lao-tse -tao te ching

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Lao Tse TAO TE KING Tradução e Introdução: Ivo Storniolo Compilação, organização e digitalização: Lumensana Nota Inicial No seu laconismo epigramático, o Tao Te King é um livro de sabedoria tão inesgotável como o próprio Tao – de cujo sentido ele trata. Passados quase três mil anos do seu surgimento, o forte efeito direto que exerce sobre nós resulta, ainda hoje, do fato de Lao Tse expressar seus reconhecimentos em imagens totalmente elementares e mesmo quase arquetípicas. Os comentários finais “Os Ensinamentos de Lao-Tse” são de autoria de Richard Wilhelm, publicados pela primeira vez em 1925. Por ser um importante complemento de leitura ao Tao-Te King, incluímos aqui esses comentários, para nos dar um conhecimento mais exato do ambiente cultural em que surgiu e atuou essa obra, ajudando-nos a compreender mais profundamente o que significa para a cultura chinesa o Tao, e o que pode significar para nós também, hoje. LAO TSE, ao lado do filósofo social Kong Fu Tse (Confúcio) é certamente uma das maiores figuras da cultura chinesa. Sua Obra, o Tao Te King, sem dúvida é uma das colunas fundamentais da cultura chinesa. Neste pequeno livro encontramos uma concepção mística e ética que marcou profundamente a cosmovisão, a religião e os princípios de vida da China. Em estilo epigramático, encontramos uma intuição que praticamente perscruta todos os âmbitos da vida, desde a religião até uma psicologia individual e social. A coincidência com outras tradições místico-religiosas do Oriente e do Ocidente faz pensar em uma matriz comum a toda a humanidade. É a razão fundamental de este livro ter sido e continuar sendo objeto de pesquisa e meditação, dirigidas tanto à vida pessoal como social. Trata-se de uma obra sapiencial que penetra o mais profundo da experiência humana, em qualquer tempo ou lugar. “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. Mário Quintana Lumensana Publicações Eletrônicas LIVROS PARA LER E PENSAR. Maio, 2008

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Page 1: Lao-Tse -Tao Te Ching

Lao Tse

TAO TE KINGTradução e Introdução: Ivo Storniolo

Compilação, organização e digitalização:Lumensana

Nota Inicial

No seu laconismo epigramático, o Tao Te King é um livro de sabedoria tão inesgotável como o próprio Tao – de cujo sentido ele trata. Passados quase três mil anos do seu surgimento, o forte efeito direto que exerce sobre nós resulta, ainda hoje, do fato de Lao Tse expressar seus reconhecimentos em imagens totalmente elementares e mesmo quase arquetípicas.

Os comentários finais “Os Ensinamentos de Lao-Tse” são de autoria de Richard Wilhelm, publicados pela primeira vez em 1925. Por ser um importante complemento de leitura ao Tao-Te King, incluímos aqui esses comentários, para nos dar um conhecimento mais exato do ambiente cultural em que surgiu e atuou essa obra, ajudando-nos a compreender mais profundamente o que significa para a cultura chinesa o Tao, e o que pode significar para nós também, hoje.

LAO TSE, ao lado do filósofo social Kong Fu Tse (Confúcio) é certamente uma das maiores figuras da cultura chinesa. Sua Obra, o Tao Te King, sem dúvida é uma das colunas fundamentais da cultura chinesa. Neste pequeno livro encontramos uma concepção mística e ética que marcou profundamente a cosmovisão, a religião e os princípios de vida da China. Em estilo epigramático, encontramos uma intuição que praticamente perscruta todos os âmbitos da vida, desde a religião até uma psicologia individual e social. A coincidência com outras tradições místico-religiosas do Oriente e do Ocidente faz pensar em uma matriz comum a toda a humanidade. É a razão fundamental de este livro ter sido e continuar sendo objeto de pesquisa e meditação, dirigidas tanto à vida pessoal como social. Trata-se de uma obra sapiencial que penetra o mais profundo da experiência humana, em qualquer tempo ou lugar.

“Livros não mudam o mundo,quem muda o mundo são as pessoas.

Os livros só mudam as pessoas”.Mário Quintana

LumensanaPublicações Eletrônicas

LIVROS PARA LER E PENSAR.Maio, 2008

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INTRODUÇÃO AO TAO TE KING

O Tao Te King, segundo Bede Griffiths, “talvez seja o mais misterioso livro que já foi escrito... a mais profunda concepção que penetrou a mente humana”. No entanto, seu autor é mais lendário que histórico, sua data precisa é desconhecida, e seu sentido é incerto. A leitura deste livro faz ver tudo isso, mas antes de qualquer coisa nos coloca diante de um tesouro da literatura religiosa e filosófica da humanidade.

O “Tao”

Como todo ideograma da língua chinesa, a palavra “Tao” pode receber inumeráveis traduções em nossas línguas modernas: a Divindade, o Absoluto, o Ser Supremo, o Infinito, o Eterno, o Insondável, o Uno, o Todo, a Fonte, a Causa, a Realidade Última, a Alma do Universo, o Caminho, o Sentido, a Inteligência Cósmica... e outras ainda. Como nome, ele é simplesmente uma espécie de signo algébrico para designar o Mistério dos Mistérios, o Mistério supremo. Embora tenha os atributos da Divindade, não devemos logo identificá-lo com o Deus dos judeus e cristãos, pois ele não é concebível como um Deus Pessoa, mas como um Deus Cósmico, bem conhecido de místicos como Demócrito (filósofo grego), Francisco de Assis (místico cristão) e Spinoza (filósofo judeu), e por outros místicos, que por isso mesmo sempre levantaram suspeitas nos círculos científicos e religiosos do tempo em que viveram.

O Tao é o Uno, que é constituído pela síntese fontal dos opostos, reunindo em si ao mesmo tempo o Yang e o Yin, a Luz e a Treva, O Masculino e o Feminino, o Positivo e o Negativo, e todos os demais opostos. Diríamos que ele é um complexo ou compositio oppositorum, “compleição ou composição dos opostos”, a unidade pelo perfeito equilíbrio dinâmico dos contrários, resultando no que Nicolau de Cusa chama de coincidentia oppositorum, a “coincidência dos opostos”. Isso leva a um profundo senso de complementaridade de tudo o que existe – uma vez que o Tao está presente no mais fundo de toda a realidade –, assim como de uma concepção da divindade que não é exclusivamente masculina ou feminina, mas que transcende ambos os princípios num perfeito equilíbrio: em seu ser e em sua ação, Deus é masculino e feminino, ao mesmo tempo.

O Tao, portanto, é em si mesmo o Mistério que escapa a qualquer investigação lógica discursiva, e só é atingível pela intuição mística. ele não tem nome, e é a contragosto que o autor o chama de Tao. Mas a ação dele é sentida por todos os seres, que o experimentaram como a força do masculino agindo através da suavidade do feminino, a paternidade do masculino através da maternidade do feminino. Desse modo, ele é também chamado de Mãe de todas as coisas. É decisiva, portanto, a concepção de uma divindade que integra o princípio feminino e age através dele. No Tao encontra-se também a raiz e o fundamento da receptividade do feminino.

O conceito mais típico do livro é o do wu wei, da “atividade sem ação” ou do “não-agir”, que é um estado de passividade, mas de uma passividade totalmente ativa, no sentido de ser receptiva. Isso é a essência do feminino e também o modo de o Tao agir sem ação, porém realizando tudo. A mulher é passiva em relação ao homem, a fim de receber a semente que a torna fértil. É uma passividade ativa, dinâmica e criativa, da qual brotam a vida e seus frutos, o amor e a comunhão. O mundo necessita hoje descobrir este senso do poder feminino, que é complementar ao do poder masculino e sem o qual o homem se torna dominador, estéril e destrutivo. Há muito tempo o mundo ocidental está seguindo o caminho do Yang, o caminho da mente masculina, ativa, agressiva, racional e científica, levando o mundo à beira da destruição. É tempo de recuperar o caminho do Yin, da mente feminina, passiva, paciente, intuitiva, poética, geradora e nutridora da vida. Também é tempo de redescobrir a face feminina de Deus. Este é o caminho que o Tao Te King nos propõe.

O Tao é onipresente. É a fonte e a base do ser da Natureza e do Universo, e também de cada ser em particular. Ao mesmo tempo que está presente em tudo, ele também ultrapassa tudo,

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aplicando-se a ele a apresentação que são Boaventura faz de Deus: Deus est circulus cuius centrum ubique, circunferentia vero nusquam (“Deus é um círculo cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência não se encontra em lugar nenhum”). Não se trata de panteísmo (=Deus é tudo), mas de panenteísmo (=Deus em tudo). A realidade visível seria o testemunho do Tao, que faz tudo evoluir para o ponto em que, como diz o apóstolo Paulo, Deus será “tudo em todos” (1Coríntios 15,28). O místico é capaz de ver esse projeto em andamento, e procura harmonizar-se com ele, tanto em si mesmo como na sua ação em favor dos outros.

O “Te”

O Tao é o Uno infinito e invisível, porém, manifesta-se de forma finita e visível através do Te, a Natureza, que inclui a dualidade oposta formada pelo Céu (princípio masculino espiritual) e pela Terra (princípio feminino material). Da união entre o Céu e a Terra nascem todos os seres e coisas, levando no mais profundo de si mesmos a imagem e a semelhança do Tao, e de seu perfeito equilíbrio entre os opostos. Em outras palavras, cada ser leva na sua base mais íntima a presença do Tao que preside à sua realização enquanto ser. O Te seria, portanto, a Virtude, ou seja, a força ou impulso vital do Tao presente na Natureza e em todo o Universo.

Isso nos conduz seja ao ser humano em si, tomado como indivíduo, e à sua realização psicofísica, desde que o pequeno Eu consciente se volte para o Si-mesmo, espelho do Tao no seu interior mais profundo, entregando-se ao impulso que vem do Tao e se manifesta no Si-mesmo, levando o indivíduo à consecução da sua mais elevada individualidade (in-divíduo = não divisível). Em outras palavras, o impulso que vem do Tao leva o indivíduo a tornar-se “imagem e semelhança” do próprio Tao. A esse processo C. G. Jung deu o nome de “individuação”.

Também a vida social pode ser focalizada segundo a percepção do Tao. Já dissemos que o Tao é o perfeito e infinito equilíbrio entre os opostos. Isso também pode ser chamado de “equilíbrio infinito da justiça”. Na vida social, cheia de desigualdades e conflitos por causa das pretensões e ambições dos pequenos Eus agrupados, a busca do Tao é, em última análise, uma contínua busca da justiça que leva à vida em equilíbrio, evitando qualquer excesso para mais ou para menos. Daí o ideal da moderação e da frugalidade: todos com igual direito à vida (isto é, aos bens necessários para mantê-la) e à liberdade (a possibilidade de participar na organização da sociedade e nos rumos da história). Portanto, nem isso nem aquilo: nem a pobreza nem a riqueza; nem o poder nem a impotência.

Quanto à autoridade política, o ideal que deve reger o governante é o modo de agir do Tao: a força do masculino através da suavidade do feminino, ou a ação da não-ação. O governante ideal é o que representa (torna presente) de tal modo a presença do Tao e de sua ação, que o povo nem percebe a presença do próprio governante, vivendo com a sensação de se autogovernar a partir de sua própria liberdade, que nasce do Si-mesmo e do governo do Tao.

O Tao é também comparado à água, que beneficia todas as coisas, e sempre ocupa o lugar mais baixo. Encontramos aqui a virtude da humildade, a pobreza de espírito do Sermão da Montanha (Mateus 5,3). Isso leva ao valor paradoxal do vazio: “Modelais a argila para fazer um pote, mas a utilidade do pote vem do vazio” (cf. 11). Traduzido em termos pessoais, isso significa que a utilidade da pessoa supõe o esvaziamento do seu pequeno Eu, a fim de que o Tao a preencha com sua presença e ação. Todo seguidor do Tao é, portanto, uma pessoa que deixou as pretensões ou ambições pessoais: quando ele se esvazia, o Tao tudo preenche e, através da não-ação do seu pequeno Eu, o Tao tudo realiza. Dessa forma, o Sábio, ou seja, todo seguidor do Tao, se torna sinal e sacramento da presença e da ação do Tao.

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Lao Tse

É muito difícil situar um personagem com o nome de Lao-Tse (= “ancião”; nome que também pode ser traduzido por “criança velha”) na história literária chinesa. Os chineses em geral cultuam mais o simbólico do que o histórico. Poucas fontes históricas o situam pelo fim do séc. VII a.C. e meados do séc. VI a.C., sendo, portanto, contemporâneo de Kong-Fu-Tse (Confúcio).

Segundo uma tradição mais ou menos lendária, Lao-Tse teria sido bibliotecário ou arquivista na corte chinesa, de onde pôde observar de perto a decadência política e social do seu tempo. Decepcionado com o estado das coisas do Império, na meia-idade teria deixado a corte e se tornado eremita numa floresta, onde viveu a segunda metade de sua vida, contemplando e meditando. No fim da vida, aos oitenta anos, teria se dirigido para a fronteira, procurando deixar a China com destino à Índia. O guarda da fronteira pediu-lhe então que deixasse algo escrito sobre o seu pensamento. Lao-Tse entregou-lhe, pois, um pequeno livro contendo cinco mil ideogramas, que formariam o assim conhecido Tao-Te King. Depois atravessou a fronteira, tomando rumo desconhecido. Desse modo Lao-Tse teria seguido até o fim o caminho do Sábio, escondendo-se por trás de sua obra, que continua viva até os dias de hoje e que se tornou em todos os tempos um dos pilares básicos do pensamento e do modo de vida chinês.

As intuições do Tao-Te King abordam, em estilo simples e penetrante, aspectos bastante comuns da vida, muito embora passem derpercebidos à maioria das pessoas. Por incrível que pareça, muitas vezes é difícil captar o mistério que se esconde por detrás do óbvio. As pessoas, em geral, pensam e se preocupam com grandes problemas, não se dando conta de que eles começam de forma pequena e óbvia. Lao-Tse nos ensina a ver o que é óbvio e nele descobrir as raízes mais profundas do mundo e de nós mesmos. A sabedoria, com efeito, não é a posse de uma vasta cultura, mas reside na formação de um discernimento capaz de penetrar todas as coisas e situações, nelas descobrindo o sentido que se esconde por trás daquilo que nos parece tão óbvio.

O Tao-Te King representa a mais alta expressão do pensamento chinês, constituindo-se por si próprio um completo sistema filosófico, dotado de uma Metafísica, que entrevê e descreve no Tao a causa primeira, o bem supremo do Universo; de uma Moral, que indica ao homem o caminho para alcançar o seu próprio fim; e de uma Política, que mostra aos governantes a via que estes devem percorrer para o progresso e o bem-estar do povo.

O Tao-Te King é um livro de sabedoria inesgotável, exercendo depois de quase três mil anos um forte efeito direto sobre nós, com imagens simples e totalmente elementares:

“Trinta raios cercam o eixo da roda: a utilidade da roda consiste no vazio entre eles. Escava-se a argila para modelar vasos: a utilidade dos vasos está no seu vazio”.

Um último esclarecimento. Ao leitor apressado e em luta contra o tempo aconselhamos usar este livro como meditação, um pouco por vez. Nele se encontra a experiência de milênios, que não se esgota numa só leitura. Além do mais, é importante que o leitor não fique parado ou satisfeito com uma simples leitura, mas que prossiga seu caminho, colocando o Tao em contacto com a sua própria experiência de vida, lembrando-se de que a Sabedoria é o discernimento que vem da experiência, e que a experiência dos outros é um convite a fazermos a nossa própria experiência. Há várias possibilidades de tentar compreender o significado e o sentido deste livro tão misterioso. Talvez a melhor sugestão venha da mente do próprio leitor depois de ler e meditar todo o livro.

Page 5: Lao-Tse -Tao Te Ching

Primeira ParteO TAO

1 – O CAMINHO PARA O TAO

O Tao de que se pode falar não será o Tao eterno.

Se pudermos dar-lhe um nome, não será o Nome eterno.

Aquele que não tem nome é a origem do céu e da terra;

aquele que tem um nome é a Mãe de todas as coisas.

Assim, quando estamos sem desejo podemos observar indescritíveis maravilhas;

quando estamos demasiado ávidos, não vemos mais que vestígios.

Ambos provêm da mesma fonte,

Mas trazem nome diferente.

Ambos são chamados Misteriosos.

O mistério do Misterioso é a porta que dá acesso às maravilhas indescritíveis.

2 – O CONHECIMENTO DIALÉTICO

Se o mundo concorda sobre a beleza, é porque existe a feiúra.

Se todos concordam sobre o bem, é porque existe o mal.

O “ser” e o “não-ser” nascem um do outro;

o difícil e o fácil são complementares;

o longo e o baixo nascem por comparação;

o alto e o baixo são interdependentes;

o som e o silêncio estão em mútua harmonia;

o anterior e o posterior são correlativos.

É por isso que o Sábio entrega-se ao Não-agir, e ensina silenciosamente.

As coisas inumeráveis são feitas sem a menor palavra.

A Natureza dá nascimento mas nada possui.

Ela age, mas não exige nenhuma submissão.

Ela tem mérito, mas não o reclama.

O fato de que ela nada pretende a torna indispensável.

3 – O GOVERNO DO SÁBIO

Não exaltar os homens de valor impede as pessoas de rivalizar;

não ambicionar coisas raras impede as pessoas de roubar;

não exibir o que possa ser desejável evita profanar o coração das pessoas.

É por isso que o Sábio dirige sua vida esvaziando seu coração, reforçando seu estômago,

suavizando suas ambições, reforçando seus ossos.

Fazei sempre de modo que as pessoas não tenham conhecimento nem desejo;

fazei de modo que os intelectuais não ousem interferir.

Que haja não-ação e nada ficará fora da ordem.

Page 6: Lao-Tse -Tao Te Ching

4 – O VAZIO INESGOTÁVEL

O Tao é um vazio, mas, quando dele se faz uso, não se esgota jamais.

Ele é tão profundo que parece ser a fonte de todas as coisas.

Embota o que é agudo, resolve os problemas;

torna difuso o brilho que ofusca, unifica o mundo:

Que profundidade! Parece que há aí qualquer coisa.

Não sei de onde ele saiu.

Dir-se-ia que sua existência é anterior à do Ancestral.

5 – O TÃO NÃO TEM PREFERÊNCIAS

O Céu e a Terra não são humanos; eles tratam as inumeráveis coisas como cães de palha.

O Sábio não é humano; ele trata as pessoas como cães de palha.

O espaço entre o céu e a terra é comparável a um fole: vazio, mas inesgotável;

acionai-o, e ele produz sempre mais.

Quem muito fala logo se esgota.

Nada é tão bom quanto permanecer no centro.

6 – A VIDA É INESGOTÁVEL E IMORTAL

O espírito do vale nunca morre. Ele é chamado Mulher Misteriosa.

A porta da Mulher Misteriosa é chamada raiz do céu e da terra.

Ele permanece em seu vestígio; usai dele sem vos apressar.

7 – ALTERIDADE, FONTE DA PERENIDADE

O Céu e a Terra permanecem para sempre.

A razão de sua longevidade reside em sua capacidade de não viver para si mesmos.

Também podem produzir eternamente.

É por isso que o Sábio permanece retirado, mas chega em primeiro lugar.

Considerando-se como à parte, ele se encontra na corrente principal.

Não é por falta de egoísmo que ele se realiza?

8 – A MELHOR ATITUDE

A melhor atitude é semelhante ao comportamento da água.

A água serve a todas as coisas sem rivalizar com elas.

Ela procura os lugares que o homem abomina.

Assim fazendo, ela se aproxima do Tao.

Para vossa moradia, escolhei bem vosso terreno.

Cultivando o coração-espírito, sondai as profundezas.

Em vossas relações com as pessoas, tratai-as bem.

Quando falardes, esforçai-vos por cumprir a palavra.

Quando governardes, corrigi vossa atitude.

Quando servirdes, servi bem.

Page 7: Lao-Tse -Tao Te Ching

Quando agirdes, escolhei o bom momento.

Sem repreensão é aquele que não procura comparar-se com os outros.

9 – EVITAR O EXCESSO DO SUPÉRFLUO

Encher uma taça até a borda não é tão bom quanto parar.

Afiar demasiadamente uma lâmina acabará por torná-la cega.

Se encherdes vossa casa de ouro ou de jade, ela não estará em segurança.

Com a riqueza e a honra vem o orgulho, e os defeitos que daí decorrem são ornamentos.

Uma vez terminado o trabalho, retirai-vos.

Assim é o Tao do Céu.

10 – DESAFIOS DA VIRTUDE DA PROFUNDIDADE

Podes unificar o espírito do sangue e o espírito do sopro sem que eles de novo se separem?

Concentrando a respiração para obter a elasticidade: és capaz de ser como um bebê?

Purificar a Visão Misteriosa: podes fazê-lo perfeitamente?

No amor do povo e no governo da nação: podes fazer com que o povo seja desprovido de saber?

Abrir e fechar a porta do Céu: podes realizar o papel da Mulher?

Espalhar a iluminação nas quatro direções: podes fazê-lo sem ação consciente?

Produzi e aprovisionai uma boa redondeza: produzi, mas não possuais.

Agi, mas não controleis.

Fazei brotar, mas não ceifeis.

Chama-se a isso a Virtude da Profundidade.

11 – A UTILIDADE DO VAZIO

Trinta raios convergem para o eixo único da roda;

mas é o vazio entre eles que gera a utilidade da roda.

Modelais a argila para fazer um pote, mas a utilidade do pode vem do vazio.

Abris portas e janelas para fazer um quarto, mas é o vazio que faz a utilidade do aposento.

Assim, o que existe é uma vantagem, mas sua utilidade vem da sua vacuidade.

12 – EXCESSO E MODERAÇÃO

O excesso de cores cega o homem.

O excesso de tons o torna surdo.

O excesso de sabores estraga seu paladar.

Cavalgar e caçar ao mesmo tempo enlouquecem sua mente.

A cobiça de bens preciosos leva o homem a agir mal.

Por isso o Sábio é guiado pelo coração, e não pelos olhos.

Assim, ele adota um e rejeita o outro.

13 – DESCOBRIR O PRÓPRIO VALOR

Favor e desfavor são duas coisas humilhantes.

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Tratai as grandes calamidades como se vos acontecessem pessoalmente.

O que significa “favor e desfavor são duas coisas humilhantes”?

Quando o favor toca a um ser de baixa condição, ele tem o efeito de um choque.

E quando o favor é retirado, também tem o efeito de um choque.

É por isso que se diz que “favor e desfavor são duas coisas humilhantes”.

O que quer dizer: “Tratai as calamidades como se vos acontecessem pessoalmente”?

Experimento as grandes calamidades porque tenho uma individualidade.

Se eu não tivesse uma individualidade, que calamidades haveria?

Assim, somente aquele que ama a si mesmo do modo como ama o mundo,

é digno da confiança do mundo.

Somente aquele que ama o mundo do modo como ama a si mesmo,

é digno de ser o administrador do mundo.

14 – TAO, O TUDO EM TODOS

Olhai o que não pode ser visto, porque está além da forma.

Escutai o que não pode ser ouvido, porque está além do som.

Pegai o que não pode ser tocado, porque é intangível.

Essas três atitudes não podem ser compreendidas, seja qual for o número

de questões que levantardes a seu respeito.

Mas, tomadas juntas, elas formam uma unidade.

No alto, seu aspecto não é ofuscante, embaixo, seu aspecto não é escuro.

O não-nomeável se move numa processão sem termo, até que retorne ao seu nada.

É uma forma sem forma, a imagem do sem-imagem. É possível chamá-lo caos obscuro.

Encarai-o: não vereis sua face; segui-o: não vereis suas costas.

Apegai-vos ao antigo Tao para ordenar as realidades presentes.

Somente aquele que é capaz de apreender os antigos inícios, pode-se dizer que participa do Tao.

15 – O MISTÉRIO DO SÁBIO

Nos tempos antigos, os sábios eram misteriosos e estavam em comunicação com o Céu.

Sua profundeza era insondável.

É precisamente por causa de sua impenetrabilidade que pareciam pouco apressados,

até mesmo hesitantes, como aqueles que atravessam uma corrente em pleno inverno.

Circunspectos, como se o perigo pudesse surgir das quatro direções;

reservados, como convidados;

cedendo, como o gelo prestes a fundir-se;

puros por natureza, como o jade bruto;

vastos, como um vale;

confusos, como a lama.

Quem pode acalmar a água turbulenta para torná-la perfeitamente clara?

Quem pode fazer com que o inerte torne-se gradualmente vivo, ativando-o?

Aqueles que preservam o Tao não querem estar cheios.

É porque eles não estão cheios que podem ter a plenitude e não desejar mais.

Page 9: Lao-Tse -Tao Te Ching

16 – VOLTA À NATUREZA ORIGINÁRIA

Atingi a vacuidade suprema.

Conservai tranqüilidade serena.

Todas as coisas se agitam.

Observo seu movimento cíclico.

As coisas desabrocham e depois voltam à sua raiz.

Voltar à raiz chama-se tranqüilidade.

É o que precisamos entender como voltar à própria natureza originária.

Voltar à própria natureza originária chama-se constância.

Compreender a constância chama-se iluminação.

Não compreender a constância é aventurar-se cegamente.

Compreendendo a constância, adquire-se aptidão à longanimidade.

Quando alguém é longânime, pode tornar-se justo.

Quando alguém é justo, pode administrar os assuntos do Estado, com toda moralidade.

Quando alguém pode administrar com toda moralidade os assuntos do Estado,

torna-se capaz de comunicar-se com o Céu.

Comunicar-se com o Céu é estar de acordo com o Tao.

Quando a pessoa está de acordo com o Tao, ela se torna perene.

Pois, mesmo que o corpo morra, a pessoa jamais deixará de existir.

17 – GOVERNAR PELO NÃO AGIR

A presença de um grande chefe de Estado é sentida pelo povo como ausência.

Os maiores chefes são amados e honrados;

os chefes medíocres são ignorados;

os chefes ambiciosos são desprezados.

Quando o governante confia em seu povo, o povo também nele confia.

Os governantes antigos eram ponderados e davam pouca importância às palavras.

Que tesouro nestas palavras:

“Quando uma coisa é realizada e a tarefa está terminada,

todas as pessoas comuns dizem que agiram espontaneamente”.

18 – A PERDA DO TAO

Com a perda do grande Tao, são decretadas a gentileza e a moralidade.

Com a erudição e a sutileza, aparecem as grandes mentiras.

Se as seis relações familiares se desfazem,

são decretados o afeto filial e o amor familiar.

Se a nação se afunda nas trevas e na confusão,

é decretado o reino do ministério patriótico.

19 – RECOMEÇAR NOVAMENTE

Separai-vos da sagacidade, abandonai vossa erudição,

e as pessoas aproveitarão cem vezes mais.

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Separai-vos do humanitarismo, abandonai o dever,

e o povo voltará à piedade filial e ao afeto familiar.

Separai-vos da habilidade artesanal, abandonai o lucro, e os ladrões desaparecerão.

Creio que estas três declarações mostram a inadequação das palavras.

É preciso fazer de modo que o povo respeite estes princípios:

“Retornai à simplicidade para realizar a própria natureza;

diminuí o egoísmo e refreai os desejos”.

20 – A CRISE DO SÁBIO

Deixai vossa pretensa cultura, e poreis fim às vossas preocupações.

Quão pequena é a diferença entre o “sim” e o “não”!

Quão exíguo é o critério entre o bem e o mal!

O que os outros temem, também eu devo temer? Ó Solidão, quanto vais durar?

Loucamente, sem fim, todos os homens se entregam à fruição,

festejando o sacrifício do boi, ou tomando o sol da primavera, sentados na varanda.

Somente eu permaneço sozinho, não sabendo quem sou,

como a criança pequena que ainda não sorriu.

Somente eu pareço tão descuidado, como aquele que não tem lar para onde voltar.

Cada um possui o bastante e ainda mais, parece que eu sou o único a não ter nada.

Meu espírito não foi atingido pela loucura? Em que confusão me encontro!

A maioria das pessoas procura a luz, a clareza.

Somente eu procuro a ternura e a obscuridade.

A maioria das pessoas demonstra imaginação e observação.

Somente eu não as tenho, e permaneço em silêncio.

Também fico inquieto como o oceano, soprando sem cessar, como o vento celeste.

Todos os outros têm um sentido; somente eu não tenho meta, e vivo deprimido.

Somente eu sou diferente naquilo a que me dedico:

venerar a Mãe que a todos alimenta.

21 – O TAO ESTÁ NA FONTE DOS SERES

A capacidade de uma pessoa de elevada cultura moral

é devida ao seu acordo com o Tao.

O fenômeno do Tao é intocável e evanescente.

Embora intocável e evanescente, ele contém a substância.

Sim, por mais intocável e evanescente que seja, ele tem em si substância.

Por mais vazio e obscuro que seja, ele tem essência vital.

Essa essência vital é muito real. Pode-se verificá-la.

Do passado até hoje, seu nome se perpetuou,

porque ele se manifesta na origem das coisas.

Como tenho conhecimento do processo na origem das coisas?

Precisamente por este fenômeno.

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22 – NO VAZIO ENCONTRA-SE A PLENITUDE

Cedei, e tornai-vos tudo.

Curvai-vos, e sede direitos.

Esvaziai-vos, e sede plenos.

Esgotai-vos, e sede regenerados.

As pequenas quantidades são adequadas.

As grandes quantidades são embaraçosas.

Assim, o Sábio abraça a Unidade do Tao, e torna-se um modelo para o mundo.

Ele não faz de si mesmo o objeto de sua atenção, e assim ele brilha.

Ele não procura se justificar, e assim torna-se sua própria prova.

Ele nada pretende, e assim nele se tem confiança.

Ele não rivaliza com ninguém, e assim ninguém no mundo pode rivalizar com ele.

Como aquilo que os antigos exprimiam por

“Cedei e tornai-vos tudo”, poderia ser sem fundamento?

Se sois totalmente íntegros, estas coisas todas virão a vós.

23 – O EQUILÍBRIO NO MOVIMENTO

É próprio da Natureza dizer poucas coisas, pois os furacões não duram

nem mesmo uma manhã, nem as tempestades um dia inteiro.

Quem os provoca? O céu e a terra.

Se o céu e a terra são incapazes de perdurar,

quanto tempo o homem será capaz de se manter?

Assim, há os que praticam o Tao.

Os que se comportam conforme o Tao comunicam-se com o Tao.

Os que se comportam conforme a Virtude comunicam-se com a Virtude.

Os que perdem o Tao e a Virtude comunicam-se com o prejuízo.

Os que se comunicam com o Tao são também alegremente recebidos pelo Tao.

Os que se comunicam com a Virtude são também alegremente recebidos pela Virtude.

Os que se comunicam com o prejuízo são também acolhidos pelo prejuízo.

Alguns não são muito autênticos com o Tao, e alguns não mostram nenhuma autenticidade.

24 – NATURALIDADE E ESPONTANEIDADE

Quando alguém fica na ponta dos pés não pode ter posição firme.

Com as pernas arqueadas não é possível andar.

A fascinação por si próprio não gera muita clarividência.

Se alguém procurar justificar-se, não será a sua própria prova.

Se alguém for pretensioso, não ganhará a confiança.

Se alguém der importância ao próprio êxito, não será durável.

Para o Tao, tais coisas não são mais que “restos” e “comportamento supérfluo”,

que contradizem as leis naturais.

Eis por que o homem que segue o Tao as despreza.

Page 12: Lao-Tse -Tao Te Ching

25 – O MISTÉRIO DO TAO

Esta coisa caótica que precedeu o céu e a terra, tão vazia,

silenciosa, única, invariável, em ciclo contínuo...

Sem dúvida pode-se considerá-la como a Mãe de tudo aquilo que existe sob o céu.

Não conheço seu nome.

A contragosto eu a chamo “Tao”.

E, se a isso sou constrangido, é a contragosto que a descrevo como “grande”.

“Grande” pode ser descrito como indo sempre para a frente.

“Indo sempre para a frente” pode ser descrito como indo longe.

“O que vai longe” pode ser descrito como retornando.

Eis por que o Tao é grande.

Grande é o céu, grande é a terra e grande é também a humanidade.

Quatro ordens de grandeza operam no universo e, entre elas, a humanidade.

A humanidade segue a via da terra.

A terra segue a via do céu.

O céu segue a via do Tao,

e o Tao segue a via da Natureza.

26 – A RAIZ DA SERENIDADE E DA CALMA

O peso é a raiz da leveza.

A calma é o senhor da inquietação.

É por isso que o Sábio, praticando o Tao todos os dias, não se separa de sua bagagem.

Mesmo que ele possua uma grande moradia, sua vida quotidiana permanece simples.

Como alguém pode ser senhor de um grande Estado e ter um comportamento leviano?

Se for leviano, perderá a sua raiz.

Se for inquieto, perderá o seu senhor.

27 – NADA ESTÁ COMPLETAMENTE PERDIDO

Um bom caminhante não deixa pegadas.

Um bom orador não tem ponto fraco.

Um bom calculista não precisa de papel.

Uma boa porta não tem fechadura, mas ninguém pode abri-la.

Uma boa amarração não requer nós, mas ninguém pode desatá-la.

É por isso que o Sábio consegue sempre salvar as pessoas, e não abandona ninguém.

Ele consegue sempre salvar as coisas, e não abandona nenhuma delas.

A isso se chama “seguir a luz”.

Damos as pessoas virtuosas como exemplo para as medíocres,

mas as medíocres são potencialmente pessoas virtuosas.

Não saber apreciar o exemplo, nem gostar do que é potencial,

é extraviar-se, seja qual for a inteligência.

Este é um princípio essencial do Tao.

Page 13: Lao-Tse -Tao Te Ching

28 – NADA IMPOR: TUDO INSINUAR

Conhecei a força do masculino e aderi à flexibilidade do feminino.

Sede o vale do mundo.

Para ser o vale do mundo, não vos afasteis de vossa natureza inata

e voltai ao estado de recém-nascido.

Conhecei o brilho e permanecei na ternura.

Sede um guia para o mundo.

Para ser um guia para o mundo segui vossa natureza inata e voltai à inocência.

Compreendei a glória e permanecei na humildade.

Sede o vale do mundo.

Uma vez que a natureza inata é realizada, voltai à unidade originária.

Quando a unidade originária é divisada, ela se torna os instrumentos.

O Sábio então os emprega, e eles se tornam seus agentes.

Assim, a direção sutil não modela.

29 – O MUNDO É UM VASO SAGRADO

Se alguém usar a força para ser senhor do mundo, eu não vejo como ele poderia ter êxito.

O mundo é um vaso sagrado que não se pode obter pela força.

Aqueles que a isso se dedicam acabarão malogrando.

Aqueles que tentam agarrá-lo acabarão por perdê-lo.

Está estabelecido que os seres conduzam ou sigam, respirem fortemente

ou suavemente, tornem-se fortes ou fracos, perseverem ou caiam.

Por isso o Sábio se livra do excesso, da extravagância e do desmesurável.

30 – JAMAIS EXERCER A FORÇA

Aqueles que usam o Tao para conquistar o príncipe,

jamais recorrem às armas para conquistar o mundo.

Tais coisas tendem a provocar o efeito contrário.

Onde o exército acampa os espinhos brotam.

A fome segue-se à guerra.

Facilitai com sutileza uma saída favorável, e nada mais que isso.

Não exerçais a força.

Quando o sucesso é obtido, não haja complacência.

Quando o sucesso é obtido, não haja suficiência.

Quando o sucesso é obtido, não haja vaidade.

Vencer somente porque não há outra escolha.

Vencei, mas sem exercer força.

Forçar é seguido do envelhecer, e isso é ir contra o Tao.

O que vai contra o Tao não perdura muito tempo.

Page 14: Lao-Tse -Tao Te Ching

31 – A GUERRA É FONTE DE MORTE

As armas de guerra são instrumentos nefastos, que todo o mundo detesta.

Os adeptos do Tao delas não fazem uso.

Na vida quotidiana, o homem nobre considera a esquerda do hospedeiro como o lugar de honra.

Na guerra, a direita do comandante é o lugar de honra.

Uma vez que as armas não são de bom augúrio, o homem nobre não as usa.

Ele se serve delas apenas por necessidade, pois a paz e a tranqüilidade são o que ele mais preza.

Para ele, até mesmo uma vitória não é digna de celebração.

Os que a celebram têm prazer no massacre de homens.

Os que gostam de ver o massacre de homens não são pessoas de boa vontade.

Em circunstâncias favoráveis, na esquerda do hospedeiro encontra-se o lugar de honra.

Em circunstâncias desfavoráveis, na direita do hospedeiro encontra-se o lugar de honra.

Junto aos militares, os comandantes subalternos colocam-se à esquerda,

enquanto o comandante supremo mantém-se à direita,

assim como numa cerimônia de ritos fúnebres.

Quando muitas pessoas foram mortas, há luto, tristeza e prantos.

Assim, até mesmo a vitória deve ser tratada segundo os ritos fúnebres.

32 – O TAO É A FONTE E O FIM DE TUDO

O Tao eterno não tem nome.

Por pequeno que ele seja, em sua unicidade originária

ele não é inferior a nenhum poder no mundo.

Se um príncipe puder ser fiel a isso, todos os seres lhe prestarão homenagem.

Da fusão harmoniosa do Céu com a Terra brota um doce orvalho.

Sem mandamento superior, a paz e a ordem ganham o povo.

Os nomes apareceram com o processo cósmico.

Eles são demasiado numerosos: não é tempo de parar?

Saber quando é preciso parar é livrar-se do perigo.

O Tao é para o mundo o que os rios e oceanos são para os regatos e os vales.

33 – O CAMINHO DO SÁBIO

Quem a outros conhece é inteligente; quem conhece a si mesmo é sábio.

Quem vence os homens é forte; quem vence a si mesmo é poderoso.

Quem conhece a frugalidade é rico.

Quem é constante em seu desígnio tem poder de vontade.

Quem vive em seu lugar é firme.

Quem morre, mas permanece vivo, atinge a imortalidade.

34 – A GRANDEZA DO TAO

O grande Tao é tão onipenetrante que não se pode dizer onde está sua direita ou sua esquerda.

Todas as coisas dele dependem para seu crescimento, mas ele nada reclama delas.

Ele realiza seu trabalho, sem nada exigir para si mesmo.

Page 15: Lao-Tse -Tao Te Ching

Ele veste e alimenta sem exercer controle.

Como não tem desejos, é chamado de “o menor”.

Como todas as coisas o seguem, sem que ele exerça

controle sobre elas, é chamado de “o maior”.

É porque ele não ostenta sua grandeza que ela se torna uma realidade.

35 – O SABOR DA EXPERIÊNCIA DO TAO

O mundo se dirige para o possuidor da grande imagem.

Aproximar-se dele não causa nenhum mal, porém traz a paz e a ordem.

O hóspede de passagem pára a fim de fruir manjares e música.

O Tao que é expresso parece sem graça e insípido.

Ele não pode ser visto, não pode ser ouvido, e apesar disso não pode ser esgotado.

36 – MANTER O TAO EM SEGREDO

O que deve ser reduzido deve primeiro ser deliberadamente alongado.

O que deve ser enfraquecido deve primeiro ser deliberadamente reforçado.

O que deve ser derrubado deve primeiro ser estabelecido.

Aquele que quer tomar deve primeiro deliberadamente dar.

Chama-se a isso percepção da natureza das coisas.

Suavidade e flexibilidade levam vantagem sobre dureza e força.

Não se deve retirar os peixes das profundezas.

Não se deve ostentar os meios de ação do Estado.

37 – O IDEAL DO GOVERNANTE

O Tao é sempre sem-ação, mas não há nada que ele deixe de fazer.

Se um príncipe a ele aderir, todos os seres se desenvolverão espontaneamente.

Depois desse desenvolvimento, quando eles quiserem agir,

ele os manterá em seu lugar com a unidade original do Sem-nome.

Então haverá finalmente Não-desejo.

E se não houver desejos, haverá tranqüilidade.

Então, finalmente, o mundo colocará a si mesmo em paz.

Segunda ParteA VIRTUDE

38 – O SER E A APARÊNCIA

A Virtude superior não ostenta sua Virtude; e é por isso que ela a conserva.

A Virtude inferior não pode afastar-se da ostentação da Virtude, caso contrário a perderá.

A Virtude superior pratica o não-agir, e não serve a nenhum interesse particular.

A Virtude inferior age, e serve a fins particulares.

Page 16: Lao-Tse -Tao Te Ching

O humanismo superior age, mas não serve a nenhum interesse particular.

A justiça superior age, e serve a fins particulares.

A cortesia superior não somente age, mas, quando ela não obtém resposta,

tenta impor sua vontade brandindo os punhos.

Assim, se o Tao é perdido, aparece a Virtude.

A perda da Virtude faz aparecer o humanismo.

Se o humanismo é perdido a justiça aparece.

A perda da justiça acarreta o aparecimento da cortesia.

Quando consciência e honestidade diminuem, a cortesia é o início das querelas.

Quanto à presciência, ela é apenas uma aparência do Tao e o início da estupidez.

É por isso que o homem verdadeiro toma a generosidade como moradia e expulsa a mesquinhez.

Ele reside no Ser, e não na aparência.

Rejeita esta e escolhe aquele.

39 – A UNIDADE DO TAO

Nos tempos antigos a Unidade apareceu assim:

os céus atingiram a Unidade, e tornaram-se claros;

a terra atingiu a Unidade, e se estabeleceu;

os espíritos atingiram a Unidade, e tornaram-se numinosos;

os vales atingiram a Unidade e tornaram-se férteis;

as coisas atingiram a Unidade, e tornaram-se vivas;

os reis e os governantes atingiram a Unidade,

e tornaram-se os garantidores da ortodoxia do mundo.

Se o céu não fosse claro, acabaria por se dissolver.

Se a terra não se estabelecesse, acabaria se dissipando.

Se os espíritos não fossem numinosos, acabariam vacilando.

Se os vales não se enchessem, acabariam secando.

Se as criaturas não se reproduzissem, acabariam se extinguindo.

Se os reis e os governantes não fossem honrados nem estimados acabariam caindo.

Assim, o honorável tem o humilde como tronco.

O alto tem o baixo como alicerce.

É por isso que o governante chama-se “o solitário”, o “sem centro próprio”.

Isso é ter o humilde como tronco, não é mesmo?

Assim, vale mais considerar a não-forma do veículo do que a sua aparência.

Não tenhais o desejo de ser brilhantes e atraentes como um belo jade.

Sede tão ordinários quanto uma pedra.

40 – O TAO É O TUDO E O NADA

O Tao se move por ciclos, e procede com suavidade.

Todas as coisas têm sua origem no Ser, e o Ser tem sua origem no Não-Ser.

41 – OS PARADOXOS DO TAO

Quando um grande letrado ouve o Tao, ele o pratica sem descanso.

Page 17: Lao-Tse -Tao Te Ching

Quando um letrado medíocre ouve o Tao, às vezes o segue e às vezes o esquece.

Quando um letrado de baixa categoria ouve o Tao, ele ri dele ruidosamente.

Se não risse dele, o Tao não seria digno de ser o Tao.

É por isso que foi dito: Aquele que compreende o Tao parece entenebrecido.

Quem caminha para o Tao parece regredir.

Quem está em harmonia com o Tao parece estar amarrado.

A grande Virtude assemelha-se a um vale.

O totalmente imaculado parece desonrado.

O profundamente virtuoso parece insuficiente.

A moralidade estabelecida tem o ar de uma conspiração.

As verdadeiras características parecem submersas.

Um grande quadrado não tem ângulos.

Um grande instrumento leva tempo a ser feito.

Um grande som provém de um pequeno ruído.

Uma grande forma não tem contorno.

O Tao é oculto e sem nome, e, todavia, ele é o maravilhoso

garantidor da realização de todas as coisas.

42 – A SUAVE CONSTÂNCIA DO TAO

O Tao gera a unidade, a unidade gera a dualidade,

a dualidade gera a trindade, e a trindade gera todas as coisas.

Todas as coisas estão cheias de yin e abraçam o yang; seus alentos vibrantes se unem.

O que os homens desprezam, o que é solitário e sem centro, seus chefes os tomam como nomes.

Assim, às vezes alguém se beneficia com uma perda, às vezes alguém perde com um benefício.

O que os outros ensinam, eu também ensino:

“O fim de um homem violento é a morte prematura”.

Farei disso um preceito para ensinar a boa conduta.

43 – A SUAVE AÇÃO DO TAO

O mais suave vence o mais forte, como o cavaleiro que controla seu corcel.

O Imaterial pode penetrar onde não há abertura.

Por causa disso, eu conheço o poder do Não-agir.

Raros são aqueles que chegam ao ensinamento silencioso e ao Não-agir.

44 – O IDEAL DA FRAGILIDADE

O que prezar mais: a fama ou a saúde?

O que estimar mais: a saúde ou a riqueza?

O que temer mais: o ganho ou a perda?

Nós dizemos que o amor excessivo acaba por reclamar seu preço.

A ruína espera inelutavelmente o possuidor orgulhoso.

Irrepreensível é aquele que conhece a frugalidade.

Sem perigo caminha aquele que sabe quando é preciso parar.

É assim que se pode perdurar.

Page 18: Lao-Tse -Tao Te Ching

45 – A AÇÃO PARADOXAL DO TAO

A maior realização parece irrealização, e, todavia, seu efeito não tem fim.

A maior plenitude parece vazia, e, todavia, seu efeito é inesgotável.

O maior talento parece frustração.

A maior eloqüência parece gaguejo.

A atividade supera o frio.

A imobilidade supera o calor.

A calma e a quietude colocam as coisas em ordem no mundo.

46 – O NECESSÁRIO E O SUFICIENTE

Quando o Tao prevalece no mundo, os cavalos são usados para lavrar os campos.

Quando o Tao não prevalece, cavalos de guerra são criados nos campos lavrados.

Não há maior desastre do que não conhecer a frugalidade.

Não há maior crime do que a cobiça.

Quem se contenta com o necessário sempre terá o suficiente.

47 – SABEDORIA E ERUDIÇÃO

Sem transpor o limiar da porta, pode-se compreender o mundo.

Sem olhar pela janela, pode-se ver o Tao do Céu.

Quanto mais longe alguém vai, tanto menos conhece.

É por isso que o Sábio não viaja, e, no entanto, conhece;

ele não olha, e, no entanto, vê; ele não age, e, no entanto, realiza.

48 – ACUMULAR OU PERDER?

A busca do conhecimento é uma acumulação quotidiana.

A prática do Tao é uma perda quotidiana.

Perder ainda e sempre: é assim que se atinge o Não-agir.

Quando se pratica o Não-agir nada fica por realizar.

Para ganhar o mundo, não se deve agir por interesse.

Quando alguém age de modo interessado, não conseguirá ganhar o mundo.

49 – A NATUREZA DO SÁBIO

O Sábio não tem idéia própria; ele é consciente das necessidades dos outros.

“Eu sou bom com os bons e também sou bom com os maus,

pois é assim que se chega à bondade.

Sou sincero com os que são sinceros e sincero também com os insinceros,

pois é assim que se chega à sinceridade.”

Quando se encontra no mundo, o Sábio evolui suave e calmamente,

e seu espírito se harmoniza com o mundo.

Ele trata cada um como se fosse seu próprio filho.

Page 19: Lao-Tse -Tao Te Ching

50 – O SÁBIO É INVULNERÁVEL

Em situações perigosas há três possibilidades sobre dez de sobreviver,

e três possibilidades sobre dez de morrer.

Nas circunstâncias ordinárias da vida, onde a atividade

é o domínio da morte, a proporção é a mesma.

Qual é a razão disso?

É a capacidade dos homens de dar à própria vida um sentido mais elevado.

Dizem que aquele que cultiva o princípio vital pode viajar

sem jamais encontrar tigre ou búfalo, e que, na batalha,

nenhuma arma pode penetrar sua armadura.

Pois os chifres dos búfalos selvagens não encontram nele nada para furar,

as garras do tigre, nada para dilacerar, e as armas, lugar nenhum onde penetrar.

Qual é a razão disso?

É que o Sábio não tem ponto vulnerável à morte.

51 – TEMOR E TERROR

O Tao cria a vida, a Virtude fornece a fecundidade;

a espécie modela a vida, a afinidade permite a realização.

É por isso que tudo o que vive reverencia o Tao, e dobra os joelhos diante da Virtude.

O Tao inspira o temor, e a Virtude o terror,

porque eles não dão ordens, e, todavia, a Natureza continua.

Assim, o Tao cria a vida, e a Virtude a concebe, a faz crescer, a acolhe,

a abriga, a reforça, a alimenta e a protege.

Ela produz, mas não possui;

age, mas não controla;

guia, mas não interfere.

Tais são as Virtudes misteriosas.

52 – FIDELIDADE À ORIGEM

O princípio do mundo pode ser chamado a Mãe do mundo.

Quando descobrimos a Mãe, podemos conhecer os filhos.

Quando conhecemos os filhos, devemos voltar à Mãe, e lhe ser fiéis.

Então, mesmo que o corpo morra, não pereceremos.

Fechai a boca, fechai a porta, e não tereis mais preocupações até o fim de vossos dias.

Abri a boca, envolvei-vos mais e mais, e ficareis desesperados até o fim de vossos dias.

Apreciar o menor é a iluminação.

Manter a flexibilidade é a constância.

Utilizai o intelecto brilhante para voltar à iluminação.

Não procureis aborrecimentos. Isso é “praticar a longevidade”.

53 – ISSO NÃO É O CAMINHO DO TAO

Tive a oportunidade de saber que, mesmo que eu possua grande sabedoria,

Page 20: Lao-Tse -Tao Te Ching

pregá-la, servindo-me de um grande caminho, é perigoso.

Embora o grande caminho seja belo e direto, as pessoas do povo preferem os caminhos secundários.

A corte do governador vive no esplendor, mas os campos são negligenciados.

Os celeiros estão vazios, mas as vestes são suntuosas.

Os homens carregam espadas bem aguçadas e se fartam de alimento e de bebida.

Têm mais posses do que podem usar: são nobres ladrões.

Ai de mim, isso não é o caminho do Tao.

54 – O MISTÉRIO DO ÓBVIO

O que está solidamente estabelecido não pode ser desenraizado;

o que é firmemente segurado não pode ser perdido;

aquele cujos filhos preservam a memória permanecerá para sempre.

Cultivai o Tao pessoalmente, e sua Virtude se tornará verdadeira.

Cultivai o Tao na família, e a Virtude será abundante.

Cultivai o Tao na comunidade, e a Virtude será próspera.

Cultivai o Tao na nação, e a Virtude florescerá.

Cultivai o Tao no mundo, e a Virtude se tornará imensa.

Por isso, julga uma pessoa segundo a tua pessoa,

uma família segundo a tua família,

uma comunidade segundo a tua comunidade,

uma nação segundo a tua nação,

o mundo dos outros segundo o teu mundo.

Como posso saber que o mundo é assim? Simplesmente olhando.

55 – SER COMO A CRIANÇA

Compare-se a profundeza da Virtude à criança de peito!

Nem o escorpião nem a serpente a atacarão,

o tigre não a despedaçará, as aves de presa não tentarão arrebatá-la.

Seus ossos são flexíveis e suaves os seus tendões, mas ela segura com firmeza.

Ela não conhece a união do macho e da fêmea,

mas seus órgãos de reprodução estão plenamente formados; sua essência é íntegra.

Ela pode chorar o dia todo sem ficar rouca; ela está em total harmonia.

O conhecimento da harmonia é a constância.

O conhecimento da constância é a iluminação.

O que é benéfico à vida é favorável.

Dirigir a respiração com o coração é a perseverança da força.

Se a energia é usada demasiadamente, segue-se a exaustão. Isso é o contrário do Tao.

Tudo o que vai contra o Tao não conseguirá perdurar.

56 – NA ESCOLA DA SABEDORIA

Quem sabe não fala.

Quem fala não sabe.

Conservai a boca fechada.

Page 21: Lao-Tse -Tao Te Ching

Trancai vossas portas.

Arredondai os ângulos de vosso espírito.

Simplificai os problemas de vossos pensamentos.

Temperai vosso brilho.

Misturai-vos com o mundo ordinário.

Isso é a “assimilação misteriosa”.

Uma vez que alguém realizou esse estado, não é mais influenciado

pelo amor e fica insensível à frieza.

Torna-se insensível à vantagem e fica insensível à perda.

Torna-se insensível à grandeza e fica insensível à baixa condição.

Todavia, torna-se o mais nobre sobre a terra.

57 – GOVERNAR COM RETIDÃO

Utilizai a retidão para governar o Estado.

Utilizai a prudência para encetar a guerra.

Utilizai o não-agir para ganhar o mundo.

Como posso saber que as coisas são assim?

Por isto: Quanto mais restrições e proibições, mais pobre torna-se o povo.

Quanto mais as armas são aguçadas, mais a nação é jogada na confusão.

Quanto mais o artesanato requer habilidade, mais os seus produtos tornam-se não-ortodoxos.

Quanto mais as leis são formuladas com precisão,

mais o número de foras-da-lei e de ladrões se multiplica.

Portanto o Sábio diz: Eu pratico o Não-agir! –

a transformação das pessoas, por si mesma, pouco a pouco se opera.

Eu gosto da tranqüilidade! – e as pessoas, por si mesmas, tornam-se progressivamente retas.

Eu não intervenho! – e o povo, por si mesmo, torna-se gradualmente rico.

Eu vivo sem ambições! – e o povo, por si mesmo, gradualmente alcançará a simplicidade.

58 – GOVERNAR COM SABEDORIA

Se o governo é discreto e contido, o povo será simples e sincero.

Se o governo é rigoroso e exigente, o povo será relaxado e indiferente.

O bom destino depende do mau destino.

O mau destino se oculta por trás do bom destino.

Quem conhece o fim último deste processo?

Se o governo é sem retidão, a retidão transforma-se em erro,

e o bem se transforma em perversidade.

Há muito tempo o gênero humano está preso nessa cegueira.

Portanto o Sábio desata sem dividir,

arredonda os ângulos sem interferir,

endireita sem ir aos extremos,

brilha, mas não ofusca.

Page 22: Lao-Tse -Tao Te Ching

59 – O CAMINHO DA MODERAÇÃO

Nada pode se igualar à moderação, quando se trata de governar o povo e de servir o Céu.

Somente a moderação permite retornar rapidamente ao estado normal do homem.

Esse retorno rápido vem da acumulação da Virtude.

Se há acumulação da Virtude, então nada é impossível.

Se nada for impossível, então não haverá limites.

Aquele que não conhece limites é capaz de possuir o mundo.

Se ele alcançar ser a Mãe do mundo, perdurará muito tempo.

Isso se chama “estar profundamente enraizado e firmemente alicerçado”.

Isso é o Tao da longevidade e da visão eterna.

60 – O SEGREDO DO GOVERNANTE

Governar um grande país é como fritar um peixinho.

Quando o mundo segue o caminho do Tao, o mal não tem mais poder.

Não que o mal não seja poderoso, mas sim que seu poder não prejudica mais os homens.

E também o Sábio não prejudica os homens.

Nenhum dos dois campos prejudica o outro, e a Virtude pode se propagar.

61 – O SEGREDO DA CONQUISTA

Uma grande nação deve ser como um vale profundo, ao qual afluem os rios menores.

Ela é o lugar de união com o mundo, o Feminino no mundo.

É a tranqüilidade que permite ao Feminino dominar o Masculino.

A tranqüilidade é a posição inferior.

Portanto, um grande país deve colocar-se abaixo de um pequeno país, e triunfará sobre este.

Se um pequeno país colocar-se abaixo de um grande país, será o vencedor sobre este.

No primeiro caso, o grande país toma como desígnio a posição mais baixa;

no segundo caso, o pequeno país simplesmente permanece em sua posição.

Um grande país deseja apenas proteger e alimentar o povo.

O que um pequeno país deseja é dar liberdade e satisfação ao povo.

Assim, ambos realizam o que desejam.

Todavia, convém que o maior aceite a posição mais baixa.

62 – O MISTÉRIO DE TODA A CRIAÇÃO

O Tao é o mistério de toda a criação.

Ele é um tesouro para o homem bom, e um abrigo para o mau.

Palavras de poder podem criar uma cidade.

Atos nobres podem elevar um homem.

Mesmo que um homem não seja bom, como poderia ser abandonado?

Um disco de jade e uma parelha de cavalos são oferecidos ao imperador,

para sua entronização, e também aos Três Ministros,

por ocasião de sua instalação; mas não se pode

comparar isso a uma cavalgada para o Tao.

Page 23: Lao-Tse -Tao Te Ching

Esses antigos que prezavam o Tao teriam dito antes:

“Procurai e encontrareis; sereis perdoados quando pecardes”.

Por isso o Tao é estimado pelo mundo.

63 – EMPREENDER O GRANDE ENQUANTO PEQUENO

Agi pelo não-agir.

Fazei sem fazer.

Saboreai o insípido.

Sejam grandes ou pequenos, numerosos ou raros,

respondei pela Virtude aos danos que vos fazem.

Prevede abordar o difícil, enquanto houver facilidade.

Empreendei o grande, enquanto houver pequenez.

Começai a tarefa mais difícil que existir no mundo, enquanto ela ainda for fácil.

Empreendei a tarefa maior que houver no mundo, enquanto ela ainda for pequena.

É assim que o Sábio torna-se forte, sem fazer esforço.

Ninguém poderia confiar naquele que promete facilmente.

Aquele que pensa que tudo é fácil, achará inevitavelmente tudo difícil.

É por isso que apenas o Sábio considera tudo como difícil, e,

no final das contas, não encontra nenhuma dificuldade.

64 – DISCERNIR O MOMENTO OPORTUNO

O que está em repouso é fácil conservar.

O que ainda não aconteceu é fácil prever.

O que é frágil é fácil quebrar.

O que é pequeno é fácil perder.

Agi antes que aconteça.

Mantende a ordem antes que a confusão se instale.

Uma árvore de tronco imenso sai de uma semente minúscula.

Uma torre de nove andares começa como um monte de terra.

Uma viagem de mil léguas começa onde estão os pés.

Agir conscientemente é encalhar.

Agarrar alguma coisa é perdê-la.

É por isso que o Sábio nada faz, e nunca encalha.

Não se apega a nada, e nunca perde nada.

A maneira como as pessoas conduzem ordinariamente seus assuntos

leva freqüentemente ao fracasso, quando estão a ponto de ter êxito.

Sede prudentes em todo o tempo como fostes no início, e não conhecereis o fracasso.

É por isso que o Sábio deseja o Não-desejo.

Ele não preza as coisas raras.

Ele aprende a não se apegar às próprias idéias.

Ele aprende a desaprender e dedica-se ao que para a multidão permanece despercebido.

Dessa forma, ele ajuda a realização natural das coisas, não ousando nenhuma outra ação.

Page 24: Lao-Tse -Tao Te Ching

65 – O MODELO IDEAL DO GOVERNANTE

Os antigos que eram hábeis a governar conforme o Tao,

não procuravam tornar o povo erudito.

Ao contrário, eles o tornavam cada vez mais simples.

O povo é difícil de governar quando é demasiadamente erudito.

Assim, o “malfeitor” da nação é aquele que usa estratagemas para governar,

enquanto o benfeitor da nação é aquele que deixa de usar deles.

Compreender essas duas coisas é também se harmonizar com um modelo ideal de conduta.

Compreender e harmonizar-se com este modelo ideal é ter a Virtude misteriosa.

A Virtude misteriosa é profunda e extensa, diferente de todas as coisas.

Somente quando ela é seguida atinge-se a Grande Unidade.

66 – FICAR SEMPRE EMBAIXO

Os rios e os mares governam os cem vales,

tomando vantagem de sua posição inferior.

Assim, eles são os reis dos cem vales.

Se alguém deseja elevar-se acima do povo, precisa falar como se estivesse abaixo.

Se alguém aspira estar à frente do povo, precisa falar como se estivesse atrás.

É por isso que o Sábio permanece acima do povo, sem que o povo sinta seu peso.

É por isso que ele permanece à frente sem que o povo fique constrangido.

O mundo inteiro fica feliz de aproximar-se dele, e dele não se cansa.

Uma vez que ele não rivaliza com ninguém, ninguém pode rivalizar com ele.

67 – OS TRÊS TESOUROS

O mundo inteiro considera meu Tao grande e em comparação com nada mais.

É precisamente porque ele é tão grande que é sem comparação com nada.

Se ele fosse comparável a outras coisas, há muito tempo já teria se apequenado.

Possuo três tesouros que conservo preciosamente:

o primeiro é o amor;

o segundo é a frugalidade;

o terceiro é não presumir ser o primeiro.

Quando alguém tem o amor, pode ser corajoso.

Quando alguém tem a frugalidade, pode ser generoso.

Quando alguém não presume ser o primeiro, pode tornar-se líder.

Hoje, muitas pessoas rejeitam o amor, mas desejam a coragem.

Rejeitam a frugalidade, mas desejam a generosidade.

Rejeitam ficar atrás, mas querem ser líderes.

Isso é caminhar para a morte.

Quem pratica o amor é vitorioso na ofensiva e invulnerável na defensiva.

A prática do amor atrai a proteção e o socorro do Céu.

Page 25: Lao-Tse -Tao Te Ching

68 – A VIRTUDE DA NÃO-RIVALIDADE

O bom soldado não tem raiva.

O bom combatente não se irrita.

Os que são hábeis a vencer o inimigo triunfam sem combater.

O empregador sagaz concorda em se rebaixar.

Essa é a Virtude da não-rivalidade, ou a força proveniente

da capacidade de tratar com as pessoas.

Isso é estar de acordo com o Céu mais antigo.

69 – O TAO NA ESTRATÉGIA MILITAR

Os estrategistas militares costumam dizer:

“Mais do que ocupar a posição do agressor, vale mais estar na do defensor.

Mais do que avançar um passo, é melhor recuar dois”.

É mover-se sem parecer mover-se.

É levantar o punho sem mostrá-lo.

É capturar o inimigo sem atacá-lo.

É brandir uma arma, sem ter armas.

Com efeito, nada é mais prejudicial do que subestimar o inimigo.

Se eu fizer isso, estarei a ponto de perder meus tesouros.

Portanto, quando dois exércitos travam combate igual,

aquele que está aguilhoado pelo pesar é que alcançará a vitória.

70 – O MISTÉRIO ÍNTIMO DO SÁBIO

Minhas palavras são fáceis de compreender, e sua colocação em prática é natural.

Todavia, ninguém no mundo compreende seu sentido; ninguém consegue praticá-las.

Minhas palavras têm sua fonte, meus atos têm seus precedentes.

Quando não se compreende isso, eu não serei compreendido.

Quanto menor o número dos que me compreendem, maior será meu valor.

É por isso que o Sábio usa vestes grosseiras, embora tenha jade em seu coração.

71 – O SÁBIO NÃO OSTENTA SABEDORIA

Saber, mas parecer não saber, é o melhor.

Não saber, mas fingir saber, é apenas doença.

Quem reconhece a doença como doença, não será doente.

O Sábio nunca está doente, pois ele conhece a doença como doença.

Portanto nunca está doente.

72 – RESPEITAR O POVO

Se as pessoas não temem o que é terrificante, algo de mais terrificante é iminente.

Não falteis com o respeito por suas moradias; não as priveis de seus meios de subsistência.

Se não forem oprimidas, elas não se inquietarão.

Page 26: Lao-Tse -Tao Te Ching

É por isso que o Sábio conhece a si mesmo, mas não se revela.

Ele respeita a si mesmo, mas não busca reconhecimento.

Ele toma uma coisa e rejeita a outra.

73 – O MISTERIOSO PLANO DO TAO

Um homem bravo e temerário matará ou será morto.

Um homem bravo e não temerário preservará sempre a vida.

O Céu abomina ambos, sejam eles benéficos ou nocivos.

Quem poderia dizer por quê? Mesmo o Sábio acha isso difícil.

O Tão do Céu não combate, e no entanto, ganha facilmente.

Sem falar, ele obtém boas respostas.

Sem que seja chamado, ele vem.

Ele é calmo, e, no entanto, segue um plano.

A teia de aranha do Céu estende-se ao infinito; e,

embora sua malha seja larga, ela não perde nada.

74 – O DIREITO SOBRE A VIDA E A MORTE

Se as pessoas não temerem a morte,

é inútil querer amedrontá-las com seu espectro.

Se as pessoas tiverem medo normal da morte,

e algumas fizerem coisas incorretas, deve-se prendê-las e matá-las?

Quem ousaria fazer isso?

Existe sempre um poder de matar para executar a sentença.

Mas se alguém tentar apropriar-se desse poder,

isso se chama querer cortar madeira em lugar do Grande Carpinteiro.

E raros são aqueles que substituem o Grande Carpinteiro sem cortar as próprias mãos.

75 – O EXCESSO DE INTERFERÊNCIA

Se o povo passar fome é porque aqueles que estão em cima

taxam seus meios de subsistência demasiado pesadamente.

É por isso que passa fome.

Se o povo for indisciplinado, é porque aqueles que

estão em cima interferem demasiadamente.

Se o povo tomar a morte levianamente,

é porque seus chefes arrogam a si o direito sobre a vida.

É por isso que despreza a morte.

Mas quem não se apega à própria vida

é melhor do que quem se agarra à vida.

76 – A VIDA SEMPRE SE RENOVA

O homem, quando nasce, é suave e flexível.

O homem, quando morre, é rijo e duro.

Page 27: Lao-Tse -Tao Te Ching

Em seu nascimento, todas as coisas,

incluindo as plantas, são tenras e suaves.

Em sua morte, são secas e rígidas.

Assim, o rijo e o duro são os companheiros da morte;

o suave e o flexível são os companheiros da vida.

É por isso que um exército forte não consegue a vitória.

Uma árvore robusta recebe o machado.

O que é duro e forte declina;

o que é suave e flexível prospera.

77 – A JUSTIÇA DO TAO

O Tao do Céu é como o arqueiro que retesa seu arco:

ele rebaixa as coisas altas, e eleva as coisas baixas;

diminui onde há demais, e aumenta onde há de menos.

O Tao do Céu reduz o que é excessivo,

e o acrescenta ao que é insuficiente.

O caminho do homem não é assim:

ele retira do que é insuficiente, e o acrescenta ao que é excessivo.

Quem é capaz de oferecer ao mundo o excesso de seus bens?

Apenas os que seguem o Tao.

É por isso que o Sábio age, porém nada exige em troca;

é merecedor, mas não reivindica méritos.

Ele jamais procura ostentar seu próprio valor.

78 – A SABEDORIA DOS PEQUENOS

Nada no mundo é mais suave e flexível que a água,

mas, quando ela ataca o duro e o forte, nada pode contê-la.

O flexível vence o duro.

O suave vence o forte.

Ninguém no mundo ignora isso, e, todavia, ninguém o põe em prática.

É por isso que o Sábio diz:

aceitar a desgraça de uma nação é ser o senhor da sociedade.

Aceitar o desastre de uma nação é ser o governador do mundo.

As palavras verdadeiras parecem paradoxais.

79 – A JUSTIÇA DO TAO É GRATUITA

Envolver-se num grande ódio leva inevitavelmente a mais ódio ainda.

Como se pode considerar isso uma boa coisa?

É por essa razão que o Sábio mantém sua parte no acordo, mas não cobra seu direito.

O homem de Virtude cumpre a sua parte, mas o homem

sem Virtude exige que os outros preencham suas obrigações.

O Tao do Céu é imparcial, mas permanece sempre no homem bom.

Page 28: Lao-Tse -Tao Te Ching

80 – O IDEAL DA VIDA SIMPLES

A um pequeno país pouco povoado de nada serve ter centenas de armas.

Deve-se incitar o povo a respeitar a morte, e dissuadi-lo de emigrar.

Embora tenha navios e veículos, ninguém neles subirá.

Embora haja armas e armaduras, ninguém as usará.

Que os homens voltem às técnicas simples,

escrevendo com nós em cordõezinhos.

Seu alimento será comum e bom.

Suas vestes serão simples, mas belas.

Seus lares serão agradáveis.

Seus costumes serão alegres.

Os países vizinhos estarão ao alcance da vista,

e de um lado para o outro se poderão ouvir o canto dos galos

e o latido dos cães: as pessoas, contudo, morrerão com idade avançada,

sem nunca ter viajado de um país ao outro.

81 – A GRATUIDADE DO TAO

Palavras verdadeiras não são lisonjeiras.

Palavras lisonjeiras não são palavras verdadeiras.

O homem bom não discute.

Os que discutem não são bons.

O Sábio não tem extenso conhecimento.

Os grandes eruditos não são sábios.

O sábio nada acumula.

É simplesmente em sua ação pelos outros que consiste sua maior realização.

Seu ganho consiste em dar aos outros.

O Tao do Céu favorece, mas não prejudica.

O Tao do Sábio é realizar sem rivalizar.

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Comentários FinaisOS ENSINAMENTOS DE LAO TSE

I. O Tao

O antigo teísmo chinês ensinara que no céu havia um deus de quem o mundo simplesmente dependia, um deus que recompensava os bons e castigava os maus. Essa Entidade possuía consciência humana, e permitia os santos eleitos ao seu redor, como o rei Wen; podia encolerizar-se quando os homens eram maus, mas, no fim, sempre os perdoava de novo e deles se compadecia, quando seu sacerdote e representante, o filho do céu, se purificava de maneira correta e se acercava dele com sacrifícios. Além desse pai no céu – acompanhado pela mãe-terra, cuja presença jamais afetou basicamente o pensamento monoteísta –, havia ainda uma série de espíritos da natureza e dos ancestrais. Apesar de dependentes do céu, eles tinham, não obstante, as suas áreas específicas a cuidar, de modo semelhante aos funcionários subordinados ao rei.

Essa filosofia religiosa havia sido esmagada pelo impacto de acontecimentos terríveis, que não revelavam, em parte alguma, a existência de um deus do céu que interviesse em favor dos pobres seres humanos torturados e, apesar de tudo, inocentes. Com Lao-Tse, a eliminação definitiva do antropomorfismo religioso se iniciou. O céu e a Terra não têm os sentimentos humanos de amor. Para eles todos os seres são como meros cães de sacrifício feitos de palha. Nas festas de sacrifício, antes de montar os cães de palha, estes são colocados num escrínio e envoltos em bordados. O sacerdote dos mortos jejua e se purifica antes de sacrificá-los. Mas, depois de montados, eles são jogados fora; de modo que ao passar as pessoas pisam sobre as suas cabeças e costas e os coletores de gravetos os recolhem e queimam. O mesmo acontece com relação à natureza de todos os seres vivos: enquanto o tempo lhes pertence, encontram a mesa da vida naturalmente posta para eles e tudo está preparado para seu uso. Mas, passada a hora, são jogados fora e pisoteados, e o fluxo da vida passa por eles.

No entanto, Lao-Tse está longe de considerar o curso da natureza como algo acidental ou desordenado. Dessa forma ele está livre de todo o ceticismo e pessimismo. Ele não luta apenas contra a religião popular, contudo a substitui por algo mais elevado e que leva até mais longe. Baseado na velha sabedoria do Livro das Mutações, Lao-Tse reconhecera que a essência do mundo não é uma condição estaticamente mecânica. O mundo está em constante alternância e transformação. Tudo o que existe está, portanto, condenado a morrer, porque, embora sendo verdade que nascimento e morte são opostos, um e outro estão, não obstante, forçosamente ligados. Mas, ainda que tudo o que existe tenha de perecer, não há nisso nenhum motivo para dizer que “tudo é vão”, porque o próprio Livro das Mutações mostra igualmente que todas as transformações se realizam segundo leis estabelecidas. O Livro das Mutações contém a concepção de que a totalidade do mundo fenomenal está baseada no antagonismo polar das energias; o criativo e o receptivo, a unidade e a duplicidade, a luz e a sombra, o positivo e o negativo, o masculino e o feminino, são fenômenos das energias polarizadas que produzem toda alternância e transformação. Não se deve, porém, imaginar essas energias como princípios primordiais estáticos. O conceito do Livro das Mutações está longe de qualquer dualismo cósmico. Essas energias encontram-se, ao contrário, em contínua transformação. A unidade se divide e se converte em duplicidade, a duplicidade se une e torna a ser unidade. O criativo e o receptivo se unem e geram o mundo. Assim,

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Lao-Tse também diz que o Um gera o Dois, o Dois gera o Três e este gera todas as coisas. No Livro das Mutações isso é representado pela união da linha indivisa do criativo com a linha dividida do receptivo que se combinam na formação dos oito signos primordiais de trigramas em três níveis, combinações estas de que é construído todo o mundo das constelações cronológicas possíveis.

Lao-Tse, no entanto, também deduziu a partir do Livro das Mutações que essa mudança de todos os fenômenos não é uma mera coincidência. Esse livro fala de três mudanças:

1. Uma transformação cíclica, como, por exemplo, a representada pela mudança das estações do ano. Um estado passa a outro, mas, no curso dessa mudança, retorna ao estado inicial. Assim, ao inverno sucedem-se a primavera, o verão e o outono, mas, depois deste, vem outra vez o inverno e, dessa forma, fecha-se o ciclo de mutação. Essas transformações cósmicas são o nascer e o pôr-do-sol, e durante os dias e os anos, as fases da lua minguante e crescente, as estações da primavera e do outono, o nascimento e a morte.

2. O desenvolvimento progressivo. Um estado passa progressivamente a outro, mas a linha de desenvolvimento não retorna a si mesma; o progresso e o desenvolvimento prosseguem sempre com o tempo. Assim, os dias de um homem, embora incorporados ao grande ciclo das estações do ano, não são iguais; cada um contém a soma das vivências antecedentes acrescidas da vivência de cada novo dia.

3. A lei imutável que atua nessas mudanças. Essa lei determina que todos os movimentos se manifestem de maneira definida. Ao observar os fenômenos entre o céu e a Terra, o homem sente o esmagador efeito de sua imponente grandeza, de seu peso, de sua desconcertante variedade e multiplicidade. Essa lei expressa que o princípio criador é a energia ativa que atua no tempo. Quando entra em ação, essa energia o faz inicialmente de uma maneira muito suave e imperceptível, de modo que não se perde a visão geral. Só a partir do suave e do diminuto se desenvolve o denso e o imponente. O receptivo é o princípio da mobilidade espacial. Quando ele reage aos estímulos do criativo, cada mudança espacial é inteiramente simples e paulatina, de modo que é reconhecível, sem haver confusão. Essa mudança singela e gradual só cresce até a desconcertante multiplicidade no curso posterior dos fatos. Por isso é preciso reconhecer as sementes em tudo. Aqui é que se deve intervir, quando se quer agir, a fim de que, do mesmo modo que a natureza, os efeitos possam crescer do tênue e simples até o denso e variado. Pois, em todas essas leis, não há necessidades impostas de fora, mas uma vitalidade orgânica imanente que atua de maneira completamente independente, numa liberdade que corresponde à própria lei da enteléquia.

O que está no fim de tudo, no âmago de todas essas mudanças, é a grande polaridade (T’ai Gi), a unidade que transcende toda dualidade, todos os fatos e mesmo toda a existência. Essas mudanças se processam por meio de um caminho fixo e pleno de sentido (Tao), no caminho do céu (T’ien Tao), ao qual corresponde, na Terra, o caminho do homem (Jen Tao). Pois o princípio mais importante do Livro das Mutações é o de que há uma relação universal e harmônica entre o macrocosmo e o microcosmo, entre as imagens que o céu envia para baixo e os pensamentos culturais que os santos formam, quando as imitam. Vê-se ainda, na concepção do caminho do céu e do caminho do homem, contida no Livro das Mutações, o reflexo do fundamento astronômico-astrológico peculiar à religião chinesa. Essas idéias, mais ampliadas, são encontradas na filosofia de Confúcio. Mas Lao-Tse também baseia nelas a sua filosofia. Apesar de ter deixado apenas alguns aforismos, Lao-Tse também tinha uma filosofia; os aforismos contêm um sistema rigorosamente fechado, que se revela a quem seja capaz de ter uma visão geral do seu conteúdo.

Lao-Tse procura, antes de tudo, um princípio básico de sua concepção do mundo. O confucionismo havia se detido na concepção de céu. O céu era uma entidade imaginada de algum modo pessoal. Era, na verdade, concebido de maneira mais elevada e pura do que o deus da religião

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popular, Chang Ti, que, em parte, tinha traços fortemente antropomórficos; no entanto, em momentos de grande tensão, Confúcio falava sempre de uma forma em que se podia perceber claramente suas relações religiosas com o céu que “o conhece”, que lhe confiou a transmissão da cultura e ao qual se podia orar, quando se passava por crises íntimas. Para Lao-Tse, o céu não era ainda o mais elevado e derradeiro grau. O grau mais elevado e definitivo estava além da personalidade e até de qualquer ser de algum modo perceptível ou definível. Não era nada que estivesse ao lado ou acima das outras coisas. Mas não era também um nada, mas algo que se subtraía às formas do pensamento humano.

Para uma coisa assim não há, naturalmente, nome algum, já que todos os nomes só nascem das vivências; essa coisa é, no entanto, o que primeiro possibilita as vivências. Denominou-a, por força da necessidade, Tao, só para poder falar dela, pois não tinha uma expressão melhor e chamou-a igualmente de grande. Desse modo, aceitou uma expressão existente e a transformou. O Tao do céu e o Tao dos homens sempre foram conhecidos, mas não o Tao absoluto. Tao significa caminho. Mas, no sentido de Lao-Tse não se pode, sem mais nem menos, traduzi-lo por caminho ou senda. Há duas palavras chinesas para caminho. Uma é Lu. Resulta da combinação dos símbolos para “pé” e “cada”. É o que cada pé pisa, o caminho que resulta justamente do fato de ser percorrido. Transposto o seu sentido, essa expressão poderia ser usada para o conceito moderno de lei natural, que é, do mesmo modo, aceita como existente, pois os processos ocorrem no sentido dessa lei. A outra palavra para caminho é Tao, que se escreve combinando os símbolos para “cabeça” e “andar”. Daí resulta um significado substancialmente diferente do da palavra Lu. O de um caminho que conduz a um objetivo, o de direção, de caminho indicado; tem, ao mesmo tempo, o sentido de “falar” e “guiar”. Parece que esse símbolo foi usado inicialmente para as trajetórias astronômicas dos corpos celestes. O Equador, desde os tempos antigos, é chamado “caminho vermelho” e a elíptica de “caminho amarelo”. Esses caminhos não são, no entanto, acidentais: têm um significado, um sentido. É a liberdade absoluta, que se orienta somente por si mesma, ao passo que todas as outras coisas recebem o seu sentido de algo externo: o homem, da Terra, a Terra, do céu, e o céu, do Tao.

Falando do Tao, Lao-Tse preocupa-se em afastar tudo o que possa lembrar algum tipo de existência. O Tao está num nível totalmente distinto de tudo quanto pertence ao mundo dos fenômenos. É anterior ao céu e à Terra; não é possível dizer de onde vem; é anterior ao próprio Deus. Ele se baseia em si mesmo, é imutável e está em eterna circulação. É o princípio do céu e da Terra, isto é, da existência espacial e temporal. É a origem de todas as criaturas; outras vezes é designado também como o ancestral de todos os entes. Há um antigo versículo que o compara ao espírito do vale vazio, ao misterioso feminino que flui ininterruptamente semelhante a uma queda-d’água e cuja porta misteriosa é a raiz do céu e da Terra. É bem possível que essa concepção se baseie numa velha fórmula mágica destinada a conjurar o espírito do pictograma K’an. Este é um dos oito pictogramas arcaicos do Livro das Mutações. Significa a lua e a água celeste que flui entre as margens escarpadas. É o escuro misterioso, e o abissal, a sabedoria mais elevada e mutável, o inesgotável. Originariamente, foi imaginado como feminino. Somente por volta do segundo milênio começou a ser designado como masculino. Encontra-se no norte ou no oeste, sempre na metade escura do ciclo solar. O seu signo no céu estrelado é o guerreiro escuro, misteriosa união de serpente e tartaruga. Não há dúvida de que, em tempos antigos, a magia negra estava ligada a esse signo. Liä Dsï afirma que o versículo citado deriva dos escritos de Huang Ti. É bem possível que também Lao-Tse o tenha citado, visto que muita coisa no Tao-te King é citação. Para Lao-Tse havia, nesse versículo, certos elementos concordantes com o que ele entendia como Tao, de modo que o usou como metáfora. Também noutras passagens, ele compara o Tao com a água, que é tão potente

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porque permanece sempre embaixo e em lugares que, em geral, são odiados; ou encontrou uma semelhança do Tao com o vale, o mar, os rios profundos, porque todos se mantêm embaixo e são capazes de absorver todas as águas que para eles afluem, sem ficarem cheios ou transbordarem. Pois o Tao também é vazio e nunca se enche.

Embora se negue existência ao Tao, ele, no entanto, também não é simplesmente nada. Porque do nada, não pode surgir nada. É verdade que o Tao não é temporal nem espacial. Olhando-o, não o vemos, escutando, não o ouvimos, e se quisermos tocá-lo, não o sentimos. Contudo, nesse não ser espacial nem temporal está depositada, de algum modo, a variedade. Mesmo não o vendo, ouvindo e sentindo, há algo nele que corresponde a essa variedade dos sentidos: figuras, imagens, embora informes, imateriais. No Tao não se pode distinguir a cabeça nem as costas. Muitas vezes é como se estivesse aí para logo se retirar para o não-existente. Ele se encontra então num nível que está além do ser e do não-ser. Não é nada real, porque se o fosse, seria uma coisa ao lado de outras coisas. Mas também não é tão irreal que as coisas reais não possam resultar dele.

Portanto, não é possível depoimento direto algum sobre o Tao. Todo depoimento direto será falso, porque ele está além do predicável. Daí a razão pela qual Lao-Tse se esforça constantemente por restringir os seus depoimentos. Ele fala por metáforas. Diz “parece”, “pode ser chamado”, “é como se”, “é mais ou menos como”, ... Enfim, usa apenas designações vagas e restritas. Porque, na sua totalidade, o Tao não pode ser reconhecido e entendido. Todos os depoimentos são meras referências a uma vivência espontânea, que não é possível descrever em palavras.

Justamente por esse motivo, o Tao também não é um conceito. Por ser espontânea, a vivência do Tao ultrapassa todos os conceitos. Tampouco é matéria de estudo. Quem o conhece não fala dele e quem fala dele não o conhece. Quanto mais se quer circunscrevê-lo e defini-lo, tanto mais distante se está dele. Por isso o caminho para o Tao é diretamente oposto ao do aprendizado. Por meio deste acumulam-se experiências e obtém-se progressiva abundância, na medida em que se vai mais longe; ao passo que, se nos voltarmos para o Tao, as experiências disponíveis vão se reduzindo cada vez mais até que se chega ao não-fazer. Cultivando o não-fazer, nada fica sem ser feito; tudo se faz por si mesmo.

No entanto, nessas circunstâncias, Lao -Tse sabia muito bem que o seu Tao não era nenhuma conquista científica. Homens de natureza elevada, ao ouvirem falar dele, atuam segundo suas leis. Os de natureza menos elevada ficam na dúvida; ora têm o Tao, ora ele lhes escapa de novo. Os homens comuns riem alto ao ouvirem falar dele e, quando não riem, é porque não se tratava ainda do verdadeiro Tao.

Se perguntarmos agora o que Lao-Tse queria dar a entender por Tao, teremos de recorrer a vivências místicas para chegarmos à compreensão. Ele é semelhante a uma concepção como a que encontramos também no Budismo Mahayana. Através do recolhimento e da meditação, chega-se ao estado de samadhi, no qual a psique ultrapassa o consciente e submerge nas esferas da superconsciência. Quando são genuínas, essas vivências levam, de fato, para profundezas do ser que ultrapassam a totalidade do mundo fenomênico. A forma exterior dessas ocorrências é conhecida por determinados processos da Parapsicologia e tornou-se objeto de pesquisas científicas. Mas a vivência do próprio Tao jamais será objeto da pesquisa científica. Trata-se, no caso, de um arquifenômeno, no mais elevado sentido, e que só podemos admirar respeitosamente, mas não definir ou sondar. Com a experiência do Tao se passa o mesmo que com todas as experiências imediatas. Se, por exemplo, tenho a sensação do amarelo ou do azul, os processos pelos quais essa sensação surge nos olhos talvez possam ser pesquisados - dando-se uma boa margem a essa hipótese -, mas com isso nada se dirá ainda sobre a sensação. E jamais será possível transmitir qualquer noção de cor a quem não tenha essa vivência. Com o Tao dá-se exatamente o mesmo. Toda

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a Parapsicologia não pode nos proporcionar essa vivência; para compreendê-la é preciso ter passado por ela. Mas, para quem tem uma vivência correspondente, as palavras de Lao-Tse são imediatamente compreensíveis e adequadas para fazê-lo progredir em seu caminho.

Lao-Tse atribui ao Tao importância não apenas psicológica, mas cósmica. E nisso está certo, visto que o cosmo não é algo objetivo que existe de forma independente da vivência. Cada organismo tem o seu ambiente de acordo com as ferramentas criadoras que lhe são disponíveis para isso. Ao conceber o Tao de forma que ele não possa ser compreendido de algum modo e em lugar algum, Lao-Tse oferece, assim, as condições para cada vivência e também para cada cosmo. Toda vivência baseia-se, pois, na dotação de sentido, e o Tao é justamente o sentido que confere significado a tudo quanto é e, desse modo, chama tudo quanto é para a existência. O Tao cria tudo o que é criado, mas como cria até mesmo o criativo, ele mesmo nunca entra no mundo fenomenal. Lao-Tse não faz suas afirmações sobre o Tao simplesmente como afirmações apodícticas. É verdade que, conforme a natureza do assunto, não pode oferecer provas sobre ele, mas indica os caminhos pelos quais se pode chegar à vivência do Tao.

II. Da Obtenção do Tao

Lao-Tse está longe de apresentar uma mera teoria da compreensão do mundo; ao contrário, quer mostrar o caminho que conduz para fora do labirinto do mundo fenomenal, que conduz à eternidade. Encontrar esse caminho e palmilhá-lo significa alcançar o Tao. O caminho para a obtenção do Tao é duplo: um conduz à existência, outro à não-existência. Quando são orientados para encontrar o Tao na existência, os fenômenos devem ser observados de tal maneira que não se fique enredado neles. As formas exteriores do Tao, sendo este a origem de tudo quanto aparece, são: o alto e o baixo, o belo e o feio, o bom e o mau. Não há nada que não tenha a sua existência a partir do Tao, pois ele não se nega sequer ao mais ínfimo grão de pó. No entanto, procura-se em vão o Tao na realidade dos fenômenos, quando se tem objetivos e intenções. Quanto mais se explorar o mundo com objetivos e intenções determinadas, quanto mais se cultivar a ambição, quanto mais se quiser ou se fizer algo, tanto mais se ficará enredado no isolamento. Este leva ao contra-senso, que não dura muito tempo. Nesse caso, não faz nenhuma diferença para onde a nossa aspiração se volte; se buscarmos prazer, cores, sons, guloseimas, jogos excitantes, bens raros, o efeito de tudo isso é apenas um enredamento mais profundo na ilusão. Trata-se igualmente de ilusão, quando o objetivo for cultivar a santidade e a sabedoria, o amor e a responsabilidade, a arte e o lucro, a erudição e o conhecimento, pois isso também provocará a excessiva acentuação de um dos pólos, o que forçosamente provocará a acentuação do outro. Quando todos os homens reconhecem o belo como belo, isso por si só já estabelece o feio. O Tao é como a tensão do arco. Complementa cada unilateralidade pelo seu oposto. O alto é rebaixado, o baixo é elevado. O sentido do céu é reduzir o superabundante e complementar o carente.

Por isso, o caminho que conduz ao Tao pelo ser passa pela aceitação dos opostos no mundo dos fenômenos. Quanto mais livre nos tornamos das ambições ilusórias, tanto mais nos libertaremos do próprio ego. A seguir, não olhamos mais para o mundo sob o açoite do medo, ou cheios de esperança, mas puramente como se ele fosse um objeto. Verificamos que todas as coisas surgem e crescem e que retornam sempre à raiz. Vêem-se gigantescas energias desencadeando-se feito aguaceiros e ciclones, mas nenhum ciclone dura toda a manhã; logo passa. Reconhecemos como as

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armas são fortes, mas não saem vitoriosas; vemos como a árvore é rija, mas é abatida. É do sofrimento que depende a felicidade. O sofrimento está à espreita da felicidade. Através desses conhecimentos, conseguimos eliminar o eu, porque é este pequeno eu que considera o diminuto espaço entre o nascimento e a morte como sua vida, é esse eu que é a verdadeira causa de toda ilusão. Ao desejar algo para esse espaço de tempo e tratando de realizar o desejado pela magia do nome – pelo qual primeiro vem o conhecimento do desejado, que, por seu turno, causa o desejo –, surgem todas as teias que ocultam o Tao ao consciente. Assim, a própria graça é inquietante e a honra um grande sofrimento, simplesmente por causa da personalidade, que tudo relaciona consigo mesma. Esse eu-personalidade precisa estar constantemente inquieto, tanto quanto lhe acontece receber uma graça ou quando lhe acontece perdê-la, sucedendo o mesmo com a honra. Eliminada a personalidade, não existe mais nenhum mal. Pois o Tao age com segurança soberana, mesmo quando os desejos obscurecem o eu; até mesmo esses desejos são efeitos do Tao, segundo leis fixas. Nada poderia ser diferente do que é. Trata-se apenas de não obstruirmos o caminho. Desse modo, a imagem do mundo fica isenta de ilusão e é pura, e assistimos ao jogo da vida com a quietude interior. Sabemos que viver e morrer é o mesmo que entrar e sair. Se seguirmos a lei eterna sem nos apegarmos a nada, sem nos deixarmos endurecer e cristalizar em ponto algum, permanecemos no fluxo do Tao e as forças da morte – que só podem atacar, quando no indivíduo algo se solidificou – não terão mais poder sobre nós. Assim o caminho exterior, através da existência, é um caminho para o Tao, que se desdobra na existência quando estamos livres da ilusão e somos capazes de assistir, em pura contemplação, a obra-prima da mãe eterna, que tece os fios e os deixa fluir como os jorros de cascatas, ininterrupta e incessantemente. Porém, sabemos que esse véu é vivo, está em constante movimento, não conhecendo demora, nem desejo, nem ego, nem duração. Tudo flui.

No entanto, essa contemplação pura, que percebe no perecível o sentido eterno do trabalho, é apenas um dos caminhos. O outro leva pelo não-ser. Através dele chegamos à contemplação das forças ocultas, à união com a mãe. O que antes era apenas um espetáculo, agora é vivência. Chegamos à unidade sem par, à porta escura de onde brotam o céu e a Terra, todos os seres e todas as forças. Esse é o caminho da solidão e do silêncio. Nele surgem lampejos de conhecimentos de que não podemos falar aos outros e que devemos venerar em silêncio. Esse caminho do silêncio nos distancia muito de tudo o que é pessoal, porque o que é pessoal representa apenas o invólucro perecível com o qual nos movemos, à medida que andamos pela vida. Esse caminho conduz à quietude, onde tudo o que é visível se dilui em aparências vazias. Da multiplicidade, leva de volta à unidade. Esse caminho exige, no entanto, uma preparação. É preciso trabalhar a alma de tal modo que ela seja capaz de manter a unidade sem se dispersar, porque o critério é este: quando um sábio da mais elevada categoria ouve a partir do Tao, permanece com ele; quando isso se dá com um sábio menos elevado, ele vacila: ora tem o Tao, ora o perde. Mas, se se quiser alcançar a entrada do santuário mais íntimo, será preciso ultrapassar essa vacilação. A primeira coisa é a unidade completa. Depois vem a flexibilidade das forças psíquicas. Nenhuma tensão deve permanecer assim como ela existe em estados forçados de unidade, porque a vivência deve surgir de modo totalmente simples e suave. As forças interiores devem começar a fluir e a vencer os obstáculos. É necessário chegarmos à condição de uma criança, que pode fazer todos os esforços sem se cansar, porque é relaxada e descontraída, não-endurecida. Essa liquefação interior não é, no entanto, uma distração, mas um nível que tem como condição prévia a continuidade de concentração. A normalização é que não pode mais fracassar, porque se tomou constante. Só posteriormente é possível a introspecção, porque nesse momento o espelho da alma é limpo e tão dócil que não quer mais fixar nenhuma impressão, mas segue sem resistência os estímulos que assomam das profundezas. Temos agora a vivência de como se abrem e se fecham as portas do céu. Contemplamos o invisível, tocamos o

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impalpável. Estamos além da existência, estamos nas profundezas, junto às origens. Somos testemunha dos processos ocultos da vida e nos mantemos serenos e dóceis como a ave fêmea com o ovo, que encerra o segredo da vida. E o ovo se abre. Dá-se a união com o Tao final. O filho encontrou a mãe...

Agora surge a grande certeza que penetra tudo, o reconhecimento salvador da unidade sem par.

Mas desse reconhecimento resulta a possibilidade de não querermos mais consolidar e separar os opostos em sua aparência, mas aceitá-los e reuni-los numa síntese mais elevada. Reconhecemos dentro de nós mesmos o masculino criador, mas também o feminino receptivo; reconhecemos a honra que temos e também se permanecemos voluntariamente na vergonha. Por isso, livramo-nos de todas as misérias pessoais e voltamos à simplicidade original. Quem reconhece desse modo a sua condição filial e conserva a sua mãe (a grande mãe do mundo, o Tao), não corre perigo em toda a vida. Quem se cala e cerra as suas portas não sofre a miséria durante toda a vida. Contempla o pequeno, conserva a flexibilidade e, por isso, mantém-se livre de todo sofrimento. Quem sabe preservar desse modo a sua vida, também não teme o rinoceronte nem o tigre e é capaz de passar no meio de um exército, sem armadura nem armas. Pois não tem nenhum ponto mortal que possa ser ferido, já que nele nada há que oponha resistência.

A partir desse conhecimento, ele também ordenará a sua ação. Sempre irá efetivar o que ainda não é e ordenar o que ainda não entrou em confusão, porque justamente aqui já estão as sementes que existem no invisível de que fala o Livro das Mutações. É preciso trabalhar sobre essas sementes, a fim de que o que nelas fora depositado possa se desenvolver com o crescimento, sem que ele próprio se esforce ou sem que haja interferência exterior. Essa influência orgânica das sementes é o modo decisivo de trabalhar de quem alcançou o Tao. O que for plantado desse modo não será arrancado. O bom caminhante não deixa rastros. O bom guardião não usa fechadura nem tranca. A verdade é que quem tenciona trabalhar sobre as sementes revela a sua força secreta no fato de deixar que as forças opostas se efetuem a princípio calmamente. Primeiro devemos deixar que se expanda completamente o que pretendemos comprimir. Só quando uma das forças se aproxima pela atuação do esgotamento, proporciona a oportunidade de ser superada facilmente.

É verdade que essas leis secretas contém fórmulas que podem conduzir à magia negra e, de fato, elas foram utilizadas pelo taoísmo mágico posterior, assim como, pelo método japonês do jiu-jitsu e pelo taoísmo governamental de Han-Fei-Tzu. Mas com Lao -Tse é diferente. Ele percebe muito bem que tem diante de si o mecanismo da ação mágica, mas não existe nele nada a fazer uso mágico e unilateral desses conhecimentos, porque sua grandeza consiste em penetrar na unidade primordial da coesão do universo, em cujo silêncio já não existem mais antagonismos que possam ser explorados.

É justamente essa a diferença entre o seu caminho e o caminho do conhecimento. O conhecimento vai cada vez mais longe no mundo; busca, explora, armazena cada vez mais fatos. No entanto, para atingir o Tao é necessário ir cada vez mais para o interior, até alcançar o ponto de unidade, onde a personalidade individualizada entra em contato com a totalidade cósmica. A partir desse ponto, abre-se a possibilidade da contemplação cósmica. Sem sair pela porta, pode-se conhecer o mundo. Sem olhar pela janela, pode-se contemplar o sentido do céu. O que está nesse ponto não caminha e, não obstante, chega ao fim; não olha para nada e, no entanto, tem certeza sobre tudo, não age e, contudo, leva tudo à realização.

Desse modo, o que tem Tao levará a sua vida como uma pessoa, mas o que é pessoal, a máscara do eu, não o enganará mais. Ele vai representar seu papel, como os outros, mas se manterá distante da agitação deles, porque se libertou da ilusão e aprecia nutrir-se unicamente da mãe.

Page 36: Lao-Tse -Tao Te Ching

A FONTE DO BOSQUEDE PESSEGUEIROS FLORIDOS

Vivia outrora em Wuling, nos tempos de Tai Yüan, um pescador. Havia ali um rio. Navegando-o na direção da nascente, o pescador sabia se havia ido muito longe ou não, quando deparou com um bosque todo iluminado por flores de pessegueiro, que ladeavam as margens do rio, numa extensão de umas boas centenas de passos. Não havia outras árvores; só um belo capim cheiroso e fresco, onde se amontoavam as pétalas das flores dos pessegueiros. O pescador se admirou muito disso e foi ainda mais longe, porque desejava saber onde era o fim do bosque. Na orla deste, porém, havia uma montanha de onde brotava um rio; e havia também uma estreita passagem para o interior da montanha, que parecia envolta em luz.

Penetrou nela com dificuldade, mas, poucos passos adiante, a passagem se tornou ampla e luminosa e uma paisagem se estendia ao longe. Cabanas e casas muito limpas levantavam-se no meio de boas glebas de terra entre belos espelhos de água rasa. Caminhos se entrecruzavam e havia todos os tipos de bambus e muitas amoreiras. De uma aldeia para outra os cães e as galinhas dialogavam. Homens e mulheres semeavam os campos, como nós fazemos; crianças e anciões viviam satisfeitos e felizes em seus afazeres. Admiraram-se ao ver o pescador e o interrogaram. Depois que ele falou, convidaram-no a permanecer com eles e ofereceram-lhe vinho e prepararam galinhas para ele comer. Na aldeia, todos ouviram falar disso e vieram para fazer perguntas, e eles próprios contaram que outrora, nos tempos agitados de Tsin Chïn Huang, seus pais haviam emigrado com mulheres e filhos para lá e que, desde então, ninguém mais havia saído e, por isso, nada sabiam a respeito dos homens de fora. Perguntaram quem era o rei, mas não conheciam a dinastia dos Han, e menos ainda a dos We e dos Tsin. O pescador deu-lhes notícias de tudo quanto sabia e eles eram todo ouvidos. Desse modo, passaram-se vários dias, o pescador sendo tratado como convidado e hóspede e alimentado com vinho e comida. Depois, na hora da despedida, eles acharam que não valeria a pena contar algo do que vira às pessoas de fora...

O pescador saiu, tomou o barco para voltar para casa; porém, antes, gravou bem na memória todos os pontos de referência à sua volta. Na capital do distrito, contou tudo honestamente ao mandarim e este mandou mensageiros à procura do que ele havia descrito. Estes, no entanto, se perderam e não acharam o caminho...

Conta-se que Liu Tsï Ki, sábio originário do sul, cheio de ânimo, reiniciou a busca. Antes, porém, de ver o sucesso de sua jornada, adoeceu e morreu. Desde então ninguém mais tem perguntado pelo caminho.

“Livros não mudam o mundo,quem muda o mundo são as pessoas.

Os livros só mudam as pessoas”.Mário Quintana

Lumensana – Publicações EletrônicasLIVROS PARA LER E PENSAR.

Maio, 2008