uma voz ao sol tao e legitimidade na narrativa brasileira contempornea

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    Uma voz ao solUma voz ao solUma voz ao solUma voz ao solUma voz ao solrepresentao e legitimidade na narrativarepresentao e legitimidade na narrativarepresentao e legitimidade na narrativarepresentao e legitimidade na narrativarepresentao e legitimidade na narrativa

    brasileira contemporneabrasileira contemporneabrasileira contemporneabrasileira contemporneabrasileira contempornea

    Regina DalcastagnProfessora de Literatura Brasileira / UnB

    Tem esses que so igualzinhos a mim

    Tem esses que se vestem e se calam igual a mim

    Mas que so diferentes da diferena entre ns

    STELADO PATROCNIO

    O escritor, dizia Barthes, o que fala no lugar de outro1. Quando

    entendemos a literatura como uma forma de representao, espao onde

    interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam, no

    podemos deixar de indagar quem , afinal, esse outro, que posio lhe

    reservada na sociedade, e o que seu silncio esconde. Por isso, cada vez

    mais, os estudos literrios (e o prprio fazer literrio) se preocupam

    com os problemas ligados ao acesso voz e representao dos mltiplos

    grupos sociais. Ou seja, eles se tornam mais conscientes das dificuldades

    associadas ao lugar da fala: quem fala e em nome de quem. Ao mesmo

    tempo, discutem-se as questes correlatas, embora no idnticas, da

    legitimidade e da autoridade (palavra que, no por acaso, possui a mesma

    raiz de autoria) na representao literria. Tudo isto se traduz no

    crescente debate sobre o espao, na literatura brasileira e em outras,

    dos grupos marginalizados entendidos em sentido amplo, como todos

    aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valorao

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor,

    orientao sexual, posio nas relaes de produo, condio fsica ou

    outro critrio2.

    O silncio dos marginalizados coberto por vozes que sesobrepem a ele, vozes que buscam falar em nome deles, mas tambm,

    por vezes, quebrado pela produo literria de seus prprios integrantes.

    Mesmo no ltimo caso, tenses significativas se estabelecem: entre a

    autenticidade do depoimento e a legitimidade (socialmente construda)

    da obra de arte literria, entre a voz autoral e a representatividade de

    grupo e at entre o elitismo prprio do campo literrio e a necessidadede democratizao da produo artstica. O termo chave, neste conjunto

    de discusses, representao, que sempre foi um conceito crucial

    dos estudos literrios, mas que agora lido com maior conscincia de

    suas ressonncias polticas e sociais. De fato, representao uma

    palavra que participa de diferentes contextos literatura, artes visuais,

    artes cnicas, mas tambm poltica e direito e sofre um processopermanente de contaminao de sentido3. O que se coloca no mais

    simplesmente o fato de que a literatura fornece determinadas

    representaes da realidade, mas sim que essas representaes no so

    representativas do conjunto das perspectivas sociais.

    O problema da representatividade, portanto, no se resume

    honestidade na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suaspeculiaridades. Est em questo a diversidade de percepes do mundo,

    que depende do acesso voz e no suprida pela boa vontade daqueles

    que monopolizam os lugares de fala. Como lembra Anne Phillips,

    pensando num contexto diverso, concebvel que homens possam substituir mulheres quando o que

    est em questo a representao de polticas, programas ou ideaiscom os quais concordam. Mas como um homem pode substituirlegitimamente uma mulher quando est em questo a representao

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    das mulheres per se? concebvel que pessoas brancas substituamoutras, de origem asitica ou africana, quando est em questorepresentar determinados programas em prol da igualdade racial. Masuma assemblia formada s por brancos pode realmente se dizerrepresentativa, quando aqueles que ela representa possuem uma

    diversidade tnica muito maior? Representao adequada , cada vezmais, interpretada como implicando uma representao mais corretados diferentes grupos sociais que compem o corpo de cidados4.

    Embora a autora esteja se referindo representao poltica, a

    discusso pode ser estendida, sem contorcionismos, representao

    literria. Na narrativa brasileira contempornea marcante a ausncia

    quase absoluta de representantes das classes populares. Estou falandoaqui de produtores literrios, mas a falta se estende tambm s

    personagens. De maneira um tanto simplista e cometendo alguma (mas

    no muita) injustia, possvel descrever nossa literatura como sendo a

    classe mdia olhando para a classe mdia. O que no significa que no

    possa haver a boa literatura, como de fato h mas com uma notvel

    limitao de perspectiva.Por que ocorre essa ausncia? No se trata, na verdade, de algo

    exclusivo do campo literrio. As classes populares possuem menor

    capacidade de acesso a todas as esferas de produo discursiva: esto

    sub-representadas no parlamento (e na poltica como um todo), na mdia,

    no ambiente acadmico. O que no uma coincidncia, mas um ndice

    poderoso de sua subalternidade. Foucault j observava a centralidadedo domnio do discurso nas lutas polticas travadas dentro da sociedade;

    segundo ele, o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas

    ou os sistemas de dominao, mas aquilo por que, pelo que se luta5.

    Um dos sentidos de representar , exatamente, falar em nome

    do outro. Falar por algum sempre um ato poltico, s vezes legtimo,

    freqentemente autoritrio e o primeiro adjetivo no excluinecessariamente o segundo. Ao se impr um discurso, comum que a

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    legitimao se d a partir da justificativa do maior esclarecimento, maior

    competncia, e at maior eficincia social por parte daquele que fala.

    Ao outro, nesse caso, resta calar. Se seu modo de dizer no serve, sua

    experincia tampouco tem algum valor. Trata-se de um processo queest ancorado em disposies estruturais; voltando a Foucault, em toda

    sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,

    selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de

    procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos,

    dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel

    materialidade6

    .O controle do discurso, denunciado pelo filsofo francs, a

    negao do direito de fala queles que no preenchem determinados

    requisitos sociais: uma censura social velada, que silencia os grupos

    dominados. De acordo com Pierre Bourdieu, entre as censuras mais

    eficazes e mais bem dissimuladas situam-se aquelas que consistem em

    excluir certos agentes de comunicao excluindo-os dos grupos quefalam ou das posies de onde se fala com autoridade7. O fundamental

    perceber que no se trata apenas da possibilidade de falar que

    contemplada pelo preceito da liberdade de expresso, incorporado no

    ordenamento legal de todos os pases ocidentais mas da possibilidade

    de falar com autoridade, isto , o reconhecimento social de que o

    discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido.O processo se completa graas introjeo dos constrangimentos

    estruturais pelos agentes sociais, que faz com que os limites impostos

    ao discurso no sejam excessivamente tensionados, j que cada um, via

    de regra, mantm-se dentro de seu espao autorizado. Ainda conforme

    Bourdieu, a censura alcana seu mais alto grau de perfeio e

    invisibilidade quando cada agente no tem mais nada a dizer almdaquilo que est objetivamente autorizado a dizer: sequer precisa ser,

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    neste caso, seu prprio censor, pois j se encontra de uma vez por todas

    censurado, atravs das formas de percepo e de expresso por ele

    interiorizadas, e que impem sua forma a todas as suas expresses8.

    assim que determinadas categorias sociais que so excludas do universoda poltica trabalhadores e mulheres, por exemplo tendem a se julgar

    incapazes de ao poltica e, portanto, a aceitar a posio de impotncia

    em que foram colocadas.

    O mesmo se pode dizer da expresso literria. Aqueles que esto

    objetivamente excludos do universo do fazer literrio, pelo domnio

    precrio de determinadas formas de expresso, acreditam que seriamtambm incapazes de produzir literatura. No entanto, eles so incapazes

    de produzir literatura exatamente porque no a produzem: isto , porque

    a definio de literatura exclui suas formas de expresso. Assim, a

    definio dominante de literatura circunscreve um espao privilegiado

    de expresso, que corresponde aos modos de manifestao de alguns

    grupos, no de outros.O campo literrio refora esta definio, atravs de suas formas

    de consagrao e de seus aparatos de leitura crtica e interpretao.

    Segundo afirma Compagnon, todo julgamento de valor repousa num

    atestado de excluso. Dizer que um texto literrio subentende sempre

    que outro no 9. No razovel propor que se abra mo dos juzos de

    valor na discusso da literatura embora seja possvel, e necessrio,entend-los como construes sociais, no como encarnaes de um

    Belo transcendente. No entanto, se h uma valorao sistematicamente

    positiva de uma forma de expresso, em detrimento de outras, o resultado

    fazer da manifestao literria o privilgio de um grupo social.

    Assim, a excluso das classes populares no algo distintivo da

    literatura, mas um fenmeno comum a todos os espaos de produode sentido na sociedade. Uma segunda questo, ento, se impe: o que

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    se perde com isso?

    Perde-se diversidade. H muito tempo, a narrativa vem

    perseguindo a multiplicidade de pontos de vista; talvez os melhores

    romances do sculo que passou tenham sido os que melhor alcanaramesta meta. No entanto, do lado de fora da obra, no h o contraponto;

    quer dizer, no h, no campo literrio, uma pluralidade de perspectivas

    sociais. De acordo com a definio de Iris Marion Young, o conceito de

    perspectiva social reflete o fato de que pessoas posicionadas

    diferentemente [na sociedade] possuem experincia, histria e

    conhecimento social diferentes, derivados desta posio10

    . Assim,mulheres e homens, trabalhadores e patres, velhos e moos, negros e

    brancos, portadores ou no de deficincias, moradores do campo e da

    cidade, homossexuais e heterossexuais vo ver e expressar o mundo de

    diferentes maneiras. Mesmo que outros possam ser sensveis a seus

    problemas e solidrios, nunca vivero as mesmas experincias de vida

    e, portanto, vero o mundo social a partir de uma perspectiva diferente.Quase sempre expropriado na vida econmica e social, ao

    integrante do grupo subalterno lhe roubada ainda a possibilidade de

    falar de si e do mundo ao seu redor. E a literatura, amparada em seus

    cdigos, sua tradio e seus guardies, querendo ou no, pode servir

    para referendar essa prtica, excluindo e marginalizando. Perde, com

    isso, uma pluralidade de perspectivas que a enriqueceria.A terceira e ltima questo a mais difcil: o que fazer diante

    disso? Fica claro que no h uma soluo que se esgote dentro do campo

    literrio trata-se de um problema mais amplo, prprio de uma sociedade

    marcada por desigualdades. No entanto, da mesma forma que possvel

    pensar na democratizao da sociedade, incluindo novas vozes na

    poltica e na mdia, podemos imaginar a democratizao da literatura.A incluso, no campo literrio talvez ainda mais do que nos outros,

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    uma questo de legitimidade. Neste sentido, a prpria crtica e a

    pesquisa acadmica no so desprovidas de relevncia. Afinal, so

    espaos importantes de legitimao (ao lado dos prprios criadores

    reconhecidos), como sustenta Shusterman

    11

    . Ler Carolina Maria de Jesuscomo literatura, coloc-la, quem sabe, ao lado de Guimares Rosa e

    Clarice Lispector, em vez de releg-la ao limbo do testemunho e do

    documento, significa aceitar como legtima sua dico, que capaz

    de criar envolvimento e beleza, por mais que se afaste do padro

    estabelecido pelos escritores da elite.

    Este artigo busca participar deste movimento, abertamentepoltico, de crtica e legitimao. Assim, sero analisados aqui tanto o

    modo como alguns escritores, j autorizados, se colocaram a falar

    dos marginalizados, transformando-os em personagens (e at em

    narradores) de seus textos, quanto as estratgias utilizadas por aqueles

    autores que, sados das margens do campo literrio, tentam impr sua

    perspectiva e sua dico. No primeiro bloco, que ser dividido em outrossubgrupos, esto autores como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Joo

    Antnio, Salim Miguel, Luiz Vilela, Srgio SantAnna, Clarice

    Lispector, Osman Lins. No segundo, apenas trs nomes: Carolina Maria

    de Jesus, Paulo Lins e Ferrz. Sero trabalhados contos e romances,

    todos contemporneos, todos urbanos. Certamente, outros autores

    poderiam ser acrescentados a essa discusso (e ainda outros gneros,como a poesia, o rap, o teatro, at o cinema), mas creio que as obras

    selecionadas so representativas para a problemtica a ser abordada.

    No Brasil

    Na histria da literatura brasileira, a representao do outro

    atravessa diversos momentos: da idealizao romntica dos ndios ao

    heri sem nenhum carter de Mrio de Andrade, passamos ainda pelos

    malandros e prostitutas do cortio de Alusio Azevedo, os homossexuais

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    de Adolfo Caminha, os sertanejos em luta descritos por Euclides da

    Cunha, para citar s os mais bvios. Apesar de no interessar diretamente

    discusso aqui proposta, um espao bastante rico para a anlise dessa

    representao o regionalismo. Quase sempre vinculado a um projetode constituio da identidade nacional, ele percorre escolas e sculos,

    esbarrando no cosmopolitismo dos modernistas, reagindo nos anos 1930,

    com o ciclo do romance nordestino, e se dissolvendo na dcada de

    1970, quando o Brasil se percebe um pas majoritariamente urbano12 e

    sua literatura passa a se ocupar fundamentalmente com os problemas

    dos habitantes das cidades13

    .Preocupados com a transcrio dos diferentes falares e costumes

    regionais, os autores regionalistas muitas vezes reduziram os problemas

    humanos a elemento pitoresco, fazendo da paixo e do sofrimento do

    homem rural, ou das populaes de cor, um equivalente dos mames e

    dos abacaxis [frutas de sabor extico], nas palavras de Antonio

    Candido14. Relacionando as transformaes do regionalismo com aquesto do subdesenvolvimento na Amrica Latina, o crtico paulista

    aponta trs fases no regionalismo brasileiro, que, com algumas

    adaptaes, inspiram a classificao dos modos de representao do

    outro que desenvolvo neste artigo. A primeira fase que Candido chama

    de regionalismo pitoresco e inclui nomes como os de Jos de Alencar,

    Gonalves Dias e Bernardo Guimares seria marcada pela conscinciaeufrica de pas novo e pela idia do atraso, com uma representao

    saturada de exotismo. A segunda o regionalismo problemtico traria

    a agonia dos grandes engenhos, da seca e do homem do interior,

    aparecendo como um precursor da conscincia do sudesenvolvimento.

    Escritores como Jos Lins do Rego e Rachel de Queiroz, includos

    nesta fase, seriam caracterizados pela superao do otimismo patriticoe a adoo de um tipo de pessimismo diferente do que ocorria na fico

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    naturalista. Enquanto este focalizava o homem pobre como elemento

    refratrio ao progresso, eles desvendavam a situao na sua

    complexidade, voltando-se contra a classe dominante e vendo na

    degradao do homem uma conseqncia da espoliao econmica, nodo seu destino individual15. J Guimares Rosa com seus refinamentos

    literrios e suas tcnicas antinaturalistas, mas ainda aproveitando a

    substncia do regionalismo faria parte da ltima fase deste processo,

    que Candido chama de super-regionalismo. Colocando de lado o

    sentimentalismo e a retrica, este terceiro momento corresponderia

    conscincia dilacerada do subdesenvolvimento e opera uma explosodo tipo de naturalismo que se baseia na referncia a uma viso emprica

    do mundo16.

    Da diluio da experincia do outro no meio ambiente tentativa

    de compreenso dos seus problemas sociais e exploso na sua

    representao, temos, com variveis posies ideolgicas e estticas,

    uma mesma perspectiva: a do escritor da cidade que, antes de maisnada, produz para leitores da cidade. O exotismo, que Candido aponta

    na primeira fase, no deixa de estar presente, ainda que de forma bem

    mais discreta, nas subseqentes. Segundo Bernard Mouralis, o exotismo

    um meio atravs do qual se pode operar, graas tomada em

    considerao da existncia e, por vezes, da irrupo de outro, um

    conhecimento de si e, ao mesmo tempo, uma questionao do saberetnocntrico. No entanto, no vai, por esse facto, conduzir a um

    conhecimento do outro. Uma vez que a existncia do outro est sujeita

    vontade de um observador, sem a qual no chegaria at ns, esse

    outro no existe seno em funo da sociedade, das nossas

    preocupaes, dos nossos fantasmas17.

    Se isso vale para a populao rural representada em nossaliteratura, no vai ser muito diferente quando o outro a ser traduzido

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    for o operrio, a empregada domstica, o malandro do morro, o ladro

    ou o traficante, a prostituta ou o menino de rua, seres urbanos que esto

    sempre do lado de l de nossa existncia de classe mdia. De modo

    geral, ao atravessar nossas narrativas, eles dizem muito mais dos patrese patroas, da polcia, dos profissionais liberais assustados com a violncia

    ou condodos pensando nos prprios filhos do que de sua vida e de seus

    problemas concretos. Talvez porque o dilema do discurso extico, fazer

    com que o desconhecido e o estranho sejam codificveis e entrem nas

    nossas categorias intelectuais18, seja o dilema do artefato literrio

    mesmo: a necessidade de representar experincias outras, que no sejamapenas aquelas idnticas s de seus autores, para que ao menos uma

    tentativa de dilogo de estabelea.

    Os escritores brasileiros contemporneos enfrentaram essa

    dificuldade de maneiras to diferentes quanto possvel dentro de um

    espao de tempo razoavelmente limitado, as cerca de quatro dcadas

    com as quais pretendo trabalhar. E neste perodo vivemos ainda sobuma ditadura militar o que imps, para uma parcela dos escritores,

    um sentido maior de urgncia sua produo. Dentro da literatura

    engajada da poca, convm fazer uma distino entre aquela

    propriamente poltica, em que no h o outro (j que as vtimas da

    represso por ela enfocadas so, via de regra, os filhos da pequena

    burguesia), e que, portanto, no me interessa aqui19, e outra, de cunhomais social, que denuncia a explorao da classe trabalhadora, da qual

    veremos alguns exemplos. Assim, a denncia do regime autoritrio se

    apoiava numa faceta poltica (restrio das liberdades, desrespeito aos

    direitos humanos) e outra econmica (arrocho salarial, concentrao da

    renda, desemprego), mas uma delas era vista como atingindo

    especialmente as classes mdias e a outra, os estratos populares. O que j aponta uma evidente diferena de enfoque vrias outras sero

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    questionadas aqui.

    Para facilitar a anlise, esses modos de representao do outro,

    do marginalizado em nossa sociedade contempornea e urbana, sero

    divididos em blocos, sem pretender que essa classificao tenha validadeuniversal. O primeiro, que chamarei de extico, ser subdividido em

    outros dois: cnico epiegas, de acordo com a linguagem utilizada e o

    envolvimento entre autor/narrador/personagem. O segundo, intitulado

    crtico, se subdividir em implcito e explcito, levando em conta o tipo

    de discusso interna que se estabelece na obra. J o terceiro, que trar a

    perspectiva de dentro, ou seja, daqueles autores que seriam eles prprioso outro, abarcar tambm a discusso do problema da autenticidade e

    da legitimidade, sociais e literrias. Os textos selecionados para a

    discusso, s vezes apenas um ou dois contos de um mesmo escritor de

    obra bastante extensa, so representativos, mas a anlise estar voltada

    para essas narrativas em si, sem me preocupar se esta interpretao

    pode ser generalizada para o resto da obra do autor.Extica

    No sculo XIII, quando escrevia seu livro de viagens para o

    divertimento dos nobres (...) e a edificao dos burgueses20, Marco

    Polo utilizava seu esprito crtico para refutar algumas lendas (como a

    de que o amianto tinha suas origens na salamandra) sobre as quais

    possua informaes novas, mas era cuidadoso o bastante para no negar

    elementos que a geografia de seu tempo considera bem reais, por

    exemplo os homens com cauda ou com cabea de cachorro. O fato de

    no t-los encontrado no prova suficiente de sua inexistncia,

    sobretudo diante do peso da tradio21. neste sentido que vou me

    referir ao exotismo de algumas narrativas contemporneas. Ou seja,

    aquelas obras onde o outro aparece com as feies que a tradio lhes

    deu deformadas pelo nosso medo, pelo nosso preconceito, nosso

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    sentimento de superioridade. Obras que, mesmo tentando ser crticas,

    acabam por reforar essa imagem, fazendo de gente que vive nossa

    volta seres to distantes e estranhos quanto os mongis no tempo de

    Marco Polo.Dois dos mais consagrados nomes do conto nos anos 70, Rubem

    Fonseca e Dalton Trevisan, constrem sua representao do outro

    bandidos miserveis no caso do primeiro, suburbanos pobres, no do

    segundo sob a perspectiva das classes dominantes. E, tanto num caso

    quanto no outro, a violncia, contra tudo e todos, a marca definidora.

    Um certo cinismo, no estilo, tambm os aproxima. verdade que aviolncia tambm aparece quando eles tratam das elites, mas com

    deslocamentos significativos. Na obra de Rubem Fonseca h uma

    diferena no estatuto atribudo personagem violenta, de acordo com

    sua extrao social. O alto executivo que sai noite para atropelar

    incautos com seu carro luxuoso (em Passeio noturno I e Passeio

    Noturno II [1975], de Feliz ano novo) um sujeito comum, comemprego, mulher e filhos, que simplesmente possui uma perverso. Aps

    matar, ele volta tranqilo para casa, pronto para outro dia normal de

    trabalho. J os garotos que vo assaltar, estuprar e assassinar numa festa

    de bacanas (em Feliz ano novo [1975]) no so nada alm de

    assaltantes, estupradores e assassinos.

    Enquanto o executivo mata sem nem sujar o pra-choque, osrapazes chafurdam no sangue de suas vtimas. O primeiro frio e

    calculista, os outros so desorganizados, irados, invejosos: animalescos,

    enfim. E no o caso de perguntar qual a violncia pior. O que est em

    questo aqui a representao do criminoso pobre. possvel interpretar

    os atropelamentos do executivo como uma metfora bvia dos muitos

    crimes cometidos pelo capitalismo todos os dias, mas a ligao ficamuito tnue, uma vez que os outros elementos do conto no corroboram

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    essa leitura. O que temos um indivduo enlouquecido, um psicopata.

    Do outro lado, h um bando, que justificaria suas atrocidades pelo fato

    de terem menos do que aqueles que eles violentam. Esse discurso

    ainda mais explcito em O cobrador [1979] (do livro com o mesmottulo), onde um homem pobre e sem dentes resolve cobrar o que a

    sociedade lhe deve matando os bem situados na vida: est todo mundo

    me devendo! Esto me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa,

    automvel, relgio, dentes, esto me devendo22.

    O psicopata sofisticado e cheio de recursos o serial killer, uma

    imagem j consagrada pelo cinema, um vilo que merece at algumasimpatia, tendo em vista a inteligncia com que lida com suas vtimas

    e, especialmente, com a polcia. J o sanguinrio bando de assaltantes,

    que cospe um vocabulrio prprio e exibe fuzis sem disfarces, est muito

    mais prximo dos noticirios policiais. O ponto central que, embora

    ambos sejam representaes literrias, teoricamente livres de um

    cotejamento com a realidade, o primeiro remete fico, e o segundoao mundo real: ao cotidiano violento das grandes cidades brasileiras.

    Observando pela perspectiva dos bem situados na vida ns, os

    leitores de Rubem Fonseca , provavelmente acharemos alguma graa

    no executivo e nos sentiremos mais uma vez ameaados pelos rapazes

    da favela. Neste caso, o que a narrativa traz de novo sobre o outro que

    se inscreve sob a categoria marginal? Eles continuam com seus rabose cabeas de cachorro.

    E o problema da representao se agrava quando notamos que

    tanto Feliz ano novo quanto O cobrador esto em primeira pessoa.

    O que refora a idia, intencionalmente ou no, de que assim mesmo

    que eles so23 os marginais, no as personagens e nos remete, mais

    uma vez, ao contexto social de onde eles parecem ter sido retiradospara nos falar de si, diretamente. Antonio Candido, num artigo sobre a

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    nova narrativa, dizia que os autores contemporneos, incluindo Rubem

    Fonseca, tentavam apagar as distncias sociais, identificando-se com

    a matria popular. Utilizariam, para isso, a primeira pessoa, como

    recurso para c, nfundir autor e personagem

    24

    . Discordo que exista emFonseca qualquer inteno de ser confundido com suas personagens,

    especialmente com seus marginais. No se trata apenas de que o leitor

    j chega ao texto sabendo que foi escrito por um ex-delegado de polcia

    e advogado de multinacionais, o que j revelaria seu descolamento em

    relao s personagens mas as marcas de distino aparecem dentro

    dos prprios contos.Enquanto o executivo do Passeio noturno conta sua histria

    sem tentar se legitimar (da mesma forma que Fonseca faria, ou faz), o

    rapaz que narra o assalto na festa de ano novo precisa explicar sua

    situao logo no incio: Tenho ginsio, sei ler, escrever e fazer raiz

    quadrada25. isso que o autoriza a falar (note-se que ele no est

    escrevendo) em nome do grupo. Portanto, a distino social est mantida,sim, entre autor e narrador e, mais, vai se desdobrar entre narrador e

    demais personagens. Ele marca sua superioridade indicada pela

    escolarizao, obviamente precria diante da do autor sobre os outros

    em diversos momentos, seja afirmando que no supersticioso, em

    contraposio a um dos colegas: chuto a macumba que quiser (p. 13),

    seja recusando-se a estuprar as mulheres da festa, como fazem os outrosdois: s como mulher que eu gosto (p. 20), ou ainda quando diz no

    se importar com a homossexualidade de um bandido conhecido.

    Curioso notar o quanto esses valores do narrador esto de acordo

    com os princpios da classe mdia. Da mesma forma que os desejos dos

    bandidos no dos psicopatas de Fonseca se parecem demais com

    aquilo que ns imaginamos que eles queiram. Tanto em Feliz ano velhoquanto em O cobrador eles esto atrs de nosso dinheiro, nosso estilo

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    de vida e de nossas mulheres, nessa ordem. Ou como dizia uma outra

    personagem, de um outro autor: No fundo, esse povo quer o seu carro,

    Ivan, Alaor disse. Querem o seu cargo, o seu dinheiro, as suas roupas.

    Querem comer a sua mulher, entendeu? s surgir uma chance

    26

    . Masa, no texto de Maral Aquino, so dois empresrios que conversam,

    observando os movimentos rotineiros de um peo e de um mestre de

    obras, enquanto Rubem Fonseca apresenta a inveja como manifestao

    central da autoconscincia dos marginalizados. Evidencia-se aqui o que

    chamo de cinismo de Fonseca em sua representao do outro. O que

    considerado normal para a classe mdia, apresentado como patolgicono pobre: a vontade de possuir.

    J Dalton Trevisan mais direto faz do cinismo estilo. E isso o

    autoriza a debochar de cada empregada domstica, cada jovem

    suburbana, cada balconista, cada pequeno escriturrio que inclui em

    suas narrativas. Eles ora so ingnuos, ora perversos, muitas vezes as

    duas coisas ao mesmo tempo. Frustrados em suas taras, espremidosentre sonhos de depravao e a vida medocre do subrbio, circulam

    pelas pginas de seus livros como se tivessem o nico intuito de nos

    fazer sorrir, superiores, diante de existncias to desprovidas de sentido

    e, ao mesmo tempo, to carregadas de violncia. As histrias curtas de

    Trevisan, s vezes curtssimas, como em 234 (1997), no precisam de

    contextualizao para que localizemos as personagens no seu espectrosocial. Bastam alguns adjetivos, a descrio de determinados objetos, o

    emprego de diminutivos para que saibamos de onde elas vm. Este,

    alis, o maior talento de Dalton Trevisan a manipulao eficaz dos

    diferentes cdigos sociais (que permite que um simples cachacinha

    inserido no momento adequado descortine todo um cenrio suburbano).

    O problema que no h crtica nesse manuseio. Bem ao contrrio,ele serve para reafirmar preconceitos e marcar a diferena entre ns,

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    cosmopolitas, consumidores de arte, conhecedores de bons vinhos e da

    boa mesa, e essa gente, que enche a cara e passa o dia a se engalfinhar

    patticos em sua animalidade. assim, por exemplo, que a criadinha

    Maria, de Os trs presentes (1968), quase estuprada por umpensionista, mas acaba se rendendo graciosamente a ele em troca de

    radinho de pilha, caneca de letreiro Parabns, pacote de bala Zequinha

    (p. 119). O diminutivo para qualificar a moa j sintomtico do

    desprezo do narrador, levemente disfarado pelo tom jocoso que o conto

    vai assumindo. Alm de criadinha, ela doentinha e bobinha em

    sua vontade de casar de branco. O rdio, a caneca e as balas so ndicesde um universo de consumo barato e sem qualquer sofisticao. Enfim,

    diante da histria de uma menina frgil e sonhadora de treze anos de

    idade que explorada sexualmente em seu trabalho, resta-nos a graa

    de sua rendio a preo to baixo, to vulgar.

    Poderamos, claro, dizer que a distoro efetivada pelo narrador

    os contos de Dalton Trevisan so quase todos em terceira pessoa eque, portanto, tudo no passaria de uma profunda crtica social27. Neste

    caso, seria preciso observar como esse mesmo narrador se comporta

    diante de uma personagem com maiores recursos econmicos. S como

    exemplo, em O negro (1968), do mesmo livro, temos a histria de

    uma dona de casa de classe mdia (ela vai ao cinema, possui carro,

    boas roupas, o marido viaja a trabalho) que, excitada, sai s ruas embusca de um negro para satisfazer seus desejos sexuais. Aqui, no h

    diminutivos, tampouco a ridicularizao a partir de pequenos objetos

    de consumo (que a classe mdia to prdiga em acumular). A zombaria

    da narrativa anterior substituda por um tom mais neutro, descritivo.

    No se estabelece o preconceito contra a personagem enquanto

    representante de determinada categoria social, como em Os trspresentes. O que no quer dizer que o preconceito no esteja ali

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    dessa vez contra a mulher, animalizada pelos seus instintos sexuais28.

    Em suma, em suas representaes do outro, tanto Rubem Fonseca

    quanto Dalton Trevisan parecem ainda excessivamente presos

    necessidade de marcar a distncia entre o intelectual e a matria-primahumana de que se serve. O ponto de referncia para a construo dessas

    personagens, e tambm para a sua leitura, a elite, econmica e cultural.

    Ou seja, o que est representado ali no o outro, mas o modo como

    ns queremos v-lo. Num esforo interpretativo diferente, podemos

    tentar entender os marginais, as criadinhas e os pequenos

    aproveitadores que habitam essas narrativas como uma espcie deespelho de nossas prprias deformidades, a comear pelas literrias. E

    isso se verifica com mais clareza na insistncia com que algumas

    narrativas de Fonseca parecem afirmar: eles querem ser ns, enquanto

    que as de Trevisan completam: mas ns no somos eles.

    evidente que tanto um quanto o outro autor no possuem empatia

    pelas personagens pobres, mas no isso que faz suas narrativasexticas, nos termos apontados anteriormente. Basta notar que num

    escritor como Joo Antnio, conhecido pela profunda simpatia com

    que lidava com malandros, prostitutas, pequenos traficantes, o exotismo

    no menos forte, s de gnero diferente. Em seus contos, ele se utiliza

    daquele sentimentalismo de classe mdia em relao a determinadas

    figuras do submundo urbano que no se apresentam como uma ameaaefetiva para as elites. Suas personagens so bonachonas, engraadas,

    sofredoras, nunca perigosas. que, como o executivo de Rubem

    Fonseca, no esto ancoradas de fato num referencial concreto, mas

    sim sobre uma viso romantizada da bomia o que as coloca num

    mundo parte, bem longe de qualquer possibilidade de contato. quando

    o outro deixa de ser o animal grotesco e libidinoso para compr umafauna colorida, que d vida e sabor narrativa, apesar de no acrescentar

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    nada de muito novo sua prpria representao.

    Joo Antnio possua uma habilidade especial para colocar em

    movimento todo esse arsenal humano. Abria os espaos pblicos ruas,

    praas, botequins para trazer tona sua gente, com o burburinho deuma manh de sol. Por outro lado, os dramas de seus protagonistas

    (misria, alcoolismo, jogo) parecem servir apenas para conduzi-los em

    meio a toda essa torrente. o que acontece com o flanelinha de

    Guardador (1986), por exemplo. Velho, bbado, sem a agilidade de

    outrora para abordar os motoristas, ridicularizado pelas crianas e pela

    polcia, Jacarand circula por Copacabana e, nesse deslocamento,apresenta ao leitor os flagrantes da vida ntima da cidade:

    A praa aninhava um miser feio, ruim de se ver. (...) Pivetes debermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos bancos escangalhadose ficavam magros, descalos, ameaadores. Dormiam ali mesmo, noite,encolhidos como bichos, enquanto ratos enormes corriam ariscos oufaziam paradinhas inesperadas perscrutando os canteiros. Passeavamcachorros de apartamentos e seus donos solitrios e, tarde, velhos

    aposentados se reuniam e tomavam a fresca, limpinhos e direitos.Tambm candinhas faladeiras, pegajosas e de olhar mau, vestidas forade moda, figuras de pardieiro descidas rua para a fuxicaria, de umagordura precoce e desonesta, que as fazia parecer sempre sujas e maisvelhas do que eram, to mulheres mal amadas e expostas ao contrastecruel do nmero imenso das garotinhas bonitas no olhar, na ginga, nosmeneios, passando para a praia, bem dormidas e em tanga, corposformosos, admirveis no todo... tambm comadres faladeiras (pp. 27-8).H, a, uma coletivizao das personagens, o que apaga as feies

    particulares e comumente desemboca na caricatura29. Como elas no

    so apenas um pano de fundo do sustentao ao conto, motivando

    sua composio podemos perceber em sua representao o olhar de

    fora, estrangeiro, que capta, interessado, seus gestos, mas incapaz de

    penetrar suas existncias. A sada seria reforar os protagonistas, mas,como j disse, eles possuem outra funo na narrativa. O velho Jacarand

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    nos apresentado com um tanto de humor, outro de pieguice.

    Acompanhamos seus passos, mas no sabemos de suas razes. No fundo,

    no passa de uma figura folclrica da cidade grande, junto dos loucos e

    dos pequenos trapaceiros. Portanto, mais uma vez, o que temos onosso olhar de classe mdia estampado no lugar do rosto do velho

    miservel. E um olhar ainda superior, respaldado pelo tom paternalista

    da narrativa, sempre cercada de diminutivos: Jacarand tem

    parceirinhos, anda em turminha; em sua volta h crioulinhos e

    empregadinhas30.

    Claro que em seus melhores momentos Joo Antnio conseguedar substncia sua representao, mas ento existem narradores

    intermedirios, que transformam a perspectiva por estarem mais

    prximos do universo descrito. o caso de Menino do caixote (1963),

    conto narrado em primeira pessoa por um garoto que faz sua transio

    da infncia para a adolescncia dando voltas em torno das mesas de

    sinuca de So Paulo31. O mundo dos jogadores da Lapa e redondezas representado pela figura de Vitorino, um profissional do taco decadente

    que fascina e explora o garoto do ttulo. Revelado a partir do ponto de

    vista do menino, uma personagem mais complexa: primeiro aparece

    cercado de glamour, em seguida recontextualizado criticamente,

    exibido em sua pobreza e solido. Mas ainda secundrio na trama,

    que tem como protagonista o garoto, filho de me costureira e paicaminhoneiro. Ele fala do outro enquanto conta da prpria formao,

    num tom entre saudoso e benevolente, que o aproxima bastante dos

    narradores em terceira pessoa do autor.

    Assim, na obra de Joo Antnio, permanece o exotismo de fundo,

    que pode ser observado tambm em narrativas que, em plena ditadura,

    se propunham a trazer para o centro da trama no os bandidos, malandrose vigaristas, mas este outro desconhecido, o trabalhador brasileiro, como

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    as dos primeiros livros de Domingos Pellegrini Jr. Em A maior ponte

    do mundo (1977), por exemplo, conta-se com competncia a histria

    de um grupo de eletricistas convocado a trabalhar sem descanso na

    iluminao da ponte Rio-Niteri, prestes a ser inaugurada. Da mesmaforma que em Joo Antnio, temos a uma profuso de deslocamentos

    e rudos, a constatao da violncia e da explorao, mas nem a narrao

    em primeira pessoa feita por um dos trabalhadores confere a eles

    existncia prpria. que no so indivduos, mas uma categoria, sobre

    a qual muito discurso j foi proferido. Escapar a esses discursos, j

    prontos e enraizados, talvez seja to difcil quanto imaginar cada umdesses homens ou mulheres que vemos trabalhando pelas ruas

    varrendo, consertando coisas, dirigindo nibus como algum com

    uma histria, um passado, projetos e sonhos, parecidos ou no com os

    nossos.

    A categoria trabalhador (ou suburbano, marginal,

    malandro, conforme o caso) pretende condensar numa s abstraoum conjunto de milhares de experincias vividas, como se fossem

    uniformes. O fato que os autores brasileiros se mostram muito mais

    sensveis variedade das vivncias dos estratos sociais mais prximos

    ao seu. Mesmo quando se propem a organizar alguma espcie de painel

    da vida contempornea, comum ver esmiuadas as minsculas

    variaes do estilo de vida das classes mdias, enquanto que a existnciadas multides de pobres chapada, como se a diferena que separa um

    mdico de um advogado fosse mais significativa do que aquela que

    afasta um balconista de lanchonete de um motorista de nibus. Trata-

    se, talvez, de um problema inerente prpria representao. No s a

    literria. Um exemplo plastico disso o livro Women32, coleo de

    fotografias de Anne Leibovitz que pretende retratar a condio femininanos Estados Unidos. H, ali, inmeras fotos de atrizes, escritoras,

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    polticas, empresrias, e pouqussimas so as mulheres do povo

    ainda assim, com predileo por exemplares marcadamente exticos,

    como artistas de circo e strippers.

    CrticaDo jeito que a discusso est sendo encaminhada aqui, pode

    parecer que a representao de grupos marginalizados impossvel,

    uma vez que a vivncia de classe mdia dos escritores com tudo o que

    isto implica em termos de conhecimento, sensibilidade, privilgios e

    preconceitos criaria uma barreira intransponvel entre eles e o universo

    de despossudos que circula ao seu redor. No bem assim. A narrativa uma arte em evoluo, que busca caminhos novos frente a obstculos

    novos. Um desses obstculos o aumento da conscincia sobre as

    diferentes formas do preconceito. O que faz, por exemplo, com que a

    obra de um autor como Mark Twain, antiescravocrata, abolicionista e

    simptico causa negra, possa, hoje, receber manifestaes contrrias

    sua leitura nas escolas por parte de grupos afro-americanos.

    H ainda, mesmo que mal disseminada, a conscincia de que a

    expropriao objetiva das classes dominadas guarda uma relao com

    a existncia de um corpo de profissionais objetivamente investidos do

    monoplio do uso legtimo da lngua legtima33. Quer dizer, o escritor,

    ao falar sobre o outro, est exercendo uma forma de domnio: o que no

    deixa de ser constrangedor para qualquer um que pretenda estar usando

    sua criatividade para acrescentar algo de bom ao mundo. Por isso, me

    parece que as representaes mais adequadas do marginalizado sejam

    aquelas onde o desconforto com o problema tenha deixado suas marcas

    discretas, apesar de decisivas, como nos contos de Salim Miguel,

    Luiz Vilela e Renard Perez; ou explcitas, declaradas, como em Clarice

    Lispector, Osman Lins e Srgio SantAnna. A traduo disso se d com

    um certo estranhamento na narrativa, seja em termos de contedo, seja

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    em relao forma, normalmente em ambos.

    Esse estranhamento tem a ver com um novo enquadramento das

    situaes. Novo justamente porque no combina com aquilo que estamos

    acostumados a ver, preparados para ver. o caso do conto Sem rumo(1973), de Salim Miguel, onde um caboclo nordestino, pobre e

    esfarrapado, chega andando numa cidade do Sul e, num bar, pergunta

    por trabalho. Nada do que vem a seguir esperado, fora o fato de que

    ele no vai conseguir emprego e ter que continuar suas andanas. O

    texto construdo quase todo sobre dilogos, com o narrador se limitando

    a descrever o espao e os poucos movimentos das personagens,circunscritas ao balco do bar. ali que o caboclo, enquanto espera a

    delegacia do trabalho abrir, vai contar sua histria, feita de pobreza,

    fome, explorao. Mas, para nosso espanto, ele no apenas mais uma

    vtima do capitalismo, pronta a se comportar como rezam as cartilhas.

    um sujeito com vida prpria, que sente prazer em saber que os ps

    descalos no tm razes e que seu destino andar pelo Brasil afora,sem rumo.

    O dono do bar, atrs do balco, ocupa nosso lugar de leitores de

    classe mdia na narrativa. Proprietrio, ps bem plantados no cho,

    d informaes breves e escuta. Quando chegam dois outros clientes,

    to pobres e esfarrapados quanto o primeiro, mas gente do lugar, a

    histria do caboclo repetida, no uma, mas duas vezes um dos homens meio surdo e precisam gritar-lhe de novo tudo o que dito. Da vm

    conversas sobre possveis empregos nas redondezas e a incerta notcia

    de uma vaga junto ao mercado de um portugus, para onde o caboclo se

    recusa a ir sem os dois outros, consciente de que chego l assim de

    mos abanando, sozinho, desconhecido, o homem me olha e vai logo

    dizendo que no tem preciso de pessoa alguma no, ou que j arranjououtra, eu cheguei tarde, uma pena (p. 27). onde entra o dono do bar,

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    insistindo para que ele procure o tal portugus, mas o caboclo

    definitivo, sabe o que sabe, e parte tranqilo.

    O que nos incomoda, como parece incomodar ao dono do bar, o

    seu modo resignado de encarar o destino ruim, a falta de lgica em suasatitudes, um certo desleixo na conduo dos prprios passos. Mas se

    olharmos de novo a narrativa, se ouvirmos com ateno suas palavras,

    vamos perceber que o caboclo sem nome no resignado, experiente;

    que no lhe falta lgica, ela s no se coaduna com a nossa; que seu

    desleixo tem mais a ver com a nossa nsia de segurana do que com

    a sua legtima vontade de conhecer o mundo. Obviamente, Salim Miguelno est querendo nos dizer que assim que agem ou pensam os milhares

    de desempregados nordestinos que vagam pelo sul do pas, mas o autor

    mostra que possvel falar deles sem recorrer a esteretipos. No h

    discurso pronto que explique a trajetria desse homem, ele simplesmente

    diferente, como cada um de ns se quer diferente, e vive.

    mais ou menos o que acontece em Boa de garfo (1979), deLuiz Vilela (que se passa no stio, ao contrrio de todas as outras

    narrativas analisadas aqui). Neste conto, um homem chega para uma

    entrevista de emprego numa chcara ao lado de uma imensa cadela. Pai

    e filho o menino que narra a histria, dando todo o espao para os

    dilogos, como no conto anterior se sentem meio intimidados, mas

    tm boas referncias do trabalhador, que acaba exigindo um salriomuitas vezes maior do que outros que passaram por ali. A justificativa

    para o seu preo surge em meio a uma longa explicao: ele precisa de

    dinheiro para alimentar a cadela. Embora a me mande despacharem

    logo o sujeito que, segundo ela, estaria tentando engan-los , o pai

    continua com a conversa, fazendo perguntas e tentando entender porque

    o homem gastaria mais com o animal do que consigo mesmo:O senhor algum dia j pensou o tanto que o senhor j gastou de carne

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    com ela?No, no pensei no, mas deve ter sido um despropsito.E se o senhor em vez de dar pra ela tivesse comido essa carne?Eu?; se o senhor em vez de dar pra ela tivesse comido essa carne.

    verdade, o homem baixou o olhar, parecendo refletir; ento olhounovamente para o meu pai: Mas e ela, qu que ela ia comer? (p. 121).

    Por fim, o sujeito acaba sendo contratado, com o pai ainda em

    dvida sobre se no fora feito de bobo pelo outro, mas feliz com a

    deciso. Mais uma vez, temos uma lgica diferente em atuao. E a

    ela que o dono do stio acaba se rendendo, mesmo sem compreend-la

    muito bem. Um desempregado que gasta o que no tem para alimentarum animal uma deformidade diante de nosso olhar utilitarista, ou um

    mentiroso. Mas no para isso que a narrativa aponta. Os dilogos no

    nos revelam um velhaco, disposto a enganar seu futuro patro, o que,

    alis, contrastaria com a carncia em que vive. Mostram uma relao

    de solidariedade com o animal, visto no como um instrumento para

    alguma coisa (serviria apenas para tanger um gado inexistente) e simcomo um ser merecedor de respeito e carinho por si mesmo. Uma relao

    afetiva, muito mais forte do que a que une uma madame a seupoodle

    pois esta se d no espao do suprfluo, e portanto no fere nossa escala

    convencional da prioridades, enquanto o trabalhador de Luiz Vilela cede

    o essencial sua cadela.

    Tanto em Sem rumo quanto em Boa de garfo, o que ficapatente a expresso de uma lgica social diferenciada, que rejeita

    objetivos, valores e formas de ao que ns tendemos a ver como

    naturais. Isso explica a sensao de estranhamento e mesmo

    desconfiana em relao aos protagonistas que os contos causam em

    seus leitores34. Isso se repete, com o acrscimo da tematizao das

    dificuldades no contato entre o intelectual e o povo, no conto O

    guarda-noturno (1983), de Renard Perez. Ali, a histria gira em torno

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    da amizade improvvel entre um escritor e um guarda-noturno. O

    primeiro convida o outro a subir uma noite ao seu apartamento para

    beber alguma coisa, e este passa a freqentar sua casa, no comeo meio

    constrangido, como quem invade um espao alheio, aos poucos mais vontade, embora com o jeito cuidadoso de quem teme tropear no tapete.

    Quanto ao escritor, parece estar sempre se perguntando o que ele

    prprio deseja na ligao com o guarda (que, alis, jamais chamado

    de guardinha). Teme, justamente, usar o outro como objeto de estudo,

    muito embora se divirtam juntos como dois garotos que cabulam aula

    que mais ou menos o que fazem, um fugindo do seu posto na rua parabeber, o outro deixando de lado o texto que estava escrevendo para

    acompanh-lo. A narrao em primeira pessoa, feita pelo escritor, d

    conta dessa situao ambgua. No incio, o guarda visto com simpatia

    indiferente (combinada com um pouco de desconfiana), aos poucos,

    se torna um sujeito curioso (extico), passa a ser encarado com afeto

    quando comea a falar de si, e aparece meio infantilizado quando oescritor (assumindo uma postura paternalista) se pergunta se no o est

    desencaminhando. Por fim, visto com considerao e respeito. Primeiro

    quando aparece dizendo que leu, e gostou, de uma crnica escrita pelo

    amigo, que fica orgulhoso com o elogio, depois, quando reencontrado

    na rua, com uma farda da Polcia Militar, um sonho que ele acalentava

    h tempos.Ao contar do guarda-noturno, o escritor de Renard Perez se insere

    na narrativa como a afirmar: no posso dizer dele sem explicitar que

    sou eu que o digo. Sua presena no texto denuncia seu olhar nosso

    olhar e, num relance, ainda faz adivinhar a existncia do outro

    escondida sob nossa incapacidade de compreender. Se aqui essa

    discusso se d atravs do desenrolar do enredo, em livros como A

    hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, eA rainha dos crceres

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    da Grcia (1976), de Osman Lins, o problema tematizado

    explicitamente. Seus protagonistas so, a um s tempo, personagens,

    narradores e autores (quando no crticos) das histrias onde atuam. E

    dali de dentro que encenam, ostensivamente, a impossibilidade de falarpelo outro, de sequer dar voz ao outro.

    Rodrigo S. M., autor da Macaba de Clarice Lispector, um sujeito

    cnico, pretensioso, que comea a narrativa muito seguro de suas

    habilidades para representar a jovem nordestina parda, feia, pobre,

    inapta, at meio suja, ou seja, com todas as caractersticas negativas

    que a classe dominante lhe poderia dar. Mas ao longo do texto ele se vaidesmontando, exibindo suas deficincias e seus preconceitos, um

    profundo desconforto diante do objeto de sua escrita. O desconhecimento

    que Rodrigo acaba delatando sobre sua personagem o impede de faz-

    la falar, mas nos diz muito sobre a difcil relao entre o intelectual e a

    massa no Brasil35. Isso nos sugere uma maneira bastante inusitada de

    pensar a representao literria do outro a partir da revelao dosnossos prprios mecanismos de adeso social, que distinguem e excluem.

    O curioso que, ainda assim, sem falar e sem que falem por ela, Macaba

    aparece por trs do discurso de Rodrigo S. M., como a acenar para ns,

    deixando claro que no a tola incapaz que ele dizia, mas algum com

    objetivos e razes diferentes.

    Algo bastante semelhante acontece com Maria de Frana, apersonagem de Osman Lins, to jovem, nordestina, parda, miservel,

    feia e inapta para o trabalho quanto Macaba. Pretensamente composta

    por Julia Marquezim Enone, uma escritora desconhecida, sem obra

    publicada, ela chega at ns a partir dos comentrios ao romance

    realizados num dirio pelo homem que teria amado sua autora. Ou seja,

    ela a personagem de uma personagem de uma personagem. Se RodrigoS. M. estabelecia a distncia que o separava de algum como Macaba

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    justamente atravs da criao artstica (lembrando que, segundo

    Bourdieu, a arte e o consumo artstico [so] predispostos a preencher,

    quer se queira, quer no, quer se saiba ou no, uma funo social de

    legitimao das diferenas sociais

    36

    ), este homem vai faz-lo viainterpretao. Ele revolve um arsenal de erudio para justificar a

    existncia literria de Maria de Frana, como se s assim ela ganhasse

    dignidade para freqentar as pginas de um romance. E justamente

    essa erudio outra vez discursos prontos, mas agora ostensivos

    que esconde e cala a jovem nordestina, para que o intelectual possa

    falar.Tanto Macaba quanto Maria de Frana s ganham existncia a

    partir de seus atravessadores, todos bastante conscientes do domnio

    (no s literrio, mas tambm social) exercido sobre esse outro que

    cresce sua sombra. Srgio SantAnna que, sem ser engajado, no

    sentido mais superficial da palavra, talvez o mais poltico dos escritores

    brasileiros contemporneos, pois sempre expressa, de diferentes ngulos,o problema do lugar da fala leva essa conscincia da intermediao

    literria ao grau mximo em Um discurso sobre o mtodo (1989).

    Neste conto, um limpador de janelas senta-se sobre a marquise do prdio

    onde trabalha para fumar um cigarro. Embaixo, um grupo de curiosos

    imagina que ele pretende se suicidar e comea o coro: pula, pula. Ele

    pensa em voltar limpeza, quando vaiado: E esta vaia, sim, foirecebida por ele com mgoa, porque os gritos anteriores tinham sido

    algo assim como o entusiasmo da arquibancada diante de um atleta e,

    de repente era como se ele houvesse executado a jogada errada. Com o

    escovo e o pano nas mos, e o balde a seus ps, ele virou-se novamente

    para a platia e deu um passo mido adiante, para ouvir distintamente

    os gritos de pula, pula (p. 91).Tendo o circo montado, entra em cena com mais fora o narrador,

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    onipresente e onipotente, a despejar sobre o homem uma tonelada de

    discursos, cada um mais absurdo que o outro, muito embora carregados

    da autoridade que lhes conferida no mundo social. O narrador, aqui,

    no se traveste de personagem para transitar pela narrativa (como omenino de Luiz Vilela, ou mesmo o escritor de Clarice Lispector), ele

    aparece como aquilo que efetivamente : um narrador em terceira pessoa,

    que at h pouco se queria imparcial e objetivo, mas que agora, e cada

    vez mais, se v obrigado a se auto-denunciar, explicitando sua prpria

    perspectiva37. Afinal, como j dizia Bakhtin, o sujeito que fala no

    romance um homem essencialmente social, historicamente concreto edefinido e seu discurso uma linguagem social (ainda que em embrio),

    e no um dialeto individual38. Assim, se em muitos contos e romances

    ainda precisamos buscar descobrir onde se esconde o narrador, ou o

    que ele esconde ao se esconder, no texto de Srgio SantAnna temos o

    escancarar de sua posio, ou suas posies, uma vez que ele consegue

    reunir num s sujeito da enunciao, os mais diferentes, e divergentes,enunciados.

    Claro que todos esses enunciados acabam condensando uma nica

    perspectiva, de elite, sobre o limpador de janelas. O narrador, cheio de

    sarcasmo, no quer parecer simptico sua personagem, apesar de ser

    ainda mais cido em relao aos discursos que reproduz. J no incio

    alerta que o homem da marquise um coadjuvante muito secundrio,quase imperceptvel, de um espetculo polifnico (p. 91). Ou seja,

    no confundamos o trabalhador com um protagonista. Ele objeto de

    muitas falas, que se exibem, como num palco, disputando espao e

    audincia. So vozes empanturradas de sabedoria, e de citaes eruditas,

    que tentam explicar o trabalhador da marquise, seja atravs da filosofia,

    da sociologia ou da psicanlise, com seus discursos fechados e auto-suficientes. Das explicaes se passa para as tentativas de salvamento

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    o discurso sobre a redeno pelo amor, a Deus ou jovem datilgrafa

    de uma das firmas para onde ele trabalhava.

    Por fim, vem o diagnstico, fornecido pelo bombeiro encarregado

    de retirar o sujeito do alto do prdio: louco (p. 103). Apesar dortulo novo, o homem da marquise no passa de uma alegoria social,

    como esclarece o narrador, se auto-ironizando tambm, uma alegoria

    social, poltica, psicolgica e o que mais se quiser. Aos que condenam

    tal procedimento metafrico, preciso relembrar que a classe

    trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam de lmpen,

    ainda est longe do dia em que poder falar, literariamente, com a prpriavoz. Ento se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo (p.

    103). E a temos a legitimao, obviamente irnica, de representaes

    canhestras, preconceituosas, verborrgicas daqueles que ainda no

    podem falar por si. Se nos romances de Osman Lins e Clarice Lispector

    essa discusso j era colocada de modo explcito, em Um discurso

    sobre o mtodo ela se faz quase manifesto bem humorado, comotoda obra de Srgio SantAnna, mas contundente.

    Toda esta literatura mais marcadamente crtica est sugerindo, no

    final das contas, que a autoridade de quem fala pelo outro tem de ser

    questionada, tanto em termos literrios quanto sociais. O que no

    significa que a representao de grupos diferentes daquele de onde

    procede o autor deva ser abolida, at porque, usando os termos de AnnePhillips em sua discusso sobre o problema da representao feminina,

    isso inadvertidamente condenaria vozes minoritrias a trabalharem

    apenas com questes ou cultura de minoria, sendo que o verdadeiro

    problema no quem deveria falar e de que perspectivas, mas como

    assegurar s mulheres nativas e de cor, acesso integral e idntico s

    oportunidades de publicao39. Ou seja, a representao no dispensaa necessidade da presena do outro, no elimina a exigncia da

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    democratizao do fazer literrio. Enquanto isso no acontece, autores

    como Ferrz, pobres e perifricos, se apresentam como vozes isoladas,

    e provocam: Querido sistema, voc pode at no ler, mas tudo bem,

    pelo menos viu a capa

    40

    .De dentro

    Mas olhar a capa muito pouco. Mesmo ler o livro no ser

    bastante, se isto for feito de forma condescendente, com o jeito superior

    de quem est relevando falhas em funo do interesse social da obra (o

    que tambm s acontece de tempos em tempos). A recepo s narrativas

    de Carolina Maria de Jesus emblemtica desta situao. Muito antesde escritora, ela nos apresentada como fenmeno estranho, algum

    que consegue erguer sua cabea da misria para nos oferecer um

    documento sociolgico importantssimo, como insiste Fernando Py

    nas orelhas de Quarto de despejo (1960)41. Nada contra seus textos

    serem utilizados como objeto de estudo da Sociologia ou de outras reas

    de conhecimentos, mas isso no quer dizer que no sejam material, em

    sua essncia, esttico. A ser analisado, portanto, tambm esteticamente.

    O fato de ela ser negra, pobre, catadora de lixo no pode ser usado para

    transform-la numa personagem extica, apagando sua autoridade

    enquanto autora.

    O que, alis, foi feito das mais diferentes maneiras, inclusive pelo

    reconhecimento exclusivo de seus dirios, editados e organizados por

    Audlio Dantas, e a desateno a seus trs outros livros: Casa de

    alvenaria, Dirio de Bitita e Provrbios e pedaos da fome. Fora os

    poemas, contos, quatro romances e trs peas de teatro que sequer

    chegaram a ser publicados42. como se a sociedade brasileira estivesse

    disposta a ouvir as agruras de sua vida, e s. Ou como se a algum

    como Carolina Maria de Jesus no coubesse mais do que escrever um

    dirio, reservando-se o fazer literatura queles que possuem

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    legitimidade social para tanto especialmente os homens, brancos, de

    classe mdia. Afinal, como dizia Bourdieu, falar apropriar-se de um

    ou outro dentre os estilos expressivos j constitudos no e pelo uso,

    objetivamente marcados por sua posio numa hierarquia de estilos queexprime atravs de sua ordem a hierarquia dos grupos

    correspondentes43.

    Sendo assim, necessrio lembrar que Carolina Maria de Jesus

    (tanto quanto Paulo Lins, como veremos adiante) j comea a escrever

    seus textos se sabendo em desvantagem, consciente de que precisa se

    legitimar enquanto escritora para poder construir uma representao desi mesma e daqueles que a cercam que se dignifique como literria.

    Essa conscincia a que me refiro no aparece, bvio, de forma explcita

    vincula-se quele sentimento cruel de saber do seu devido lugar,

    que subsiste mesmo entre os que se recusam a aceitar tais limites ,

    mas est presente em determinados constrangimentos impostos ao

    prprio discurso. Constrangimentos que no caberiam em obras deautores como Clarice Lispector ou Rubem Fonseca, por exemplo, que

    no tm porque justificar, ao menos no de forma imediata, sua escrita,

    e tampouco precisam recorrer a gneros como dirios ou testemunho

    para respaldar suas narrativas.

    Com defasagens em termos de literariedade, Carolina Maria de

    Jesus busca empregar a seu favor a autenticidade de seu relato. Da aafirmao, em Quarto de despejo, de que preciso conhecer a fome

    para saber descrev-la (p. 27). O que no quer dizer que seus textos

    no sejam repletos de fabulao, ou que sua representao seja mesmo

    to realista quanto ela defende diante de um vizinho. Em meio sua

    contabilidade da fome, com um tempo que se estende e se emenda em

    dias iguais feitos de trabalho e angstia, a autora insere personagens,cria situaes inusitadas, d conta da movimentao na favela, com as

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    intrigas, a falta de solidariedade, a feira que contamina os meninos

    que vo morar ali: No incio so educados, amveis. Dias depois usam

    o calo, so soezes e repugnantes. So diamantes que se transformam

    em chumbo (p. 37)

    44

    . Constri, enfim, uma narrativa, repleta designificados e de ambigidades, onde a protagonista , antes de tudo,

    mulher, me e escritora. A misria no apaga nada disso.

    a partir do seu olhar, ora irritado, ora pesaroso, quase sempre

    dbio, que teremos a representao do universo da favela paulistana. A

    Carolina que aparece ali est sempre dividida entre o desprezo que sente

    pela gente do lugar: as mulheres da favela so horrveis numa briga. Oque podem resolver com palavras elas transformam em conflito. Parecem

    corvos, numa disputa (p. 54), e a solidariedade superior da artista que

    acredita firmemente ser: o poeta enfrenta a morte quando v seu povo

    oprimido (p. 38). No entanto, talvez os momentos mais fortes de sua

    narrativa sejam justamente aqueles em que ela precisa assumir fazer

    parte desse mesmo mundo: s oito e meia da noite eu j estava nafavela, respirando o odor dos excrementos que se mescla com o barro

    podre. Quando estou na cidade tenho a impresso de que estou na sala

    de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas

    de cetim. E quando estou na favela tenho a impresso de que sou um

    objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (p. 36).

    Nesse olhar de dentro possvel notar uma grande variedadede perspectivas. No h nada daquele tom chapado que aparece nos

    contos de Rubem Fonseca, Dalton Trevisan ou mesmo Domingos

    Pellegrini Jr. O pobre, aqui, visto como alcolatra ou trabalhador,

    marginal ou vtima dos desmandos da polcia, violento com as mulheres

    ou trado por elas muitas vezes uma coisa e outra ao mesmo tempo.

    E esse modo de ver pode ser preconceituoso, apreensivo, respeitoso,dependendo da disposio da protagonista e narradora no momento em

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    que fala (ou escreve). Tudo, claro, ajustado por um vis feminino, que

    olha pela janela do barraco enquanto esquenta a mamadeira das crianas,

    que observa uma mulher apanhando e pensa que melhor estar sem

    homem, que tem de parar de escrever para lavar roupa. O que norestringe o ngulo de viso, justamente porque cada mulher hoje pode

    reivindicar uma multiplicidade de identidades, cada uma das quais

    podendo associ-la a diferentes tipos de experincia compartilhada45.

    Da, talvez, uma das principais diferenas entre o livro de Carolina

    Maria de Jesus e o Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, outro escritor

    vindo da favela que obteve reconhecimento (sobretudo acadmico) comsua obra. Embora mais de 30 anos separem os dois textos, tempo

    suficiente para a violncia e o trfico terem se tornado o centro das

    atenes sempre que se pensa em favelas, o enfoque de Paulo Lins

    sobre os bandidos e as transformaes na criminalidade no Rio de Janeiro

    bem mais limitado. A perspectiva feminina de Carolina Maria de

    Jesus abre espao para abrigar uma pluralidade de existncias: da mesolteira que precisa sustentar os filhos em meio misria ao cigano

    bonito, com asas nos ps. Mas h ainda a menina pobre que usa seu

    charme para conquistar as pessoas, o garotinho acusado de tentar

    violentar um beb, o advogado pulha, os polticos corruptos que s so

    gentis durante as eleies, o homem triste abandonado pela esposa, os

    nortistas festeiros e tocadores de viola. uma imensa galeria de personagens algumas melhor

    caracterizadas, outras apenas esboos que abrange especialmente os

    moradores da favela, mas que se estende ainda pelas vias que levam

    cidade, incorporando mendigos, vendedores ambulantes, donos de lojas

    do comrcio, mulheres de classe mdia em suas casas bem montadas,

    atendentes de hospitais e delegacias. De cada um deles temos umvislumbre de vida, no momento exato em que sua existncia cruza com

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    a da protagonista. E esses encontros so, evidentemente, literrios,

    usados para preencher a necessidade de dizer alguma coisa sobre o outro

    e, talvez, esclarecer para si o mundo. Como escritora, a protagonista de

    Quarto de despejo se sabe diferente, alheia ao universo que narra. Nissoreside boa parte de sua ambigidade. Se a autora Carolina Maria de

    Jesus no possui os instrumentos mais eficientes, e legtimos, para se

    afirmar no campo literrio, a Carolina que nasce das pginas de seu

    livro bastante eficaz em mostrar aos vizinhos a diferena que separa

    uma artista de um punhado de favelados sem eira nem beira.

    Em termos de enredo, ela faz isto vociferando, brandindo seu livro,ameaando incluir as pessoas, com nome e sobrenome, em suas histrias.

    J no discurso, a distncia marcada pela utilizao freqente de palavras

    e expresses que no so de uso corriqueiro (como proletrios,

    indolentes, soezes, companheiras de infortnio, contingncias da vida

    resoluta); o emprego equivocado, por excessivo, dos pronomes oblqos

    (Despedi-me e retornei-me, p. 15); a inverso de frases (Duro opo que ns comemos. Dura a cama em que dormimos. Dura a vida

    do favelado, p. 42); e a clara inteno de fazer poesia (A noite est

    tpida. O cu est salpicado de estrelas. Eu que sou extica gostaria de

    recortar um pedao do cu para fazer um vestido, p. 31) ou at de

    refut-la: Toquei o carrinho e fui buscar mais papis. A Vera ia sorrindo.

    E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: Ri criana. A vida bela. S se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a poca est

    apropriada para dizer: Chora criana. A vida amarga (p. 34).

    O vocabulrio amplificado, a hipercorreo, a demonstrao de

    leitura, tudo isso ajuda a separ-la da existncia medocre dos seus

    vizinhos, mas tambm serviria como passaporte para seu ingresso no

    campo literrio: passaporte que traz bem marcada a origem social desua portadora. Uma vez que as trocas lingsticas relaes de

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    comunicao por excelncia so tambm relaes de poder simblico,

    onde se atualizam as relaes de fora entre os locutores e seus

    respectivos grupos46, interessante observar como um mesmo texto

    pode conferir status to diferentes sua autora. Vista de dentro da favela,Carolina Maria de Jesus ascende como escritora, vista do lado de fora,

    ela permanece como uma voz subalterna, como a favelada que escreveu

    um dirio47. Portanto, ao lado da discusso sobre o lugar da fala seria

    preciso incluir o problema do lugarde onde se ouve. Afinal, da que a

    literatura recebe sua valorao.

    Ciente disso, um autor como Paulo Lins, tambm proveniente dafavela, mas tendo passado pelos bancos universitrios, procura deixar

    marcada sua diferena em relao a Carolina Maria de Jesus. Antes de

    mais nada, seu Cidade de Deus um extenso romance, com pretenses

    a painel do crime no Rio de Janeiro, no um dirio onde se registra o

    po no comido de cada dia. Depois, ele surge com o respaldo de um

    dos mais importantes crticos literrios brasileiros, Roberto Schwarz que escreveu duas pginas na Folha de S. Paulo apresentando o livro

    como a mais instigante literatura dos ltimos tempos , enquanto

    Carolina era referendada por um jornalista, Audlio Dantas, que trouxe

    seu texto tona como depoimento. Mas, apesar de tudo isso, no interior

    do discurso de Paulo Lins encontramos a mesma necessidade de

    legitimao diante do campo literrio, inclusive com utilizao deestratgias semelhantes s da autora de Quarto de despejo.

    Tambm ele tenta reverter a seu favor o que seriam suas

    desvantagens (pouco domnio das tcnicas da alta literatura, nenhuma

    credencial para fazer parte dessa elite literria) a partir da afirmao de

    sua autenticidade. Ou seja, como favelado, ele teria acesso a uma

    realidade mais real, vedada aos intelectuais do asfalto48, o que lheconfere autoridade para falar sobre esse universo. Mas isso no lhe basta,

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    Paulo Lins quer mais do que dar seu depoimento a respeito da favela.

    Ele pretende inscrever seu texto no domnio literrio. Da uma certa

    ambigidade de estilo, que pode ser observada com clareza no contraste

    entre narrao e dilogo em seu romance. A fala das personagens assinalada pelos desvios grosseiros em relao sintaxe e prosdia

    cultas Vamo l na Barra panhar mais uns parceiro pra deitar esses

    bandidinho (p. 113), A, no quero pratia, no! (p. 122) etc. Mas o

    narrador respeita a norma culta e usa um vocabulrio mais amplo, que

    mescla o jargo da favela com palavras de uso pouco corrente e imagens

    poticas, alm de possuir uma preocupao exagerada com a repetiode palavras. Como observa Miguel:

    O relgio descrito numa cena de Flaubert, absolutamente desnecessriona trama, estava dizendo, segundo Barthes, eu sou o real. O palavreadode Paulo Lins diz o contrrio: eu sou o literrio. Atravs dele o autorcompleta sua estratgia. Pode entrar no campo literrio, mesmo sem tero capital cultural necessrio, por ser porta-voz de uma realidadeinacessvel ao intelectual. E pode permanecer nele por transcender o

    mero depoimento49.Afora as injunes que cercam o autor e sua obra, a representao

    da favela efetuada por Paulo Lins sofre de um esquematismo bastante

    acentuado, com uma perspectiva de dentro (nem to interna assim,

    uma vez que o escritor, obviamente, no o bandido sobre o qual fala)

    que acaba por reforar tudo aquilo que imaginamos saber sobre os

    traficantes dos morros cariocas. Com a exibio exacerbada da violncia,que inclui de assassinatos sangrentos a estupros, passando por cenas de

    tortura e culminando com a descrio detalhada do esquartejamento de

    um beb, ele parece se vincular muito mais tradio de um Rubem

    Fonseca do que de uma Carolina Maria de Jesus50. Assim, Paulo Lins

    mais um autor a representar o marginal de forma extica, referendado

    pela prpria autenticidade e, de certo modo, legitimado pela crtica

    acadmica, que vem abrindo um espao razovel para a aceitao de

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    seu romance.

    A onda iniciada por Cidade de Deus, que teve tambm grande

    impacto na mdia, possibilitou o surgimento de Ferrz, morador de Capo

    Redondo, na periferia de So Paulo, e autor de Capo pecado (2000).Nessa histria de jovens sem muitas perspectivas e seus desencontros

    amorosos, a nfase na violncia menos crua. Com tratamento literrio

    tosco e trama que revela sobretudo a influncia dos melodramas da

    televiso, Capo pecado no oferece mais do que sua pretensa

    autenticidade. Foi o suficiente para Ferrz ser colocado na posio de

    porta-voz da escrita dos dominados, patrono de novos talentos51

    e umaespcie de lder da vertente literria do movimento hip-hop. Mas de

    outra manifestao desse movimento que nascem obras que podem servir

    para pensar o problema da excluso da voz das classes subalternas.

    Muito mais do que na literatura, a busca de auto-expresso dos

    grupos dominados parece passar pela msica popular e, nessa, hoje, em

    especial pelo rap que tambm possui uma estrutura eminentementediscursiva e narrativa. Trata-se da procura consciente de uma voz prpria,

    genuna, como mostram a nfase ininterrupta na afirmao da diferena

    em relao experincia de vida dos playboys (jovens brancos de

    classe mdia) e a enunciao insistente do nome do rapper, em meio s

    letras. O refro de Rappin Hood, msico da favela de Helipolis, em

    So Paulo, sintetiza a postura: Eu t com o microfone/ tudo no meunome52.

    No se trata de dizer que o rap, com seu ritmo de origem

    estadunidense e seus slogans polticos estereotipados, represente a voz

    autntica das populaes perifricas, mesmo porque a idia de uma

    tal autenticidade deve ser questionada. O importante observar que

    o rap brasileiro gerou seus prprios cdigos e seus prprios espaos deconsagrao, margem do mercado, da indstria fonogrfica e da MTV

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    resistindo, at o momento com razovel xito, s tentativas de

    cooptao. Ao contrrio do que ocorre no campo literrio, o rapper

    branco, instrudo, pequeno-burgus, quem tenta mimetizar a dico do

    marginalizado, mas sempre convive com o estigma de ser umacontrafao (basta pensar, por exemplo, em Gabriel O Pensador).

    Concluindo

    Os impasses da representao literria de grupos marginalizados

    apresentados aqui no insinuam, absolutamente, qualquer restrio do

    tipo quem pode falar sobre quem, mas indicam a necessidade de

    democratizao no processo de produo da literatura que jamais estardesvinculada da necessidade de democratizao do universo social.

    Falam tambm da necessidade de contaminao pelo olhar do outro,

    com uma abertura maior para sentimentos e valores que podem ser

    diferentes dos nossos e que nem por isso precisam parecer inferiores.

    Sugerem, ainda, um leitor mais desconfiado do que l, mais atento aos

    preconceitos embutidos no texto e em si. Por fim, mostram que a

    conscincia do problema j um passo em direo, talvez no a uma

    soluo, mas ao menos a uma discusso honesta, como foi visto em

    algumas das narrativas analisadas neste artigo.

    No se pretende que a produo literria dos integrantes de grupos

    subalternos de uma Carolina Maria de Jesus, por exemplo possua

    alguma pureza especial, inacessvel aos escritores da elite. A autora

    de Quarto de despejo tambm no padece de qualquer ingenuidade,

    trabalha suas marcas de distino, no est imune a preconceitos e

    compreende sua posio perifrica no campo literrio, adotando (ainda

    que de forma insconciente) estratgias que permitam super-la,

    sobretudo pela valorizao da experincia vivida e da autenticidade

    discursiva53. O que gera interesse permanente por sua obra, porm, alm

    de qualidades estticas que merecem ser reconhecidas como tal, o

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    fato de representar um raro foco de pluralidade num campo discursivo

    marcado pela uniformidade na posio social de seus integrantes.

    Esta preocupao com a diversidade de vozes no um mero eco

    de modismos acadmicos, mas algo com importncia poltica. Pelomenos duas justificativas para tal importncia podem ser dadas. Em

    primeiro lugar, a representao artstica repercute no debate pblico,

    pois pode permitir um acesso perspectiva do outro mais rico e

    expressivo do que aquele proporcionado pelo discurso poltico em

    sentido estrito54. Como isso pode ser alcanado e quais seus

    desdobramentos possveis, tanto em termos literrios quanto sociais, algo que permanece em aberto, mas essa parece ser uma das tarefas da

    arte, questionar seu tempo e a si prpria, nem que seja atravs do nosso

    questionamento.

    Em segundo lugar, como apontou Nancy Fraser, a injustia social

    possui duas facetas (ainda que estreitamente ligadas), uma econmica

    e outra cultural. Isto significa que a luta contra a injustia inclui tanto areivindicao pela redistribuio da riqueza como pelo reconhecimento

    das mltiplas expresses culturais dos grupos subalternos55: o

    reconhecimento do valor da experincia e da manifestao desta

    experincia por trabalhadores, mulheres, negros, ndios, gays,

    deficientes. A literatura um espao privilegiado para tal manifestao,

    pela legitimidade social que ela ainda retm. Da a necessidade dedemocratizar o fazer literrio o que, no caso brasileiro, inclui a

    universalizao do acesso s ferramentas do ofcio, isto , o saber ler e

    escrever.

    Com muito mais elegncia, a prpria Carolina Maria de Jesus

    quem clama por seu direito expresso: Hoje eu estou com frio. Frio

    interno e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, ohmeu Deus! preciso de voz56.

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    Notas

    Este artigo parte do projeto de pesquisa A narrativa brasileiracontempornea, apoiado pelo CNPq. Uma verso inicial foi apresentada nosimpsio Clivagens sociais e representao literria: os grupos marginalizados

    na literatura brasileira, dentro do VIII Congresso da Associao Brasileirade Literatura Comparada (Abralic), realizado em Belo Horizonte, de 23 a 26de julho de 2002.1 Barthes, Crtica e verdade, p. 33. As referncias bibliografias completasesto ao final do texto.2 Para uma discusso do conceito, ver Williams, Voice, trust, and memory.3 Ver Pitkin, The concept of representation.4 Phillips, The politics of presence, p. 6.5 Foucault,A ordem do discurso, p. 10.6 Id., pp. 8-9.7 Bourdieu,La distinction, p. 133.8 Id., ibid.9 Compagnon, O demnio da teoria, pp.33-4.10 Young,Inclusion and democracy, p. 136.11 Shusterman, Vivendo a arte, p. 101.12 O processo de urbanizao no Brasil se iniciou na dcada de 1950; o censo

    de 1960 j registrava 45 % dos brasileiros vivendo em cidades, nmero quechegaria a 56% em 1970 e continuaria a crescer, tendo alcanado 81% em2000.13 No se est querendo dizer aqui que no se escreva (ou no se escrever)mais nos moldes regionalistas. Bastaria citar o nome de Francisco J. C. Dantas,cujo ltimo romance causou polmica na mdia, para derrubar esta tese.Acusado por ser regionalista, defendido por ser regionalista, Dantas aparecemesmo como uma voz isolada dentro de um contexto literrio que no se quer

    mais regionalista. O prprio autor diz considerar sua prosa anacrnica, com afirme inteno de se colocar margem do gosto e da demanda atual. Dantas,apudAras, O escritor contra a lngua, p. 12.14 Candido, Literatura e subdesenvolvimento, p. 157.15 Id., p. 160.16 Id., pp. 159-62.17 Mouralis,As contraliteraturas, p. 110.18 Id., p. 111.19 Para uma anlise dos romances sobre a ditadura, ver Dalcastagn, O espaoda dor.20 Yerasimos, Sob os olhos do Ocidente, introduo a O livro das maravilhas,

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    de Marco Polo, p. 28.21 Id., p. 27.22 Fonseca, O cobrador, p. 492.23 A experincia do trabalho com o conto Feliz ano novo em cursos para agraduao, ps e extenso na Universidade de Braslia ao longo dos ltimos

    anos comprova isso. No houve uma nica ocasio em que algum aluno notivesse pronunciado essa frase, com a concordncia da grande maioria.24 Candido, A nova narrativa, p. 213.25 Fonseca, Feliz ano novo, p. 13.26 Aquino, O invasor(2002), p. 47.27 Desde que o leitor se dispusesse a todo esse contorcionismo, claro.28 Na nova gerao, enfoque similar ao de Trevisan aparece nos contos deMarcelo Mirisola, tambm marcados pelo desprezo em relao fauna humana

    que descreve aos quais acrescenta um tom chulo, derivado do malditoestadunidense Charles Bukowski, e um autor-narrador em primeira pessoacada vez mais onipresente. Ver Ftima fez os ps para mostrar na choperia(1998) e O heri devolvido (2000).29 Que parece dar prosseguimento tradio inaugurada no Brasil por AlusioAzevedo em O cortio (1890).30 Cabe notar que os diminutivos servem apenas para profisses consideradasinferiores: criadinha, empregadinha, at professorinha, desde que de

    crianas, mas jamais vai se ouvir, ou ler, sobre o advogadinho ou omediquinho.31 Para uma anlise do conto, ver Dalcastagn, Espao de cumplicidade.32 Leibovitz e Sontag, Women.33 Bourdieu,A economia das trocas lingsticas, p. 47.34 Conforme constatei reiteradas vezes ao trabalhar com eles em sala de aula.35 Para uma anlise aprofundada deste aspecto ver Dalcastagn, Contas aprestar.36 Bourdieu,La distinction, p. VIII.37 Sobre as mudanas no estatuto do narrador na literatura brasileiracontempornea, ver Dalcastagn, Personagens e narradores do romancecontemporneo no Brasil.38 Bakhtin, Questes de literatura e de esttica, p. 135.39 Phillips, op. cit., p. 9.40 Ferrz, Capo pecado, p. 19 (a frase uma espcie de epgrafe do romance).41 Py, apresentao a Jesus, Quarto de despejo.42 Para uma discusso sobre os silncios impostos autora, ver Meihy,Carolina Maria de Jesus.43 Bourdieu,La distinction, p. 41.

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    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea

    44 Neste trecho, como em outros de Carolina Maria de Jesus, fiz uma revisoortogrfica e de concordncia. A manuteno dos erros gramaticais nos livrosda autora uma demonstrao de preconceito das editoras, que julgam que,de outra forma, a autenticidade do relato seria comprometida. Mas o textodos escritores normais (isto , de elite) sempre cuidadosamente revisado.45 Phillips, op. cit., p. 10.46 Bourdieu,A economia das trocas lingsticas, p. 24.47 Poderamos ainda discutir a repercusso diferenciada que a autora possuino exterior, especialmente nos Estados Unidos, onde sua obra continua sendolida. Alis, se quisermos uma edio integral de seus dirios, teremos que l-la em ingls. No Brasil, h apenas uma verso menos editada, mas aindaassim incompleta, organizada por Jos Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M.Levine, intituladaMeu estranho dirio.48 Miguel, Um bicho-solto no campo literrio, p. 6. O texto de Luis FelipeMiguel, que tambm se apia na teoria dos campos de Pierre Bourdieu, adianta,no essencial, as observaes que eu teria a fazer sobre o romance de PauloLins. Este pargrafo resume, em grande medida, seu artigo.49 Id., p. 6.50 A viso de Lins sobre a favela foi replicada com menos violncia, mas osmesmos clichs em outro romance de sucesso, claramente inspirado emCidade de Deus, mas escrito por uma autora do asfalto, de elite:Inferno, de

    Patrcia Melo (2000).51 Como os apresentados em Literatura marginal, edio especial da revistaCaros Amigos publicada em 2001. Ferrz editor, organizador e criador doprojeto, assina a apresentao-manifesto e o texto da quarta capa.52 Rappin Hood, CD Sujeito homem.53 Que , ao que parece, a estratgia comum aos escritores oriundos dos estratospopulares. Ver, a esse respeito, Bourdieu,Les rgles de lart.54 Ver Goodin, Democratic deliberation within, p. 106.55 Fraser,Justice interruptus, cap. 1.56 Jesus,Meu estranho dirio, p. 152.

    Referncias bibliogrficas

    Obras literrias

    ANTNIO, Joo Guardador, emAbraado ao meu rancor. Reed. So Paulo: Cosac& Naify, 2001.

    Menino do caixote, emMalagueta, Perus e Bacanao. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1963.

    AQUINO, Maral O invasor. So Paulo: Gerao, 2002.

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