinal ela ao mesmo tempo, uma livre e absoluta necessidade (SARTRE, 1997, p. 145). Absolutamente livre e absolutamente necessria, a tica remete antes de tudo ao paradoxal da existncia; ela reflete pratica-mente a estrutura de ser-para-si, reflete o ncleo ontolgico (e desde sempre irrealizvel) de todo homem, de ser-em-si-para-si, de buscar fundamentao, de coincidir consigo e mesmo assim permanecer para--si algo impossvel. Mas a primeira indicao tica encontra-se fun-dada nesse paradoxo pelo qual a ontologia estabelece a fonte do valor: o valor impregna o ser na medida em que este se fundamenta e no na medida em que : impregna a liberdade (SARTRE, 1997, p. 145). No h valores inscritos num cu inteligvel, no h natureza humana de onde eles poderiam ser deduzidos, no h transcendncia de onde eles possam arrancar sua necessidade; e, no entanto, embora absolu-tamente necessria, a tica se mostra impossvel de ser realizada, pois sua realizao leva-a imediatamente ao plano do em-si e, assim, sua imediata perda de efetividade.

    Em EN tudo se passa em dois nveis bem especficos, insepar-veis de fato e somente compreensveis caso separveis de direito: o pla-no ontolgico e o plano ntico. A ontologia ensina que h apenas duas modalidades do ser, em-si e para-si (que, claro, remete ao para-outro, sociedade e histria); o primeiro absoluta coincidncia consigo, o segundo a absoluta impossibilidade de identificar-se. Ora, se ontologi-camente o homem est separado de si mesmo por nada, essa falta aparece onticamente como motor do projeto de ser de cada um; e cada homem,

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    Liberdade e escolha original: Sartre e a tica do porvir

    e cada mulher pretende, realizando seu projeto, realizar-se naquilo que ontologicamente invocado: ser-em-si-para-si. Da um passo at a concluso de que o homem uma paixo intil, que a histria de cada exis-tncia a histria de um fracasso, que o homem seja uma espcie de Deus faltado. Mas nada disso impede que o valor, esse mais alm e o para da transcendncia (...) impregne o mago do Para-si como aquilo para o qual o Para-si (SARTRE, 1997, p. 144-5). A absoluta necessidade e tambm absoluta gratuidade de ser-para-si adentra, sem qualquer re-serva, o plano do valor e explica, num s golpe, no a impossibilidade de uma tica, mas sim o paradoxal de sua realizao.

    Onticamente cada ser humano, a partir de seu projeto de ser, faz escolhas; com isso ele elege seu ser e, em certa medida descreve uma tica, afinal o que ele faz o modelo do que ele pretende como ser-homem-no-mundo; isso que Sartre ensina quando mostra que

    Com efeito, no h dos nossos atos um sequer que, ao criar o homem que desejamos ser, no crie ao mesmo tempo uma ima-gem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos sem-pre o bem, e nada pode ser bom para ns que no seja para todos (SARTRE, 1978, pp. 6-7).

    Mas isso de nada adianta caso no seja possvel rastrear o que explica a ligao que pode ser feita entre as aes pontuais de cada ho-mem no mundo, tais como as escolhas que ele faz em sua lida e conse-quentemente o sentido que tem essas escolhas (plano ntico), e o senti-do profundo dessas escolhas na v inteno de realizar-se em-si-para-si (plano ontolgico). Em resumo, todo homem tem como caracterstica ontolgica o projeto de realizar-se em-si-para-si (ser Deus); a liberda-de, matiz de seu ser-no-mundo, permite que cada existncia eleja o melhor jeito de realizar essa estrutura ontolgica e, da, encontra-se no mundo os mais variados tipos de projeto de ser todos eles equivalentes e, por certo, dignos de respeito, afinal so genuna expresso de ser. A tica, partindo dessa estrutura de ser, possvel?

    Antes de responder essa questo imprescindvel recorrer a um aspecto negligenciado da filosofia de Sartre: a escolha original. Sem isso

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    Luciano Donizetti da Silva

    a passagem do plano ontolgico ao ntico no inteligvel, pois todo projeto de ser seria idntico: buscaria realizar a impossvel fuso do em-si e do para-si. Mas a impossibilidade definitiva de totalizao, seja do projeto que for, no tem absolutamente que ver com isso. Ao con-trrio, a impossibilidade de realizao do ser humano no mundo (ex-presso da impossvel unio do em-si e do para-si, ontolgica) exige levar a discusso para o plano da psicanlise existencial, que rivaliza com aquela freudiana justamente em sua base: para Sartre o objetivo da investigao deve ser a descoberta de uma escolha, e no de um es-tado, razo pela qual no se trata jamais de um dado soterrado nas trevas do inconsciente, mas sim uma determinao livre e consciente determinao essa que sequer chega a ser uma habitante da consci-ncia, mas que se identifica prpria conscincia (SARTRE, 1997, p. 701). Desse modo tm-se duas instncias, aquela ontolgica, na qual todo para-si busca realizar-se em-si-para-si, e outra, ntica, na qual cada homem faz escolhas pontuais a fim de realizar-se; e justamente a escolha original que rene essas duas instncias, afinal, ela encontra-se em um limbo entre o ntico e o ontolgico,