filosofia da ciência e da mente

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Indaial – 2020 E DA MENTE Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser 1 a Edição FILOSOFIA DA CIÊNCIA

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Page 1: FilosoFia da CiênCia e da Mente

Indaial – 2020

e da Mente

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser

1a Edição

FilosoFia da CiênCia

Page 2: FilosoFia da CiênCia e da Mente

Impresso por:

Elaboração:

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser

Copyright © UNIASSELVI 2020

Revisão, Diagramação e Produção:

Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

L685f

Leyser, Kevin Daniel dos Santos

Filosofia da ciência e da mente. / Kevin Daniel dos Santos Leyser. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

263 p.; il.

ISBN 978-65-5663-169-1ISBN Digital 978-65-5663-170-7

1. Ciência - Filosofia. - Brasil. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

CDD 121

Page 3: FilosoFia da CiênCia e da Mente

Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático Filosofia da Ciência e da Mente, ao ler a Unidade1 você será introduzido às noções básicas da filosofia da ciência e ao raciocínio científico. Você irá estudar sobre as questões centrais da explicação na ciência e saberá iden-tificar os processos de mudanças científicas e os principais problemas filosóficos desta área, como compreender o realismo científico e as críticas à ciência. No primeiro tópico desta Uni-dade, Ciência, Filosofia da Ciência e o Raciocínio Científico, responderemos à pergunta “o que é ciência?” e neste caminho apresentaremos as origens da ciência moderna. Posteriormente, respondemos à pergunta “o que é filosofia da ciência?” e neste caminho introduziremos vários temas centrais à Filosofia da Ciência, como as discussões entre a ciência e pseudociência, o raciocínio científico, a dedução e indução, o problema de Hume, a inferência à melhor expli-cação e as questões de probabilidade e indução. No segundo tópico, Explicação, Realismo e Antirrealismo na Ciência, você poderá estudar sobre o modelo da lei de cobertura da explica-ção de Hempel e a partir deste modelo compreender o problema da simetria, da irrelevância e da explicação e causalidade na ciência. Além disso, poderá entender a diferença das posições do realismo e do antirrealismo na ciência. No terceiro tópico, Mudança científica e problemas filosóficos, vamos aprofundar as discussões sobre o legado de Thomas Kuhn na filosofia da ciência. Temas como a estrutura das revoluções científicas, a incomensurabilidade e a carga teórica dos dados e a racionalidade da ciência serão centrais para entendermos a Filosofia da Ciência. Além disso, neste tópico você poderá compreender questões da filosofia da ciência especializada ou específica, como problemas filosóficos na física e na biologia.

Na Unidade 2, Filosofia da Mente I, você poderá ler sobre as noções básicas de filoso-fia da mente e seus problemas filosóficos, compreender os argumentos e contra-argumentos dos dualismos de substância e de propriedade e identificar as principais características do idealismo, behaviorismo e o problema de outras mentes na filosofia da mente. No primeiro tópico dessa Unidade, vamos introduzir brevemente aspectos da mente, como o pensamento e a experiência, a consciência, os qualia, a emoção, entre outros temas que serão explorados no decorrer deste Livro Didático. No segundo tópico o tema central será explorar com mais profundidade o dualismo de substância e o dualismo de propriedade na filosofia da mente. No terceiro tópico você vai ler sobre o idealismo na filosofia da mente. Serão introduzidas as pers-pectivas do pampsiquismo e do solipsismo. Para cada um desses posicionamentos você verá os argumentos a favor e os contra-argumentos. Além disso, você vai conhecer a abordagem behaviorista na filosofia da mente e o problema filosófico das “outras mentes”.

A Unidade 3, Filosofia da Mente II, introduzirá noções básicas do funcionalismo e da causação mental, apresentará os argumentos e contra-argumentos do materialismo elimina-tivo e questões dos estados perceptivos, das imagens mentais e estados emocionais e per-mitirá que você identifique as principais características do livre-arbítrio e dos estados mentais, das teorias da intencionalidade e da representação mental. No primeiro tópico dessa Unidade, exploraremos o funcionalismo na filosofia da mente, que é a doutrina de que o que torna algo um estado mental de um tipo particular não depende de sua constituição interna, mas sim da maneira como funciona, ou do papel que desempenha, no sistema do qual é uma parte.

APRESENTAÇÃO

Page 4: FilosoFia da CiênCia e da Mente

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Os UNIs eram blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Agora, você conhecerá a GIO, que ajudará você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão.

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Após estudarmos sobre o funcionalismo, vamos ver questões sobre a existência e a natureza da causalidade mental, pois estas são proeminentes nas discussões contemporâneas sobre a mente e a ação humana. No segundo tópico, o centro da discussão será o materialismo eli-minativo, que é uma forma extrema de monismo fisicalista que nega a existência de qualquer coisa mental ou, mais tipicamente, de alguma gama limitada de fenômenos mentais. Além disso, vamos estudar sobre estados mentais como a percepção, a imagem mental e a emo-ção. Finalmente, no terceiro tópico dessa Unidade e último tópico deste Livro, vamos investi-gar as questões sobre o livre-arbítrio, a intencionalidade e a representação mental.

Desejo uma boa jornada a todos, rumo à edificação da educação e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da Filosofia da Ciência e da Mente.

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser.

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Page 7: FilosoFia da CiênCia e da Mente

SUMÁRIOUNIDADE 1 - A FILOSOFIA DA CIÊNCIA ................................................................................ 1

TÓPICO 1 - CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO .........................31 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................32 O QUE É CIÊNCIA? ...............................................................................................................3

2.1 AS ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA ................................................................................................43 O QUE É FILOSOFIA DA CIÊNCIA? ....................................................................................10

3.1 CIÊNCIA E PSEUDOCIÊNCIA ..............................................................................................................124 RACIOCÍNIO CIENTÍFICO .................................................................................................. 15

4.1 DEDUÇÃO E INDUÇÃO ........................................................................................................................ 154.2 O PROBLEMA DE HUME .................................................................................................................... 184.3 INFERÊNCIA À MELHOR EXPLICAÇÃO ...........................................................................................214.4 PROBABILIDADE E INDUÇÃO ..........................................................................................................24

RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................................ 29AUTOATIVIDADE .................................................................................................................. 31

TÓPICO 2 - EXPLICAÇÃO, REALISMO E ANTIRREALISMO NA CIÊNCIA .......................... 331 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 332 MODELO DA LEI DE COBERTURA DA EXPLICAÇÃO DE HEMPEL .................................. 34

2.1 O PROBLEMA DA SIMETRIA .............................................................................................................. 372.2 O PROBLEMA DA IRRELEVÂNCIA ...................................................................................................392.3 EXPLICAÇÃO E CAUSALIDADE .......................................................................................................39

3 A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO?................................................................................ 423.1 EXPLICAÇÃO E REDUÇÃO .................................................................................................................44

LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................................................47RESUMO DO TÓPICO 2 .........................................................................................................59AUTOATIVIDADE .................................................................................................................. 61

TÓPICO 3 - MUDANÇA CIENTÍFICA E PROBLEMAS FILOSÓFICOS .................................. 631 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 632 FILOSOFIA DA CIÊNCIA LÓGICO-POSITIVISTA.............................................................. 633 A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS .......................................................... 66

3.1 INCOMENSURABILIDADE E A CARGA TEÓRICA DOS DADOS ...................................................693.2 KUHN E A RACIONALIDADE DA CIÊNCIA ...................................................................................... 733.3 O LEGADO DE KUHN .......................................................................................................................... 75

4 PROBLEMAS FILOSÓFICOS EM FÍSICA E BIOLOGIA ...................................................... 774.1 LEIBNIZ VERSUS NEWTON SOBRE O ESPAÇO ABSOLUTO ....................................................... 774.2 O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO BIOLÓGICA ...........................................................................83

RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................................ 88AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 90

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UNIDADE 2 — FILOSOFIA DA MENTE I ................................................................................ 91

TÓPICO 1 — ASPECTOS DA MENTE E PROBLEMAS FILOSÓFICOS ................................... 931 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 932 ASPECTOS DA MENTE ..................................................................................................... 93

2.1 PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA ........................................................................................................942.2 CONSCIENTE E INCONSCIENTE ......................................................................................................942.3 QUALIA ..................................................................................................................................................952.4 PERCEPÇÃO SENSORIAL ..................................................................................................................952.5 EMOÇÃO ................................................................................................................................................962.6 IMAGENS ...............................................................................................................................................962.7 VONTADE E AÇÃO ............................................................................................................................... 972.8 SELF ....................................................................................................................................................... 972.9 ATITUDES PROPOSICIONAIS ............................................................................................................ 97

3 PROBLEMAS FILOSÓFICOS .............................................................................................993.1 PROBLEMA MENTE-CORPO ..............................................................................................................993.2 OUTROS PROBLEMAS .....................................................................................................................102

3.2.1 O problema da percepção .....................................................................................................1023.2.2 O problema de outras mentes.............................................................................................1033.2.3 O problema da inteligência artificial ..................................................................................1043.2.4 O problema da consciência .................................................................................................1053.2.5 O problema da intencionalidade .........................................................................................1053.2.6 O problema do livre-arbítrio .................................................................................................1063.2.7 O problema da identidade pessoal .....................................................................................106

RESUMO DO TÓPICO 1 .......................................................................................................108AUTOATIVIDADE ................................................................................................................109

TÓPICO 2 - DUALISMO DE SUBSTÂNCIA E DE PROPRIEDADE ........................................1111 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................1112 ARGUMENTOS PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS ................................................. 112

2.1 ARGUMENTOS DA LEI DE LEIBNIZ .................................................................................................1122.1.1 Crítica aos argumentos da lei de Leibniz: falácia intencional ........................................115

2.2 ARGUMENTOS DO HIATO EXPLICATIVO ....................................................................................... 1172.2.1 Críticas aos argumentos do hiato explicativo ...................................................................119

2.3 ARGUMENTOS MODAIS ...................................................................................................................1202.3.1 Crítica aos argumentos modais ............................................................................................121

3 INTERAÇÃO MENTE-CORPO COMO UM PROBLEMA PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS ...........................................................................................................122

3.1 OBJEÇÃO DA PRINCESA ELISABETH ........................................................................................... 1233.2 AS ALTERNATIVAS DUALISTAS AO INTERACIONISMO CARTESIANO................................... 124

4 DUALISMO DE PROPRIEDADE .......................................................................................1264.1 O ESPECTRO INVERTIDO ................................................................................................................. 1274.2 ATAQUE DOS ZUMBIS ...................................................................................................................... 1294.3 O ARGUMENTO DO CONHECIMENTO ............................................................................................1314.4 O ARGUMENTO DO HIATO EXPLICATIVO APLICADO AO DUALISMO DE PROPRIEDADE ............. 133

5 O DUALISMO DE PROPRIEDADE LEVA AO EPIFENOMENALISMO? .............................1356 COMO VOCÊ SABE QUE NÃO É UM ZUMBI? ................................................................... 137RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................139AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 140

Page 9: FilosoFia da CiênCia e da Mente

TÓPICO 3 - IDEALISMO, BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES ....................................... 1411 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1412 IDEALISMO, SOLIPSISMO E PAMPSIQUISMO ............................................................... 141

2.1 SOLIPSISMO: SOU APENAS EU? .................................................................................................... 1422.2 IDEALISMO: ESTÁ TUDO NA MENTE .............................................................................................146

2.2.1 O argumento de Berkeley da dor ......................................................................................... 1472.2.2 O argumento de Berkeley a partir da relatividade perceptiva: o balde de Berkeley .........1482.2.3 O argumento central de Berkeley .......................................................................................1482.2.4 Por que Berkeley não é um solipsista ............................................................................... 1492.2.5 Argumentando contra o idealismo .................................................................................... 149

2.3 PAMPSIQUISMO: A MENTE ESTÁ EM TODA PARTE ..................................................................1502.3.1 O argumento da analogia .......................................................................................................1512.3.2 O argumento nada do nada ................................................................................................. 1522.3.3 O argumento evolutivo .......................................................................................................... 1532.3.4 Argumentando contra o pampsiquismo: o problema da combinação ..................... 153

3 BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES .............................................................................1543.1 A HISTÓRIA DO BEHAVIORISMO.....................................................................................................156

3.1.1 Ludwig Wittgenstein e o argumento da linguagem privada ......................................... 1573.1.2 Gilbert Ryle contra o fantasma na máquina ..................................................................... 159

3.2 OBJEÇÕES AO BEHAVIORISMO ....................................................................................................1603.2.1 A objeção dos qualia ..............................................................................................................1603.2.2 Objeção de Sellars ...................................................................................................................1613.2.3 A objeção de Geach-Chisholm ........................................................................................... 162

4 O PROBLEMA FILOSÓFICO DAS OUTRAS MENTES ......................................................1634.1 A ASCENSÃO E QUEDA DO ARGUMENTO DA ANALOGIA .........................................................1644.2 NEGAÇÃO DA ASSIMETRIA ENTRE O AUTOCONHECIMENTO E O CONHECIMENTO DE OUTRAS MENTES .......................................................................................................................166

LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................... 167RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................... 172AUTOATIVIDADE ................................................................................................................ 173

UNIDADE 3 — FILOSOFIA DA MENTE II ............................................................................. 175

TÓPICO 1 — FUNCIONALISMO E CAUSAÇÃO MENTAL ..................................................... 1771 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1772 UMA BREVE HISTÓRIA DO FUNCIONALISMO................................................................1783 ARGUMENTOS A FAVOR DO FUNCIONALISMO ............................................................. 181

3.1 O ARGUMENTO CAUSAL ...................................................................................................................1813.2 O ARGUMENTO DA MÚLTIPLA REALIZABILIDADE ....................................................................182

4 AS VARIEDADES DO FUNCIONALISMO .........................................................................1854.1 O FUNCIONALISMO DA MÁQUINA DE TURING ...........................................................................1864.2 FUNCIONALISMO ANALÍTICO VERSUS FUNCIONALISMO EMPÍRICO................................... 187

5 ARGUMENTOS CONTRA O FUNCIONALISMO ................................................................1885.1 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DOS ZUMBIS CONTRA O FUNCIONALISMO ........................1885.2 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DO QUARTO CHINÊS CONTRA O FUNCIONALISMO ........189

6 A CAUSAÇÃO MENTAL .................................................................................................... 1916.1 O FECHAMENTO CAUSAL DO MUNDO FÍSICO ............................................................................ 1926.2 VISÕES BÁSICAS DA INTERAÇÃO................................................................................................. 193

6.2.1 Interacionismo ......................................................................................................................... 1946.2.2 Paralelismo ............................................................................................................................... 1946.2.3 Epifenomenalismo ................................................................................................................. 1956.2.4 Reducionismo.......................................................................................................................... 196

Page 10: FilosoFia da CiênCia e da Mente

6.3 QUALIA E EPIFENOMENALISMO ................................................................................................... 1966.3.1 O Zimbo de Dennett ...............................................................................................................198

6.4 MONISMO ANÔMALO ....................................................................................................................... 1996.5 O ARGUMENTO DA EXCLUSÃO CAUSAL-EXPLANATÓRIA .................................................... 202

RESUMO DO TÓPICO 1 ...................................................................................................... 204AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 205

TÓPICO 2 - MATERIALISMO ELIMINATIVO, PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO ....... 2071 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 2072 O MATERIALISMO ELIMINATIVO CONTEMPORÂNEO .................................................. 208

2.1 A PSICOLOGIA POPULAR COMO UMA TEORIA .......................................................................... 2092.2 O CONTRASTE ENTRE REDUÇÃO E ELIMINAÇÃO ....................................................................2102.3 MATERIALISMO ELIMINATIVO DO QUALIA .................................................................................. 216

3 PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO ................................................................. 2203.1 PERCEPÇÃO....................................................................................................................................... 220

3.1.1 Realismo direto e o argumento da ilusão .......................................................................... 2203.1.2 Teorias filosóficas da percepção ..........................................................................................222

3.2 IMAGENS MENTAIS .......................................................................................................................... 2253.2.1 Quão semelhantes são as imagens mentais com outros estados mentais?.......... 2263.2.2 As imagens mentais são a base para estados mentais como os pensamentos? ..............2273.2.3 Até que ponto, se houver, as imagens mentais são genuinamente imaginárias ou semelhantes a fotografias?........................................................................................... 228

3.3 EMOÇÃO ............................................................................................................................................. 2303.3.1 O que distingue emoções de outros estados mentais? ............................................... 2303.3.2 O que distingue emoções diferentes umas das outras?.............................................. 2313.3.3 As dificuldades em dar uma explicação unificada das emoções ............................... 231

RESUMO DO TÓPICO 2 ...................................................................................................... 233AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 234

TÓPICO 3 - DETERMINISMO E LIVRE-ARBÍTRIO ............................................................ 2351 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 2352 FONTES DO DETERMINISMO ......................................................................................... 236

2.1 DETERMINISMO FÍSICO ................................................................................................................... 2382.2 DETERMINISMO TEOLÓGICO ......................................................................................................... 2382.3 DETERMINISMO LÓGICO ................................................................................................................ 2392.4 DETERMINISMO ÉTICO ................................................................................................................... 2392.5 DETERMINISMO PSICOLÓGICO .................................................................................................... 240

3 COMPATIBILISMO .......................................................................................................... 2404 INCOMPATIBILISMO .......................................................................................................241

4.1 O ARGUMENTO DA ORIGEM OU DA CADEIA CAUSAL .............................................................. 2424.2 O ARGUMENTO DA CONSEQUÊNCIA .......................................................................................... 243

5 O LIVRE-ARBÍTRIO ........................................................................................................ 2445.1 O QUE É O ARBÍTRIO? ...................................................................................................................... 2445.2 EM QUE CONSISTE O “LIVRE” DO ARBÍTRIO? ........................................................................... 246

LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................. 249RESUMO DO TÓPICO 3 ...................................................................................................... 256AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 258

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 259

Page 11: FilosoFia da CiênCia e da Mente

1

UNIDADE 1 - A FILOSOFIA DA

CIÊNCIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• introduzir as noções básicas de filosofia da ciência e raciocínio científico;

• apresentar as questões centrais da explicação na ciência;

• identificar os processos de mudanças científicas e os principais problemas filosóficos;

• compreender o realismo científico e as críticas à ciência.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICOTÓPICO 2 – EXPLICAÇÃO, REALISMO E ANTIRREALISMO NA CIÊNCIATÓPICO 3 – MUDANÇA CIENTÍFICA E PROBLEMAS FILOSÓFICOS

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1!

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CIÊNCIA, FILOSOFIA DA CIÊNCIA E RACIOCÍNIO CIENTÍFICO

1 INTRODUÇÃO

Caro acadêmico, neste primeiro tópico, é preciso se concentrar na proposta de uma introdução à investigação filosófica da ciência. Para isso, primeiramente, elucidaremos o próprio objeto dessa investigação: o que é a ciência?

A seguir, levantaremos a reflexão sobre os problemas ou questões que perfazem o trabalho de filosofar sobre a ciência, apresentando, assim, os temas que serão explorados no decorrer desta primeira unidade.

Finalmente, apresentaremos as principais formulações da questão do raciocínio científico, além da centralidade desse tema para a filosofia da ciência.

Muito bem, você está pronto? Então, vamos lá!

TÓPICO 1 - UNIDADE 1

2 O QUE É CIÊNCIA?

O que é ciência? Essa pergunta pode parecer fácil de responder: todo mundo sabe que assuntos como física, química e biologia constituem ciência, enquanto assuntos como arte, música e teologia não. Como filósofos, perguntamos o que é ciência, mas esse não é o tipo de resposta que queremos. Não estamos pedindo uma mera lista das atividades que, geralmente, são chamadas de "ciência". Estamos perguntando qual característica comum todas as coisas, nessa lista, compartilham, ou seja, o que é que faz de algo uma ciência? Assim, nossa questão não é tão trivial.

Você ainda pode pensar que a questão é relativamente simples. Certamente, a ciência é apenas a tentativa de entender, explicar e prever o mundo em que vivemos. É, certamente, uma resposta razoável, mas será que é apenas isso? Afinal, várias religiões também tentam entender e explicar o mundo, mas a religião não é, geralmente, considerada um ramo da ciência. Da mesma forma, astrologia e adivinhação são tentativas de prever o futuro, mas a maioria das pessoas não descreveria essas atividades como ciência.

Os historiadores tentam entender e explicar o que aconteceu no passado, mas a história não é, geralmente, classificada como ciência. Tal como acontece com muitas questões filosóficas, a questão "o que é ciência?" acaba por ser mais complicada do que parece à primeira vista (FRENCH, 2009).

Page 14: FilosoFia da CiênCia e da Mente

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Muitas pessoas acreditam que as características distintivas da ciência estão nos métodos específicos que os cientistas usam para investigar o mundo. Essa sugestão é plausível. Muitas ciências empregam métodos distintos de uma investigação que não são encontrados em disciplinas não científicas. Um exemplo óbvio é o uso de experimentos, que, historicamente, marcam um ponto de virada no desenvolvimento da ciência moderna.

Nem todas as ciências são experimentais – os astrônomos, obviamente, não podem fazer experimentos nos céus, mas têm que se contentar com a observação cuidadosa. O mesmo acontece com muitas ciências sociais. Outra característica importante da ciência é a construção de teorias. Os cientistas não registram, simplesmente, os resultados da experiência e da observação em um diário de bordo – eles, geralmente, querem explicar esses resultados em termos de uma teoria geral. Isso nem sempre é fácil de fazer, mas existiram alguns sucessos notáveis. Um dos principais problemas da filosofia da ciência é entender as técnicas como experimentação, observação e construção de teorias que permitiram, ao cientista, desvendar muitos dos segredos da natureza (CHALMERS, 1993).

2.1 AS ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA

Nas escolas e universidades de hoje, a ciência é ensinada de uma maneira basicamente a-histórica. Os livros didáticos, apresentam as ideias-chave de uma disciplina científica da forma mais conveniente possível, com pouca menção ao longo e muitas vezes tortuoso processo histórico que levou à sua descoberta. Como estratégia pedagógica, isso faz sentido. Mas alguma apreciação da história das ideias científicas é útil para entender as questões que interessam aos filósofos da ciência. De fato, como veremos mais adiante neste livro, argumenta-se que a atenção à história da ciência é indispensável para fazer uma boa filosofia da ciência.

As origens da ciência moderna estão em um período de rápido desenvolvimento científico que ocorreu na Europa entre os anos de 1500 e 1750. Agora, referimo-nos como a revolução científica (ROSA, 2012b). É claro que as investigações científicas foram realizadas nos tempos antigos e medievais, também, a Revolução Científica não veio do nada.

Nesses períodos anteriores, a visão de mundo dominante era o aristotelismo, em homenagem ao antigo filósofo grego Aristóteles, que apresentou teorias detalhadas em física, biologia, astronomia e cosmologia (ROSA, 2012a). Todavia, as ideias de Aristóteles pareceriam muito estranhas para um cientista moderno, assim como seus métodos de investigação. Para escolher apenas um exemplo, ele acreditava que todos os corpos terrestres são compostos de apenas quatro elementos: terra, fogo, ar e água (ARISTÓTELES, 2009). Essa visão está obviamente em desacordo com o que a química moderna nos diz.

Page 15: FilosoFia da CiênCia e da Mente

5

O primeiro passo crucial no desenvolvimento da visão científica moderna do mundo foi a revolução copernicana. Em 1542, o astrônomo polonês Nicolaus Copernicus (1473-1543) publicou um livro atacando o modelo geocêntrico do universo, que colocou a terra estacionária no centro do universo com os planetas e o sol em órbita ao redor. A astronomia geocêntrica, também conhecida como astronomia ptolomaica, em homenagem ao antigo astrônomo grego Ptolomeu, estava no coração da visão de mundo aristotélica, e passou praticamente inquestionável por 1.800 anos (ROSA, 2012a). Contudo, Copernicus sugeriu uma alternativa: o sol era o centro fixo do universo, e os planetas, incluindo a Terra, estavam em órbita ao redor do sol.

FIGURA 1 – PLANISPHAERIUM COPERNICANUM, ANDREAS CELLARIUS - 1660 (SISTEMA PLANETÁRIO HELIOCÊNTRICO DE COPERNICUS)

FONTE: <https://images.app.goo.gl/vMK59fjZq1BdX2NP8>. Acesso em: 27 jul. 2020.

Nesse modelo heliocêntrico, a Terra é considerada apenas um outro planeta e, portanto, perde o status único que a tradição lhe concedeu. A teoria de Copernicus encontrou, inicialmente, muita resistência. A Igreja Católica, por exemplo, a considerou como contrária às Escrituras. Em 1616, proibiram livros que defendiam o movimento da Terra, mas, dentro de 100 anos, o copernicanismo se tornou ortodoxia científica estabelecida.

A inovação de Copernicus não levou, apenas, a uma melhor astronomia. Indiretamente, levou ao desenvolvimento da física moderna, através do trabalho de Johannes Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642). Kepler descobriu que os planetas não se movem em órbitas circulares ao redor do sol, como Copernicus pensava, mas sim, em elipses. Essa foi sua "primeira lei" crucial do movimento planetário; sua segunda e terceira lei especificam as velocidades nas quais os planetas orbitam o sol (ROSA, 2012b).

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Tomadas em conjunto, as leis de Kepler forneceram uma teoria planetária muito superior à que já havia sido avançada antes, resolvendo problemas que haviam confundido os astrônomos por séculos. Galileu era um defensor do copernicanismo por toda a vida, um dos primeiros pioneiros do telescópio. Quando ele apontou seu telescópio para o céu, fez uma riqueza de descobertas surpreendentes, incluindo montanhas na lua, uma vasta gama de estrelas, manchas solares e as luas de Júpiter (GEYMONAT, 1997). Tudo isso conflitava profundamente com a cosmologia aristotélica, e desempenhou um papel crucial na conversão da comunidade científica ao copernicanismo.

A contribuição mais duradoura de Galileu, no entanto, não estava na astronomia, mas na mecânica. Ele refutou a teoria aristotélica de que corpos mais pesados caem mais rápido do que os mais leves. No lugar dessa teoria, Galileu fez a sugestão contraintuitiva de que todos os corpos em queda livre cairiam em direção à Terra no mesmo tempo de queda, com aceleração constante, independentemente do seu peso. Claro que, na prática, se você soltar uma pena e uma bala de canhão da mesma altura, a bala de canhão aterrissará primeiro, mas Galileu argumentou que isso se deve, simplesmente, à resistência do ar, pois, no vácuo, aterrissariam juntos.

Além disso, ele argumentou que os corpos que caem livremente aceleram uniformemente, ou seja, ganham incrementos iguais de velocidade em tempos iguais; isso é conhecido como Lei da Queda dos Corpos de Galileu (MARICONDA; VASCONCELOS, 2006). Galileu forneceu evidências persuasivas, embora não totalmente conclusivas para essa lei, que formava a peça central da sua teoria da mecânica.

FIGURA 2 – O EXPERIMENTO DE GALILEU NA TORRE INCLINADA DE PISA SOBRE A VELOCIDADE DE QUEDA DOS OBJETOS

FONTE: http://4.bp.blogspot.com/-MhuUlTqcSgU/UpziERepkLI/AAAAAAAAExE/s-KzZHEfaHk/s400/gali-leo+falling+objects.gif . Acesso em: 27 jul. 2020.

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Galileu é, geralmente, considerado o primeiro físico verdadeiramente moderno. Ele foi o primeiro a mostrar que a linguagem da matemática poderia ser usada para descrever o comportamento de objetos reais no mundo material, como corpos em queda, projéteis etc. Para nós, isso parece óbvio, pois as teorias científicas atuais são rotineiramente formuladas em linguagem matemática, não só na ciência física, mas também na biologia e na economia (MARICONDA; VASCONCELOS, 2006). Todavia, nos tempos de Galileu, isso não era óbvio: a matemática era amplamente considerada para lidar com entidades puramente abstratas e, portanto, inaplicável à realidade física. Outro aspecto inovador do trabalho de Galileu foi sua ênfase na importância de testar hipóteses experimentalmente (ROSA, 2012b).

Para o cientista moderno, isso pode parecer novamente óbvio, mas, na época em que Galileu estava trabalhando, a experimentação não era, geralmente, considerada um meio confiável de obter conhecimento. A ênfase de Galileu nos testes experimentais marca o início de uma abordagem empírica para o estudo da natureza.

O período após a morte de Galileu viu a revolução científica ganhar rapidamente impulso. O filósofo, matemático e cientista francês René Descartes (1596-1650) desenvolveu uma nova "filosofia mecânica" radical, segundo a qual o mundo físico consiste, simplesmente, de partículas inertes de matéria interagindo e colidindo umas com as outras. As leis que governam o movimento dessas partículas ou "corpúsculos" detinham a chave para entender a estrutura do universo copernicano, acreditava Descartes (BROUGHTON; CARRIERO, 2011).

A filosofia mecânica prometia explicar todos os fenômenos observáveis em termos do movimento desses corpúsculos inertes e insensíveis e, rapidamente, tornou-se a visão científica dominante da segunda metade do século XVII; até certo ponto, ainda está conosco hoje. Versões da filosofia mecânica foram adotadas por pessoas como Christiaan Huygens, Pierre Gassendi, Robert Hooke, Robert Boyle e outras (ROSA, 2012a; 2012b). Sua ampla aceitação marcou a queda final da visão de mundo aristotélica.

A revolução científica culminou no trabalho de Isaac Newton (1643-1727), cujas realizações permanecem sem paralelo na história da ciência. A obra-prima de Newton foi seus Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, publicada em 1687. Newton concordou com os filósofos mecânicos, que o universo consiste, simplesmente, de partículas em movimento, mas procurou melhorar as leis de movimento de Descartes e as regras de colisão (NEWTON, 2004). O resultado foi uma teoria dinâmica e mecânica de grande potência, baseada nas três leis do movimento de Newton e seu famoso princípio da gravitação universal. De acordo com esse princípio, todo corpo no universo exerce uma atração gravitacional sobre todos os outros corpos; a força da atração entre dois corpos depende do produto de suas massas e da distância entre eles ao quadrado. As leis do

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movimento, então, especificam como essa força gravitacional afeta os movimentos dos corpos. Newton elaborou sua teoria com grande precisão matemática e rigor, inventando a técnica matemática que hoje chamamos de "cálculo". Surpreendentemente, Newton foi capaz de mostrar que as leis do movimento planetário de Kepler e as leis da queda dos corpos de Galileu (ambas com algumas pequenas modificações) eram consequências lógicas de suas leis de movimento e gravitação (GLEICK, 2004). Em outras palavras, as mesmas leis explicariam os movimentos de corpos nos domínios terrestre e celestial, e foram formuladas por Newton em uma forma quantitativa precisa.

A física newtoniana forneceu a estrutura da ciência para os próximos 200 anos, substituindo, rapidamente, a física cartesiana. A confiança científica cresceu rapidamente nesse período, em grande parte, devido ao sucesso da teoria de Newton. Acreditava-se, amplamente, ter revelado o verdadeiro funcionamento da natureza e ser capaz de explicar tudo, pelo menos em princípio (ROSA, 2012b; 2012c). Tentativas detalhadas foram feitas, para estender o modo de explicação newtoniano a mais e mais fenômenos. Nos séculos XVIII e XIX vieram avanços científicos notáveis, particularmente, no estudo da química, óptica, energia, termodinâmica e eletromagnetismo. Contudo, na maior parte, esses desenvolvimentos foram considerados dentro de uma concepção amplamente newtoniana do universo. Os cientistas aceitaram a concepção de Newton como essencialmente correta; tudo o que restava para ser feito era preencher os detalhes.

A confiança no quadro newtoniano foi abalada nos primeiros anos do século XX, graças a dois novos e revolucionários desenvolvimentos da física: a teoria da relatividade e a mecânica quântica. A teoria da relatividade, descoberta por Einstein, mostrou que a mecânica newtoniana não dá os resultados corretos, quando aplicada a objetos muito massivos, ou objetos que se movem a velocidades muito altas. A mecânica quântica, inversamente, mostra que a teoria newtoniana não funciona quando aplicada em escala muito pequena, a partículas subatômicas (ROSA, 2012d).

Tanto a teoria da relatividade, quanto a mecânica quântica, especialmente a última, são teorias muito estranhas e radicais, fazendo afirmações sobre a natureza da realidade que muitas pessoas acham difícil aceitar ou, até mesmo, entender. Seu surgimento causou uma considerável reviravolta conceitual na física, que continua até hoje.

Até agora, nosso breve relato da história da ciência enfocou, principalmente, a física. Isso não é um acidente, já que a física é historicamente muito importante e, em certo sentido, a mais fundamental de todas as disciplinas científicas, pois os objetos que outras ciências estudam são, eles próprios, compostos de entidades físicas. Considere botânica, por exemplo. Os botânicos estudam as plantas, que são compostas, basicamente, de moléculas e átomos, que são partículas físicas. Portanto, a botânica é, obviamente, menos fundamental do que a física, embora isso não signifique que seja menos importante. Esse é um ponto ao qual retornaremos mais adiante. Contudo, mesmo uma breve descrição das origens da ciência moderna seria incompleta se omitisse toda menção às ciências não físicas.

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Em biologia, o evento que se destaca é a descoberta da teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin (2004), publicada na obra A Origem das Espécies, de 1859. Até então, acreditava-se, amplamente, que as diferentes espécies haviam sido criadas separadamente por Deus, como o Livro de Gênesis ensina. Contudo, Darwin argumentou que as espécies contemporâneas realmente evoluíram dos ancestrais, através de um processo conhecido como seleção natural. A seleção natural ocorre quando alguns organismos deixam mais descendentes do que outros, dependendo das suas características físicas; se essas características forem herdadas por seus descendentes, ao longo do tempo, a população se tornará cada vez mais adaptada ao seu meio ambiente.

Por mais simples que seja esse processo, ao longo de muitas gerações, pode fazer com que uma espécie evolua para uma espécie totalmente nova, argumentou Darwin. Tão persuasiva foi a evidência que Darwin alegou para sua teoria que, no início do século XX, ela era aceita como ortodoxia científica, apesar da considerável oposição teológica. O trabalho subsequente forneceu uma confirmação impressionante da teoria de Darwin, que constitui a peça central da visão biológica moderna do mundo (ROSA, 2012d).

O século XX testemunhou outra revolução na biologia, que ainda não está completa: o surgimento da biologia molecular, em particular, a genética molecular. Em 1953, Watson e Crick descobriram a estrutura do DNA, o material hereditário que forma os genes nas células das criaturas vivas (FERREIRA, 2003).

A descoberta de Watson e Crick explicou como a informação genética pode ser copiada de uma célula para outra e, portanto, transmitida dos pais para os descendentes, explicando, assim, por que os descendentes tendem a se assemelhar aos pais. Sua descoberta abriu uma excitante nova área de pesquisa biológica. Nos 50 anos desde o trabalho de Watson e Crick, a biologia molecular cresceu rapidamente, transformando nossa compreensão da herança e de como os genes constroem organismos. A recente tentativa de fornecer uma descrição em nível molecular do conjunto completo de genes em um ser humano, conhecido como Projeto Genoma Humano, é uma indicação de até onde a biologia molecular chegou. O século XXI vai ver mais desenvolvimentos interessantes nesse campo.

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FIGURA 3 – JAMES WATSON E FRANCIS CRICK COM A FAMOSA “DUPLA HÉLICE” - SEU MODELO MOLECULAR DA ESTRUTURA DO DNA, DESCOBERTO EM 1953

FONTE: https://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/14024474.jpeg . Acesso em: 27 jul. 2020.

Mais recursos foram dedicados à pesquisa científica nos últimos 100 anos do que os séculos anteriores somados juntos. Um resultado foi uma explosão de novas disciplinas científicas, como ciência da computação, inteligência artificial, linguística e neurociência. Possivelmente, o evento mais significativo dos últimos 30 anos é o surgimento da ciência cognitiva, que estuda vários aspectos da cognição humana, como percepção, memória, aprendizagem e raciocínio, e transformou a psicologia tradicional. Grande parte do ímpeto para a ciência cognitiva vem da ideia de que a mente humana é, em alguns aspectos, semelhante a um computador e, portanto, que os processos mentais humanos podem ser compreendidos, comparando-os às operações que os computadores realizam. A ciência cognitiva ainda está em sua infância, mas promete revelar muito sobre o funcionamento da mente. As ciências sociais, especialmente, a economia e a sociologia, também floresceram no século XX, embora muitas pessoas acreditem que ainda estão atrás das ciências naturais em termos de sofisticação e rigor (ECHEVERRÍA, 2003). Essa é uma questão à qual retornaremos mais adiante neste livro.

3 O QUE É FILOSOFIA DA CIÊNCIA?

A principal tarefa da filosofia da ciência é analisar os métodos de pesquisa usados em várias ciências. Você pode se perguntar: por que essa tarefa deveria recair sobre os filósofos, e não para os próprios cientistas? Essa é uma boa pergunta. Parte da resposta é que olhar para a ciência a partir de uma perspectiva filosófica permite investigar, mais profundamente, para descobrir suposições que estão implícitas na prática científica, mas que os cientistas não discutem explicitamente (FRENCH, 2009).

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Um excelente livro introdutório sobre a Filosofia da Ciência é Ciência: conceito-chave em filosofia, de Steven French (2009). Essa obra faz parte da coleção conceitos-chave em filosofia, uma série de introduções concisas, acessíveis e interessantes às ideias centrais e aos temas encontrados no estudo da filosofia.

DICAS

Para ilustrar, considere a experimentação científica. Suponha que um cientista faça uma experiência e obtenha um resultado específico. Ele repete o experimento algumas vezes e continua recebendo o mesmo resultado. Depois disso, ele, provavelmente, parará, confiante de que, se continuar repetindo o experimento, sob as mesmas condições, continuaria obtendo o mesmo resultado. Essa suposição pode parecer óbvia, mas, como filósofos, queremos questioná-la. Por que supor que as futuras repetições do experimento produzirão o mesmo resultado? Como sabemos que isso é verdade? É improvável que o cientista passe muito tempo intrigado com essas questões um tanto curiosas: ele, provavelmente, tem coisas melhores para fazer. São questões essencialmente filosóficas, às quais retornamos adiante.

Assim, parte do trabalho da filosofia da ciência é questionar suposições que os cientistas tomam como certas. Contudo, seria errado sugerir que os cientistas nunca discutem questões filosóficas. De fato, historicamente, muitos cientistas têm desempenhado um papel importante no desenvolvimento da filosofia da ciência (WEINERT, 2005). Descartes, Newton e Einstein são exemplos proeminentes. Cada um deles estava profundamente interessado em questões filosóficas, sobre como a ciência deveria proceder, quais os métodos de investigação deveriam usar, quanta confiança deveríamos depositar nesses métodos, se há limites para o conhecimento científico, e assim por diante. Como veremos, essas questões ainda estão no centro da filosofia da ciência contemporânea.

Assim, as questões que interessam aos filósofos da ciência não são "meramente filosóficas"; pelo contrário, atraíram a atenção de alguns dos maiores cientistas de todos. Dito isso, deve-se admitir que muitos cientistas, hoje, têm pouco interesse em filosofia da ciência e sabem pouco sobre isso. Embora isso seja lamentável, não é uma indicação de que questões filosóficas não são mais relevantes. Pelo contrário, é uma consequência da natureza cada vez mais especializada da ciência e da polarização entre as ciências e as humanidades, caracterizando o sistema educacional moderno.

Você ainda pode estar se perguntando, exatamente, o que é filosofia da ciência? Dizer que "estuda os métodos da ciência", como fizemos, não é, realmente, dizer muito. Em vez de tentar fornecer uma definição mais informativa, é preciso prosseguir em frente para considerar um problema típico da filosofia da ciência.

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3.1 CIÊNCIA E PSEUDOCIÊNCIA

Lembre-se da questão com a qual começamos: o que é ciência? Karl Popper (1902-1994), um filósofo da ciência influente do século XX, achava que a característica fundamental de uma teoria científica é que ela deveria ser falsificável (POPPER, 2001).

Chamar uma teoria de falsificável não quer dizer que seja falsa. Pelo contrário, isso significa que a teoria faz algumas previsões definidas que são capazes de serem testadas contra a experiência. Se essas previsões se revelarem erradas, então, a teoria foi falsificada ou refutada. Assim, uma teoria falsificável é uma que podemos descobrir ser falsa, não é compatível com todos os possíveis cursos de experiência. Popper (2008) achava que algumas teorias supostamente científicas não satisfaziam essa condição, portanto, não mereciam ser chamadas de ciência, ao contrário, elas eram, meramente, pseudociência.

A teoria psicanalítica de Freud foi um dos exemplos favoritos de pseudociência de Popper. De acordo com Popper (1987), a teoria de Freud poderia ser reconciliada com quaisquer descobertas empíricas. Qualquer que seja o comportamento de um paciente, os freudianos poderiam encontrar uma explicação em termos de sua teoria; eles nunca admitiriam que sua teoria estava errada. Popper ilustrou seu argumento com o seguinte exemplo: imagine um homem que empurra uma criança para um rio com a intenção de assassiná-la, e outro homem que sacrifica sua vida para salvar a criança. Os freudianos podem explicar o comportamento de ambos os homens com igual facilidade: o primeiro foi reprimido e, o segundo, alcançou a sublimação. Popper argumentou que, através do uso de conceitos como repressão, sublimação e desejos inconscientes, a teoria de Freud poderia ser tornada compatível com quaisquer dados clínicos; era, portanto, infalsificável.

O mesmo aconteceu com a teoria da história de Marx, sustentou Popper (1974). Marx afirmou que, nas sociedades industrializadas em todo o mundo, o capitalismo daria lugar ao socialismo e, finalmente, ao comunismo. Todavia, quando isso não aconteceu, em vez de admitir que a teoria de Marx estava errada, os marxistas inventariam uma explicação ad hoc, para explicar que o motivo sobre o que aconteceu era, na verdade, perfeitamente consistente com sua teoria. Por exemplo, eles podem dizer que o inevitável progresso no comunismo foi temporariamente retardado pela ascensão do estado de bem-estar social, que "amoleceu" o proletariado e enfraqueceu seu zelo revolucionário. Nesse tipo de caminho, a teoria de Marx poderia ser compatível com qualquer curso possível de eventos, assim como o de Freud. Portanto, nenhuma dessas teorias se qualifica como genuinamente científica, segundo o critério de Popper.

Popper contrastou as teorias de Freud e Marx com a teoria da gravitação de Einstein, também conhecida como relatividade geral. Diferentemente das teorias de Freud e Marx, a teoria de Einstein fez uma previsão bem definida: que raios de luz de estrelas distantes seriam desviados pelo campo gravitacional do sol. Normalmente,

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esse efeito seria impossível de observar, exceto durante um eclipse solar. Em 1919, o astrofísico inglês Sir Arthur Eddington organizou duas expedições para observar o eclipse solar daquele ano, uma para o Brasil e outra para a ilha do Príncipe, ao largo da costa atlântica da África, com o objetivo de testar a previsão de Einstein. A expedição confirmou que aquela luz das estrelas foi, de fato, defletida pelo sol, quase, exatamente, a quantidade que Einstein tinha previsto. Popper ficou muito impressionado com isso (OLIVEIRA, 2012). A teoria de Einstein fez uma previsão precisa e definida, que foi confirmada pelas observações. Se aqueles raios de luz de estrelas não tivessem sido desviados pelo sol, isso teria mostrado que Einstein estava errado. Então, a teoria de Einstein satisfaz o critério da falseabilidade.

A tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência é, intuitivamente, plausível. Há, certamente, algo suspeito sobre uma teoria que pode ser feita para se ajustar a qualquer dado empírico, mas alguns filósofos consideram o critério de Popper excessivamente simplista (BUNGE, 2007; HAACK, 2014). Popper criticou os freudianos e marxistas por esclarecerem quaisquer dados que parecessem entrar em conflito com suas teorias, em vez de aceitar que as teorias haviam sido refutadas. Isso, certamente, parece um procedimento suspeito. No entanto, há algumas evidências de que esse mesmo procedimento é rotineiramente usado por cientistas "respeitáveis" – que Popper não gostaria de acusar de se engajar em pseudociência – e levou a importantes descobertas científicas.

Outro exemplo astronômico pode ilustrar isso. A teoria gravitacional de Newton, que mencionamos anteriormente, fez previsões sobre os caminhos que os planetas deveriam seguir enquanto orbitam o sol. Na maior parte, essas previsões foram confirmadas pela observação. No entanto, a órbita observada de Urano consistentemente diferiu do que a teoria de Newton previu. Esse enigma foi resolvido em 1846, por dois cientistas, Adams, na Inglaterra, e Leverrier, na França, trabalhando de forma independente (FRIANÇA et al., 2008). Eles sugeriram que havia outro planeta, ainda não descoberto, exercendo uma força gravitacional adicional sobre Urano. Adams e Leverrier foram capazes de calcular a massa e posição que esse planeta teria que ter se a atração gravitacional fosse, de fato, responsável pelo estranho comportamento de Urano. Pouco depois, o planeta Netuno foi descoberto, quase exatamente onde Adams e Leverrier haviam previsto.

Agora, claramente, não devemos criticar o comportamento de Adams e Leverrier como "não científico", afinal, isso levou à descoberta de um novo planeta, mas eles fizeram exatamente o que Popper criticou os marxistas por fazerem. Eles começaram com uma teoria, a teoria da gravitação de Newton, com uma previsão incorreta sobre a órbita de Urano. Em vez de concluir que a teoria de Newton deveria estar errada, insistiram na teoria e tentaram explicar as observações conflitantes postulando um novo planeta. Da mesma forma, quando o capitalismo não mostrou

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sinais de dar lugar ao comunismo, os marxistas não concluíram que a teoria de Marx deveria estar errada, mas se ativeram à teoria e tentaram explicar as observações conflitantes de outras maneiras. Então, certamente, seria injusto acusar os marxistas de se engajarem em pseudociência se permitir que a ação de Adams e Leverrier contasse como ciência boa e exemplar.

Isso sugere que a tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência não pode estar certa, apesar da sua plausibilidade inicial, pois o exemplo de Adams e Leverrier não é, de forma alguma, atípico. Em geral, os cientistas, simplesmente, não abandonam suas teorias sempre que entram em conflito com os dados observacionais. Geralmente, eles procuram maneiras de eliminar o conflito sem ter que desistir da sua teoria (WEINERT, 2005).

Esse é um ponto para o qual retornaremos em outro tópico, mas vale a pena lembrar que, praticamente, toda teoria da ciência entra em conflito com algumas observações: encontrar uma teoria que se encaixe perfeitamente em todos os dados é extremamente difícil. Obviamente, se uma teoria persistentemente conflitar com mais e mais dados, e nenhuma maneira plausível de explicar o conflito for encontrada, eventualmente, terá que ser rejeitada, mas pouco progresso seria feito se os cientistas abandonassem suas teorias ao primeiro sinal de problema.

O fracasso do critério de demarcação de Popper levanta uma questão importante: É possível encontrar alguma característica comum compartilhada por todas as coisas que chamamos de "ciência" e não compartilhada por qualquer outra coisa? Popper assumiu que a resposta a essa pergunta era sim. Ele achava que as teorias de Freud e Marx eram, claramente, não científicas, então, deve haver alguma característica que falta e que as teorias científicas genuínas possuam. Contudo, se aceitamos ou não a avaliação negativa de Freud e Marx feita por Popper, sua suposição de que a ciência tem uma "natureza essencial" é questionável. Afinal, a ciência é uma atividade heterogênea, abrangendo uma ampla gama de diferentes disciplinas e teorias. Pode ser que elas compartilhem alguns padrões definidos que definem o que é uma ciência, mas pode ser que isso não seja o caso.

O filósofo Ludwig Wittgenstein (1979) argumentou que não há um conjunto fixo de características que definam o que é ser um "jogo". Em vez disso, há um conjunto de recursos que a maioria é possuído pelos jogos. Contudo, qualquer jogo, em particular, pode não ter nenhum dos recursos do aglomerado e, ainda, ser um jogo. Ele pode ser uma verdade da ciência. Se assim for, um critério simples para demarcar a ciência da pseudociência é improvável de ser encontrado.

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4 RACIOCÍNIO CIENTÍFICO

Os cientistas, frequentemente, dizem coisas sobre o mundo que, de outra forma, não teríamos acreditado. Por exemplo, os biólogos dizem que somos parentes próximos dos chimpanzés, os geólogos dizem que a África e a América do Sul eram um único continente, e os cosmólogos dizem que o universo está se expandindo, mas, como os cientistas chegaram a essas conclusões improváveis? Afinal, ninguém nunca viu uma espécie evoluir de outra, ou um único continente dividido em dois, ou o universo ficando maior. A resposta, é claro, é que os cientistas chegaram a essas crenças por um processo de raciocínio ou inferência (HACKING, 2009).

Seria bom saber mais sobre esse processo. Qual é, exatamente, a natureza do raciocínio científico? Quanta confiança devemos colocar nas inferências que os cientistas fazem? Esses são os temas para este tópico.

4.1 DEDUÇÃO E INDUÇÃO

Os lógicos fazem uma importante distinção entre os padrões de raciocínio dedutivo e indutivo (MURCHO, 2003). Um exemplo de um raciocínio dedutivo, ou inferência dedutiva, é o seguinte:

“todos os franceses gostam de vinho tinto”;Pierre é um francês;

→ Portanto, Pierre gosta de vinho tinto.

As duas primeiras afirmações são chamadas de premissas da inferência, enquanto a terceira é chamada de conclusão. Ela é uma inferência dedutiva, porque tem a seguinte propriedade: se as premissas são verdadeiras, então, a conclusão também deve ser verdadeira. Em outras palavras, se é verdade que todo francês gosta de vinho tinto, e se é verdade que Pierre é francês, conclui-se que Pierre, realmente, gosta de vinho tinto.

Isso, às vezes, é expresso dizendo que as premissas da inferência implicam a conclusão. É claro que as premissas dessa inferência quase, certamente, não são verdadeiras, pois é provável que existam franceses que não gostem de vinho tinto, mas essa não é a questão. O que torna a inferência dedutiva é a existência de uma relação apropriada entre premissas e conclusão, ou seja, se as premissas são verdadeiras, a conclusão também deve ser verdadeira. Se as premissas são, realmente, verdadeiras, é um assunto diferente, o que não afeta o status da inferência como dedutiva.

Nem todas as inferências são dedutivas. Considere o exemplo a seguir:

os primeiros cinco ovos na caixa estavam podres;todos os ovos têm a mesma data de validade estampada;

→ Portanto, o sexto ovo também estará podre.

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Isso parece um raciocínio perfeitamente sensato, no entanto, não é dedutivo, pois as premissas não implicam a conclusão. Mesmo que os primeiros cinco ovos estivessem estragados, e mesmo se todos os ovos tivessem a mesma data de validade estampada, isso não garante que o sexto ovo também esteja podre.

É perfeitamente concebível que o sexto ovo esteja perfeitamente bom. Em outras palavras, é logicamente possível que as premissas dessa inferência sejam verdadeiras e, ainda assim, a conclusão é falsa, de modo que a inferência não é dedutiva. Em vez disso, há uma inferência indutiva. Na inferência indutiva, ou no raciocínio indutivo, passamos de premissas sobre objetos que examinamos para conclusões sobre objetos que não examinamos, no exemplo, os ovos.

O raciocínio dedutivo é uma atividade muito mais segura do que o raciocínio indutivo (MURCHO, 2003). Quando raciocinamos dedutivamente, podemos ter a certeza de que, se começarmos com premissas verdadeiras, acabaremos com uma conclusão verdadeira, mas isso não vale para o raciocínio indutivo. Pelo contrário, o raciocínio indutivo é capaz de nos levar das premissas verdadeiras a uma conclusão falsa. Apesar desse defeito, parecemos confiar no raciocínio indutivo ao longo das nossas vidas, muitas vezes, sem, sequer, pensar nisso. Por exemplo, quando você liga o computador pela manhã, tem certeza de que ele não vai explodir na sua cara. Sabe o porquê? Porque você liga o seu computador todas as manhãs e ele nunca explodiu na sua cara até o momento. Contudo, a inferência de “até o momento, meu computador não explodiu quando eu liguei” para “meu computador não vai explodir quando eu o ligar nesse momento” é indutiva, não dedutiva. A premissa dessa inferência não implica tal conclusão. É logicamente possível que o seu computador explodirá dessa vez, mesmo que nunca tenha feito isso anteriormente.

Outros exemplos de raciocínio indutivo na vida cotidiana podem ser facilmente encontrados. Quando você gira o volante do seu carro no sentido anti-horário, você assume que o carro vai para a esquerda, e não para a direita. Sempre que você dirige no trânsito, você, efetivamente, aposta sua vida nessa suposição, mas o que te faz tão certo de que é verdade? Se alguém lhe pedisse para justificar o seu juízo, o que você diria? A menos que você seja mecânico, provavelmente, responderia: “toda vez que virei o volante no sentido anti-horário no passado, o carro foi para a esquerda. Portanto, o mesmo acontecerá quando eu girar o volante no sentido anti-horário dessa vez”. Novamente, essa é uma inferência indutiva, não dedutiva. Raciocinar indutivamente parece ser uma parte indispensável da vida cotidiana.

Os cientistas também usam o raciocínio indutivo? A resposta parece ser “sim”. Considere a doença genética conhecida como Síndrome de Down (SD). Os geneticistas dizem que as pessoas com SD têm um cromossomo adicional – eles têm 47 em vez dos 46 normais (PASTERNAK, 2002). Como eles sabem disso? A resposta, claro, é que eles examinaram um número elevado de pacientes com SD e descobriram que

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cada um tinha um cromossomo adicional. Eles, então, raciocinaram indutivamente para a conclusão de que todos os portadores de SD, incluindo aqueles que não haviam examinado, tinham um cromossomo adicional. É fácil observar que essa inferência é indutiva. O fato de que as pessoas com SD na amostra estudada tinham 47 cromossomos não prova que todas as pessoas com SD o tenham. É possível, embora improvável, que a amostra não seja representativa.

Esse exemplo não é, de forma alguma, isolado. Com efeito, os cientistas usam o raciocínio indutivo sempre que passam de dados limitados para conclusão mais geral, o que eles fazem o tempo todo.

Considere, por exemplo, o princípio da gravitação universal de Newton (ROSA, 2012d), relatado anteriormente, que diz que cada corpo no universo exerce uma atração gravitacional sobre todos os outros corpos. Agora, obviamente, Newton não chegou a esse princípio examinando cada corpo em todo o universo, não poderia ter feito isso. Em vez disso, ele viu que o princípio era verdadeiro para os planetas e o sol, e para objetos de vários tipos se movendo perto da superfície da Terra. A partir desses dados, ele inferiu que o princípio se aplica a todos os corpos. Novamente, essa inferência era, obviamente, indutiva: o fato de que o princípio de Newton vale para alguns corpos não garante seu valor para todos os corpos.

O papel central da indução na ciência, às vezes, é obscurecido pela maneira como falamos. Por exemplo, você pode ler uma reportagem de jornal que diz que os cientistas encontraram provas experimentais de que o milho geneticamente modificado é seguro para os seres humanos. O que isso significa? É que os cientistas testaram o milho em um número elevado de seres humanos, e, nenhum deles, sofreu qualquer dano.

Estritamente falando, isso não prova que o milho é seguro. A reportagem do jornal deveria, realmente, ter dito que os cientistas encontraram evidências extremamente boas de que o milho é seguro para os seres humanos. A palavra "prova" deve ser usada apenas quando estamos lidando com inferências dedutivas. Nesse sentido estrito da palavra, hipóteses científicas raramente, ou nunca, podem ser comprovadas pelos dados (MURCHO, 2003).

A maioria dos filósofos considera “óbvio” que a ciência depende muito do raciocínio indutivo, de fato tão óbvio que, dificilmente, precisa ser argumentado. Contudo, notavelmente, isso foi negado pelo filósofo Karl Popper. Popper (2001) afirmou que os cientistas só precisam usar inferências dedutivas. Isso seria bom se fosse verdade, pois inferências dedutivas são muito mais seguras do que as indutivas, como vimos.

O argumento básico de Popper (2001) foi esse. Embora não seja possível provar que uma teoria científica é verdadeira a partir de uma amostra de dados limitada, é possível provar que uma teoria é falsa.

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Suponha que uma cientista esteja considerando a teoria de que todos os pedaços de metal conduzem eletricidade. Mesmo que cada peça de metal que examina conduza eletricidade, isso não prova que a teoria será verdadeira, por razões que já vimos. Contudo, se ela encontrar, até mesmo, um pedaço de metal que não conduz eletricidade, isso prova que a teoria é falsa. A inferência de "esse pedaço de metal não conduz eletricidade" à conclusão de que "é falso que todos os pedaços de metal conduzem eletricidade" é dedutiva – a premissa implica a conclusão. Então, se uma cientista está interessada apenas em demonstrar que uma dada teoria é falsa, ela pode ser capaz de realizar seu objetivo sem o uso de inferências indutivas.

A fraqueza do argumento de Popper é óbvia, pois os cientistas não estão apenas interessados em mostrar que certas teorias são falsas. Quando um cientista coleta dados experimentais, seu objetivo pode ser mostrar que uma teoria em particular – talvez a teoria do seu arquirrival – é falsa. Contudo, muito mais provável, ele ou ela está tentando convencer as pessoas de que sua teoria é verdadeira. Para fazer isso, terá que recorrer ao raciocínio indutivo de algum tipo. Portanto, a tentativa de Popper de mostrar que a ciência pode passar sem indução não é bem-sucedida.

4.2 O PROBLEMA DE HUME

Embora o raciocínio indutivo não seja logicamente impermeável, parece ser uma maneira perfeitamente sensata de formar crenças sobre o mundo. O fato de que o sol tenha surgido todos os dias até agora pode não provar que isso vai ocorrer amanhã, mas, certamente, nos dá uma razão muito boa para pensar que isso acontecerá. Se você se deparar com alguém que professa ser totalmente agnóstico sobre se o sol nascerá ou não, você o consideraria muito estranho, irracional.

Contudo, o que justifica essa fé que colocamos na indução? Como deveríamos persuadir alguém que se recusa a raciocinar indutivamente que está errado? O filósofo escocês do século XVIII, David Hume (1711-1776), deu uma resposta simples, mas radical, a essa questão (HUME, 1984). Ele argumentou que o uso da indução não pode ser racionalmente justificado. Hume admitiu que usamos indução o tempo todo, na vida cotidiana e na ciência, mas ele insistiu que isso era apenas uma questão de hábito animal bruto. Se formos desafiados a fornecer uma boa razão para usar a indução, ele pensou, não podemos dar uma resposta satisfatória.

Como Hume chegou a essa conclusão surpreendente? Começou observando que sempre que fazemos inferências indutivas, parece que pressupomos o que ele chamou de "Uniformidade da Natureza" (UN) (HUME, 1984). Para ver o que Hume quer dizer com isso, lembre-se de algumas das inferências indutivas da última seção. Tivemos a inferência de "meu computador não explodiu até agora" e "meu computador não explodirá hoje"; de

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"todas as pessoas com SD examinadas têm um cromossomo extra" para "todas as pessoas com SD têm um cromossomo extra"; de "todos os corpos observados até agora obedecem à lei da gravitação de Newton" a "todos os corpos obedecem à lei da gravitação de Newton"; e assim por diante. Em cada um desses casos, nosso raciocínio parece depender da suposição de que os objetos que não examinamos serão semelhantes, nos aspectos relevantes, a objetos do mesmo tipo que examinamos. Essa suposição é o que Hume quer dizer com a uniformidade da natureza (UN).

Todavia, Hume perguntou: como sabemos que a suposição da UN é, realmente, verdadeira? Podemos, talvez, provar a sua verdade de alguma forma (no sentido estrito de prova)? Não, diz Hume, não podemos, pois é fácil imaginar um universo onde a natureza não é uniforme, mas muda seu curso aleatoriamente de dia para dia. Em tal universo, os computadores, às vezes, podem explodir sem nenhum motivo; a água, às vezes, pode nos intoxicar sem aviso prévio; as bolas de bilhar, às vezes, podem parar de colidir; e assim por diante. Uma vez que tal universo "não uniforme" é concebível, segue-se que não podemos provar, estritamente, a verdade da UN. Se pudéssemos provar que a UN é verdadeira, então, o universo não uniforme seria uma impossibilidade lógica (HUME, 1984).

Dado que não podemos provar a UN, podemos, no entanto, esperar encontrar boas evidências empíricas para a sua verdade. Afinal, desde que a UN sempre se manteve fiel até o momento, certamente, isso dá boas razões para pensar que é verdade. Todavia, esse argumento é circular, diz Hume (1984), pois é, em si, um argumento indutivo, e, assim, depende das suposições da UN. Um argumento que pressupõe a UN desde o início, claramente, não pode ser usado para mostrar que a UN é verdadeira. Para colocar o ponto de outra maneira, é, certamente, um fato estabelecido, que a natureza se comportou de maneira uniforme até agora. Contudo, não podemos apelar para esse fato para argumentar que a natureza continuará sendo uniforme, porque isso pressupõe o que aconteceu no passado, é um guia confiável para o que acontecerá no futuro, a pressuposição da uniformidade da natureza. Se tentarmos argumentar pela UN com bases empíricas, acabamos raciocinando em círculo.

A força do argumento de Hume (1984) pode ser apreciada, imaginando como você poderia convencer alguém que não confia no raciocínio indutivo. Você, provavelmente, diria: “olhe, o raciocínio indutivo funcionou muito bem até agora”. Usando a indução, cientistas dividiram o átomo, colocaram homens na Lua, inventaram computadores, e assim por diante.

Considere, também, que as pessoas que não usaram indução tenderam a ter

mortes desagradáveis. Elas comeram arsênico acreditando que isso as alimentaria, saltaram de prédios altos, acreditando que voariam, e assim por diante. Portanto, é claro que você vai ganhar por raciocinar “indutivamente”, mas é claro que isso não convenceria o duvidoso, pois argumentar que a indução é confiável porque funcionou bem até agora é raciocinar de forma indutiva. Tal argumento não teria peso qualquer com alguém que ainda não confia na indução. Esse é o ponto fundamental de Hume.

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Então, a posição é essa. Hume ressalta que nossas inferências indutivas repousam sobre a suposição da UN. Contudo, não podemos provar que a UN é verdadeira, e não podemos produzir evidência empírica para a sua verdade sem argumentos circulares. Portanto, nossas inferências indutivas se baseiam em uma suposição sobre o mundo, para a qual não temos bons fundamentos. Hume (1984) conclui que nossa confiança na indução é apenas fé cega, não admite qualquer justificativa racional.

Esse intrigante argumento exerceu poderosa influência sobre a filosofia da ciência e continua a fazê-lo hoje. A tentativa fracassada de Popper (2001), de mostrar que os cientistas só precisam usar inferências dedutivas, foi motivada por sua crença de que Hume havia mostrado a irracionalidade total do raciocínio indutivo. A influência do argumento de Hume não é difícil de entender, pois, normalmente, pensamos em ciência como o próprio paradigma da investigação racional. Colocamos grande fé no que os cientistas nos dizem sobre o mundo. Toda vez que viajamos de avião, colocamos nossas vidas nas mãos dos cientistas que projetaram o avião, mas a ciência depende da indução, e o argumento de Hume parece mostrar que a indução não pode ser racionalmente justificada. Se Hume estiver certo, as bases sobre as quais a ciência é construída não parecem tão sólidas quanto esperávamos. Esse estado de coisas intrigante é conhecido como o problema da indução de Hume.

Os filósofos responderam ao problema de Hume, literalmente, utilizando dezenas de maneiras diferentes. Ainda, é uma área ativa de pesquisa (COSTA, 2013). Algumas pessoas acreditam que a chave está no conceito de probabilidade, como podemos ver no trabalho de Howson (2000). Essa sugestão é plausível, pois é natural pensar que, embora as premissas de uma inferência indutiva não garantam a verdade da conclusão, elas a tornam provável. Assim, mesmo que o conhecimento científico não possa ser certo, ele pode, no entanto, ser altamente provável, mas essa resposta ao problema de Hume gera dificuldades por si próprias, e não é universalmente aceita. Vamos retornar a isso no devido tempo.

Outra resposta popular é admitir que a indução não pode ser racionalmente justificada, mas argumentar que isso não é realmente tão problemático. Como alguém pode defender tal posição? Alguns filósofos argumentam que a indução é fundamental para a maneira como pensamos e raciocinamos, não sendo o tipo de coisa que poderia ser justificada. Peter Strawson (1952), um influente filósofo contemporâneo, defendeu essa visão com a seguinte analogia. Se alguém estivesse preocupado se uma determinada ação fosse legal, ele poderia consultar os livros de Direito e comparar a ação com o que os livros de Direito dizem. Contudo, suponha que alguém está preocupado se a lei em si mesma é legal. Essa é uma preocupação estranha, de fato, pois a lei é o padrão contra o qual a legalidade de outras coisas é julgada, e faz pouco sentido perguntar se o padrão em si é legal. O mesmo se aplica à indução, argumentou Strawson. A indução é um dos padrões que usamos para decidir se as afirmações sobre o mundo são justificadas. Por exemplo, usamos a indução para julgar se a alegação de uma empresa farmacêutica sobre os incríveis benefícios de sua nova droga é justificada. Portanto, faz pouco sentido perguntar se a indução em si é justificada.

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Será que Strawson realmente conseguiu desarmar o problema de Hume? Alguns filósofos dizem que sim, outros dizem que não (HAHN, 1998). Contudo, a maioria das pessoas concorda que é muito difícil pensar em uma justificativa satisfatória para a indução. Frank Ramsey (1991), um filósofo de Cambridge da década de 1920, disse que pedir uma justificativa da indução era um pedido impossível. Se isso é algo que deve nos preocupar, ou abalar nossa fé na ciência, é uma questão difícil, que você deve refletir por si mesmo.

Para aprofundar as questões do Problema de Hume, sugerimos a leitura do artigo David Hume e Karl Popper: reflexões sobre indução e dedução, de Maria M. C. de Mendonça (2015): https://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/669.

DICAS

4.3 INFERÊNCIA À MELHOR EXPLICAÇÃO

As inferências indutivas que examinamos até agora têm, essencialmente, a mesma estrutura. Em cada caso, a premissa da inferência teve a forma “todos os x examinados até agora foram y”, e a conclusão teve a forma “o próximo x a ser examinado será y”, ou, às vezes, “todos os x são y”. Em outras palavras, essas inferências nos levam de instâncias examinadas a instâncias não examinadas de um determinado tipo.

Tais inferências são amplamente utilizadas na vida cotidiana e na ciência, como vimos. No entanto, há outro tipo comum de inferência não dedutiva que não se encaixa nesse padrão simples. Considere o exemplo a seguir:

o queijo na despensa desapareceu;migalhas do queijo foram encontradas;

ruídos de algo arranhando foram ouvidos, vindo da despensa na noite passada;→ Portanto, o queijo foi comido por um rato

É óbvio que essa inferência é não dedutiva: as premissas não implicam a conclusão, pois o queijo poderia ter sido roubado pela empregada, que, inteligentemente, deixou algumas migalhas para fazer parecer a obra de um rato. Os barulhos de algo arranhando poderiam ter sido causados de várias maneiras. No entanto, a inferência é razoável, pois a hipótese de que um rato comeu o queijo parece fornecer uma melhor explicação dos dados do que as várias explicações alternativas. Afinal, as empregadas domésticas, normalmente, não roubam queijo, considerando que os ratos, normalmente, comem queijo, quando têm a chance, e tendem a fazer sons de algo arranhando. Portanto, embora não possamos ter certeza de que a hipótese do rato seja verdadeira, parece-nos plausível: é a melhor maneira de explicar os dados disponíveis.

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O raciocínio é conhecido como "inferência à melhor explicação" (IME), por razões óbvias (LIPTON, 2004). Certas confusões terminológicas cercam a relação entre IME e indução. Alguns filósofos descrevem IME como um tipo de inferência indutiva; na verdade, eles usam “inferência indutiva” para significar “qualquer inferência que não seja dedutiva”. Outros contrastam IME com inferência indutiva, como fizemos (FUMERTON, 1996).

Nesse modo de perceber as coisas, a "inferência indutiva" é reservada para

inferências examinadas de instâncias não examinadas de um determinado tipo, do tipo que examinamos anteriormente. A IME e a inferência indutiva são, então, dois tipos diferentes de inferência não dedutiva. Nada depende de qual escolha de terminologia favorecemos, desde que nos atenhamos a ela de forma consistente.

Os cientistas, frequentemente, usam IME. Por exemplo, Darwin (2004) defendeu sua teoria da evolução, chamando a atenção para vários fatos sobre o mundo vivo que são difíceis de explicar, se assumirmos que as espécies atuais foram criadas separadamente, contudo, faz muito sentido as espécies atuais descenderem de ancestrais comuns, como sua teoria afirmava. Por exemplo, existem semelhanças anatômicas próximas entre as pernas dos cavalos e das zebras. Como podemos explicar isso, se Deus criou cavalos e zebras separadamente? Presumivelmente, ele poderia ter feito as pernas tão diferentes quanto quisesse, mas se os cavalos e as zebras descenderem de um ancestral comum recente, isso fornece uma explicação óbvia da sua similaridade anatômica. Darwin argumentou que a capacidade da sua teoria de explicar fatos desse tipo e de muitos outros tipos também constituía uma forte evidência para a sua verdade.

Outro exemplo de IME é o famoso trabalho de Einstein (1956) sobre o movimento browniano. Movimento browniano se refere ao movimento caótico de partículas microscópicas suspensas em um líquido ou gás. Foi descoberto em 1827, pelo botânico escocês Robert Brown (1713-1858), enquanto examinava grãos de pólen flutuando na água. Várias tentativas de explicações do movimento browniano avançaram no século XIX. Uma teoria atribuiu o movimento à atração elétrica entre as partículas, outra à agitação do ambiente externo e, a outra, às correntes de convecção no fluido. A explicação correta é baseada na teoria cinética da matéria, que diz que líquidos e gases são compostos de átomos ou moléculas em movimento. As partículas suspensas colidem com as moléculas circundantes, causando os movimentos erráticos e aleatórios que Brown observou pela primeira vez. Essa teoria foi proposta, pela primeira vez, no fim do século XIX, mas não foi amplamente aceita, até porque muitos cientistas não acreditavam que os átomos e moléculas fossem entidades físicas reais. Contudo, em 1905, Einstein forneceu um tratamento matemático engenhoso do movimento browniano, fazendo uma série de previsões precisas e quantitativas, que foram confirmadas experimentalmente. Depois do trabalho de Einstein, Kauzmann (1970) rapidamente concordou em fornecer uma explicação muito melhor do movimento browniano, e o ceticismo sobre a existência de átomos e moléculas rapidamente diminuiu.

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Uma questão interessante é se a IME ou a indução comum é um padrão mais fundamental de inferência. O filósofo Gilbert Harman (2018) argumentou que a IME é mais fundamental. De acordo com essa visão, sempre que fazemos uma inferência indutiva comum, como “todas as peças de metal examinadas até o momento conduzem eletricidade, portanto, todas as peças de metal conduzem eletricidade", estamos, implicitamente, apelando para considerações explicativas. Assumimos que a explicação correta do porquê os pedaços de metal em nossa amostra conduziram eletricidade, seja ela qual for, implica que todos os pedaços de metal conduzirão eletricidade. Por isso, fazemos a inferência indutiva. Contudo, se acreditássemos, por exemplo, que a explicação do porquê dos pedaços de metal em nossa amostra conduziam eletricidade, que era um técnico de laboratório que havia mexido, não poderíamos inferir que todos os pedaços de metal conduzem eletricidade. Os proponentes dessa visão não dizem que não há diferença entre a IME e a indução comum, pois existe, claramente. Em vez disso, eles acham que a indução comum é, em última análise, dependente da IME.

Outros filósofos argumentam que isso faz as coisas ficarem inversas: a IME é parasitária da indução comum (LIPTON, 2004), dizem eles. Para ver a base dessa visão, pense no exemplo anterior. Por que consideramos a hipótese do rato como uma melhor explicação dos dados do que a hipótese da empregada?

Presumivelmente, sabemos que as empregadas, normalmente, não roubam queijo, ao ponto que os ratos o fazem, mas esse é o conhecimento que adquirimos através do raciocínio indutivo comum, baseado em nossas observações anteriores dos comportamentos de ratos e empregadas domésticas. Assim, de acordo com essa visão, quando tentamos decidir qual grupo de hipóteses concorrentes fornece a melhor explicação de nossos dados, invariavelmente, apelamos para o conhecimento obtido através da indução comum. Assim, é incorreto considerar a IME como um modo de inferência mais fundamental.

Quaisquer que sejam os pontos de vista opostos que nós favorecemos, uma questão, claramente, exige mais atenção. Se quisermos usar a IME, precisamos de alguma maneira, decidir qual das hipóteses concorrentes fornece a melhor explicação dos dados, mas que critérios determinam isso? Uma resposta popular é que a melhor explicação é a mais simples ou a mais parcimoniosa (THAGARD, 2017).

Considere, novamente, o exemplo do queijo na despensa. Existem dois dados que precisam ser explicados: o queijo que está faltando e os ruídos. A hipótese do rato postula apenas uma causa – um rato – para explicar os dois dados, mas a hipótese da empregada deve postular duas causas – uma empregada desonesta e alguma outra coisa que pudesse fazer o ruído na despensa – para explicarem os mesmos dados. Portanto, a hipótese do rato é mais parcimoniosamente melhor. Da mesma forma, no exemplo de Darwin. A teoria de Darwin poderia explicar uma gama muito diversa de fatos sobre o mundo vivo, não apenas semelhanças anatômicas entre as espécies. Cada um desses fatos poderia ser explicado de outras maneiras, como Darwin sabia, mas a teoria da evolução explicou todos os fatos de uma só vez – foi isso que a fez a melhor explicação dos dados.

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A ideia de que simplicidade ou parcimônia é a marca de uma boa explicação é atraente e, certamente, ajuda a concretizar a ideia da IME, mas se os cientistas usam a simplicidade como um guia para a inferência, isso levanta um problema, pois como sabemos que o universo é simples e não complexo? Preferir uma teoria que explica os dados em termos do menor número de causas parece sensata, mas existe alguma razão objetiva para pensar que tal teoria seja mais provável do que uma teoria menos simples? Os filósofos da ciência não concordam com uma única resposta a essa pergunta difícil.

Para aprofundar as questões da Inferência à Melhor Explicação, sugerimos a leitura do artigo de Alexandre L. Junges (2008): http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/3672.

DICAS

4.4 PROBABILIDADE E INDUÇÃO

O conceito de probabilidade é filosoficamente intrigante (COSTA, 2008). Parte do enigma é que a palavra "probabilidade" parece ter mais de um significado. Se você ler que a probabilidade de uma mulher brasileira viver até os 100 anos de idade é de 1 em 10, você entenderia isso dizendo que um décimo de todas as mulheres brasileiras vive até 100 anos. Da mesma forma, se você ler sobre a probabilidade de um fumante do sexo masculino desenvolver câncer de pulmão é de 1 em 4, isso significa que um quarto de todos os fumantes do sexo masculino desenvolve câncer de pulmão. Isso é conhecido como a interpretação de frequência da probabilidade: equaciona probabilidades com proporções ou frequências.

Todavia, se você ler que a probabilidade de encontrar vida em Marte é de 1 em 1.000? Isso significa que um em cada mil planetas do nosso sistema solar contém vida? Claramente, isso não acontece. Por um lado, existem apenas nove planetas no nosso sistema solar. Portanto, uma noção diferente de probabilidade deve estar em ação.

Uma interpretação da afirmação “a probabilidade de vida em Marte é de 1 em 1.000” é que a pessoa que a pronuncia está, simplesmente, relatando um fato subjetivo sobre si mesma, está nos dizendo quão provável a vida é em Marte. Essa é a interpretação subjetiva da probabilidade (GOOD, 2018). É preciso que a probabilidade seja uma medida da força de nossas opiniões pessoais. Claramente, temos algumas das nossas opiniões mais fortemente do que outras. Estou muito confiante de que o Brasil vencerá a Copa do Mundo, razoavelmente, confiante de que Jesus Cristo existiu e, muito menos confiante,

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que o desastre ambiental global possa ser evitado. Isso pode ser expresso dizendo que atribuo uma alta probabilidade à afirmação "o Brasil vencerá a Copa do Mundo", uma probabilidade razoável de "ter existido Jesus Cristo", e uma probabilidade baixa de que "um desastre ambiental global possa ser evitado". É claro que colocar um número exato na força da minha convicção nessas declarações seria difícil, mas os defensores da interpretação subjetivam e consideram isso uma limitação meramente prática. Em princípio, deveríamos ser capazes de atribuir uma probabilidade numérica precisa a cada uma das afirmações sobre as quais temos uma opinião, refletindo quão fortemente acreditamos ou descremos.

A interpretação subjetiva da probabilidade implica que não há fatos objetivos sobre a probabilidade, independentemente do que as pessoas acreditam (GOOD, 2018). Se eu disser que a probabilidade de encontrar vida em Marte é alta, e você disser que ela é muito baixa, nenhum de nós está certo ou errado, nós dois estamos, simplesmente, afirmando quão fortemente acreditamos na afirmação em questão. Claro, há um fato objetivo se há vida em Marte ou não. Apenas não há um fato objetivo sobre o quão provável é a existência de vida em Marte, de acordo com a interpretação subjetiva.

A interpretação lógica da probabilidade rejeita essa posição (COSTA, 2008). Sustenta que uma afirmação como "a probabilidade de existir vida em Marte é alta" é objetivamente verdadeira ou falsa, em relação a um corpo específico de evidência. A probabilidade de uma declaração é a medida da força da evidência a seu favor, sob essa ótica. Os defensores da interpretação lógica pensam que, para quaisquer duas afirmações em nossa linguagem, podemos, a princípio, descobrir a probabilidade de uma, oferecendo a outra como evidência. Por exemplo, poderíamos querer descobrir a probabilidade de que haverá uma era do gelo dentro de 10.000 anos, dada a taxa atual de aquecimento global. A interpretação subjetiva diz que não há nenhum fato objetivo sobre essa probabilidade, mas a interpretação lógica insiste que existe: a taxa atual de aquecimento global confere uma probabilidade numérica definida na ocorrência de uma era glacial em 10 mil anos, digamos 0,9, por exemplo. Uma probabilidade de 0,9 conta como alta probabilidade (para o máximo é 1), então, a afirmação "a probabilidade de que haverá uma era do gelo dentro de 10.000 anos é alta" seria objetivamente verdadeira, dadas as evidências sobre o aquecimento global.

Se você estudou probabilidade ou estatística, pode ficar perplexo com essa conversa de diferentes interpretações de probabilidade. Como essas interpretações se relacionam com o que você aprendeu? A resposta é que o estudo matemático da probabilidade não nos indica, por si só, o que significa probabilidade (FERNANDEZ, 1973). A maioria dos estatísticos favoreceria, de fato, a interpretação da frequência, mas o problema de como interpretar a probabilidade, como a maioria dos problemas filosóficos, não pode ser resolvido matematicamente. As fórmulas matemáticas para calcular as probabilidades permanecem as mesmas, qualquer que seja a interpretação que adotamos.

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Os filósofos da ciência estão interessados em probabilidade por duas razões principais. A primeira é que, em muitos ramos da ciência, especialmente física e biologia, encontramos leis e teorias que são formuladas usando a noção de probabilidade (GILLIES, 2000).

Considere, por exemplo, a teoria conhecida como genética mendeliana, que lida com a transmissão de genes de uma geração para outra em populações sexualmente reprodutoras. Um dos princípios mais importantes da genética mendeliana é que cada gene em um organismo tem uma chance de 50% de transformá-lo em qualquer um dos gametas do organismo (espermatozoides ou óvulos). Portanto, há 50% de chance de que qualquer gene encontrado em sua mãe também esteja em você e, da mesma forma, nos genes do seu pai. Usando esse princípio e outros, os geneticistas podem fornecer explicações detalhadas sobre o porquê as características específicas (por exemplo: cor dos olhos) são distribuídas pelas gerações de uma família. Agora, a “chance” é apenas outra palavra para probabilidade, então, é óbvio que nosso princípio mendeliano faz uso essencial do conceito de probabilidade.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados de leis e princípios científicos

expressos em termos de probabilidade. A necessidade de entender essas leis e princípios é uma motivação importante para o estudo filosófico da probabilidade.

A segunda razão pela qual os filósofos da ciência estão interessados no conceito de probabilidade é a esperança de que possa lançar alguma luz sobre a inferência indutiva, em particular, sobre o problema de Hume (GILLIES, 2000). Esse será o nosso foco aqui. Na raiz do problema de Hume, está o fato de que as premissas de uma inferência indutiva não garantem a verdade da sua conclusão, mas é tentador sugerir que as premissas de uma inferência indutiva típica tornam a conclusão altamente provável. Embora haja o fato de que todos os objetos examinados até agora obedeçam à lei da gravitação de Newton, não prova que todos os objetos o façam. Então, certamente, o problema de Hume pode ser respondido facilmente.

No entanto, as questões não são tão simples, pois devemos perguntar qual interpretação de probabilidade essa resposta a Hume assume. Na interpretação da frequência, dizer que é altamente provável que todos os objetos obedecem à lei de Newton é uma proporção muito alta de todos os objetos que obedecem à lei, mas não há como saber disso, a menos que usemos indução. Só examinamos uma pequena fração de todos os objetos do universo, então, o problema de Hume permanece. Outra maneira de ver o ponto é isso. Começamos com a inferência de que "todos os objetos examinados obedecem à lei de Newton" e "todos os objetos obedecem à lei de Newton". Em resposta à preocupação de Hume, de que a premissa dessa inferência não garante a verdade da conclusão, sugerimos que poderia, no entanto, tornar a conclusão altamente provável. Todavia, a inferência de "todos os objetos examinados obedecem à lei de Newton" e "é altamente provável que todos os objetos obedecem à lei de Newton" ainda é uma inferência indutiva, já que essa

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última significa "uma proporção muito alta de todos os objetos obedece à lei de Newton", e isso ocorre de acordo com a interpretação da frequência. Então, apelar para o conceito de probabilidade não tira o aguilhão do argumento de Hume, se adotarmos uma interpretação de frequência de probabilidade, pois o conhecimento das probabilidades se torna dependente da indução.

A interpretação subjetiva da probabilidade também é impotente para resolver o problema de Hume, embora por um motivo diferente. Suponha que João acredite que o sol nascerá amanhã, e Pedro acredita que isso não acontecerá. Ambos aceitam a evidência de que o sol nasceu todos os dias no passado. Intuitivamente, queremos dizer que João é racional, e Pedro não é, porque a evidência torna a crença de João mais provável. Contudo, se a probabilidade é, simplesmente, uma questão de opinião subjetiva, não podemos dizer isso. Tudo o que podemos dizer é que João atribui uma alta probabilidade que "o sol nascerá amanhã", mas Pedro não.

Se não há fatos objetivos sobre probabilidade, então, não podemos dizer que as

conclusões das inferências indutivas são objetivamente prováveis. Portanto, não temos nenhuma explicação do porquê alguém como Pedro, que se recusa a usar a indução, seja irracional, mas o problema de Hume é, justamente, a demanda por tal explicação.

A interpretação lógica da probabilidade é mais promissora para uma resposta satisfatória a Hume. Suponha que exista um fato objetivo sobre a probabilidade de o sol nascer amanhã, dado que nasceu todos os dias no passado. Pense que essa probabilidade seja muito alta. Então, nós temos uma explicação do porquê João seria racional e Pedro não. João e Pedro aceitam a evidência de que o sol nasceu todos os dias no passado, mas Pedro não percebe que essa evidência se torna altamente provável, que o sol nascerá amanhã, enquanto João percebe isso. A probabilidade de uma afirmação como uma medida da evidência em seu favor, como a interpretação lógica recomenda, registra, perfeitamente, nosso sentimento intuitivo de que as premissas de uma inferência indutiva podem tornar a conclusão altamente provável, mesmo que não possam garantir sua verdade.

Não surpreende, portanto, que os filósofos que tentaram resolver o problema de Hume, por meio do conceito de probabilidade, tenham tendido a favorecer a interpretação lógica. Um deles foi o famoso economista John Maynard Keynes (2013), cujos primeiros interesses eram em lógica e filosofia. Infelizmente, a maioria das pessoas, hoje, acredita que a interpretação lógica da probabilidade sofre dificuldades muito sérias, provavelmente, insuperáveis. Isso ocorre porque todas as tentativas de elaborar a interpretação lógica da probabilidade em qualquer detalhe se depararam com uma série de problemas, tanto matemáticos quanto filosóficos. Como resultado, muitos filósofos, hoje, estão inclinados

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a rejeitar, abertamente, a suposição subjacente da interpretação lógica, de que existem fatos objetivos sobre a probabilidade de uma declaração. Rejeitar essa suposição leva, naturalmente, à interpretação subjetiva da probabilidade, mas, como vimos, oferece pouca esperança de uma resposta satisfatória a Hume.

Mesmo que o problema de Hume seja, basicamente, insolúvel, como parece provável, pensar no problema ainda é um exercício valioso. Refletir sobre o problema da indução nos leva a um emaranhado de questões interessantes sobre a estrutura do raciocínio científico, a natureza da racionalidade, o grau apropriado de confiança a ser colocado na ciência, a interpretação da probabilidade e muito mais. Como a maioria das questões filosóficas, essas questões, provavelmente, não admitem respostas finais, mas, ao lidar com elas, aprendemos muito sobre a natureza e os limites do conhecimento científico.

Um excelente livro que explora e propõe caminhos interessantes das questões de probabilidade e indução: Lógica indutiva e probabilidade, de Newton da Costa (2008). Esse livro, no gênero único em língua portuguesa, embora trate do tema de natureza científica, pode ser lido, praticamente, por qualquer pessoa, dada a mestria didática do autor, internacionalmente reconhecido pela importância e originalidade dos seus trabalhos.

DICAS

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Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Muitas ciências empregam métodos distintos de investigação que não são encontrados em disciplinas não científicas.

• Um dos principais problemas da filosofia da ciência é entender como as técnicas de experimentação, observação e construção de teorias permitiram, ao cientista, desvendar muitos dos segredos da natureza.

• A atenção à história da ciência é indispensável para fazer uma boa filosofia da ciência.

• A física é, historicamente, muito importante e, em certo sentido, a mais fundamental de todas as disciplinas científicas.

• A principal tarefa da filosofia da ciência é analisar os métodos de pesquisa usados nas várias ciências.

• Parte do trabalho da filosofia da ciência é questionar suposições que os cientistas tomam como certas.

• Karl Popper achava que a característica fundamental de uma teoria científica é que ela deveria ser falsificável.

• A tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência é intuitivamente muito plausível, mas alguns filósofos consideram o critério de Popper excessivamente simplista.

• Em geral, os cientistas, simplesmente, não abandonam suas teorias sempre que entram em conflito com os dados observacionais. Geralmente, eles procuram maneiras de eliminar o conflito sem ter que desistir da sua teoria.

• A palavra "prova" deve ser usada apenas quando estamos lidando com inferências dedutivas. Nesse sentido estrito da palavra, hipóteses científicas raramente, ou nunca, podem ser comprovadas pelos dados.

• Hume ressalta que nossas inferências indutivas repousam sobre a suposição da uniformidade da natureza, mas não podemos provar que a uniformidade da natureza é verdadeira, e não podemos produzir evidência empírica para a sua verdade sem argumentos circulares.

RESUMO DO TÓPICO 1

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• Se quisermos usar a inferência à melhor explicação, precisamos de alguma forma para decidir qual das hipóteses concorrentes fornece a melhor explicação dos dados.

• A interpretação subjetiva da probabilidade implica que não há fatos objetivos sobre a probabilidade, independentemente do que as pessoas acreditam.

• A interpretação lógica da probabilidade sustenta que uma afirmação deve ser objetivamente verdadeira ou falsa em relação a um corpo específico de evidência.

• Apelar para o conceito de probabilidade não tira o aguilhão do argumento de Hume, se adotarmos uma interpretação de frequência de probabilidade.

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1 Para compreendermos a filosofia da ciência, é importante, primeiramente, compreender o que é a ciência. Galileu é considerado o primeiro físico verdadeiro moderno, seu trabalho sendo, portanto, central para a construção da ciência moderna. Explique por que se considera Galileu o primeiro físico verdadeiramente moderno.

2 Qual era a característica da ciência que Popper pensava ser fundamental? Explique.

3 Quais são as razões pelas quais os filósofos da ciência estão interessados em probabilidade?

AUTOATIVIDADE

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EXPLICAÇÃO, REALISMO E ANTIRREALISMO NA CIÊNCIA

1 INTRODUÇÃO

Um dos objetivos mais importantes da ciência é tentar explicar o que acontece no mundo ao nosso redor. Às vezes, procuramos explicações para fins práticos. Por exemplo, podemos querer saber o motivo da camada de ozônio estar sendo esgotada tão rapidamente, para tentar fazer algo a respeito. Em outros casos, buscamos explicações científicas simplesmente para satisfazer nossa curiosidade intelectual, queremos entender mais sobre como o mundo funciona. Historicamente, a busca da explicação científica foi motivada por ambos os objetivos.

Com muita frequência, a ciência moderna é bem-sucedida em seu objetivo de fornecer explicações. Por exemplo, os químicos podem explicar por que o sódio fica amarelo quando queima. Os astrônomos podem explicar por que os eclipses solares ocorrem e o seu acontecimento. Economistas podem explicar por que o dólar caiu em valor na década de 1920. Geneticistas podem explicar por que a calvície masculina tende a ocorrer em famílias. Os neurofisiologistas podem explicar por que a privação extrema de oxigênio leva a danos cerebrais. Você, provavelmente, pode pensar em muitos outros exemplos de explicações científicas bem-sucedidas.

Todavia, o que, exatamente, é, a explicação científica? O que, exatamente, significa dizer que um fenômeno pode ser "explicado" pela ciência? Essa é uma questão que tem entretido filósofos desde Aristóteles, mas o nosso ponto de partida será um famoso relato de explicação científica apresentado no final da década de 1940, pelos filósofos Carl Gustav Hempel (1905-1997) e Paul Oppenheim (1885-1977) (HEMPEL; OPPENHEIM, 1948). O relato de Hempel é conhecido como o modelo de explicação da lei de cobertura (também chamado de modelo dedutivo-nomológico), por razões que se tornarão claras.

UNIDADE 1 TÓPICO 2 -

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2 MODELO DA LEI DE COBERTURA DA EXPLICAÇÃO DE HEMPEL

A ideia básica por trás do modelo de lei de cobertura é direta. Hempel observou que as explicações científicas, geralmente, são buscas de “respostas às perguntas do tipo “por quê?”” (HEMPEL; OPPENHEIM, 1948, p. 135). Essas são perguntas como "por que a Terra não é perfeitamente esférica?", "Por que as mulheres vivem mais que os homens?".

Dar uma explicação científica é, portanto, fornecer uma resposta satisfatória para uma pergunta do tipo “por que?”. Se pudéssemos determinar as características essenciais que tal resposta deve ter, saberíamos o que é uma explicação científica.

Hempel (1981) sugeriu que as explicações científicas têm, tipicamente, a estrutura lógica de um argumento, isso é, um conjunto de premissas seguidas de uma conclusão. A conclusão afirma que o fenômeno que precisa ser explicado realmente ocorre, e as premissas nos dizem o porquê de a conclusão ser verdadeira. Assim, suponha que alguém pergunte por que o açúcar se dissolve na água. Essa é uma pergunta do tipo “por que?”, uma busca por explicação. Para responder, diz Hempel, devemos construir um argumento, cuja conclusão seja "o açúcar se dissolve na água" e cujas premissas nos dizem por que essa conclusão é verdadeira. A tarefa de fornecer uma explicação científica se torna, então, a tarefa de caracterizar, precisamente, a relação que deve manter entre um conjunto de premissas e uma conclusão, para que a primeira conte como uma explicação da segunda. Esse foi o problema que Hempel se propôs.

A resposta de Hempel (1981) ao problema foi tripla. Em primeiro lugar, as premissas devem implicar a conclusão, ou seja, o argumento deve ser dedutivo. Em segundo lugar, as premissas deveriam ser todas verdadeiras. Em terceiro lugar, as premissas devem consistir em, pelo menos, uma lei geral. As leis gerais são coisas como "todos os metais conduzem eletricidade", "a aceleração de um corpo varia inversamente com sua massa", "todas as plantas contêm clorofila", e assim por diante. Elas contrastam com fatos particulares, como "esse pedaço de metal conduz a eletricidade", "a planta da minha mesa contém clorofila", e assim por diante. As leis gerais, às vezes, são chamadas de "leis da natureza". Hempel permitiu que uma explicação científica pudesse apelar a fatos particulares, além de leis gerais, mas sustentou que, pelo menos, uma lei geral sempre é essencial. Assim, explicar um fenômeno, na concepção de Hempel, é mostrar que sua ocorrência segue dedutivamente a partir de uma lei geral, talvez suplementada por outras leis e/ou fatos particulares, todos verdadeiros.

Para ilustrar, suponha que eu queira explicar por que a planta da minha mesa morreu. Eu poderia oferecer a seguinte explicação: devido à pouca luz em minha sala de estudo, nenhuma luz solar atingiu a planta, mas a luz solar é necessária para uma planta fotossintetizar, e sem fotossíntese, uma planta não pode produzir os carboidratos

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de que necessita para sobreviver, e assim morrerá, portanto, minha planta morreu. Essa explicação se encaixa exatamente no modelo de Hempel. Explica a morte da planta, deduzindo-a em duas leis verdadeiras: que a luz solar é necessária para a fotossíntese, e que a fotossíntese é necessária para a sobrevivência. Ainda, há um fato específico, de que a planta não estava recebendo luz solar.

Dada a verdade das duas leis e o fato particular, a morte da planta tinha que ocorrer; é, por isso, que as leis constituem uma boa explicação para o fato.

Esquematicamente, o modelo de explicação de Hempel (1965) pode ser escrito da seguinte maneira:

Leis geraisFatos particulares

→ Fenômeno a ser explicado

O fenômeno a ser explicado é chamado de explanandum, e as leis gerais e os fatos específicos que explicam são chamados de explanans. O explanandum, em si, pode ser um fato particular ou uma lei geral (HEMPEL, 1965). No exemplo anterior, foi um fato particular – a morte da minha planta, mas, às vezes, as coisas que queremos explicar são gerais. Por exemplo, poderíamos querer explicar por que a exposição ao sol leva ao câncer de pele. Essa é uma lei geral, não um fato específico. Para explicar isso, seria preciso deduzir, a partir de leis ainda mais fundamentais, presumivelmente, as leis sobre o impacto da radiação sobre as células da pele, além dos fatos particulares sobre a quantidade de radiação de luz solar. Assim, a estrutura de uma explicação científica é essencialmente a mesma, quer o explanandum, ou seja, aquilo que estamos tentando explicar, seja particular ou geral.

É fácil ver o motivo do modelo de Hempel (1981; 1965), é chamado de Modelo de Explicação da Lei de Cobertura. De acordo com o modelo, a essência da explicação é mostrar que o fenômeno a ser explicado é "coberto" por alguma lei geral da natureza. Certamente, há algo de interessante nessa ideia. Mostrar que um fenômeno é uma consequência de uma lei geral, de certa forma, elimina o mistério, torna-o mais inteligível. De fato, explicações científicas, muitas vezes, encaixam-se no padrão que Hempel descreve. Por exemplo, Newton explicou por que os planetas se movem em elipses ao redor do sol, mostrando que isso pode ser deduzido da sua lei da gravitação universal com algumas suposições adicionais menores. A explicação de Newton se encaixa exatamente no modelo de Hempel: um fenômeno é explicado, mostrando-se que tinha que ser assim, dadas as leis da natureza, mais alguns fatos adicionais. Depois de Newton, não havia mais nenhum mistério sobre o motivo das órbitas planetárias serem elípticas.

Hempel (1981) sabia que nem todas as explicações científicas se encaixavam no seu modelo. Por exemplo, se você perguntar a alguém por que Atenas está sempre imersa na poluição, provavelmente, dirá "por causa da poluição dos escapamentos". Essa é uma explicação científica perfeitamente aceitável, embora não envolva nenhuma menção a nenhuma lei.

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Hempel diria que, se a explicação fosse detalhada, as leis entrariam em cena. Presumivelmente, há uma lei que diz algo como "se o monóxido de carbono for liberado na atmosfera da Terra em concentração suficiente, nuvens de fumaça se formarão". A explicação completa do motivo pelo qual Atenas é banhada em poluição atmosférica cita essa lei com o fato de que o escapamento dos carros contém monóxido de carbono e Atenas tem muitos carros. Na prática, não explicitaríamos com tantos detalhes, a menos que estivéssemos sendo muito pedantes. Todavia, se disséssemos, isso corresponderia muito bem ao padrão da lei de cobertura.

Hempel (1965) extraiu uma interessante consequência filosófica do seu modelo sobre a relação entre explicação e predição. Ele argumentou que esses são dois lados da mesma moeda. Sempre que damos uma explicação da lei de cobertura de um fenômeno, as leis e os fatos específicos que citamos permitem prever a ocorrência do fenômeno, se não soubéssemos disso. Para ilustrar, considere, novamente, a explicação de Newton, sobre o porquê de as órbitas planetárias serem elípticas. Esse fato era conhecido muito antes de Newton explicá-lo, usando sua teoria da gravitação, foi descoberto por Kepler. Contudo, se não fosse conhecido, Newton teria sido capaz de predizer isso a partir da sua teoria da gravitação, pois sua teoria implica que as órbitas planetárias são elípticas, dadas pequenas suposições adicionais. Hempel expressou isso dizendo que toda explicação científica é, potencialmente, uma previsão, pois teria servido para prever o fenômeno em questão, se já não fosse conhecido. O inverso também era verdade, pensou Hempel: toda predição confiável é, potencialmente, uma explicação. Para ilustrar, suponha que os cientistas prevejam que os gorilas das montanhas estarão extintos em 2030, com base em informações sobre a destruição do seu habitat. Suponha que eles estejam certos. De acordo com Hempel, a informação que eles usaram para prever a extinção dos gorilas, antes que isso acontecesse, servirá para explicar o mesmo fato depois que isso aconteceu. Explicação e previsão são estruturalmente simétricas.

Embora o modelo de lei de cobertura capture muito bem a estrutura de muitas explicações científicas reais, também enfrenta vários contraexemplos desajeitados. Esses contraexemplos se enquadram em duas classes. Por um lado, há casos de explicações científicas genuínas, que não se encaixam no modelo de lei de cobertura, nem mesmo aproximadamente. Esses casos sugerem que o modelo de Hempel é muito rigoroso, exclui algumas explicações científicas válidas. Por outro lado, existem casos de coisas que se encaixam no modelo de lei de cobertura, mas, intuitivamente, não contam como explicações científicas genuínas. Esses casos sugerem que o modelo de Hempel é muito liberal, permite coisas que deveriam ser excluídas. Vamos nos concentrar em contraexemplos do segundo tipo.

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Para compreender um pouco mais sobre o modelo da lei de cobertura, sugerimos a leitura de um breve artigo intitulado O Modelo da cobertura por leis, de David Papineau (2016): https://criticanarede.com/filos_cien.html.

DICAS

2.1 O PROBLEMA DA SIMETRIA

Suponha que você esteja deitado na praia em um dia ensolarado e observa que um mastro de bandeira está projetando uma sombra de 20 metros na areia. Alguém lhe pede para explicar por que a sombra tem 20 metros de comprimento. Essa é uma pergunta buscando explicação “por que?”. Uma resposta plausível pode ser a seguinte: raios de luz do sol batem no mastro da bandeira, que tem, exatamente, 15 metros de altura. O ângulo de elevação do sol é de 37°. Como a luz viaja em linhas retas, um simples cálculo trigonométrico (tan 37° = 15/20) mostra que o mastro lançará uma sombra de 20 metros de comprimento.

Isso parece uma explicação científica perfeitamente boa. Reescrevendo-a, de acordo com o esquema de Hempel (1965), podemos ver que ela se encaixa no modelo de lei de cobertura:

Leis gerais A luz viaja em linhas retas Leis da trigonometria

Fatos particulares Ângulo de elevação do sol é de 37° Mastro da bandeira é de 15 metros de altura

→ Fenômeno a ser explicado Sombra tem 20 metros de comprimento

O comprimento da sombra é deduzido da altura do mastro e do ângulo de elevação do sol com a lei óptica que a luz viaja em linhas retas e as leis da trigonometria. Uma vez que essas leis são verdadeiras, e como o mastro tem, de fato, 15 metros de altura, a explicação satisfaz as exigências de Hempel com precisão. Por enquanto, tudo bem. O problema surge da seguinte forma: Suponha que nós trocamos o explanandum – que a sombra tem 20 metros de comprimento – com o fato específico de que o mastro da bandeira tem 15 metros de altura. O resultado é este:

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Leis gerais A luz viaja em linhas retas Leis da trigonometria

Fatos particulares Ângulo de elevação do sol é de 37° Sombra é de 20 metros de comprimento

Fenômeno a ser explicado Mastro da bandeira é de 15 metros de altura

Essa "explicação" também está claramente de acordo com o padrão da lei de cobertura. A altura do mastro é deduzida do comprimento da sombra que ele projeta e do ângulo de elevação do sol, com a lei óptica que a luz viaja em linhas retas e as leis da trigonometria. Contudo, parece muito estranho considerar isso como uma explicação sobre o motivo do mastro ter 15 metros de altura. A verdadeira explicação sobre a altura do mastro, presumivelmente, que um carpinteiro deliberadamente o fez, não tem nada a ver com o comprimento da sombra que ele molda. Portanto, o modelo de Hempel é liberal demais, pois permite que algo conte como uma explicação científica que, obviamente, não é (PERSSON; YLIKOSKI, 2007).

A moral geral do exemplo do mastro da bandeira é que o conceito de explicação exibe uma importante assimetria. A altura do mastro da bandeira explica o comprimento da sombra, dadas as leis relevantes e fatos adicionais, mas não vice-versa. Em geral, se x explica y, dadas as leis relevantes e fatos adicionais, então, não será verdade que y explica x, dadas as mesmas leis e fatos. Isso, às vezes, é expresso dizendo que a explicação é uma relação assimétrica. O modelo de lei de cobertura de Hempel não respeita essa assimetria. Como podemos deduzir o comprimento da sombra da altura do mastro, dadas as leis e fatos adicionais, podemos deduzir a altura do mastro a partir do comprimento da sombra. Em outras palavras, o modelo de lei de cobertura implica que a explicação deve ser uma relação simétrica, mas, na verdade, é assimétrica. Portanto, o modelo de Hempel não consegue captar totalmente o que é ser uma explicação científica (PERSSON; YLIKOSKI, 2007).

O caso da sombra e do mastro também fornece um contraexemplo à tese de Hempel, de que explicação e predição são dois lados da mesma moeda. O motivo é óbvio. Suponha que você não soubesse o quão alto era o mastro da bandeira. Se alguém lhe dissesse que estava lançando uma sombra de 20 metros e que o sol estava a 37 °C acima, você seria capaz de prever a altura do mastro da bandeira, já que conhecia as marcas óticas e trigonométricas relevantes. Contudo, como acabamos de ver, essa informação, claramente, não explica por que o mastro tem a altura que ele tem. Portanto, nesse exemplo, previsão e explicação se dividem. A informação que serve para prever um fato antes de conhecê-lo não serve para explicar esse mesmo fato depois que o conhecemos, contradizendo a tese de Hempel.

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2.2 O PROBLEMA DA IRRELEVÂNCIA

Suponha que uma criança esteja em um hospital, em uma sala cheia de mulheres grávidas. A criança percebe que uma pessoa na sala é um homem que se chama João, e não está grávido, e pergunta ao médico: por que não? O médico responde: “o João toma pílulas anticoncepcionais regularmente nos últimos anos. As pessoas que tomam pílulas anticoncepcionais regularmente nunca ficam grávidas. Portanto, João não engravidou”.

Vamos supor, por uma questão de argumento, que o que o médico diz é verdade, o João é doente mental e, de fato, toma pílulas anticoncepcionais, que acredita ajudá-lo. Mesmo assim, a resposta do médico à criança não é muito útil. A explicação correta do porquê João não engravidou, obviamente, é que ele é homem e os homens não podem engravidar.

No entanto, a explicação que o médico deu à criança se encaixa perfeitamente no modelo da lei de cobertura. O médico deduz o fenômeno a ser explicado, em que João não está grávido, e da lei geral das pessoas que tomam pílulas anticoncepcionais que não engravidam, além do fato específico, do João estar tomando pílulas anticoncepcionais. Uma vez que a lei geral e o fato específico são verdadeiros, uma vez que eles realmente implicam o explanandum, de acordo com o modelo da lei de cobertura, o médico deu uma explicação perfeitamente adequada do porquê de João não estar grávido. Contudo é claro que ele não fez assim. Portanto, o modelo da lei de cobertura é novamente permissivo demais: permite que algumas coisas contenham explicações científicas, mas que, intuitivamente, não seriam.

A moral geral é que uma boa explicação de um fenômeno deve conter informações relevantes para a ocorrência do fenômeno. Essa resposta do médico à criança é errada. Embora o que o médico diz à criança seja perfeitamente verdadeiro, o fato de João estar tomando pílulas anticoncepcionais é irrelevante para ele não estar grávido, porque ele não estaria grávido, mesmo que não estivesse tomando as pílulas. É por isso que a resposta do médico não constitui uma boa resposta à pergunta da criança. O modelo de Hempel não respeita essa característica crucial do nosso conceito de explicação (KRAEMER, 1981).

2.3 EXPLICAÇÃO E CAUSALIDADE

Como o modelo da lei de cobertura encontra tantos problemas, é natural procurar uma forma alternativa de entender a explicação científica. Alguns filósofos acreditam que a chave está no conceito de causalidade (SALMON, 1998). Essa é uma sugestão atraente, pois, em muitos casos, explicar um fenômeno é, realmente, dizer o que o causou.

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Por exemplo, se um investigador de acidentes está tentando explicar um acidente de avião, ele está, obviamente, procurando a causa do acidente. De fato, os questionamentos "por que o avião caiu?" e "qual foi a causa do acidente de avião?" são, praticamente, sinônimos. Da mesma forma, se um ecologista está tentando explicar por que há menos biodiversidade nas florestas tropicais, do que costumava haver, ele está, claramente, procurando a causa da redução da biodiversidade. A ligação entre os conceitos de explicação e causalidade é íntima.

Impressionados com essa ligação, vários filósofos abandonaram a explicação da lei de cobertura em favor de relatos baseados na causalidade (SALMON, 1984; LEWIS, 1986; PEARL, 2000). Os detalhes variam, mas a ideia básica por trás desses relatos é que explicar um fenômeno é, simplesmente, dizer o que o causou. Em alguns casos, a diferença entre a lei de cobertura e os relatos causais não é, realmente, muito grande, pois deduzir a ocorrência de um fenômeno a partir de uma lei geral, muitas vezes, é apenas dar sua causa. Por exemplo, lembre-se, novamente, da explicação de Newton do porquê as órbitas planetárias são elípticas. Vimos que essa explicação se encaixa no modelo da lei de cobertura, pois Newton deduziu a forma das órbitas planetárias da sua lei da gravitação, além de alguns fatos adicionais. Todavia, a explicação de Newton também foi causal, já que as órbitas planetárias elípticas são causadas pela atração gravitacional entre os planetas e o sol.

No entanto, a lei de cobertura e os relatos causais não são totalmente equivalentes, em alguns casos, divergem. De fato, muitos filósofos (SALMON, 1984; LEWIS, 1986) favorecem um relato causal da explicação porque pensam que podem evitar alguns dos problemas enfrentados pelo modelo da lei de cobertura. Lembre-se do problema do mastro. Por que nossas intuições nos dizem que a altura do mastro explica a extensão da sombra, dadas as leis, mas não o contrário? Plausivelmente, porque a altura do mastro é a causa de a sombra ter 20 metros de comprimento, mas a sombra que tem 20 metros de comprimento não é a causa do mastro ter 15 metros de altura. Assim, ao contrário do modelo da lei de cobertura, um relato causal da explicação dá a resposta "certa" no caso do mastro, pois respeita nossa intuição de que não podemos explicar a altura do mastro apontando para o comprimento da sombra que ele projeta.

A moral geral do problema do mastro é que o modelo da lei de cobertura não pode acomodar o fato de que a explicação é uma relação assimétrica. Ora, a causalidade é, obviamente, uma relação assimétrica também: se x é a causa de y, então, y não é a causa de x. Por exemplo, se o curto-circuito causou o incêndio, o incêndio, claramente, não causou o curto-circuito. É, portanto, plausível sugerir que a assimetria de explicação deriva da assimetria de causalidade. Se explicar um fenômeno é dizer o que o causou, então, como a causalidade é assimétrica, devemos esperar que a explicação seja assimétrica.

O modelo da lei de cobertura enfrenta o problema do mastro precisamente porque tenta analisar o conceito de explicação científica sem referência à causalidade.

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O mesmo acontece com o caso da pílula anticoncepcional. O fato de João tomar pílulas anticoncepcionais não explica por que ele não está grávido, porque as pílulas anticoncepcionais não são a causa de ele não estar grávido. Pelo contrário, o gênero de João é a causa de ele não estar grávido. É por isso que achamos que a resposta correta para a pergunta "por que João não está grávido?" é "porque ele é um homem, e os homens não podem engravidar", em vez da resposta do médico. A resposta do médico satisfaz o modelo da lei de cobertura, mas, como não identifica, corretamente, a causa do fenômeno que desejamos explicar, não constitui uma explicação genuína. A moral geral que extraímos do exemplo da pílula anticoncepcional é que uma explicação científica genuína deve conter informações relevantes para o explanandum. De fato, essa é outra maneira de dizer que a explicação deveria nos dizer a causa do explanandum. Relatos de explicação científica, baseados na causalidade, não se chocam com o problema da irrelevância (SALMON, 1998).

É fácil criticar Hempel por não respeitar o vínculo estreito entre causalidade e explicação, e muitas pessoas o fizeram (PEARL, 2000; SALMON, 1984). De certa forma, essa crítica é um pouco injusta. Hempel se subscreveu a uma doutrina filosófica conhecida como empirismo, e os empiristas são, tradicionalmente, muito desconfiados do conceito de causalidade. O empirismo diz que todo o nosso conhecimento vem da experiência. David Hume (1984), que conhecemos anteriormente, era um empirista importante e argumentou que é impossível experimentar relações causais. Então, ele concluiu que elas não existem, a causalidade é uma invenção da nossa imaginação. Essa é uma conclusão muito difícil de aceitar. Seria, certamente, um fato objetivo que derrubar vasos de vidro faz com que eles quebrem? Hume negou isso. Ele admitiu que é um fato objetivo, que a maioria dos vasos de vidro que foram derrubados, de fato, quebrou, mas nossa ideia de causalidade inclui mais do que isso. Inclui a ideia de um nexo causal entre a queda e a quebra, isto é, que o primeiro produz o segundo. Nenhum desses links pode ser encontrado no mundo, de acordo com Hume: tudo o que vemos é um vaso sendo derrubado, então, ele quebra um momento depois. Nós não experimentamos nenhuma conexão causal entre o primeiro evento e o segundo. A causalidade é, portanto, uma ficção (AGUIAR, 2008).

A maioria dos empiristas não aceitou essa conclusão surpreendente de imediato (MEYERS, 2017). Contudo, como resultado do trabalho de Hume, eles tenderam a considerar a causalidade como um conceito a ser tratado com grande cautela. Assim, para um empirista, a ideia de analisar o conceito de explicação em termos do conceito de causalidade pareceria perversa. Se o objetivo de alguém é esclarecer o conceito de explicação científica, como o de Hempel, há pouco sentido em usar noções que precisam ser esclarecidas.

Para os empiristas, a causalidade precisa definitivamente de esclarecimento filosófico. Portanto, o fato de o modelo da lei de cobertura não mencionar a causalidade não foi um mero descuido da parte de Hempel. Nos últimos anos, o empirismo diminuiu um pouco em popularidade. Além disso, muitos filósofos chegaram à conclusão de que o conceito de causalidade, embora filosoficamente problemático, é indispensável para a

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maneira como entendemos o mundo (PERSSON; YLIKOSKI, 2007). Assim, a ideia de uma explicação baseada na causalidade da explicação científica parece mais aceitável do que teria acontecido nos dias de Hempel.

Os relatos de explicação baseados na causalidade, certamente capturam muito bem a estrutura de muitas explicações científicas reais, mas seriam estes relatos o suficiente? Muitos filósofos dizem que não, alegando que certas explicações científicas não parecem ser causais (PERSSON; YLIKOSKI, 2007). Um tipo de exemplo, deriva das chamadas "identificações teóricas" na ciência. As identificações teóricas envolvem a identificação de um conceito com outro, geralmente tirado de um ramo diferente da ciência. “Água é H20” é um exemplo, assim como “a temperatura é energia cinética molecular média”.

Em ambos os casos, um conceito cotidiano familiar é equacionado ou identificado com um conceito científico mais esotérico. Muitas vezes, as identificações teóricas nos fornecem o que parecem ser explicações científicas. Quando os químicos descobriram que a água é H20, eles explicaram o que é a água. Da mesma forma, quando os físicos descobriram que a temperatura de um objeto é a energia cinética média de suas moléculas, eles explicaram o que é a temperatura. Mas nenhuma dessas explicações é causal. Ser feito de H20 não faz com que uma substância seja água, será apenas água. Ter uma energia cinética molecular média em particular, não causa com que um líquido tenha a temperatura e que apenas está tendo essa temperatura. Se esses exemplos forem aceitos como explicações científicas legítimas, eles sugerem que os relatos de explicação baseados na causalidade podem não ser suficiente.

3 A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO?

A ciência moderna, pode explicar muito sobre o mundo em que vivemos. Mas também há inúmeros fatos que não foram explicados pela ciência, ou pelo menos não explicados completamente. A origem da vida representa um desses exemplos. Sabemos que, cerca de 4 bilhões de anos atrás, moléculas com a capacidade de fazer cópias de si mesmas, apareceram na sopa primitiva, e a vida evoluiu a partir daí. Mas, nós não entendemos como essas moléculas autorreplicantes chegaram lá em primeiro lugar. Outro exemplo, será o fato de muitas crianças autistas tendem a ter memória muito boas. Numerosos estudos de crianças autistas confirmaram esse fato, mas até agora ninguém conseguiu explicá-lo.

Muitas pessoas acreditam que, no final, a ciência será capaz de explicar fatos desse tipo. Essa é uma visão bastante plausível. Biólogos moleculares estão trabalhando duro no problema da origem da vida, e apenas um pessimista diria que nunca o resolverá. Evidentemente, o problema não é fácil, até porque é muito difícil saber as condições da Terra há 4 bilhões de anos atrás. No entanto, não tem razão para pensar sobre a origem da vida nunca será explicada. Da mesma forma para as

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memórias excepcionais de muitas crianças autistas. A ciência da memória ainda está em sua infância, e ainda há muito a ser descoberto sobre a base neurológica do autismo. Obviamente, não podemos garantir que a explicação seja eventualmente encontrada. Mas, dado o número de sucessos explicativos que a ciência moderna já registrou, a aposta inteligente deve estar em muitos dos fatos inexplicáveis de hoje, eventualmente sendo explicados também.

Mas isso, significa que a ciência pode em princípio, explicar tudo? Ou existem alguns fenômenos que devem sempre iludir a explicação científica? Essa não é uma pergunta fácil de responder. Por um lado, parece arrogante afirmar que a ciência pode explicar tudo. Por outro lado, parece míope afirmar que qualquer fenômeno particular, nunca pode ser explicado cientificamente. Pois a ciência muda e se desenvolve muito rapidamente, e um fenômeno que parece completamente inexplicável do ponto de vista da ciência atual, pode ser facilmente explicado amanhã.

Segundo alguns filósofos (RESCHER, 1999), há uma razão puramente lógica pela qual a ciência nunca será capaz de explicar tudo. Pois, para explicar algo, seja o que for, precisamos invocar outra coisa. Mas o que explica a segunda coisa? Para ilustrar, lembre-se de que Newton (2004) explicou uma gama diversificada de fenômenos, usando sua lei da gravitação. Mas o que explica a lei da gravitação em si? Se alguém perguntar, por que todos os corpos exercem uma força gravitacional um sobre o outro? O que devemos dizer a eles? Newton não tinha resposta para essa pergunta. Na ciência newtoniana, a lei da gravitação era um princípio fundamental: explicava outras coisas, mas não podia ser explicada. A moral é generalizável. Por mais que a ciência do futuro possa explicar, as explicações dadas terão que fazer uso de certas leis e princípios fundamentais. Como nada pode explicar-se, segue que pelo menos algumas dessas leis e princípios que permanecerão sem explicação.

O que fazer com esse argumento? Podemos ao menos afirmar, que é inegavelmente muito abstrato. Ele pretende mostrar, que algumas coisas nunca serão explicadas, mas não nos diz o que elas são. No entanto, alguns filósofos fizeram sugestões concretas sobre fenômenos que eles acreditam que a ciência nunca pode explicar (RESCHER, 1999). Um exemplo é a consciência – a característica distintiva do pensamento, presente em criaturas sencientes, como nós e outros animais superiores.

Muita pesquisa sobre a natureza da consciência tem sido e continua a ser feita por cientistas do cérebro, psicólogos e outros. Vários filósofos recentes afirmam que, seja o que for que essa pesquisa levantar, nunca explicará a natureza da consciência (BLOCK; FLANAGAN; GÜZELDERE, 1997). Argumentam que há algo intrinsecamente misterioso no fenômeno da consciência, que nenhuma quantidade de investigação científica poderia eliminar.

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Quais são os motivos para essa visão? O argumento básico é que as experiências conscientes são fundamentalmente diferentes de qualquer outra coisa no mundo, na medida em que elas têm um "aspecto subjetivo" (BLOCK; FLANAGAN; GÜZELDERE, 1997). Considere, por exemplo, a experiência de assistir a um filme de terror terrível. Essa é uma experiência com um “sentimento” muito característico; no jargão atual, há “algo que é como” ter a experiência. Os neurocientistas podem um dia ser capazes de fornecer um relato detalhado dos acontecimentos complexos no cérebro que produzem nosso sentimento de terror. Mas será que isso explica por que assistir a um filme de terror parece ser do jeito que acontece, em vez de se sentir de outra maneira? Muitas pessoas acreditam que não. Nessa visão, o estudo científico do cérebro pode, no máximo, nos dizer quais processos cerebrais estão correlacionados com quais experiências conscientes. Esta é certamente uma informação interessante e valiosa. No entanto, não nos diz por que experiências com "sensações" subjetivas distintas devem resultar dos acontecimentos puramente físicos no cérebro. Com isso a consciência, ou pelo menos um aspecto importante, é cientificamente inexplicável.

Embora bastante convincente, esse argumento é muito controverso e não endossado por todos os filósofos, muito menos por todos os neurocientistas. De fato, um livro bem conhecido e publicado em 1991, pelo filósofo Daniel Dennett (nascido em 1942), é desafiadoramente intitulado Consciência Explicada. Defensores da visão de que a consciência é cientificamente inexplicável são às vezes acusados de falta de imaginação. Mesmo se for verdade que a ciência do cérebro, como praticada atualmente, não pode explicar o aspecto subjetivo da experiência consciente, não podemos imaginar o surgimento de um tipo radicalmente diferente de ciência cerebral, com técnicas explicativas radicalmente diferentes, que explica por que nossas experiências são assim? Existe uma longa tradição de filósofos, tentando dizer aos cientistas o que não é possível, e mais tarde os desenvolvimentos científicos frequentemente provaram que os filósofos estavam errados. Só o tempo dirá, se o mesmo destino aguarda aqueles que argumentam que a consciência deve sempre escapar à explicação científica.

3.1 EXPLICAÇÃO E REDUÇÃO

As diferentes disciplinas científicas são projetadas para explicar diferentes tipos de fenômenos (PERSSON; YLIKOSKI, 2007). Explicar por que da borracha não conduz eletricidade? É uma tarefa da física. Explicar por que as tartarugas têm vidas tão longas? É uma tarefa para a biologia. Explicar por que as taxas de juros mais altas reduzem a inflação? É uma tarefa para a economia e assim por diante.

Em resumo, há uma divisão de trabalho entre as diferentes ciências: cada uma é especializada em explicar seu próprio conjunto particular de fenômenos. Isso explica o motivo que as ciências não costumam competir umas com as outras – por que os biólogos, por exemplo, não se preocupam com o fato de físicos e economistas invadirem seu território.

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Não o bastante, é amplamente aceito que os diferentes ramos da ciência não são todos iguais: alguns são mais fundamentais do que outros. A física é geralmente considerada a ciência mais fundamental de todas (OMNÈS, 1996). Por quê? Porque os objetos estudados pelas outras ciências, são compostos basicamente de partículas físicas. Considere os organismos vivos, por exemplo. Os organismos vivos são compostos de células, que são compostas de água, ácidos nucléicos (como o DNA), proteínas, açúcares e lipídios (gorduras), todos compostos de moléculas ou longas cadeias de moléculas unidas. Mas as moléculas são feitas de átomos, que são partículas físicas. Portanto, os objetos que os biólogos estudam são basicamente entidades físicas muito complexas. O mesmo se aplica às outras ciências, até mesmo às ciências sociais. A economia, por exemplo. A economia estuda o comportamento de corporações e consumidores no mercado e as consequências desse comportamento. Mas os consumidores, são seres humanos e as corporações são feitas de seres humanos; e os seres humanos são organismos vivos, portanto, entidades físicas.

Isso significa que, em princípio, a física pode abranger todas as ciências de nível superior? Como tudo é feito de partículas físicas, certamente, se tivéssemos uma física completa, que nos permitisse prever perfeitamente o comportamento de todas as partículas físicas do universo, todas as outras ciências se tornariam supérfluas? A maioria dos filósofos resiste a essa linha de pensamento (OMNÈS, 1996). Afinal, parece loucura sugerir que a física possa um dia explicar as coisas que a biologia e a economia explicam. A perspectiva de deduzir as leis da biologia e da economia, diretamente das leis da física parece muito remota. Seja qual for a aparência física do futuro, é pouco provável que seja capaz de prever recessões econômicas. Longe de ser redutível à física, ciências como a biologia e a economia parecem muito autônomas dela.

Isso leva a um enigma filosófico. Como pode uma ciência que estuda entidades que são essencialmente físicas, não ser redutível à física? Admitindo que as ciências de nível superior são de fato autônomas da física, como isso é possível? Segundo alguns filósofos, como Elliot Sober (nascido em 1948), a resposta está no fato de que os objetos estudados pelas ciências de nível superior têm uma "realização múltipla" no nível físico (SOBER, 1999). Para ilustrar a ideia de realização múltipla (também conhecida como o argumento da múltipla realizabilidade), imagine uma coleção de cinzeiros. Cada cinzeiro individual é obviamente uma entidade física, como tudo o mais no universo. Mas a composição física dos cinzeiros pode ser muito diferente – alguns podem ser feitos de vidro, outros de alumínio, outros de plástico, e assim por diante. E eles provavelmente diferem em tamanho, forma e peso. Não há virtualmente nenhum limite na gama de propriedades físicas diferentes de um cinzeiro pode ter. Portanto, é impossível definir o conceito “cinzeiro” em termos puramente físicos. Não podemos encontrar uma afirmação verdadeira da forma “x é uma célula se e somente se x é ...”, onde o espaço em branco é preenchido por uma expressão tirada da linguagem da física. Isso significa que os cinzeiros têm uma realização múltipla (múltipla realizabilidade) no nível físico.

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Os filósofos frequentemente invocaram a múltipla realizabilidade, para explicar por que a psicologia não pode ser reduzida à física ou à química (PUTNAM, 1997), mas, em princípio, a explicação funciona para qualquer ciência de nível superior. Considere por exemplo, o fato biológico de que as células nervosas vivem mais que as células da pele. Células são entidades físicas, então pode-se pensar que esse fato será um dia explicado pela física. No entanto, as células quase certamente se multiplicam no nível microfísico. Em última análise, as células são constituídas de átomos, mas o arranjo preciso dos átomos será muito diferente em células diferentes. Portanto, o conceito "célula" não pode ser definido em termos tirados da física fundamental. Não existe uma afirmação verdadeira da forma “x é uma célula se e somente se x é ...”, onde o espaço em branco é preenchido por uma expressão tirada da linguagem da microfísica. Se isso estiver correto, significa que a física fundamental nunca será capaz de explicar o porquê as células nervosas vivem mais do que as células da pele, ou mesmo quaisquer outros fatos sobre as células. O vocabulário da biologia celular e o vocabulário da física, não mapeiam um ao outro da maneira necessária. Assim, temos uma explicação do motivo pelo qual a biologia celular não pode ser reduzida à física, apesar do fato das células serem entidades físicas. Nem todos os filósofos estão satisfeitos com a doutrina da múltipla realizabilidade (MITROVIC, 2017), mas prometem fornecer uma explicação clara da autonomia das ciências de nível superior, tanto da física quanto das outras.

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REALISMO E ANTIRREALISMO

Samir Okasha

Há um debate muito antigo em filosofia entre duas escolas opostas de pensamento chamado realismo e idealismo. O realismo, sustenta que o mundo físico existe independentemente do pensamento humano e da percepção. O idealismo nega isso, afirma que o mundo físico é de algum modo, dependente da atividade consciente dos humanos. Para a maioria das pessoas, o realismo parece mais plausível que o idealismo. Pois o realismo se encaixa bem com a visão do senso comum de que os fatos sobre o mundo estão "lá fora" esperando para serem descobertos por nós, mas o idealismo não. De fato, à primeira vista, o idealismo pode parecer ingênuo. Uma vez que rochas e árvores presumivelmente continuariam a existir mesmo se a raça humana morresse, em que sentido sua existência depende das mentes humanas? Na verdade, a questão é um pouco mais sutil do que isso, e continua a ser discutida pelos filósofos hoje.

Embora a questão tradicional de realismo/idealismo, pertença a uma área da filosofia chamada metafísica, na verdade nada tem a ver com a ciência. Nossa preocupação neste tópico é com um debate mais moderno que é especificamente sobre ciência, e de certa forma análogo à questão tradicional. O debate é entre uma posição conhecida como realismo científico e seu inverso, conhecido como antirrealismo ou instrumentalismo. A partir de agora, usaremos a palavra "realismo" como realismo científico e "realista" como realista científico.

Realismo Científico e Antirrealismo

Como a maioria dos "ismos" filosóficos, o realismo científico vem em muitas versões diferentes, de modo que não pode ser definido de maneira totalmente precisa. Mas a ideia básica é simples. Os realistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira do mundo. Isso pode soar como uma doutrina razoavelmente inócua. Pois, certamente, ninguém pensa que a ciência tem como objetivo produzir uma falsa descrição do mundo. Mas isso não é o que os antirrealistas pensam. Pelo contrário, os antirrealistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira de uma certa parte do mundo, a parte "observável". No que diz respeito à parte “inobservável” do mundo, não faz diferença se o que a ciência diz é verdade ou não, de acordo com os antirrealistas.

O que exatamente os antirrealistas querem dizer com a parte observável do mundo? Eles significam o mundo cotidiano de mesas e cadeiras, árvores e animais, tubos de ensaio, tempestades e nevascas, e assim por diante. Coisas como essas podem ser diretamente

LEITURACOMPLEMENTAR

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percebidas pelos seres humanos – é isso que significa chamá-las de observáveis. Alguns ramos da ciência lidam exclusivamente com objetos que são observáveis. Um exemplo é a paleontologia ou o estudo de fósseis. Os fósseis são facilmente observáveis – qualquer um com visão normal pode vê-los. Mas outras ciências fazem afirmações sobre a região da realidade não observável. A física é o exemplo óbvio. Os físicos avançam teorias sobre átomos, elétrons, quarks, léptons e outras partículas estranhas, nenhuma das quais pode ser observada no sentido normal da palavra. Entidades deste tipo estão além do alcance dos poderes de observação dos humanos.

Com respeito a ciências como a paleontologia, realistas e antirrealistas não discordam. Uma vez que os fósseis são observáveis, a tese realista de que a ciência tem como objetivo descrever verdadeiramente o mundo e a tese antirrealista que a ciência pretende descrever verdadeiramente o mundo observável obviamente coincide, no que diz respeito ao estudo de fósseis. Mas quando se trata de ciências como a física, realistas e antirrealistas discordam. Os realistas dizem que quando os físicos apresentam teorias sobre elétrons e quarks, estão tentando fornecer uma descrição verdadeira do mundo subatômico, assim como os paleontólogos estão tentando fornecer uma descrição verdadeira do mundo dos fósseis. Os antirrealistas discordam: eles veem uma diferença fundamental entre as teorias da física subatômica e da paleontologia.

O que os antirrealistas acham que os físicos fazem quando falam sobre entidades não observáveis? Tipicamente, eles afirmam que essas entidades são apenas ficções convenientes, introduzidas por físicos para ajudar a prever fenômenos observáveis. Para ilustrar, considere a teoria cinética dos gases, que diz que qualquer volume de um gás contém um grande número de entidades muito pequenas em movimento. Essas entidades – moléculas – são inobserváveis. Da teoria cinética podemos deduzir várias consequências sobre o comportamento observável dos gases, por exemplo, que o aquecimento de uma amostra de gás fará com que ela se expanda se a pressão permanecer constante, o que pode ser verificado experimentalmente. Segundo os antirrealistas, o único propósito de postular entidades não observáveis na teoria cinética é deduzir as consequências desse tipo. Se os gases realmente contêm ou não moléculas em movimento não importa; O ponto da teoria cinética não é descrever verdadeiramente os fatos ocultos, mas apenas fornecer uma maneira conveniente de prever observações. Podemos ver por que o antirrealismo é algumas vezes chamado de “instrumentalismo” – ele considera as teorias científicas como instrumentos para nos ajudar a prever fenômenos observacionais, ao invés de tentativas de descrever a natureza subjacente da realidade.

Uma vez que o debate realismo/antirrealismo diz respeito ao objetivo da ciência, pode-se pensar que poderia ser resolvido simplesmente perguntando aos próprios cientistas. Por que não fazer uma pesquisa com cientistas perguntando sobre seus objetivos? Mas essa sugestão não entende o ponto – ela toma a expressão "o objetivo da ciência" literalmente demais. Quando perguntamos qual é o objetivo da ciência, não estamos perguntando sobre os objetivos de cientistas individuais. Em vez disso, estamos perguntando a melhor forma de entender o que os cientistas dizem e fazem – como interpretar o empreendimento científico. Os realistas acham que devemos

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interpretar todas as teorias científicas como tentativas de descrições da realidade; os antirrealistas acham que essa interpretação é inadequada para teorias que falam sobre entidades e processos inobserváveis. Embora seja certamente interessante descobrir as próprias opiniões dos cientistas sobre o debate do realismo/antirrealismo, a questão é em última instância filosófica.

Grande parte da motivação para o antirrealismo decorre da crença de que não podemos realmente alcançar o conhecimento da parte inobservável da realidade – ela está além do alcance humano. Nesta visão, os limites do conhecimento científico são estabelecidos por nossos poderes de observação. Assim, a ciência pode nos dar conhecimento de fósseis, árvores e cristais de açúcar, mas não de átomos, elétrons e quarks – pois os últimos não são observáveis. Essa visão não é totalmente implausível. Pois ninguém poderia duvidar seriamente da existência de fósseis e árvores, mas o mesmo não acontece com átomos e elétrons. Como vimos no último anteriormente, no final do século XIX, muitos cientistas importantes duvidaram da existência de átomos. Qualquer um que aceite tal visão deve, obviamente, dar alguma explicação de por que os cientistas avançam teorias sobre entidades inobserváveis, se o conhecimento científico estiver limitado ao que pode ser observado. A explicação que os antirrealistas dão é que são ficções convenientes, projetadas para ajudar a prever o comportamento das coisas no mundo observável.

Os realistas não concordam que o conhecimento científico é limitado por nossos poderes de observação. Pelo contrário, eles acreditam que já temos conhecimento substancial da realidade inobservável. Pois há todos os motivos para acreditar que nossas melhores teorias científicas são verdadeiras e nossas melhores teorias científicas falam de entidades inobserváveis. Considere, por exemplo, a teoria atômica da matéria, que diz que toda matéria é composta de átomos. A teoria atômica é capaz de explicar uma grande variedade de fatos sobre o mundo. Segundo os realistas, isso é uma boa evidência de que a teoria é verdadeira. Por exemplo, que a matéria é composta de átomos que se comportam como a teoria diz. É claro que a teoria pode ser falsa, apesar da aparente evidência a seu favor, mas isso é verdade também para qualquer teoria. Só porque os átomos são inobserváveis, isso não é razão para interpretar a teoria atômica como algo diferente de uma tentativa de descrição da realidade – e uma muito bem-sucedida, com toda a probabilidade.

Estritamente devemos distinguir dois tipos de antirrealismos. De acordo com o primeiro tipo, falar de entidades não observáveis não deve ser entendido literalmente. Assim, quando um cientista apresenta uma teoria sobre elétrons, por exemplo, não devemos compreendê-lo afirmando a existência de entidades chamadas "elétrons". Em vez disso, sua fala de elétrons é metafórica. Essa forma de antirrealismo foi popular na primeira metade do século XX, mas poucas pessoas o defendem hoje. Foi motivada em grande parte por uma doutrina na filosofia da linguagem, segundo a qual não é possível fazer afirmações significativas sobre coisas que não podem, em princípio, ser observadas, uma doutrina que poucos filósofos contemporâneos aceitam. O segundo

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tipo de antirrealismo aceita que falar de entidades inobserváveis deve ser tomado pelo seu valor aparente: se uma teoria diz que os elétrons são carregados negativamente, é verdade se os elétrons existem e estão carregados negativamente, mas falsos de outra forma. Mas nunca saberemos disso, diz o antirrealista. Assim, a atitude correta em relação às afirmações que os cientistas fazem sobre a realidade inobservável é de total agnosticismo. Eles são ou verdadeiros ou falsos, mas somos incapazes de descobrir qual. O antirrealismo mais moderno é desse segundo tipo.

O Argumento "Não-Milagres"

Muitas teorias que postulam entidades inobserváveis são empiricamente bem-sucedidas – elas fazem excelentes previsões sobre o comportamento de objetos no mundo observável. A teoria cinética dos gases é um exemplo, e há muitos outros. Além disso, tais teorias geralmente têm importantes aplicações tecnológicas. Por exemplo, a tecnologia laser baseia-se em uma teoria sobre o que acontece quando os elétrons de um átomo vão de estados de energia mais altos para os mais baixos. E os lasers funcionam – eles nos permitem corrigir nossa visão, atacar nossos inimigos com mísseis guiados e fazer muito mais além disso. A teoria que sustenta a tecnologia laser é, portanto, altamente empiricamente bem-sucedida.

O sucesso empírico de teorias que postulam entidades inobserváveis é a base de um dos argumentos mais fortes para o realismo científico, chamado de argumento "não-milagres". De acordo com esse argumento, seria uma coincidência extraordinária se uma teoria que fala sobre elétrons e átomos fizesse previsões precisas sobre o mundo observável , a menos que elétrons e átomos realmente existissem. Se não há átomos e elétrons, o que explica o ajuste próximo da teoria com os dados observacionais? Da mesma forma, como explicamos os avanços tecnológicos que nossas teorias conduziram, a menos que suponhamos que as teorias em questão sejam verdadeiras? Se átomos e elétrons são apenas "ficções convenientes", como os antirrealistas afirmam, então por que os lasers funcionam? Nesta visão, ser um antirrealista é como acreditar em milagres. Como é obviamente melhor não acreditar em milagres se uma alternativa não miraculosa estiver disponível, devemos ser realistas e não antirrealistas.

Esse argumento não pretende provar que o realismo é certo e o antirrealismo errado. Pelo contrário, é um argumento de plausibilidade, uma inferência à melhor explicação. O fenômeno a ser explicado é o fato de que muitas teorias que postulam entidades inobserváveis desfrutam de um alto nível de sucesso empírico. A melhor explicação desse fato, dizem os defensores do argumento "não-milagres", é que as teorias são verdadeiras, as entidades em questão realmente existem e se comportam exatamente como as teorias dizem. A menos que aceitemos essa explicação, o sucesso empírico de nossas teorias é um mistério inexplicável.

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Os antirrealistas responderam ao argumento "não-milagres" de várias maneiras. Uma resposta apela a certos fatos sobre a história da ciência. Historicamente, existem muitos casos de teorias que hoje acreditamos serem falsas, mas que foram empiricamente bem-sucedidas em sua época. Em um artigo bem conhecido, o filósofo da ciência americano Larry Laudan lista mais de 30 dessas teorias, tiradas de uma série de diferentes disciplinas e épocas científicas. A teoria do flogisto da combustão é um exemplo. Essa teoria, que foi amplamente aceita até o final do século XVIII, afirmava que quando qualquer objeto queima, libera uma substância chamada "flogisto" na atmosfera. A química moderna nos ensina que isso é falso: não existe tal substância como o flogisto. Pelo contrário, a queima ocorre quando as coisas reagem com o oxigênio no ar. Mas, apesar da inexistência do flogisto, a teoria do flogisto foi empiricamente bem-sucedida: ajustou razoavelmente bem os dados observacionais disponíveis na época.

Exemplos desse tipo sugerem que o argumento "não-milagres" para o realismo científico é um pouco superficial demais. Os proponentes desse argumento consideram o sucesso empírico das teorias científicas atuais como evidência de sua verdade. Mas a história da ciência mostra que as teorias de sucesso empírico muitas vezes se revelaram falsas. Então, como sabemos que o mesmo destino não acontecerá com as teorias de hoje? Como sabemos que a teoria atômica da matéria, por exemplo, não seguirá o mesmo caminho que a teoria do flogisto? Uma vez que prestamos a devida atenção à história da ciência, argumentam os antirrealistas, vemos que a inferência do sucesso empírico para a verdade teórica é muito incerta. A atitude racional em relação à teoria atômica é, portanto, de agnosticismo – pode ser verdade ou não. Nós simplesmente não sabemos, dizem os antirrealistas.

Este é um poderoso contra-ataque ao argumento "não-milagres", mas não é completamente decisivo. Alguns realistas responderam modificando ligeiramente o argumento. De acordo com a versão modificada, o sucesso empírico de uma teoria é uma evidência de que o que a teoria diz sobre o mundo inobservável é aproximadamente verdadeiro, e não precisamente verdadeiro.

Essa afirmação mais fraca é menos vulnerável a contraexemplos da história da ciência. É também mais modesto: permite ao realista admitir que as teorias de hoje podem não estar corretas até o último detalhe, enquanto ainda sustentam que estão amplamente nas linhas corretas. Outra maneira de modificar o argumento é refinar a noção de sucesso empírico. Alguns realistas sustentam que o sucesso empírico não é apenas uma questão de ajustar os dados observacionais conhecidos, mas, sim, permitir-nos prever novos fenômenos observacionais que eram previamente desconhecidos. Em relação a este critério mais rigoroso de sucesso empírico, é menos fácil encontrar exemplos históricos de teorias de sucesso empírico que mais tarde se revelaram falsas.

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Se esses refinamentos podem realmente salvar o argumento "sem-milagres" é discutível. Eles certamente reduzem o número de contraexemplos históricos, mas não a zero. Um que permanece é a teoria ondulatória da luz, apresentada pela primeira vez por Christian Huygens em 1690. Segundo essa teoria, a luz consiste em vibrações semelhantes a ondas em um meio invisível chamado de éter, que deveria permear todo o universo. (O rival da teoria das ondas era a teoria das partículas da luz, favorecida por Newton, que sustentava que a luz consiste em partículas muito pequenas emitidas pela fonte de luz.) A teoria das ondas não foi amplamente aceita até que o físico francês Auguste Fresnel formulou uma versão matemática da teoria em 1815, e usou-a para prever alguns novos fenómenos ópticos surpreendentes. Experimentos ópticos confirmaram as previsões de Fresnel, convencendo muitos cientistas do século XIX de que a teoria da onda da luz deve ser verdadeira. Mas a física moderna nos diz que a teoria não é verdadeira: não existe tal coisa como o éter, então a luz não consiste em vibrações nela. Mais uma vez, temos um exemplo de uma teoria falsa, mas empiricamente bem-sucedida.

A característica importante deste exemplo é que ele fala até contra a versão modificada do argumento “não milagres”. Pois a teoria de Fresnel fez previsões novas, então qualifica-se como empiricamente bem-sucedida, mesmo em relação à noção mais estrita de sucesso empírico. E é difícil ver como a teoria de Fresnel pode ser chamada de "aproximadamente verdadeira", dado que se baseou em torno da ideia do éter, que não existe. Seja lá o que exatamente signifique para uma teoria ser aproximadamente verdadeira, uma condição necessária é certamente que as entidades sobre as quais a teoria fala realmente existem. Em suma, a teoria de Fresnel foi empiricamente bem-sucedida, mesmo de acordo com uma compreensão estrita dessa noção, mas não chegou a ser aproximadamente verdadeira. A moral da história, dizem os antirrealistas, é que não devemos presumir que as teorias científicas modernas estão mais ou menos no caminho certo, apenas porque são tão bem-sucedidas empiricamente.

Se o argumento "não milagres" é um bom argumento para o realismo científico é, portanto, uma questão em aberto. Por um lado, o argumento está aberto a objeções bastante sérias, como vimos. Por outro lado, há algo intuitivamente convincente sobre o argumento. É realmente difícil aceitar que átomos e elétrons possam não existir, quando se considera o incrível sucesso das teorias que postulam essas entidades. Mas, como mostra a história da ciência, deveríamos ser muito cautelosos ao supor que nossas teorias científicas atuais são verdadeiras, por melhor que elas se encaixem nos dados. Muitas pessoas supuseram isso no passado e provou-se que estavam erradas.

A Distinção Observável/Inobservável

Central para o debate entre realismo e antirrealismo é a distinção entre coisas que são observáveis e coisas que não são. Até agora, nós simplesmente consideramos essa distinção como algo óbvio – mesas e cadeiras são observáveis, átomos e elétrons

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não são. Mas, na verdade, a distinção é bastante problemática filosoficamente. De fato, um dos principais argumentos para o realismo científico diz que não é possível traçar a distinção observável/inobservável de uma maneira baseada em princípios.

Por que isso deveria ser um argumento para o realismo científico? Porque a coerência do antirrealismo é crucialmente dependente de haver uma distinção clara entre o observável e o inobservável. Lembre-se de que os antirrealistas advogam uma atitude diferente em relação às afirmações científicas, dependendo do que se tratam de partes observáveis ou inobserváveis da realidade – devemos permanecer agnósticos quanto à verdade da segunda, mas não da primeira. O antirrealismo pressupõe, portanto, que podemos dividir as afirmações científicas em dois tipos: aquelas que são sobre entidades e processos observáveis, e aquelas que não são. Se se verificar que essa divisão não pode ser feita de maneira satisfatória, então o antirrealismo está obviamente em sérios apuros, e o realismo vence à revelia. É por isso que os realistas científicos costumam enfatizar os problemas associados à distinção observável/inobservável.

Um desses problemas diz respeito à relação entre observação e detecção. Entidades como elétrons obviamente não são observáveis no sentido comum, mas sua presença pode ser detectada usando aparelhos especiais chamados detectores de partículas. O detector de partículas mais simples é a câmara de nuvem, que consiste em um recipiente fechado cheio de ar que foi saturado com vapor de água. Quando partículas carregadas, como os elétrons, passam pela câmara, elas colidem com átomos neutros no ar, convertendo-os em íons; o vapor de água condensa em torno desses íons, causando a formação de gotículas líquidas, que podem ser vistas a olho nu.

Podemos seguir o caminho de um elétron através da câmara de nuvens observando os rastros dessas gotas líquidas. Isso significa que os elétrons podem ser observados afinal? A maioria dos filósofos diria que não: as câmaras de nuvens nos permitem detectar elétrons, não os observar diretamente. Da mesma maneira, os jatos de alta velocidade pode ser detectados pelas trilhas de vapor que deixam para trás, mas observar essas trilhas não é observar o jato. Mas será que é sempre claro como distinguir a observação da detecção? Se não o for, então a posição antirrealista poderia estar em apuros.

Em uma defesa bem conhecida do realismo científico do início dos anos 1960, o filósofo americano Grover Maxwell apresentou o seguinte problema para o antirrealista. Considere a seguinte sequência de eventos: olhando para algo a olho nu, olhando para algo através de uma janela, olhando para algo através de um par de óculos fortes, olhando para algo através de binóculos, olhando para algo através de um microscópio de baixa potência, olhando algo através de um microscópio de alta potência, e assim por diante. Maxwell argumentou que esses eventos estão em um contínuo suave. Então, como decidimos qual conta como observado e qual não? Pode um biólogo observar microrganismos com seu microscópio de alta potência, ou só pode detectar sua

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presença da mesma maneira que um físico pode detectar a presença de elétrons em uma câmara de nuvens? Se algo só pode ser visto com a ajuda de instrumentos científicos sofisticados, isso é considerado observável ou inobservável? Quão sofisticada pode ser a instrumentação, antes de termos um caso de detecção em vez de observação? Não há uma maneira baseada em princípios de responder a essas questões, argumentou Maxwell, de modo que a tentativa antirrealista de classificar entidades como observáveis ou inobserváveis está fadada ao fracasso.

O argumento de Maxwell é reforçado pelo fato de os próprios cientistas às vezes falarem sobre “observar” partículas com a ajuda de aparelhos sofisticados. Na literatura filosófica, os elétrons são geralmente tomados como exemplos paradigmáticos de entidades inobserváveis, mas os cientistas geralmente ficam perfeitamente felizes em falar sobre "observar" elétrons usando detectores de partículas. É claro que isso não prova que os filósofos estão errados e que os elétrons são observáveis, pois a conversa dos cientistas provavelmente é mais bem vista como um façon-de-parler (maneira de falar). Da mesma forma, o fato de os cientistas falarem em ter uma prova experimental de uma teoria não significa que experimentos possam realmente provar que as teorias são verdadeiras, como vimos anteriormente. No entanto, se realmente existe uma distinção observável/inobservável filosoficamente importante, como os antirrealistas afirmam, é estranho que corresponda tão mal à maneira como os próprios cientistas falam.

Os argumentos de Maxwell são poderosos, mas de modo algum completamente decisivos. Bas van Fraassen, um líder antirrealista contemporâneo, afirma que os argumentos de Maxwell apenas mostram que "observável" é um conceito vago. Um conceito vago é aquele que tem casos limítrofes – casos que não são claros ou não se enquadram claramente neles. "Calvo" é um exemplo óbvio. Desde que a perda de cabelo vem em graus, há muitos homens de quem é difícil dizer se eles são calvos ou não. Mas van Fraassen aponta que conceitos vagos são perfeitamente utilizáveis e podem marcar distinções genuínas no mundo (na verdade, a maioria dos conceitos é vaga, pelo menos até certo ponto). Ninguém poderia argumentar que a distinção entre homens calvos e hirsutos é irreal ou sem importância simplesmente porque "calvo" é vago. Certamente, se tentarmos traçar uma linha divisória entre homens calvos e hirsutos, será arbitrário. Mas como há casos evidentes de homens que são calvos e casos evidentes de homens que não são, a impossibilidade de traçar uma linha divisória nítida não importa. O conceito é perfeitamente utilizável apesar de sua imprecisão.

Precisamente, se aplica a "observável", de acordo com van Fraassen. Existem casos claros de entidades que podem ser observadas, por exemplo, cadeiras e casos bem definidos de entidades que não podem, por exemplo, elétrons. O argumento de Maxwell destaca o fato de que também há casos limítrofes, onde não temos certeza se entidades em questão podem ser observadas ou apenas detectadas. Portanto, se tentarmos traçar uma linha divisória nítida entre entidades observáveis e inobserváveis, ela será inevitavelmente arbitrária. Mas, como acontece com a calvície, isso não mostra que a distinção observável/inobservável é de alguma forma

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irreal ou sem importância, pois há casos bem definidos em ambos os lados. Assim, a imprecisão do termo "observável" não deveria ser um empecilho para o antirrealista, argumenta van Fraassen. Apenas estabelece um limite superior na precisão com a qual ele pode formular sua posição.

Quão forte é esse argumento? Van Fraassen certamente tem razão quando diz que a existência de casos limítrofes e a consequente impossibilidade de traçar um limite agudo sem arbitrariedade não mostram que a distinção observável/inobservável é irreal. Até esse ponto, seu argumento contra Maxwell é bem-sucedido. No entanto, uma coisa é mostrar que há uma distinção real entre entidades observáveis e inobserváveis, e outra para mostrar que a distinção é capaz de suportar o peso filosófico que os antirrealistas desejam colocar nela. Lembre-se de que os antirrealistas advogam uma atitude de completo agnosticismo em relação a alegações sobre a parte não observável da realidade – não temos como saber se são verdadeiras ou não, dizem eles. Mesmo se concedermos a van Fraassen seu argumento de que existem casos claros de entidades inobserváveis, e que isso é suficiente para o antirrealista continuar, o antirrealista ainda precisa fornecer um argumento para pensar que o conhecimento da realidade inobservável é impossível.

O Argumento da Subdeterminação

Um argumento para o antirrealismo centra-se na relação entre os dados observacionais dos cientistas e suas afirmações teóricas. Os antirrealistas enfatizam que os dados finais aos quais as teorias científicas são responsáveis são sempre de caráter observacional (muitos realistas concordariam com essa afirmação). Para ilustrar, considere novamente a teoria cinética dos gases, que diz que qualquer amostra de gás consiste em moléculas em movimento. Como essas moléculas são inobserváveis, obviamente não podemos testar a teoria observando diretamente várias amostras de gás. Em vez disso, precisamos deduzir da teoria alguma afirmação que possa ser diretamente testada, que, invariavelmente, será sobre entidades observáveis. Como vimos, a teoria cinética implica que uma amostra de gás se expandirá quando aquecida, se a pressão permanecer constante. Essa afirmação pode ser testada diretamente, observando-se as leituras das peças relevantes do aparelho em um laboratório. Este exemplo ilustra uma verdade geral: os dados observacionais constituem a evidência final para afirmações sobre entidades não observáveis.

Os antirrealistas argumentam que os dados observacionais "subdeterminam" as teorias que os cientistas propuseram em sua base. O que isto significa? Isso significa que os dados podem, em princípio, ser explicados por muitas teorias diferentes e mutuamente incompatíveis. No caso da teoria cinética, os antirrealistas dirão que uma possível explicação dos dados observacionais é que os gases contêm grandes quantidades de moléculas em movimento, como diz a teoria cinética. Mas eles insistirão

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que existem outras explicações possíveis, que entram em conflito com a teoria cinética. Assim, de acordo com antirrealistas, as teorias científicas que postulam entidades inobserváveis são subdeterminadas pelos dados observacionais – sempre haverá um número de teorias concorrentes que podem explicar esses dados igualmente bem.

É fácil entender por que o argumento da subdeterminação sustenta uma visão antirrealista da ciência. Pois, se as teorias são sempre subdeterminadas pelos dados observacionais, como podemos ter razão para acreditar que uma determinada teoria é verdadeira? Suponha que um cientista defenda uma dada teoria sobre entidades não observáveis, com base no fato de que ela pode explicar uma grande variedade de dados observacionais. Um filósofo da ciência antirrealista aparece e argumenta que os dados podem, de fato, ser explicados por várias teorias alternativas. Se o antirrealista está correto, segue-se que a confiança do cientista em sua teoria é equivocada. Por qual razão o cientista tem que escolher a teoria que ele defende, em vez de uma das alternativas? Em tal situação, certamente o cientista deve admitir que ele não tem ideia de qual teoria é verdadeira. A subdeterminação conduz naturalmente à conclusão antirrealista de que o agnosticismo é a atitude correta a ser tomada em relação a afirmações sobre a região da realidade não observável.

Mas será que é verdade que um determinado conjunto de dados observacionais pode sempre ser explicado por muitas teorias diferentes, como os antirrealistas sustentam? Os realistas geralmente respondem ao argumento da subdeterminação insistindo que essa afirmação é verdadeira apenas em um sentido trivial e desinteressante. Em princípio, sempre haverá mais de uma explicação possível de um determinado conjunto de observações. Mas, dizem os realistas, não se segue que todas essas possíveis explicações sejam tão boas quanto as outras. Só porque duas teorias podem explicar nossos dados observacionais não significa que não há nada a escolher entre elas. Pois uma das teorias poderia ser mais simples que a outra, por exemplo, ou poderia explicar os dados de uma maneira mais intuitivamente plausível, ou postular menos causas ocultas, e assim por diante. Uma vez que reconhecemos que existem critérios para escolha teórica além da compatibilidade com os dados observacionais, o problema da subdeterminação desaparece. Nem todas as explicações possíveis de nossos dados observacionais são tão boas quanto as outras. Mesmo que os dados que a teoria cinética explica possam, em princípio, ser explicados por teorias alternativas, não se segue que essas alternativas possam explicar tão bem quanto a teoria cinética.

Essa resposta ao argumento da subdeterminação é reforçada pelo fato de que há relativamente poucos casos reais de subdeterminação na história da ciência. Se os dados observacionais sempre podem ser explicados igualmente bem por muitas teorias diferentes, como afirmam os antirrealistas, certamente deveríamos esperar encontrar cientistas em desacordo quase perpétuo uns com os outros? Mas isso não é o que encontramos. De fato, quando inspecionamos o registro histórico, a situação é quase exatamente o inverso daquilo que o argumento da subdeterminação nos levaria a esperar. Longe de os cientistas se depararem com um grande número de explicações

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alternativas de seus dados observacionais, eles muitas vezes têm dificuldade em encontrar até mesmo uma teoria que se ajuste adequadamente aos dados. Isso dá suporte à visão realista de que a subdeterminação é meramente uma preocupação do filósofo, com pouca relação com a prática científica real.

Os antirrealistas dificilmente ficarão impressionados com essa resposta. Afinal, as preocupações filosóficas ainda são genuínas, mesmo que suas implicações práticas sejam poucas. A filosofia não pode mudar o mundo, mas isso não significa que não seja importante. E a sugestão de que critérios como a simplicidade podem ser usados para julgar entre teorias concorrentes imediatamente convida a pergunta embaraçosa de por que teorias mais simples deveriam ser consideradas mais prováveis de serem verdadeiras; abordamos essa questão anteriormente. Os antirrealistas tipicamente admitem que o problema da subdeterminação pode ser eliminado na prática usando critérios como a simplicidade para discriminar entre explicações concorrentes de nossos dados observacionais. Mas eles negam que tais critérios sejam indicadores confiáveis da verdade.

Teorias mais simples podem ser mais convenientes para trabalhar, mas não são intrinsecamente mais prováveis do que as complexas. Assim, o argumento da subdeterminação se sustenta: sempre há múltiplas explicações de nossos dados, não temos como saber qual é a verdade, portanto, o conhecimento da realidade inobservável não pode ser obtido.

No entanto, a história não termina aqui; há um novo retorno realista. Os realistas acusam os antirrealistas de aplicar seletivamente o argumento da subdeterminação. Se o argumento é aplicado consistentemente, ele exclui não apenas o conhecimento do mundo inobservável, mas também o conhecimento de grande parte do mundo observável, dizem os realistas. Para entender por que os realistas dizem isso, observe que muitas coisas que são observáveis nunca são realmente observadas. Por exemplo, a grande maioria dos organismos vivos no planeta nunca é observada pelos seres humanos, mas eles são claramente observáveis. Ou pense em um evento como um grande meteorito atingindo a Terra. Ninguém jamais presenciou tal evento, mas é claramente observável. Acontece que nenhum humano jamais esteve no lugar certo na hora certa. Apenas uma pequena fração do que é observável é realmente observada.

O ponto chave é isso. Os antirrealistas afirmam que a parte inobservável da realidade está além dos limites do conhecimento científico. Então eles permitem que possamos ter conhecimento de objetos e eventos que são observáveis, mas não observados. Mas as teorias sobre objetos e eventos não observados são tão subdeterminadas pelos nossos dados quanto teorias sobre inobserváveis. Por exemplo, suponha que um cientista apresente a hipótese de que um meteorito atingiu a lua em 1987. Ele cita várias peças de dados observacionais para apoiar essa hipótese, por exemplo, que as imagens de satélite da lua mostram uma grande cratera que não existia antes de 1987. No entanto, esses dados podem, em princípio, ser explicados por muitas

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hipóteses alternativas – talvez uma erupção vulcânica tenha causado a cratera ou um terremoto. Ou talvez a câmera que tirou as fotos de satélite estivesse com defeito e não houvesse nenhuma cratera. Assim, a hipótese do cientista é subdeterminada pelos dados, embora a hipótese seja sobre um evento perfeitamente observável – um meteorito atingindo a lua. Se aplicarmos o argumento da subdeterminação de forma consistente, dizem os realistas, somos forçados a concluir que só podemos adquirir conhecimento das coisas que foram realmente observadas.

Essa conclusão é muito implausível e não é uma que qualquer filósofo da ciência desejaria aceitar. Pois muito do que os cientistas nos dizem diz respeito a coisas que não foram observadas – pense em eras de gelo, dinossauros, deriva continental e coisas do gênero. Dizer que o conhecimento do não observado é impossível é dizer que a maior parte do que passa por conhecimento científico não é realmente conhecimento. Naturalmente, os realistas científicos não aceitam essa conclusão. Em vez disso, eles tomam isso como evidência de que o argumento da subdeterminação deve estar errado.

Como a ciência claramente nos dá conhecimento do que não é observado, apesar do fato de que as teorias sobre o não observado são subdeterminadas por nossos dados, segue-se que a subdeterminação não é uma barreira ao conhecimento. Portanto, o fato de nossas teorias sobre o inobservável serem também subdeterminadas por nossos dados não significa que a ciência não possa nos dar conhecimento da região inobservável do mundo.

Com efeito, os realistas que argumentam dessa maneira estão dizendo que o problema levantado pelo argumento da subdeterminação é simplesmente uma versão sofisticada do problema da indução. Dizer que uma teoria é subdeterminada pelos da-dos é dizer que existem teorias alternativas que podem explicar os mesmos dados. Mas isso é efetivamente apenas dizer que os dados não envolvem a teoria: a inferência dos dados para a teoria é não dedutiva. Se a teoria é sobre entidades inobserváveis, ou sobre entidades observáveis, mas não observadas, não faz diferença – a lógica da situação é a mesma em ambos os casos. Evidentemente, mostrar que o argumento da subdetermi-nação é apenas uma versão do problema da indução não significa que possa ser igno-rado. Pois há pouco consenso sobre como o problema da indução deve ser enfrentado, como vimos em tópicos anteriores. Mas isso significa que não há nenhuma dificuldade especial sobre entidades inobserváveis. Portanto, a posição antirrealista é basicamente arbitrária, dizem os realistas. Quaisquer que sejam os problemas em compreender como a ciência pode nos dar conhecimento de átomos e elétrons são igualmente problemas para entender como a ciência pode nos dar conhecimento de objetos comuns.

FONTE: OKASHA, S. Realism and anti-realism. In: OKASHA, S. Philosophy of science: a very short introduc-tion. New York: Oxford University Press, 2002. p. 58-76.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Hempel observou que as explicações científicas são buscas de respostas às perguntas do tipo “por quê?”.

• Hempel sugeriu que as explicações científicas têm tipicamente a estrutura lógica de um argumento, isto é, um conjunto de premissas seguidas de uma conclusão.

• O fenômeno a ser explicado é chamado de explanandum, e as leis gerais e os fatos específicos que explicam são chamados de explanans.

• De acordo com o modelo de explicação da lei de cobertura, a essência da explicação é mostrar que o fenômeno a ser explicado é "coberto" por alguma lei geral da natureza.

• Embora o modelo de lei de cobertura capture muito bem a estrutura de muitas explicações científicas reais, ela também enfrenta vários contraexemplos desajeitados.

• Dois possíveis problemas do modelo de lei de cobertura são: o problema da simetria e o problema da irrelevância.

• Os relatos de explicação baseados na causalidade capturam muito bem a estrutura de muitas explicações científicas reais, mas estes relatos podem não ser o suficiente.

• Há inúmeros fatos que não foram explicados pela ciência, ou pelo menos não explicados completamente.

• Há uma divisão de trabalho entre as diferentes ciências: cada uma é especializada em explicar seu próprio conjunto particular de fenômenos.

• Os filósofos frequentemente invocaram a múltipla realizabilidade para explicar por que a psicologia não pode ser reduzida à física ou à química, mas, em princípio, a explicação funciona para qualquer ciência de nível superior.

• Os realistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira do mundo.

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• Os antirrealistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira de uma certa parte do mundo – a parte "observável".

• Grande parte da motivação para o antirrealismo decorre da crença de que não podemos realmente alcançar o conhecimento da parte inobservável da realidade – ela está além do alcance humano.

• Central para o debate entre realismo e antirrealismo é a distinção entre coisas que são observáveis e coisas que não são.

• Um argumento para o antirrealismo se centra na relação entre os dados observacionais dos cientistas e suas afirmações teóricas.

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1 Explique o que é o explanandum e o que é o explanans para Carl Hempel.

2 Os relatos de explicação baseados na causalidade, certamente capturam muito bem a estrutura de muitas explicações científicas reais, mas muitos filósofos dizem que estes relatos não são suficientes. Explique a razão de pensarem que tais relatos não são suficientes.

3 Como podemos responder ao seguinte enigma filosófico: Como pode uma ciência que estuda entidades que são essencialmente físicas não ser redutível à física? Admitindo que as ciências de nível superior são de fato autônomas da física, como isso é possível?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3 -

MUDANÇA CIENTÍFICA E PROBLEMAS FILOSÓFICOS

1 INTRODUÇÃO

As ideias científicas mudam rapidamente. Escolha praticamente qualquer disciplina científica que você goste e pode ter certeza, que as teorias predominantes nessa disciplina serão muito diferentes das de 50 anos atrás, e extremamente diferentes das de 100 anos atrás. Em comparação com outras áreas de atividade intelectual, como a filosofia e as artes, a ciência é uma atividade que muda rapidamente. Uma série de interessantes e questões filosóficas centra-se na questão da mudança científica. Existe um padrão discernível para a maneira como as ideias científicas mudam com o tempo? Quando os cientistas abandonam sua teoria existente em favor de uma nova, como devemos explicar isso? As teorias científicas posteriores são objetivamente melhores que as anteriores? Ou o conceito de objetividade faz algum sentido?

A discussão mais moderna sobre essas questões parte do trabalho de Thomas Kuhn, um historiador e filósofo da ciência norte-americano. Em 1963, Kuhn (1998) publicou um livro chamado A Estrutura das Revoluções Científicas, inquestionavelmente o mais influente trabalho da filosofia da ciência nos últimos 50 anos. O impacto das ideias de Kuhn também foi sentido em outras disciplinas acadêmicas, como sociologia e antropologia, e na cultura intelectual geral. Para entender por que as ideias de Kuhn causaram tanta agitação, precisamos olhar brevemente para o estado da filosofia da ciência anterior à publicação de seu livro.

UNIDADE 1

2 FILOSOFIA DA CIÊNCIA LÓGICO-POSITIVISTA

O movimento filosófico dominante, no mundo de língua inglesa no pós-guerra, foi o positivismo lógico. Os positivistas lógicos originais, eram um grupo de filósofos e cientistas que se reuniram em Viena nos anos 1920 e início dos anos 1930, sob a liderança de Moritz Schlick (1882-1936) – Carl Hempel, que conhecemos em tópicos anteriores, estava intimamente associado aos positivistas, assim como, de certo modo, Karl Popper (BIRCK; RODRIGUES; PIVATTO, 2007). Fugindo da perseguição pelos nazistas, a maioria dos positivistas emigrou para os Estados Unidos, onde eles e seus seguidores exerceram uma poderosa influência sobre a filosofia acadêmica até meados da década de 1960, época em que o movimento começara a se desintegrar.

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Os positivistas lógicos, tinham uma alta consideração pelas ciências naturais, matemática e lógica. Os primeiros anos do século XX testemunharam avanços científicos, particularmente na física, que impressionaram tremendamente os positivistas. Um de seus objetivos era tornar a própria filosofia mais "científica", na esperança de que isso permitisse avanços similares na filosofia. O que impressionou particularmente os positivistas sobre a ciência foi sua aparente objetividade. Ao contrário de outros campos, onde muito se voltava para a opinião subjetiva dos investigadores, as questões científicas podiam ser resolvidas de uma maneira totalmente objetiva, acreditavam eles. Técnicas como testes experimentais permitiram a um cientista comparar sua teoria diretamente com os fatos e, assim, chegar a uma decisão informada e imparcial sobre os méritos da teoria (STADLER, 2003). A ciência para os positivistas era, portanto, uma atividade paradigmaticamente racional, o caminho mais seguro para a verdade que existe.

Apesar da alta estima em que detinham a ciência, os positivistas davam pouca atenção à história da ciência. De fato, eles acreditavam que os filósofos tinham pouco a aprender com o estudo da história da ciência (BIRCK; RODRIGUES; PIVATTO, 2007). Isso foi principalmente, porque eles traçaram uma nítida distinção entre o que eles chamavam de "contexto da descoberta" e o "contexto da justificação". O contexto da descoberta refere-se ao processo histórico real pelo qual um cientista chega a uma determinada teoria. O contexto da justificação refere-se aos meios pelos quais o cientista tenta justificar sua teoria, uma vez que já está lá, o que inclui testar a teoria, buscar evidências relevantes, e assim por diante. Os positivistas acreditavam que o primeiro era um processo psicológico subjetivo que não era governado por regras precisas, enquanto o segundo era uma questão objetiva da lógica. Deste modo, argumentaram que os filósofos da ciência deveriam limitar-se a estudar o contexto da justificação (STADLER, 2003).

Um exemplo pode ajudar a tornar essa ideia mais clara. Em 1865, o cientista Friedrich August Kekulé (1829-1896) descobriu que a molécula de benzeno tem uma estrutura hexagonal. Aparentemente, ele encontrou a hipótese de uma estrutura hexagonal para o benzeno após um sonho no qual ele viu uma cobra tentando morder sua própria cauda (CHRISTIAN et al., 2018). Claro, Kekulé então teve que testar sua hipótese cientificamente, foi o que ele fez. Este é um exemplo extremo, mas mostra que as hipóteses científicas podem ser obtidas da maneira mais improvável – elas nem sempre são produto de um pensamento sistemático e cuidadoso. Os positivistas argumentariam que não faz diferença como uma hipótese é obtida inicialmente. O que importa é como é testado, uma vez que já está lá – pois é isso que faz da ciência uma atividade racional. Como Kekulé chegou pela primeira vez à sua hipótese era irrelevante; o que importava era como ele justificava isso.

Essa nítida distinção, entre descoberta, justificação e a crença de que a primeira é "subjetiva" e "psicológica", enquanto a segunda não é, explica por que a abordagem positivista da filosofia da ciência era tão a-histórica. Pois o processo histórico real pelo

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qual as ideias científicas mudam e se desenvolvem está diretamente no contexto da descoberta, não no contexto da justificação. Esse processo pode ser de interesse para historiadores ou psicólogos, mas não tinha nada para ensinar os filósofos da ciência, de acordo com os positivistas (CHRISTIAN et al., 2018).

Outro tema importante na filosofia positivista da ciência era a distinção entre teorias e fatos observacionais; isso está relacionado à distinção observável/inobservável. Os positivistas acreditavam que as disputas entre teorias científicas rivais poderiam ser resolvidas de uma maneira perfeitamente objetiva, comparando as teorias diretamente com os fatos observacionais "neutros", que todas as partes poderiam aceitar. Os positivistas discordaram entre si sobre como exatamente esse conjunto de fatos neutros deveria ser caracterizado, mas eles estavam convencidos de que ele existia. Sem uma distinção clara entre teorias e fatos observacionais, a racionalidade e a objetividade da ciência seriam comprometidas, e os positivistas eram resolutos em sua crença de que a ciência era racional e objetiva (CHRISTIAN et al., 2018).

O Círculo de Viena, em alemão Wiener Kreis, era um grupo de filósofos, cientistas e matemáticos formados na década de 1920 que se reuniam regularmente em Viena para investigar a linguagem científica e a metodologia científica. O movimento filosófico associado ao Círculo, foi chamado por vários termos tais como positivismo lógico, empirismo lógico, empirismo científico, neopositivismo e o Movimento pela Unidade da Ciência. O trabalho de seus membros, embora não seja unânime no tratamento de muitas questões, foi distinguido, primeiro, por sua atenção à forma das teorias científicas, na crença de que a estrutura lógica de qualquer teoria científica específica poderia ser especificada à parte de seu conteúdo. Segundo eles, formularam um princípio de verificabilidade ou critério de significado, uma afirmação de que a significância de uma proposição se baseia na experiência e na observação. Por esse motivo, as declarações da ética, metafísica, religião e estética foram consideradas assertivamente sem sentido. Terceiro, e como resultado dos outros dois pontos, foi adotada uma doutrina da ciência unificada. Assim, não foram observadas diferenças fundamentais entre as ciências físicas e biológicas ou entre as ciências naturais e as sociais. O fundador e líder do grupo foi Moritz Schlick, epistemólogo e filósofo da ciência. Entre seus membros estavam Gustav Bergmann, Rudolf Carnap, Herbert Feigl, Philipp Frank, Kurt Gödel, Otto Neurath e Friedrich Waismann; e entre os membros de um grupo cognato, a Gesellschaft für empirische Philosophie (Sociedade de filosofia empírica), que se reuniu em Berlim, foram Carl Hempel e Hans Reichenbach. Uma declaração formal das intenções do grupo foi emitida em 1929 com a publicação do manifesto Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis (Concepção Científica do Mundo: O Círculo de Viena) e, naquele ano, o primeiro de uma série de congressos organizados por o grupo ocorreu em Praga. Em 1938, com o início da Segunda Guerra Mundial, uma pressão política foi exercida contra o grupo, que se dispersou, muitos de seus membros fugindo para os Estados Unidos e alguns para a Grã-Bretanha.

DICAS

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Para aprofundar mais no conhecimento sobre o Círculo de Viena, seus membros e sua contribuição para a Filosofia da Ciência, sugerimos a leitura do livro O Círculo de Viena, de François Schmitz. FONTE: SCHMITZ, F. O Círculo de Viena. Rio de Janeiro: Contraponto, 2019.

3 A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Kuhn foi um historiador da ciência por formação, e acreditava firmemente que os filósofos tinham muito a aprender com o estudo da história da ciência. A atenção insuficiente à história da ciência levou os positivistas a formar uma imagem imprecisa e ingênua do empreendimento científico. Como o título do seu livro indica, Kuhn (1998) estava especialmente interessado em revoluções científicas – períodos de grande reviravolta quando as ideias científicas existentes são substituídas por ideias radicalmente novas. Exemplos de revoluções científicas são a revolução copernicana na astronomia, a revolução einsteiniana na física e a revolução darwiniana na biologia. Cada uma dessas revoluções levou a uma mudança fundamental na visão científica do mundo – a derrubada de um conjunto existente de ideias por um conjunto completamente diferente.

É claro que as revoluções científicas acontecem com pouca frequência, na maioria das vezes, qualquer ciência não está em estado de revolução. Kuhn (1998) cunhou o termo "ciência normal" para descrever as atividades cotidianas que os cientistas realizam quando sua disciplina não está passando por uma mudança revolucionária. Central ao relato de Kuhn da ciência normal é o conceito de paradigma. Um paradigma, consiste em dois componentes principais: em primeiro lugar, um conjunto de pressupostos teóricos fundamentais que todos os membros de uma comunidade científica aceitam num dado momento; em segundo lugar, um conjunto de "exemplares" ou problemas científicos particulares que foram resolvidos por meio dos pressupostos teóricos, e que aparecem nos livros didáticos da disciplina em questão. Mas um paradigma é mais do que apenas uma teoria (embora Kuhn às vezes use as palavras de forma intercambiável).

Quando os cientistas compartilham um paradigma, não apenas concordam com certas proposições científicas, eles também concordam sobre como deve ser a pesquisa científica futura em seu campo, sobre quais problemas são pertinentes a abordar, quais são os métodos apropriados para resolver esses problemas, como seria uma solução aceitável dos problemas, e assim por diante. Em suma, um paradigma é toda uma perspectiva científica – uma constelação de suposições, crenças e valores compartilhados que unem uma comunidade científica e permitem que a ciência normal ocorra (TOZZINI, 2000).

O que exatamente envolve a ciência normal? Segundo Kuhn (1998), trata-se principalmente de resolver quebra-cabeças. Por mais bem-sucedido que seja um paradigma, ele sempre encontrará certos problemas, fenômenos que não podem

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ser facilmente acomodados, descompasso entre as previsões da teoria e os fatos experimentais, e assim por diante. O trabalho do cientista normal é tentar eliminar esses pequenos quebra-cabeças, fazendo o menor número possível de mudanças no paradigma. Assim, a ciência normal é uma atividade altamente conservadora – seus praticantes não estão tentando fazer descobertas que abalem a terra, mas apenas desenvolver e ampliar o paradigma existente. Nas palavras de Kuhn,

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno, na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma (KUHN, 1998).

Acima de tudo, Kuhn (1998) enfatizou que os cientistas normais não estão tentando testar o paradigma. Pelo contrário, eles aceitam o paradigma inquestionavelmente e conduzem sua pesquisa dentro dos limites que ele estabelece. Se um cientista normal obtém um resultado experimental que entra em conflito com o paradigma, geralmente assume que sua técnica experimental é falha, não que o paradigma esteja errado. O paradigma em si não é negociável.

Normalmente, um período de ciência normal dura muitas décadas, às vezes até séculos. Durante esse tempo, os cientistas gradualmente articulam o paradigma, aperfeiçoando-o, preenchendo detalhes, resolvendo mais e mais quebra-cabeças, ampliando sua gama de aplicações, e assim por diante. Mas, com o tempo, anomalias são descobertas, fenômenos que simplesmente não podem ser conciliados com os pressupostos teóricos do paradigma, por mais que os cientistas normais tentem. Quando as anomalias são poucas, elas tendem a ser ignoradas. Mas, à medida que mais e mais anomalias se acumulam, um sentimento crescente de crise envolve a comunidade científica.

A confiança no paradigma existente se quebra e o processo da ciência normal se interrompe temporariamente. Isso marca o começo de um período de “ciência revolucionária”, como Kuhn (1998) a chama. Durante esses períodos, ideias científicas fundamentais estão à disposição. Uma variedade de alternativas ao antigo paradigma é proposta e, eventualmente, um novo paradigma se estabelece. Uma geração ou mais é geralmente necessária antes que todos os membros da comunidade científica sejam conquistados para o novo paradigma – um evento que marca a conclusão de uma revolução científica. A essência de uma revolução científica é, portanto, a mudança de um antigo paradigma para um novo paradigma.

A caracterização de Kuhn (1998) da história da ciência, como longos períodos de ciência normal pontuada por ocasionais revoluções científicas, impressionou muitos filósofos e historiadores da ciência (TOZZINI, 2000). Vários exemplos da história da ciência se encaixam muito bem no modelo de Kuhn. Quando examinamos

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a transição da astronomia ptolomaica para a astronomia copernicana, por exemplo, ou da física newtoniana para a física einsteiniana, muitas das características que Kuhn descreve estão presentes. Os astrônomos ptolomaicos de fato compartilhavam um paradigma, baseado na teoria de que a Terra é estacionária no centro do universo, que formou o inquestionável retrocesso em suas investigações. O mesmo acontece com os físicos newtonianos nos séculos XVIII e XIX, cujo paradigma se baseava na teoria da mecânica e da gravitação de Newton. Em ambos os casos, o relato de Kuhn (1998) de como um velho paradigma é substituído por um novo se aplica com bastante precisão. Há também revoluções científicas que não se encaixam tão bem no modelo kuhniano – por exemplo, a recente revolução molecular na biologia. No entanto, a maioria das pessoas concorda que a descrição de Kuhn da história da ciência contém muito valor.

Por que as ideias de Kuhn causaram tal tempestade? Porque além de suas afirmações puramente descritivas sobre a história da ciência, Kuhn apresentou algumas teses filosóficas altamente controversas. Comumente, supomos que, quando os cientistas trocam a teoria existente por uma nova, fazem isso com base em evidências objetivas. Mas Kuhn argumentou que adotar um novo paradigma envolve um certo ato da parte do cientista. Ele permitiu que um cientista pudesse ter boas razões para abandonar um velho paradigma por um novo, mas insistiu que razões por si só nunca poderiam racionalmente forçar uma mudança de paradigma. "A transferência de adesão de um paradigma para a outro paradigma", escreveu Kuhn (1998, p. 191), "é uma experiência de conversão que não pode ser forçada". Ao explicar por que um novo paradigma rapidamente ganha aceitação na comunidade científica, Kuhn enfatizou a pressão dos cientistas uns sobre os outros. Se um determinado paradigma tem defensores muito fortes, é mais provável que ele obtenha ampla aceitação.

Muitos dos críticos de Kuhn ficaram chocados com essas afirmações. Pois se as mudanças de paradigma funcionam da maneira que Kuhn diz, é difícil ver como a ciência pode ser considerada como uma atividade racional. Certamente os cientistas deveriam basear suas crenças na evidência e na razão, não na fé e na pressão dos colegas. Diante de dois paradigmas concorrentes, certamente o cientista deveria fazer uma comparação objetiva entre eles para determinar quais têm mais evidências a seu favor. Entregar-se a uma "experiência de conversão", ou permitir-se persuadir-se pelo mais vigoroso dos colegas cientistas, dificilmente parece um modo racional de se comportar. O relato de Kuhn sobre as mudanças de paradigma parece difícil de conciliar com a imagem familiar positivista da ciência como uma atividade objetiva e racional. Imre Lakatos (1922-1974) escreveu que “na visão de Kuhn, a revolução científica é irracional, uma questão de psicologia das massas" (LAKATOS, 1970, p. 178).

Kuhn (1998) também fez algumas afirmações controversas sobre a direção geral da mudança científica. De acordo com uma visão amplamente difundida, a ciência progride para a verdade de maneira linear, à medida que ideias incorretas mais antigas são substituídas por ideias mais recentes e corretas. Teorias posteriores são objetivamente

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melhores que as anteriores (SANTOS, 1988). Essa concepção "cumulativa" da ciência é popular entre leigos e cientistas, mas Kuhn (1998) argumentou que ela é historicamente imprecisa e filosoficamente ingênua. Por exemplo, ele observou que a teoria da relatividade de Einstein é, em alguns aspectos, mais semelhante à teoria aristotélica do que à newtoniana – de modo que a história da mecânica não é simplesmente uma progressão linear do errado para o certo. Além disso, Kuhn questionou se o conceito de verdade objetiva realmente faz sentido. A ideia de que há um conjunto fixo de fatos sobre o mundo, independente de qualquer paradigma em particular, era de coerência duvidosa, ele acreditava. Kuhn sugeriu uma alternativa radical: os fatos sobre o mundo são relativos ao paradigma e, portanto, mudam quando os paradigmas mudam. Se essa sugestão estiver correta, então não faz sentido perguntar se uma dada teoria corresponde aos fatos "como eles realmente são", nem, portanto, perguntar se ela é objetivamente verdadeira. A própria verdade se torna relativa a um paradigma.

3.1 INCOMENSURABILIDADE E A CARGA TEÓRICA DOS DADOS

Kuhn (1998) tinha dois argumentos filosóficos principais para essas afirmações. Em primeiro lugar, ele argumentou que os paradigmas concorrentes são tipicamente “incomensuráveis” entre si. Para entender essa ideia, devemos lembrar que, para Kuhn, o paradigma de um cientista determina toda a sua visão de mundo – ele vê tudo através das lentes do paradigma. Assim, quando um paradigma existente é substituído por um novo em uma revolução científica, os cientistas precisam abandonar todo o arcabouço conceitual que usam para dar sentido ao mundo.

De fato, Kuhn chega a afirmar, obviamente de modo metafórico, que antes e depois de uma mudança de paradigma, os cientistas vivem em mundos diferentes e “realmente veem coisas diferentes” (KUHN, 1998, p. 238). Incomensurabilidade é a ideia de que dois paradigmas podem ser tão diferentes a ponto de impossibilitar qualquer comparação direta entre eles – não há uma linguagem comum na qual ambos possam ser traduzidos. Como resultado, os proponentes de diferentes paradigmas não conseguem fazer contato completo com os pontos de vista uns dos outros.

Essa é uma ideia interessante, embora um pouco vaga. A doutrina da incomensurabilidade decorre em grande parte da crença de Kuhn de que os conceitos científicos derivam seu significado da teoria na qual eles desempenham um papel (KUHN, 2017). Assim, para entender o conceito de massa de Newton, por exemplo, precisamos entender toda a teoria newtoniana – os conceitos não podem ser explicados independentemente das teorias em que estão inseridos. Essa ideia, às vezes chamada de "holismo", foi levada muito a sério por Kuhn (1998; 2017). Ele argumentou que o termo "massa" realmente significava algo diferente para Newton e Einstein, uma vez que as teorias em que cada uma incorporava o termo eram tão diferentes. Isto implica

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que Newton e Einstein estavam, de fato, falando línguas diferentes, o que obviamente complica a tentativa de escolher entre suas teorias. Se um físico newtoniano e um físico einsteiniano tentassem ter uma discussão racional, acabariam falando sozinhos sem compreender-se.

Kuhn (2017) usou a tese da incomensurabilidade tanto para refutar a visão de que as mudanças de paradigma são totalmente "objetivas" quanto para reforçar seu quadro não cumulativo da história da ciência. A filosofia tradicional da ciência não viu grande dificuldade em escolher entre teorias concorrentes – você simplesmente faz uma comparação objetiva delas, à luz das evidências disponíveis, e decide qual delas é melhor. Isso pressupõe claramente que existe uma linguagem comum em que am-bas as teorias podem ser expressas. Se Kuhn estiver certo de que os proponentes de antigos e novos paradigmas estão literalmente falando sozinhos, nenhum relato sim-plista da escolha de paradigma pode estar correto. A incomensurabilidade é igualmente problemática para o quadro tradicional "linear" da história científica. Se antigos e novos paradigmas são incomensuráveis, então não pode ser correto pensar em revoluções científicas como a substituição de ideias "erradas" por ideias "certas". Pois chamar uma ideia correta e outra errada implica a existência de uma estrutura comum para avaliá--las, que é precisamente o que Kuhn nega. A incomensurabilidade implica que a mu-dança científica, longe de ser uma progressão direta em direção à verdade, é, em certo sentido, sem direção: os paradigmas posteriores não são melhores do que os anteriores, apenas diferentes.

Poucos filósofos foram convencidos pela tese da incomensurabilidade de Kuhn (LALUMIA, 1991). Parte do problema era que Kuhn também alegava que paradigmas an-tigos e novos eram incompatíveis. Essa afirmação é muito plausível, pois, se antigos e novos paradigmas não fossem incompatíveis, não haveria necessidade de escolher en-tre eles. E em muitos casos a incompatibilidade é óbvia – a afirmação ptolemaica de que os planetas giram em torno da Terra é obviamente incompatível com a afirmação coper-nicana de que eles giram em torno do sol. Mas, como os críticos de Kuhn foram rápidos em apontar, se duas coisas são incomensuráveis, elas não podem ser incompatíveis.

Para entender por que não? Considere a proposição de que a massa de um objeto depende de sua velocidade. A teoria de Einstein diz que essa proposição é verdadeira enquanto Newton diz que é falsa. Mas se a doutrina da incomensurabilidade é correta, então não há discordância real entre Newton e Einstein aqui, pois a proposição significa algo diferente para cada um. Somente se a proposição tiver o mesmo significado em ambas as teorias, ou seja, somente se não houver incomensurabilidade, existe um conflito genuíno entre as duas. Como todos (inclusive Kuhn) concordam que as teorias de Einstein e Newton entram em conflito, essa é uma forte razão para considerar a tese da incomensurabilidade com suspeita.

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Em resposta a objeções desse tipo, Kuhn (2017) moderou um pouco sua tese da incomensurabilidade. Ele insistiu que, mesmo que dois paradigmas fossem incomensuráveis, isso não significava que era impossível compará-los uns com os outros. Mas isso só tornou a comparação mais difícil. A tradução parcial entre diferentes paradigmas poderia ser alcançada, argumentou Kuhn, de modo que os proponentes de antigos e novos paradigmas pudessem se comunicar até certo ponto: eles nem sempre estariam conversando completamente um com o outro. Mas Kuhn continuou a sustentar que a escolha totalmente objetiva entre paradigmas era impossível. Pois além da incomensurabilidade derivada da falta de uma linguagem comum, há também o que ele chamou de "incomensurabilidade de padrões". Essa é a ideia de que os proponentes de diferentes paradigmas podem discordar sobre os padrões de avaliação de paradigmas, sobre quais problemas um bom paradigma deve resolver, sobre como seria uma solução aceitável para esses problemas e assim por diante. Assim, mesmo que eles possam se comunicar de forma eficaz, eles não serão capazes de chegar a um acordo sobre qual paradigma é superior. Nas palavras de Kuhn (1998, p. 144), "cada paradigma revelar-se-á capaz de satisfazer mais ou menos os critérios que dita para si mesmo e incapaz de satisfazer alguns daqueles ditados por seu oponente".

O segundo argumento filosófico de Kuhn baseou-se em uma ideia conhecida como "carga teórica" (theory-laden) dos dados observacionais (NICKLES, 2003). Para entender essa ideia, suponha que você seja um cientista tentando escolher entre duas teorias conflitantes. A coisa mais óbvia a fazer é procurar um dado que decida entre os dois – que é exatamente o que a filosofia tradicional da ciência recomendava. Mas isso só será possível se houver dados que sejam adequadamente independentes das teorias, no sentido de que um cientista aceitaria os dados de qualquer uma das duas teorias em que acreditasse. Os positivistas lógicos acreditavam na existência de tais dados neutros teoricamente, que poderiam fornecer um tribunal de apelação objetivo entre as teorias concorrentes (STADLER, 2003). Kuhn (2017) argumentou que o ideal da neutralidade teórica é uma ilusão – os dados são invariavelmente contaminados por suposições teóricas. É impossível isolar um conjunto de dados "puros" que todos os cientistas aceitariam, independentemente de sua persuasão teórica.

A carga teórica dos dados teve duas consequências importantes para Kuhn (NICKLES, 2003). Em primeiro lugar, significava que a questão entre paradigmas concorrentes não poderia ser resolvida simplesmente apelando para "os dados" ou "os fatos", pois o que um cientista conta como dados, ou fatos, dependerá de qual paradigma ele aceita. A escolha perfeitamente objetiva entre dois paradigmas é, portanto, impossível: não há ponto de vantagem neutro a partir do qual se possa avaliar as reivindicações de cada um. Em segundo lugar, a própria ideia de verdade objetiva é questionada. Para ser objetivamente verdadeira, nossas teorias ou crenças devem corresponder aos fatos, mas a ideia de tal correspondência faz pouco sentido se os próprios fatos estiverem infectados por nossas teorias. É por isso que Kuhn foi levado à visão radical de que a própria verdade é relativa a um paradigma.

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Por que Kuhn achava que todos os dados são carregados de teoria? Seus escritos não são totalmente claros neste ponto, mas pelo menos duas linhas de argumentação são discerníveis (NICKLES, 2003). A primeira é a ideia de que a percepção é fortemente condicionada pelas crenças básicas, o que vemos depende em parte daquilo em que acreditamos. Assim, um cientista treinado olhando para um aparelho sofisticado em um laboratório verá algo diferente do que um leigo vê, pois o cientista obviamente tem muitas crenças sobre o aparato que o leigo não tem. Há uma série de experimentos psicológicos que supostamente mostram que a percepção é sensível à crença de fundo, embora a interpretação correta desses experimentos seja controversa. Em segundo lugar, os relatórios experimentais e observacionais dos cientistas são frequentemente redigidos em linguagem altamente teórica. Por exemplo, um cientista pode relatar o resultado de um experimento dizendo "uma corrente elétrica está fluindo através da haste de cobre". Esse relatório de dados é obviamente carregado com uma grande quantidade de teoria. Não seria aceito por um cientista que não tivesse crenças padronizadas sobre correntes elétricas, portanto, claramente não é neutro em teoria.

Os filósofos estão divididos sobre os méritos desses argumentos (NICKLES, 2003). Por um lado, muitos concordam com Kuhn que a neutralidade pura da teoria é um ideal inatingível (TOZZINI, 2000). A ideia dos positivistas de uma classe de enunciados de dados totalmente livres de compromisso teórico é rejeitada pela maioria dos filósofos contemporâneos – até porque ninguém conseguiu dizer como seriam tais declarações. Mas não está claro que isso comprometa a objetividade das mudanças de paradigma. Suponha, por exemplo, que um astrônomo ptolomaico e um astrônomo copernicano estejam envolvidos em um debate sobre qual teoria é superior. Para que eles discutam de maneira significativa, é necessário que haja alguns dados astronômicos com os quais eles possam concordar. Mas por que isso deveria ser um problema? Certamente eles podem concordar sobre a posição relativa da terra e da lua em noites sucessivas, por exemplo, ou o tempo em que o sol nasce? Obviamente, se o copernicano insiste em descrever os dados de uma maneira que pressupõe a verdade da teoria heliocêntrica, o ptolomaico se oporá. Mas não há razão para que os copernicanos façam isso. Declarações como “no dia 14 de maio o sol se levantou as 7.10 da manhã” pode ser acordado por um cientista se eles acreditam na teoria geocêntrica ou heliocêntrica. Tais afirmações podem não ser totalmente neutras em teoria, mas são suficientemente isentas de contaminação teórica para serem aceitas pelos proponentes de ambos os paradigmas, que é o que importa.

É ainda menos óbvio que a ignorância teórica dos dados nos force a abandonar o conceito de verdade objetiva. Muitos filósofos aceitariam que a carga teórica dificulta ver como o conhecimento da verdade objetiva é possível, mas isso não quer dizer que o próprio conceito é incoerente (NICKLES, 2003). Parte do problema é que, como muitas pessoas que desconfiam do conceito de verdade objetiva, Kuhn não conseguiu articular uma alternativa viável (LALUMIA, 1991). A visão radical de que a verdade é relativa ao paradigma é, em última análise, difícil de entender. Pois, como todas as

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doutrinas relativistas, enfrenta um problema crítico. Considere a questão: a afirmação de que a verdade é relativa ao paradigma é objetivamente verdadeira ou não? Se o proponente do relativismo responde "sim", então eles admitiram que o conceito de verdade objetiva faz sentido e assim se contradizem. Se eles respondem "não", então eles não têm motivos para discutir com alguém que discorde e diz que, na opinião deles, a verdade não é relativa ao paradigma. Nem todos os filósofos consideram esse argumento completamente fatal para o relativismo, mas sugere que abandonar o conceito de verdade objetiva é mais fácil de dizer do que de fazer (NICKLES, 2003). Kuhn (2017) certamente levantou algumas objeções para a visão tradicional de que a história da ciência é simplesmente uma progressão linear para a verdade, mas a alternativa relativista que ele ofereceu em seu lugar está longe de não ser problemática.

3.2 KUHN E A RACIONALIDADE DA CIÊNCIA

A obra Estrutura das Revoluções Científicas, foi escrita em um tom muito radical (KUHN, 1998). Kuhn dá toda a impressão de querer substituir ideias filosóficas padrão sobre mudança de teoria na ciência com uma concepção totalmente nova.

Sua doutrina das mudanças de paradigmas, da incomensurabilidade e da carga teórica dos dados parece totalmente em desacordo com a visão positivista da ciência como um empreendimento racional, objetivo e cumulativo. Com muita justificativa, a maioria dos primeiros leitores de Kuhn entendeu que ele disse que a ciência é uma atividade inteiramente não racional, caracterizada pela adesão dogmática a um paradigma em períodos normais e "experiências de conversão" repentinas em períodos revolucionários (LALUMIA, 1991).

O próprio Kuhn (1998) não estava satisfeito com essa interpretação de seu trabalho. Em um posfácio para a segunda edição de A Estrutura das Revoluções Científicas, publicada em 1970, e em escritos subsequentes (KUHN, 2017), Kuhn moderou consideravelmente seu tom , causando alguns de seus primeiros leitores de interpretarem mal suas intenções. Seu livro não foi uma tentativa de lançar dúvidas sobre a racionalidade da ciência, ele argumentou, mas sim de oferecer uma imagem mais realista e historicamente precisa de como a ciência realmente se desenvolve. Ao negligenciar a história da ciência, os positivistas foram levados a uma descrição excessivamente simplista, na verdade idealista, de como a ciência funciona, e o objetivo de Kuhn era simplesmente fornecer um corretivo. Ele não estava tentando mostrar que a ciência era irracional, mas sim fornecer um relato melhor do que envolve a racionalidade científica.

Alguns comentaristas consideram o posfácio de Kuhn simplesmente uma reviravolta, um recuo de sua posição original, em vez de um esclarecimento sobre ela (NICKLES, 2003). Se essa é uma avaliação justa, não é uma questão que entraremos aqui. Mas o posfácio trouxe à luz uma questão importante. Ao refutar a acusação de que ele havia retratado mudanças de paradigma como não-racionais, Kuhn (1998) fez

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a famosa afirmação de que "não há algoritmo" para a escolha de teorias na ciência. O que isto significa? Um algoritmo é de um conjunto de regras que nos permite calcular a resposta a uma questão específica. Por exemplo, um algoritmo para multiplicação é um conjunto de regras que, quando aplicado a quaisquer dois números, nos informa seu produto (quando você aprende aritmética na escola, você na verdade aprende algoritmos para adição, subtração, multiplicação e divisão). Um algoritmo para a escolha teórica é um conjunto de regras que, quando aplicadas a duas teorias concorrentes, nos diriam qual deveria ser a escolha. Muito da filosofia positivista da ciência estava de fato comprometida com a existência de tal algoritmo.

Os positivistas frequentemente escreviam como se, dado um conjunto de dados e duas teorias concorrentes, os princípios do método científico pudessem ser usados para determinar qual teoria era superior. Essa ideia estava implícita em sua crença de que, embora a descoberta fosse uma questão de psicologia, a justificação era uma questão de lógica.

A insistência de Kuhn (1998; 2017), de que não há algoritmo para a escolha de teorias na ciência é, quase certamente, correta, pois ninguém jamais conseguiu produzir tal algoritmo. Muitos filósofos e cientistas fizeram sugestões plausíveis sobre o que procurar em teorias – simplicidade, amplitude de escopo, ajuste perfeito aos dados e assim por diante (FRENCH, 2009; HACKING, 2009; OMNÈS, 1996; SANTOS, 1988). Mas essas sugestões estão longe de fornecer um verdadeiro algoritmo, como Kuhn (1998) sabia bem. Por um lado, pode haver trade-off (perde-e-ganha): a teoria um pode ser mais simples que a teoria dois, mas a teoria dois pode ajustar os dados mais de perto. Assim, um elemento de julgamento subjetivo, ou senso comum científico, muitas vezes será necessário para decidir entre teorias concorrentes. Visto sob essa luz, a sugestão de Kuhn (1998) de que a adoção de um novo paradigma envolve certo ato de fé não parece tão radical, e igualmente sua ênfase na persuasão dos defensores de um paradigma em determinar sua chance de conquistar a comunidade científica.

A tese de que não há algoritmo para a escolha de teorias dá suporte à ideia de que a explicação de Kuhn das mudanças de paradigma não é um ataque à racionalidade da ciência (TOZZINI, 2000). Podemos ler Kuhn como rejeitando uma certa concepção de racionalidade. Os positivistas acreditavam, com efeito, que deveria haver um algoritmo para a escolha da teoria sob a influência da mudança científica ser irracional. Esta não é de modo algum uma visão maluca: muitos casos paradigmáticos de ação racional envolvem regras ou algoritmos. Por exemplo, se você quiser decidir se um bem é mais barato nos Estados Unidos ou no Brasil, aplique um algoritmo para converter dólares em reais; qualquer outra maneira de tentar decidir o assunto é irracional. Da mesma forma, se um cientista está tentando decidir entre duas teorias concorrentes, é tentador pensar que a única maneira racional de proceder é aplicar um algoritmo para a escolha

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da teoria. Então, se acontecer que não existe tal algoritmo, como parece provável, temos duas opções. Ou podemos concluir que a mudança científica é irracional ou que a concepção positivista de racionalidade é muito exigente. No posfácio, Kuhn (1998) sugere que essa última é a leitura correta do seu trabalho. A moral de sua história não é que as mudanças de paradigma são irracionais, mas sim que um conceito menos exigente e não algorítmico de racionalidade é necessário para dar sentido a elas.

3.3 O LEGADO DE KUHN

Apesar de sua natureza controversa, as ideias de Kuhn transformaram a filosofia da ciência (NICKLES, 2003). Em parte, isso ocorre porque Kuhn questionou muitas suposições que tradicionalmente eram tomadas como certas, forçando os filósofos a confrontá-las, e em parte porque ele chamou a atenção para uma série de questões que a filosofia tradicional da ciência simplesmente ignorou.

Depois de Kuhn, a ideia de que os filósofos podiam se dar ao luxo de ignorar a história da ciência parecia cada vez mais insustentável, assim como a ideia de uma dicotomia aguda entre os contextos da descoberta e da justificação. Os filósofos da ciência contemporânea prestam uma atenção muito maior ao desenvolvimento histórico da ciência do que seus ancestrais pré-kuhnianos. Mesmo aqueles antipáticos às ideias mais radicais de Kuhn aceitariam que, nesses aspectos, sua influência foi positiva.

Outro impacto importante do trabalho de Kuhn, foi concentrar a atenção no contexto social em que a ciência ocorre, algo que a filosofia tradicional da ciência ignorou (NICKLES, 2003). A ciência para Kuhn é uma atividade intrinsecamente social: a existência de uma comunidade científica, unida pela fidelidade a um paradigma compartilhado, é um pré-requisito para a prática da ciência normal. Kuhn também prestou considerável atenção a como a ciência é ensinada nas escolas e universidades, como jovens cientistas são iniciados na comunidade científica, como os resultados científicos são publicados e outros assuntos "sociológicos". Não é de surpreender que as ideias de Kuhn tenham sido muito influentes entre os sociólogos da ciência. Em particular, um movimento conhecido como "programa forte" na sociologia da ciência, que surgiu na Grã-Bretanha nos anos 1970, deveu muito a Kuhn (2017).

O programa forte foi baseado na ideia de que a ciência deveria ser vista como um produto da sociedade em que é praticada. Os sociólogos do programa forte tomaram essa ideia muito literalmente: eles sustentavam que as crenças dos cientistas eram em grande parte socialmente determinadas. Então, para explicar por que um cientista acredita em uma dada teoria, por exemplo, eles citam aspectos do background social e cultural do cientista. As próprias razões do cientista para acreditar na teoria nunca foram explicação suficiente, eles sustentaram. O programa forte tomou emprestado

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uma série de temas de Kuhn, incluindo a carga teórica dos dados, a visão da ciência como um empreendimento essencialmente social e a ideia de que não há algoritmo para escolha de teoria (MOTTA; PIZA, 2017). Mas os sociólogos do programa forte eram mais radicais que Kuhn e menos cautelosos. Eles rejeitavam abertamente as noções de verdade objetiva e racionalidade, que consideravam ideologicamente suspeitas, e viam a filosofia tradicional da ciência com grande suspeita. Isso levou a uma certa tensão entre filósofos e sociólogos da ciência, que continua até hoje.

Adiante, o trabalho de Kuhn desempenhou um papel na ascensão do relativismo cultural nas ciências humanas e sociais (OLIVA, 2005). O relativismo cultural não é uma doutrina precisamente definida, mas a ideia central é que não existe a verdade absoluta – a verdade é sempre relativa a uma cultura particular. Podemos pensar que a ciência ocidental revela a verdade sobre o mundo, mas os relativistas culturais diriam que outras culturas e sociedades, por exemplo, indígenas americanos, têm sua própria verdade. Como vimos, Kuhn realmente adotou ideias relativistas. No entanto, há uma certa ironia em ele ter influenciado o relativismo cultural. Pois os relativistas culturais são normalmente muito anticientíficos. Eles se opõem ao status exaltado de que a ciência é concedida em nossa sociedade, argumentando que ela discrimina os sistemas de crenças alternativas que são igualmente valiosos, mas próprio Kuhn era fortemente pró-ciência (NICKLES, 2003). Como os positivistas, ele considerava a ciência moderna uma conquista intelectual imensamente impressionante. Sua doutrina das mudanças de paradigmas, da ciência normal e revolucionária, da incomensurabilidade e da carga teórica não pretendia minar ou criticar o empreendimento científico, mas sim nos ajudar a compreendê-lo melhor.

Para aprofundar o tema sobre a mudança científica, sugerimos a leitura do artigo Mudança científica: modelos filosóficos e pesquisa histórica, de Laudan et al. (1993): https://www.scielo.br/pdf/ea/v7n19/02.pdf.

DICAS

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4 PROBLEMAS FILOSÓFICOS EM FÍSICA E BIOLOGIA

As questões que estudamos até agora: indução, explicação, realismo e mudança científica, pertencem ao que é chamado de "filosofia geral da ciência". Essas questões, dizem respeito à natureza da investigação científica em geral, e não especificamente à química ou à geologia, por exemplo. No entanto, há também muitas questões filosóficas interessantes que são específicas para as ciências específicas, elas pertencem ao que é chamado de "filosofia das ciências especiais" (CALLEBAUT, 1993). Essas questões geralmente dependem em parte de considerações filosóficas e em parte de fatos empíricos, o que as torna tão interessantes. Neste tópico, examinamos duas dessas questões, uma da física e outra da biologia.

4.1 LEIBNIZ VERSUS NEWTON SOBRE O ESPAÇO ABSOLUTO

Nossa primeira questão é um debate entre Gottfried Leibniz (1646-1716) e Isaac Newton (1642-1727), dois dos principais intelectos científicos do século XVII, relativo à natureza do espaço e do tempo. Vamos nos concentrar principalmente no espaço, mas as questões sobre o tempo são estreitamente paralelas. Em seu famoso Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, Newton (2004) defendeu o que é chamado de concepção "absolutista" do espaço.

De acordo com essa visão, o espaço tem uma existência "absoluta" acima das

relações espaciais entre os objetos. Newton pensou no espaço como um recipiente tridimensional no qual Deus colocou o universo material na criação. Isso implica que o espaço existia antes de haver qualquer objeto material, assim como um recipiente como uma caixa de cereal existe antes que qualquer pedaço de cereal seja colocado dentro dele.

A única diferença entre espaço e recipientes comuns, como os de cereais, segundo Newton, é que os últimos obviamente têm dimensões finitas, enquanto o espaço se estende infinitamente em todas as direções.

Leibniz (1982) discordou fortemente da visão absolutista do espaço e de muito mais na filosofia de Newton. Ele argumentou que o espaço consiste simplesmente na totalidade das relações espaciais entre os objetos materiais. Exemplos de relações espaciais estão "acima", "abaixo", "à esquerda" e "à direita" – são relações que os objetos materiais suportam uns aos outros. Essa concepção "relacionista" do espaço implica que antes que houvesse algum objeto material, o espaço não existia. Leibniz (1979) argumentou que o espaço surgiu quando Deus criou o universo material; não existia de antemão, esperando para ser preenchido com objetos materiais. Portanto, o espaço não é utilmente pensado como um recipiente, nem como uma entidade de qualquer tipo. A visão de Leibniz pode ser entendida em termos de uma analogia. Um contrato

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legal consiste em um relacionamento entre duas partes – o comprador e o vendedor de uma casa, por exemplo. Se uma das partes morre, o contrato deixa de existir. Portanto, seria loucura dizer que o contrato tem uma existência independente da relação entre comprador e vendedor, o contrato é apenas aquele relacionamento. Da mesma forma, o espaço não é nada além das relações espaciais entre os objetos.

A principal razão de Newton (2004) para introduzir o conceito de espaço absoluto foi distinguir entre movimento absoluto e relativo. O movimento relativo é o movimento de um objeto em relação ao outro. No que diz respeito ao movimento relativo, não faz sentido perguntar se um objeto está “realmente” em movimento ou não – só podemos perguntar se ele está se movendo em relação a algum outro objeto. Para ilustrar, imagine dois corredores correndo juntos em uma estrada reta. Em relação a um espectador de pé na beira da estrada, ambos estão obviamente em movimento: eles estão ficando mais distantes no momento. Em relação um ao outro, os corredores não estão em movimento: suas posições relativas permanecem exatamente iguais, desde que continuem correndo na mesma direção e com a mesma velocidade. Assim, um objeto pode estar em movimento relativo em relação a uma coisa, mas ser estacionário em relação a outra.

Newton (2004) acreditava que, assim como o movimento relativo, também existe movimento absoluto. O senso comum suporta essa visão. Pois intuitivamente, faz sentido perguntar se um objeto está "realmente" em movimento ou não. Imagine dois objetos em movimento relativo, digamos, uma asa-delta e um observador na Terra. Agora o movimento relativo é simétrico: assim como a asa-delta está em movimento em relação ao observador na Terra, o observador está em movimento em relação à asa-delta. Mas certamente faz sentido perguntar se o observador ou a asa-delta está "realmente" em movimento, ou ambos? Se é assim, então precisamos do conceito de movimento absoluto.

O que, exatamente, é o movimento absoluto? Segundo Newton (2004), é o movimento de um objeto em relação ao próprio espaço absoluto. Newton pensava que a qualquer momento, todo objeto tem uma localização particular no espaço absoluto. Se um objeto muda sua localização no espaço absoluto de um tempo para outro, então ele está em movimento absoluto; caso contrário, está em repouso absoluto. Portanto, precisamos pensar no espaço como uma entidade absoluta, além das relações entre os objetos materiais, para distinguir o movimento relativo do absoluto. Observe que o raciocínio de Newton se baseia em uma suposição importante. Ele assume sem questionar que todo movimento tem que ser relativo a alguma coisa. Movimento relativo é movimento relativo a outros objetos materiais; movimento absoluto é movimento relativo ao espaço absoluto em si. Então, em certo sentido, até o movimento absoluto é "relativo" para Newton. Com efeito, Newton está assumindo que estar em movimento, seja absoluto ou relativo, não pode ser um "fato bruto" sobre um objeto; só pode ser um fato sobre as relações do objeto com outra coisa. Essa outra coisa pode ser outro objeto material ou pode ser um espaço absoluto.

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Leibniz (1982) aceitou que havia uma diferença entre movimento relativo e absoluto, mas ele negou que o último deveria ser explicado como movimento em relação ao espaço absoluto. Pois ele considerava o conceito de espaço absoluto como incoerente. Ele tinha uma série de argumentos para essa visão, muitos dos quais eram de natureza teológica. Do ponto de vista filosófico, o argumento mais interessante de Leibniz (1979) era que o espaço absoluto entra em conflito com o que ele chamou de Princípio da Identidade dos Indiscerníveis (PII). Como Leibniz considerava esse princípio como indubitavelmente verdadeiro, ele rejeitou o conceito de espaço absoluto.

O PII diz que se dois objetos são indiscerníveis, então eles são idênticos, ou seja, eles são realmente um e o mesmo objeto. O que significa chamar dois objetos indiscerníveis? Isso significa que nenhuma diferença pode ser encontrada entre eles – eles têm exatamente os mesmos atributos. Então, se o PII é verdadeiro, então quaisquer dois objetos genuinamente distintos devem diferir em pelo menos um de seus atributos – caso contrário, eles seriam um, não dois.

O PII é intuitivamente convincente. Certamente não é fácil encontrar um exemplo

de dois objetos distintos que compartilham todos os seus atributos. Até mesmo dois produtos de fábrica produzidos em massa normalmente diferem de inúmeras maneiras, mesmo que as diferenças não possam ser detectadas a olho nu. Se o PII é verdadeiro, em geral, é uma questão complexa que os filósofos ainda debatem; a resposta depende em parte de exatamente o que conta como um "atributo" e, em parte, de questões difíceis da física quântica. Mas nossa preocupação, no momento, é o uso ao qual Leibniz coloca o princípio.

Leibniz (1979) usa dois experimentos para revelar um conflito entre a teoria de Newton do espaço absoluto e o PII. Sua estratégia argumentativa é indireta: ele assume, por uma questão de argumento, que a teoria de Newton está correta, depois tenta mostrar que uma contradição se segue dessa suposição. Como contradições não podem ser verdadeiras, Leibniz conclui que a teoria de Newton deve ser falsa. Lembre-se de que para Newton, a qualquer momento, todo objeto no universo tem uma localização definida no espaço absoluto. Leibniz nos pede para imaginar dois universos diferentes, ambos contendo exatamente os mesmos objetos. No universo um, cada objeto ocupa um determinado local no espaço absoluto. No universo dois, cada objeto foi deslocado para um local diferente no espaço absoluto, dois quilômetros a leste (por exemplo). Não haveria como diferenciar esses dois universos. Pois não podemos observar a posição de um objeto no espaço absoluto, como o próprio Newton admitiu. Tudo o que podemos observar são as posições dos objetos em relação umas às outras, e estas permaneceriam inalteradas – pois todos os objetos são deslocados na mesma quantidade. Nenhuma observação ou experimento poderia revelar se vivíamos no universo um ou dois.

O segundo experimento mental é semelhante. Lembre-se de que, para Newton (2004), alguns objetos estão se movendo através do espaço absoluto, enquanto outros estão em repouso. Isso significa que a cada momento, todo objeto tem uma velocidade absoluta definida. A velocidade absoluta de um objeto é a velocidade na qual ele se

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move através do espaço absoluto em uma direção especificada. Objetos em repouso absoluto têm uma velocidade absoluta de zero. Agora imagine dois universos diferentes, ambos contendo exatamente os mesmos objetos. No universo um, cada objeto tem uma velocidade absoluta particular. No universo dois, a velocidade absoluta de cada objeto foi impulsionada por uma quantidade fixa, digamos 300 quilômetros por hora em uma direção específica. Mais uma vez, nunca poderíamos distinguir esses dois universos. Pois é impossível observar quão rápido um objeto está se movendo em relação ao espaço absoluto, como o próprio Newton admitiu. Podemos observar apenas o quão rápido os objetos estão se movendo em relação um ao outro, essas velocidades relativas permaneceriam inalteradas, pois a velocidade de cada objeto é impulsionada exatamente pela mesma quantidade. Nenhuma observação ou experimento poderia revelar se vivíamos no universo um ou dois.

Em cada um desses experimentos mentais, Leibniz (1979) descreve dois universos que, pela própria admissão de Newton, nunca poderíamos distinguir – eles são perfeitamente indiscerníveis. Mas pelo PII, isso significa que os dois universos são realmente um. Assim, a teoria do espaço absoluto de Newton é falsa. Outra maneira de ver este ponto é assim. A teoria de Newton (2004) implica que existe uma diferença genuína entre o universo estar em um local no espaço absoluto e ser transferido para um local diferente. Leibniz (1979) aponta que essa diferença seria totalmente indetectável, desde que cada objeto mude de localização na mesma quantidade. Mas se nenhuma diferença pode ser detectada entre dois universos, então eles são indiscerníveis, e o PII nos diz que eles são na verdade o mesmo universo. Portanto, a teoria de Newton tem uma consequência falsa: implica que há duas coisas quando há apenas uma. O conceito de espaço absoluto entra em conflito com o PlI. A lógica do segundo experimento mental de Leibniz é idêntica.

De fato, Leibniz (1979) está argumentando que o espaço absoluto é uma noção vazia, porque não faz nenhuma diferença observacional. Se nem a localização dos objetos no espaço absoluto nem a sua velocidade em relação ao espaço absoluto podem ser detectados, por que acreditar no espaço absoluto? Leibniz está apelando para o princípio bastante razoável de que devemos apenas postular entidades inobserváveis na ciência, se a sua existência faria uma diferença que possamos detectar observacionalmente.

Newton (2004) pensou que poderia mostrar que o espaço absoluto tinha efeitos observacionais. Esse é o ponto de seu famoso argumento do "balde rotativo". Ele nos pede para imaginar um balde cheio de água, suspenso por uma corda através de um buraco preso à sua base.

Inicialmente, a água está em repouso em relação ao balde. Então, a corda é torcida várias vezes e liberada. À medida que se desenrola, o balde começa a rodar. No princípio a água no balde fica imóvel, a sua superfície plana; o balde está girando em

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relação à água. Mas depois de alguns instantes o balde transmite seu movimento para a água, e a água começa a girar em conjunto com o balde; o balde e a água estão em repouso um em relação ao outro. A experiência mostra que a superfície da água então se curva para os lados.

O que está fazendo a superfície da água subir? Claramente é algo a ver com a rotação da água, conclui Newton (2004). A rotação é um tipo de movimento e, para Newton, o movimento de um objeto é sempre relativo a outra coisa. Então devemos perguntar: em relação ao que a água está girando? Não em relação ao balde, obviamente, pois o balde e a água estão girando em tandem e, portanto, estão em repouso relativo.

Newton argumenta que a água está girando em relação ao espaço absoluto

e que isso está fazendo com que sua superfície se curve para cima. Então, o espaço absoluto tem, de fato, efeitos observacionais.

Você pode pensar que há uma lacuna óbvia no argumento de Newton. Se concedermos que a água não está girando em relação ao balde, por que deveríamos concluir que deve estar girando em relação ao espaço absoluto? A água está girando em relação à pessoa que está fazendo o experimento, e em relação à superfície da Terra, e em relação às estrelas fixas, então, certamente, qualquer uma delas pode estar fazendo com que sua superfície suba? Newton (2004) teve uma resposta simples a esse movimento. Imagine um universo contendo nada, exceto o balde rotativo. Em tal universo, não podemos explicar a superfície curva da água apelando para a rotação da água em relação a outros objetos, pois não haveria nenhum, e como antes a água está em repouso em relação ao balde. O espaço absoluto é a única coisa que resta para a água estar girando em relação. Portanto, devemos acreditar no espaço absoluto sob pena de sermos incapazes de explicar por que a superfície da água se curva.

De fato, Newton (2004) está dizendo que, embora a posição de um objeto no espaço absoluto e sua velocidade em relação ao espaço absoluto nunca possa ser detectada, é possível dizer quando um objeto está acelerando em relação ao espaço absoluto. Quando um objeto gira, ele está, por definição, acelerando, mesmo que a taxa de rotação seja constante. Isso ocorre porque, na física, a aceleração é definida como a taxa de variação da velocidade. Como os objetos rotativos estão constantemente mudando sua direção de movimento, segue-se que a velocidade deles não é constante, portanto, eles estão se acelerando. A superfície curva da água é apenas um exemplo do que é chamado de "efeitos inerciais" – efeitos produzidos pelo movimento acelerado. Outro exemplo é a sensação de ser empurrado para a parte de trás do seu assento que você recebe quando um avião decola. A única explicação possível para os efeitos inerciais, acreditava Newton (2004), é a aceleração do objeto que experimenta esses efeitos em relação ao espaço absoluto. Pois em um universo contendo apenas o objeto em aceleração, o espaço absoluto é a única coisa em que a aceleração pode ser relativa.

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O argumento de Newton é poderoso, mas não conclusivo. Pois como Newton sabe que a superfície da água se curvaria para cima, se o experimento do balde rotativo fosse feito em um universo que não contivesse outros objetos materiais? Newton (2004) simplesmente assume que os efeitos inerciais que encontramos neste mundo permaneceriam os mesmos em um mundo destituído de qualquer outro objeto. Esta é obviamente uma suposição substancial, e muitas pessoas questionaram o direito de Newton de afirmá-la (CURTIS; ROBSON, 2016). Portanto, o argumento de Newton não prova a existência do espaço absoluto. Pelo contrário, estabelece um desafio para o defensor de Leibniz para fornecer uma explicação alternativa dos efeitos inerciais.

Leibniz também enfrenta o desafio de explicar a diferença entre movimento absoluto e relativo sem invocar o espaço absoluto. Sobre esse problema, Leibniz (1982) escreveu que um corpo está em movimento verdadeiro ou absoluto quando a causa imediata da mudança está no próprio corpo. Lembre-se do caso da asa-delta e do observador na Terra, ambos em movimento em relação ao outro. Para determinar o que realmente está se movendo, Leibniz diria que precisamos decidir se a causa imediata da mudança (ou seja, do movimento relativo) está na asa delta, no observador ou em ambos. Essa sugestão de como distinguir o movimento absoluto do relativo evita toda referência ao espaço absoluto, mas não é muito clara. Leibniz nunca explica adequadamente o que significa para a causa imediata da mudança estar em um objeto. Mas pode ser que ele pretendesse rejeitar a suposição de Newton de que o movimento de um objeto, seja relativo ou absoluto, só pode ser um fato sobre as relações do objeto com outra coisa.

Uma das coisas intrigantes sobre a controvérsia absoluto/relacional é que ela se recusa a desaparecer. A descrição do espaço de Newton estava intimamente ligada à sua física, e as opiniões de Leibniz eram uma reação direta à de Newton. Então, pode-se pensar que os avanços da física desde o século XVII teriam resolvido a questão até agora. Mas isso não aconteceu. Embora tenha sido amplamente aceito que a teoria da relatividade de Einstein havia decidido a questão em favor de Leibniz, essa visão tem sido cada vez mais atacada nos últimos anos (CURTIS; ROBSON, 2016). Mais de 300 anos após o debate original de Newton/Leibniz, a controvérsia continua.

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4.2 O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO BIOLÓGICA

Classificar ou ordenar os objetos que se estudam em tipos gerais, desempenha um papel em todas as ciências. Os geólogos classificam as rochas como ígneas, sedimentares ou metamórficas, dependendo de como foram formadas. Os economistas classificam os sistemas de tributação como proporcionais, progressivos ou regressivos, dependendo de quão injustos são. A principal função da classificação é transmitir informações. Se um químico lhe diz que algo é um metal, isso diz muito sobre o seu provável comportamento. Classificação levanta algumas questões filosóficas interessantes. Principalmente, isso decorre do fato de que qualquer conjunto de objetos pode, em princípio, ser classificado de muitas maneiras diferentes. Químicos classificam substâncias pelo seu número atômico, produzindo a tabela periódica dos elementos. Mas eles poderiam igualmente classificar as substâncias pela sua cor, pelo seu cheiro ou pela sua densidade. Então, como devemos escolher entre essas formas alternativas de classificação? Existe uma maneira "correta" de classificar? Ou todos os esquemas de classificação são arbitrários? Essas questões assumem uma particular urgência no contexto da classificação biológica, ou taxonomia, que será nossa preocupação aqui.

Biólogos tradicionalmente classificam plantas e organismos usando o sistema linneano, batizado em homenagem ao naturalista sueco do século XVIII, Carl Linnaeus (1707-1778).

Os elementos básicos do sistema linneano são claros e familiares a muitas pessoas. Em primeiro lugar, os organismos individuais são atribuídos a uma espécie. Cada espécie é então atribuída a um gênero, cada gênero a família, cada família a uma ordem, cada ordem a uma classe, cada classe a um filo e cada filo a um reino. Várias classificações intermediárias, como subespécies, subfamília e superfamília, também são reconhecidas. A espécie é a unidade taxonômica de base; gêneros, famílias, ordens e assim por diante são conhecidos como “táxons superiores” (AMORIM, 2002). O nome latino padrão para espécies indica o gênero ao qual a espécie pertence. Por exemplo, você e eu pertencemos ao Homo sapiens, a única espécie sobrevivente no gênero Homo. Duas das outras espécies nesse gênero são Homo erectus e Homo habilis, ambas agora extintas. O gênero Homo pertence à família dos hominídeos, pertencente à superfamília dos hominoides, pertencente à ordem dos primatas, pertencente à classe dos mamíferos, pertencente ao filo do cordado, pertencente ao reino animal.

Observe que o modo linneano de classificar os organismos é hierárquico: um número de espécies é aninhado em um único gênero, um número de gêneros em uma única família, um número de famílias em uma única ordem, e assim por diante. Então, à medida que nos movemos para cima, encontramos menos táxons em cada nível. Na parte inferior existem literalmente milhões de espécies, mas no topo há apenas cinco reinos: animais, plantas, fungos, bactérias e protoctista (FUTUYMA, 1993). Nem todo sistema de classificação na ciência é hierárquico. A tabela periódica em química é um

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exemplo de uma classificação não hierárquica. Os diferentes elementos químicos não estão organizados em agrupamentos cada vez mais inclusivos, como as espécies estão no sistema linneano. Uma questão importante que devemos enfrentar é: Por que a classificação biológica deve ser hierárquica?

O sistema linneano serviu bem aos naturalistas por centenas de anos e continua sendo usado hoje. De certa forma, isso é surpreendente, uma vez que as teorias biológicas mudaram muito nesse período (PAPAVERO, 1994). A pedra angular da biologia moderna é a teoria da evolução de Darwin (2004), segundo a qual as espécies contemporâneas descendem de espécies ancestrais. Essa teoria contrasta com a visão mais antiga, biblicamente inspirada, de que cada espécie foi criada separadamente por Deus. A Origem das Espécies de Darwin foi publicada em 1859, mas foi somente em meados do século XX que os biólogos começaram a perguntar se a teoria da evolução deveria ter algum impacto na forma como os organismos são classificados. Na década de 1970, duas escolas taxonômicas rivais surgiram, oferecendo respostas competitivas para essa questão (RIDLEY, 2007). Segundo os cladistas, as classificações biológicas devem tentar refletir as relações evolutivas entre as espécies, portanto, o conhecimento da história evolutiva é indispensável para se fazer uma boa taxonomia.

De acordo com os feneticistas, isso não é assim: a classificação pode e deve ser totalmente independente das considerações evolutivas. Um terceiro grupo, conhecido como taxonomistas evolucionários/evolutivos, tenta combinar elementos de ambas as visões.

Para entender a disputa entre cladistas e feneticistas, devemos dividir o problema da classificação biológica em dois (RIDLEY, 2007). Em primeiro lugar, há o problema de como classificar os organismos em espécies, conhecido como o "problema das espécies". Este problema não foi de forma alguma resolvido, mas na prática os biólogos são capazes de chegar a um acordo sobre como delimitar espécies, embora existam casos difíceis. Em termos gerais, os biólogos atribuem organismos à mesma espécie se eles podem cruzar entre si. Em segundo lugar, há o problema de como organizar um grupo de espécies em táxons superiores, o que obviamente supõe uma solução para o primeiro problema. Acontece que os cladistas e feneticistas muitas vezes discordam sobre o problema da espécie, mas sua disputa diz respeito principalmente aos táxons superiores. Então, por enquanto, nós ignoramos o problema da espécie – nós assumimos que os organismos foram alocados às espécies de uma forma satisfatória. A questão é: para onde vamos a partir daí? Quais princípios usamos para classificar essas espécies em táxons superiores?

Para focar o problema, considere o seguinte exemplo. Humanos, chimpanzés, gorilas, bonobos, orangotangos e gibões são geralmente classificados como membros da superfamília dos hominoides. Mas os babuínos não são contados como hominoides. Por que isso? Qual é a justificativa para colocar humanos, chimpanzés, gorilas etc. em um grupo que também não contém babuínos? De acordo com os feneticistas, a

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resposta é que os primeiros têm uma série de características que os babuínos não têm, por exemplo, a falta de uma cauda (RIDLEY, 2007). Sob esse ponto de vista, os agrupamentos taxonômicos devem basear-se na similaridade – eles devem reunir espécies que são semelhantes entre si de maneiras importantes e deixar de fora as que são diferentes. Intuitivamente, esta é uma visão razoável. Isso se encaixa perfeitamente na ideia de que o objetivo da classificação é transmitir informações. Se os grupos taxonômicos são baseados na semelhança, então, saber a que grupo um determinado organismo pertence lhe dirá muito sobre suas características prováveis. Se lhe disserem que um determinado organismo pertence à superfamília dos hominoides, você saberá que ele não tem cauda. Além disso, muitos dos grupos reconhecidos pela taxonomia tradicional parecem ser baseados na similaridade. Para dar um exemplo óbvio, todas as plantas compartilham uma série de características que os animais não têm, então colocar todas as plantas em um reino e todos os animais em outro faz sentido do ponto de vista fenético.

No entanto, os cladistas insistem que a semelhança não deve valer nada na classificação (RIDLEY, 2007). Em vez disso, o que importa são as relações evolutivas entre as espécies - conhecidas como suas relações filogenéticas. Os cladistas concordam que os babuínos deveriam ser excluídos do grupo que contém humanos, chimpanzés, gorilas etc. Mas a justificativa para isso não tem nada a ver com as semelhanças e diferenças entre as espécies. A questão é que as espécies hominoides estão mais intimamente relacionadas entre si do que qualquer uma delas com os babuínos. O que exatamente isso significa? Isso significa que todas as espécies hominoides compartilham um ancestral comum que não é um ancestral dos babuínos. Observe que isso não significa que as espécies hominoides e os babuínos não tenham nenhum ancestral comum. Pelo contrário, quaisquer duas espécies têm um ancestral comum se você voltar suficientemente longe no tempo evolucionário – pois presume-se que toda a vida na Terra tenha uma única origem. O ponto é que o ancestral comum das espécies hominoides e dos babuínos é também um ancestral de muitas outras espécies, por exemplo as várias espécies de macacos. Portanto, os cladistas argumentam que qualquer grupo taxonômico que contenha as espécies hominoides e os babuínos também deve conter essas outras espécies. Nenhum grupo taxonômico pode conter apenas as espécies hominoides e os babuínos.

A ideia chave cladística é que todos os grupos taxonômicos, sejam eles gêneros, famílias, superfamílias, ou qualquer outra coisa, devem ser monofiléticos. Um grupo monofilético é aquele que contém uma espécie ancestral e todos os seus descendentes, mas ninguém mais (PAPAVERO, 1994). Grupos monofiléticos vêm em vários tamanhos. Em um extremo, todas as espécies que já existiram formam um grupo monofilético, presumindo que a vida na terra tenha se originado apenas uma vez. No outro extremo, pode haver grupos monofiléticos de apenas duas espécies – se forem os únicos descendentes de um ancestral comum. O grupo que contém apenas as espécies hominoides e os babuínos não é monofilético, pois, como vimos, o ancestral comum das espécies hominoides e dos babuínos é também ancestral dos macacos. Portanto, não é

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um grupo taxonômico genuíno, segundo os cladistas. Grupos que não são monofiléticos não são permitidos na taxonomia cladística, independentemente de quão semelhantes seus membros possam ser. Pois os cladistas consideram tais agrupamentos como totalmente artificiais, em contraste com os grupos monofiléticos "naturais".

A disputa entre cladistas e feneticistas não é puramente acadêmica – há muitos casos reais em que eles discordam. Um exemplo bem conhecido diz respeito à classe Reptilia ou aos répteis (RIDLEY, 2007). A taxonomia tradicional linneana conta lagartos e crocodilos como membros de Reptilia, mas exclui pássaros, que são colocados em uma classe separada chamada Aves. Os feneticistas concordam com essa classificação tradicional, pois as aves têm sua própria anatomia e fisiologia únicas, que é bem diferente daquela dos lagartos, crocodilos e outros répteis.

Os cladistas afirmam que Reptilia não é um grupo taxonômico genuíno, pois não

é monofilético. Como mostra o cladograma anterior, o ancestral comum dos lagartos e dos crocodilos é também um ancestral das aves; então, colocar lagartos e crocodilos juntos em um grupo que exclui aves viola a exigência de monofilia. Os cladistas, portanto, recomendam que a prática taxonômica tradicional seja abandonada: os biólogos não devem falar sobre a Reptilia, pois é um grupo artificial e não natural. Essa é uma recomendação bastante radical. Mesmo os biólogos que simpatizam com o espírito do cladismo muitas vezes relutam em abandonar as categorias taxonômicas tradicionais que serviram bem aos naturalistas durante séculos (PAPAVERO, 1994).

Os cladistas argumentam que seu modo de classificar é "objetivo", enquanto o dos feneticistas não é (RIDLEY, 2007). Há certamente alguma verdade nesta acusação. Pois os feneticistas baseiam suas classificações nas semelhanças entre as espécies, e os julgamentos de similaridade são invariavelmente parcialmente subjetivos. Quaisquer duas espécies serão semelhantes entre si em alguns aspectos, mas não em outras. Por exemplo, duas espécies de insetos podem ser anatomicamente bastante semelhantes, mas muito diversas em seus hábitos alimentares. Então, quais "aspectos" destacamos, a fim de fazer julgamentos de similaridade? Os feneticistas esperavam evitar esse problema definindo uma medida de "similaridade geral", que levaria em conta todas as características de uma espécie, permitindo assim a construção de classificações totalmente objetivas. Mas embora essa ideia pareça legal, não funcionou, até porque não há uma maneira óbvia de contar as características. A maioria das pessoas hoje acredita que a própria ideia de "similaridade geral" é filosoficamente suspeita. As classificações fenéticas existem e são usadas na prática, mas não são totalmente objetivas. Diferentes juízos de similaridade levam a diferentes classificações fenéticas, e não há maneira óbvia de escolher entre elas.

O cladismo enfrenta seu próprio conjunto de problemas. O problema mais sério é que, para construir uma classificação de acordo com os princípios cladísticos, precisamos descobrir as relações filogenéticas entre as espécies que estamos tentando

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classificar, e isso está longe de ser fácil (RIDLEY, 2007). Essas relações obviamente não são detectáveis apenas olhando para as espécies – elas têm que ser inferidas. Uma variedade de técnicas para inferir relações filogenéticas foi desenvolvida, mas elas não são infalíveis. De fato, à medida que mais e mais evidências da genética molecular emergem, hipóteses sobre as relações filogenéticas entre as espécies são derrubadas rapidamente. Então, colocar ideias cladistas em prática não é fácil. É muito bom que se diga que apenas grupos monofiléticos de espécies são permitidos na taxonomia, mas isso é de uso limitado, a menos que se saiba se um dado grupo é monofilético ou não. Com efeito, as classificações cladísticas constituem hipóteses sobre as relações filogenéticas entre espécies e são, portanto, inerentemente conjecturais.

Os feneticistas alegam que a classificação não deve ser carregada de teorias dessa maneira. Eles sustentam que a taxonomia deveria ser anterior, e não dependente, de conjecturas sobre a história evolucionária.

Apesar da dificuldade de colocar o cladismo em prática, e apesar do fato de os cladistas frequentemente recomendarem revisões bastante radicais das categorias taxonômicas tradicionais, mais e mais biólogos estão chegando ao ponto de vista cladístico (RIDLEY, 2007). Isso ocorre principalmente porque o cladismo é livre de ambiguidade de uma maneira que abordagens fenéticas e outras não são – seus princípios taxonômicos são perfeitamente claros, mesmo que sejam difíceis de implementar. E há algo bastante intuitivo sobre a ideia de que grupos monofiléticos de espécies são "unidades naturais", enquanto outros grupos não são. Além disso, o cladismo fornece uma justificativa genuína para o porquê a classificação biológica deve ser hierárquica. Os grupos monofiléticos estão sempre aninhados um no outro, portanto, se a exigência de monofilia for rigidamente seguida, a classificação resultante será automaticamente hierárquica. Classificar com base na similaridade também pode gerar uma classificação hierárquica; mas os feneticistas não têm justificativa comparável para que a classificação biológica deva ser hierárquica. É impressionante que os naturalistas classifiquem os organismos vivos de forma hierárquica há centenas de anos, mas a verdadeira razão para fazê-lo só recentemente ficou clara.

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RESUMO DO TÓPICO 3Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A ciência, para os positivistas lógicos, era uma atividade paradigmaticamente racional, o caminho mais seguro para a verdade que existe, e acreditavam que os filósofos tinham pouco a aprender com o estudo da história da ciência.

• Os positivistas lógicos argumentaram que os filósofos da ciência deveriam se limitar a estudar o contexto da justificação.

• A nítida distinção entre descoberta da justificação e a crença, de que a primeira é "subjetiva" e "psicológica", enquanto a segunda não é, explica por que a abordagem positivista da filosofia da ciência era tão a-histórica.

• Um tema importante na filosofia positivista da ciência era a distinção entre teorias e fatos observacionais; isso está relacionado à distinção observável/inobservável.

• Kuhn foi um historiador da ciência por formação e acreditava firmemente que os filósofos tinham muito a aprender com o estudo da história da ciência.

• Kuhn estava especialmente interessado em revoluções científicas, períodos de grande reviravolta quando as ideias científicas existentes são substituídas por ideias radicalmente novas.

• Um paradigma é toda uma perspectiva científica, uma constelação de suposições, crenças e valores compartilhados que unem uma comunidade científica e permitem que a ciência normal ocorra.

• A ciência normal é uma atividade altamente conservadora, seus praticantes estão apenas desenvolvendo e ampliando o paradigma existente.

• Quando a confiança no paradigma existente se quebra e o processo da ciência normal se interrompe temporariamente, marca o começo de um período de “ciência revolucionária”.

• O relato de Kuhn, sobre as mudanças de paradigma, parece difícil de conciliar com a imagem familiar positivista da ciência como uma atividade objetiva e racional.

• Kuhn argumentou que os paradigmas concorrentes são tipicamente “incomensuráveis” entre si.

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• Um dos argumentos filosóficos de Kuhn se baseou em uma ideia conhecida como "carga teórica" (theory-laden) dos dados observacionais.

• A visão radical de que a verdade é relativa ao paradigma é, em última análise, difícil de entender.

• Kuhn não estava tentando mostrar que a ciência era irracional, mas sim fornecer um relato melhor do que envolve a racionalidade científica.

• A tese sobre não há algoritmo para a escolha de teorias dá suporte à ideia de que a explicação de Kuhn das mudanças de paradigma não é um ataque à racionalidade da ciência.

• Apesar de sua natureza controversa, as ideias de Kuhn transformaram a filosofia da ciência.

• Há muitas questões filosóficas interessantes, que são específicas para as ciências específicas que pertencem ao que é chamado de "filosofia das ciências especiais".

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1 Os positivistas lógicos davam pouca atenção à história da ciência. Eles traçaram uma nítida distinção entre o que eles chamavam de "contexto da descoberta" e o "contexto da justificação". Explique o que é o "contexto da descoberta". O que é o "contexto da justificação"? Por que essa distinção sustentaria a posição histórica dos positivistas lógicos?

2 O conceito de paradigma é central ao relato de Thomas Kuhn da ciência normal. Defina o conceito de paradigma para esse autor.

3 Um argumento filosófico de Thomas Kuhn, baseou-se em uma ideia conhecida como "carga teórica" (theory-laden) dos dados observacionais. Explique essa ideia.

AUTOATIVIDADE

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FILOSOFIA DA MENTE IUNIDADE 2 —

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• introduzir as noções básicas da filosofia da mente e seus problemas filosóficos;

• apresentar os argumentos e contra-argumentos dos dualismos de substância e de propriedade;

• identificar as principais características do idealismo, behaviorismo e o problema de outras na filosofia da mente.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ASPECTOS DA MENTE E PROBLEMAS FILOSÓFICOSTÓPICO 2 – DUALISMO DE SUBSTÂNCIA E DE PROPRIEDADETÓPICO 3 – IDEALISMO, BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 2!

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TÓPICO 1 —

ASPECTOS DA MENTE E PROBLEMAS FILOSÓFICOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

A menos que você tenha perdido a mente, ou nunca a tenha tido, provavelmente, concordará que sua mente é uma parte muito especial de você. Talvez, até sua mente seja tudo o que você é, talvez, você não seja nada além de uma mente. Talvez, isso seja extremo demais, mas você precisa admitir que sua mente é uma excelente candidata ao seu recurso mais definidor. Certamente, uma candidata muito melhor para o lugar do seu “si-mesmo” (self), do que o seu pé, seu fígado ou seu corte de cabelo. Então, o que é essa coisa especial, essa sua mente?

Neste tópico, examinaremos alguns dos principais aspectos da mente nos quais os filósofos se interessaram. Também examinaremos alguns dos principais problemas filosóficos relacionados à mente.

2 ASPECTOS DA MENTE

Por que você tem uma mente? Há certas coisas especiais que você pode fazer. Você pode pensar e perceber. Você pode desfrutar e pode sofrer. Você pode aprender com o passado e planejar o futuro. Você pode fazer escolhas. Você pode entrar em ação. Você pode sonhar.

Porque você tem uma mente, há coisas especiais que você tem. Você tem crenças. Você tem sentimentos. Você tem imagens mentais. Você tem lembranças. Você tem as razões da maneira como você age.

Agora, analisaremos essa diversidade de coisas que você pode fazer e que você tem para compreender melhor como a filosofia investiga a mente humana.

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2.1 PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA

Pare e atente-se a sua mente agora. O que você percebe sobre sua própria mente? O que há nela que não há no seu pé, que não há no seu fígado ou no seu corte de cabelo? Uma coleção impressionante de itens que preenchem sua paisagem mental, são suas experiências, especialmente, suas experiências sensoriais.

Você vê cores e formas. Você ouve barulhos e melodias. Você sente texturas e temperaturas. Além disso, você tem experiências além daquelas que são diretamente sensoriais. Você experimenta uma leve pontada de ansiedade ou é dominado por um medo intenso. Essas são suas experiências emocionais (MATTHEWS, 2007).

Além das suas experiências, ao prestar atenção a sua mente, você pode perceber vários pensamentos que possui. Você pensa quando acredita que há sobras de comida na geladeira, quando pergunta se o tempo estará bom amanhã, ou se duvida que ganhará um milhão de reais. Crenças, julgamentos e dúvidas são tipos de pensamentos (TEIXEIRA, 2008).

Tal como a filosofia em geral, a filosofia da mente está repleta de controvérsias. Um tipo de controvérsia diz respeito à visão de que nossos estados mentais podem ser classificados em experiências e pensamentos (MATTHEWS, 2007). Esses grupos são muito poucos? Talvez, haja mais na mente do que apenas pensamentos e experiências. Talvez, imagens ou emoções mentais não sejam pensamentos nem experiências. Outra perspectiva é que classificar os estados mentais em pensamentos e experiências é criar mais grupos do que realmente existem. Talvez, todos os estados mentais sejam, realmente, um tipo de experiência. Ou, ao contrário, todos são apenas pensamentos. Voltaremos a essas controvérsias mais tarde. Por enquanto, basta dizer que a visão mais amplamente aceita sobre esse assunto é que existem pensamentos e experiências e que também podem existir outros tipos de estados mentais.

2.2 CONSCIENTE E INCONSCIENTE

Pelo menos, desde a época de Freud, se não antes, as pessoas estão familiarizadas com a ideia de que alguns dos nossos estados mentais ocorrem inconscientemente, enquanto outros ocorrem conscientemente (MATTHEWS, 2007). Os psicólogos freudianos procuraram explicar muito do comportamento humano em termos de desejos inconscientes, como o desejo inconsciente de matar um dos seus pais e fazer sexo com outro. Talvez, outro exemplo do inconsciente seja o conhecimento inconsciente que guia um especialista ao bater uma bola de tênis ou tocar um instrumento musical. Eles não estão conscientemente pensando no que estão fazendo e, quando tentam atender conscientemente, por exemplo, o que vem a seguir na música que estão tocando, esse ato de consciência os leva a cometer um erro.

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Em contraste com esses estados mentais inconscientes, existem, é claro, os cons-cientes (LECLERC, 2018). Considere sua experiência com as palavras que você está lendo agora. Ao atender deliberadamente às palavras na tela ou na página, você experimenta cons-cientemente o modo como elas aparentam (ou a sensação, se estiver lendo isso em braile).

2.3 QUALIA

Um aspecto fascinante dos nossos estados mentais, um aspecto associado, principalmente, a nossos estados sensoriais conscientes, é algo que os filósofos chamam de quale (singular) e qualia (plural). A palavra "qualia" vem do latim para "qualidades", e os filósofos da mente reservam o termo para qualidades especiais de estados mentais (TEIXEIRA, 2008). Uma frase importante que ajuda o filósofo da mente a transmitir a ideia de qualia é a frase "como se parece". Considere a questão de como se parece ver vermelho em vez de ver azul. Imagine a dificuldade de explicar a alguém que ficou cego a vida inteira como se parece, como é ver o vermelho. Seria, realmente, suficiente descrevê-lo como se estivesse vendo algo quente ou vendo algo que deixa as pessoas com fome? Ou, em vez disso, será que essas descrições, necessariamente, deixam algo de fora? Considere o enigmado espectro invertido dos filósofos: será que é possível que, como se parece ver vermelho, para você, seja o mesmo de como se parece ver verde para mim e vice-versa? Essas são questões filosóficas difíceis.

De qualquer forma, o ponto principal, por enquanto, é que enquanto você segue essa breve discussão, empregando a frase "como se parece" ou “como é” em conexão com experiências sensoriais conscientes, você tem uma ideia do que são qualia. Qualia são os aspectos subjetivos das experiências, os aspectos de como é, de como se parece ter experiências.

2.4 PERCEPÇÃO SENSORIAL

É difícil negar a importância da percepção sensorial. Uma posição filosófica antiga e influente, o empirismo, chega ao ponto de considerar a percepção sensorial a fonte de todas as nossas ideias e conhecimentos: nada entra na mente sem antes entrar nos sentidos (MATTHEWS, 2007).

Dizer o que diferencia as percepções sensoriais é um problema filosófico interessante. O que serve para distinguir, digamos, perceber visualmente um gato de apenas pensar em um gato? Um tipo de resposta para essa pergunta é que, no caso da percepção, deve haver um tipo direto de interação causal entre o observador e a coisa percebida, ao passo que não precisa haver essa interação entre o pensador e a coisa em que se pensa. Você pode pensar em coisas que são muito pequenas ou muito distantes para causar efeitos perceptíveis em você, mas efeitos perceptíveis são um requisito para a percepção de objetos perceptíveis (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, 2000).

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2.5 EMOÇÃO

As emoções são um tipo muito interessante de estado mental. Considere pensar sem ter nenhuma reação emocional, de um jeito ou de outro, que há um cachorro na sala. Agora, compare isso com ficar com raiva ou ficar feliz por haver um cachorro na sala. O que diferencia o mero pensamento da raiva ou da felicidade?

No caso da raiva, podemos ficar tentados a dizer que há algo intrinsecamente negativo, enquanto o mero pensamento não é positivo nem negativo. Há algo nessa sugestão, mas parece não ser suficiente. O medo de que haja um cachorro na sala também é negativo, mas não parece ser, exatamente, o mesmo tipo de coisa que a raiva. Portanto, deve haver mais nessas emoções negativas do que, simplesmente, adicionar um pouco de negatividade a pensamentos neutros (LECLERC, 2018).

2.6 IMAGENS

Aqui, há um exercício de imaginação. Imagine uma letra maiúscula “J” e uma letra maiúscula “D”. Agora, imagine que a letra “D” é girada 90 graus no sentido anti-horário e colocada em cima do “J”. Assim, responda a esta pergunta: Qual objeto comum a figura resultante se assemelha? Se você respondeu "guarda-chuva", demonstrou o poder das imagens mentais. A palavra "imagem" está intimamente associada a coisas de natureza visual, mas também podem existir imagens mentais não visuais. Assim, faz sentido falar em formar imagens mentais de cheiros ou imaginar ouvir certos sons. Uma coisa interessante sobre as imagens mentais é a maneira como elas se assemelham ao contraste que fizemos anteriormente entre pensamentos e experiências sensoriais. As imagens são mais semelhantes às experiências sensoriais em alguns aspectos e mais semelhantes aos pensamentos em outros (THOMAS, 2019).

Observemos, agora, uma semelhança que pensamentos e imagens compartilham que distingue cada um da percepção sensorial. Podemos exercer um tipo de controle direto sobre nossos pensamentos e imagens que não podemos exercer sobre o que percebemos (THOMAS, 2019). Suponha que você veja um sinal vermelho no semáforo. Embora você possa, facilmente, imaginar ou pensar no sinal de parada como outra cor, não pode, simplesmente, optar por perceber o sinal vermelho como verde. Se você quiser vê-lo como verde, terá que exercer algum controle indireto sobre sua percepção, como pintar o sinal de verde.

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2.7 VONTADE E AÇÃO

Até o momento, contrastamos pensamentos e experiências, estados conscientes e inconscientes, percepção e imagem. Com isso, segue um outro contraste de importância especial: o contraste entre o que acontece conosco e o que fazemos.

As percepções e experiências são coisas que acontecem conosco, a ação e a vontade, claramente, dizem respeito ao que fazemos. Uma maneira pela qual alguns filósofos tentaram explicar a diferença entre o que fazemos e o que acontece conosco é fazendo referência a uma faculdade especial da vontade. Uma faculdade por meio da qual eventos seriam causados. Esses eventos causados por essa faculdade contariam como ações que realizamos ao invés de meros acontecimentos que ocorrem a nós (COSTA, 2005).

2.8 SELF

Considere as seguintes perguntas que dizem a respeito à identidade pessoal: Quem é você? O que o distingue das outras pessoas? Que tipo de coisa é uma pessoa? O que distingue as pessoas dos meros objetos?

Alguns tentaram responder a essas perguntas se referindo a um certo tipo de entidade – um self. O que é um self? É o que faz de você alguém em vez de ninguém, uma pessoa em vez de um mero objeto. É isso que serve para distingui-lo de todos os outros. Alguns filósofos negaram que exista algo como um self (MIGUENS, 2009). O filósofo David Hume (1984), sendo um empirista, enfatizou o fundamento do que sabemos no que podemos perceber com os sentidos. Alguns pensam no self como a coisa que tem experiências, algo separado das próprias experiências (HEIL, 2001). Todavia, Hume (1984) nos convida a prestar muita atenção nas nossas experiências e perceber que tudo o que podemos atender são as próprias experiências, por exemplo, uma experiência de calor, de cor ou de forma. Por mais que tentemos, olhando para dentro, nunca vislumbramos nenhuma entidade realizando o vislumbre, encontramos, apenas, o que é vislumbrado. Talvez, então, o self não seja nada.

2.9 ATITUDES PROPOSICIONAIS

Uma maneira pela qual os filósofos pensam sobre certos estados mentais, especialmente estados mentais, como crenças e desejos, é como o que os filósofos chamam de "atitudes proposicionais" (LECLERC, 2018).

Quando uma pessoa tem uma atitude proposicional, existe uma proposição – aproximadamente, uma sentença declarativa, sentença que pode ser verdadeira ou falsa – em relação àquela que eles têm uma atitude, exemplos dos quais incluem acreditar, duvidar, pensar, julgar, desejar, temer e pretender. Considere os seguintes exemplos e observe que cada atitude está em itálico e a proposição para a qual a atitude é direcionada está em negrito.

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1- Alice acredita que seu time vencerá.2- Bruno duvida que a chuva pare antes do jantar.3- Carla julga que há mais água no recipiente à esquerda.4- Daiane teme que seu cachorro tenha comido sua nota de 20 reais.

Outros exemplos de atitudes proposicionais não são tão óbvios quanto às declarações 1 a 4, no entanto, podemos identificar a proposição para a qual uma atitude é direcionada. Considere estes casos:

5- Eliane pretende ir ao cinema no sábado.6- Franklin deseja comer o maior pedaço de pizza.

Nos casos 5 e 6, as atitudes são óbvias: pretendendo no caso de 5 e desejando no caso de 6. No entanto, quais são as proposições em questão? Podemos responder a essa pergunta considerando outra: que proposição deve ser verdadeira para Eliane realizar o que ela pretende, e qual proposição deve ser verdadeira para Franklin obter o que deseja? A resposta para essa pergunta é a seguinte: As duas proposições que devem ser verdadeiras são “Eliane vai ao cinema no sábado” e “Franklin come a maior fatia de pizza”. Agora, podemos pegar essas informações e montar as versões 5 e 6 que se parecem mais com os casos 1 a 4 declarados. Embora possa parecer um pouco estranho descrever as coisas da seguinte forma, não há nada estritamente incorreto em 5* e 6*:

5*- Eliane pretende que Eliane vá ao cinema no sábado.6*- Franklin deseja que Franklin coma o maior pedaço de pizza.

Caro acadêmico, agora que você teve o primeiro contato com os principais aspectos da mente que são investigados pela filosofia, os quais serão explorados com mais profundidade nos tópicos desta Unidade 3, introduziremos os principais problemas filosóficos que emergem na filosofia da mente.

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Para ler um bom livro introdutório sobre a filosofia da mente, sugerimos Uma introdução à filosofia da mente, de Andre Leclerc: LECLERC, A. Uma introdução à filosofia da mente. Curitiba: Appris, 2018.

DICAS

FONTE: https://images.app.goo.gl/i9mEwYC4nNCL1KwQA. Acesso em: 4 ago. 2020.

3 PROBLEMAS FILOSÓFICOS

Vimos alguns dos principais aspectos da mente que interessam aos filósofos, mas para ver o que realmente interessa aos filósofos, precisamos examinar os enigmas e os problemas que surgem quando tentamos entender os aspectos da mente. Primeiro e mais importante entre esses problemas, está o velho clássico problema, o problema mente-corpo.

3.1 PROBLEMA MENTE-CORPO

Quando contemplamos os vários estados mentais e as várias propriedades mentais, pode parecer-nos quão diferentes eles são dos estados e das propriedades físicas. Contudo, o que torna algo físico? Primeiramente, considere seu próprio corpo. Seu corpo é uma coisa física e possui os tipos de propriedades – propriedades físicas – que são adequados ao estudo da física e de outras ciências físicas, como a química. Seu corpo tem massa, ocupa um certo volume e espaço, move-se pelo espaço com um certo momento e possui vários constituintes químicos (por exemplo, hidrogênio, oxigênio e carbono).

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O corpo humano não é a única coisa que podemos chamar de "corpo físico". Mesas e cadeiras são corpos físicos. O mesmo acontece com as rochas rolando nas colinas e maçãs caindo das árvores (assim como as colinas e as árvores). Então, de qualquer maneira, mentes e propriedades mentais parecem ser muito diferentes de corpos físicos e propriedades físicas. Somos levados, então, a imaginar que tipo de relações pode existir entre coisas mentais e propriedades, por um lado, e coisas físicas e propriedades, por outro.

Então, agora que temos uma noção do que são mentes e corpos, qual é o problema mente-corpo? Provavelmente, é melhor pensar nisso como um conjunto de problemas intimamente relacionados. Os principais problemas no aglomerado são (MATTHEWS, 2007):

1- O problema de explicar qual é a diferença real, se houver, entre o mental e o físico.2- O problema de explicar se o mental e o físico são muito diferentes, como eles podem

se relacionar da maneira que supomos que eles se relacionam. Por exemplo, como as mentes podem ter efeitos nos corpos e vice-versa?

3- O problema de explicar se as mentes são, realmente, apenas um tipo de coisa física, como isso pode ser. Como pode fazer sentido tratar a mente como apenas mais uma coisa física no universo?

Para ajudar a entender melhor o problema mente-corpo, contemple as ideias de um filósofo que foi central nas discussões subsequentes do problema mente-corpo, o filósofo René Descartes. Descartes (2004) achava que a mente era, radicalmente, diferente dos corpos físicos. Ele sustentava que as mentes estavam pensando em coisas que não ocupavam espaço, e que os corpos físicos eram, essencialmente, coisas impensadas que ocupavam espaço. Essa é a essência do dualismo de substância, que discutiremos com maior detalhe no próximo tópico.

Dado o quão radicalmente diferentes mentes e corpos deveriam ser, surge um enigma sobre como eles podem interagir. Chame isso de problema de interação (COSTA, 2005). Falaremos muito mais sobre esse problema em tópicos posteriores, mas, por enquanto, veremos um esboço rápido. Para ver como esse problema surge no dualismo de substâncias de Descartes (também conhecido como dualismo de substâncias cartesiano), tomemos isso em uma série de etapas. Primeiramente, observe que mentes e corpos parecem interagir. De fato, existem duas direções de interação, uma para percepção e outra para ação. No caso da percepção, algo acontece no mundo que tem um efeito causal nas nossas mentes. Um carro explode, fazendo-nos ver uma bola de fogo e ouvir um barulho alto. No caso da ação, algo acontece na mente que tem um efeito causal no mundo.

Suponha que eu quisesse explodir um carro. Tenho, na minha mente, a intenção de fazer as coisas explodirem. Em seguida, formulo um plano na minha mente para reunir os explosivos necessários e, eventualmente, no mundo, há uma poderosa explosão.

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Vamos, agora, ao segundo passo, para ver sobre o problema da interação do dualismo de substâncias cartesiano. Observe o que, geralmente, acontece quando uma coisa causa outra. Elas devem estar no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Para acender o fusível, a chama deve ser aproximada. Para ferver a água, a panela deve ser colocada no fogão. Para curar a ferida, o remédio deve ser colocado nela. A causa parece exigir proximidade. Mesmo em casos que parecem ação a distância, como quando um controle remoto é usado para ligar uma televisão, algo atravessa o espaço intermediário, no caso, radiação invisível. No entanto, no dualismo de substâncias cartesiano, enquanto os corpos ocupam espaço, as mentes não (DESCARTES, 2004). Não ocupando espaço, elas não estão em lugar algum. Elas, simplesmente, não estão localizadas no espaço. Como, então, algo que está acontecendo no espaço pode afetar ou ser afetado por algo fora dele? Aqui está um problema relacionado: como as coisas acontecendo na sua mente afetam diretamente o seu corpo, mas não o meu?

Para evitar o problema da interação, além de outros problemas que surgem para o dualismo de substâncias cartesiano, muitos filósofos da mente foram levados a rejeitar o dualismo e a abraçar alguma versão ou outra do monismo (WESTPHAL, 2016). Se descrevermos o dualismo como a visão de que existem, fundamentalmente, dois tipos de coisas no universo, a mental e a física, poderemos descrever o monismo como a visão de que existe apenas um tipo de coisa. Talvez, então, tudo seja mental (essa é uma opção que exploraremos mais em tópicos posteriores) ou, para optar por uma opção mais popular, talvez, tudo, inclusive a sua mente, seja físico. Como, porém, a mente pode ser física? Bem, talvez a maneira correta de pensar nisso seja apenas dizer que sua mente é seu cérebro. Isso, certamente, resolveria os problemas que envolvem a interação, pois, claramente, o cérebro pode ter efeitos e ser afetado por corpos físicos. No entanto, esse tipo de solução encontra outros problemas.

Se a mente é algo físico como um cérebro, ainda parece que, além das suas propriedades físicas, ela também possui propriedades mentais distintas (WESTPHAL, 2016). Tome, por exemplo, os qualia. Como é que se parece ver vermelho ou sentir dor? É algo que só sei interiormente. Nenhuma quantidade de investigação externa do meu cérebro parece suficiente para revelar a natureza dos meus qualia. Portanto, pareceu plausível, para muitos filósofos, que os qualia são um tipo de propriedade mental não física (TEIXEIRA, 2008). Esse tipo de pensamento leva a um tipo diferente de dualismo. Como exploraremos mais no próximo tópico, esse é um dualismo de propriedades, em vez de um dualismo de substâncias.

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3.2 OUTROS PROBLEMAS

Embora o problema mente-corpo seja, talvez, o problema central da filosofia da mente, também existem outros problemas, e nós os examinaremos muito rapidamente no restante deste tópico. Em particular, examinaremos os seguintes problemas:

• o problema da percepção;• o problema de outras mentes;• o problema da inteligência artificial;• o problema da consciência;• o problema da intencionalidade;• o problema do livre arbítrio;• o problema da identidade pessoal.

3.2.1 O problema da percepção

O problema da percepção envolve um conflito entre duas ideias individualmente plausíveis sobre a natureza da percepção. A primeira é que, quando percebemos, estamos em um tipo direto de relação com algum objeto no mundo. Quando abro os olhos e vejo um livro vermelho em cima da mesa diante de mim, tenho uma relação com esse livro vermelho. O livro vermelho está lá, e a minha percepção é um tipo de abertura para esse objeto no mundo real (NOË; THOMPSON, 2002).

A segunda ideia sobre percepção é uma ideia que vem da reflexão filosófica sobre percepções errôneas e alucinações (MACPHERSON; PLATCHIAS, 2013). Talvez, pareça que você esteja vendo um elefante rosa na sala com você, mas, na verdade, você está sonhando ou alucinando. Como não há elefante rosa na sala com você, seja o que for consciente, não pode ser um elefante rosa. Muitos filósofos levantaram a hipótese de que esse algo de que você tem consciência enquanto sonha ou alucina é algo mental. Vamos chamá-lo de uma ideia perceptiva. Ao alucinar um elefante rosa, você não está ciente de nenhum elefante rosa real, está ciente da ideia de um elefante rosa.

Visto de dentro, tanto uma percepção precisa de um objeto real quanto uma falsa percepção de um objeto alucinado podem parecer a mesma coisa. Como podem parecer iguais, deve haver algo em comum entre as duas situações. Um tipo de visão que alguns filósofos consideraram atraente é dizer que o que é comum, tanto no caso perceptivo preciso quanto no caso falso alucinatório, é o que realmente se conhece diretamente, uma ideia na mente de alguém (NOË; THOMPSON, 2002).

Mesmo quando percebo, com precisão, um livro vermelho em cima da mesa, só estou, indiretamente, ciente do livro vermelho. O que estou diretamente ciente é a ideia do livro vermelho. Portanto, tanto a percepção precisa de um livro vermelho

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quanto a alucinação de um livro vermelho são semelhantes, pois ambas envolvem uma consciência direta de uma ideia na minha própria mente. No entanto, muitos filósofos concluem que esse é um resultado infeliz (MACPHERSON; PLATCHIAS, 2013). Se tudo o que estamos cientes diretamente é o interior de nossas próprias mentes, o chamado mundo externo começa a soar como algo extra que pode, muito bem, não estar lá de qualquer maneira. A irrelevância proposta do mundo real parece, a muitos, como uma ideia profundamente perturbadora (CHURCHLAND, 1999; WESTPHAL, 2014). Esses tipos de ideias e as respostas filosóficas a elas serão explorados, mais detalhadamente, em tópicos posteriores.

3.2.2 O problema de outras mentes

Suponha que você veja alguém agindo como se estivesse sofrendo e lhe ocorre que essa pessoa está apenas atuando. Um ator muito bom pode agir de forma convincente como se estivesse sofrendo sem, realmente, sentir dor. Um bom ator pode fazer isso para outros estados mentais além da dor, ele pode atuar e encenar estar com fome, raiva, confusão, perturbação, sem, realmente, estar nesses estados mentais. A própria possibilidade de atuar ajuda a destacar as relações contingentes entre nossas vidas mentais internas e nossos comportamentos externos. O comportamento triste está relacionado à tristeza apenas contingentemente, se é possível sentir tristeza sem o comportamento ou vice-versa. No entanto, dada a suposição de que a relação entre mente e comportamento é contingente, surge a possibilidade de que os outros corpos humanos que você vê todos os dias, na verdade, estão se movendo e falando sem nenhuma vida mental interior. Agora, se essa é uma possibilidade genuína, uma possibilidade que você não pode descartar, simplesmente, observando comportamentos, surge a seguinte pergunta: se você sabe que os outros têm mentes, como você, de fato, sabe? O problema de responder a essa pergunta é o problema de outras mentes.

Um tipo de solução para o problema de outras mentes é adotar um tipo de behaviorismo (RYLE, 1980). Nesse tipo de visão, o que é um estado mental é algo intimamente ligado a tipos particulares de comportamento. Assim, independentemente de um estado mental pertencer a você ou a outra pessoa, o que, em última análise, fundamenta seu conhecimento do estado mental, é o conhecimento sobre certos tipos de comportamento. Discutiremos mais sobre o behaviorismo e o problema de outras mentes no Tópico 3 desta Unidade.

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3.2.3 O problema da inteligência artificial

A maneira como falamos sobre o problema de outras mentes, até agora, tem sido em conexão com outras pessoas e para perguntar se elas têm mentes (e se têm, como sabemos disso). Outro tipo de pergunta que podemos fazer é se coisas muito diferentes das pessoas podem ter mentes. Que tal, por exemplo, computadores e robôs? Nas histórias de ficção científica, muitas vezes, são apresentadas máquinas futuristas capazes de pensar e de se comportar de maneira inteligente. Poderiam existir, na realidade, formas artificiais de inteligência genuína? Uma máquina pode pensar? Alguns filósofos respondem que sim (TEIXEIRA, 2006). Eles dizem que os próprios seres humanos são uma espécie de máquina e que nosso próprio cérebro é uma espécie de computador. Essa é uma versão de uma visão conhecida como funcionalismo, a ser explorada mais adiante em tópicos posteriores.

Agora, se esse último tipo de ideia estiver correto, que os próprios humanos são tipos de máquinas pensantes, surge a questão de como essas máquinas, as máquinas humanas, funcionam para gerar pensamentos (TEIXEIRA, 2006). Se somos máquinas pensantes, quais são os requisitos mecânicos gerais para ser uma coisa pensante? Que tipo de coisas você teria que construir em uma máquina para dar a ela o poder de pensar?

Um tipo de proposta que recebeu muita atenção dos filósofos é que o pensamento é, essencialmente, linguístico, e que os requisitos mecânicos gerais do pensamento só podem ser satisfeitos por uma máquina que implementa uma linguagem do pensamento (FODOR, 1975). Essa linguagem hipotética do pensamento é um sistema de símbolos que são combinados de várias maneiras governadas por regras para formar os vários pensamentos, crenças, desejos etc. A hipótese da linguagem do pensamento é altamente controversa, e muitos dos seus oponentes propõem que as mentes mecânicas precisarão ser muito mais explícitas, como o cérebro, e ser construídas como redes altamente conectadas, redes neurais artificiais compostas de processadores paralelos distribuídos (TEIXEIRA, 2015).

A hipótese da linguagem no âmbito de mentes mecânicas ou máquinas pensantes poderá ser explorada na leitura do texto Mente, cérebro e máquinas pensantes, do autor deste livro, Kevin D. S. Leyser. Esse texto estará disponível na Trilha de Aprendizagem da Unidade 2 e poderá ser acessado no seguinte link: https://drive.google.com/file/d/1tEHo7dCGowteV_r0uvavnwnLWImCYCxU/view?usp=sharing.

DICAS

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105

3.2.4 O problema da consciência

Independentemente de se o pensamento é melhor explicado mecanicamente por referência a um sistema de símbolos interno, há perguntas separadas sobre como explicar outros aspectos da mente, aspectos além do simples pensamento. E as sensações conscientes, como uma sensação de dor ou uma sensação visual de um tom brilhante de vermelho? Como um sistema mecânico ou físico pode ter esses aspectos da mentalidade mais distintos da consciência? Alguns filósofos sustentaram que esses aspectos da consciência, como a qualidade que acompanha um vermelho brilhante, nunca serão explicados por nenhum tipo de processo físico (CHALMERS, 1999; 2002).

Alguns filósofos sustentam que existe uma lacuna explicativa, ou seja, não importa o quanto você saiba sobre os processos físicos no cérebro de uma criatura, você nunca será capaz de explicar por que existe uma sensação vermelha versus uma sensação verde ou nenhuma sensação (NAGEL, 2005). Outros filósofos estão muito mais otimistas em explicar a consciência (CHURCHLAND, 2004; EDELMAN, 1995), e examinaremos, na Unidade 3, explicações filosóficas propostas da consciência.

3.2.5 O problema da intencionalidade

Vamos deixar de lado as sensações conscientes por um momento e voltar às perguntas sobre o pensamento. Antes, estávamos nos perguntando sobre os requisitos de poder pensar. Mencionamos o problema de saber se o pensamento exige a existência de uma linguagem de pensamento. Todavia, há outro tipo de problema relacionado ao pensamento, e é um problema que podemos afirmar dessa maneira: que tipo de relação ocorre entre um pensador e as coisas em que ele pensa? Esse problema é o problema da intencionalidade (SEARLE, 1995).

Outra maneira de afirmar o problema é em termos de "aboutness" (às vezes, traduzido como “sobre-dade” ou “sobreidade”, que retrata a ideia de “ser acerca de algo”). Leclerc (2015, p. 1) explica a intencionalidade da seguinte maneira:

Considerada de maneira muito abstrata, a intencionalidade é a propriedade relacional de ser acerca de algo. Muitas coisas podem instanciar essa propriedade: representações públicas, como palavras, fotografias, desenhos, partituras, mapas, gráficos etc., mas também representações mentais, conceituais ou sensoriais, como estados (crenças, desejos, intenções), atos (julgar, decidir, lembrar) e eventos mentais (experiências visuais, auditivas, tácteis). Num sentido mais estrito e comum, a palavra ‘intencionalidade’ é normalmente usada para designar o poder da mente de representar algo, a característica dos estados, atos e eventos mentais de serem acerca de algo, de indicar algo ou apontar para algo como um objeto particular, uma propriedade, um estado de coisas, um fato, ou, ainda, apontar para outros estados ou eventos mentais.

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Quando pensamos, pensamos sobre coisas. Estou pensando sobre o planeta Júpiter agora. Júpiter é uma coisa; meu pensamento sobre ele é outra coisa. Contudo, o que é essa “aboutness”, esse ser acerca de algo? É uma relação entre Júpiter e eu? Se aboutness é uma relação, parece que é um tipo muito estranho de relação. Uma coisa que é realmente estranha sobre "aboutness" é que eu consigo pensar em coisas que nem existem. Posso pensar em unicórnios – cavalos mágicos com chifres – mesmo que realmente não existam. O problema da intencionalidade, o problema de explicar a “aboutness”, será abordado no Tópico 3 da Unidade 3.

3.2.6 O problema do livre-arbítrio

Parece ser uma parte muito importante da nossa concepção de nós mesmos, que consideremos a nós mesmos e aos outros como capazes de agir livremente. Em face disso, parece que uma parte muito importante de decidir se alguém é moralmente responsável por algo é decidir se agiu ou não por vontade própria.

No entanto, talvez, a própria ideia de livre-arbítrio esteja errada. Talvez, tudo o que acontece tenha que acontecer dessa maneira (tudo está predestinado ou predeterminado) e, portanto, não exista, realmente, uma pessoa agindo por vontade própria (SEARLE, 2007). Tudo o que uma pessoa faz é, na verdade, algo que foi feito por uma complicada rede de causas que envolve fatores biológicos e sociais. Ou talvez não. O problema do livre-arbítrio, abordado no Tópico 3 da Unidade 3, é o problema de saber se, de fato, existe tal liberdade, se sim, qual é a sua natureza.

3.2.7 O problema da identidade pessoal

Os chamados gêmeos idênticos não são, verdadeiramente, idênticos, pois não são a mesma pessoa. Eles são meramente parecidos. A verdadeira identidade tem a ver com as condições sob as quais algo conta como sendo um e o mesmo (OLSON, 2003).

Aqui está um problema geral sobre identidade: quanto uma coisa pode mudar sem se tornar uma segunda coisa? Suponha que eu pegue uma cadeira de madeira preciosa e a queime até que fique uma pilha de cinzas. Muitas pessoas considerariam isso uma segunda coisa: não tenho mais uma cadeira, tenho um monte de cinzas. Outra série de mudanças que posso introduzir na cadeira é substituir, gradualmente, partes dela. Um dia, substituo uma das pernas, outro dia, substituo o assento, e assim por diante, até que cada peça seja substituída e a cadeira resultante não possua a madeira original. A cadeira que eu tenho, depois de fazer todas essas substituições, é a mesma que a cadeira com a qual eu comecei? Ou destruí, gradualmente, uma cadeira enquanto criava uma segunda?

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Esse tipo de enigma sobre identidade pode ser aplicado a entidades além de cadeiras. Desde o nascimento até a idade adulta, uma pessoa passa por muitas mudanças. Durante a vida, as células do corpo morrem e são eliminadas como resíduos, enquanto novas células crescem para a substituição. Essa reposição de materiais é uma das principais funções da nutrição que consumimos através de alimentos e bebidas. Como a cadeira descrita anteriormente, uma pessoa tem suas partes (nos níveis molecular e celular) substituídas. Um adulto não é mais um bebê, mas o adulto é a mesma pessoa que o bebê? Você já foi um bebê ou você é outra pessoa que substituiu o bebê?

Uma das maiores mudanças que ocorrem no corpo de uma pessoa é que ele morre. Muitas tradições religiosas sustentam que existe vida após a morte, que uma pessoa pode continuar sua existência apesar da morte do seu corpo. Talvez, a vida após a morte seja uma existência puramente espiritual em um céu ou inferno não físico, ou, talvez, as pessoas reencarnem e vivam em um novo corpo.

De qualquer maneira, diferentes posições em relação ao problema mente-corpo e identidade pessoal têm coisas diferentes a dizer sobre se e como a vida após a morte pode ser possível (LEYSER, 2015). Um funcionalista que rejeita o dualismo de substância pode, no entanto, abraçar a possibilidade de vida após a morte. Em uma dessas versões da visão, a relação da mente e do corpo é análoga à relação, em computadores, entre software e hardware. Sobreviver à morte é, fundamentalmente, a execução de um software antigo em um novo hardware (TEIXEIRA, 1998). Exploraremos mais as questões de identidade pessoal e vida após a morte na Unidade 3.

Para que você possa ler diversos artigos sobre temas variados da filosofia da mente, todos escritos por filósofos renomados, acesse o site da Revista Crítica na Rede na categoria Filosofia da Mente: https://criticanarede.com/mente.html.

DICAS

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• A mente é, certamente, uma das partes mais estranhas e maravilhosas da existência, e, certamente, desempenha um papel central no que significa existir como pessoa.

• Muita coisa sobre a mente é mal compreendida, e há muitas controvérsias entre os filósofos sobre a melhor forma de abordar os vários tópicos relacionados à mente, tópicos como sentimento, pensamento e ação.

• Algumas das controvérsias na filosofia da mente dizem respeito aos problemas mais difíceis de toda a filosofia.

• Os problemas tratados pela filosofia da mente incluem o problema do livre-arbítrio, o problema da inteligência artificial e a questão do que, se é que alguma coisa, acontece conosco depois que morremos.

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1 Qual era o pensamento de Descartes sobre o problema mente-corpo?

2 O que é o problema das outras mentes?

3 O que são os qualia?

AUTOATIVIDADE

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DUALISMO DE SUBSTÂNCIA E DE PROPRIEDADE

1 INTRODUÇÃO

Considere, por um momento, algo horrível. O que aconteceria se seu corpo, incluindo seu cérebro, fosse totalmente destruído? Imagine seu corpo caindo em um tanque de ácido ou em um poço de lava, suas moléculas violentamente e completamente espalhadas em todas as direções. Pergunta: Você poderia sobreviver a um evento tão horrível? Em uma visão, a resposta é "sim". Nessa visão, você é sua mente e sua mente é uma coisa completamente distinta do seu corpo físico. Sobreviver à morte, então, é fácil de fazer.

A ideia de que você é não físico e totalmente distinto do seu corpo físico é encontrada em muitas tradições religiosas. No entanto, nossa preocupação, aqui, não é com abordagens religiosas para essa ideia, mas com abordagens filosóficas. Examinaremos, na primeira parte deste tópico, as principais razões filosóficas a favor e contra a visão conhecida como dualismo de substância.

Na primeira parte deste tópico, portanto, vamos nos preocupar com a visão de que mentes e corpos físicos são dois tipos distintos de coisas. Na segunda parte, o foco não será tanto nas coisas, mas nas propriedades ou qualidades das coisas. Mais especificamente, estaremos preocupados com as relações entre as propriedades mentais de uma pessoa e suas propriedades físicas. Talvez, uma pessoa seja apenas uma "coisa", mas tenha dois tipos muito diferentes de propriedades. O dualismo de propriedade sustenta que as propriedades mentais são um tipo distinto de propriedade, um tipo de propriedade não idêntica ou "redutível" a qualquer tipo de propriedade física.

Muito bem, então, agora, vamos iniciar com os argumentos para o dualismo de substâncias.

UNIDADE 2 TÓPICO 2 -

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2 ARGUMENTOS PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS

Os filósofos estão muito interessados em examinar argumentos, pró e contra, para várias posições. Filósofos da mente não são excepção. Aqui, daremos uma olhada em três tipos de argumentos para o dualismo de substância.

Eles são (1) argumentos da lei de Leibniz, (2) argumentos dos hiatos explicativos e (3) argumentos modais. Ao longo do caminho, veremos, também, algumas críticas a esses argumentos.

2.1 ARGUMENTOS DA LEI DE LEIBNIZ

No cerne do dualismo de substância, está a ideia de que sua mente e seu cérebro são duas coisas distintas. No núcleo, então, está a ideia da não identidade de duas coisas, de não serem uma e a mesma coisa. O ponto central da lógica que governa as ideias de identidade e não identidade é um princípio de raciocínio que filósofos e lógicos passaram a chamar de "lei de Leibniz" (ROSS, 2001). Para nossos propósitos, podemos representar a lei de Leibniz como a indiscernibilidade de idênticos (JUBIEN, 1998), o princípio de que se x e y são uma e a mesma coisa, então, x e y devem ter todas as suas propriedades em comum. Se existe alguma propriedade que um tem e o outro não, então, x e y são distintos. Seriam duas coisas distintas, não uma e a mesma coisa.

A lei de Leibniz é, obviamente, relevante para o dualismo de substâncias. Se houver uma ou mais propriedades que sua mente tem e seu corpo não tem, ou que seu corpo tem e sua mente não, segue-se, então, pela lei de Leibniz, que sua mente e seu corpo são distintos. Um tipo semelhante de raciocínio tenta mostrar que a mente não é idêntica a qualquer coisa física – qualquer corpo, objeto ou sistema físico (JUBIEN, 1998). Crucial para essas linhas de raciocínio é identificar algumas propriedades que as mentes têm e as coisas físicas não têm, ou vice-versa.

Existem várias maneiras pelas quais diferentes abordagens do dualismo de substâncias podem tentar caracterizar as naturezas muito diferentes das mentes e corpos físicos. Vamos nos voltar, agora, para examinar cinco supostas diferenças entre mentes e corpos físicos.

A primeira alegada diferença entre mentes e corpos físicos se origina em Descartes (2004). Ele sustenta que os corpos físicos são espaciais e que as mentes não. Todavia, o que isso significa? Duas coisas importantes que isso significa é que corpos físicos têm partes espaciais e que possuem localização espacial. Mesmo corpos físicos que podem ser muito difíceis de cortar, no entanto, são concebíveis divisíveis em partes espacialmente definíveis.

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Um diamante magicamente duro que não pode ser cortado ao meio, mesmo assim, tem duas metades espacialmente definidas. É isso que permite, por exemplo, estar com uma metade para fora e, a outra, para dentro de uma caixa. Alguns dualistas de substâncias sustentam que, ao contrário dos corpos físicos, não faz sentido descrever uma mente como tendo partes espaciais (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018).

Você acredita que a Torre Eiffel está em Paris na metade esquerda ou direita da sua mente? Sua sensação de dor está na parte superior ou inferior da sua mente? Os dualistas de substância cartesianos rejeitam tais questões como absurdas (SWINBURNE, 2018).

Naturalmente, a crença é sobre algo que tem uma localização espacial, afinal, é uma crença sobre a localização espacial da Torre Eiffel. Entretanto, esse fato indiscutível sobre o que é a crença não resolve nada sobre onde está a própria crença. Se você não está em Paris, que sentido faz dizer que sua crença sobre Paris é uma crença localizada em Paris?

As coisas são diferentes com uma sensação de dor? Se você machuca a mão, não sente a dor na mão? Como muitos filósofos apontarão, onde sentimos a dor (em uma mão) não resolve a questão de onde está a sensação da dor (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018). Um fenômeno bem conhecido que ocorre aos amputados é que eles sofrerão dores fantasmas, como se sentissem uma dor intensa em uma mão perdida há muito tempo (talvez, arrancada por um tubarão). Assim, uma dor pode ser sentida em uma mão que não existe mais (o tubarão a digeriu).

Certamente, muitos fisicalistas resistirão a essa linha dualista de pensamento sobre partes espaciais e localizações espaciais (STOLJAR, 2010). Eles podem sustentar que, embora não seja aparente onde sua crença ou sensação está, no entanto, na realidade, ela possui uma localização espacial, talvez, no córtex cerebral do seu cérebro. Teremos muito mais a dizer sobre fisicalistas nos próximos tópicos.

O segundo contraste alegado entre substâncias mentais e físicas é outro que podemos rastrear até Descartes (2004). Ele sustenta que mentes são coisas pensantes e que objetos físicos são coisas não pensantes. Pensar é um processo ou atividade racional. É o processo ou a atividade do raciocínio. Descartes sustenta que apenas substâncias mentais são capazes de realizar essa atividade ou passar por esse processo. Segundo Descartes, apenas uma substância mental pode ser uma coisa pensante. Por outro lado, todo objeto físico, por mais sofisticado ou complicado, é, necessariamente, algo não pensante. Obviamente, como discutiremos no Tópico 3 desta unidade, muitos defensores da neurociência e da inteligência artificial discordam dessa visão (TEIXEIRA, 2005).

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Um terceiro contraste alegado entre substâncias mentais e físicas tem a ver com a maneira que, quando pensamos, pensamos sobre coisas. Essa propriedade de “aboutness”, também conhecida como intencionalidade, é considerada, por alguns dualistas, como uma propriedade que somente coisas não físicas podem ter (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018). Intencionalidade é um fenômeno muito incomum. Aparentemente, parece ser um tipo de relação – você pensa sobre coisas.

Você pensa sobre a Torre Eiffel, e isso parece ser uma relação entre você e a Torre Eiffel. No entanto, se pensar é uma relação, parece ser uma relação muito estranha. Um tipo de coisa em que parecemos poder pensar são coisas tão distantes que nem mesmo a luz pode ter feito a jornada entre nós e essas coisas. Também podemos pensar em coisas no futuro distante e no passado distante. Talvez, o mais estranho de tudo seja nossa capacidade de pensar em coisas que nem sequer existem, coisas que, por acaso, não existem, como um cachorro de seis metros e coisas que não poderiam existir, como triângulos de quatro lados. Dada a estranheza da intencionalidade, é difícil ver como algo puramente físico, como um cérebro, pode tê-la e, assim, estar relacionado a coisas que não existem no espaço e no tempo (ANTONIETTI; CORRADINI; LOWE, 2008).

Um quarto contraste alegado entre substâncias mentais e substâncias físicas é que apenas substâncias mentais podem ter propriedades “fenomenais” (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018). O que são propriedades fenomenais? Podemos ter uma sensação especialmente forte das propriedades fenomenais quando atendemos às qualidades das experiências sensoriais conscientes, como a dor de arranhar um dedo do pé e a pungente acidez de morder um limão. Há algo peculiar na experiência de um ser humano consciente mordendo um limão. A pungente acidez da sensação parece não ser propriedade do próprio limão – o limão não tem sabor próprio. Esse estado de acidez nem precisa que o limão exista, pois podemos ter sensações alucinatórias do paladar. Da mesma forma, como mencionado em relação aos membros-fantasmas, podemos ter sensações de dor alucinatórias. Onde residem essas propriedades fenomenais? Um dualista de substância alega que tais propriedades não podem residir, meramente, em objetos físicos (FÜRST, 2014).

Um quinto contraste alegado entre substâncias mentais e físicas é uma diferença em como elas são conhecidas (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018). Os corpos físicos parecem ser conhecidos através dos sentidos. No entanto, os sentidos podem ser enganados e, portanto, às vezes, algo que parece existir, realmente, não existe. Se for possível que você esteja errado em acreditar em algo, não poderá ter certeza de que está certo. Mesmo se você estiver certo, conceder a mera possibilidade de estar errado significa que você não sabe que está certo com absoluta certeza.

Indiscutivelmente, enquanto você pode estar errado sobre a existência de objetos físicos, você não pode estar errado sobre a existência da sua própria mente (DESCARTES, 2004). Se você pensa que está pensando, é garantido que está correto.

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Se você está pensando, então, sua mente deve existir. De acordo com essa linha de pensamento, a existência da sua mente é conhecida com certeza, embora a existência de nenhum objeto físico seja conhecida com certeza.

Agora que examinamos as cinco supostas diferenças entre mentes e corpos, podemos voltar à discussão da lei de Leibniz. Podemos pegar qualquer uma das cinco diferenças, combiná-la com a lei de Leibniz e criar um argumento para o dualismo de substância. Tomemos, por exemplo, a distinção relacionada a partes espaciais e localizações espaciais. Um dualista de substância pode argumentar que os corpos, mas não as mentes, têm propriedades espaciais e, portanto, uma mente deve ser distinta de todo corpo físico (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018).

Considere outro argumento da lei de Leibniz para o dualismo de substância. Lembre-se da afirmação de que mentes, mas não corpos, têm a característica epistemológica especial de serem conhecidas como certas. Indiscutivelmente, alguém sabe, ao certo, que a mente existe, mas não sabe, ao certo, que existe algum corpo físico. Talvez, você saiba da existência, mas não com certeza indubitável. Portanto, a mente tem a propriedade de ser conhecida com certeza, enquanto todo corpo físico carece dessa propriedade. Parece que se seguirmos a lei de Leibniz, a mente deve ser distinta de todo corpo físico (LAVAZZA; ROBINSON, 2014).

Assista ao vídeo “Problema mente-cérebro: dualismo e fisicalismo”, do Prof. Saulo Araujo, no qual ele explora as principais soluções para o problema mente-cérebro, seus pontos fortes e fracos, o fisicalismo e o dualismo: https://www.youtube.com/watch?v=scz7kPKr0tk.

DICAS

2.1.1 Crítica aos argumentos da lei de Leibniz: falácia intencional

O problema da falácia intencional surge para certos usos da lei de Leibniz. Al-guns argumentos da lei de Leibniz para o dualismo comprometem essa falácia (CHUR-CHLAND, 2004). Lembre-se, por exemplo, de uma versão do argumento da lei de Leibniz:

• Premissa 1: Eu sei, com certeza absoluta, que minha mente existe.• Premissa 2: Eu não sei, com certeza absoluta, que existe alguma coisa física.• Conclusão: Para qualquer coisa física, minha mente não pode ser idêntica a ela;

minha mente deve ser uma coisa distinta, e não física.

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Podemos afirmar o argumento de uma maneira que torna o apelo à lei de Leibniz ainda mais aparente:

• Premissa 1: Minha mente tem a propriedade de ser conhecida com certeza. • Premissa 2: Nenhuma coisa física tem essa propriedade.• Premissa 3: Pela lei de Leibniz, se minha mente tem uma propriedade que nenhuma

coisa física possui, então, minha mente não é idêntica a qualquer coisa física.• Conclusão: Minha mente não é idêntica a qualquer coisa física.

Então, qual é o problema com esse tipo de argumento? Qual é o problema que estamos chamando de falácia intencional? Esse problema pode ser explicado em termos da seguinte analogia:

Lembre-se da história do super-herói dos quadrinhos, Super-Homem. Como todo mundo que leu uma história em quadrinhos do Super-Homem ou assistiu a um filme do Super-Homem, Super-Homem e Clark Kent são a mesma pessoa. No entanto, como todos os fãs dessas histórias sabem, a personagem Lois Lane não sabe que Clark Kent e Super-Homem são o mesmo. Considere o seguinte argumento ruim sobre o Super-Homem, um argumento que viola a Lei de Leibniz:

• Premissa 1: O Super-Homem tem a propriedade de ser considerado à prova de balas por Lois Lane.

• Premissa 2: Clark Kent não tem a propriedade de ser considerado à prova de balas por Lois Lane.

• Premissa 3: Se o Super-Homem tem uma propriedade que Clark Kent não possui, pela lei de Leibniz, Clark e Super-Homem são duas pessoas distintas.

• Conclusão: Clark e Superman são duas pessoas distintas.

Por que o argumento é um abuso da lei de Leibniz? Para que a lei de Leibniz seja usada corretamente, as propriedades relevantes devem ser propriedades daquilo que procuramos identificar ou distinguir (ROSS, 2001). No entanto, o que Lois Lane acredita sobre o Super-Homem não é, realmente, uma propriedade do Super-Homem. Ela pode acreditar que ele é um cara legal, e depois mudar de ideia e acreditar que ele é um idiota sem que nada disso mude no Super-Homem. Da mesma forma, a crença de Lois Lane de que Clark não é à prova de balas não é propriedade de Clark.

Essa má forma de raciocínio é conhecida como falácia intensional (CHURCHLAND, 2004). Observe que, aqui, estamos escrevendo "intensional" com um "s" – não deve ser confundido com "intencional" escrito com um "c". Sem nos aprofundarmos nos detalhes técnicos, podemos descrever a falácia intensional como envolvendo uma confusão entre, por um lado, propriedades que algo realmente possui e, por outro lado, propriedades que possui apenas sob alguma descrição.

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O que pensamos sobre algo pode ser muito diferente do que realmente está acontecendo com esse algo. É importante ter em mente essa diferença, especialmente, quando nos voltamos para outros tipos de argumentos para o dualismo de substância.

Muitos lógicos e filósofos estão familiarizados com o termo "intensão" (com um “s”), mas um pouco menos familiarizados com o termo "intenção" (com um “ç”). Fora da filosofia e da lógica, a situação é inversa: "intenção" é usada por todos, "intensão", por poucos. O termo medieval intentio foi originalmente empregado como uma tradução do termo árabe ma'na, uma forma que a alma identificava com um significado ou uma noção, e significava, ao longo da epistemologia medieval, um sinal natural na alma. Posteriormente, a Port Royal Logic distinguiu entre a compreensão e a extensão de um termo geral de maneira semelhante à que Mill, mais tarde, distinguiu conotação e denotação: embora a extensão seja o conjunto de coisas às quais o termo se aplica, sua compreensão é o conjunto de atributos que implica. Sir William Hamilton substitui "compreensão" por "intensão", digitando incorretamente a palavra com um "s" por analogia com "extensão". Desde então, o termo “intencionalidade” foi usado de uma maneira, via Brentano à Chisholm, e o termo “intensionalidade” foi usado de outra maneira, via Carnap à Quine. Resumindo, intensão se refere às condições lógicas ou definicionais que especificam o conjunto de todas as coisas possíveis que uma palavra ou frase poderia descrever, enquanto extensão se refere ao conjunto de todas as coisas reais que a palavra ou frase descreve. Em linguística, lógica, filosofia e outros campos, intensão é qualquer propriedade, qualidade ou estado de coisas conotado por uma palavra, frase ou outro símbolo. No caso de uma palavra, é, frequentemente, implicada por sua definição. O termo também pode se referir ao conjunto completo de significados ou propriedades que estão implícitas em um conceito, embora o termo compreensão seja, tecnicamente, mais correto para isso.

IMPORTANTE

2.2 ARGUMENTOS DO HIATO EXPLICATIVO

Foi Joseph Levine que criou a expressão hiato explicativo (explanatory gap), referindo-se ao fato de que “entre os neurônios e a consciência subjetiva há um abismo intransponível, gerado pela incapacidade da neurociência de representar a passagem entre o físico e o mental” (TEIXEIRA, 2015, p. 41).

Os argumentos do hiato explicativo identificam algum aspecto da mente que

não pode ser explicado em termos de substâncias físicas e, em seguida, concluem que esse aspecto da mente deve ser devido ao fato de a mente ser uma substância não física e totalmente mental.

Tomemos um argumento do hiato explicativo de Descartes em relação à linguagem. Coisas importantes para as quais você usa sua mente são produzir e entender a linguagem. Descartes acha que essa capacidade nunca poderia ser explicada em termos de funcionamento de um sistema puramente físico – nenhuma máquina,

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por mais elaborada que fosse, poderia se envolver em uma conversa inteligente com um humano adulto (CLARKE, 2003). Mesmo que uma máquina produzisse sons que parecessem superficialmente uma fala, ela não conseguiria entender o que dissesse. Segundo Descartes (2004), animais não humanos são meras máquinas que, portanto, não podem usar a linguagem. A questão de saber se podem existir máquinas genuinamente inteligentes é uma que exploraremos muito mais no Tópico 3 desta unidade. Todavia, basta, agora, dizer que, talvez, Descartes estivesse um pouco mais otimista sobre as perspectivas das máquinas pensantes, se ele pudesse viajar para o nosso tempo e ver as coisas incríveis que computadores e robôs podem fazer. Para nossos propósitos atuais, podemos ver Descartes dizendo que existe um hiato explicativo entre substâncias físicas e o uso inteligente da linguagem. Além disso, vemos ele concluindo, a partir desse hiato explicativo, que deve haver um hiato substancial, uma distinção, aqui, entre duas coisas distintas (CLARKE, 2003). Por um lado, estão as coisas mentais, que são a base adequada para a compreensão da linguagem, e, por outro lado, as coisas físicas, que não podem se envolver em conversas inteligentes.

O uso inteligente da linguagem não é a única coisa que um dualista pode apelar ao tentar um argumento do hiato explicativo. Em vez disso, eles podem se concentrar nos aspectos fenomenais das nossas vidas mentais, especialmente, quando surgem em conexão com a percepção sensorial consciente (FÜRST, 2014). Em um famoso argumento de Leibniz (1983; 1993), ele ataca a presunção fisicalista de que um sistema físico, como um cérebro, pode ser suficiente para dar origem a percepções genuínas, como a percepção visual de uma rosa vermelha brilhante. O ponto central do argumento de Leibniz é um experimento mental em que ele imagina estar encolhido o suficiente para poder andar dentro de um cérebro da mesma maneira que alguém pode andar dentro de uma fábrica. Segundo Leibniz, após um exame minucioso de um sistema físico, encontraremos muitas partes trabalhando juntas, de acordo com princípios mecânicos, mas nada que sirva para explicar a percepção (CHURCHLAND, 2004).

Deve-se notar que a visão última de Leibniz não é, realmente, uma forma de dualismo de substância, mas um tipo de idealismo (uma questão que examinaremos mais adiante neste tópico). No entanto, Leibniz pode concordar com o dualista de substância, que existe um hiato explicativo que ameaça qualquer visão fisicalista da percepção (ROSS, 2001).

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2.2.1 Críticas aos argumentos do hiato explicativo

Argumentos do hiato explicativo podem ser vistos como uma espécie de predição, uma predição sobre o que nunca acontecerá em nenhuma data futura (NORTHOFF, 2004).

Versões diferentes dos argumentos do hiato explicativo fazem predições diferentes. Uma versão prediz que nunca seremos capazes de explicar a linguagem como algo que um sistema puramente mecânico pode realizar. Outra versão prediz que uma explicação dada em termos puramente físicos nunca será suficiente para explicar a percepção. No entanto, na medida em que os argumentos do hiato explicativo estão fazendo predições, eles podem ser postos em dúvida.

Uma base para colocá-los em dúvida é um princípio geral sobre como nunca podemos ter certeza absoluta sobre o que o futuro trará (CHURCHLAND, 2004). Talvez, o futuro traga uma inovação imprevista, atualmente, em inteligência artificial e robótica, resultando em demonstrações conclusivas de sistemas puramente mecânicos que entendem a linguagem e percebem o mundo ao seu redor.

Outra base para duvidar das predições que estão no centro dos argumentos do hiato explicativo é examinar casos passados de ignorância científica que foram seguidos por avanços e, em seguida, estabelecer uma analogia entre esses episódios passados e nossa situação atual (TEIXEIRA, 2015). Há muito tempo, antes da formulação da teoria darwiniana da evolução e da descoberta do DNA, muitos aspectos do funcionamento da vida eram considerados mistérios completos. Houve um tempo em que as pessoas postularam a existência de uma substância especial, conhecida como élan vital, cuja presença representava a vida em uma coisa viva e servia para distinguir coisas vivas e não vivas (COSTA, 2018). Podemos, facilmente, imaginar alguém de muito tempo atrás formulando um argumento do hiato explicativo para a existência desse élan vital. Tal argumento do hiato explicativo faria a predição de que descrições de meros arranjos de moléculas nunca seriam capazes de explicar processos biológicos, como crescimento e reprodução, concluindo que esses processos deveriam ser devidos à presença de uma substância não física especial. Em retrospecto, esse argumento pareceria tolo, pois, atualmente, possuímos um grande e poderoso conjunto de conhecimentos sobre como os processos biológicos são coleções especiais e complicadas de processos químicos. Por analogia, assim como nenhum élan vital foi necessário para explicar a vida, nenhuma substância distintamente mental e não física é necessária para explicar a mente.

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2.3 ARGUMENTOS MODAIS

Um tipo de argumento especialmente proeminente para o dualismo é o que os filósofos chamam de argumento modal, pois depende da noção de possibilidade, e os filósofos se referem à possibilidade e necessidade como modalidades, e as estudam usando a lógica modal (GOLDSTEIN et al., 2007). Crucial para um argumento modal do dualismo de substâncias é uma premissa relativa à possibilidade de uma mente existir sem que exista um corpo.

Claramente, se é realmente possível que sua mente exista sem que seu corpo exista, então, a mente deve ser alguma coisa diferente que não é o seu corpo (TALIAFERRO, 2018). No entanto, isso convida à questão de como se poderia demonstrar que essa é, realmente, uma possibilidade real.

Uma maneira, frequentemente discutida, de tentar estabelecer isso como uma possibilidade real, é começar com uma premissa sobre o que pode ser concebido ou imaginado ou, na terminologia de Descartes, do que se pode ter uma "ideia clara e distinta". Portanto, uma maneira de tentarmos formular um argumento modal para o dualismo de substâncias é assim:

• Premissa 1: Posso conceber minha mente existindo sem que exista qualquer corpo físico.

• Premissa 2: Se eu posso conceber alguma coisa, essa coisa deve ser possível.• Premissa 3: É possível que minha mente exista sem que exista qualquer corpo

físico.• Premissa 4: Se é possível que minha mente exista sem que exista qualquer corpo

físico, minha mente não é idêntica a qualquer corpo físico. • Conclusão: Minha mente é algo distinto de qualquer corpo físico.

Assim, há outra maneira de formular um argumento modal para o dualismo de substâncias, dessa vez, usando uma frase famosa associada a Descartes, a frase "ideia clara e distinta":

• Premissa 1: Posso formar uma ideia clara e distinta da minha mente existindo sem que exista qualquer coisa física.

• Premissa 2: O que quer que eu possa formar, uma ideia clara e distinta de acontecer, é algo que pode acontecer.

• Premissa 3: Se é possível que uma coisa exista à parte da outra, elas não podem ser uma e a mesma coisa, mas devem ser duas coisas distintas.

• Conclusão: Minha mente é algo distinto de qualquer corpo físico.

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2.3.1 Crítica aos argumentos modais

Passar da concebilidade para a possibilidade real é uma parte crucial dos argumentos modais (HOWTHORNE; GENDLER, 2002).

Nos argumentos formulados na seção anterior, esse papel crucial é

desempenhado pela Premissa 2, mas essa parte também é a parte mais controversa de tais argumentos. Por que deveria seguir do simples fato de eu poder conceber algo que esse algo seja realmente possível? Talvez, eu esteja apenas enganado em minhas concepções.

Considere alguma proposição matemática complexa. Sendo matemática, se a proposição for verdadeira, é, necessariamente, verdadeira. Se for falsa, sua negação é, necessariamente, verdadeira. Como a proposição é complexa, e eu não sou matemático, posso conceber que a proposição é verdadeira, sendo ela falsa, mas não deveria seguir da minha concepção dessa verdade que seja possível. Pode muito bem ser, sem o meu conhecimento, que seja impossível. Portanto, no caso, pelo menos, a concebilidade parece ser um péssimo guia para as possibilidades.

Enquanto muitos críticos dos argumentos modais pensam que a mudança da concebilidade para a possibilidade nunca pode ser justificada (GOLDSTEIN et al., 2007), muitos adeptos aos argumentos modais tentam defender essa mudança (HOWTHORNE; GENDLER, 2002). Uma dessas defesas diz que se a concepção é feita por um conceptor ideal – talvez não alguém tão inteligente como Deus supostamente é, mas alguém confiável em suas concepções –, se ele conceber algo como acontecendo, deve ser realmente possível que isso aconteça (HALE; HOFFMANN, 2010). Todavia, esse tipo de defesa convida à questão adicional de como decidir se alguém está concebendo as coisas da maneira que um conceptor ideal faria. Além disso: será que nenhum conceptor ideal poderia cometer erros sobre o que é realmente possível? As questões envolvidas são complexas e vão muito além dessa discussão introdutória da filosofia da mente.

Temos focado nas críticas aos argumentos a favor do dualismo, mas também existiram críticas ao próprio dualismo. Uma das principais linhas de críticas tem a ver com a aparente inaptidão do dualismo ao lidar com um dos problemas centrais da filosofia da mente, o problema da interação (um dos principais focos do Tópico 1 da Unidade 3).

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Assista ao vídeo “A mente além do cérebro”, do Prof. Dr. Alexander Moreira-Almeida - NUPES UFJF. No vídeo, ele explora a mente como elemento irredutível, o cérebro como instrumento, em uma palestra realizada no I Simpósio Internacional Mente-cérebro, São Paulo, 30/4/2016. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nNgomBLe5x8.

DICAS

3 INTERAÇÃO MENTE-CORPO COMO UM PROBLEMA PARA O DUALISMO DE SUBSTÂNCIAS

Um dos exemplos mais famosos do dualismo de substâncias é o dualismo de Descartes (2004), também conhecido como dualismo cartesiano. Além de sustentar que mente e corpo pertencem a diferentes categorias de substância, o dualismo cartesiano também sustenta que esses tipos separados de substância são capazes de interagir causalmente. Um pode ter efeitos causais no outro, e vice-versa.

Posteriormente, consideraremos versões não cartesianas do dualismo de substâncias, versões que negam a existência de qualquer interação entre mentes e corpos físicos.

De acordo com o senso comum, existem interações causais entre sua mente e itens no mundo físico. Também faz parte do senso comum que o fluxo de causalidade entre a mente e o mundo siga nos dois sentidos. Os principais exemplos de coisas no mundo físico que afetam a mente ocorrem na percepção. Há um estrondo forte e um fedor poderoso e você ouve um e cheira o outro. Se a grande explosão fedida o machucar, você poderá aprender a não ficar tão perto quando o professor de química misturar esses produtos químicos. Os principais exemplos da mente que têm efeitos causais nas coisas físicas ocorrem na intenção e na ação. Você forma a intenção de pintar o seu quarto, e quando a coloca em ação, todos os tipos de eventos físicos ocorrem, incluindo os movimentos dos seus membros e a aplicação de tinta nas paredes.

Descartes tenta acomodar esses aspectos do senso comum na sua teoria dualista. Ele afirma que, realmente, existem interações casuais da mente para o mundo físico, e vice-versa. Além disso, Descartes sustenta que a localização da interface entre sua mente e o corpo é uma estrutura singular no cérebro humano conhecida como glândula pineal. Descartes não era apenas um filósofo e um matemático, tinha um grande interesse em anatomia e fisiologia (MARQUES, 1993). O raciocínio que levou Descartes a destacar a glândula pineal parece ser o seguinte. Como a maioria do resto

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do corpo, as diferentes partes do cérebro, geralmente, vêm em pares. Assim como você tem duas mãos e dois olhos, o cérebro também tem, por exemplo, dois hemisférios cerebrais, e assim por diante. No entanto, para Descartes, a glândula pineal era peculiar entre as estruturas do cérebro. Ao contrário de todas as partes do sistema nervoso que ocorrem em pares, cada pessoa tem apenas uma glândula pineal.

Agora, há algo um pouco estranho nisso tudo, não é apenas que a glândula pineal seja uma má escolha para uma localização da interface mente-corpo. O problema tem mais a ver com o fato de a glândula pineal, como as entidades físicas em geral, ter uma localização. Por que isso é um problema para o dualismo de substâncias cartesiano? Veremos logo a seguir.

3.1 OBJEÇÃO DA PRINCESA ELISABETH

Uma das objeções mais influentes levantadas contra o dualismo de Descartes foi da princesa Elisabeth da Boêmia (1618-1680), que tinha uma correspondência filosófica com Descartes. As cartas entre Descartes e Elisabeth foram preservadas (SHAPIRO, 2007). A objeção de Elisabeth tem a ver com interações causais entre mentes e corpos.

De acordo com o dualismo de substâncias cartesiano, o pensamento é algo que só pode ser feito por substâncias mentais não materiais, e ter propriedades espaciais, como tamanho, forma e localização, é algo que só pode ser feito por substâncias materiais não mentais (SWINBURNE, 2018). Podemos resumir, então, dizendo que apenas substâncias materiais podem ser espaciais. Todavia, é aqui que isso começa a fazer com que o problema da interação pareça, realmente, um grande problema para o dualista de substância cartesiano. Parece ser muito problemático afirmar que algo não espacial pode ter efeitos e ser afetado por algo espacial.

Considere como a interação causal ocorre entre objetos físicos. Um exemplo de interação é uma colisão na qual uma bola bate e move uma segunda bola. Nesse caso, a primeira bola se move para o local da segunda e, ao fazer contato, empurra-a para fora do caminho. Observe que, para que isso ocorra, os dois objetos devem ser objetos espaciais. É difícil, talvez impossível, entender como a primeira bola pode fazer a segunda mudar de local sem que a primeira se mova para o local espacial da segun-da. Mesmo em casos que podem, superficialmente, parecer ação a distância, como magnetismo, são casos que envolvem coisas que ocupam o espaço intermediário. Nesses casos, ondas de energia ou partículas microscópicas atravessam a distância entre os dois objetos. A causação física parece depender crucialmente, então, das re-lações espaciais entre as entidades que interagem. Portanto, é totalmente incompre-ensível como uma entidade não espacial pode afetar ou ser afetada por uma espacial.

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3.2 AS ALTERNATIVAS DUALISTAS AO INTERACIONISMO CARTESIANO

Uma opção explorada pelos dualistas de substâncias é negar que haja alguma interação mente-corpo (LOOSE; MENUGE; MORELAND, 2018). Do ponto de vista do senso comum, a negação da interação mente-corpo é absolutamente perturbadora. Parece que, nessa proposta, sua intenção de levantar a mão não tem efeito se a sua mão é levantada. Que você tenha controle sobre seu corpo seria, então, uma espécie de ilusão (a ideia intimamente relacionada de que o livre-arbítrio é uma ilusão é algo que exploraremos mais no Tópico 3 da Unidade 3). O que está acontecendo, nessa visão, quando parece que percebemos algum evento físico no mundo?

Nessa visão, nosso estado perceptivo não é causado pelo evento no mundo que é percebido. Se você esfregar o dedo do pé e sentir uma dor intensa, a dor não será causada pelo dano causado. Claramente, isso é altamente contrário ao senso comum.

Observe, no entanto, que um dualista de substância que nega a interação causal não precisa afirmar que é mera coincidência que certos acontecimentos mentais estejam sincronizados com certos acontecimentos físicos.

Historicamente, existiram dois desenvolvimentos da ideia de que não há interação causal entre mente e corpo, os quais não tornam mera coincidência o fato de haver um padrão ordenado de relações entre eventos mentais e físicos. Essas duas visões são conhecidas como ocasionalismo e paralelismo (TEIXEIRA, 2008). As versões mais famosas dessas visões, a versão do ocasionalismo proposta por Malebranche (2005), e a versão do paralelismo proposta por Leibniz (1993), trazem Deus à cena.

O papel que Deus hipoteticamente desempenha é que ele é responsável pelo relacionamento ordenado entre os eventos mentais e os eventos físicos. No caso do ocasionalismo, levanta-se a hipótese de que Deus intervém a cada passo em uma versão da criação contínua (MALEBRANCHE, 2005). Quando, por exemplo, você tem a intenção de levantar a mão, Deus intervém e a faz subir. Quando um objeto pesado cai no seu pé, Deus intervém para garantir que você sofra uma dor.

No caso do paralelismo de Leibniz (1993), Deus não intervém a todo momento, mas estabelece duas correntes paralelas de eventos desde o início do universo. Quando Ele criou o universo, criou um fluxo físico e um fluxo mental que correm em paralelo. Os relacionamentos ordenados entre os dois são predeterminados. Como dois relógios sincronizados, os dois fluxos se desdobram sem interagir. A relação entre os dois é uma harmonia preestabelecida.

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Existem várias características impressionantes e não atrativas dessas versões-chave do ocasionalismo e paralelismo (TEIXEIRA, 2008). Primeiramente, na medida em que dão um papel importante a Deus, elas herdam quaisquer dúvidas que se possa levantar sobre se Deus realmente existe. Se Deus existe, não é uma pequena controvérsia, então, vamos deixar isso de lado. Outros problemas para essas visões são aqueles que sobrevivem mesmo com a suposição de que Deus realmente exista, que tudo é predeterminado, como proposto no paralelismo leibniziano, viola a ideia de que temos livre-arbítrio e, portanto, somos moralmente responsáveis por nossas ações. Um problema semelhante sobre responsabilidade moral surge em conexão com o ocasionalismo de Malebranche. Se Deus intervém para executar as consequências físicas das decisões mentais, Deus é um cúmplice moral em várias ações más.

Suponha, por exemplo, que uma pessoa planeje um assassinato e pretenda atirar na sua vítima até a morte. No ocasionalismo de Malebranche, a pessoa com intenção assassina não é tão diretamente responsável por puxar o gatilho da arma quanto Deus. Deus intervém para garantir que o gatilho seja acionado de acordo com a intenção assassina do atirador.

Vamos deixar de lado, por enquanto, outras questões que surgem para o dualismo de substância, sobre o problema da interação e outros problemas que envolvem causação mental. Voltaremos a essas questões no Tópico 1 da Unidade 3. Agora que discutimos um pouco sobre o dualismo de substância, vamos introduzir os argumentos e as críticas ao dualismo de propriedade.

Assista ao vídeo “Mente além do cérebro - Mindbeyondbrain”, do Dr. Mario Beauregard PhD. Uma palestra realizada no I Simpósio Internacional Mente-cérebro, São Paulo, 30/4/2016. Mario Beauregard é um neurocientista atualmente afiliado ao Departamento de Psicologia da Universidade do Arizona: https://www.youtube.com/watch?v=DCFSLhg30FQ.

DICAS

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4 DUALISMO DE PROPRIEDADE

Para ter uma ideia melhor do que é o dualismo de propriedade, sugerimos que nos concentremos em duas ideias-chave da filosofia da mente e observemos uma aparente tensão entre elas. A primeira ideia é a ideia de propriedades mentais conhecidas coletivamente como qualia. A segunda ideia é um tipo simples de fisicalismo que podemos expressar, simplesmente, como a visão de que todas as propriedades são propriedades físicas (TEIXEIRA, 2008). Nesse fisicalismo simples, até as propriedades mentais são, realmente, apenas um tipo de propriedade física. Para facilitar a presente discussão, vamos nos concentrar em uma versão específica desse fisicalismo simples, que diz que as propriedades mentais são apenas um tipo especial de propriedade cerebral (STOLJAR, 2010). Esse fisicalismo simples inclui a proposta de que a experiência da sensação do prazer (sua qualidade subjetiva, que poderíamos cunhar pelo termo: “prazerabilidade”) e a experiência da sensação da dor (sua qualidade subjetiva, que poderíamos cunhar pelo termo: “dolorosidade”) são apenas um tipo de propriedade do cérebro, uma propriedade cerebral talvez melhor entendida como um padrão complexo de atividade eletroquímica, distribuída por vários circuitos multicelulares nos níveis superiores do sistema nervoso central.

Essa visão da mente como o cérebro é um dos focos principais do texto Mente, cérebro e máquinas pensantes, do autor deste livro, Kevin D. S. Leyser. Esse texto estará disponível na Trilha de Aprendizagem da Unidade 2 e poderá também ser acessado pelo seguinte link: https://drive.google.com/file/d/1tEHo7dCGowteV_r0uvavnwnLWImCYCxU/view?usp=sharing.

DICAS

Muitos filósofos da mente pensaram que, qualquer plausibilidade que essa visão fisicalista da mente como cérebro possa ter, ela tropeça muito nos qualia (LAVAZZA; ROBINSON, 2014). É difícil, para muitos, verem como os próprios qualia poderiam ser apenas um padrão de sinais eletroquímicos no cérebro.

Podemos ser lembrados do experimento mental de Leibniz (1993), sobre encolher e caminhar através do cérebro. Como exploradores encolhidos, podemos ver vários processos físicos – trocas de produtos químicos através das membranas celulares –, mas nada que pareça poderia explicar os qualia. Para entender melhor as motivações do dualismo de propriedade, vamos recorrer a outros dois experimentos mentais – o experimento do espectro invertido e o experimento do zumbi. Esses experimentos mentais estão intimamente associados a versões do argumento modal para o dualismo de propriedade.

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4.1 O ESPECTRO INVERTIDO

Antes de entrarmos e conduzirmos o experimento mental do espectro invertido, primeiramente, realizaremos um experimento real. Esse é um experimento simples que você pode realizar por si mesmo, e requer pouco mais do que ter dois olhos. Cubra apenas um dos seus olhos por 30 a 60 segundos. Depois, alterne olhando com apenas um olho e, depois, apenas com o outro. Ao fazer isso, observe como as coisas se parecem para cada olho. Olhe para um pedaço de papel branco com um olho e, depois, com o outro. Quais são algumas das diferenças que você percebe? As coisas parecem um pouco mais escuras para um olho e mais claras para outro? Existe uma ligeira mudança nas cores? Talvez, as coisas pareçam um pouco mais rosadas ou mais alaranjadas para um olho, e um pouco mais azuis para o outro?

As diferenças na aparência do papel não se devem a mudanças no próprio papel, nem a mudanças nas condições de iluminação. Devido a mudanças dentro de você, você tem uma experiência diferente conectada à visão de cada olho, e a diferença entre as experiências é a diferença no quale que cada um tem. Existem qualia diferentes associados às duas experiências, e esses qualia diferentes ajudam a compensar as diferenças subjetivas na aparência do papel branco através dos dois olhos diferentes.

Vamos passar, agora, desse experimento real para um experimento mental – o experimento mental do espectro invertido (MIGUENS, 2009). Imagine duas pessoas diferentes – Inês e Noemi – que veem as cores de maneiras muito diferentes. Enquanto Noemi vê as cores da maneira normal, Inês as vê da maneira oposta. Inês vê o vermelho da maneira que Noemi vê o verde, e vice-versa, e assim por diante, para todas as cores. Se você já viu um negativo fotográfico, tem uma ideia do que são as cores opostas. Você sabe o que é um círculo de matizes? Um exemplo de um círculo de matizes são amostras de seis cores – vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e roxo – dispostas em um círculo. Imagine pegar um círculo de matizes, girá-lo 180 graus e colocá-lo em cima de outro. Isso dá uma ideia da maneira sistemática em que os qualia de cores de Inês são invertidos em relação aos de Noemi.

Imagine que, apesar das diferenças subjetivas entre a maneira como as cores aparecem para Noemi e Inês, as duas mulheres são, no entanto, objetivamente semelhantes em relação a seus comportamentos relacionados a cores, incluindo os comportamentos verbais. Se levantássemos um tomate maduro e perguntássemos qual era a cor, Noemi e Inês responderiam “vermelho”. Se lhes apresentássemos um limão, ambas responderiam “verde”. Se mostrássemos a elas três lascas de tinta de tons ligeiramente diferentes, A, B e C, e perguntássemos se A era mais parecida com B do que com C, ambas dariam a mesma resposta.

Talvez, você esteja se perguntando, agora, como Noemi e Inês podem ser comportamentalmente idênticas, mesmo que elas vejam as cores de maneiras opostas uma à outra. Por que Inês, que tem qualia invertida, não diz que o limão é vermelho?

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Para entender isso, imagine que a aparência das cores, tanto para Noemi, como normal, quanto para Inês, como invertida, fosse assim desde o nascimento. Portanto, antes de aprenderem os nomes relacionados às cores, a aparência das cores para uma delas era o oposto da aparência das cores para a outra. Podemos imaginar que elas aprenderam os nomes das cores sob os seguintes tipos de condições: cada um dos pais segurava um limão e dizia “verde”, depois, segurava um pedaço de brócolis e dizia “verde”, e assim por diante. Independentemente de qual seja a reação subjetiva interna a essas apresentações – isto é, independentemente do quale em questão ser invertido ou normal –, a criança aprenderá a chamar a cor de limão e brócolis de "verde".

Para continuar o experimento mental, vamos imaginar que Noemi e Inês não sejam apenas parecidas com relação a seus comportamentos observáveis, mas também sejam parecidas com relação a todas as propriedades que podem ser observadas por uma terceira pessoa. Isso inclui observações do interior dos seus corpos, que podem ser feitas usando instrumentos científicos. Imagine que a estrutura detalhada dos seus cérebros seja a mesma em Inês e Noemi enquanto elas veem cores que ambas chamariam de "verde". Imagine que, apesar dessas semelhanças físicas, Inês e Noemi ainda sejam diferentes em relação aos seus qualia.

Se o que imaginamos é realmente possível, é possível que duas pessoas sejam iguais em relação às propriedades físicas e, ainda, diferentes em relação aos seus qualia. Se isso é realmente possível, os qualia não podem ser idênticos a nenhuma propriedade física. Qualia deve, em vez disso, ser propriedades não físicas.

O experimento mental do espectro invertido é, frequentemente, discutido na filosofia da mente em conexão com argumentos modais para o dualismo de propriedade (MIGUENS, 2009). Uma maneira de explicarmos esse argumento é assim:

• Premissa 1: Espectros invertidos são concebíveis. Ou seja, é concebível que exista um ser que possua todas as minhas propriedades físicas, mas que possua qualia diferente.

• Premissa 2: Se é concebível que um ser possua todas as minhas propriedades físicas enquanto possui qualia diferentes, é possível que exista esse ser.

• Premissa 3: Se é possível que exista um ser que possua todas as minhas propriedades físicas e possua qualia diferentes, então, qualia não são propriedades físicas.

• Conclusão: Qualia não são propriedades físicas.

É claro que se você se inclina para o fisicalismo, pode muito bem achar que há algo de muito suspeito no experimento mental do espectro invertido e no argumento modal relacionado. Abordaremos preocupações como essa um pouco mais tarde. Primeiramente, voltemos para outro experimento mental – o experimento zumbi – e um argumento modal relacionado.

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4.2 ATAQUE DOS ZUMBIS

Na filosofia da mente, quando as pessoas falam sobre zumbis, não estão falando de monstros mortos-vivos de filmes de terror. A palavra "zumbi", em contextos filosóficos, é um termo técnico (CHALMERS, 1999). O zumbi do filósofo é uma pessoa que não tem qualia, mas, no entanto, é semelhante às pessoas normais de várias maneiras. Por exemplo, às vezes, é sugerido que os zumbis carecem de qualia e, no entanto, comportam-se como seres humanos normais (a pergunta “Como você sabe que outras pessoas não são zumbis?” é uma versão do problema de outras mentes, um problema que exploraremos com mais profundidade no Tópico 3 desta unidade).

Podemos adaptar a história sobre Noemi e Inês para ilustrar a noção de zumbis. Podemos mudar de um experimento mental do espectro invertido para um experimento mental do zumbi. Então, imagine que Noemi tenha a abrangência normal de qualia mas, para Inês, em vez de imaginá-la como tendo qualia invertida, imagine-a sem qualia, enquanto continua sendo comportamentalmente tal como Noemi.

Como é ser (experiência subjetiva) Inês? Não há nada que pareça ser Inês, assim

como não há nada que pareça ser uma rocha ou um pedaço de madeira.

Para conectar a ideia de um zumbi ao dualismo de propriedades, precisamos fazer mais do que imaginar que Inês, o zumbi, é, comportamentalmente, semelhante a Noemi. Temos que imaginar que Inês é semelhante a Noemi em relação às propriedades físicas internas também.

Se usássemos um scanner cerebral e examinássemos os cérebros funcionais de Noemi e Inês enquanto olhavam para o limão, não notaríamos diferença no funcionamento dos seus cérebros, embora, por hipótese, Noemi tenha qualia verde ao ver um limão e, Inês, não tenha qualia. Além disso, a falta de qualia de Inês, de forma alguma, a impede de agir como Noemi. Como Noemi, quando lhe mostram um limão e perguntam sua cor, Inês responde "verde".

Talvez, isso seja difícil de imaginar, mas, aqui, estão algumas considerações de que certos tipos de processamento de informações podem ocorrer sem que haja qualia: considere, por exemplo, a criação e manutenção de memórias inconscientes. Considere, também, o processamento de informações que ocorre em uma calculadora ou em um laptop. As informações podem ser armazenadas e processadas em máquinas e cérebros vivos sem, desse modo, originar experiências conscientes e seus qualia associados. Muito do que guia o comportamento inteligente pode ser feito inconscientemente. É concebível, então, talvez, que todo comportamento possa ser guiado inconscientemente.

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Obviamente, se você tem tendências fisicalistas, pode resistir à ideia de que Noemi e Inês podem ter a mesma estrutura interna e o mesmo comportamento externo, enquanto apenas uma delas possui qualia. Por outro lado, se você acha que a história de Noemi e Inês-zumbi descreve uma possibilidade coerente, você pode se sentir tentado ao dualismo de propriedade sobre os qualia. Nessa visão, é possível que Inês não possua qualia enquanto é, fisicamente, como Noemi, porque os qualia não são propriedades físicas. Qualia seriam um tipo de propriedade não física.

Como o experimento mental do espectro invertido, o experimento mental dos zumbis é frequentemente discutido na filosofia da mente em conexão com vários argumentos modais para o dualismo de propriedade (CHALMERS, 1999). Uma maneira de explicarmos esse argumento é assim:

• Premissa 1: Zumbis são concebíveis. Ou seja, é concebível que exista um ser que possua todas as minhas propriedades físicas, mas que não possua meus qualia.

• Premissa 2: Se é concebível que um ser possua todas as minhas propriedades físicas enquanto não possui meus qualia, é possível que exista esse ser.

• Premissa 3: Se é possível que exista um ser que possua todas as minhas propriedades físicas sem qualia, então, qualia não são propriedades físicas.

• Conclusão: Qualia não são propriedades físicas.

Vamos, agora, examinar outra famosa linha de pensamento em favor do dualismo de propriedade, o argumento do conhecimento.

Assista ao vídeo da Conferência "O problema dos qualia na filosofia da mente", pelo Prof. Dr. Gustavo Leal Toledo (UFSJ). Nessa conferência, o professor G. Leal Toledo explora os problemas da filosofia da mente ligados aos qualia: https://www.youtube.com/watch?v=Ma_ne5ZNWUI.

DICAS

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4.3 O ARGUMENTO DO CONHECIMENTO

Assim como nos argumentos modais do dualismo de propriedade, um experimento mental desempenha um papel central nas discussões do argumento do conhecimento. O personagem central desse experimento mental é um personagem criado pelo filósofo Frank Jackson (1986). Esse personagem é Maria, uma brilhante neurocientista futurista que sabe tudo o que há para saber sobre as propriedades físicas do cérebro, especialmente, sobre as partes do cérebro envolvidas na visão das cores. Além disso, Maria conhece todos os fatos físicos relevantes sobre a luz e as superfícies dos objetos nos quais a luz é refletida. No que diz respeito aos fatos estritamente físicos, Maria sabe tudo o que há para saber sobre o que está envolvido na percepção humana da cor. Ela sabe, com detalhes extraordinários, exatamente o que acontece no cérebro de uma pessoa quando vê coisas vermelhas. No entanto, Maria adquiriu seu vasto conhecimento científico sob condições incomuns. Maria só viu coisas em preto, branco e tons de cinza. Em uma outra versão do experimento mental, Maria está confinada em uma sala na qual tudo é pintado de preto, branco ou cinza. Corantes especiais são injetados no seu corpo para que, quando ela se olhe, veja apenas preto, branco e cinza. Sua educação sobre ciência é adquirida através de livros e vídeos inteiramente em preto, branco e cinza. Em outra versão do experimento mental, em vez de ficar confinada em uma sala em preto e branco, Maria fez uma cirurgia, resultando na sua visão, consistindo, apenas, em preto, branco e tons de cinza. A cirurgia ocorre antes que ela veja algo vermelho. Os detalhes exatos de como Maria adquiriu tanto conhecimento físico sem nunca ter visto vermelho são irrelevantes. O que importa, para o experimento mental, é que Maria pode ter, na condição de super-cientista, conhecimento de todas as propriedades físicas envolvidas na visão humana das cores, incluindo a visão de objetos vermelhos, mesmo que ela mesma nunca tenha passado por uma experiência visual de qualquer coisa vermelha.

O próximo estágio do experimento mental é contemplar se o conhecimento de Maria sobre a visão de cores enquanto está em seu cativeiro em preto e branco está completo. Existe algo que, por nunca ter tido uma experiência de vermelho, Maria não saiba? Muitas pessoas que contemplam essa pergunta dizem que é claro que há algo que Maria não sabe – Maria não sabe como é ver vermelho. Essa afirmação sobre Maria pode ser usada em um argumento contra o fisicalismo e a favor do dualismo de propriedade. Esse é o argumento do conhecimento (COLEMAN, 2019), que podemos declarar da seguinte maneira:

• Premissa 1: Se o fisicalismo é verdadeiro, ou seja, se todas as propriedades são propriedades físicas, Maria sabe tudo o que há para saber sobre a visão de cores.

• Premissa 2: Maria não sabe tudo o que há para saber sobre visão de cores (ela não sabe como é ver o vermelho).

• Conclusão: O fisicalismo é falso. Nem todas as propriedades são propriedades físicas. Há, pelo menos, uma propriedade não física (um quale vermelho).

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O argumento do conhecimento recebe grande parte da sua força de uma visão amplamente aceita sobre como sabemos sobre nossos próprios qualia, a saber que eles não podem ser conhecidos por descrição, mas, apenas, pelo conhecimento experiencial ou por familiaridade (acquaintance knowledge) (COLEMAN, 2019). Para ter uma ideia da distinção entre conhecimento por descrição e conhecimento experiencial, vejamos al-guns exemplos. Primeiramente, considere um exemplo de conhecimento por descrição. Imagine que há duas pessoas, Ivone e Sakamoto, conversando. Suponha que, na con-versa, Ivone nunca tenha visto a bandeira japonesa e que ela não saiba como ela é. Su-ponha, ainda, que Sakamoto sabe como é. Isso é algo que Sakamoto pode explicar para Ivone? Sim, claro! Sakamoto pode descrever a bandeira para Ivone como um retângulo branco com um círculo vermelho. Se, depois de receber essa descrição, mostrarmos, a Ivone, fotos de várias bandeiras que ela nunca tinha visto antes, ela poderia escolher qual é a bandeira japonesa. Ivone ganhou conhecimento de como era a bandeira japo-nesa na descrição que Sakamoto deu a ela. Ivone adquiriu conhecimento por descrição.

Passemos, agora, a um exemplo de conhecimento por familiaridade ou experiencial. Suponha que Ivone tenha uma irmã, Helena, e Helena não apenas nunca tenha visto a bandeira japonesa, como nunca tenha visto um retângulo branco ou um círculo vermelho. Como isso pode ser? Helena é cega e é cega desde o nascimento. Sakamoto poderia explicar a Helena como era o vermelho? Suponha que tenha tentado. Alguma descrição permitiria que ela escolhesse qual a cor vermelha se ela subitamente recuperasse o sentido da visão? Muitas pessoas, incluindo filósofos da mente, estariam inclinadas a dizer que nenhuma quantidade de descrição pode transmitir o que é ver vermelho (COLEMAN, 2019).

O conhecimento de como se parece algo experiencialmente é "inefável" – não pode ser colocado em palavras. Podemos chegar a saber como é, mas apenas passando pela experiência. Assim, nós só conhecemos essas propriedades pela vivência, o conhecimento experiencial. Deve-se notar que essa visão, embora popular, não é, totalmente, incontroversa (MCCLELLAND, 2019). A natureza controversa da visão será explicitada mais claramente à medida que aprofundarmos o argumento do conhecimento e vermos as controvérsias que emergem.

Um tipo de reclamação que os filósofos da mente fizeram sobre o argumento do conhecimento diz respeito à primeira premissa (MCCLELLAND, 2019). Podemos descrever a primeira premissa como dependendo da ideia de que, se alguém conhece todo o conhecimento factual sobre algum domínio, então, possui todo o conhecimento que pertence a esse domínio. Outra maneira de colocar essa ideia é que todo conhecimento é conhecimento de fatos ou, em outras palavras, todo conhecimento é um saber-que (know-that). Alguns filósofos tentaram negar essa premissa e propuseram a ideia de que algum conhecimento não é conhecimento de fatos e, além disso, esse é o tipo de conhecimento que Maria carece durante seu confinamento (PITT, 2019). Contudo, que tipo de conhecimento poderia faltar a ela, além do conhecimento factual? Um tipo de

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sugestão é que Maria carece de conhecimento processual ou saber-como (know-how). Na falta de um saber-como, falta o conhecimento que a tornaria capaz de fazer algo. Todavia, o que Maria não é capaz de fazer? Talvez, ela não seja capaz de reconhecer ou imaginar vermelho.

Outro tipo de sugestão, nesse sentido, diz respeito a uma noção de conhecimento por familiaridade ou experiencial, que é, supostamente, distinta do conhecimento dos fatos (PITT, 2019). Se você conhece alguns fatos sobre Barack Obama, mas nunca o conheceu pessoalmente, podemos dizer: "Você sabe sobre ele, mas você não o conhece". Se o conhecimento por familiaridade é uma forma genuinamente distinta de conhecimento, então, é, logicamente possível, conhecer todos os fatos sobre uma pessoa sem "conhecê-la" no sentido experiencial do termo. Talvez, um tipo de coisa semelhante se aplique ao conhecimento dos qualia.

Parte do objetivo da resposta do saber-como (know-how), além da resposta do conhecimento experiencial ao argumento do conhecimento, é mostrar como pode ser possível que Maria desconheça o que é ver vermelho sem falsificar o fisicalismo. Essas respostas têm, como alvo, a primeira premissa do argumento do conhecimento.

Outro tipo de resposta tem como alvo a segunda premissa do argumento e nega que a Maria confinada seja ignorante em qualquer sentido interessante (COLEMAN, 2019). De acordo com os filósofos atraídos por essa segunda resposta, o conhecimento neurocientífico de Maria é suficiente para ela saber como é ter experiências do vermelho, mesmo que ela ainda não tenha passado por essas experiências.

Isso pode ser difícil para nós imaginarmos, mas essa dificuldade pode ser simplesmente devido à nossa falta de compreensão da neurociência relevante. Uma neurociência tão completa pode estar muito distante em nosso futuro, e nossa imagi-nação empobrecida sobre como ela explicará a experiência consciente é comparável a um grego antigo tentando imaginar o que Einstein quis dizer com E = mc2.

4.4 O ARGUMENTO DO HIATO EXPLICATIVO APLICADO AO DUALISMO DE PROPRIEDADE

Já encontramos argumentos do hiato explicativo em conexão com o dualismo de substâncias. Há muito pouco que seja diferente na aplicação de argumentos do hiato explicativo ao dualismo de propriedade (LEVINE, 2009). Pode ajudar, no entanto, falar um pouco mais sobre propriedades e explicações. Considere o seguinte exemplo de explicação científica: Muitos leitores deste livro tiveram aulas de química, talvez no ensino médio, e estão familiarizados com a explicação científica padrão de por que aquecer um gás aumenta a pressão que exerce sobre os lados do seu recipiente. A explicação é mais ou menos assim: a amostra de gás é apenas uma coleção de

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moléculas que estão se movendo. O calor da amostra é a energia cinética média dessas moléculas em movimento. A pressão que o gás exerce contra os lados do recipiente é a transferência cumulativa do momento das partículas em movimento para os lados do recipiente. Aumentar a temperatura do gás é o mesmo que aumentar a energia cinética média das moléculas, o que resulta em moléculas atingindo os lados do recipiente com mais força, já que as moléculas estão se movendo mais rapidamente.

Podemos decompor essa explicação em três componentes: (1) o fenômeno alvo, (2) a teoria explicativa e (3) a identificação de itens do alvo com itens da teoria de uma maneira que preenche um hiato explicativo.

Primeiro, há o fenômeno alvo, o que precisa ser explicado. Nesse caso, o fenômeno alvo é o fato de que o aumento da temperatura de um gás aumenta sua pressão. Podemos descrever isso em termos das principais propriedades e relações entre eles. Uma propriedade de um gás é sua temperatura, outra é sua pressão, e parte do que queremos explicar é por que aumentar um aumenta o outro.

Segundo, existe a teoria explicativa. É explicado em termos de energia cinética das moléculas, que também envolve propriedades. Neste caso, existe a propriedade de uma coleção de moléculas que possuem uma certa energia cinética média. Há também a propriedade de conferir uma certa quantidade de impulso às laterais do recipiente.

Terceiro, há o fechamento de um hiato explicativo. Na explicação, as propriedades do fenômeno alvo são identificadas com propriedades na teoria explicativa. Por exemplo, a temperatura é identificada com energia cinética molecular média. Finalmente, uma vez que vemos como todas as partes se encaixam, a explicação faz sentido. Vemos por que o aumento do calor resultaria em mais pressão (em vez de menos pressão ou nenhuma mudança de pressão). Assim, a lacuna, o hiato entre o alvo e a teoria é fechado.

Agora, vamos imaginar uma possível explicação dos qualia em termos de propriedades físicas, como as propriedades físicas do cérebro e os neurônios dos quais o cérebro é composto. Um exemplo de fenômeno alvo pode ser o de explicar por que tenho um quale vermelho quando olho um tomate maduro. A propriedade chave no fenômeno alvo é o quale vermelho. O que precisa ser explicado é por que eu tenho esse quale? Em vez de, digamos, um quale verde ou nenhum qualia. Por que não sou um espectro invertido ou um zumbi?

Podemos imaginar uma explicação física proposta para o alvo. Podemos imaginar que a essência de tal explicação será da seguinte maneira: quando a luz de um comprimento de onda tal e tal estimula os neurônios tais e tais nos olhos, isso resulta em padrões de atividade semelhantes na região esbranquiçada do córtex cerebral. Em resumo, podemos dizer que a explicação é que ter um quale vermelho é ter a ativação da fibra nervosa Z no cérebro.

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Então, aqui está uma identificação proposta: ter um quale vermelho é apenas ativar a fibra nervosa Z. Isso explica o fenômeno alvo? Isso fecha o hiato? Muitos filósofos da mente acham que essa explicação deve sempre ser insuficiente (LEVINE, 2009). Eles diriam que sempre deixamos sem resposta porque a ativação da fibra nervosa Z deve acompanhar um quale vermelho em oposição a um quale verde ou nenhunsqualia. Os vários tipos de propriedades que as fibras nervosas Z ou qualquer coisa física podem ter, propriedades relacionadas à massa, momento, carga elétrica etc., parecem que nunca seriam suficientes para explicar por que é assim ver o vermelho e não de alguma outra maneira (ou de jeito nenhum). Parece, então, que sempre haverá um hiato explicativo entre propriedades físicas e qualia.

Uma maneira de resumir a forma geral do argumento dualista de propriedade com base nohiato explicativo é a seguinte.

• Premissa 1: Se os qualia são idênticos a quaisquer propriedades físicas, pode haver uma teoria científica que explica os qualia apenas em termos de propriedades físicas.

• Premissa 2: Nunca pode haver uma teoria científica que explique qualia apenas em termos de propriedades físicas.

• Conclusão: Os qualia não são idênticos a nenhuma propriedade física – são um tipo de propriedade não-física.

Vamos recorrer a um experimento mental para fazer a segunda premissa parecer plausível. Aqui podemos inserir uma modificação do experimento mental de Leibniz (1993). Imagine ser encolhido e explorar um cérebro. Nada que você observaria seria suficiente para explicar os qualia.

Mesmo se você fosse um cientista talentoso que tivesse uma memória incrível e poderes de observação, isso não ajudaria a explicar os qualia. Isso ajudaria a prever as atividades dos vários eventos neurais que você observa, os vários eventos eletroquímicos que constituem as principais atividades dos neurônios que compõem o cérebro humano. No entanto, você ficaria inteiramente no escuro sobre o motivo disso dá origem à consciência e como isso acontece. Você não teria poder para explicar os qualia porque não conseguiria responder às perguntas relevantes do "por que" e "como".

5 O DUALISMO DE PROPRIEDADE LEVA AO EPIFENOMENALISMO?

Um tipo de preocupação que os filósofos levantaram contra o dualismo de propriedade é que parece dar origem a uma forma inaceitável de epifenomenalismo (WALTER, 2009). Resumidamente, epifenomenalismo sobre os qualia é a visão de que eles não contam entre as propriedades causalmente eficazes das pessoas (ou qualquer coisa). Em resumo, o epifenomenalista acha que os qualia não fazem nada. Essa preocupação com o dualismo de propriedade é semelhante à preocupação com o

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dualismo de substância que discutimos na primeira parte deste tópico: o problema da interação. Teremos muito mais a dizer sobre esses problemas no Tópico 1 da Unidade 3, portanto seremos relativamente breves aqui.

Para entender melhor o epifenomenalismo, sugiro que examinemos a distinção entre propriedades causalmente eficazes e propriedades que não são causalmente eficazes. Suponha que você jogue uma bola de futebol em uma janela e a janela se quebre. Quais propriedades da bola de futebol são mais diretamente responsáveis pela quebra da janela? A bola de futebol tem muitas propriedades – tem uma certa massa, uma certa forma, uma certa cor. Outra de suas propriedades é a propriedade de ter sido assinada por um famoso jogador de futebol. Quais propriedades são importantes para explicar por que a bola de futebol fez com que a janela se quebrasse? Provavelmente importa qual é a massa. Se a bola fosse leve como uma pena, é improvável que você a jogasse com força suficiente para quebrar uma janela.

Será que importa que um jogador de futebol famoso a tenha assinado?

Provavelmente não. A bola causaria tanto dano se o jogador não fosse famoso ou nem sequer a tivesse assinado. Da mesma forma irrelevante é a cor da bola de futebol. Você poderia pintá-la de rosa brilhante e seria improvável torná-la segura para jogar diretamente na janela de vidro.

O que acabamos de ilustrar em termos de bola de futebol é uma distinção entre propriedades causalmente eficazes e propriedades que não são causalmente eficazes (com relação à quebra do vidro).

A bola de futebol quebrou o vidro em virtude de ser uma certa massa e viajar a uma certa velocidade em uma certa direção. A bola de futebol não quebrou o vidro porque era de uma determinada cor ou assinada por um determinado jogador.

Podemos usar a ideia de propriedades causalmente eficazes para entender o debate sobre o epifenomenalismo sobre qualia (WALTER, 2009). O que é epifenomenalismo nos qualia? É a visão de que os qualia não são propriedades causalmente eficazes. Por exemplo, o quale da “dolorosidade” associada a bater o dedo do pé não é a razão pela qual você chora ou xinga. O que causa esses comportamentos são certos impulsos nervosos que são conduzidos aos músculos relevantes e as propriedades causalmente eficazes são propriedades físicas como a massa e a carga das partículas que compõem esses nervos e seus sinais eletroquímicos. O quale da dolorosidade – a própria dolorosidade da experiência dolorosa – é irrelevante ao causar seus vários comportamentos.

Como o dualismo de propriedade conduz ao epifenomenalismo? O pensamento básico aqui é que explicações científicas de vários eventos podem fornecer explicações totalmente físicas – explicações que mencionam apenas propriedades físicas. Portanto, não há trabalho causal a ser feito para propriedades não-físicas. Se os qualia são não-físicos, eles não podem ajudar a fazer nada físico acontecer.

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Uma maneira de explicar como o dualismo de propriedade conduz ao epifenomenalismo é em termos de zumbis. Se é possível que uma criatura seja como você fisicamente e se comporte como você em resposta a estímulos físicos sem quaisquer qualia, nenhum deles será responsável por suas respostas a estímulos físicos. Imagine o seguinte, se você tivesse um gêmeo zumbi. Como seu gêmeo zumbi responde da mesma maneira, é natural supor que sejam quais forem as propriedades causalmente eficazes, elas são as que você compartilha com seu gêmeo zumbi. Mas, por hipótese, isso deixa apenas as propriedades físicas, pois esses são os únicos tipos de propriedades que você compartilha com seu irmão gêmeo zumbi.

A ideia de que os qualia são epifenomenais pareceu a muitos filósofos ser muito contrária ao senso comum (WALTER, 2009). Para muitos filósofos, parece contrário ao senso comum sustentar que fazer caretas ou xingar quando você bate o dedo do pé não é causado por um quale da dor – a dolorosidade de uma experiência dolorosa. Tais filósofos, portanto, acham que o dualismo de propriedade é contrário ao senso comum. O epifenomenalismo também leva a outro problema, um referente ao conhecimento.

6 COMO VOCÊ SABE QUE NÃO É UM ZUMBI?

Outra queixa que alguns filósofos levantaram contra o dualismo de propriedade é que parece tornar especialmente problemáticos certos aspectos do nosso autoconhecimento (COLEMAN, 2019). Obviamente, existem todos os tipos de problemas relacionados ao conhecimento das mentes. Tome, por exemplo, esta pergunta: Como você sabe que outras pessoas não são zumbis? Essa questão é uma versão do problema de outras mentes, um problema no qual focaremos bastante no Tópico 3 desta Unidade. Mas considere uma questão relacionada, uma questão a seu respeito. Você sabe que você não é um zumbi?

Uma das consequências mais perturbadoras do dualismo de propriedade sobre os qualia, pelo menos de acordo com alguns filósofos, especialmente o filósofo Daniel Dennett (1991) em seu livro Consciousness Explained, é que não apenas parece impossível saber se alguém mais não é um zumbi, você nem pode ter certeza de que você não é um zumbi. Para apreciar este ponto, serão necessárias várias etapas. Já vimos o primeiro passo, e é a ideia de que o dualismo de propriedade sobre os qualia leva a dúvidas sobre se os outros são zumbis, já que eles se comportariam da mesma maneira, independentemente de terem ou não qualia.

O próximo passo é entender que, por serem dualistas de propriedade apenas sobre os qualia, esses dualistas deixam em aberto a possibilidade de que os zumbis possam ter muitos outros aspectos da mentalidade, aspectos como pensamento, julgamento e crença (DENNETT, 1995). Além disso, existem várias razões positivas para pensar que esses aspectos são totalmente físicos e, portanto, podem ser possuídos por um zumbi sem os qualia não-físicos. Uma dessas razões é que se pode ter esses

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estados mentais sem estar consciente no momento. Considere o seu conhecimento de qual cor são os tomates maduros. Antes de considerar essa pergunta agora, você provavelmente não estava pensando conscientemente ou formando imagens mentais de tomates. No entanto, as informações necessárias para responder à pergunta foram armazenadas em sua memória, como um estado inconsciente.

É relativamente fácil de se entender o armazenamento de informações na memória como sendo algo que um sistema puramente físico possa fazer. A manipulação e o armazenamento de informações são as principais tarefas que os computadores executam e há poucas dúvidas de que os computadores são sistemas totalmente físicos.

Teremos muito mais a dizer sobre a relevância dos computadores para entender a mente humana no texto Mente, cérebro e máquinas pensantes, do autor deste livro, Kevin D. S. Leyser.

Esse texto estará disponível na Trilha de Aprendizagem da Unidade II e poderá também ser acessado pelo seguinte link: https://drive.google.com/file/d/1tEHo7dCGowteV_r0uvavnwnLWImCYCxU/view?usp=sharing.

DICAS

Agora estamos em posição de apreciar a ideia de que, se os qualia não são físicos e distintos de estados mentais, como julgamentos, crenças e pensamentos, não posso saber que não sou um zumbi. No momento, enquanto digito isso, estou olhando para a tela do meu computador. Parece-me que tenho uma percepção consciente da cor da tela. Julgo que estou gostando de uma qualidade visual no momento. No entanto, como os julgamentos são físicos e separados dos qualia, é possível ter o mesmo julgamento sem ter nenhum qualia. Outra maneira de colocar o ponto crucial é assim: julgo que não sou um zumbi, mas pode muito bem ser que sou um zumbi. Todos os meus pensamentos e julgamentos em contrário podem muito bem ser falsos. E se é possível que sejam falsos, não sei realmente se são verdadeiros. Portanto, se as suposições feitas estiverem corretas, não sei se sou ou não um zumbi. No entanto, a proposição de que eu não sei se sou um zumbi é absurda. E se o dualismo de propriedade e seu epifenomenalismo que o acompanha levam a isso, então eles são absurdos. Pelo menos é o que argumentam alguns filósofos (DENNETT, 1991).

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• À primeira vista, o dualismo de substâncias pode parecer uma visão muito natural e altamente plausível.

• A proposição de que a mente e o corpo de uma pessoa são duas coisas distintas capazes de existir independentemente uma da outra tem um certo apelo.

• Nos conforta que haja algo de especial em nós, talvez algo tão especial que possa até sobreviver à morte do corpo.

• A visão do dualismo de substância encontra problemas sérios.

• Os principais problemas do dualismo de substância dizem respeito à causalidade mental, especialmente aos efeitos causais da mente nos corpos físicos.

• O dualismo de propriedade é mais popular que o dualismo de substância na filosofia contemporânea da mente.

• A maioria das discussões sobre o dualismo de propriedade gira em torno da consciência e dos qualia, que são aspectos da mente especialmente difíceis de entender.

• Parte do que sustenta a popularidade do dualismo de propriedade são os experimentos mentais vívidos e fantasiosos sobre zumbis, espectros invertidos e cientistas futuristas do cérebro.

• Apesar da popularidade e vivacidade do dualismo de propriedade, muitos, se não a maioria, dos filósofos da mente, resistem ao dualismo em todas as suas formas.

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1 A ideia de que a mente e o cérebro são duas coisas distintas está no centro dos argumentos dualistas de substância. Partindo da lógica, podemos utilizar os argumentos da Lei de Leibniz para apoiar o dualismo de substância. O que é a Lei de Leibniz, no caso do dualismo de substância?

2 Descreva a posição epifenomenalista sobre os qualia.

3 O que é o Zumbi Filosófico?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3 -

IDEALISMO, BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES

1 INTRODUÇÃO

Caro acadêmico, neste tópico você vai ler sobre o idealismo na filosofia da mente. Vamos introduzir as perspectivas do pampsiquismo e do solipsismo. Para cada um destes posicionamentos apresentaremos os argumentos a favor e os contra-argumentos.

Na segunda parte deste tópico você vai conhecer a abordagem behaviorista na filosofia da mente. Além de detalhar a história e os principais argumentos a favor e contra o behaviorismo da mente, vamos aprofundar o problema filosófico das “outras mentes”.

Muito bem, vamos iniciar agora com o idealismo, o solipsismo e o pampsiquismo.

UNIDADE 2

2 IDEALISMO, SOLIPSISMO E PAMPSIQUISMO

Algo que pode parecer loucura, no entanto é levado a sério por muitos filósofos: não apenas humanos e outros animais têm mente, mas até plantas e bactérias têm mente. Além disso, até os chamados objetos inanimados, como grãos de areia, gotículas de água e até átomos individuais, cada um tem sua mente. Talvez a mente de um grão de areia seja mais simples que a mente de um ser humano, mas, no entanto, é uma mente. Tudo tem sua própria mente. Isso é o pampsiquismo (SEAGER, 2020).

Outra ideia que parece louca e que tem sido tema de muitas discussões filosóficas sérias: suponha que a única coisa que realmente existe seja a sua própria mente. Suponha que não existam outras coisas, nem outras pessoas nem outras mentes – nem objetos materiais, como rochas e árvores. Tudo o que você considera real é apenas uma ideia em sua mente e sua experiência com a chamada realidade não é diferente de um sonho muito longo e realista. Isso é o solipsismo (CHALMERS, 1999).

O solipsista e o pampsíquico concordam que tudo tem uma mente. Eles discordam sobre se há mais de uma mente. De acordo com o solipsismo, há apenas uma.

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O solipsismo é uma versão de uma visão mais geral que podemos chamar de idealismo (ROBINSON, 2009). De acordo com o idealismo, tudo é uma mente ou algo que depende de uma mente. Versões solipsistas do idealismo sustentam que existe apenas uma mente. Versões não-solipsistas do idealismo sustentam que existem múltiplas mentes.

Os pampsíquicos não precisam acreditar no idealismo. Os idealistas dizem que tudo é uma mente ou algo que depende de uma mente. Os pampsíquicos dizem que tudo tem uma mente. Assim, o pampsiquismo deixa em aberto se pode haver propriedades físicas não-mentais das coisas que têm mentes (SEAGER, 2020). Portanto, além de ter uma mente com suas várias propriedades mentais, talvez uma rocha também tenha aspectos não-mentais. Talvez, diria o pampsíquico, a massa ou a forma da rocha seja uma propriedade estritamente independente da mente. Um idealista discordaria dessa opinião. Segundo o idealista, até a massa e a forma da rocha devem depender da mente de uma ou de outras pessoas.

2.1 SOLIPSISMO: SOU APENAS EU?

Tente imaginar que você é a única coisa que existe em todo o universo. Exatamente apenas uma coisa existe, e essa coisa é você. Talvez isso pareça impossível. Afinal, você é um ser vivo. Como tal, você precisa de muitas coisas para sua existência – ar para respirar, água para beber, comida para comer. Portanto, não pode haver apenas você, deve haver outras coisas além disso. Além disso, seu corpo tem partes, cada uma das quais é uma coisa. Se você existe, o mesmo acontece com suas mãos, pés, coração, estômago etc. Portanto, essa ideia de que você é a única coisa existente parece impossível. Se você existe, de um jeito ou de outro, muitas coisas existem.

No entanto, essas observações sobre você precisar de ar, água e comida e sobre ter mãos e estômago, tudo isso está relacionado à ideia de que você tem um corpo físico. Mas, ao contrário, imagine que isso esteja incorreto. Imagine que você não tem corpo físico. Obviamente, parece que você tem um corpo e que esse corpo está em um mundo cheio de muitas outras coisas físicas. Mas talvez essas aparências sejam apenas ilusões. Talvez elas sejam apenas um tipo de ideia ou percepção em sua mente.

Será que isso é algo que você pode imaginar? Nesse caso, o que você está imaginando é que o solipsismo é verdadeiro. O solipsismo pode parecer uma teoria filosófica muito estranha. Talvez até pareça perturbador ou deprimente. Se o solipsismo for verdadeiro, você está realmente sozinho, e todos os seus chamados amigos são como amigos imaginários ou personagens de um sonho. Você é a única pessoa que é verdadeiramente real.

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Provavelmente, nenhum dos grandes filósofos da história acreditava explicitamente no solipsismo (URAL, 2019). A razão pela qual o solipsismo é discutido é que muitos temem que o solipsismo esteja implícito em várias visões que certos filósofos sustentaram explicitamente. Torna-se uma crítica de uma visão se a mesma leva ao solipsismo.

Há um aglomerado de pontos de vista associados ao filósofo Descartes (2004) que parece implicitamente solipsista. A visão principal deste aglomerado é a visão de que a única coisa que pode ser conhecida com certeza é a própria mente. A existência de qualquer outra coisa está aberta a dúvida e, portanto, não é conhecida com certeza.

Deve-se notar que Descartes (2004) não é explicitamente um solipsista. Ele argumenta que ele realmente tem conhecimento de todos os tipos de objetos existentes no mundo externo. No entanto, o argumento de Descartes para o conhecimento do mundo externo depende de um apelo a Deus que muitos filósofos consideraram insatisfatório (RUSSELL, 2004). Descartes argumenta que, uma vez que Deus existe, criou Descartes e é um Deus bom, então Descartes pode confiar que Deus não permitiria que Descartes ficasse preso a um monte de crenças massivamente equivocadas. O apelo de Descartes a Deus é amplamente considerado como circular (RUSSELL, 2009). Descartes confia em suas razões para acreditar que Deus existe com base em que Deus deu a Descartes uma capacidade de raciocínio que é amplamente confiável. Se não permitirmos a Descartes e seus seguidores um apelo a Deus ou a algo que possa desempenhar um papel semelhante ao garantir a confiabilidade das crenças sobre um mundo externo, parece que o cartesiano é levado na direção de uma espécie de solipsismo.

Até agora, descrevemos o solipsismo como algo que pode estar implícito em uma ou mais visões filosóficas. No entanto, seria instrutivo examinar como seria oferecer um argumento explícito para o solipsismo. Aqui está um exemplo:

• Premissa 1: As únicas coisas que existem são as coisas que são conhecidas com certeza por existir.

• Premissa 2: A única coisa que se conhece com certeza por existir é a minha própria mente.

• Conclusão: A única coisa que existe é a minha própria mente.

A segunda premissa é uma ideia que levantamos ao discutir Descartes (2004). Observe também que essa premissa não é somente capaz de estabelecer o solipsismo. Por si só, mina o conhecimento de um mundo externo à minha mente. Possivelmente, esse mundo existe de qualquer maneira, independentemente de eu saber. A primeira premissa é projetada para bloquear essa possibilidade.

Aqui está outro argumento possível para o solipsismo. O ponto central desse argumento é um apelo a algo conhecido como a navalha de Occam, que geralmente é expressa como a ideia de que hipóteses mais simples têm mais probabilidade de ser verdade do que hipóteses complexas (MATTHEWS, 2007). Em uma interpretação

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da navalha de Occam, o solipsismo conta como a hipótese mais simples, uma vez que propõe a existência de apenas uma coisa, ou seja, eu. Como podemos expressar essa linha de pensamento como um argumento explícito para o solipsismo? Um caminho a seguir é o seguinte argumento, que tem como uma de suas premissas uma declaração muito forte da navalha de Occam:

• Premissa 1: É garantido que a hipótese mais simples de qualquer conjunto de hipóteses concorrentes é verdadeira e suas concorrentes são falsas.

• Premissa 2: O solipsismo é a hipótese mais simples.• Conclusão: O solipsismo é verdadeiro; a única coisa que existe sou eu.

Esse argumento talvez seja simples demais para convencer alguém. No entanto, ajuda a ilustrar o desafio de ir direto da simplicidade ao solipsismo. Primeiro, observe que a premissa 1 é forte demais para ser levada a sério. Nenhuma versão da navalha de Occam declarada em termos de garantia (em oposição a apenas um aumento de probabilidade) vale a pena ser levada a sério. No segundo, as perguntas podem ser levantadas sobre a premissa 2. O solipsismo é realmente a hipótese mais simples? E a hipótese que podemos chamar de uma espécie de niilismo, a hipótese de que nada existe? Talvez o niilismo possa ser descartado pelos tipos de motivos que associamos a Descartes: eu sei que pelo menos existo, porque não posso duvidar de que estou pensando e assim por diante. Mas esse ponto ajuda a explicar como mais premissas precisam ser adicionadas a um argumento que espera provar o solipsismo por meio de um apelo à simplicidade (PIHLSTRÖM, 2020).

Para provar que o solipsismo é falso, você precisa de uma prova de que pelo menos uma coisa existe além de sua própria mente. Um tipo de coisa que pode existir além de sua própria mente é a mente de uma ou mais pessoas. Outro tipo de coisa que pode existir além da sua mente são as várias coisas físicas que a percepção sensorial parece revelar ao nosso redor. Se nossos sentidos nos dão conhecimento de itens físicos em um mundo externo à nossa mente é outro grande tópico da filosofia, tão grande que deve ser amplamente considerado como separado da filosofia da mente (e mais adequadamente pensado como pertencendo ao ramo filosófico conhecido como epistemologia), portanto, as observações aqui serão amplamente relacionadas à relação desse tópico com a filosofia da mente.

Um argumento contra o solipsismo enfoca certos aspectos da minha experiência e argumenta que a única explicação possível para esses aspectos é se eles são causados por algo externo a mim (RUSSELL, 2009). Um exemplo dessa linha de pensamento enfoca certos padrões de regularidade na experiência. Por exemplo, eu experimento repetidamente e regularmente a noite seguindo ao dia, coisas descendo morros ao invés de subir e coisas quentes levando a dores quando pressionadas contra a minha pele. Qual é a melhor explicação para essa regularidade na minha experiência?

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De acordo com essa linha de pensamento, as próprias experiências não podem explicá-la, porque a explicação resultante é basicamente circular. O que precisa ser explicado é por que minha experiência é do jeito que é e não de outra maneira. Um apelo a algo na experiência não dará uma explicação da experiência.

Outro argumento nesse sentido apela para o fato de que o padrão de experiência é frequentemente contrário à minha vontade (URAL, 2019). Muitas vezes minhas experiências são muito desagradáveis, apesar dos meus melhores esforços. Se o que eu experimento está inteiramente em minha mente do jeito que um sonho é, então por que não consigo conjurar uma série de experiências que são inteiramente agradáveis, ou pelo menos não tão desagradáveis? Uma premissa desse argumento é a proposição de que, se algo está inteiramente em minha mente, deve estar inteiramente sob o controle de minha vontade. Outra premissa diz que algumas coisas não estão totalmente sob o controle da minha vontade. A conclusão é que pelo menos uma coisa existe fora da minha própria mente.

Uma coisa que deve ser notada sobre esses tipos de argumentos é que talvez eles apenas sirvam para provar a existência de algo externo à nossa mente sem especificar se essas coisas externas são físicas, mentais ou algo completamente diferente. Por exemplo, talvez, o idealista George Berkeley (1996) esteja certo e existem várias mentes, mas as únicas coisas que existem são mentes. Tal visão é consistente com a linha de pensamento que diz que algo externo à minha experiência deve existir para que haja uma explicação de certos padrões em minha experiência. Portanto, por si só, um apelo à necessidade de uma explicação não será suficiente para obter um anti-solipsismo dualista ou um anti-solipsismo fisicalista em oposição a um anti-solipsismo idealista.

O que mais podemos adicionar a esse estilo de argumento para ajudar a provar a existência de objetos físicos? Uma coisa que podemos acrescentar é um apelo ao sucesso preditivo das teorias científicas declaradas em termos de objetos físicos. Para alguém que tem uma certa quantidade de educação científica, parte do que está em sua experiência é uma compreensão de teorias científicas que descrevem objetos físicos, objetos como planetas e átomos. Além disso, essas teorias fazem previsões altamente precisas sobre experiências futuras.

Uma dessas previsões é que observaremos esse e aquele planeta localizado no céu noturno em tal e tal data. Mais uma vez, podemos levantar uma questão sobre a explicação. Qual é a melhor explicação do sucesso preditivo dessas teorias físicas? Para os filósofos atraídos por essa linha de pensamento (STOLJAR, 2010), a resposta é clara – a melhor explicação é que as teorias são verdadeiras. Realmente existem objetos físicos externos à nossa mente.

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2.2 IDEALISMO: ESTÁ TUDO NA MENTE

A versão do idealismo em que estamos interessados principalmente e atualmente é uma versão que podemos chamar de idealismo universal (ROBINSON, 2009). É universal porque sustenta que tudo o que existe é em si uma mente ou é uma ideia dependendo de uma mente (ou de alguma outra coisa mentalmente dependente). O idealista universal nega que qualquer coisa possa existir sem que exista alguma mente. O idealismo universal não é muito popular atualmente, portanto, é provável que você não acredite nele. No entanto, provavelmente existe uma versão do idealismo em que você acredita, e podemos chamá-la de uma versão do idealismo limitado (EWING, 2012). É limitado ao sustentar que algumas coisas (embora não todas) sejam mentes ou dependam da existência delas.

Que tipos de coisas dependem para sua existência nas mentes? Bem, os próprios estados mentais, percepções e crenças, por exemplo, dependem claramente das mentes. Mas este não é um exemplo tão interessante de idealismo limitado quanto alguns outros exemplos. Considere, por exemplo, o idealismo sobre a beleza. Tal visão é codificada no ditado "a beleza está nos olhos de quem vê". De acordo com essa visão, ninguém é bonito, a menos que alguém o perceba como bonito.

Em contraste com o idealista temos o realista (CHURCHLAND, 1999). Se um idealista limitado acredita em alguma coisa que é dependente da mente, então um realista limitado sobre essa mesma coisa acredita que ela é independente da mente. Podemos ilustrar isso em termos de nosso exemplo sobre beleza. Um realista sobre a beleza discordaria do ditado: "a beleza está nos olhos de quem vê". O realista sobre a beleza sustenta que as coisas são bonitas independentemente do que alguém percebe, pensa etc. Independentemente de alguém perceber ou pensar em um objeto bonito, seria bonito de qualquer maneira.

Passamos agora a considerar um filósofo que defende um tipo de idealismo universal. O idealismo de George Berkeley (1996) surgiu de seu compromisso com o empirismo. Resumidamente, empirismo é a visão de que todo conhecimento e todas as ideias surgem de nossa percepção sensorial.

Berkeley argumenta desde premissas empiristas até a conclusão de que a própria existência depende da percepção sensorial. Sua visão pode ser resumida no lema em latim “esse est percipi”, que pode ser traduzido como "ser é ser percebido".

Anteriormente, contrastamos idealismo com realismo. A versão do realismo contra a qual Berkeley (1996) argumenta explicitamente é algo que ele chama de materialismo. Nesse contexto, o materialismo é a opinião de que, além das propriedades de nossas percepções, existe uma substância não-mental subjacente que é a causa dessas propriedades, mas que não é propriedade de nenhuma percepção nem propriedade da própria mente (ARMSTRONG, 2001). Observe que em outras partes deste

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livro usamos "materialismo" como intercambiável com "fisicalismo" como denotando um tipo de monismo. No contexto dos argumentos de Berkeley, "materialismo" denota uma visão em que um dualista e um monista podem concordar contra Berkeley. É a opinião de que existem substâncias materiais que possuem propriedades independentes de nossas percepções sobre elas.

A visão de Berkeley pode parecer bastante estranha, talvez até surpreendente. No entanto, ele desenvolveu muitos argumentos altamente inteligentes para seu ponto de vista. Examinaremos brevemente alguns deles aqui.

2.2.1 O argumento de Berkeley da dor

O primeiro argumento que vamos explorar é o argumento de Berkeley da dor (BERMAN, 1997). Considere a dor que sentiria se você se queimar (acidentalmente) com uma chama de vela ou se cortar com uma faca. Pergunte a si mesmo, quando essas coisas dolorosas acontecem, onde a dolorosidade existe? Qual das duas opções a seguir parece mais plausível?

1- A dolorosidade existe na faca ou na chama.2- A dolorosidade existe na mente da pessoa que sofre um corte ou uma queimadura.

Você, provavelmente, concorda que a segunda opção faz muito mais sentido. É muito difícil acreditar que exista dor em uma faca. Isso significaria que a faca está sofrendo! É muito mais plausível que a dor ocorra na pessoa que é cortada pela faca.

Agora, volte sua atenção para outras propriedades perceptíveis, propriedades que às vezes são tão intensas que se tornam dolorosas. Tais propriedades incluem brilho e temperatura. Se uma luz brilhante ficar mais e mais brilhante, eventualmente ela pode se tornar tão brilhante que é doloroso de se olhar.

Se a dolorosidade existe na mente e a luz muito brilhante é um tipo de dolorosidade, então a luz muito brilhante também existe na mente. Mas se a luz brilhante existe na mente, então, plausivelmente, a luz fraca também existe na mente.

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2.2.2 O argumento de Berkeley a partir da relatividade perceptiva: o balde de Berkeley

O segundo argumento analisado aqui é o argumento do balde ou o argumento da relatividade perceptiva de Berkeley (BERMAN, 1997). Suponha que exista um balde cheio de água morna. Imagine enfiar as duas mãos na água morna depois de prepará-las da seguinte maneira: Coloque a mão esquerda em um balde cheio de água muito quente (embora não tão quente que seja doloroso) e coloque a mão direita em um balde cheio de água muito fria por 30 segundos. Depois de mergulhar as mãos em águas de temperaturas diferentes por 30 segundos, coloque-as na água morna do balde. Você notará que a água no balde parece muito fria em sua mão, que estava anteriormente em água quente e, ao mesmo tempo, ela fica bem quente em sua mão, que estava anteriormente em água fria.

Com que mão você consegue sentir a temperatura que a água do balde realmente tem? As duas experiências associadas às duas mãos não podem ser precisas, pois seria uma contradição a água no balde estar muito quente e não muito quente exatamente ao mesmo tempo. E não há base para selecionar apenas uma das experiências como aquela que representa com precisão a temperatura da água do balde, pois nenhuma parece ser uma candidata melhor que a outra. A conclusão idealista, então, é que a temperatura sentida é uma propriedade das experiências ou ideias sensoriais, mas não uma propriedade no chamado objeto material, que neste caso é a água no balde.

2.2.3 O argumento central de Berkeley

Agora, vamos ao chamado “argumento central (principal) de Berkeley” (BERMAN, 1997). Berkeley sustenta que as ideias representam por semelhança o que elas representam. Se sua ideia de um cavalo representa um cavalo, ela deve se parecer, assemelhar, com um cavalo. No entanto, de acordo com Berkeley (1996), a única coisa com a qual uma ideia pode se assemelhar é outra ideia. Uma ideia não pode se assemelhar aos chamados objetos materiais. Segue-se que você não pode nem mesmo conceber coerentemente objetos materiais, pois não pode formar uma ideia que se pareça com um e, portanto, que o represente adequadamente. Daqui resulta também que, se você tem uma ideia de que representa um cavalo, o próprio cavalo deve ser uma ideia.

O argumento conhecido como "argumento central" (ou principal) de Berkeley é assim chamado porque Berkeley (1996) afirmou que este é o argumento em que ele estaria disposto a apostar toda a sua tese.

Se o realismo é verdadeiro e o idealismo é falso, deve ser possível que algo como uma árvore exista, mesmo que não exista a mente. Se os realistas estão certos sobre as árvores, as árvores são independentes da mente – elas não dependem da

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mente para sua existência. A essência do argumento central de Berkeley é tentar mostrar que não podemos sequer conceber algo que exista independentemente da mente (BERMAN, 1997).

Tente o seguinte: tente conceber algo que existe sem que exista a mente. Conceba uma árvore. Observe, no entanto: sempre que você concebe uma árvore, sua mente existe. De que outra forma você concebe se não com a mente? Segundo Berkeley (1996), isso serve para mostrar que não podemos sequer formar uma ideia de uma árvore existente independentemente da mente, pois qualquer tentativa de fazê-lo requer a existência de nossa própria mente.

2.2.4 Por que Berkeley não é um solipsista

Até agora, os argumentos de Berkeley (1996) que analisamos foram projetados para mostrar que não existem objetos ou substâncias materiais. As chamadas coisas materiais, como rochas, árvores e cavalos, são na verdade apenas conjuntos de ideias. Entretanto, descrever o idealismo dessa maneira é descrever uma visão totalmente consistente com o solipsismo, já que essas coleções de ideias podem muito bem ser apenas minhas ideias. Talvez não haja outras mentes ou substâncias espirituais além da minha. No entanto, Berkeley argumenta que deve haver outras mentes além da minha.

Se você examinar suas próprias ideias, perceberá que há um padrão para muitas delas. Esse padrão deve ser causado por algo. Agora, às vezes, ao exercitar minha vontade, sou a causa do padrão de ideias. No entanto, há outros momentos, especialmente na percepção sensorial, em que sou passivo, mas ainda assim há uma sucessão de ideias. Algo deve ser a causa. Minha mente não pode ser a causa, pois isso ocorre passivamente. Berkeley (1996) sustenta que a causa não pode por si só ser uma ideia. Segue-se, então, que as causas devem ser substâncias mentais distintas das minhas. Ou seja, outras mentes além da minha devem existir (ou, pelo menos, uma outra mente deve existir).

Vamos agora partir desses argumentos a favor do idealismo, para considerar como alguém poderia argumentar contra o idealismo.

2.2.5 Argumentando contra o idealismo

Um tipo de argumento que pode ser feito contra o idealismo é muito semelhante a um argumento que discutimos em conexão com o solipsismo (JAWORSKI, 2011). Tal argumen-to observa que há um padrão para nossas várias ideias e que essa presença de um padrão clama por uma explicação. Por que várias pessoas concordam que existe um objeto material como a lua? E por que existe um acordo entre seus próprios estados mentais em diferentes épocas em relação à lua? Por exemplo, você olha para ela, desvia o olhar e, quando olha no-vamente, a lua ainda está lá. O que explica esse acordo entre seus próprios estados mentais?

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A explicação mais natural de tal coerência entre vários estados mentais é que existe uma causa comum desses estados mentais – que há algo externo que os leva a concordar (JAWORSKI, 2011). Em uma definição de um objeto material, um objeto material é algo causalmente eficaz e capaz de existir independentemente da mente. De acordo com essa linha de pensamento, a melhor explicação para a coordenação de ideias e a coerência de nossos vários estados mentais é que existem objetos materiais que causam essa coordenação e coerência.

2.3 PAMPSIQUISMO: A MENTE ESTÁ EM TODA PARTE

Indo apenas pela palavra “pampsiquismo”, podemos ver que é a visão de que a mente (psique) está em toda parte (pan/pam). Filosoficamente, a ideia de que a mente está em toda parte ou de que tudo tem uma mente ou aspecto semelhante à mente é de fato uma ideia central crucial do pampsiquismo. No entanto, os pampsíquicos geralmente abraçam teses adicionais além da tese da ubiquidade da mente. Outra ideia central da maioria das versões do pampsiquismo é que a mente é um aspecto fundamental da realidade (SEAGER, 2020).

Como em muitas visões da filosofia, podemos entender essa visão contrastando-a com uma visão oposta. Nesse caso, a visão oposta é que a mentalidade não é fundamental. Agora, existem duas maneiras pelas quais a mentalidade pode deixar de ser fundamental. A primeira é se não há nenhuma mentalidade. Essa é uma visão conhecida como eliminativismo ou materialismo eliminativo (TEIXEIRA, 2008) e adiaremos a discussão até o Tópico 2 da Unidade 3. A outra maneira pela qual a mentalidade é interpretada como não fundamental é uma visão que podemos chamar de "emergentismo" (HASKER, 1999), pois é a visão de que existe mentes e elas surgem ou emergem dos aspectos mais fundamentais da realidade, aspectos geralmente considerados físicos e não-mentais. Para os propósitos da presente discussão, podemos chamar o contraste crucial de contraste entre pampsíquicos e emergentistas.

Os vários tipos de monismo fisicalista que examinaremos em vários tópicos, nesta e na próxima unidade, podem ser considerados versões do emergentismo (MACDONALD; MACDONALD, 2019). Todos eles se encarregam de explicar como a mentalidade pode emergir de certas organizações de partes materiais, partes que individualmente não são mentais. Isso pode parecer uma tarefa especialmente assustadora e, especialmente quando se trata de consciência, muitos filósofos pensam que existe um hiato explicativo permanente (CRANE, 2010). Eles sustentam que a consciência não pode ser explicada em termos de processos físicos. Alguns filósofos foram movidos por essa consideração a rejeitar o emergentismo fisicalista e abraçar o pampsiquismo (HEIL, 2019).

Examinaremos três tipos gerais de argumentos para o pampsiquismo. O primei-ro tipo envolve traçar analogias entre humanos, que claramente têm mentes, e não-hu-manos, como plantas, para tentar mostrar que os não-humanos se comportam de ma-neiras suficientemente semelhantes aos humanos para justificar tratá-los como tendo

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um ou mais aspectos da mentalidade (por exemplo, percepção, inteligência, memória, vontade). O segundo tipo de argumento apela a um princípio de que "nada pode vir do nada". A ideia básica aqui é que, ao afirmar que a mente pode surgir do não-mental, o emergentista viola um princípio geral de que a única coisa que pode surgir do nada é: nada! O terceiro tipo de argumento apela à ideia, defendida por Darwin e outros (CAR-RUTHERS; CHAMBERLAIN, 2003), de que novos organismos surgem através de um pro-cesso de evolução pela seleção natural. De acordo com este argumento evolutivo para o pampsiquismo, cada nova criatura é uma modificação gradual de alguma criatura exis-tente anteriormente, e não há uma linha clara na evolução das criaturas onde possamos fazer uma distinção entre aqueles com mentes e aqueles sem mentes. Se não houver uma linha clara – não há razão para traçar a linha em um ponto e não em outro –, talvez a conclusão mais razoável seja não traçar nenhuma linha entre mente e não-mente.

Assista ao vídeo “Pampsiquismo: uma teoria sobre a relação mente e cérebro”, de Joanna Leidenhag, uma pesquisadora na University of St Andrews (Escócia), na qual ela, brevemente, expõe a questão do pampsiquismo na filosofia da mente: https://www.youtube.com/watch?v=c-_XYYorTaE.

DICAS

2.3.1 O argumento da analogia

Como muitas pessoas, você provavelmente mataria um inseto pisando nele sem pensar duas vezes. E, também como muitas pessoas, você ficaria horrorizado com o pensamento de matar um filhote de cachorro, gatinho ou bebê humano pisando nele com o pé. Mas qual é a diferença que faz a diferença aqui?

Todas essas criaturas estão vivas e usam órgãos sensoriais para permanecerem vivas e evitarem perigos. Segundo o pampsíquico, apesar das diferenças de tamanho, todas essas criaturas são suficientemente análogas em sua estrutura e comportamento para serem consideradas como tendo mentes (SEAGER, 2020). Talvez todos tenham mentalidade suficiente para torná-los igualmente merecedores de não serem mortos ao serem pisados!

Quais são as analogias importantes entre humanos e outros animais que tornam apropriado pensar que os outros animais têm mentes? Para iniciantes, podemos traçar analogias em três áreas da mentalidade (embora haja analogias prováveis que possam ser traçadas além dessas três áreas): (1) percepção, (2) memória e (3) vontade (CARRUTHERS; CHAMBERLAIN, 2003). Como os humanos, outros animais são (1) equipados com órgãos sensoriais que lhes permitem detectar estímulos, alguns dos

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quais são benéficos para o organismo, outros são prejudiciais. Como os seres humanos, outros animais (2) podem aprender e armazenar informações em suas memórias para uso posterior. Como os humanos, outros animais (3) podem tomar decisões e agir de maneiras baseadas em informações detectadas e lembradas.

Os pampsíquicos estendem essas analogias além dos animais para incluir organismos unicelularese plantas (SEAGER, 2020). Organismos unicelulares, como bactérias, têm maneiras de detectar seus ambientes e se mover através deles. Os cientistas até demonstraram formas simples de aprendizagem em bactérias. As plantas se movem em escalas de tempo muito mais lentas, mesmo assim se movem. Seus movimentos atendem às necessidades – por exemplo, aproximando as folhas da luz solar e as raízes da água e dos nutrientes. Os pampsíquicos veem esses movimentos como evidência da mentalidade da planta.

Os chamados objetos inanimados podem até ser levados em consideração sob tais analogias (SEAGER, 2020). Um pedaço de metal reage ao aquecimento –altera seu tamanho e cor. Um pampsíquico pode ver isso como a resposta perceptiva do metal ao estímulo do calor. E um pedaço de metal pode ser dobrado ou carimbado com uma determinada forma que reterá com o tempo. Isso pode ser visto como um tipo de memória. As coisas não-vivas têm um tipo de vontade? Os movimentos desviantes das partículas foram vistos por alguns pampsíquicos como resultado de decisões, decisões que fluem do livre-arbítrio das partículas individuais.

2.3.2 O argumento nada do nada

O princípio de que nada pode vir do nada – em latim, ex nihilo nihil fit – é um princípio amplamente aceito (VIANA, 2016). Você provavelmente endossaria. Se algo acontece, não pode ter vindo do nada.

Os bebês vêm dos pais, as maçãs vêm das árvores, o fogo vem do combustível, oxigênio e calor. A ideia de que algo poderia simplesmente existir sem ter vindo de nada – algo do nada – parece para muitas pessoas completamente absurda.

Agora considere a visão básica da relação da mente com o resto do universo de acordo com o emergentismo (MACDONALD; MACDONALD, 2010). Fundamentalmente, o universo é feito de coisas que não têm mentalidade. Tais coisas são as partículas fundamentais estudadas pelos físicos, partículas como os prótons, nêutrons e elétrons que compõem os produtos químicos em seu cérebro e no resto do seu corpo. Segundo os emergentistas, cada partícula do seu cérebro carece de consciência individualmente. No entanto, ao serem organizadas de uma maneira especial, essas partículas dão origem à sua consciência. Mas, então, não é esse o caso de algo – sua consciência –

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surgindo do nada? Sua consciência não está em nenhuma das partículas individuais. E se jogássemos as partículas em um balde, todas embaralhadas, isso também não daria origem à sua consciência. Parece que temos algo muito parecido aqui, de acordo com o emergentismo, com algo do nada. Se a emergência realmente acontece, então tiramos a mente da não-mente. Mas se este é um exemplo de algo do nada, deveríamos então rejeitar o emergentismo e abraçar o pampsiquismo.

2.3.3 O argumento evolutivo

Uma das ideias básicas da evolução darwiniana pela seleção natural é que os organismos mudam gradualmente ao longo de várias gerações. Novas características são modificações incrementais das características de uma geração anterior. O registro fóssil mostra mudanças graduais em tamanho e forma. Se esse aspecto gradual da mudança evolucionária é uma característica universal da evolução dos traços, então até mesmo os traços mentais humanos devem ter evoluído gradualmente a partir de predecessores que eles próprios possuíam traços mentais (CARRUTHERS; CHAMBERLAIN, 2003). No entanto, a menos que a mentalidade sempre estivesse presente na história da evolução da vida na Terra, deve ter havido algum ponto em que uma criatura com mentalidade se originou de uma criatura sem mentalidade.

Outra maneira de dizer isso é que deve haver algum lugar nessa progressão histórica em que podemos "traçar uma linha" que separa os que têm mente e os que não têm mente. No entanto, não parece haver um lugar óbvio em nenhum lugar da história das criaturas em evolução onde possamos traçar essa linha. O pampsíquico conclui que não há linha e que há uma continuidade de mentalidade percorrendo a história evolutiva desde nossos primeiros ancestrais unicelulares até nós (HEIL, 2019). E se o surgimento da vida a partir da matéria não-viva foi similarmente um processo de mudança incremental, não há uma linha a ser traçada entre os vivos e os não-vivos que serviria para distinguir os que têm mente e os que não têm mente.

2.3.4 Argumentando contra o pampsiquismo: o problema da combinação

Para ter uma ideia do problema da combinação, é útil primeiro trazer à mente uma crítica sobre as explicações que os pampsíquicos levantam contra os emergentistas (HEIL, 2019). A essência da crítica é que os emergentistas nunca serão capazes de explicar como um monte de átomos, cada um dos quais por si só não tem mente, pode combinar para dar origem a minha mente.

Em seguida, lembre-se de que certos pampsíquicos tentaram evitar os problemas do emergentismo postulando que mentes podem ser encontradas em toda a natureza física, de modo que mesmo os átomos individuais que compõem meu corpo e cérebro tenham sua própria consciência, embora uma forma mais simples de consciência do

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que aminha (SEAGER, 2020). Mas é aqui que surge o problema da combinação para esse tipo de pampsiquismo. Na medida em que meus átomos têm um tipo de consciência diferente da minha, o pampsíquico precisa tanto de um relato do surgimento de minha consciência quanto o emergentista fisicalista (MACDONALD; MACDONALD, 2019). E se é verdade que esse relato nunca será possível para o emergentismo físico, parece que esse relato também não seria possível para esse tipo de emergentismo pampsíquico.

Outra maneira de ver o problema da combinação do pampsiquismo é que ele é uma versão do argumento "nada do nada" (VIANA, 2016), mas aplicado contra o pampsiquismo (em vez de contra o emergentismo fisicalista). Suponha que meus átomos tenham uma consciência diferente da minha. Chame cada uma dessas mentes de não-mente do Kevin. Minha própria mente, a mente do Kevin, surge da combinação de não-mentes do Kevin. Mas este é um caso de algo do nada, porque parece que a mente do Kevin está emergindo de uma combinação de não-mentes do Kevin.

Obviamente, deve-se notar que certas versões do pampsiquismo são imunes ao problema de combinação (SEAGER, 2020). Por exemplo, um idealismo solipsista segundo o qual minha mente é a única mente e os chamados átomos físicos são apenas ideias em minha mente não podem ser discutidos com base em combinações, pois o solipsismo não sustenta que minha mente surge de qualquer combinação. Minha mente é a única coisa que existe, então não há várias coisas para combinar. Outros tipos de idealismo são igualmente imunes. Exemplos são os idealismos de Berkeley (1996) e Leibniz (1993), nos quais existem várias mentes, mas cada mente é simples, o que significa que cada mente não é de forma alguma composta de partes.

Muito bem, até agora neste tópico você pode ler sobre o idealismo, o solipsismo e o pampsiquismo. Agora, vamos introduzir uma abordagem que poderia ser vista como o “outro lado da moeda”, o behaviorismo, pois nesta perspectiva tudo o que pode ser dito sobre as pessoas são seus comportamentos observáveis, não há lugar para falarmos sobre “mentes”. Vamos lá?

3 BEHAVIORISMO E OUTRAS MENTES

Behaviorismo é a visão de que tudo o que há para saber ou dizer sobre as pessoas em relação aos seus estados mentais, pode ser conhecido ou dito em termos de seus comportamentos observáveis (incluindo comportamentos verbais). Podemos ir ainda mais longe e dizer que, de acordo com o behaviorismo, tudo o que há nos estados mentais são certos padrões de comportamento ou certas disposições em relação a certos comportamentos (LECLERC, 2018).

Essas simples declarações do behaviorismo podem ser divididas em três afirmações sobre os estados mentais. A primeira é uma afirmação sobre como obter conhecimento dos estados mentais. A segunda é sobre os significados do que dizemos

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quando usamos terminologia como "crença" e "desejo". A terceira é sobre o que são estados mentais, ou seja, qual é a sua natureza última. Os filósofos descrevem essas três afirmações assim: a primeira é epistemológica, a segunda é semântica e a terceira é metafísica (LECLERC, 2018).

Para ilustrar essas três afirmações, considere o estado emocional de se sentir triste. Em particular, considere a tristeza de outra pessoa:

Ilustrando a afirmação de conhecimento (epistemológica): Como você sabe que essa pessoa está triste? A resposta comportamental está muito próxima da resposta do senso comum. Você sabe pelo o que eles fazem e pelo o que dizem. Eles franzem a testa, choram, ficam deprimidos. Eles dizem coisas como "me sinto triste".

Ilustrando a afirmação de significado (semântica): O que a palavra “triste” significa? O que se entende quando se entende afirmações como "Maria está muito triste hoje"? O behaviorista diz que os significados de tais palavras podem ser explicados em termos de comportamento. Se descrevermos alguém como estando em um estado mental de "tristeza", então, por definição, os descreveremos como tendo ou propensos a ter comportamentos como franzir a testa, chorar e deprimir.

Ilustrando a afirmação metafísica: Existem duas versões para essa afirmação, uma que podemos chamar de reducionista e a outra que podemos chamar de eliminativista. A versão reducionista diz que a tristeza é apenas um tipo de comportamento ou disposição comportamental. A versão eliminativista diz que, realmente, não existe um estado mental de tristeza, e que o que existe são certos comportamentos ou disposições. Teremos mais a dizer sobre o eliminativismo no Tópico 2 da Unidade 3. Ao longo deste tópico, focaremos principalmente a versão reducionista da afirmação metafísica.

Uma coisa que é especialmente digna de nota sobre o behaviorismo é como ele é adequado para outras mentes (JAWORSKI, 2011). Como já observamos, a visão comportamental básica de como sabemos sobre outras mentes está muito próxima da visão do senso comum – nosso conhecimento das mentes e estados mentais de outras pessoas é mediado pelo comportamento observado. Como há pouquíssima evidência científica da existência de telepatia, não há razão séria para pensar que podemos conhecer diretamente a mente dos outros. Temos que seguir o que eles fazem ou dizem e descobrir a partir daí.

Embora o behaviorismo pareça bem adequado para lidar com o problema das outras mentes, pode não ser adequado quanto à própria mente. Pelo menos, isso tem sido uma queixa de muitos filósofos contra o behaviorismo (JAWORSKI, 2011). Considere como você conhece sua própria tristeza. Qual parece a mais plausível das duas explicações a seguir?

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• Explicação 1: Você observa seu próprio comportamento e percebe que está franzindo a testa e chorando. Você conclui que provavelmente está triste.

• Explicação 2: Você simplesmente se sente triste e, assim, conhece sua tristeza. Você não precisa confiar em nenhuma observação do seu comportamento. Você apenas observa e sente diretamente a tristeza dentro de você.

Muitas pessoas consideram a explicação 2 muito mais plausível e, por esse motivo, resistem ao behaviorismo (MIGUENS, 2009). De maneira semelhante, uma das objeções mais proeminentes ao behaviorismo diz respeito a certos aspectos subjetivos da mente –qualia – que supostamente conhecemos diretamente via introspecção (CHALMERS, 1999). Exploraremos essas objeções mais adiante neste tópico. Primeiro, porém, nos voltamos para a história do behaviorismo.

3.1 A HISTÓRIA DO BEHAVIORISMO

"Behaviorismo" é um rótulo para dois movimentos históricos distintos, um em psicologia (O’DONOHUE; KITCHENER, 1999) e outro em filosofia.

O movimento psicológico é chamado de "behaviorismo psicológico", "behaviorismo metodológico" ou "behaviorismo empírico" (O’DONOHUE; KITCHENER, 1999; ZILIO, 2010). O movimento filosófico é chamado de "behaviorismo filosófico", "behaviorismo lógico" ou "behaviorismo analítico" (COSTA, 2005; ZILIO, 2010; THYER, 1999). Esses dois movimentos surgiram devido a forças históricas diferentes e têm diferentes tópicos principais de preocupação, embora haja sobreposição.

O principal tópico de preocupação com o behaviorismo psicológico é uma questão de quais métodos são mais adequados para a realização de pesquisas científicas em psicologia. O behaviorismo psicológico se rebelou contra o introspeccionismo, que favoreceu métodos introspectivos para estudar a mente (O’DONOHUE; KITCHENER, 1999).

Os principais tópicos de preocupação com o behaviorismo filosófico foram semânticos e metafísicos (ZILIO, 2010). Historicamente, o behaviorismo filosófico emergiu dos movimentos filosóficos do positivismo lógico e da filosofia da linguagem ordinária. Os filósofos da linguagem ordinária suspeitavam de teses filosóficas, como o dualismo cartesiano, que não foram declaradas nos termos da linguagem ordinária. Os positivistas lógicos acreditavam em uma teoria verificacionista do significado dos termos. Nesta teoria, o significado de um termo é dado especificando as condições observáveis que verificariam sua aplicação. Assim, o significado de "oxigênio" é dado especificando as condições experimentais nas quais se pode verificar declarações como "existe oxigênio presente".

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O behaviorismo pode ser visto como uma consequência da aplicação do verificacionismo à terminologia mentalista como "crença" e "desejo" (THYER, 1999). Pelo menos na medida em que nos concentramos em outras pessoas, é plausível que a única evidência que temos para verificar se eles acreditam ou desejam algo é evidência a respeito de seu comportamento. Se assumimos a teoria verificacionista do significado, terminamos com a visão behaviorista de que comportamentos fazem parte dos próprios significados de termos mentalistas como "crença" e "desejo".

Apesar das diferenças históricas e tópicas entre behaviorismo na psicologia e behaviorismo na filosofia, há considerável sobreposição, com pontos em comum nas respostas dadas às três questões centrais que mencionamos anteriormente (as questões que identificamos como epistemológicas, semânticas e metafísicas). No entanto, a discussão no presente tópico será focada, principalmente, no behaviorismo filosófico.

Para qualquer filósofo a quem alguém chama de behaviorista, surge uma contro-vérsia sobre se esse filósofo é realmente um behaviorista. No entanto, vale a pena mencio-nar alguns dos principais filósofos frequentemente associados ao behaviorismo, a saber: Gilbert Ryle (1980), Ludwig Wittgenstein (2007; 2017), W. V. O. Quine (1969; 1960) e Daniel Dennett (1969). Na presente seção, focalizaremos duas figuras especialmente influentes desde os primeiros dias do behaviorismo filosófico: Gilbert Ryle e Ludwig Wittgenstein.

3.1.1 Ludwig Wittgenstein e o argumento da linguagem privada

Uma das ideias centrais contra as quais os behavioristas se rebelam, uma ideia com íntimas associações com Descartes e seu dualismo, é a ideia da privacidade do mental. Essa ideia de privacidade é que você só pode ter conhecimento de sua própria mente. Você pode ter um palpite sobre outras mentes, mas só pode conhecer, ou conhecer com certeza, a sua própria mente.

Um ataque inicial e influente a essa ideia de privacidade se origina com Ludwig Wittgenstein (2017) em suas Investigações Filosóficas. Wittgenstein expressa sua antipatia pela privacidade em sua passagem "besouro em uma caixa" (da seção 293 das Investigações Filosóficas):

Se digo de mim mesmo que só sei pelo caso próprio o que a palavra “dor”significa, – não tenho que dizer isso também dos demais? E como pos-so, então, generalizar um caso de um modo tão irresponsável? Ora, cada um me diz que só sabe o que é a dor a partir de si mesmo! – Su-ponhamos que cada um tivesse uma caixa na qual estivesse algo que chamamos de “besouro”. Ninguém pode olhar na caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um besouro só pela visão do seu besouro. – Poderia até ser que cada um tivesse uma outra coisa em sua caixa.

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Poder-se-ia até imaginar que essa coisa mudasse constantemente. – Mas e se, agora, a palavra “besouro” desse povo tivesse um uso? – Então não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence de nenhum modo ao jogo de linguagem; nem sequer como um algo: pois a caixa poderia até estar vazia. – Não, essa coisa na caixa pode ser ‘simplificada’; suprime-se, seja lá o que for. Isso quer dizer: quando se constrói a gramática da expressão da sensação segundo o modelo de ‘objeto e designação’, então o objeto cai fora da considera-ção como irrelevante (WITTGENSTEIN, 2017, §293, p. 178-180).

Na discussão de Wittgenstein, o besouro em uma caixa é uma metáfora para as sensações, especialmente quando as sensações são pensadas do ponto de vista cartesiano. Do ponto de vista cartesiano, as sensações são conhecidas apenas no privado. Outros podem observar seus comportamentos, mas somente você pode experimentar suas sensações. Do ponto de vista de alguém do lado de fora, suas sensações podem ser muito diferentes ou totalmente ausentes. Essa ideia lembra as experiências mentais sobre zumbis e qualia invertidos que discutimos no Tópico 2 desta unidade.

Para alguém de fora, é possível que você não tenha nenhuma sensação. O argumento de Wittgenstein aqui é ainda mais forte: Até mesmo para você, você também pode não ter sensações. Você também pode não ter nada na sua "caixa".

Como podemos chegar a essa conclusão ainda mais forte? Não é óbvio que possa haver sensações privadas, que possa haver um "besouro na caixa"? Parte do ponto de Wittgenstein (2017) é focar nas palavras que usaríamos para tentar enquadrar essa pergunta, palavras como "sensação". "Sensação" é uma palavra em português, um idioma compartilhado por várias pessoas. Como tal, a "sensação" tem um uso público. Mas também, como tal, quaisquer que sejam as coisas privadas que acompanham nossos usos públicos de "sensação", elas podem muito bem não estar lá –e o termo "sensação" ainda teria seu uso público.

Essa linha de pensamento se desenvolve no famoso argumento da linguagem privada de Wittgenstein (2017). A conclusão desse argumento é que é impossível haver uma linguagem que se refira a coisas particulares, uma linguagem sobre sensações que só poderiam ser entendidas por uma única pessoa. O ponto central da discussão de Wittgenstein é um experimento mental no qual você tenta imaginar uma linguagem com o qual possa manter um diário de suas próprias sensações particulares, uma linguagem que somente você entende.

Suponha que você crie um sinal "S" de que pretende representar uma sensação específica que acabou de ter. Você escreve "S" em seu diário particular. Wittgenstein nos convida a pensar como você saberia que “S” realmente representa essa sensação e não outra (ou não representa nada). De acordo com Wittgenstein (2017), ao manter este diário particular, você nunca estará em posição de distinguir se, em alguma ocasião, usou "S" para se referir corretamente a alguma sensação, em vez de apenas parecer que você a usou corretamente. E como, por hipótese, é suposto ser privado, ninguém mais estará em posição de distinguir entre o uso correto de "S" e o mero uso aparentemente

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correto de "S". Como não há ninguém – nem você, nem mais ninguém – que possa distinguir entre um uso correto e uso incorreto de um sinal nessa linguagem, não existe essa distinção. Conforme Wittgenstein (2017), onde não se pode compreender uma distinção entre usos corretos e incorretos, simplesmente não há lugar para a noção de correção. O sinal "S", assim como o restante dos sinais nessa linguagem, não tem sentido, e isso não é linguagem. A conclusão que Wittgenstein sugere é que não pode haver uma linguagem genuinamente privada. As linguagens e as línguas, portanto, são necessariamente públicas, assim como as coisas a que nos referimos usando a linguagem. Quaisquer que sejam as sensações, elas não podem ser privadas. Pois a palavra "sensação" tem uso público, e esse é o único que importa.

3.1.2 Gilbert Ryle contra o fantasma na máquina

O filósofo Gilbert Ryle (1980), em seu livro The Concept of Mind, parodia a visão da mente de Descartes como uma visão do "fantasma na máquina". A solução de Descartes para o problema mente-corpo é pensar na mente como um fantasma que habita nosso corpo (a máquina). Parte do que há de errado com essa visão, de acordo com Ryle, é que ela trata a mente e o corpo como um tipo de coisa. Somente com essa suposição faria sentido dizer que a mente está literalmente no corpo (como um fantasma pode estar em uma máquina). Mas considerar a mente como ela mesma um tipo de coisa é cometer um erro que Ryle chama de "erro de categoria".

Um erro de categoria é o erro de tratar algo que pertence a uma categoria lógica ou conceitual como se pertencesse a outra. Aqui está uma ilustração de Ryle (1980): imagine que um dia você visite uma universidade e participe de um tour pelos edifícios no campus. Você é levado para a biblioteca, o prédio da ciência, o prédio dos esportes e assim por diante. Imagine ainda mais que você interrompe seu guia e diz: "Muito obrigado por me mostrar a biblioteca, o prédio da ciência, o prédio dos esportes etc., mas quando você vai me mostrar a universidade?" O erro aqui é pensar que a universidade pertence à mesma categoria que os vários edifícios, como se fosse mais um edifício ao qual você poderia ser conduzido.

Ryle (1980) vê os dualistas cometendo vários erros de categoria na maneira como falam sobre a mente. O erro de categoria central é pensar na própria mente como algo que tem suas próprias propriedades e é feito de sua própria substância. Em vez disso, devemos pensar em falar sobre a mente e os estados mentais (como acreditar e pensar) como uma maneira de rastrear os comportamentos e disposições comportamentais das pessoas. Os comportamentos nos quais um ser físico pode se envolver não constituem eles mesmos uma coisa separada à qual a coisa física está relacionada. Uma dança não é algo separado da dançarina. Para Ryle, a mente não é coisa alguma!

Outro elemento importante do pensamento de Ryle (1945) é seu argumento do regresso contra o intelectualismo e sua distinção intimamente relacionada entre saber-como e saber-que. O intelectualismo que Ryle ataca pode ser representado como a visão de que qualquer ato que alguém pratique de forma inteligente deve ser

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precedido por algum episódio de pensamento. Assim, por exemplo, se você colar de forma inteligente um pequeno componente no modelo que está construindo, essa ação deverá ser precedida de alguma reflexão da seguinte forma "o componente deve ser colado dessa maneira...". Ryle vê isso como levando a um regresso infinito, uma vez que ele vê o pensamento como um tipo de ação que pode ser realizada de maneira inteligente ou não inteligente.

Se uma ação inteligente deve ser precedida por algum pensamento, presumivelmente, o próprio pensamento deve ser um pensamento inteligente (já que algum pensamento estúpido não pode ser a causa de uma ação não-estúpida). E se o pensamento em si é uma ação inteligente, então algum outro pensamento deve precedê-lo, e assim por diante ao infinito. Assim, surge uma regressão infinita.

A maneira como a própria visão de Ryle (1945) evita levar a essa regressão intelectualista é fazer uma distinção entre dois tipos de conhecimento – saber-como (knowing how) e saber-que (knowing that). No saber-que (o que outros chamam de conhecimento proposicional) há algum pensamento ou proposição que você sabe ser verdadeiro. Por exemplo, ao saber que a Terra é redonda, o que você sabe é que a proposição de que a Terra é redonda é verdadeira. Por outro lado, no saber-como (o que os outros chamam de conhecimento processual), seu conhecimento é obtido por ter uma habilidade, uma disposição para se comportar de uma certa maneira. Quando você sabe andar de bicicleta, está disposto, por exemplo, a avançar enquanto pedala e não cai. Segundo Ryle, essa capacidade não pode ser resumida na forma de uma ou mais proposições de saber-que. A regressão intelectualista é assim quebrada por ter ocasiões de saber-que (e ação inteligente de maneira mais geral) fundamentadas em saber-como, um tipo de conhecimento que em si não está fundamentado em nenhum outro conhecimento.

3.2 OBJEÇÕES AO BEHAVIORISMO

Examinaremos as três objeções principais ao behaviorismo: (1) a objeção dos qualia, (2) a objeção de Sellars e (3) a objeção de Geach-Chisholm.

3.2.1 A objeção dos qualia

Um tipo de objeção que os filósofos levantaram contra o behaviorismo é uma objeção que depende dos qualia (ZILIO, 2010). Para realmente apreciar a força dessa objeção, ajuda a focar no aspecto do behaviorismo filosófico que tem a ver com os significados dos termos mentalistas, ou, como podemos dizer, a estrutura de nossos conceitos mentalistas. O behaviorismo sustenta que o próprio conceito de um estado mental, como desejo ou medo, está ligado a conceitos relacionados ao comportamento. Assim, por exemplo, o próprio conceito de alguém ter medo de cães está ligado a

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conceitos que tem a ver com comportamentos relacionados à cães, como afastar-se de cães próximos ou falar com voz trêmula sempre que surgir o tópico sobre cães. Se o medo de cães está conceitualmente ligado a certos comportamentos relacionados a cães, deve ser inconcebível que alguém tenha medo de cães, mas não esteja de forma alguma disposta a comportamentos que evitem cães.

Por outro lado, se for concebível – se podemos de fato conceber alguém com medo de cães, independentemente de conceber que tenham algum comportamento relacionado a cães –, isso contaria contra essa versão do behaviorismo.

Agora, voltemos à questão dos qualia. Considere um quale vermelho. Existe algum comportamento que esteja conceitualmente ligado ao conceito de quale vermelho? Certas experiências familiares de pensamento são relevantes para responder a essa pergunta. Considere, por exemplo, o experimento mental de espectro invertido que discutimos no tópico 2 desta Unidade. Nesse experimento mental, supõe-se que duas pessoas sejam iguais em todos os seus comportamentos e disposições comportamentais, incluindo seus comportamentos e disposições em relação à classificação e nomeação de amostras de cores, mas possuem qualia completamente diferentes entre si. Se tal situação é concebível, ter um quale vermelho não pode ser conceitualmente vinculado a ter tais e tais comportamentos e disposições.

3.2.2 Objeção de Sellars

Outro tipo de objeção ao behaviorismo se origina com o filósofo Wilfrid Sellars (1912-1989). A essência do argumento de Sellars é que (1) faz parte de nosso próprio conceito de estado mental, como uma crença, do que é a causa ou explicação de certos comportamentos, e (2) explicações causais genuínas não podem ser circulares, mas (3) o behaviorismo tornaria circular as explicações causais resultantes. Vamos dar uma olhada em (1) e (3) (SELLARS, 2008).

(1) Faz parte do nosso próprio conceito de estado mental, como uma crença, de que é a causa ou explicação de certos comportamentos.

Considere o comportamento verbal. Por exemplo, alguém que diz sinceramente, "os nabos são mais saborosos quando colhidos em agosto". Compare esse caso com um caso em que sons semelhantes sejam produzidos por uma gravação ou um papagaio bem treinado. O que faz com que a declaração da pessoa conte como uma verdadeira peça de comportamento verbal? O que faz com que um discurso genuíno atue em oposição à mera produção de som? Plausivelmente, somente no caso da pessoa é que o ruído produz uma expressão de uma crença ou pensamento. E o que significa aqui para o discurso ser uma expressão de um pensamento é que o pensamento seja uma causa do discurso e que o pensamento e o discurso tenham aproximadamente o mesmo conteúdo. O que significa dizer que eles têm aproximadamente o mesmo conteúdo neste exemplo é que a pessoa pensa e diz que os nabos são mais saborosos quando

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colhidos em agosto. O que é importante aqui no contexto atual não é tanto a parte de conteúdo desta história quanto a parte causal da história, a saber, que o pensamento é a causa do discurso que o expressa.

Uma linha de pensamento semelhante pode ser estendida a comportamentos não-verbais. Compare uma pessoa que chuta a perna intencionalmente (talvez esteja chutando uma bola em um jogo) e uma pessoa fazendo isso sem intenção (talvez durante o sono porque um inseto picou o seu pé). O que torna o primeiro chute uma ação intencional genuína e o outro apenas um pouco de movimento reflexivo involuntário? Provavelmente, o que é importante no caso intencional é que o chute é o resultado de algum plano ou intenção anterior. A pessoa tem algum objetivo em mente e esse estado mental causou o movimento do pé. Na resposta reflexiva de ser picado pelo inseto, não há plano ou intenção anterior.

(3) O behaviorismo tornaria circular as explicações causais resultantes.

Para ver esse ponto, ajudará que consideremos uma versão muito simplificada do behaviorismo. Suponha que um behaviorista tenha oferecido a seguinte definição de tristeza: “Estar triste é apenas ter certos comportamentos, como chorar e franzir a testa”. Agora, de acordo com Sellars (2008), é parte de nossa compreensão do senso comum que usamos termos como "triste" e "tristeza" para explicar certos comportamentos. Por que Maria está carrancuda e chorando? Aqui está uma explicação do senso comum: ela está chorando e franzindo a testa porque está triste. Mas se o behaviorista estiver certo, essa explicação acaba sendo circular. Como o behaviorista definiu a tristeza como sendo o comportamento de chorar e franzir a testa, a explicação do senso comum acaba sendo equivalente à seguinte explicação obviamente circular: Maria está carrancuda e chorando porque Maria está carrancuda e chorando.

3.2.3 A objeção de Geach-Chisholm

Uma crítica altamente influente ao behaviorismo é atribuída aos filósofos Peter Geach (1957) e Roderick Chisholm (1957). A essência dessa objeção é que os estados mentais não podem ser conectados individualmente com comportamentos, mas somente podem ser conectados a comportamentos em conjunto com outros estados mentais de uma maneira que tornao behaviorismo uma teoria complexa e intratável.

Para ver por que isso representa um problema para o behaviorismo, vamos começar examinando um estado mental específico. Suponha que Janete tema os tigres. Suponha também que Janete esteja em uma expedição na selva e que haja um tigre a apenas um metro e meio dela. Em qual comportamento seu medo de tigres resultará? O comportamento em que ela se envolve depende em grande parte de outros estados mentais que ela tem. Primeiro, depende se ela acredita que há um tigre por perto.

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Suponha que ela não tenha visto o tigre ou o tenha visto, mas acredita que é sua amiga em um traje de tigre tentando pregar uma peça nela. Sem qualquer crença de que haja um tigre por perto, é improvável que o mero desejo de evitar os tigres desencadeie qualquer comportamento em particular nesta ocasião.

A história de Janete e do tigre nos ajuda a ver que o desejo de evitar os tigres não está por si só ligado ao comportamento de evitar o tigre. É apenas em conjunto com outros estados mentais, como crenças, que um desejo está conectado a um tipo particular de comportamento.

Este ponto não se aplica apenas aos desejos. Nós podemos argumentar sobre qualquer estado mental. Considere a crença. Suponha que exista um tigre a um metro e meio de distância de João e que João acredite nisso –João acredita que existe um tigre a um metro e meio de distância. Qual será o comportamento dele? Suponha que João acredite que os tigres são amigáveis e gostam de ser acariciados. Suponha ainda que João deseja acariciar tigres. Isso pode levar a um tipo de comportamento. Mas se João tem um desejo diferente, ele pode se comportar de maneira diferente.

Dado que um estado mental só pode ser conectado a um comportamento por estar também conectado a vários outros estados mentais, qual é o problema do behaviorismo? O problema é que o projeto de dizer a qual comportamento um estado mental está conectado é tão complicado que é totalmente intratável (GEACH, 1957; CHISHOLM, 1957). Nunca estamos em posição de definir um estado mental específico em termos de comportamento, pois devemos introduzir outros estados mentais na definição. Mas como vamos definir cada um desses outros estados mentais? Cada um deles só pode ser conectado ao comportamento por referência a outros estados mentais, incluindo o estado mental com o qual começamos e, portanto, somos conduzidos em círculo.

Caro acadêmico, dado que grande parte do behaviorismo se preocupa com as caracterizações das mentes dos outros, é natural, neste ponto, que a profundemos a reflexão no problema filosófico de outras mentes.

4 O PROBLEMA FILOSÓFICO DAS OUTRAS MENTES

O problema de outras mentes é em grande parte um problema epistemológico (AVRAMIDES; PARROTT, 2019) – enquanto a maioria de nós acredita que existem mentes diferentes da nossa, como podemos saber que existem outras mentes? O que justifica nossa crença na existência de outras mentes? O problema pode ser considerado especialmente agudo se fizermos certas suposições cartesianas.

Uma dessas suposições é a de que existe uma grande diferença entre o modo como conhecemos nossas próprias mentes e o modo como conhecemos as mentes dos outros (DESCARTES, 2004). Na visão cartesiana, conheço minha mente com

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certeza. No entanto, meu conhecimento de coisas externas à minha própria mente é mediado pelos meus sentidos. E, como meus sentidos podem ser enganados, nada que eu saiba através deles é conhecido com certeza. Pior, surge a possibilidade de que talvez eu não saiba nada sobre coisas externas à minha mente.

Nas próximas duas subseções, examinaremos duas estratégias gerais para resolver o problema de outras mentes. A primeira estratégia aceita que exista uma assimetria importante entre a maneira como se conhece a própria mente e a maneira como se conhece a mente dos outros. A segunda estratégia nega qualquer assimetria profunda – a maneira como cada um de nós conhece nossa própria mente não é muito diferente do conhecimento das mentes dos outros.

4.1 A ASCENSÃO E QUEDA DO ARGUMENTO DA ANALOGIA

A primeira solução que iremos examinar é conhecida como argumento da analogia, que pode ser explicado em quatro etapas (AVRAMIDES, 2001).

O primeiro passo é observar a existência da própria mente. Você sabe que tem uma mente e vários estados mentais. Você sabe que tem crenças, desejos, percepções, lembranças, pensamentos, sentimentos e assim por diante.

O segundo passo é notar que, em muitas ocasiões, certos tipos de estados mentais estão correlacionados com certos tipos de comportamento. Você percebe que, quando está feliz, tende a andar com vivacidade e usa um sorriso no rosto. Você percebe que, quando está triste, tende a franzir a testa e ficar de mau humor. Você percebe que quando acredita em coisas como 2 + 2 = 4, está disposto a dizer isso.

O terceiro passo é observar os outros corpos humanos no mundo e observar os vários comportamentos em que eles se envolvem. Às vezes, esses corpos andam com vivacidade e sorriem. Outras vezes, esses corpos franzem a testa e ficam de mau humor. Às vezes, esses corpos se envolvem em comportamentos verbais. Eles dizem coisas como "2 + 2 = 4".

O quarto passo é o que se dá nome ao argumento. Envolve o raciocínio, traçando uma analogia e, em seguida, fazendo uma inferência analógica. A analogia é entre o seu próprio corpo e o corpo dos outros. Esses corpos se comportam de maneiras análogas. Assim como seu corpo sorri e caminha, o mesmo acontece com os corpos dos outros. A inferência analógica é inferir que as outras pessoas são semelhantes a você em ter estados mentais.

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Então, esse argumento é bom? Devemos observar aqui que a inferência analógica é um tipo de raciocínio que empregamos frequentemente e essas inferências são consideradas como uma maneira respeitável de pensar sobre as coisas. Por exemplo, suponha que você tenha aberto mais de mil cascas de amendoim em sua vida e, toda casca de amendoim que você já abriu até agora contenham duas sementes. É razoável, portanto, esperar que a próxima casca de amendoim que você abrir também contenham duas sementes. Qual é a analogia aqui? A analogia refere-se às semelhanças entre o amendoim fechado e o que você já abriu. O amendoim fechado se assemelha aos outros amendoins, tendo uma forma semelhante e vindo de uma planta semelhante. Você argumenta que, dadas essas semelhanças, o novo amendoim também será semelhante de outras maneiras.

Como o raciocínio analógico é uma forma respeitável de raciocínio, o simples fato de o argumento da analogia implantar uma inferência analógica não é um problema. No entanto, o argumento da analogia tem uma falha séria. É uma generalização precipitada. Para ver o que há de errado com generalizações precipitadas, considere uma variação da história com os amendoins. Suponha que João apenas tenha encontrado ou ouvido falar de um único amendoim. Este amendoim único contém duas sementes. Suponha que João conclua observando esse único amendoim que, em todas as ocasiões futuras de abrir amendoins, eles serão revelados como contendo exatamente duas sementes. João está chegando a uma conclusão. Tendo observado apenas um amendoim, ele não tem evidências suficientes para justificar sua afirmação sobre todos os amendoins. Uma afirmação sobre todos os amendoins é uma generalização sobre amendoins e, ao basear sua generalização em apenas uma pequena quantidade de evidências, João está fazendo uma generalização precipitada.

O que torna o argumento da analogia uma generalização precipitada? Dada a suposição cartesiana (DESCARTES, 2004) de que você só tem acesso direto aos seus próprios estados mentais, a única mente que "observa" é a sua própria mente. Contudo, existem bilhões de seres humanos vivos no planeta Terra. A falha crucial do argumento da analogia é que ele está fazendo uma generalização sobre o que deve ser verdade para bilhões de pessoas com base em correlações "observáveis" entre os comportamentos e os estados mentais de apenas uma pessoa.

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4.2 NEGAÇÃO DA ASSIMETRIA ENTRE O AUTOCONHECIMENTO E O CONHECIMENTO DE OUTRAS MENTES

Talvez, o que torna o problema de outras mentes especialmente problemático seja a suposição cartesiana de que existe uma assimetria entre a maneira como você conhece sua própria mente e a maneira como conhece a mente dos outros.

Uma estratégia para resolver o problema de outras mentes é negar qualquer assimetria profunda entre o conhecimento da própria mente e o conhecimento da mente dos outros. Chame isso de "estratégia de simetria" (WIKFORSS, 2019).

Uma versão da estratégia de simetria é o behaviorismo (RYLE, 1980). De acordo com o behaviorismo, como os estados mentais podem ser definidos em termos de comportamento observável, não há problema especial em conhecer a mente dos outros. Conhecer a mente dos outros não é mais difícil do que conhecer a existência e os movimentos de vários corpos físicos. Esta é uma versão da solução de simetria, pois afirma que você conhece a sua própria mente da mesma maneira que conhece a mente dos outros, ou seja, através do conhecimento dos comportamentos corporais. No entanto, como discutido anteriormente, o behaviorismo é vulnerável a várias objeções poderosas.

Outra versão da estratégia de simetria sustenta que o conhecimento de outras mentes, e o conhecimento das mentes em geral, é um tipo de conhecimento teórico semelhante ao conhecimento codificado na forma de várias teorias científicas, teorias como a teoria atômica da matéria (AVRAMIDES; PARROT, 2019).Crucial para essa visão de teorias é a ideia de que teorias postulam a existência de entidades não observáveis (como entidades muito pequenas para serem vistas) como uma inferência para a melhor explicação dos dados observáveis. No caso da teoria atômica da matéria, partículas microscópicas invisíveis a olho nu são postas para explicar as interações observáveis entre várias amostras químicas.

Muitos filósofos, nesse contexto, seguem Wilfrid Sellars (2008), e sustentam que nosso próprio conhecimento da mente é codificado em termos de uma teoria que compreendemos implicitamente, uma teoria conhecida como psicologia popular. As principais entidades nessa teoria são os estados mentais, como crenças e sensações. A existência de tais estados mentais é postulada para explicar certos padrões de comportamento. Como discutimos anteriormente em conexão com Sellars, essas posturas não podem ser simplesmente definidas em termos do comportamento que elas postulam explicar, pois as várias explicações acabariam sendo circulares. Portanto, é crucial nessa visão que o programa behaviorista que procura definir estados mentais por referência ao comportamento seja rejeitado. No Tópico 2 da Unidade 3, discutiremos mais a ideia de que nosso entendimento das mentes é constituído pelo entendimento de uma teoria.

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O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO

João de Fernandes Teixeira

Foi Descartes (1596-1650) que, pela primeira vez, formulou explicitamente a necessidade de se distinguir entre mente e corpo. Claro que outros filósofos, desde a antiguidade, já haviam refletido sobre a natureza da alma (ou da mente) e apontado para aquilo que julgavam ser algumas de suas características especiais, como, por exemplo, a imaterialidade e a imortalidade. Mas a filosofia de Descartes (o cartesianismo) serviu para reacender um debate que atravessa todo o pensamento moderno: a polêmica entre o monismo e o dualismo.

O monismo é a tese que sustenta que só existe um tipo de substância no universo, seja ela material ou espiritual. A versão mais frequente do monismo é o materialismo, ou seja, a teoria de que não existe nada além da matéria e suas possíveis manifestações no universo. De acordo com essa visão, fenômenos mentais são idênticos aos fenômenos físicos, pois mente e cérebro são a mesma coisa. Por outro lado, o dualismo sustenta que há duas substâncias do universo e que existe uma diferença fundamental e irreconciliável entre elas. Nunca poderíamos supor que a mente e cérebro são a mesma coisa. A versão mais conhecida do dualismo é o que chamamos de espiritualismo.

Descartes era um dualista. Ele supunha que mente e matéria tinham propriedades radicalmente diferentes. Um pedaço de matéria, por menor que fosse, seria sempre divisível. O mesmo não poderia afirmar acerca de uma ideia ou de um estado mental: não teria cabimento supor que um dia poderíamos dividir um pensamento em fatias, da mesma forma que fazemos com um pedaço de pão ou uma barra de ferro. Mesmo quando temos uma ideia complexa e procuramos transformá-la em várias ideias simples, cada uma delas será sempre uma unidade indivisível.

Esse argumento era bastante convincente e exerceu grande fascínio entre os filósofos contemporâneos de Descartes. Afinal, encontrava-se uma boa razão para pos-tular a existência de uma assimetria entre mente e corpo. Mas logo algumas dificulda-des começaram a ser apontadas. Se alma e corpo são distintos e se a mente é imaterial, como poderia ela influir sobre nossas ações? Nunca poderíamos imaginar que algo ima-terial pode afetar alguma coisa do mundo como, por exemplo, nosso próprio corpo. Mas isto certamente vai contra nossas intuições mais simples e cotidianas: temos certeza de que é a nossa mente, com seus pensamentos, desejos e intenções, que regula e causa nossos comportamentos ou ações. Separar mente e corpo parecia uma tarefa relativa-

LEITURACOMPLEMENTAR

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mente fácil: os problemas começavam a aparecer na medida em que os dualistas preci-savam encontrar uma maneira de conceber o modo como essas duas coisas poderiam interagir. Se a mente é separada do corpo, como posso saber qual é o meu corpo?

Descartes tentou oferecer uma solução para esses problemas. Ele falava da existência de um órgão especial, localizado no cérebro, a glândula pineal. Este órgão (que hoje sabemos ser a hipófise) seria responsável por estabelecer uma ponte entre a alma e o corpo. Mas como isso seria possível, Descartes nunca explicou. Para estabelecer essa ligação a glândula pineal teria de estar a meio caminho entre algo material e algo imaterial. Seria possível conceber a existência de um órgão com tais características? A filosofia de Descartes acabava se tornando um manual de anatomia fantástica!

A partir desse episódio apareceram várias teorias tentando relacionar mente e corpo. A mais interessante e original talvez tenha sido a do filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz. Ele acreditava na existência de uma harmonia preestabelecida no universo. Mente e corpos não precisariam ter nenhum tipo de ligação, pois, de acordo com a harmonia preestabelecida, tudo o que se passa na esfera do mental encontra um correspondente na esfera do mundo físico. O físico e o mental não precisam ter nenhuma ligação entre si, eles apenas "caminham juntos" como se no início do universo um Deus tivesse programado o mundo ao modo de duas séries que correm simultânea e harmoniosamente. Mas essa teoria soa hoje, para nós, no mínimo como algo bizarro.

Por não conseguir boas soluções teóricas para o problema da ligação entre mente e corpo, as teorias filosóficas oscilaram, a partir de então, entre posições radicalmente monistas (materialistas) ou posições radicalmente dualistas. Mas sempre havia dificuldades nas tentativas de reduzir o mental ao físico ou para sustentar que a mente nada tem a ver com o cérebro.

No século XIX esse debate parece ter perdido um pouco o fôlego inicial. A filosofia se ocupava de outras questões que pareciam mais urgentes, como, por exemplo, os destinos da humanidade, da história e dos conflitos sociais. Ademais, a influência da filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) ainda era muito grande. Kant julgava ter mostrado, de uma vez por todas, que nunca poderíamos chegar a uma solução para o problema das relações mente- corpo nem tampouco chegar a uma conclusão definitiva acerca da natureza do pensamento. Essas questões seriam, rigorosamente falando, indecidíveis e seria inútil tentar defender seja o dualismo seja o monismo, uma vez que sempre haveria razões igualmente fortes para adotar uma posição ou outra.

Foi preciso aguardar os progressos da Neurofisiologia para que este debate se reacendesse. O final do século XIX foi particularmente fértil para essas investigações. Descobriu-se o neurônio e sua capacidade de transmitir energia elétrica. As pesquisas sobre anatomia do cérebro também viveram progressos consideráveis. E no final do século XIX iniciam-se pesquisas mais sistemáticas sobre a natureza das doenças mentais e do hipnotismo. Surge a psicanálise de Sigmund Freud, e com ela os médicos

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e cientistas voltam a se perguntar se mente cérebro seriam uma só e mesma coisa. As investigações de Freud e sua aplicação na tentativa de curar alguns transtornos mentais abriram perspectivas novas e desconhecidas acerca da natureza da mente.

Mas é no século XX que vai surgir a Filosofia da Mente propriamente dita. A Filosofia da mente é um novo esforço para retornar os principais temas clássicos que atravessam o pensamento na modernidade. Era preciso fazer uma nova tentativa no sentido de determinar a natureza última dos fenômenos mentais; uma tentativa que faria a reflexão filosófica mergulhar novamente em direção ao exame das grandes teorias metafísicas, mas que não poderia, dessa vez, ignorar os resultados das pesquisas sobre o cérebro humano. A questão das relações entre mente e cérebro passa a construir uma de suas preocupações fundamentais. Era preciso encontrar novas teorias que pudessem dar conta das relações entre fenômenos físicos e fenômenos mentais. Esboçar tais teorias era necessidade premente, sobretudo porque o século XX tinha se iniciado com uma forte tendência para a adoção do monismo materialista, resultante do grande entusiasmo pelas pesquisas neurofisiológicas que se avolumavam cada vez mais.

Ao abordar o problema das relações mente-cérebro os filósofos da mente tentaram inovar, propondo novas teorias. Uma das teorias mais notáveis foi proposta por Gilbert Ryle em 1949. Ela marcou o início da Filosofia da Mente contemporânea. Ryle dizia que o problema das relações mente-corpo não deveria sequer ser considerado um autêntico problema; ele seria o resultado de uma imensa confusão teórica cuja origem está na maneira como empregamos nossa linguagem.

Ao longo dos séculos nossa cultura teria gerado equivocadamente dois tipos de vocabulários: um "vocabulário do físico" e um "vocabulário do mental". Os dois falam exatamente da mesma coisa, mas seu emprego errôneo levou-nos a crer que o físico e o mental são duas substâncias diferentes e incompatíveis. Se procedermos a uma análise rigorosa do emprego da nossa linguagem veremos, no final, que nem faz sentido falar de um problema mente-corpo. Este problema seria uma ilusão que deveria ser dissipada, e esta seria uma tarefa que o filósofo da mente teria de empreender através da análise linguística.

Por exemplo, quando dizemos "minha mente está cansada de tanto estudar" ou “estes pensamentos me causam dor de cabeça” estaríamos alimentando tal ilusão, pois essas são expressões que implicitamente se referem à mente como uma coisa ou uma substância concebível como algo separado do corpo. Nossa linguagem está povoada por centenas de expressões desse tipo: por isso teria surgido o "problema mente-corpo" que, na verdade, nunca teria sido mais do que um grande equívoco dos filósofos anteriores.

Mas o entusiasmo pela teoria de Ryle durou pouco. Uma forte tendência em direção ao materialismo começou a se manifestar nas décadas de 1950 e 1960. Uma verdadeira onda de ensaios e artigos escritos por filósofos americanos e ingleses

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invadiu as revistas filosóficas da época. Aliás, os filósofos da mente sempre preferiram os ensaios e pequenos artigos sobre temas específicos, evitando, na maioria das vezes, a produção de livros mais extensos.

Novas versões do materialismo foram propostas e passaram a predominar na Filosofia da Mente. Os novos materialistas eram muito imaginosos e logo propuseram uma teoria que ficou conhecida como teoria da identidade entre mente e cérebro. Essa teoria foi proposta por um filósofo australiano, J.J.C.Smart, que sustentava que estados mentais são idênticos a estados cerebrais. Ambos seriam a mesma coisa, com uma diferença apenas aparente, da mesma maneira que as nuvens e gotículas de água, embora seja comum nos referimos a elas como elementos distintos.

Mas será cabível sustentar uma identidade entre mente e cérebro? Se duas coisas são idênticas, elas devem ter as mesmas propriedades. Estados cerebrais se devem a mudanças que ocorrem com os neurônios. Os neurônios são úmidos, transmissores de corrente elétrica e ocupam uma posição no espaço. Terá sentido supor que estados mentais poderiam ter essas mesmas propriedades? Teria sentido afirmar que meu pensamento é úmido, ou que minha ansiedade está a cinco centímetros do hemisfério direito do meu cérebro?

Os materialistas precisavam imaginar outra maneira de conceber a identidade entre estados mentais e estados cerebrais. Uma solução interessante foi o que eles chamaram de identidade teórica. Um exemplo de identidade teórica é a seguinte afirmação: água = H2O. Hoje em dia aceitamos esse enunciado com naturalidade, mas isso só passou a fazer sentido depois que se fez a análise química da água e se descobriu que ela é composta por duas partes de hidrogênio e uma parte de oxigênio. Da mesma maneira afirmamos que a luz é radiação eletromagnética. Isto passou a fazer sentido depois da descoberta de todo um conjunto de teorias físicas que julgamos serem verdadeiras. Ora, dizem os materialistas, talvez um dia sejam descobertas teorias neurofisiológicas a partir das quais passe a fazer sentido a afirmação - embora atualmente ainda nos pareça estranha - de que estados mentais são estados cerebrais. Mas será que isso resolve todos os nossos problemas? O que nos garante que um dia surgirão tais teorias?

O materialismo é uma doutrina que enfrenta inúmeras dificuldades. O entusiasmo por teorias materialistas surgiu do fato de que cientistas e filósofos um dia acreditaram que seria possível encontrar um correspondente cerebral para cada um de nossos estados mentais. Os aparelhos de eletroencefalografia, que permitem medir os impulsos elétricos do cérebro e representá-los numa fita de papel, devem ter contribuído fortemente para difundir essa crença. Tornou-se possível, nos modernos laboratórios de pesquisas, saber quando um indivíduo que dorme começa a sonhar, bastando para isso observar os gráficos produzidos pelos aparelhos de eletroencefalografia. Mas, mesmo que esses aparelhos permitam saber quando uma pessoa está sonhando, eles não permitem saber com o que essa pessoa está sonhando. Da mesma maneira, se analisarmos as

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modificações químicas do cérebro de uma pessoa, poderemos saber se essa pessoa está tendo um acesso de raiva, mas essa análise não nos permite saber do que ela tem raiva. Há muito mais estados mentais do que seus correspondentes cerebrais, apesar de termos bilhões de neurônios formando inúmeras ligações e combinações entre si. Uma redução de estados mentais a estados cerebrais parece uma tarefa quase impossível, e as tentativas de realizá-la só têm servido para nos afastar do materialismo. Ao contrário, elas parecem mostrar que pensamentos são privados e inacessíveis, ou seja, algo que escapa dos limites do mundo material.

Devemos então abandonar o materialismo? Talvez seja melhor reformular essa questão de um modo ainda mais radical: é possível ser materialista? Se todos os meus estados mentais são resultados das relações químicas do meu cérebro, como quer o materialista, então devo supor que o pensamento "estados mentais= estados cerebrais" também é resultado dessas reações químicas. Isto significa que, se nos próximos segundos a base química de meu cérebro mudar, eu poderia passar a sustentar o ponto de vista oposto. O materialismo torna-se, assim, uma tese no mínimo autocontraditória!

Ora, qual será a alternativa ao materialismo? O dualismo? O leitor já deve ter suspeitado de que falamos muito pouco do dualismo. Mas isto não se deve ao fato de querermos ser propositadamente tendenciosos. Se adotarmos o dualismo, praticamente não nos resta nada para falar, exceto a afirmação de que mente e cérebro são coisas distintas. O dualismo não nos diz nada acerca da natureza da mente, apenas afirma que ela não é material. Ele só nos fornece um ponto de partida, e isto é muito pouco para que possamos elaborar uma ciência ou uma filosofia da mente. O que fazer então? Seria preciso encontrar uma alternativa, seja ao materialismo, seja ao dualismo. Mas isso seria o mesmo que querer encontrar a terceira margem de um rio - algo que talvez a Filosofia da Mente nunca possa fazer.

FONTE: TEIXEIRA, J. de F. O que é filosofia da mente. 2. ed. Porto Alegre: Ed. Fi, 2016. p. 20-27.

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RESUMO DO TÓPICO 3Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• O idealismo, o solipsismo e o pampsiquismo estão unidos em ver a mente como um fenômeno muito mais difundido do que o senso comum exige.

• O solipsismo vê a totalidade da existência restrita a uma única mente.

• Apesar de sua natureza contra-intuitiva, essas posições filosóficas (idealismo, solipsismo e pampsiquismo) são altamente intrigantes, e seus oponentes às vezes lutam para explicar exatamente o que pode estar errado com elas.

• O pampsiquismo oferece um tipo especial de desafio aos filósofos interessados na explicação da consciência: por que não é verdade que tudo tem sua própria forma de consciência?

• Alguma forma de behaviorismo parece especialmente plausível como uma explicação do nosso conhecimento de outras mentes.

• Uma pergunta levantada no contexto do behaviorismo e da filosofia da mente é: o que mais precisamos conhecer além dos comportamentos dos outros quando tentamos entender o que está acontecendo em suas mentes?

• Alguns dos maiores obstáculos ao behaviorismo dizem respeito ao conhecimento de aspectos de nossas próprias mentes, pois, parece que estou familiarizado com minha própria experiência consciente que não é mediada por observações de meu comportamento.

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1 O que é o pampsiquismo na filosofia da mente?

2 O que é o solipsismo na filosofia da mente?

3 Quais são as três principais objeções ao behavirorismo?

AUTOATIVIDADE

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FILOSOFIA DA MENTE IIUNIDADE 3 —

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• introduzir noções básicas do funcionalismo e da causação mental;

• apresentar os argumentos e contra-argumentos do materialismo eliminativo e questões dos estados perceptivos, das imagens mentais e estados emocionais;

• identificar as principais características do livre-arbítrio e os estados mentais;

• compreender os argumentos do determinismo no contexto da filosofia da mente.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FUNCIONALISMO E CAUSAÇÃO MENTALTÓPICO 2 – MATERIALISMO ELIMINATIVO, PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO TÓPICO 3 – DETERMINISMO E LIVRE-ARBÍTRIO

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 3!

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TÓPICO 1 —

FUNCIONALISMO E CAUSAÇÃO MENTAL

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Caro leitor, neste tópico, vamos nos aprofundar em dois temas importantes para nossos estudos da filosofia da mente. O primeiro deles será o funcionalismo, e, posteriormente, vamos estudar a causação mental.

O funcionalismo, na filosofia da mente, é a doutrina de que o que torna algo um estado mental de um tipo particular não depende da constituição interna, mas da maneira como funciona, ou do papel que desempenha, no sistema do qual é parte. Essa doutrina está enraizada na concepção de alma de Aristóteles (2011) e tem antecedentes na concepção de Hobbes (1992; 2000) a respeito da mente como uma “máquina de calcular”, mas se tornou totalmente articulada (e popularmente endossada) apenas no último terço do século XX. Embora o termo "funcionalismo" seja usado para designar uma variedade de posições em uma variedade de outras disciplinas, incluindo psicologia, sociologia, economia e arquitetura, este tópico se concentra, exclusivamente, no funcionalismo, como uma tese filosófica da natureza dos estados mentais.

Após estudarmos o funcionalismo, veremos questões acerca da existência e da natureza da causalidade mental, pois são proeminentes nas discussões contemporâneas a respeito da mente da ação humana. Originalmente, o problema da causalidade mental era entender como uma mente imaterial, uma alma, poderia interagir com o corpo. A maioria dos filósofos, hoje em dia, repudia a ideia de almas, mas o problema da causalidade mental não desapareceu. Em vez disso, o foco mudou para as propriedades mentais. Como as propriedades mentais podem ser causalmente relevantes para o comportamento corporal? Como algo mental pode ser uma causa do não mental?

Prontos, então, para mais uma jornada de aventura nos estudos da filosofia da mente? Vamos lá!

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2 UMA BREVE HISTÓRIA DO FUNCIONALISMO

O funcionalismo tem uma parte positiva e uma parte negativa. A parte positiva diz respeito a quais termos os estados mentais são definidos.

De acordo com o funcionalismo, um estado mental é definido por certas relações causais que ele possui com estados de entrada (input), estados sensoriais, estados de saída (output), comportamentos verbais e não verbais, e outros estados mentais.

A parte negativa do funcionalismo diz respeito a quais termos os estados mentais não são definidos. A parte negativa é a tese da múltipla realizabilidade, discutida anteriormente, na Unidade 2: os estados mentais não são definidos em termos das substâncias materiais (em contraste com o modo como a água é definida por sua composição química). Essa parte negativa serve para contrastar o funcionalismo e a teoria da identidade mente-cérebro. O teórico da identidade mente-cérebro sustenta que, por exemplo, a dor é idêntica ao disparo das fibras C. O funcionalista sustenta que o disparo das fibras C é apenas uma das várias maneiras pelas quais a dor pode ser fisicamente realizada. Além disso, alguns funcionalistas sustentam que é possível que os estados mentais tenham realizações não físicas e, portanto, o funcionalismo é consistente com posições não fisicalistas, como o dualismo. No entanto, focaremos, principalmente, nas versões do funcionalismo que são fisicalistas.

Há outra tese negativa que é importante para o funcionalismo, e esta destaca um contraste entre funcionalismo e behaviorismo. O ponto negativo aqui é que o funcionalista diz, contra o behaviorista, que estados mentais não podem ser definidos apenas por referência ao comportamento. A referência ao comportamento é apenas parte das características definidoras dos estados mentais – é necessário fazer referência, também, aos estados sensoriais e outros estados mentais.

Duas ideias-chave, às quais os funcionalistas apelaram no desenvolvimento da sua posição, são as de um tipo funcional e de um tipo multiplamente realizável. Um tipo é um agrupamento de coisas ou entidades, geralmente, agrupadas em termos de uma ou mais características comuns aos membros do grupo. Exemplos de tipos incluem gatos, diamantes, planetas e ratoeiras. Para ilustrar a ideia de um tipo multiplamente realizável, é preciso traçar um contraste entre os diamantes, que não são multiplamente realizáveis, e as ratoeiras, que são. O que faz de algo um diamante? Primeiramente, um diamante deve ser feito de carbono. Qualquer coisa superficialmente semelhante a um diamante que não seja feita de carbono não é um diamante genuíno. Os cristais de dióxido de zircônio se assemelham superficialmente aos diamantes, mas são compostos dos elementos químicos zircônio e oxigênio. Além disso, os átomos de carbono que compõem os diamantes precisam ser arranjados de uma certa maneira (redes tetraédricas). Átomos de carbono que não são organizados assim constituem carvão e grafite, mas não diamantes.

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Os diamantes podem ser fisicamente realizáveis de apenas uma maneira, com redes tetraédricas de átomos de carbono. Assim, eles não são multiplamente realizáveis.

Compare isso com as ratoeiras, que são multiplamente realizáveis. Existem muitas maneiras de fazer uma ratoeira. Algumas envolvem barras metálicas, montadas em plataformas de madeira. Outras envolvem uma cola adesiva forte aplicada a uma superfície plana na qual o rato fica preso. Não existe um elemento químico específico necessário para fazer uma ratoeira.

As ratoeiras ajudam a ilustrar não apenas a ideia de tipos multiplamente realizáveis, mas, também, a ideia de tipos funcionais. Os tipos funcionais são definidos pelo que fazem e são assim denominados porque são definidos pela função que executam. As ratoeiras desempenham a função de conter ou matar ratos. A definição funcional e a múltipla realizabilidade, frequentemente, andam de mãos dadas. Enquanto um sistema é capaz de atingir a função definidora, é, em grande parte, irrelevante com que material físico esse sistema é realizado.

Grande parte do entusiasmo contemporâneo pelo funcionalismo deriva do entusiasmo a respeito das analogias traçadas entre mentes e computadores, analogias que discutimos na Unidade 2. Os computadores são claramente do tipo funcional e do tipo multiplamente realizáveis. O que faz de algo um computador é o que ele faz, calcula, ou seja, lê e grava símbolos de maneira governada por regras. Todos os tipos de materiais podem ser implantados para construir computadores. Os computadores foram construídos a partir de transistores e outros componentes eletrônicos. Outros foram construídos a partir de componentes mecânicos, como cames e engrenagens.

Um resultado da analogia entre mentes e computadores é que ela nos permite pensar na relação da mente com o cérebro em termos da relação, em um computador, entre software e hardware (hardware são as partes físicas do equipamento e software é o conjunto de programas ou aplicativos, instruções e regras que permitem, ao equipamento, funcionar). Um mesmo software, como um videogame ou um processador de texto, pode ser executado em computadores fisicamente distintos. Portanto, um programa não é idêntico à atividade de um computador específico. Se cérebros feitos de coisas inteligentes também podem dar origem a uma mente, como um computador eletrônico feito de coisas não inteligentes, então, talvez, a solução para o problema mente-corpo seja pensar na mente como o software que está sendo executado no hardware do cérebro.

Embora o funcionalismo tenha raízes antigas que podem ser encontradas nas obras de Aristóteles, as obras centrais que definiram o funcionalismo surgiram na se-gunda metade do século XX (MARGONI, 2013). Os funcionalistas se inspiram nos avan-ços da inteligência artificial e da ciência da computação. O ponto central do funciona-lismo, que os estados mentais são definíveis em termos do que fazem, não é um ponto que precisava do advento dos computadores eletrônicos para que alguém pensasse.

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Uma ideia importante na filosofia de Aristóteles (384-322 AEC) é a ideia da forma de uma coisa: aquela que contribui para o desempenho da função ou finalidade definidora de uma coisa (ARISTÓTELES, 1969; 2011). A forma de uma espada a permite cortar, e a forma de um olho o permite ver. Um aspecto crucial do pensamento de Aristóteles acerca das formas é que elas não são algo separado daquilo que as possui. A forma de uma espada não é uma coisa e a substância da espada uma segunda coisa. Esses são dois aspectos unidos em uma única coisa, a própria espada. Aristóteles resistiu à visão de Platão (427-347 AEC) de que a alma é uma coisa imaterial distinta do corpo (uma espécie de dualismo de substância, como discutimos no Tópico 2 da Unidade 2). Em vez disso, de acordo com Aristóteles (2011), a alma humana não é separável e distinta do corpo, é a forma do corpo. Lembre-se de que a forma abrange mais do que mera forma, mas, também, o funcionamento do corpo e das suas partes. Como Aristóteles (2011, p. 72-73) afirma, "se o olho fosse um animal completo, a visão seria sua alma".

Outro antecedente histórico importante para o funcionalismo dos séculos XX e XXI deriva do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679). Antecipando a múltipla realizabilidade central do funcionalismo, Hobbes tem uma visão mecanicista dos sistemas vivos, incluindo seres humanos. Ele escreve “por que não podemos dizer que todos os autômatos (engenhos que se movem sozinhos por molas e engrenagens, como no caso um relógio) têm uma vida artificial?” e continua, “pois o que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão muitas correias; e as juntas, senão muitas engrenagens, que dão movimento a todo o corpo [...]?” (HOBBES, 2003, p. 2). Além disso, Hobbes mantém uma das primeiras versões da visão computacional da cognição, central para tantas versões do funcionalismo e para as escolas do pensamento em inteligência artificial e ciência cognitiva. Hobbes escreve que o raciocínio é “nada mais que cálculo, isto é, adição e subtração das consequências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos” (HOBBES, 2003, p. 39).

Os antecedentes históricos mais recentes do funcionalismo do século XX envolvem desenvolvimentos filosóficos e científicos que detalhamos em tópicos anteriores da Unidade 2. Esses desenvolvimentos envolveram o advento e a subsequente insatisfação com o behaviorismo e a teoria da identidade mente-cérebro, além de sucessos promissores no início da vinculação das noções de cognição e computação no campo da inteligência artificial.

O funcionalismo herda, do behaviorismo, uma ênfase nas relações importantes

entre estados mentais e comportamento. O funcionalismo herda, da teoria da identidade mente-cérebro, uma ênfase nos estados mentais, como sendo distinta dos comportamentos. Funcionalistas e teóricos da identidade concordam que estados mentais são estados internos que são as causas do comportamento.

O funcionalismo herda, da inteligência artificial, a visão de que estados mentais podem ser igualmente obtidos por criaturas com cérebros e entidades controladas por máquinas não inteligentes (especialmente máquinas que calculam).

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3 ARGUMENTOS A FAVOR DO FUNCIONALISMO

Os principais argumentos a favor o funcionalismo também são argumentos contra as suas principais concorrentes fisicalistas – o behaviorismo e a teoria da identidade mente-cérebro.

Examinaremos dois argumentos para o funcionalismo. O primeiro, o argumento causal, surge de preocupações levantadas contra o behaviorismo. O segundo, o argumento da múltipla realizabilidade, surge de preocupações levantadas contra a teoria da identidade mente-cérebro.

3.1 O ARGUMENTO CAUSAL

Lembre-se de uma linha de pensamento que discutimos como uma crítica do behaviorismo no Tópico 3 da Unidade 2. Como nossa própria ideia de estados mentais é que eles podem servir para explicar, causalmente, certos tipos de comportamento, o behaviorista, erroneamente, torna circulares essas explicações causais quando ele define estados mentais como padrões de comportamento ou disposições para comportamentos. Parte da própria ideia de um estado mental é que ele pode desempenhar certos tipos de papéis causais. A partir daqui, é um pequeno passo para um certo tipo de funcionalismo, o funcionalismo analítico (MOYA, 2004). De acordo com essa forma de funcionalismo, os estados mentais são, por definição, estados que desempenham certos papéis causais e, além disso, diferentes estados mentais podem ser definidos em termos dos diferentes papéis causais que eles desempenham.

Podemos relacionar isso com uma linha de pensamento usada contra o dualismo de substância e o dualismo de propriedade. Lembre-se da reclamação de que certas formas do dualismo levam ao epifenomenalismo e, portanto, violam a ideia do senso comum de que os estados mentais têm efeitos causais. Novamente, encontramos a proposta de que os estados mentais têm certos efeitos causais por definição. Essa proposta se encaixa intimamente com o funcionalismo analítico, segundo o qual as definições dos conceitos de senso comum dos estados mentais podem ser dadas em termos dos papéis causais.

Então, quais são os papéis causais que são definitivos dos estados mentais? Tais papéis causais envolvem relações causais características entre, por um lado, o estado mental em questão, e, por outro lado, estados sensoriais ou de input (entrada), comportamentos ou estados de output (saída) e outros estados mentais.

Para ilustrar, é preciso considerar um esboço aproximado de como um funcionalista pode tentar definir um estado de medo em termos de relações causais com inputs, outputs e outros estados.

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Primeiramente, considere o medo e as relações com os inputs. Que tipos de informações sensoriais podem desencadear uma reação de medo? Frequentemente, essas informações são percepções de coisas ou situações potencialmente prejudiciais. Os exemplos incluem a percepção de que uma cobra altamente venenosa está próxima ou de que alguém está muito perto da beira de um precipício.

Segundo, considere o medo e as relações com os outputs. Existem muitos comportamentos que reconhecemos como expressivos do medo. Esses comportamentos podem gerar uma definição funcionalista de um estado de medo. Isso inclui comportamentos de prevenção, como evitar aranhas e cobras. Inclui, também,  comportamentos verbais, como dizer “afasta essas aranhas e cobras de mim”. Além dos comportamentos, o funcionalista também pode apelar a certos efeitos externamente observáveis dos medos, que são mais bem pensados como reflexos ou respostas fisiológicas do que comportamentos diretos. Tais efeitos podem incluir aumento da frequência cardíaca, empalidecimento e sudorese.

Terceiro, considere o medo e as relações com outros estados mentais. Existem certos estados mentais que são causas características dos estados de medo, e existem outros estados mentais que são efeitos característicos dos estados de medo. Uma causa mental característica de um estado de medo é a crença de que algo prejudicial está acontecendo ou prestes a acontecer. Por exemplo, a crença de que a máquina barulhenta nas proximidades pode explodir a qualquer momento pode causar um estado de medo. Um efeito mental característico do medo é a formação de um plano ou intenção de fazer algo para aliviar o medo. Um exemplo é a intenção de fugir da cobra venenosa na primeira oportunidade disponível.

Juntar esses três tipos de relações causais produziria uma definição do que significa estar em um estado de medo. A definição se refere a inputs característicos que levam ao medo, outputs característicos que o medo provoca e causas mentais e efeitos do medo.

3.2 O ARGUMENTO DA MÚLTIPLA REALIZABILIDADE

Existem duas estratégias gerais que se apoiam na noção da múltipla realizabilidade na defesa do funcionalismo. A primeira apela a supostas realizações múltiplas reais de estados mentais. A segunda apela à mera possibilidade de múltiplas realizações de estados mentais.

Talvez, um dos argumentos mais antigos e mais famosos da múltipla realizabilidade seja uma linha de pensamento apresentada por Hilary Putnam, uma linha de pensamento projetada para promover o funcionalismo e derrotar a teoria da identidade mente-cérebro. Segundo Putnam, se a teoria da identidade mente-cérebro é verdadeira, um estado mental de dor deve ser idêntico a um determinado estado físico-químico. Além disso:

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O estado físico-químico em questão deve ser um estado possível de um cérebro de mamífero, de um cérebro reptiliano, de um cérebro de um molusco (os polvos são moluscos e, certamente, sentem dor) etc. Ao mesmo tempo, não deve ser um estado (fisicamente possível) possí-vel do cérebro de qualquer criatura fisicamente possível que não possa sentir dor. Mesmo que esse estado possa ser encontrado, deve ser [...] certo de que também será um estado do cérebro de qualquer vida ex-traterrestre que possa ser capaz de sentir dor antes que possamos con-siderar a suposição de que pode ser dor (PUTNAM, 1980, p. 436).

Contidas na citação de Putnam, podemos encontrar duas sugestões, ambas contra a teoria da identidade e a favor do funcionalismo. A primeira sugestão depende do que realmente é o caso. A segunda depende do que pode ser o caso. Podemos chamar a primeira sugestão de “argumento das realizações múltiplas reais” e a segunda sugestão de “argumento das realizações múltiplas possíveis”.

Realizações múltiplas reais: os polvos. O argumento das realizações múltiplas reais pressupõe que, realmente, existem criaturas que têm alguns dos mesmos estados mentais contidos nos humanos, como a dor. Além disso, que tais criaturas diferem fisicamente dos humanos em relação a quais as propriedades físicas que permitem emergir essas propriedades mentais. Podemos colocar a questão, como Putnam, em termos de moluscos. Os moluscos sentem dor, mas as porções dos seus sistemas nervosos, responsáveis por suas dores, diferem química e fisicamente das porções dos nossos sistemas nervosos, responsáveis por nossas dores.

Um problema com esse argumento é que ele pressupõe fatos a respeito de criaturas, tanto mentais quanto físicas, que podem não ser fatos (LECLERC, 2018). O argumento pressupõe que os moluscos tenham dor e, além disso, suas dores são semelhantes às nossas. O argumento também pressupõe que os moluscos têm sistemas nervosos relevantes quimicamente e fisicamente distintos dos nossos. Ambas as suposições podem ser questionadas. Primeiramente, podemos questionar se os moluscos realmente sentem dor, isto é, é claro, para enfatizar uma versão do problema de outras mentes que discutimos no Tópico 3 da Unidade 2. Os moluscos podem se contorcer ou se retrair quando apresentados a um estímulo que danifica seus tecidos, mas é concebível que tais comportamentos ocorram na ausência de dor, talvez, na ausência de qualquer estado mental.

Outra possibilidade é que os moluscos sintam uma forma de dor, mas é bem diferente das dores que sentiríamos quando submetidos a estímulos semelhantes. Talvez, um estímulo que cause uma dor aguda em nós cause uma dor latejante e maçante em um molusco e vice-versa.

Mesmo que fosse verdade que os moluscos sentem o mesmo tipo de dor, outro problema permanece. É uma questão incerta se os sistemas nervosos dos moluscos divergem dos sistemas nervosos humanos de uma maneira que é relevante para a questão da múltipla realizabilidade da dor. Obviamente, existem algumas diferenças entre o sistema nervoso dos moluscos e o sistema nervoso humano. Os sistemas nervosos dos moluscos têm menos neurônios do que os sistemas nervosos humanos.

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Além disso, os moluscos têm mais membros do que os humanos e, portanto, diferenças em seus sistemas nervosos para o controle desses membros extras. No entanto, existem semelhanças entre o sistema nervoso e o nosso. Ambos são feitos de neurônios. O funcionamento básico dos nossos neurônios e seus neurônios, e os componentes químicos responsáveis por esse funcionamento, são altamente semelhantes. Continua sendo uma questão que fica em debate, se os aspectos do funcionamento neural, responsáveis pela dor do molusco, são iguais ou diferentes dos aspectos do funcionamento neural responsáveis pela dor humana.

É claro que o argumento das realizações múltiplas reais é devido à evidência empírica, e que a evidência empírica ainda não está presente. Como é comum entre os filósofos, muitos defensores do funcionalismo têm se sentido desconfortáveis ao se posicionar diante das evidências empíricas reais (MIGUENS, 2009). Eles preferem ver as teorias filosóficas distintas das teorias científicas. Assim, formulam argumentos que não dependem do que, realmente, é o caso, mas do que é possível ou concebível. O próximo argumento é um desses argumentos.

Realizações múltiplas possíveis: a inteligência artificial. No centro do argumento das realizações múltiplas possíveis para o funcionalismo, está a ideia de que é possível que os estados mentais tenham múltiplas realizações. Uma dessas possibilidades é a possibilidade da inteligência artificial forte (LECLERC, 2018).

Outra possibilidade seria a vida extraterrestre inteligente. Talvez, os alienígenas tenham inteligência a nível humano, embora possam ter formas físicas radicalmente diferentes dos humanos.

A proposta da inteligência artificial forte foi apresentada no texto com-plementar, sugerido na Unidade 2: Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes, de Kevin D. S. Leyser. Você poderá acessar o texto no seguinte link: ht-tps://drive.google.com/file/d/1tEHo7dCGowteV_r0uvavnwnLWImCYCxU/view?usp=sharing.

DICAS

Para que você possa ter uma ideia de como esses tipos de possibilidades podem ser usados ao argumentar a favor do funcionalismo, será útil, primeiramente, examinar como esses tipos de possibilidades podem ser usados em argumentos contra a teoria da identidade mente-cérebro. Antes de prosseguir, precisamos responder à pergunta: por que a mera possibilidade de algo teria alguma consequência para uma teoria filosó-

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Caro acadêmico, se você quiser aprofundar seu conhecimento acerca da concebilidade, sugerimos a leitura do artigo Concebilidade e Possibilidade, de Matheus Martins Silva (2010), disponível em: https://criticanarede.com/concebilidade.html.

DICAS

fica? A essência da resposta a essa pergunta é que a mera possibilidade de algo pode servir para derrotar uma afirmação de que algo é impossível. Suponha que a teoria da identidade mente-cérebro esteja comprometida com a afirmação de que é necessário que os tipos de estado mental sejam um e o mesmo que os tipos de estado físico.

Em tal leitura da teoria da identidade mente-cérebro, é necessário que os estados mentais não tenham múltiplas realizações físicas. Outra maneira de colocar esse ponto é dizer que, em tal leitura da teoria da identidade mente-cérebro, é impossível que os estados mentais sejam fisicamente realizáveis de mais de uma maneira.

Afirmar a teoria da identidade mente-cérebro dessa maneira faz com que pareça uma afirmação muito forte, uma afirmação que seria derrotada se fosse possível demonstrar que é possível que estados mentais tenham múltiplas realizações.

A próxima pergunta que temos que considerar, então, é se é possível que os estados mentais sejam multiplamente realizáveis. Muitos filósofos da mente apelam para a concebilidade de estados mentais multiplamente realizáveis (SILVA, 2010). Obviamente, para que a concebilidade seja relevante no contexto atual, é necessário que haja algum tipo de princípio geral que possa conectar a concebilidade à possibilidade e, como discutimos no Tópico 1 da Unidade 2, a existência de um princípio geral é uma questão de controvérsia.

4 AS VARIEDADES DO FUNCIONALISMO

Discutiremos três variedades de funcionalismo: o funcionalismo da máquina de Turing, o funcionalismo analítico e o funcionalismo empírico. Embora o funcionalismo da máquina de Turing seja historicamente significativo, atualmente, a maioria dos funcionalistas é funcionalista analítico ou funcionalista empírico.

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4.1 O FUNCIONALISMO DA MÁQUINA DE TURING

A primeira versão elaborada do funcionalismo do século XX é a visão originada por Hilary Putnam (1980), conhecida, alternativamente, como funcionalismo da máquina de Turing e funcionalismo de estado de máquina. Essa versão do funcionalismo vê qualquer criatura com uma mente, como uma máquina de Turing. Como discutido no texto complementar Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes, de Kevin D. S. Leyser (leitura sugerida na Unidade 2 deste livro didático), um aspecto especialmente atraente da ideia de Turing é a maneira como ajuda a mostrar como um sistema puramente físico e mecanicista pode se envolver em processos que consideramos mentais (TURING, 1973). Isso é especialmente verdadeiro para o processo de chegar a uma solução para um problema. Tais soluções são alcançadas pelas máquinas de Turing, manipulando símbolos de maneira governada por regras. As regras que governam as manipulações de símbolos de uma máquina de Turing são especificadas por uma tabela de ação (ou função de transição). As regras são instruções que compõem o programa da máquina. As instruções podem ser consideradas se a máquina estiver no estado S1 e receber o input I1, então, entrará no estado S2 e produzirá o outputs O1.

O conjunto dessas instruções ajuda a definir que tipo de máquina de Turing é uma máquina. A ideia básica do funcionalismo da máquina de Turing é que os estados mentais de uma criatura podem ser definidos por referência a instruções em uma tabela de ações (SANTO, 2019). Uma das principais vantagens que, inicialmente, atraiu filósofos para o funcionalismo das máquinas de Turing foi a maneira como superou um problema que se abateu sobre o behaviorismo, a saber: os behavioristas tentam definir estados mentais apenas por referência a inputs (estímulos) e outputs (comportamento), e não fazem provisão para a maneira como os estados mentais estão relacionados aos inputs e outputs em virtude de, também, estarem relacionados a outros estados mentais. O funcionalismo da máquina de Turing, por outro lado, permite especificações de estados mentais em termos de inputs, outputs e outros estados mentais. No entanto, a maneira pela qual outros estados mentais aparecem no funcionalismo da máquina de Turing conduz a uma das maiores falhas desse tipo de funcionalismo. A falha é que o funcionalismo da máquina de Turing não leva em consideração múltiplos estados mentais simultâneos (ABRANTES; AMARAL, 2002).

Para ver a natureza de "uma regra de cada vez" do funcionalismo da máquina de Turing, observe, novamente, a instrução da amostra da tabela de ações: "se a máquina estiver no estado S1 e receber o input I1, então, ela entrará no estado S2 e produzirá o output O1".

Aqui, o "então" pode ser lido como indicando que estamos lidando com um processo que ocorre ao longo do tempo. Primeiramente, a máquina está no estado S1, depois sai do estado S1 e entra no estado S2. Isso não permite que a máquina esteja nesses dois estados simultaneamente. Por que isso seria algo ruim? O problema é que, às vezes, os humanos podem estar em mais de um estado mental de cada vez.

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Por exemplo, você pode ter uma experiência sensorial e um pensamento ao mesmo tempo. Talvez, a experiência sensorial seja a que você cheira fumaça e o pensamento sugere "talvez, algo esteja queimando na cozinha". Como isso, é algo que, às vezes, acontece com os seres humanos, mas não pode acontecer com as máquinas de Turing. O funcionalismo das máquinas de Turing é uma teoria da cognição humana falha.

O funcionalismo da máquina de Turing foi importante como uma alternativa inicial ao behaviorismo e à teoria da identidade mente-cérebro, mas poucos funcionalistas, hoje em dia, aderem a essa versão do funcionalismo. Em vez disso, são funcionalistas analíticos ou funcionalistas empíricos.

4.2 FUNCIONALISMO ANALÍTICO VERSUS FUNCIONALISMO EMPÍRICO

Cada versão do funcionalismo pode ser vista como uma teoria dos estados mentais, em que as definições de estado mental são descrições dos papéis que esses estados desempenham. Certamente, existem muitos papéis que os estados mentais desempenham e, talvez, nem todos os papéis que um estado mental desempenhe sejam essenciais para definir o estado mental. Por exemplo, um papel que meu pensamento atual desempenha é que é a coisa mais recente que me aconteceu hoje. No entanto, o fato de ser o evento mais recente da minha biografia não é essencial para defini-lo como o estado mental que ele é. Muito mais importante na definição, são descrições acerca do que é um pensamento e, se os funcionalistas estiverem certos, descrições que o relacionam a, por exemplo, certos inputs perceptivos, como a minha percepção de que estou escrevendo este parágrafo agora.

Descrições de papéis do estado mental são cruciais para todas as versões do funcionalismo. No entanto, diferentes versões do funcionalismo podem ser distinguidas pelos tipos de descrições de funções que consideram essenciais (MARGONI, 2013). Os funcionalistas das máquinas de Turing dão lugar a descrições que podem ser declaradas em termos de instruções da tabela de ação. As próximas duas versões do funcionalismo diferem, se as descrições de funções definitivas dos estados mentais são conhecíveis a priori ou são apenas conhecíveis a posteriori.

A visão de que as descrições relevantes são conhecíveis a priori é conhecida

como funcionalismo analítico (MOYA, 2004). A visão de que as descrições relevantes são conhecíveis apenas a posteriori é conhecida como funcionalismo empírico ou, às vezes, psicofuncionalismo (HIERRO-PESCADOR, 2005). Essa visão é chamada de “psico” funcionalismo por causa do papel central dado à ciência da psicologia na descoberta das descrições de papéis relevantes.

A distinção entre os funcionalismos analítico e empírico é significativamente pa-ralela à distinção (discutida no Tópico 3 da Unidade 2) entre os behaviorismos analítico e empírico. Lembre-se de que os behavioristas analíticos estavam tentando oferecer uma teoria que capturasse o que queremos dizer em usos do senso comum de termos mentais,

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como "crença" e "desejo". O funcionalista analítico tem um objetivo semelhante, mas diferirá do behaviorista analítico a respeito de qual teoria melhor alcançará o objetivo. Em contraste com essas teorias analíticas (teorias que objetivam analisar os significados dos termos do senso comum), o behaviorismo empírico e o funcionalismo empírico se preocupam menos com o senso comum e estão mais inclinados a buscar respostas nas teorias psicológicas científicas (HIERRO-PESCADOR, 2005). O que os behavioristas empíricos e os funcionalistas empíricos discordam são quais teorias psicológicas são as melhores. O behaviorista empíri-co desconfia das explicações que postulam estados cognitivos que intervêm entre estímulo e resposta, e prefere explicações do comportamento dadas em termos de leis comparati-vamente simples que relacionam, diretamente, estímulo e resposta. Em contraste, o funcio-nalista empírico fica mais à vontade com as teorias que postulam intermediários cognitivos entre estímulo e resposta. Além disso, estão mais inclinados a ver as relações entre estímulo e resposta, envolvendo uma relação complexa que envolve esses intermediários.

5 ARGUMENTOS CONTRA O FUNCIONALISMO

Muitos argumentos que discutimos em conexão com outros problemas podem ser adaptados para serem usados como argumentos contra o funcionalismo. Um exem-plo é o argumento dos zumbis contra o fisicalismo (discutido no Tópico 2 da Unidade 2). Outro é o argumento do quarto chinês contra a inteligência artificial (discutido no texto complementar Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes, de Kevin D. S. Leyser). Vamos nos concentrar apenas nesses dois, mas há outros além desses. Por exemplo, pode-se adaptar o argumento do espectro invertido do Tópico 2 da Unidade 2 para argumentar contra o funcionalismo.

5.1 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DOS ZUMBIS CONTRA O FUNCIONALISMO

Lembre-se do argumento do zumbi:

• Premissa 1: Se o fisicalismo é verdadeiro, então, é impossível existirem dois seres exatamente iguais fisicamente, mas diferindo no fato de que apenas um deles é um zumbi.

• Premissa 2: É concebível que dois seres sejam iguais fisicamente, mas apenas um deles é um zumbi.

• Premissa 3: Se algo é concebível, então, é possível.• Conclusão: O fisicalismo é falso.

A principal maneira de adaptar esse argumento para atingir o funcionalismo é substituir palavras, como "fisicamente" e "fisicalismo", por outras palavras, como "funcionalmente" e "funcionalismo". Substituir palavras ao longo dessas linhas gera o seguinte argumento:

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• Premissa 1: Se o funcionalismo é verdadeiro, então, é impossível existirem dois seres exatamente iguais funcionalmente, mas diferindo no fato de que apenas um deles é um zumbi.

• Premissa 2: É concebível que dois seres sejam iguais funcionalmente, mas apenas um deles é um zumbi.

• Premissa 3: Se algo é concebível, então, é possível.• Conclusão: O funcionalismo é falso.

Uma das partes desse novo argumento que pode ser questionada é uma parte que também é questionável no argumento antigo, a premissa 3 – a parte que liga a con-cebilidade à possibilidade (SILVA, 2010). O funcionalista pode querer responder a esse argumento negando a premissa 3. No entanto, se esse é um movimento atraente para o funcionalista, dependerá de algo, como se o funcionalista em questão é um funciona-lista analítico ou um funcionalista empírico. Um funcionalista analítico não conseguirá ir muito longe resistindo à premissa “concebilidade implica possibilidade”. Isso ocorre por-que existe uma versão do argumento zumbi contra o funcionalismo analítico que não depende dessa premissa. Esse argumento pode ser formulado da seguinte maneira:

• Premissa 1: Se o funcionalismo analítico é verdadeiro, então, é inconcebível que dois seres possam ser iguais funcionalmente, mas diferem no fato de que apenas um deles é um zumbi.

• Premissa 2: É concebível que existam dois seres exatamente iguais funcionalmente, mas diferindo em que apenas um é um zumbi.

• Conclusão: O funcionalismo analítico é falso.

Como o funcionalismo analítico é uma teoria a respeito dos nossos conceitos de estados mentais, em vez de uma teoria sobre a natureza cientificamente detectável desses estados (MOYA, 2004), ele é, especialmente, vulnerável a considerações baseadas na concebilidade, como o experimento mental do zumbi. O funcionalismo empírico, por outro lado, é menos vulnerável a essas considerações.

5.2 ADAPTAÇÃO DO ARGUMENTO DO QUARTO CHINÊS CONTRA O FUNCIONALISMO

A versão do funcionalismo mais diretamente ameaçada pela adaptação do argumento do quarto chinês é o funcionalismo das máquinas de Turing. Isso ocorre porque o argumento do quarto chinês e o funcionalismo da máquina de Turing podem ser declarados em termos de programas.

O funcionalismo da máquina de Turing tem programas em seu núcleo porque está comprometido com a visão de que os estados mentais podem ser definidos em termos de ins-truções do programa a partir de uma tabela de ações para uma máquina de Turing. No centro do argumento do quarto chinês está a alegação de Searle (1996), de que um programa de "en-tendimento chinês" pode ser executado por uma pessoa que realmente não entende chinês.

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Um dos argumentos filosóficos mais famosos e amplamente discutidos acerca do IA é o argumento do quarto chinês de John Searle. O ponto do argumento de Searle é que, por mais que o comportamento externo de um computador possa parecer ao de um humano, ele nunca terá inteligência ou entendimento genuíno. No experimento mental de Searle (1996), ele imagina o computador sendo substituído por um grande quarto no qual o próprio Searle está sentado, e segue um conjunto de instruções que implementam o programa de computador que compreende chinês. O ponto central do experimento mental é a seguinte suposição de Searle: Searle, que não entende chinês, pode seguir um programa escrito em português, que permitirá a simulação de um ser que entende chinês.

NOTA

Uma questão interessante é se versões do funcionalismo, além do funcionalismo da máquina de Turing, podem ser alvejadas pelo argumento do quarto chinês. Indiscutivelmente, o funcionalismo analítico é vulnerável ao argumento do quarto chinês, porque a afirmação central de Searle pode ser interpretada como uma afirmação de concebilidade (SEARLE, 1987). Embora seja absurdo que alguém realmente faça o que Searle nos convida a imaginá-lo fazendo, é algo concebível. É concebível que Searle possa executar qualquer programa sem ele próprio entender chinês. Na medida em que o funcionalismo analítico é uma afirmação a respeito dos nossos conceitos de estados mentais, fica refém do que podemos e não podemos conceber sobre esses estados mentais. O funcionalismo empírico parece muito menos vulnerável a essa linha de argumentação, uma vez que o funcionalismo empírico é voltado para a definição de estados mentais em termos da melhor teoria científica do comportamento de certas criaturas. Além disso, resta ver qual é, por exemplo, a melhor teoria do que é necessário para entender chinês. Do ponto de vista do funcionalismo empírico, o que Searle pode ou não pode conceber parece pouco relevante para a questão do que realmente são os estados mentais.

O funcionalismo é a posição atual mais popular a respeito do problema mente-corpo, e seus seguidores a veem como combinando os melhores elementos de posições antidualistas, como behaviorismo, teoria da identidade mente-cérebro e IA forte. No entanto, os oponentes do funcionalismo, especialmente, os dualistas de propriedades baseados nos qualia, o consideram nem um pouco melhor do que outras visões antidualistas no que diz respeito aos tratamentos da consciência e dos qualia.

Caro leitor, agora que exploramos, juntos, as questões do funcionalismo na filosofia da mente, veremos as principais questões da causação mental.

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6 A CAUSAÇÃO MENTAL

Segundo o senso comum, os eventos mentais podem (1) causar e (2) ser causados por eventos não mentais. Aqui está uma ilustração de relações causais do tipo (1): Você forma a intenção de ir à pizzaria mais próxima, comprar uma fatia e comê-la. Nada o impede de agir com essa intenção, então, você acaba com o estômago cheio de pizza. O evento mental causou o evento não mental. A formação da intenção causou a ocorrência de uma barriga cheia de pizza.

Aqui está uma ilustração de relações causais do tipo (2): quando você dá uma primeira mordida na pizza, está muito quente e queima o céu da boca. O calor da pizza é alto o suficiente para danificar o céu da boca e ativar os receptores de dor, que transmitem sinais para o sistema nervoso central. O aquecimento da boca e suas terminações nervosas são eventos físicos. Esses eventos físicos têm várias consequências causais, uma das quais é o evento mental de sentir dor.

Aqui, estaremos, especialmente, interessados nos exemplos de relações causais do tipo (1), exemplos de causas mentais de eventos não mentais. Tais exemplos, se houver, são exemplos de causação mental (Outro tipo de coisa que se pode chamar de "causação mental" é (3) quando um evento mental causa outro evento mental).

A ideia de causação mental desempenha um papel muito importante em muitas partes da nossa cultura. Considere, por exemplo, o modo como a causação mental figura no direito penal. Se uma pessoa faz algo que causa a morte de outra pessoa, uma pergunta muito importante é se isso foi proposital ou um acidente. Além disso, se aconteceu de propósito, queremos saber quais eram as intenções do assassino. Ele causou a morte da outra pessoa por autodefesa, ou ele intendia roubar seu dinheiro?

Dependendo de quais intenções levaram à morte, o sistema de justiça criminal tirará conclusões muito diferentes acerca do que fazer com o assassino. Tais conclusões podem gerar uma sentença de prisão de muitos anos, perpétua ou uma pena de morte, dependendo do sistema de justiça de cada país em questão.

Até agora, essas observações se concentraram na importância, para o direito penal, dos efeitos não mentais de causas mentais, relações causais do tipo (1). No entanto, também existem conexões entre o direito penal e as relações causais do tipo (2).

Considere, por exemplo, a importância que as testemunhas oculares têm em um julgamento por assassinato. Seu próprio status de testemunha ocular pressupõe a possibilidade de as percepções (eventos mentais) serem causadas pelos eventos dos quais são percepções, como quando, por exemplo, uma testemunha ocular observou o suspeito empurrando a vítima por um lance de escada.

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O fato de eventos mentais poderem causar e ser causados por outros eventos é tão sensato e importante que pode parecer totalmente ultrajante que os filósofos da mente tenham levantado sérios problemas para a própria ideia da causação mental (AMARAL, 2001). No entanto, eles fizeram exatamente isso, e, neste tópico, examinaremos alguns dos principais problemas, além de algumas das principais soluções propostas.

O problema central que investigaremos aqui é algo que podemos chamar de o problema da causação mental. O problema da causação mental é o problema de explicar se a causação mental é, de fato, possível. Embora o senso comum possa dizer que isso é claramente possível, a partir de certas considerações filosóficas, a causação mental parece não ser possível.

Examinaremos, a seguir, quatro linhas de pensamento contra a causação mental. A primeira vem do dualismo da substância. A segunda é o epifenomenalismo dualista de propriedade, baseado nos qualia. A terceira está intimamente associada à tese do monismo anômalo desenvolvida por Donald Davidson (1970; 2003). A quarta é o argumento da exclusão explicativa de Jaegwon Kim (1993). Antes de nos aprofundarmos no problema da causação mental e nessas quatro linhas de pensamento, precisamos examinar uma das ideias principais envolvidas nos debates a respeito da causação mental. Essa ideia-chave é uma tese do fechamento causal.

6.1 O FECHAMENTO CAUSAL DO MUNDO FÍSICO

Uma das fontes centrais dos problemas para a ideia de que existe uma causa mental é uma tese conhecida como o fechamento causal do mundo físico ou, também, como a integridade causal do mundo físico (VIANA, 2016). Essa tese pode ser colocada de maneira muito simples: é a tese de que todo evento físico que tem uma causa é causado por um evento que é totalmente físico. Em outras palavras, não existem causas não físicas de eventos físicos.

Os adeptos da tese do fechamento causal a veem como altamente confirmada pela ciência moderna (VIANA, 2016). Eventos físicos, como a formação dos continentes ou o acúmulo de ferrugem na superfície de um pedaço de ferro, têm causas totalmente físicas. Isso significa que esses eventos são provocados por sistemas de objetos físicos que operam sob leis físicas.

Até eventos físicos que podemos descrever como tendo causas mentais, como quando você, propositalmente, levanta a mão, são eventos que temos motivos para acreditar serem causados por eventos cerebrais que são totalmente descritíveis em termos físicos.

Uma linha de apoio científico à tese do fechamento causal se baseia em duas premissas: no (1) princípio amplamente confirmado da conservação de energia, e em (2) uma suposição altamente plausível a respeito da relação da energia com a causalidade.

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De acordo com a premissa (2), a causalidade requer transferência de energia. Por exemplo, se uma rocha jogada em um lago causa ondulações, há uma transferência de energia cinética da rocha para a água. Uma chama que faz ferver um pote de água transfere energia térmica para o pote e para a água.

De acordo com a premissa (1), a quantidade total de energia no universo físico não pode aumentar nem diminuir. Podem ocorrer aumentos nas regiões do universo, mas esses aumentos exigem reduções proporcionais em outras regiões. À medida que a Terra se aquece ao absorver a luz solar (um aumento local), o sol fica lentamente sem energia à medida que consome o hidrogênio que alimenta as reações de fusão (uma diminuição local).

Podemos derivar uma tese de fechamento das premissas (1) e (2). Se existissem causas não físicas de eventos físicos, então, de acordo com a premissa (2), isso envolveria uma transferência de energia para o universo físico e, portanto, um aumento na energia total do universo físico. No entanto, de acordo com a premissa (1), não pode haver tal aumento. Portanto, não podem existir causas não físicas de efeitos físicos. Eventos físicos que têm causas devem ter causas físicas.

6.2 VISÕES BÁSICAS DA INTERAÇÃO

Tradicionalmente, existem quatro visões principais do tema da interação causal físico-mental. Essas quatro visões são: interacionismo, paralelismo, epifenomenalismo e reducionismo. As três primeiras são versões do dualismo. A quarta é uma versão do fisicalismo.

O interacionismo e o reducionismo concordam que há interações causais entre o mental e o físico. Eles discordam a respeito de outras relações entre o mental e o físico. O interacionismo é uma forma de dualismo e, portanto, sustenta que o mental não é físico. O reducionismo nega o dualismo e considera o mental um caso especial do físico, ou seja, de acordo com o reducionismo, o mental compreende um subconjunto especial do físico. A teoria da identidade mente-cérebro é uma forma de reducionismo.

O paralelismo e o epifenomenalismo concordam que não há interações causais que ocorrem do mental ao físico. No entanto, discordam da questão de saber se podem existir interações causais na outra direção, isto é, do físico ao mental. O paralelismo diz que "não" e o epifenomenalismo diz que "sim".

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6.2.1 Interacionismo

Um dos exemplos históricos mais proeminentes do interacionismo é o dualismo de substância de Descartes (2004). Tem a vantagem de adotar a visão do senso comum de que existem interações causais ocorrendo em ambas as direções entre o mental e o físico. No entanto, no cerne do dualismo de substância de Descartes está a tese de que mentes e corpos físicos são radicalmente distintos, corpos físicos têm propriedades espaciais. Dada a diferença radical entre mentes e corpos, torna-se muito difícil entender como é possível a interação entre eles. No entanto, os interacionistas afirmam que essa interação realmente ocorre. Eles não têm, no entanto, um relato credível de como isso ocorre.

6.2.2 Paralelismo

O paralelismo abraça o dualismo enquanto nega a interação mente-corpo (JAQUET, 2011). Segundo o paralelismo, os eventos mentais e físicos formam duas correntes distintas e não interativas: uma corrente de eventos mentais e uma corrente separada, mas correlacionada, de eventos físicos. Um dos principais problemas que surgem para o paralelismo é o problema de explicar por que existem correlações sistemáticas entre o mental e o físico.

Embora seja possível negar que existem relações causais entre eventos mentais e físicos, é muito mais difícil negar que existem certas correlações sistemáticas entre eventos mentais e físicos. Uma dessas correlações é a correlação entre certos estímulos do sistema nervoso, como a luz vermelha entrando nos seus olhos, e certos tipos de experiências, como ver algo como vermelho. Outra correlação é que, quando você decide fazer certas coisas, muitas vezes, essas coisas acontecem (JAQUET, 2011). Por exemplo, você decide escovar os dentes e, pouco tempo depois, lá está você, escovando os dentes. Por que existem essas correlações? Não é satisfatório considerá-las simplesmente correlações brutas, isto é, correlações para as quais não há explicação. Exigimos uma explicação.

Como discutido no Tópico 2 da Unidade 2, há duas explicações tradicionalmente proeminentes que os paralelistas ofereceram. Uma é o ocasionalismo, de Malebranche (2005). A outra é a doutrina de Leibniz (1983), da harmonia preestabelecida. Ambas as explicações trazem Deus à cena para explicar as correlações.

Nos dois pontos de vista, as correlações existem porque Deus desejou que os eventos fossem correlacionados. Mesmo para filósofos que acreditam na existência de Deus, isso está longe de ser satisfatório, e já analisamos os problemas no Tópico 2 da unidade anterior. Passemos, então, para as próximas duas teorias: epifenomenalismo e reducionismo. Cada uma delas parece ter melhores respostas para a questão da correlação do que as versões tradicionais do paralelismo.

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6.2.3 Epifenomenalismo

Para ter uma ideia de como o epifenomenalista visualiza a relação entre os fenômenos mentais e físicos, imagine uma espuma do mar subindo e descendo na crista de uma onda no oceano. A espume se move para cima e para baixo porque a onda se move para cima e para baixo, e não o contrário. O movimento da espuma do mar não afeta o movimento da onda. A espuma está, literalmente, apenas flutuando ali.

De acordo com o epifenomenalista, suas propriedades e estados mentais estão semelhantemente apenas “flutuando” ao longo do percurso (WALTER, 2009). As causas reais dos movimentos corporais são certas propriedades e estados puramente físicos, como as propriedades puramente físicas dos estados do cérebro. Você manca e chora, não por causa da dolorosidade que sente depois de bater o dedo do pé. O mancar e o choro são causados por um certo estado cerebral – as fibras C disparando. A ocasião em que as fibras C disparam no cérebro faz com que certas coisas aconteçam no resto do corpo, como movimentos do sistema musculoesquelético. A ocasião do disparo das fibras C também gera um estado distinto, um estado mental não físico de dor. O evento da dor em si mesmo, enquanto causado por eventos físicos, por si só, não causa nenhum evento físico. Como a espuma do mar na onda, a dor está apenas pegando uma carona no evento.

Como o paralelismo, o epifenomenalismo tem a desvantagem de conflitar com o senso comum sobre a causa mental (WALTER, 2009). No entanto, diferentemente do paralelismo, o epifenomenalismo tem uma resposta para a questão da correlação que não invoca Deus. Segundo o epifenomenalismo, a razão pela qual o mental está correlacionado com o físico é que o mental é um efeito do físico.

É preciso notar que, se por "efeito" aqui queremos dizer "efeito causal", o epifenomenalismo corre o risco de violar o princípio da conservação de energia. Está aberto, no entanto, para o epifenomenalismo adotar uma leitura não causal de "efeito" e, assim, evitar violar o princípio da conservação. Tudo isso exigirá um pouco de explicação.

Primeiro, vamos abordar esta questão: o epifenomenalismo viola a conservação? Lembre-se da ideia de que a causalidade requer transferência de energia. Se o efeito que o físico exerce sobre o mental é causal e o mental não é físico, isso parece implicar um fluxo de energia para fora do universo físico e, portanto, uma diminuição geral de energia no universo. No entanto, de acordo com o princípio da conservação de energia, a energia só pode ser movimentada no universo – não pode haver um aumento nem uma diminuição na soma total da energia no universo físico.

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Talvez, o efeito que o físico exerce sobre o mental seja um tipo de efeito não causal. Se isso fosse verdade, o epifenomenalismo teria uma maneira de responder à questão da correlação sem violar o princípio da conservação. No entanto, esta estratégia não está isenta de problemas. Um problema é que ainda não está claro se existem realmente coisas como efeitos não causais.

6.2.4 Reducionismo

Segundo o reducionismo, o mental é apenas um caso especial do físico (TEIXEIRA, 2008). Existem certos eventos físicos – por exemplo, certos eventos físicos no cérebro – que são idênticos aos eventos mentais. Por exemplo, o evento de sentir dor é apenas a mesma coisa que o disparo das fibras C. Não há problema em entender como as fibras C podem ser causadas e causar outros eventos físicos; portanto, o reducionismo tem a vantagem de ser consistente com a visão do senso comum de que há interações causais entre o mental e o físico. Outra vantagem do reducionismo é que ele fornece uma resposta clara à questão da correlação. A razão, por exemplo, que as dores ocorrem sempre que as fibras C disparam é que as dores são apenas disparos de fibras C.

Apesar dessas vantagens, o reducionismo não é totalmente inquestionável. As principais objeções ao reducionismo são as que discutimos em conexão com a teoria da identidade mente-cérebro no texto complementar “Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes” (leitura sugerida na Unidade 2 deste livro didático). Essas objeções dependem de qualia – argumentos como o argumento do conhecimento, o argumento do hiato explicativo e os argumentos modais que caracterizam os zumbis e os espectros invertidos.

6.3 QUALIA E EPIFENOMENALISMO

Como já discutimos, se assumirmos uma tese do fechamento causal baseada em propriedades, parece que o dualismo de propriedades nos conduz a uma forma de epifenomenalismo. Na presente seção, examinaremos brevemente as questões relacionadas ao epifenomenalismo sobre os qualia.

O epifenomenalismo de qualia pode parecer como um dos piores tipos possíveis de epifenomenalismo. Isso ocorre porque em nosso pensamento do senso comum existe uma conexão muito estreita entre qualia e causação (FAGUNDES, 2015). Considere dois exemplos principais de qualia – os qualia associados à dor e os qualia associados ao prazer. Esses qualia são a própria dolorosidade da dor e a agradabilidade do prazer. Indiscutivelmente, é parte da própria ideia de prazer e dor que estes podem ser causados por certos estímulos físicos e causar certos efeitos posteriores no comportamento.

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Uma das principais maneiras pelas quais, por exemplo, você aprende a não tocar em um fogão quente é quando recebe uma queimadura dolorosa ao tocá-lo. Parece que a dolorosidade – o quale de dor – é importante na produção de seus comportamentos subsequentes de evitar fogões quentes. E quando você aprende um novo comportamento pelo qual foi recompensado, a agradabilidade da recompensa – o quale de prazer – parece ter importância também. A eficácia causal da dolorosidade da dor e da agradabilidade do prazer está profundamente enraizada no senso comum.

E se o epifenomenalismo de qualia entrar em conflito com o autoconhecimento fenomenal? Um dos problemas mais desconcertantes que surgem em conexão com o epifenomenalismo de qualia é a questão de como, na suposição de que os qualia não tenham nenhum efeito, qualquer pessoa pode descobrir se alguém, inclusive a si próprio, tem algum qualia (FAGUNDES, 2015). Para ver como o epifenomenalismo de qualia pode ameaçar minar a possibilidade de conhecimento dos qualia, é útil primeiro explicar algumas suposições amplamente aceitas. Uma suposição é que, para ter conhecimento de uma propriedade, essa propriedade deve ser causalmente eficaz. Outra suposição é que os pensamentos são distintos dos qualia, tanto no sentido de que eles próprios não são qualia quanto no sentido de que os pensamentos em si não têm nenhum qualia.

Caro acadêmico, para aprofundar seus conhecimentos sobre o epifenomenalismo de qualia, sugerimos a leitura do artigo Epifenomenalismo de Qualia: Uma Lacuna Paradoxal Entre Sentir e Saber, de Juliana de Orione Arraes Fagundes (2015), disponível em: http://periodicos.uefs.br/index.php/revistaideacao/article/view/1300/2765.

DICAS

Quando combinamos essas suposições amplamente adotadas com o epifenomenalismo de qualia e em dualismos de propriedade, somos capazes de gerar um experimento de pensamento muito intrigante – o experimento de Daniel Dennett sobre um tipo de zumbi que ele chama de "zimbo". O argumento de Dennett (1991) é do livro Consciousness Explained. É um argumento que abordamos brevemente no Tópico 2 da Unidade 2.

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6.3.1 O Zimbo de Dennett

Lembre-se de que o zumbi de um filósofo é um ser semelhante a um ser humano normal em algum aspecto significativo (por exemplo, físico ou funcional), mas sem qualia. Os zimbos de Dennett (1991) são uma espécie de zumbi – eles não têm qualia – e as semelhanças significativas que eles têm com humanos normais são que, além de serem comportamentalmente idênticos a um ser humano normal, eles têm todos e os mesmos pensamentos que qualquer ser humano normal.

Agora estamos prontos para executar o experimento mental. Imagine que em algum lugar lá fora está sua cópia zimbo – um ser que se comporta exatamente como você e tem todos os mesmos pensamentos que você, mas carece de qualia. Para os propósitos deste experimento mental, os pensamentos mais importantes que você tem são pensamentos sobre sua própria consciência e os qualia que acompanham seus estados conscientes. Se você morder um pouco a língua e se concentrar no sentimento que experimenta, poderá pensar no seguinte pensamento: "Estou agora experienciando um quale doloroso". Ao mesmo tempo em que você está fazendo isso, sua cópia zimbo está mordendo a língua e pensando consigo mesmo: "Estou agora experienciando um quale doloroso". Aqui está a parte intrigante do experimento mental: enquanto você está pensando em algo verdadeiro (você realmente está experienciando um quale doloroso), sua cópia zimbo está pensando em algo falso (ele realmente não está experienciando um quale doloroso). Lembre-se, estamos aqui assumindo temporariamente (para o propósito do argumento) a verdade do epifenomenalismo de qualia. Portanto, o que quer que cause seus pensamentos, não são os qualia que estão causando estes pensamentos. Então, não há nada para impedir que sua cópia zimbo tenha os mesmos pensamentos que você.

Agora surge a pergunta crucial: considerando que tudo o que você pensa sobre si mesmo é algo que sua cópia zimbo também pensa sobre si mesmo, como você pode saber que realmente tem qualia? Outra maneira de formular a mesma pergunta é a seguinte: como você sabe que não é um zimbo?

Muitos filósofos seguem Dennett ao pensar que o objetivo desse experimento mental é mostrar que o epifenomenalismo de qualia é absurdo porque leva à consequência absurda de que não podemos saber se possuímos qualia (MIGUENS, 2002). Outros filósofos, no entanto, procuraram manter sua lealdade ao epifenomenalismo de qualia diante desse experimento mental (FAGUNDES, 2015). Uma maneira de fazer isso é rejeitando a suposição de que as propriedades precisam ser causalmente eficazes para serem conhecíveis. Obviamente, surge a questão de como é possível que os qualia ineficazes podem ser conhecíveis se eles não forem causalmente responsáveis por nossos pensamentos sobre eles.

Certos epifenomenalistas sugeriram que existe uma relação não causal especial entre os qualia e certos pensamentos sobre eles – uma relação não causal de “conhecimento experiencial ou direto” (por acquaintance) – pela qual conhecemos nossos próprios qualia (WALTER, 2009).

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6.4 MONISMO ANÔMALO

Uma linha de pensamento altamente influente sobre a causação mental surge da visão de Donald Davidson (1970), conhecida como monismo anômalo. O "monismo" aqui é um monismo fisicalista, embora seja distinto do tipo de monismo fisicalista descrito no texto complementar “Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes” (leitura sugerida na Unidade 2 deste livro didático) sobre a teoria da identidade mente-cérebro.

Para entender a distinção entre esses dois tipos de monismo fisicalista, ajuda recordar a distinção entre tipos (formas gerais) e tokens (ocorrências/eventos particulares) explicitada no texto complementar referido. Essa distinção nos ajuda a entender uma distinção entre fisicalismo de tipo e fisicalismo de token (ou de eventos). A teoria da identidade mente-cérebro é uma espécie de fisicalismo de tipo, enquanto o monismo anômalo é uma espécie de fisicalismo de token. Os fisicalistas de tipo afirmam que os tipos mentais são idênticos aos tipos físicos. O fisicalismo de token é consistente com a negação do fisicalismo de tipo. A principal afirmação do fisicalismo de token é que todo token mental é idêntico a um token físico.

As razões que Davidson (1970; 2003) dá para preferir o fisicalismo de token ao fisicalismo de tipo estão intimamente ligadas às razões pelas quais seu monismo é "anômalo". Vamos agora falar mais sobre o argumento de Davidson.

A linha de raciocínio que Davidson (1970) desenvolve em favor do monismo anômalo nasce a partir de uma tentativa de resolver o que parece ser um conflito entre três proposições independentemente plausíveis. Podemos rotular essas proposições de (1) "causação mental", (2) "subsunção nômica" e (3) "o anomalismo do mental".

A proposição (1), causação mental, é simplesmente a proposição que foi central para o presente tópico – é a proposição do senso comum de que eventos mentais entram em relacionamentos causais, especialmente relacionamentos em que eventos mentais causam eventos físicos, como nos casos de ação intencional.

A proposição (2) é subsunção nômica. O "nômica" na "subsunção nômica" tem a ver com leis, especialmente leis naturais e científicas como as leis da física.

A proposição de subsunção nômica é a proposição de que, para cada instância de um evento que causa outro, existe alguma descrição dos eventos sob os quais existe uma lei de que eventos de um tipo causam eventos de outro tipo. Portanto, se minha bola de futebol quebra sua janela, deve haver uma descrição da bola de futebol e da janela sob a qual há uma lei que eventos de um tipo causem eventos de outro tipo. Algumas descrições serão mais adequadas a isso do que outras. Descrever a bola de futebol como um objeto que já pertenceu ao meu tio é inadequado, uma vez que não existe uma lei da natureza que conecte as coisas pertencentes ao meu tio às coisas que quebram. Melhor seria descrever a bola de futebol com tal e tal massa, velocidade e momento, pois existe uma lei da natureza a respeito de como as magnitudes físicas de massa, velocidade e momento se relacionam.

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É importante para o argumento mais amplo de Davidson (2003) que as leis em questão são leis estritas ou leis sem exceção. Considere um caso em que uma bola de bilhar branca esbarra e move uma bola de bilhar vermelha. Existe uma lei física estrita (sem exce-ção) relacionada à massa, velocidade e momento que subsomem os eventos em questão. É uma lei da física mecânica que os objetos que colidem com tais massas e velocidades se movam de uma maneira ou de outra. No entanto, não existe uma lei estrita que relacione os movimentos da bola com suas cores. Não há uma lei da física mecânica ou de qualquer ou-tro ramo das ciências que afirma que coisas brancas fazem coisas vermelhas se moverem.

É claro que balançar uma bandeira vermelha para um touro às vezes pode atrair sua atenção e fazê-lo se mover. Essa não é uma lei estrita – ela tem exceções. Às vezes, o touro não vê a bandeira. Outras vezes, o touro vê a bandeira, mas ele está ocupado comendo, por isso não se preocupa em avançar. Os tipos de leis que Davidson (2003) está se focando não têm essas exceções.

Vamos agora considerar a proposição (3), o anomalismo do mental. Davidson (2003) sustenta que as únicas leis estritas são encontradas na física. É somente sob descrições em termos físicos que os eventos são subsumidos em leis estritas. Descrições em outros tipos de terminologias – terminologias diferentes da terminologia da física – não subsomem eventos sob leis estritas. Um tipo importante de descrição que falha em subsumir eventos sob leis estritas é a descrição mentalista ou psicológica, como as descrições de um evento como sendo um episódio de crença ou desejo.

Davidson (2003) sustenta que não existem leis estritas que relacionem eventos em termos de crenças ou desejos. O que motiva Davidson a dizer que esse é um ponto que estamos familiarizados com a discussão da objeção de Geach-Chisholm ao behaviorismo no Tópico 3 da Unidade 2.

Lembre-se de que o argumento levantado foi que uma crença não pode estar relacionada a um tipo de ação, exceto em virtude de estar relacionada a toda uma série de outros estados. Esses outros estados colocam condições sobre se a crença será conectada à ação. Situações em que essas condições não se aplicam são situações em que há uma exceção a uma lei que relaciona a crença a uma ação específica. Portanto, não existe uma lei sem exceção que relacione a crença à ação. Qualquer lei que relacione crença à ação não será uma lei estrita.

Em face disso, o conjunto de proposições (1), (2) e (3) parece ser um conjunto inconsistente. Se, por exemplo, é verdade que (2), a causa deve ser subsumida sob leis estritas e (3), não há leis estritas que subsumam eventos mentais, então parece que deve ser falso que (1) eventos mentais causem qualquer coisa.

O fisicalismo de token (ou de eventos) de Davidson (2003) ajuda a resolver esse aparente conflito entre (1), (2) e (3). A ideia principal aqui pode ser transmitida em termos de como interpretamos a proposição (1). Os tokens de eventos mentais são idênticos aos tokens de eventos físicos e, como os tokens de eventos físicos são subsumidos em leis

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estritas, existe um sentido em que (1) é verdadeiro, os eventos mentais de fato entram em relações causais. Eles simplesmente não entram em relações causais sob suas descrições mentais, mas apenas sob suas descrições físicas.

Alguns filósofos temem que o monismo anômalo leve ao epifenomenalismo (MCLAUGHLIN, 1993). No entanto, parece que, para derivar o epifenomenalismo do mo-nismo anômalo, precisamos importar observações sobre propriedades na explicação do monismo anômalo. Além disso, é provável que Davidson (1970) considere essas ob-servações desagradáveis, pois ele pode muito bem negar a existência de propriedades.

A maneira de trazer propriedades ao monismo anômalo e gerar uma versão do epifenomenalismo é assim: primeiro, começamos com o ponto davidsoniano de que um evento só entra em relações causais sob descrições físicas. Segundo, traduzimos esse ponto davidsoniano em uma fala sobre propriedade. Por exemplo, enfatizamos que apenas as propriedades físicas de um evento são causalmente eficazes. Suas propriedades não físicas, como suas propriedades mentais, não são eficazes. Em vez disso, são epifenomenais.

Lembre-se do exemplo de causalidade referente às bolas de bilhar branca e vermelha. Há uma lei que subsome as bolas em relação a sua massa e velocidade, mas não uma lei que subsome as bolas em relação às cores. Podemos colocar esse ponto em termos de propriedades.

As bolas têm propriedades de cores, bem como propriedades de ter uma massa e uma velocidade. As propriedades de massa e velocidade são propriedades causalmente eficazes – essas são as propriedades que permitem que as bolas sejam subsumidas sob uma lei estrita.

Podemos usar essa visão baseada em propriedades da subsunção nômica para descrever o monismo anômalo da seguinte maneira: eventos mentais são idênticos aos eventos físicos, mas são subsumidos nas leis apenas em virtude de suas propriedades físicas e não em virtude de suas propriedades mentais. Dadas essas alegações sobre subsunção, em uma interpretação do monismo anômalo baseado em propriedade, os eventos mentais não causam nada em virtude de suas propriedades mentais, mas apenas em virtude de suas propriedades físicas. Dito desse modo, fica claro que o monismo anômalo baseado em propriedades é uma versão do epifenomenalismo baseado em propriedades.

Uma resposta possível a esse argumento para o epifenomenalismo é negar a existência de propriedades. Negar que existam entidades que sejam propriedades não é uma posição inédita na filosofia, e há razões para acreditar que Davidson (2003) tenha sido atraído por esta posição. No entanto, o debate sobre o realismo da propriedade versus o antirrealismo da propriedade está muito longe de questões centrais da filosofia da mente. Deste modo, não discutiremos este tema mais detalhadamente.

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6.5 O ARGUMENTO DA EXCLUSÃO CAUSAL-EXPLANATÓRIA

O argumento da exclusão causal-explanatória de Jaegwon Kim (1993) tenta mostrar que um certo tipo de fisicalismo leva ao epifenomenalismo. Esse tipo de fisicalismo é o que chamaremos aqui de "fisicalismo não redutivista com base na múltipla realizabilidade" ou apenas "fisicalismo não redutivista", resumidamente. Caro leitor, lembre-se do que discutimos anteriormente, que a múltipla realizabilidade é uma ideia central do funcionalismo, uma das visões mais amplamente defendidas entre os filósofos da mente. O argumento de Kim serve, portanto, para apontar um problema sério com o funcionalismo e o fisicalismo não redutivista de maneira mais geral, a saber, que talvez leve a um tipo de epifenomenalismo (KIM, 1998).

O fisicalismo não redutivista compartilha com o dualismo de propriedade a visão de que existem propriedades mentais e que nenhuma propriedade mental é idêntica a qualquer propriedade física. Apesar dessa semelhança, o que serve para fazer com que o fisicalismo não redutivista conte como uma posição fisicalista é o seu compromisso com a visão de que cada instância de uma propriedade mental tem uma propriedade física como sua realização. Em suma, o fisicalismo não redutivista sustenta que o mental é realizado pelo físico.

De acordo com esses fisicalistas não redutivistas, a razão pela qual o mental não é redutível ao físico, ou seja, a razão pela qual nenhuma propriedade mental é idêntica a qualquer propriedade física é que cada propriedade mental é multiplamente realizável. Dado que existem duas (ou mais) propriedades físicas distintas que podem realizar uma determinada propriedade mental, a propriedade mental não pode ser idêntica a nenhuma das propriedades físicas.

Suponha que haja alguma ocasião de causalidade que somos tentados a descrever como um exemplo de causação mental, mental-ao-físico. Suponha, por exemplo, que uma pessoa tenha acabado de mover seu corpo com base na intenção de movê-lo. Chame a propriedade física de ter um movimento corporal "F1". A intenção de mover o corpo é mental, então vamos chamar a propriedade mental relevante associada de "M". Como M é fisicamente realizado, e é realizado por uma propriedade física diferente de F1, digamos alguma propriedade do cérebro, chame a propriedade que realiza M de "F2". Quais são as propriedades eficazes, em virtude das quais F1 é causado? Se assumirmos a tese do fechamento causal, isso excluiria M de ser a propriedade que é eficaz em relação a F1. Em resumo, podemos dizer que parece que F2 causa F1 e M é causalmente irrelevante. Se M é causalmente irrelevante, então isso parece ser uma versão do epifenomenalismo sobre M.

O argumento da exclusão causal-explanatória recebe o seu nome a partir da ideia de que, como F2 explica por que F1 ocorreu, ele exclui M de ser a explicação (causa) de porque F1 ocorreu. Pois, se esse estado cerebral (F2) explica a mão levantada (F1), isso exclui a intenção de levantar a mão (M) de ser a explicação para o levantar a mão.

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A ideia de que eventos mentais podem causar eventos físicos e vice-versa está profundamente enraizada no senso comum. No entanto, existem várias visões na filosofia da mente, visões como dualismo de substância, dualismo de propriedade e até versões do funcionalismo, que tornam especialmente difícil explicar como a causação mental pode até mesmo ser plausível. Contudo, rejeitar a causação mental e adotar o epifenomenalismo parece a muitos filósofos da mente uma opção inaceitável.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• De acordo com o funcionalismo, um estado mental é definido por certas relações causais que ele possui com estados de entrada, estados de saída e outros estados mentais.

• O ponto central do funcionalismo é que os estados mentais são definíveis em termos do que fazem.

• Os principais argumentos para o funcionalismo também são argumentos contra seus principais concorrentes fisicalistas: o behaviorismo e a teoria da identidade mente-cérebro.

• O funcionalismo analítico, por ser uma teoria acerca dos nossos conceitos de estados mentais, é especialmente vulnerável a considerações baseadas na concebilidade, como o experimento mental do zumbi.

• A versão do funcionalismo mais diretamente ameaçada pela adaptação do argumento do quarto chinês é o funcionalismo das máquinas de Turing.

• A ideia de causação mental desempenha um papel muito importante em muitas partes da nossa cultura.

• Uma das fontes centrais dos problemas para a ideia de que existe uma causa mental é uma tese conhecida como o fechamento causal do mundo físico.

• Tradicionalmente, existem quatro visões principais sobre o tema da interação causal físico-mental, essas quatro visões são: interacionismo, paralelismo, epifenomenalismo e reducionismo.

• O epifenomenalismo de qualia pode parecer como um dos piores tipos possíveis de epifenomenalismo.

• Uma linha de pensamento altamente influente sobre a causação mental surge da visão de Donald Davidson, conhecida como monismo anômalo.

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1 Em filosofia, sempre que nos aproximamos de algum posicionamento, é necessário compreender os argumentos a favor e contra tal posição. No caso do funcionalismo da mente, o argumento causal está entre os principais argumentos a seu favor. Em que consiste tal argumento?

2 A primeira versão elaborada do funcionalismo do século XX é a visão originada por Hilary Putnam, conhecida como funcionalismo da máquina de Turing. Descreva o que é um funcionalismo da máquina de Turing.

3 Uma das ideias principais envolvidas nos debates sobre a causação mental é uma tese sobre fechamento causal. Podemos dizer que uma das fontes centrais dos problemas para a ideia de que existe uma causa mental é a tese conhecida como o fechamento causal do mundo físico. Explique o que a tese alega.

AUTOATIVIDADE

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MATERIALISMO ELIMINATIVO, PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E

EMOÇÃO

1 INTRODUÇÃO

O materialismo eliminativo (ou "eliminativismo") é uma forma extrema de monismo fisicalista que nega a existência de (1) qualquer coisa mental ou, mais tipicamente, (2) alguma gama limitada de fenômenos mentais. O "eliminativo" no nome "materialismo eliminativo" reflete a recomendação de eliminar as conversas sobre entidades mentais (mentes, estados mentais, propriedades mentais etc.) na tentativa de descrever verdadeiramente o que existe no universo.

Na sua forma mais extrema, o materialismo eliminativo é uma visão surpreendente. Ele contém uma série de reivindicações contraintuitivas. Tais alegações incluem alegações de que ninguém jamais teve uma crença, uma esperança ou um sonho, que ninguém jamais planejou o futuro ou se lembrou do passado, e que ninguém jamais sentiu algum prazer ou qualquer dor. Parte do interesse em examinar uma visão tão radical é que ela destaca questões sobre se realmente temos boas razões para acreditar em algum desses fenômenos mentais.

Os precursores históricos do materialismo eliminativo contemporâneo, especialmente a parte eliminativa, incluem a visão de que não existe livre arbítrio, uma visão a ser discutida mais adiante no Tópico 3 desta unidade.

Nas discussões contemporâneas do materialismo eliminativo, a forma superforte que nega a existência de todos os fenômenos mentais não é tão amplamente discutida e levada tão a sério quanto as formas mais fracas e limitadas que simplesmente negam a existência de apenas um tipo de fenômeno mental. No entanto, essas formas limitadas ainda são bastante chocantes.

Considere, por exemplo, a afirmação de que ninguém jamais acreditou em nada. É uma afirmação plausível? Alguns filósofos sugeriram que essa afirmação é autodestrutiva. Uma maneira de ver esse ponto é lendo o materialista eliminativo como recomendando que acreditemos na afirmação de que não há crenças. No entanto, se acreditamos nessa afirmação, pelo menos uma crença existe, desse modo, essa afirmação na qual se acredita se mostra falsa.

Como discutiremos mais adiante, o materialismo eliminativo não é o mesmo que a teoria da identidade mente-cérebro. Apesar de uma semelhança superficial, há uma profunda diferença.

UNIDADE 3 TÓPICO 2 -

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Para ver a semelhança e a diferença, pensemos em uma forma simples da teoria da identidade mente-cérebro e em uma forma simples de materialismo eliminativo. A forma simples da teoria da identidade mente-cérebro diz que as dores não são nada mais que um certo tipo de estado cerebral – as fibras C disparando. A forma simples do materialismo eliminativo diz que não há dores – existem apenas fibras C disparando. Ambas as teorias concordam que existem disparos de fibra C. Será que ambas concordam que não há dores, que as dores não existem? Não, elas não concordam, e esta é a principal diferença entre elas.

A afirmação do teórico da identidade da mente-cérebro em termos de "não são nada mais que" pode fazer parecer que a existência de dores está sendo negada, mas não é assim. A afirmação “não são nada mais que” – a afirmação de que as dores não são nada mais que fibras C disparando – não está nos dizendo que as dores não são nada. Em vez disso, está simplesmente dizendo que as dores não são nada além, elas não são nada além das fibras C. Como as dores são idênticas aos disparos das fibras C e os disparos das fibras C existem, então as dores existem. Por outro lado, o materialista eliminativo nega totalmente que as dores são idênticas aos disparos das fibras C. As dores não são idênticas a nada – elas não existem de acordo com o materialista eliminativo.

Nas discussões contemporâneas do materialismo eliminativo, o foco central tem sido a negação da existência de atitudes proposicionais, como crenças e desejos (MATTHEWS, 2007). Embora não seja tão central nas discussões sobre o materialismo eliminativo, ainda assim houve uma discussão significativa sobre a negação da existência de qualia. De acordo com as tendências contemporâneas, a discussão sobre o materialismo eliminativo no presente Tópico se concentrará principalmente nas atitudes proposicionais. No entanto, haverá uma seção que aborda o materialismo eliminativo sobre os qualia.

Após a discussão sobre o materialismo eliminativo vamos nos ater, ainda neste tópico, aos debates sobre os estados mentais como percepções, imagens mentais e emoções na filosofia da mente.

2 O MATERIALISMO ELIMINATIVO CONTEMPORÂNEO

Existem duas ideias que formam os principais ingredientes das versões contemporâneas do materialismo eliminativo. A primeira é a ideia de que a psicologia popular é uma teoria. A segunda é a ideia de um contraste entre a eliminação e a redução.

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2.1 A PSICOLOGIA POPULAR COMO UMA TEORIA

As discussões contemporâneas sobre o materialismo eliminativo ocorrem em um contexto de suposições sobre como as teorias mudam na história da ciência. Frequente-mente, na história da ciência, uma teoria é abandonada em favor de uma nova teoria. Além disso, quando a nova teoria é adotada, as entidades postuladas pela teoria antiga – os pos-tulados teóricos da teoria – são consideradas inexistentes. Os postulados são assim elimi-nados. Exemplos da história da ciência incluem a eliminação, ou seja, a rejeição do:

• Calórico, a suposta substância que flui para os objetos quando aquecem;• Élan vital, a suposta substância que dá vida a todos os seres vivos;• Flogisto, a suposta substância contida em objetos inflamáveis que sai deles quando

queimam;• Éter luminífero, o suposto meio através do qual as ondas de luz e outras formas de

radiação eletromagnética se propagam.

Os materialistas eliminativos contemporâneos consideram as atitudes proposicionais como análogas ao flogisto, ao calórico, ao élan vital etc. Ou seja, consideram as atitudes proposicionais como postulados teóricos (CHURCHLAND, 1981). Em que teoria elas são postuladas? A teoria relevante é um tipo de "teoria popular" sobre a mente – a psicologia popular.

O que é uma teoria popular? É uma teoria, implicitamente mantida, referente a um domínio para o qual geralmente existe uma teoria não popular, totalmente científica e explícita (ARAUJO, 2001). Além da psicologia popular, outros exemplos incluem a física popular e a biologia popular. Muitas vezes há um desacordo entre uma teoria popular e sua contrapartida científica. Tomemos, por exemplo, a física popular. A física popular contém visões implícitas e de senso comum sobre como os objetos se movem. Um exemplo é a visão de que um objeto que se move em uma rota curva tende a permanecer em movimento em uma rota curva. De acordo com a física popular, então, se uma pedra amarrada na ponta de uma corda é girada em um círculo sobre sua cabeça, quando liberada da corda, ela tenderá a seguir uma rota curva, em vez de seguir uma linha reta. No entanto, isso contradiz a física científica, que afirma que a pedra liberada se moverá em linha reta.

Os elementos centrais da psicologia popular são atitudes proposicionais, como crenças e desejos (ARAUJO, 2001). As explicações psicológicas populares explicam os comportamentos dos seres humanos e de alguns animais não humanos por referência a suas crenças, desejos e outras atitudes proposicionais. Segundo a psicologia popular, esses estados mentais constituem as causas ou razões dos comportamentos.

Tomemos, por exemplo, João, que está abrindo a geladeira. Um exemplo de uma explicação psicológica popular do porquê João está abrindo a geladeira seria dizer que João deseja beber um pouco de cerveja e acredita que há cerveja na geladeira.

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Uma característica importante das teorias populares que as distingue das teorias científicas é que elas são tácitas ou implícitas (ao contrário de explícitas). No caso de uma teoria explícita, pode haver algum momento distinto em que uma pessoa aprende uma parte relevante da teoria, como quando se aprende em uma aula de física que E=mc2. Em contraste com esse aspecto da física científica, não há um tempo claramente explícito em que alguém aprende algum aspecto da física popular. Em vez disso, é o tipo de coisa que se pega “por osmose”. Sendo uma teoria popular, podemos esperar que a psicologia popular também não seja adquirida devido ao aprendizado explícito. Talvez seja adquirida implicitamente ou até algo inato.

2.2 O CONTRASTE ENTRE REDUÇÃO E ELIMINAÇÃO

No início deste tópico, discutimos brevemente a importante distinção entre eliminação e redução em termos da diferença entre materialismo eliminativo, por um lado, e um materialismo redutivo, como a teoria da identidade mente-cérebro, por outro. O contraste geral entre redução e eliminação pode ser entendido por referência a dois tipos de relações entre teorias científicas ao longo da história do desenvolvimento de um campo científico. Na ciência, velhas teorias são descartadas em favor de novas teorias. Existem duas relações gerais que podem ser mantidas entre os postulados da velha teoria e os postulados da nova teoria. Um tipo de relação é a redução – os postulados da velha teoria são reduzidos aos postulados da nova teoria. Outro tipo de relação é a eliminação – os postulados da velha teoria são eliminados em favor dos postulados da nova teoria.

Para exemplos de redução e eliminação, podemos recorrer à história da química. Para um exemplo de redução, considere uma teoria antiga que postula a existência de substâncias químicas como oxigênio e hidrogênio e uma teoria mais recente que diz que as substâncias químicas são compostas por átomos que, por sua vez, são compostos por elétrons, nêutrons e prótons. Os postulados da teoria antiga, substâncias químicas, são reduzidos aos postulados da nova teoria, entidades compostas por partículas nucleares (prótons e nêutrons) orbitadas por elétrons. Para um exemplo de eliminação, considere uma teoria antiga que explica a combustão como a liberação rápida do flogisto de um material combustível, como um pedaço de madeira, e uma nova teoria que explica a combustão como uma reação de oxidação altamente energética, uma combinação de oxigênio com um combustível para formar um composto químico. Aqui, o postulado da teoria antiga, o flogisto, é eliminado em favor dos postulados da nova teoria. Os químicos não acreditam mais na existência do flogisto.

Quando os postulados teóricos de uma teoria antiga são eliminados, a nova teoria não postula nem as entidades antigas nem nada a que as entidades antigas possam ser reduzidas. Não há nada na química contemporânea que possa ser considerado plausivelmente como algo ao qual o flogisto pudesse ser reduzido (BRITO, 2008).

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O que significa, então, combinar a ideia de que as crenças são postulados de uma teoria popular –psicologia popular– com a ideia de eliminação de postulados teóricos ao longo da história da mudança da teoria? A ideia resultante é que a psicologia popular será superada por uma teoria superior, que não postula estados mentais nem postula qualquer coisa a que os estados mentais possam ser reduzidos. Que abordagem científica provavelmente será superior à psicologia popular? Uma resposta famosa a essa pergunta – defendida pelo filósofo Paul Churchland (1981; 2004) e pela filósofa Patricia Churchland (1986), entre outros materialistas eliminativos, como Stephen Stich (1983) é que a psicologia popular será superada pelas neurociências.

Caro leitor, você terá uma visão ainda mais clara do materialismo eliminativo quando nos voltarmos para examinar alguns dos principais argumentos que foram elaborados em favor dele.

• Argumentos a favor do materialismo eliminativo da atitude proposicional

Examinaremos três argumentos a favor do materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais. Eles são:

1- A psicologia popular é um programa de pesquisa estagnado.2- A psicologia popular está comprometida com atitudes proposicionais com uma

estrutura sentencial que não é sustentada por pesquisas neurocientíficas.3- A psicologia popular assume compromissos com características de estados mentais

que levam a um epifenomenalismo inaceitável.

Vamos então ao primeiro argumento, que a psicologia popular é um programa de pesquisa estagnado. A psicologia popular existe há milhares de anos. E há muitos aspectos da mente e do comportamento humano dos quais a psicologia popular não está mais perto de ter explicações satisfatórias do que há milhares de anos atrás. A psicologia popular ainda não forneceu nenhuma resposta satisfatória para perguntas como as seguintes:

• Por que os seres humanos e outros animais precisam dormir e por que eles costumam ter sonhos enquanto dormem?

• Por que certos traumas na cabeça resultam em amnésia – perda maciça de memória e incapacidade de aprender novas informações – sem prejudicar a capacidade de falar o idioma?

• Porque algumas pessoas sofrem de formas debilitantes de doenças mentais, como a esquizofrenia?

• Por que você não consegue fazer cócegas em si mesmo?• Porque a lua cheia parece maior quando está mais perto do horizonte do que

quando está mais perto do zênite, mesmo que não haja alteração no tamanho da imagem ótica que atinge o olho ou em uma câmera posicionada da mesma forma?

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Um programa de pesquisa científica é considerado estagnado quando passa um tempo considerável sem fazer progressos significativos na resposta às principais perguntas em seu domínio. Frequentemente, os programas de pesquisa científica são abandonados se seu progresso em responder a perguntas parar por alguns anos. Em comparação, a psicologia popular está ainda mais estagnada, pois está parada há vários milhares de anos (CHURCHLAND, 1986).

Agora vamos ao segundo argumento, de que a psicologia popular está comprometida com atitudes proposicionais com uma estrutura sentencial que não é sustentada por pesquisas neurocientíficas. Esse argumento é muito parecido com o que é discutido no texto complementar sugerido na Unidade 2 – “Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes”, de Kevin D. S. Leyser –, especialmente a parte em que o autor aborda as objeções de partidários do conexionismo contra a hipótese da linguagem do pensamento. De acordo com essa linha de pensamento, a psicologia popular está comprometida com a existência de uma linguagem do pensamento, um compromisso contradito pela neurociência, especialmente a pesquisa neurocientífica inspirada no conexionismo (CHURCHLAND, 1981).

Para ilustrar, considere a atitude proposicional de pensar que a lua é redonda. Aqui, existe uma atitude de pensar e o conteúdo proposicional “a lua é redonda”. De acordo com a hipótese da linguagem do pensamento, pensar que a lua é redonda envolve a utilização de duas representações mentais ou conceitos mentais distintos, um dos quais é uma representação mental da lua e o outro é uma representação mental da redondeza. De acordo com certos proponentes do conexionismo e da neurociência inspirada no conexionismo (CHURCHLAND, 2004), não há boas razões para pensar que haja representações separadas no cérebro, uma para a lua e outra para redondeza. Em vez disso, a lua e a redondeza são representadas de maneira distribuída ou holística. As representações da lua e da redondeza estão espalhadas por um grande número de neurônios, nenhum subconjunto constitui ou dá origem a representações distintas.

Agora vamos ao terceiro argumento, que a psicologia popular assume compromissos com características de estados mentais que levam a um epifenomenalismo inaceitável. A linha de pensamento geral aqui é baseada na suposição de que a ciência tem pouco espaço para postulados que realmente não fazem nada (STICH, 1983). Combine esse princípio geral com um dos argumentos para o epifenomenalismo que discutimos no Tópico 1 desta Unidade, e você tem outro argumento para o materialismo eliminativo. Tomemos, por exemplo, o argumento da exclusão causal-explanatória. Se todo movimento corporal é causado por um estado cerebral ao qual nenhum estado mental é idêntico, então quaisquer estados mentais postulados pela psicologia popular são estados que realmente não fazem nada para produzir comportamento. Em vez disso, os estados do cérebro estão fazendo todo o trabalho. À luz de tais considerações, o materialista eliminativo recomenda que eliminemos qualquer referência ao chamado estado mental na explicação do comportamento.

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• Argumentos contra o materialismo eliminativo da atitude proposicional

Examinaremos quatro linhas de pensamento contra o materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais. Eles são:

1- O materialismo eliminativo é autorrefutador.2- A teoria da "teoria" (TT) é falsa.3- A psicologia popular é indispensável.4- A introspecção revela a existência de atitudes proposicionais.

Comecemos então com o primeiro argumento, de que o materialismo eliminativo é autorrefutador. Os materialistas eliminativos dizem que crenças não existem. Ao dizer isso, eles afirmam "crenças não existem". No entanto, considere o que distingue afirmações de outros tipos de enunciados. Considere o que distingue afirmar que "o gato está no tapete" de imitar ou citar alguém que pronunciou "o gato está no tapete". Plausivelmente, uma das características distintivas da afirmação é que o falante acredita na proposição que sua expressão expressa. Compare isso com imitação ou citação. Eu posso duvidar que haja algum gato em qualquer tapete, mas imitar ou citar alguém dizendo "O gato está no tapete". Para que minha expressão "O gato está no tapete" conte como afirmação, é necessário que eu acredite que o gato está no tapete.

Voltemos agora à afirmação feita pelo materialista eliminativo. Ao afirmar “crenças não existem”, é necessário que ele acredite no que afirma. No entanto, isso requer a existência de pelo menos uma crença, o que contradiz exatamente o que ele está afirmando (REPPERT, 1992). Assim, de acordo com essa linha de pensamento, o materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais, especialmente a atitude proposicional da crença, é autorrefutador.

Certamente, os materialistas eliminativos não precisam renunciar a sua posição diante desse argumento. Em vez disso, eles podem dar conta de afirmações que não exigem a existência de crenças (CHURCHLAND, 1986). Um tipo de maneira pelo qual o materialista eliminativo pode fazer isso é apelando para estados neurais especiais, estados entendidos talvez em termos conexionistas como padrões holísticos de ativação neural, que são requisitos para que o enunciado de um falante conte como uma afirmação, mas não são eles próprios crenças ou qualquer outro tipo de atitude proposicional.

O segundo argumento que vamos analisar é que a teoria da "teoria" é falsa. Vamos nos ater a proposta de que a psicologia popular é uma teoria, é uma teoria da "teoria". A teoria da "teoria", ou TT, para abreviar, é um componente importante de muitos, se não todos, argumentos para o materialismo eliminativo. Uma abordagem que atraiu muitos críticos do materialismo eliminativo foi tentar argumentar contra o TT (WILKES, 1993).

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O termo “Teoria-Teoria” deriva de Adam Morton (1980), que propôs que nossa compreensão cotidiana da psicologia humana constitui um tipo de teoria pela qual tentamos prever e explicar o comportamento em termos de sua causação por crenças, intenções, emoções, traços de caráter e assim por diante. Uma Teoria-Teoria em geral é, portanto, uma proposta para explicar uma certa capacidade psicológica em termos de uma teoria tácita ou explícita internamente representada de um domínio. A Teoria-Teoria dos conceitos, entretanto, vai além da mera alegação de que possuímos tais teorias, dizendo, além disso, que alguns ou todos os nossos conceitos são constituídos por suas conexões essenciais com essas teorias.

NOTA

Se nossa compreensão psicológica popular da mente dos outros não se deve a uma compreensão tácita de uma teoria, a que se deve? Uma proposta oferecida como alternativa à teoria da "teoria" é a teoria da simulação (GOLDMAN, 1992). De acordo com a teoria da simulação, não entendemos os estados mentais uns dos outros por referência a uma teoria sobre tais estados, mas sim simulando esses estados dentro de nós. Então, por exemplo, se eu ver João abrindo  na geladeira, não consulto uma teoria para concluir que ele deseja cerveja e acredita que há cerveja na geladeira. Em vez disso, eu simulo imaginativamente a mim mesmo, abrindo a geladeira, ou seja, "me coloco no lugar de João" e descubro quais estados mentais eu teria se estivesse na posição de João.

Independentemente de se a TT seja melhor ou pior do que a teoria da simulação, opor-se a TT não parece ser uma maneira muito forte de defender a realidade das atitudes proposicionais contra o materialismo eliminativo.

Considere uma analogia. Suponha que se possa demonstrar que ninguém jamais desenvolveu uma teoria que postulava a existência de unicórnios. Mostrar isso não seria uma consideração muito poderosa contra a existência de unicórnios. Apesar da falta de uma teoria de unicórnios, é possível que ainda existam unicórnios. Considere uma analogia diferente. Várias centenas de anos atrás, ninguém jamais havia concebido elétrons e, portanto, ninguém havia desenvolvido nenhuma teoria que postulasse a existência de elétrons. No entanto, elétrons existiram o tempo todo. De fato, os elétrons são anteriores – por muitos bilhões de anos – a qualquer um que tenha a teoria dos elétrons. Dadas essas duas analogias – a analogia relativa aos unicórnios e a analogia relativa aos elétrons – parece razoável generalizar da seguinte maneira: o fracasso em sustentar uma teoria de X é irrelevante para a existência de X, pois o fracasso em sustentar uma teoria de X é consistente tanto com a existência de X (como no caso dos elétrons centenas de anos atrás) quanto com a inexistência de X (como no caso dos unicórnios).

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O terceiro argumento contra o materialismo eliminativo é que a psicologia popular é indispensável. Diferentemente da objeção anterior, que nega que a psicologia popular seja uma teoria, essa objeção concede que a mesma seja uma teoria, mas argumenta que é uma teoria da qual não podemos prescindir: é, em vez disso, indispensável (LAHAV, 1992). Mas para o que é indispensável? O que há de tão bom na psicologia popular? A psicologia popular nos permitiria prever, explicar e entender o comportamento uns dos outros de uma maneira que simplesmente não poderíamos prescindir.

Para que essa objeção funcione, não basta obtermos boas previsões e explicações da psicologia popular. É preciso mostrar que as virtudes da psicologia popular são tais que simplesmente não poderíamos viver sem ela. É preciso demonstrar que, por exemplo, não haverá uma futura teoria neurocientífica que explique de maneira mais simples, elegante e poderosamente o comportamento do que a psicologia popular. É difícil investir em uma previsão sobre o que nunca acontecerá no futuro. Quem sabe o que o futuro trará?

Finalmente, o quarto argumento contra o materialismo eliminativo é que a introspecção revela a existência de atitudes proposicionais. Por exemplo, tente responder a seguinte pergunta, qual é a melhor evidência de que há uma mobília perto de você? Indiscutivelmente, a melhor evidência é que você pode percebê-la– você pode ver ou sentir que há uma cadeira, mesa ou escrivaninha perto de você. Não parece depender de nenhuma teoria sofisticada saber que você está sentado em uma cadeira agora. Você pode simplesmente olhar e ver que você está sentado. Muitos filósofos consideram a introspecção como um importante análogo à percepção (KEELEY, 2006) – teremos muito mais a dizer sobre percepção na segunda parte deste tópico.

Assim como a percepção é um indicador altamente confiável da existência de seus objetos – objetos como os objetos materiais visíveis e tangíveis em nosso ambiente imediato –, a introspecção é um indicador altamente confiável da existência de seus objetos. Quais são os "objetos" da introspecção? Plausivelmente, eles são os estados mentais que os materialistas eliminativos desejam eliminar – crenças, desejos etc.

Alguns críticos do materialismo eliminativo consideram a introspecção uma base muito mais forte em favor das atitudes proposicionais do que qualquer argumento inspirado pela neurociência contra atitudes proposicionais (KEELEY, 2006). Uma maneira de pensar nessa suposta oposição entre introspecção e teoria neurocientífica é que ela é análoga a uma suposta oposição entre a física moderna e o senso comum sobre se objetos como rochas, árvores, mesas e cadeiras são sólidos. O senso comum diz que eles são sólidos e nossa melhor evidência de sua solidez é perceptiva – nós os pressionamos e sentimos que, ao contrário de um gás ou um líquido, eles resistem à pressão que aplicamos a eles. Nossa mão simplesmente não passa. No entanto, a física moderna nos diz que um objeto chamado sólido é, na verdade, principalmente espaço vazio. A maior parte da massa de uma rocha é restrita aos núcleos dos átomos que compõem a rocha – e comparado ao volume absorvido pelos núcleos atômicos, o volume do restante da

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rocha é vasto. Então, isso significa que a ciência moderna contradiz o senso comum e a deliberação da percepção? Isso significa que os chamados objetos sólidos não são realmente sólidos? Não necessariamente. Isso ocorre porque, sem dúvida, a maneira correta de interpretar a relação entre percepção e ciência quando se trata de rochas etc. não é que a percepção esteja incorreta quando as percebemos como sólidas, ou que a ciência esteja incorreta quando diz que as rochas são principalmente espaço vazio, mas em vez disso, a mesma coisa pode ser sólida e ao mesmo tempo ter espaço vazio.

Mas como pode ser isso? Como uma rocha pode ser ao mesmo tempo sólida e em sua maior parte espaço vazio? O truque é interpretar a “solidez” de um objeto de uma maneira que não implique que o objeto não esteja vazio na totalidade de seu volume. Talvez, então, uma reconciliação semelhante possa ser feita entre introspecção e neurociência. No entanto, vai além do espaço disposto aqui neste livro para fornecer um relato de como pode ser essa reconciliação.

Se você, caro acadêmico, quiser aprofundar seu conhecimento sobre essa reconciliação, entre a solidez dos objetos e o espaço vazio, na ciência moderna, sugerimos a leitura do livro O Tao da Física, de Fritjof Capra (2013).

DICAS

2.3 MATERIALISMO ELIMINATIVO DO QUALIA

Passaremos do materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais para o materialismo eliminativo sobre a consciência fenomenal. A consciência fenomenal é “aquilo que dá um aspecto subjetivo ou qualitativo aos estados mentais” (RODRIGES FILHO, 2017, p. 6). É o “como é” (whatislike) experienciar certos estados mentais (NAGEL, 1974). Os casos mais claros de consciência fenomenal estão mais intimamente associa-dos à percepção sensorial. Muita discussão filosófica contemporânea da consciência fe-nomenal é conduzida em termos de qualia, as qualidades subjetivas de nossos estados conscientes, especialmente estados conscientes de percepção sensorial.

Aqui, examinaremos um caso de materialismo eliminativo sobre qualia, especialmente porque esse caso foi desenvolvido pelo filósofo Daniel Dennett (1988) em seu artigo, Quining Qualia (Quinear o Qualia). O verbo "quinear" é uma palavra que Dennett inventou de modo jocoso em dedicação ao filósofo Willard van Orman Quine (1908-2000). A definição de Dennett (1988) é que quinear seria o mesmo que negar resolutamente a existência ou importância de algo real ou significativo.

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A forma geral do argumento de Dennett (1988) contra a existência de qualia pode ser esboçada da seguinte maneira:

• Premissa 1: Se existem qualia, são coisas que possuem propriedades W, X, Y e Z.• Premissa 2: Nada possui as propriedades W, X, Y e Z.• Conclusão: Qualia não existe.

Para preencher esse argumento, precisamos de respostas para duas perguntas. Primeiro, quais são as propriedades tradicionalmente atribuídas aos qualia? Segundo, quais são as razões de Dennett para pensar que nada tem essas propriedades?

Quais são as propriedades tradicionalmente atribuídas aos qualia? Segundo Den-nett (1988), o relato tradicional dos qualia sustenta que eles têm uma essência quádrupla. Qualia deveria (1) ser inefável, (2) intrínseco, (3) privado e (4) diretamente conhecido.

Ser inefável significa ser indescritível ou inexprimível na linguagem. Se seus qualia são inefáveis, não é possível contar a ninguém como são seus qualia.

Ser intrínseco é mais bem compreendido em contraste com ser extrínseco. Uma propriedade extrínseca é uma propriedade relacional – uma propriedade definida em termos de relações.

Por exemplo, a propriedade de ser pai é uma propriedade extrínseca. Para ser pai, você deve estar relacionado a outra pessoa de tal maneira que ela conte como seu filho. Em contraste, então, propriedades intrínsecas (se houver alguma) são supostamente possuídas por um objeto, independentemente de quaisquer relações que ele tenha com qualquer outro objeto.

A alegada inefabilidade e intrinsecabilidade dos qualia desempenham um papel importante no clássico experimento mental de espectro invertido. Se Inês e Noemi podem ser exatamente iguais em seus comportamentos verbais e não verbais enquanto diferem em seus qualia, parece que estes devem ser inefáveis e intrínsecos. Eles seriam inefáveis porque tudo o que Inês diz sobre seus qualia vermelhos é exatamente o que Noemi diria sobre seus qualia verdes e, portanto, as palavras delas não podem transmitir como é ter um tipo de qualia em vez do outro. E os qualia seriam intrínsecos porque as relações que, por exemplo, os comportamentos de Inês estabelecem com seu ambiente e seus próprios estados corporais são exatamente as mesmas que as relações concernentes a Noemi. Como Inês e Noemi são exatamente as mesmas em termos de relações, os qualia devem ser algum aspecto não relacional e, portanto, intrínseco de suas vidas mentais.

O experimento mental de espectro invertido referente a Inês e Noemi também nos permite ilustrar a privacidade e o conhecimento direto dos qualia. Ambos os aspectos dos qualia têm a ver com o conhecimento dos qualia. A afirmação de que os qualia são privados é a afirmação de que somente você pode ter conhecimento dos seus qualia. Se

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outras pessoas, assim como você, pudessem saber sobre seus qualia, eles seriam públicos, e não privados. Às vezes, a suposta privacidade dos qualia é discutida em termos do que é acessível apenas do ponto de vista da primeira pessoa, em contraste com itens como objetos físicos que são acessíveis do ponto de vista da terceira pessoa. Outro contraste estreitamente relacionado usado para diferenciar os qualia do resto do universo é que eles são subjetivos, enquanto planetas, átomos, rochas e árvores são objetivos.

A alegação de que os qualia são diretamente conhecíveis é a alegação de que seu conhecimento deles não é de forma alguma mediado. Compare isso com a maneira como sabemos sobre postulados teóricos científicos, como os elétrons. Esse conhecimento é mediado por certos instrumentos, bem como por uma teoria científica que nos ajuda a entender o que as leituras dos instrumentos têm a ver com elétrons. Em contraste, supostamente, você não precisa compreender nenhuma teoria para ter conhecimento de seus próprios qualia. Esse contraste deve lembrá-lo de nossa discussão do Tópico 2 da Unidade 2, do contraste entre o que pode ser conhecido por descrição versus o que só pode ser conhecido por conhecimento experiencial ou por familiaridade.

Vamos nos voltar agora para transmitir um pouco do sabor dos argumentos de Dennett (1988) contra qualquer coisa que responda à descrição que a tradição atribui aos qualia.

Uma parte importante da alegação tradicional sobre a intrinsecabilidade dos qualia é que eles têm suas propriedades independentemente de quaisquer relações que tenham com atitudes proposicionais, como os pensamentos que possamos ter sobre nossas experiências sensoriais. Dennett introduz um experimento mental para colocar dúvidas sobre isso. É seu experimento mental do experiente bebedor de cerveja. Muitas pessoas que gostam de beber cerveja alegam que não gostaram quando a provaram pela primeira vez. Só mais tarde, após várias tentativas, torna-se um gosto adquirido.

Considere, agora, o sabor qualificado associado ao sabor da cerveja quando a experimentaram pela primeira vez. É esse o gosto que eles passaram a apreciar? É bastante tentador responder "não, se a cerveja ainda tivesse o mesmo gosto eles ainda não gostariam". Isso parece mostrar que atitudes proposicionais, tão desejáveis ou gostosas em tais e tais casos, são relevantes para o aspecto subjetivo de um estado sensorial agradável. Contudo isso parece pôr em dúvida que os qualia são propriedades intrínsecas. Um quale não pode ser uma propriedade intrínseca de uma experiência se a experiência tiver essa propriedade depende de relações que a experiência carrega com uma ou mais atitudes proposicionais.

Outro experimento mental de Dennett (1988) visa à afirmação de que os qualia são diretamente conhecidos. Esse é o experimento mental de Chase e Sanborn – dois provadores de café que trabalham na Maxwell House (uma marca norte-americana de café) há muitos anos. Um dia, Chase anuncia que chegou a não gostar mais do sabor do café Maxwell House. Além disso, Chase afirma que o café tem o mesmo gosto para

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ele, mas que ele simplesmente não gosta mais desse sabor. Sanborn afirma ter passado por uma mudança semelhante, pois não gosta mais de tomar café Maxwell House. No entanto, ele faz uma reivindicação adicional que parece conflitar com a de Chase. Enquanto Chase afirma que o sabor é o mesmo e ele simplesmente não gosta mais dele, Sanborn afirma que o sabor mudou. Sanborn diz que, se o sabor permanecesse o mesmo, ele ainda apreciaria o café, porque o que ele gostava era o sabor original do café quando ele foi contratado pela primeira vez.

Podemos colocar as principais reivindicações de Chase e Sanborn em termos de qualia. Chase está alegando que seus qualia associados ao café permaneceram os mesmos. O que mudou foram apenas os julgamentos de Chase sobre seus qualia. Ele costumava julgar esses qualia como agradáveis. Agora ele os considera desagradáveis. Por outro lado, Sanborn afirma que seus qualia mudaram. Sanborn julga seus antigos qualia como agradáveis e os novos como não agradáveis.

Dennett (1988) nos convida a refletir sobre como alguém – Chase, Sanborn ou qualquer um – poderia descobrir qual dos dois provadores (se é que algum deles está certo) está certo sobre como as coisas são em relação a seus qualia e seus julgamentos sobre eles.

Suponha que exista algum fato sobre qual provador esteja certo e, além disso, algum teste empírico para verificar isso. Talvez esse teste empírico envolva o escaneamento de diferentes partes dos cérebros dos provadores em momentos diferentes para verificar se há alterações nas respostas cerebrais sobre o sabor do café ou apenas mudanças nas áreas cerebrais para os juízos em si mesmo. Observe, no entanto, que, se confiarmos nesses testes para resolver qual dos dois provadores fez as reivindicações corretas, abandonaríamos a alegação de que os qualia são diretamente conhecidos. Parece, em vez disso, que o conhecimento do que está acontecendo é alcançado através do meio indireto de escaneamento cerebral.

Os argumentos de Dennett (1988) envolvem muito mais experiências mentais do que as que analisamos aqui. No entanto, vimos algumas das considerações de Dennett quanto à opinião de que nada pode ter todas as propriedades tradicionalmente atribuídas aos qualia. Dennett recomenda um materialismo eliminativo sobre os qualia – os qualia não existem.

As ideias de que não existem atitudes proposicionais nem qualia são tão estranhas que parecem perversas ou como algum tipo de piada de mau gosto. Pelo menos, é assim que alguns filósofos reagiram a vários tipos de materialismo eliminativo (NAGEL, 1974; LAHAV, 1992). No entanto, o materialismo eliminativo é uma posição que deve ser tratada de uma maneira ou de outra na filosofia da mente, especialmente pelos filósofos que sustentam que a base para afirmar a existência de fenômenos psicológicos deve, em última análise, ser fundamentada em fatos científicos. Devemos levar a sério a possibilidade de que – talvez – a ciência anule nosso senso comum e ideias filosóficas sobre mentes.

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Muito bem, caro leitor, agora que já falamos sobre o materialismo eliminativo e sua relação com alguns estados mentais, como as atitudes proposicionais, vamos a outro tema importante para a filosofia da mente, a questão de estados mentais como a percepção, a imagem mental e a emoção.

3 PERCEPÇÃO, IMAGEM MENTAL E EMOÇÃO

Dois tipos de estado mental dominam a discussão na filosofia da mente – pensamentos e sensações. No entanto, esses não são os únicos tipos de estado mental. Percepções, imagens mentais e emoções são outros exemplos importantes de estados mentais. Existem problemas filosóficos interessantes associados a esses outros tipos de estado. Vamos agora analisar cada um deste três estados mentais.

3.1 PERCEPÇÃO

O problema filosófico da percepção é o problema de explicar quais são os objetos da percepção (CRANE, 2017). Os objetos de percepção são aquelas coisas que percebemos quando percebemos “algo”. Perguntas interessantes sobre objetos envolvem fenômenos semelhantes à percepção – fenômenos mentais que não são percepções, apesar de certas semelhanças.

Exemplos de tais fenômenos incluem ilusões, sonhos e alucinações, mas quais são os objetos de ilusões, sonhos e alucinações? Esta questão é abordada nas várias versões do argumento da ilusão clássico. Nesta seção, examinaremos a visão de senso comum da percepção e seus objetos, as dificuldades levantadas pelo argumento da ilusão e algumas das principais respostas filosóficas a essas dificuldades.

3.1.1 Realismo direto e o argumento da ilusão

Considere um caso típico de perceber alguma coisa. Suponha que você veja um lápis em cima de uma mesa a sua frente. Quais são os objetos de percepção neste caso? Ou seja, quais são as coisas que são percebidas? Em uma visão sobre como responder a uma pergunta desse tipo, uma visão à qual os filósofos costumam se referir como realismo direto, os objetos são os objetos independentes da mente que comumente nós percebemos (BONJOUR; BAKER, 2010). Nesse caso, os objetos de percepção são o lápis e a mesa. O que faz do realismo direto uma versão do realismo é a afirmação de que os objetos da percepção são independentes da mente. O realismo direto se opõe a visões, como o idealismo, que negam que percebamos qualquer coisa independente da mente.

O que é direto sobre o realismo direto é que ele nega que objetos independentes da mente sejam percebidos indiretamente. Ele nega que os objetos independentes da mente são percebidos primeiramente ao percebermos alguma entidade dependente

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da mente (BONJOUR; BAKER, 2010). Assim, opõe-se a visões, como versões da teoria dos dados dos sentidos (sense datum) – versões conhecidas como realismo indireto ou realismo representativo –, que sustentam que o que percebemos diretamente são entidades dependentes da mente – dados dos sentidos.

Muitos filósofos pensaram que o realismo direto tem um problema ao lidar com ilusões de percepção, como sonhos, alucinações e ilusões propriamente ditas (CRANE, 2017). A ideia de que o realismo direto não pode explicar ilusões motiva uma famosa linha de pensamento contra o realismo direto – o argumento da ilusão.

Para simplificar a discussão, usaremos "ilusão" aqui para nos referir a uma classe muito mais ampla de casos do que aqueles que seriam considerados de fato ilusões. Estritamente falando, nem um sonho nem uma alucinação são uma ilusão. Existem diferenças importantes entre os sonhos, alucinações e ilusões propriamente ditas. Alucinações são uma ocorrência anormal, frequentemente associada a doenças mentais e intoxicações. Por outro lado, nem sonhos nem ilusões são anormais. A maioria das pessoas sonha todas as noites como uma parte saudável de seu ciclo do sono. E as ilusões são típicos resultados de sistemas perceptivos em funcionamento normal. Não há nada anormal ou com defeito no sistema visual quando você olha para uma ilusão de ótica e duas figuras que são realmente do mesmo tamanho aparecem de tamanhos diferentes. Uma outra diferença entre esses fenômenos marca um contraste entre as ilusões perceptivas por um lado, e alucinações e sonhos, por outro. No caso de alucinações e sonhos, pode-se alucinar ou sonhar algo que não existe, como um porco alado ou um elefante rosa. Por outro lado, as ilusões não envolvem a percepção aparente de uma coisa inexistente, mas a percepção de uma coisa existente como tendo algumas características que ela realmente não possui, como quando alguém percebe uma vara reta como dobrada.

Apesar das principais diferenças, sonhos, alucinações e ilusões propriamente ditas são curiosamente semelhantes entre si. E esses estados são curiosamente semelhantes às percepções, especialmente em seus aspectos subjetivos ou fenomenais. Além disso, há uma diferença interessante entre percepções e ilusões. Enquanto as percepções são “factivas” – você pode perceber que há um gato em um tapete apenas se, de fato, realmente houver um gato no tapete – as ilusões não são factivas. Você pode sonhar, alucinar ou ficar com a ilusão de que há um gato em um tapete, mesmo quando não há gato, tapete ou gato em um tapete.

Existem duas alegações importantes sobre ilusões que servem como premissas-chave no argumento da ilusão (CRANE, 2017). A primeira é que as ilusões são subjetivamente ou fenomenalmente semelhantes às percepções. Essa primeira afirmação pode ser apresentada em termos da maneira como as coisas se parecem ao sujeito de uma ilusão. Ao passar pela ilusão de um gato em um tapete, a maneira como as coisas se parecem para você pode ser exatamente como as coisas se parecem quando realmente há um gato no tapete e você está percebendo isso.

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A segunda premissa-chave é que, nas ilusões, você está ciente de alguma coisa (CRANE, 2017). Isso é verdade mesmo no caso de uma alucinação total de um animal inexistente, como um unicórnio. Mesmo que não exista um unicórnio, existe algo do qual você está cônscio. Não é como se você não tivesse consciência de nada. Um caso de não ter consciência de nada seria mais bem considerado como um caso de inconsciência, como quando alguém está em coma ou em um sono profundo e sem sonhos.

Com esses dois pontos-chave em mãos, o proponente do argumento da ilusão passa a fazer um terceiro ponto, um ponto que pode ser visto como uma explicação de por que os dois primeiros pontos seriam verdadeiros. Se, como diz o segundo ponto, mesmo em alucinações completas, você deve estar ciente de algo e, como diz o primeiro ponto, a percepção precisa e o caso ilusório impreciso são subjetivamente os mesmos, então (terceiro ponto) o que é o mesmo em ambos os casos é algo subjetivo, ou seja, algo mental ou dependente da mente (CRANE, 2017). Em um sonho ou uma alucinação de um bode de oito cabeças, você não está ciente de um bode de oito cabeças, pois não existe tal coisa para você estar ciente, mas você ainda está ciente de alguma coisa. O que é essa alguma coisa? É uma entidade dependente da mente – é a ideia ou imagem mental de um bode de oito cabeças.

O argumento da ilusão pode ser usado alternadamente como argumento contra o realismo direto ou como argumento a favor de uma das alternativas ao realismo direto, como o realismo indireto e o idealismo. Na próxima seção, examinaremos várias teorias filosóficas da percepção, teorias que diferem na maneira como lidam com os problemas levantados pelo argumento da ilusão. Algumas dessas teorias são versões do realismo direto. Os defensores de tais teorias veem o argumento da ilusão como falho. Outras teorias veem o principal impulso do argumento da ilusão como essencialmente correto (FISH, 2010).

3.1.2 Teorias filosóficas da percepção

A afirmação central que distingue as teorias filosóficas da percepção diz respeito ao que são os objetos da percepção (FISH, 2010). Quando você percebe, o que você percebe? Você só percebe ideias em sua mente? Você percebe objetos físicos externos a sua mente? Ou você percebe alguma combinação de ideias e objetos externos? Há também interesse filosófico na natureza da relação entre o percebedor e o objeto percebido. A relação que você mantém com os objetos perceptivos é direta? Ou é indireta? Antes de nos voltarmos para as teorias distintas que diferem em relação aos objetos de percepção, consideraremos algumas observações gerais sobre a natureza da relação perceptiva.

Uma coisa que é especialmente interessante sobre a relação perceptiva – a relação entre um percebedor e uma coisa percebida – é a maneira como parece distinguir estados perceptivos de outros estados mentais, como estados de pensamento (FISH, 2010). O que serve para distinguir pensar que há um lápis em cima de uma mesa de

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perceber que há um lápis em cima de uma mesa? Considere, primeiro, os casos em que o lápis e a mesa em questão realmente existem. Pode-se argumentar que há muito mais restrições à percepção do que ao pensamento.

No caso da percepção, a mesa e o lápis devem estar suficientemente perto do observador para exercer alguma influência causal sobre o observador. Além disso, a influência causal deve ser de um tipo que envolva os órgãos perceptivos do observador. Por exemplo, o lápis em cima da mesa deve estar suficientemente próximo para fazer com que o observador o veja com os olhos, sinta com a pele ou ouça com os ouvidos, e assim por diante. Em contraste, parece não haver uma restrição causal semelhante ao pensamento. Suponha que, enquanto viajo, deixo acidentalmente meu lápis favorito na mesa de um amigo e não me lembro de sua localização até vários dias depois e a milhares de quilômetros de distância. Mesmo que eu esteja muito distante para que o lápis tenha algum efeito nos olhos, ouvidos etc., isso não impede o pensamento sobre o lápis e o fato de ele estar sobre uma mesa.

Passaremos agora a examinar quatro teorias filosóficas da percepção que lidam com as preocupações levantadas pelo argumento da ilusão. As quatro teorias são o realismo indireto, o idealismo e duas versões de realismo direto: o intencionalismo e o disjuntivismo. Existem várias questões importantes que servem para definir essas teorias. Podemos representar esses problemas em termos de três perguntas.

• Primeira pergunta: ao ter uma percepção acurada que o senso comum descreve como a percepção de uma coisa independente da mente, alguém realmente está ciente de uma coisa independente da mente? O idealismo responde "não", mas as outras três teorias respondem "sim".

• Segunda pergunta: a afirmação no centro do argumento da ilusão – a afirmação de que existe uma semelhança substancial entre estados perceptivos e estados ilusórios – está correta? O disjuntivismo responde "não", mas as outras três teorias respondem "sim".

• Terceira pergunta: A despeito de saber se alguém está, ao perceber, consciente de algo independente da mente, será que este alguém está consciente de algo que depende da mente? Tanto o realismo indireto quanto o idealismo dizem "sim" e o intencionalismo e o disjuntivismo dizem "não".

O realismo indireto afirma que de fato percebemos objetos independentes da mente, como rochas e árvores. No entanto, insiste em que o fazemos apenas indiretamente (FISH, 2010). Para você ter uma ideia mais aprofundada dessa afirmação sobre a indiretividade perceptiva, sugiro considerar uma analogia. Considere o que acontece quando você vê alguém na televisão ou no espelho. Você percebe essa pessoa, mas apenas como consequência da percepção da imagem na tela da televisão ou no espelho. Sua percepção da pessoa é mediada – é mediada pela percepção da imagem.

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Por analogia, na visão realista indireta da percepção, quando você percebe um objeto independente da mente como uma árvore, sua percepção é mediada por uma percepção ou consciência de uma entidade dependente da mente, uma entidade conhecida como um “dado dos sentidos” (sense datum, ou no plural, sense data), “ideia” ou “representação mental”.

Dado que o que estamos diretamente cientes nessa visão é um objeto dependente da mente, surge a questão de como conseguimos ter consciência de um objeto independente da mente. Talvez uma maneira de pensar no processo de tornar-se consciente de um objeto independente da mente seja por analogia a um certo tipo de inferência científica sobre a existência de entidades não observadas, como partículas microscópicas ou o núcleo da Terra. Os cientistas coletam evidências observando o comportamento de seus dispositivos de medição e outros instrumentos científicos. Então, com base nas evidências que eles coletam, inferem a existência de entidades não observadas. Tais entidades não observadas são postuladas como as causas dos comportamentos observáveis dos instrumentos dos cientistas. Por analogia, na visão realista indireta da percepção, nossas evidências sobre o mundo externo às nossas mentes vêm na forma de ideias ou dados dos sentidos dos quais estamos diretamente conscientes, e inferimos a existência de objetos independentes da mente que são as causas desses dados sensoriais.

Se o realista indireto está propondo que estamos cientes dos objetos independentes da mente apenas realizando algum tipo de inferência ou suposição educada, então o realista indireto se torna vulnerável a um tipo de preocupação cética (CRANE, 2017). O cético em relação ao mundo externo nega que possamos ter conhecimento do mundo externo. A preocupação cética que surge para o realismo indireto é que, se nosso acesso ao mundo externo é mediado por uma consciência dos dados dos sentidos, então surge a possibilidade de que o mundo externo não seja exatamente o que inferimos. Os dados dos sentidos que representam o mundo externo podem representá-lo incorretamente e, portanto, não saberíamos o que realmente está acontecendo em virtude de nossas percepções. Se você está inclinado a rejeitar o ceticismo em relação ao mundo externo, pode estar igualmente inclinado a rejeitar o realismo indireto, uma vez que, sem dúvida, leva a esse ceticismo.

Como grande parte do Tópico 3 da Unidade 2 dizia respeito a idealismo, não vamos gastar muito tempo discutindo isso no presente Tópico. O principal a observar aqui sobre o idealismo como teoria da percepção são suas principais semelhanças e diferenças com as outras teorias, especialmente com o realismo indireto. O idealismo é semelhante ao realismo indireto, pois ambos negam a percepção direta de objetos independentes da mente. O idealismo é diferente do realismo indireto (e das outras teorias discutidas aqui) ao negar a existência de objetos independentes da mente (CRANE, 2017).

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O intencionalismo (uma versão do realismo direto) é assim chamado porque vê estados perceptivos semelhantes a outros estados intencionais (FISH, 2010), isto é, estados que exibem intencionalidade ou aboutness (um tema central a ser abordado no próximo Tópico desta Unidade). Um exemplo central de um estado intencional é uma crença. Crenças podem ser verdadeiras ou falsas. O intencionalismo sustenta que tanto os estados ilusórios quanto as percepções precisas (acuradas) são o mesmo tipo de estado, um certo tipo de estado intencional (embora não necessariamente um tipo de crença). De acordo com o intencionalismo, a principal diferença entre um estado ilusório e uma percepção acurada é que um é falso e o outro é verdadeiro.

Uma semelhança entre intencionalismo e realismo indireto é que ambos explicam parcialmente a percepção em termos de representações mentais que representam um objeto independente da mente. A principal diferença entre intencionalismo e realismo indireto é que não é um requisito para o intencionalismo que essa representação mental seja algo que você esteja ciente ao perceber.

Lembre-se de que uma das queixas levantadas contra o realismo indireto era que parecia levar ao ceticismo do mundo externo. Uma queixa semelhante surge contra o intencionalismo.

No cerne do disjuntivismo (outra versão do realismo direto) está a negação de que exista profunda semelhança entre percepções acuradas e estados ilusórios (FISH, 2010). Essa negação serve para bloquear uma das principais premissas do argumento da ilusão, uma premissa concernente a uma suposta similaridade entre estados perceptivos e ilusórios. O realista indireto afirma tal semelhança e postula que o que é semelhante entre os dois casos é que ambos envolvem uma consciência direta de uma entidade dependente da mente. O disjuntivismo nega tal semelhança. O disjuntivismo recebe o nome devido a uma disjunção–que é uma afirmação que utiliza o operador lógico “ou-ou”, ou isso ou aquilo. A disjunção central que define o disjuntivismo é uma afirmação “ou-ou” referente aos tipos de estado mental que podem ser considerados subjetivamente indistinguíveis e semelhantes à percepção. Esse estado é “ou” uma percepção acurada “ou” um estado ilusório. O disjuntivista nega que deva haver uma semelhança mais profunda entre esses estados subjetivamente indistinguíveis e caracterizados disjuntivamente.

3.2 IMAGENS MENTAIS

Na seção anterior você pode ler sobre as comparações entre percepções acuradas e estados ilusórios semelhantes à percepção, como alucinações, sonhos e ilusões propriamente ditas. Nesta seção, discutiremos problemas filosóficos que surgiram em torno de uma classe distinta de estados semelhantes à percepção –as imagens mentais.

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As imagens mentais abrangem uma gama de vários fenômenos. Vamos nos concentrar primeiro nas imagens mentais visuais (THOMAS, 2019). Um exemplo é imaginar uma cena fantasiosa com os olhos fechados. Por exemplo, feche os olhos e imagine uma girafa pulando em um trampolim. Outro tipo de imagem mental visual, desta vez com os olhos abertos, é ver faces nas nuvens ou nos padrões de grãos de madeira. Este último tipo de fenômeno é conhecido como pareidolia.

Exemplos de imagens mentais visuais incluem os tipos de fenômenos mentais que podemos descrever como "imaginar algo na cabeça" ou "examinar algo com o olho da mente". O termo “imagem mental” parece, portanto, especialmente adequado para estados de natureza visual. No entanto, também existem casos de imagens mentais associadas a modalidades sensoriais além da visão (THOMAS, 2019). Exemplos incluem casos em que se imagina um som ou um odor. Os casos não visuais de imagens, portanto, incluem casos como imagens olfativas, auditivas e assim por diante.

Existem vários problemas filosóficos que surgem em conexão com imagens mentais (THOMAS, 2019). Uma questão filosófica diz respeito às relações entre imagens mentais e estados mentais, como perceptos e pensamentos. Um conjunto de relações discutidas são relações de similaridade e diferença. Quão semelhantes, por exemplo, são imagens mentais e percepção? Quão semelhantes são imagens mentais e pensamentos? Outro conjunto de relações inclui relações de origem. Os pensamentos se originam dos sentidos através de um processo de formação de imagens? Outra questão que intrigou os filósofos é a questão de como as imagens mentais são realmente. Imagens reais, como fotografias, se assemelham ao que representam. As imagens mentais são semelhantes a fotografias dessa maneira? Sua imagem mental de um cachorro se assemelha a um cachorro? Vamos examinar mais de perto algumas dessas questões filosóficas relacionadas às imagens mentais.

3.2.1 Quão semelhantes são as imagens mentais com outros estados mentais?

Existem dois tipos de estado mental que os filósofos têm se interessado especialmente em comparar com imagens mentais – percepções e pensamentos. Vamos primeiro examinar as comparações entre imagens e percepções (THOMAS, 2019). De um ponto de vista, as percepções e as imagens mentais são altamente semelhantes e diferem em apenas alguns aspectos. Uma das principais diferenças citadas é que, embora a percepção de um gato precise ser causada por um gato próximo, uma imagem mental de um gato não precisa ser causada de maneira semelhante. Mesmo que seja verdade que eu possa ter algum contato causal passado com gatos para poder formar uma imagem mental de um agora, ainda posso imaginar um gato agora, mesmo que nenhum gato real esteja à vista.

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Outro contraste entre imagens e percepções é que, por exemplo, imagens de gatos e não percepções de gatos podem ser lembradas à vontade (CRANE, 2017). Se não houver um gato por perto, não posso simplesmente decidir ver um, mas posso imaginar um.

Ainda outro contraste que alguns filósofos citaram ao diferenciar imagens mentais e percepções é que as percepções são mais claras ou vívidas do que as imagens mentais (FISH, 2010). A imagem mental de uma dor não parece nem de longe tão intensa, vívida ou clara quanto uma dor real. Quando se imagina vendo uma rosa vermelha ou mordendo uma fatia de limão, a imagem não parece tão animada quanto a percepção que você tem ao ver a vermelhidão de uma rosa real ou provar o sabor ácido do suco de limão real em sua boca.

Deve-se notar que essas afirmações sobre a distinção entre percepções e imagens mentais não são totalmente incontroversas. Plausivelmente, existem contraexemplos às generalizações feitas. Por exemplo, algumas imagens mentais parecem altamente vívidas e não estão sob o controle direto da vontade. Um exemplo ocorre quando uma pessoa tem uma imagem muito forte que simplesmente não consegue tirar da cabeça.

3.2.2 As imagens mentais são a base para estados mentais como os pensamentos?

Uma classe especialmente central e importante de estados mentais são os pensamentos, exemplos dos quais incluem estados de pensamento, julgamento e crença. Uma visão sobre a relação entre imagens e pensamento, especialmente prevalente entre empiristas como Berkeley (1996) e Hume (1984), é que as imagens sensoriais são a base do pensamento. Essa teoria imaginária do pensamento se encaixa muito bem na visão empirista de que não há nada na mente que não esteja primeiro nos sentidos. De acordo com a visão empirista da origem dos pensamentos, o tipo primário de estado mental é a impressão sensorial – o tipo de estado em que você se encontra quando vê uma rosa vermelha ou sente um balde frio de água. Depois de passar por um episódio sensorial, você ainda pode se lembrar de cópias fracas e menos vívidas das impressões sensoriais. Essas cópias fracas são ideias ou imagens.

Essas ideias podem ser combinadas para formar ideias novas e complexas. Assim, por exemplo, depois de ver cavalos e chifres, é possível combinar as ideias simples relevantes para formar a ideia complexa de um cavalo com chifres – um unicórnio. Nessa visão empirista da operação da mente, as impressões sensoriais são a base original para outros estados mentais e, quando cópias de impressões – imagens – são reacendidas na mente, essas imagens servem como base para o pensamento. Então, quando você pensa que existe um objeto triangular a sua frente ou acredita que deixou o fogão aceso em casa, esses estados mentais são realmente uma forma de imagens mentais, imagens de triângulos, fogões etc.

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3.2.3 Até que ponto, se houver, as imagens mentais são genuinamente imaginárias ou semelhantes a fotografias?

Um componente-chave da visão de muitos filósofos sobre imagens mentais – incluindo as que acabamos de atribuir a certos empiristas – é a visão de que as imagens mentais são literalmente um tipo de imagem ou fotografia (THOMAS, 2019). A parte crucial de afirmar que algo é literalmente uma imagem é que isso afirma que este algo se assemelha às coisas que representa. Para ilustrar, considere um desenho ou uma fotografia de um triângulo azul. Em um exemplo típico, a imagem de um triângulo azul terá em si um triângulo azul. Assim, a imagem se assemelha à coisa retratada. Uma imagem que contenha apenas um círculo vermelho seria uma imagem ruim de um triângulo azul.

Contraste essa maneira que as fotografias representam da mesma maneira que os itens linguísticos, como palavras e frases escritas e faladas. A palavra "verde" não precisa ser impressa em tinta verde para representar a cor que ela possui. E mesmo que a palavra "microscópico" seja maior que a palavra "grande", isso não impede que ela represente coisas muito pequenas. Podemos resumir essas observações dizendo que as fotografias representam coisas em grande parte parecidas com elas. Em contraste, outras representações, especialmente símbolos linguísticos, não precisam se parecer com o que representam.

Os empiristas que mencionamos anteriormente sustentavam que as ideias– imagens mentais – eram literalmente semelhantes a imagens, pois se pareciam com o que representavam. Nesta visão, uma ideia se assemelha ao item do qual é uma ideia. Segundo Berkeley (1996), a ideia de um triângulo tinha que ser triangular. Sendo ela mesma triangular e representando por meio de semelhanças, só poderia representar os triângulos com os quais se assemelhava. Portanto, uma ideia triangular equilateral não era adequada para representar triângulos como os triângulos retângulos que não são equilaterais.

Muitos filósofos tornaram-se bastante céticos em relação à ideia de que as imagens mentais representam por semelhança, especialmente se as imagens deveriam servir de base para os pensamentos (THOMAS, 2019). Parece claro que podemos ter pensamentos negativos, como o pensamento de que não há gatos na sala. Também parece claro que podemos ter pensamentos abstratos, como um pensamento sobre triângulos em geral que não trata de um triângulo específico ou particular. No entanto, representações pictóricas parecem inadequadas para representar assuntos negativos e abstratos. É totalmente obscuro, por exemplo, o que serviria como uma imagem de não haver gatos na sala, em oposição a uma imagem de não haver cães na sala. A imagem de uma sala vazia não parece representar determinantemente que não há gatos na sala. Por outro lado, parece bem claro que tal coisa pode ser representada de forma determinante por uma representação linguística, como a frase "não há gatos na sala".

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Ainda outro problema para a proposta de que as imagens servem como base do pensamento é um problema levantado por Descartes (2004). Embora possamos entender a diferença entre um polígono com novecentos e noventa e nove mil lados e um polígono com um milhão lados, não podemos nem imaginar a diferença nem ao menos percebê-la. Se formos apresentados perceptivamente aos dois polígonos, não haveria uma diferença perceptível. Da mesma forma, as imagens mentais dos dois polígonos também não seriam distinguíveis.

Além de serem céticos sobre se as representações baseadas em semelhanças podem servir de base para o pensamento, os filósofos também têm sido céticos sobre se as próprias imagens mentais, independentemente de serem a base do pensamento, são genuinamente pictóricas (THOMAS, 2019). De fato, há muita controvérsia entre grupos de filósofos e também entre grupos de cientistas sobre se as imagens mentais se assemelham a seus objetos.

Uma consideração poderosa a favor da visão de semelhança vem de experimentos relativos à "rotação mental" (THOMAS, 2019). Um tipo de experimento de “rotação mental” seria aquele em que um sujeito recebe um par de imagens e é solicitado a ele indicar se a imagem da esquerda é igual a da direita. Às vezes, as duas imagens são as mesmas, exceto que uma é girada em certo grau, talvez 90 graus ou 180 graus. Nas medições dos tempos de reação dos sujeitos, os pesquisadores descobriram que quanto mais uma imagem precisa ser "girada mentalmente" para corresponder à outra, maior o tempo de reação para dar uma resposta. Alguns filósofos e cientistas argumentaram que esses resultados experimentais ajudam a mostrar que as imagens mentais realmente se parecem com as coisas de que são imagens.

Um tipo de consideração contra a visão de semelhança e a favor de uma teoria de descrição mais linguística das imagens mentais diz respeito à penetrabilidade cognitiva das imagens mentais (THOMAS, 2019). O que significa para um estado mental ou processo ser "cognitivamente penetrável" é que é influenciado por estados cognitivos, como crenças ou pensamentos (em oposição a estados mais sensoriais, como sensações). Em algumas experiências de manipulação mental, os tempos de reação podem variar dependendo de quais assuntos de informação verbal são dados. Um exemplo dessas informações verbais é dizer aos sujeitos que imaginem que as figuras estão separadas por 50 centímetros versus 5 metros. Como as informações verbais e as crenças ou pensamentos subsequentes parecem "penetrar cognitivamente" as imagens mentais, isso foi tomado por alguns como sugerindo que as imagens mentais são mais parecidas com a linguagem do que com a imagem.

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3.3 EMOÇÃO

As emoções são talvez o mais familiar dos nossos estados mentais. Elas incluem estados de medo, alegria, raiva e nojo. As emoções também são talvez as mais importantes de nosso estado mental. Elas constituem nossos principais motivadores e as principais fontes de valor e dignidade em nossas vidas. Buscamos certas atividades, coisas e pessoas por causa da alegria que elas nos trazem. E evitamos outras por causa da ansiedade ou raiva que elas trariam. As emoções desempenham um papel central na maneira como classificamos nossas preferências e escolhas de vida. Elas também desempenham papéis centrais na coesão social e em nosso senso de moralidade.

Apesar dos papéis centrais e importantes que as emoções desempenham em nossas vidas, às vezes as emoções são vistas como obstáculos, especialmente obstáculos à racionalidade. Costuma-se dizer que devemos evitar deixar nossas mentes ficarem nubladas pelo medo ou pela raiva e que não devemos deixar nossas paixões ou emoções "tomarem controle" de nós. No entanto, é difícil ver como uma vida desprovida de emoção seria uma vida digna de ser vivida.

Questões de interesse especial para os filósofos da mente em relação às emoções são questões relativas a (1) o que distingue emoções de outros estados mentais e (2) o que distingue emoções diferentes umas das outras. Fornecer uma explicação satisfatória das emoções, uma explicação que responde a essas duas perguntas, acabou revelando-se bastante difícil. Alguns filósofos até duvidam que algum dia consigamos uma explicação satisfatória e unificadora das emoções (SCARANTINO; DE SOUSA, 2018). No entanto, mencionaremos aqui algumas ideias básicas que os filósofos propuseram sobre esses tópicos.

3.3.1 O que distingue emoções de outros estados mentais?

Uma proposta é que as emoções são distintas na maneira como estão intimamente associadas a certos estados corporais (SCARANTINO; DE SOUSA, 2018). Enquanto meramente acreditar não está intimamente associado a nenhum tipo particular de estado corporal, emoções como medo e raiva estão associadas a aumentos na frequência cardíaca e na transpiração. Além disso, muitas emoções têm tipos característicos de expressão facial, como com a felicidade e o sorriso, ou com a tristeza e o cenho franzido. Uma versão inicial e particularmente forte desse relato corporal de estados emocionais é a teoria de James-Lange, proposta por William James (2008) e Carl Lange (FELDMAN, 2015), que afirma que a emoção é simplesmente a consciência de certas mudanças corporais.

Em tal teoria, a raiva é simplesmente a percepção do aumento da frequência cardíaca, dos punhos cerrados etc. Uma descoberta que ajudou a desacreditar (ao menos em parte) essa teoria é que sujeitos em um experimento foram injetados com adrenalina estimulante e relataram sentir-se eufóricos ou com raiva, dependendo do tipo

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de ações que um ator na sala estava realizando. Isso sugere que o conteúdo cognitivo das diferentes crenças adquiridas nos diferentes cenários contribuiu para o tipo de emoção sentida. Assim, a sugestão parece ser que uma emoção como a raiva não pode ser simplesmente a consciência de estímulo ou excitação nos sistemas corporais.

3.3.2 O que distingue emoções diferentes umas das outras?

Existem muitas dimensões nas quais as emoções podem ser diferenciadas uma da outra. Três das principais dimensões que interessam aos filósofos são (1) intencionalidade, (2) intensidade e (3) valência.

A intencionalidade da emoção tem a ver com “sobre o que” a emoção trata ou para o que ela é direcionada (GUNTHER, 2004). Muitas, senão todas, emoções têm conteúdo intencional. Assim, por exemplo, o medo de cães ou a raiva por sua carteira ter sido roubada, o conteúdo em questão diz respeito a cães ou sua carteira sendo roubada. A proposta de que todas as emoções têm conteúdo intencional é um tanto controversa. Ansiedade flutuante ou um sentimento geral de depressão podem não ter nenhum conteúdo intencional. De qualquer forma, talvez uma maneira pela qual a intencionalidade possa servir para diferenciar emoções uma da outra é que algumas emoções precisam ser sobre certos tipos de coisas, enquanto outras emoções não precisam ser sobre nada. Um estado de raiva, ou mais especificamente, um sentimento de indignação é geralmente, se não sempre, sobre as pessoas. Embora se possa ficar desapontado por estar chovendo, é pouco provável que alguém fique moralmente indignado ou ressentido por estar chovendo.

A intensidade da emoção serve para contrastar emoções como raiva e irritação uma da outra. A intensidade também serve para ajudar a distinguir divertimento e êxtase (EKMAN, 2011).

A valência da emoção serve para contrastar emoções em termos de serem positivas ou negativas (OATLEY; JENKINS, 2002). Existe um sentido muito claro e intuitivo em que o medo, a raiva e o nojo têm uma valência emocional negativa em oposição à alegria e divertimento, que têm uma valência emocional positiva.

3.3.3 As dificuldades em dar uma explicação unificada das emoções

Uma hipótese sobre as emoções é que elas compreendem um tipo natural (um agrupamento de objetos singulares que sempre compartilham qualidades particulares, uma estrutura "real" no mundo natural, não um resultado artificial do raciocínio humano), e, como tal, existe alguma caracterização, talvez complexa, do que faz com que todas elas se unam como um tipo de coisa (SCARANTINO; DE SOUSA, 2018). Uma hipótese

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contrária é que as emoções não se combinam como um tipo natural e, em vez disso, é uma maneira um tanto artificial de classificar estados mentais para rotular alguns como emoções e outros como não (OATLEY; JENKINS, 2002).

Uma questão pertinente à questão da naturalidade de classificar certos estados mentais como emoções depende de se as emoções são culturalmente universais. Alguns pesquisadores propuseram que pelo menos algumas emoções estão presentes em todas as culturas e estão associadas a expressões reconhecíveis entre culturas (EKMAN, 2011). Exemplos de tais emoções incluem medo, felicidade, tristeza, nojo, surpresa e raiva. Outras emoções talvez não sejam culturalmente universais (OATLEY; JENKINS, 2002). A palavra alemã "schadenfreude" não pode ser traduzida diretamente para o português. Pelo menos, não existe uma palavra em português que pareça sinônimo. Uma tradução grosseira, no entanto, seria algo como "a alegria sentida pela desgraça dos outros". Talvez esse seja um exemplo de uma emoção culturalmente específica. Se há certas emoções que são culturalmente específicas, isso pode colocar em dúvida se a "emoção" é uma maneira natural (em oposição a artificial ou culturalmente relativa) de classificar estados mentais.

Muita discussão na filosofia da mente centra-se nos fenômenos mentais dos pensamentos e sensações. No entanto, nossas vidas mentais parecem conter muito mais do que esses estados. Entre esses outros tipos de estados, destacam-se as emoções – os estados mentais que tornam a vida digna de ser vivida. No entanto, como a percepção e a imaginação, a emoção é especialmente difícil de entender, e muitos filósofos concordariam com o fato de ainda estarmos nos primeiros passos de nossa jornada em direção a uma compreensão teórica adequada desses fenômenos.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Existem duas ideias que formam os principais ingredientes das versões contempo-râneas do materialismo eliminativo, a primeira é a ideia de que a psicologia popular é uma teoria, a segunda é a ideia de um contraste entre a eliminação e a redução.

• Os materialistas eliminativos contemporâneos consideram as atitudes proposicionais como postulados teóricos.

• Há, pelo menos, três argumentos a favor do materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais: a psicologia popular é um programa de pesquisa estagnado; a psicologia popular está comprometida com atitudes proposicionais com uma estrutura sentencial que não é sustentada por pesquisas neurocientíficas; a psicologia popular assume compromissos com características de estados mentais que levam a um epifenomenalismo inaceitável.

• O materialismo eliminativo é uma posição que deve ser tratada de uma maneira ou de outra na filosofia da mente, especialmente pelos filósofos que sustentam que a base para afirmar a existência de fenômenos psicológicos deve, em última análise, ser fundamentada em fatos científicos.

• O problema filosófico da percepção é o problema de explicar quais são os objetos da percepção.

• No realismo direto, os objetos são objetos independentes da mente que, comumente, nós percebemos.

• O argumento da ilusão pode ser usado alternadamente como argumento contra o realismo direto ou como argumento a favor de uma das alternativas ao realismo direto, como o realismo indireto e o idealismo.

• O realismo indireto afirma que de fato percebemos objetos independentes da mente, como rochas e árvores, no entanto, insiste em que o fazemos apenas indiretamente.

• O intencionalismo (uma versão do realismo direto) é assim chamado porque vê estados perceptivos semelhantes a outros estados intencionais.

• Um componente-chave da visão de muitos filósofos acerca das imagens mentais é a visão de que as imagens mentais são, literalmente, um tipo de imagem ou fotografia

• As emoções são, talvez, o mais familiar dos nossos estados mentais. Elas incluem estados de medo, alegria, raiva e nojo.

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1 Um dos argumentos a favor do materialismo eliminativo sobre as atitudes proposicionais é que a psicologia popular assume compromissos com características de estados mentais que levam a um epifenomenalismo inaceitável. Descreva a linha de pensamento geral desse argumento.

2 O materialismo eliminativo sobre qualia foi desenvolvido pelo filósofo Daniel Dennett (em seu artigo, Quining Qualia (Quinear o Qualia). No artigo, Dennett produz e utiliza um neologismo, o verbo quinear. O que significa esse novo verbo?

3 Dentre as alegações sobre as ilusões e que servem como premissas-chave no argumento da ilusão, temos que as ilusões são subjetivamente ou fenomenalmente semelhantes às percepções. O que essa alegação quer dizer?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 3 -

DETERMINISMO E LIVRE-ARBÍTRIO

1 INTRODUÇÃO

Os debates sobre o livre arbítrio estão entre os debates mais incômodos da filosofia. Aqui está a questão central: Será que a existência do livre-arbítrio é compatível com o determinismo– a tese de que todo evento, incluindo toda ação humana, é determinado, no sentido de ser predeterminado?

Pense em alguma escolha que você concebe como uma escolha que é feita livremente. Suponha, por exemplo, que uma pessoa é apresentada com uma escolha entre dois sabores diferentes de sorvete para a sobremesa – chocolate e baunilha. Suponha que essa pessoa tenha gostado dos dois sabores no passado, mas hoje à noite ela decide pedir duas bolas de sorvete de baunilha. Agora, com esse cenário do sorvete em mente, vamos fazer algumas experiências mentais.

Experiência mental nº 1: suponhamos que o cérebro dessa pessoa esteja sob o controle de um dispositivo que influencia a mente operado por algum cientista do mal. O cientista faz com que a pessoa pronuncie as seguintes palavras a um garçom em um restaurante: "Por favor, me dê duas bolas de sorvete de baunilha". Suponha ainda que a maneira como o cientista faz a pessoa pronunciar essas palavras é fazendo com que a pessoa prefira baunilha ao invés de chocolate naquele momento. Agora, aqui está a questão crucial do experimento mental: Será que a pessoa que está sob o controle do cientista do mal está escolhendo o sorvete de baunilha por vontade própria?

Experimento mental nº 2: Este segundo experimento mental é uma variação do primeiro. Vamos remover o cientista do mal e, em vez disso, ter todos os estados mentais e físicos da pessoa que pede sorvete totalmente predeterminados pelas decisões dos deuses gregos antigos. Suponha que Zeus e seus companheiros deuses sejam realmente reais e tenham feito com que nosso pedido de sorvete estivesse destinado (desde o início dos tempos) a ser por um sorvete de baunilha nesse dia em particular. Novamente, pergunte a si mesmo a pergunta crucial: Será que a pessoa está escolhendo baunilha por seu próprio livre-arbítrio?

Muitas pessoas que contemplam tais experimentos mentais tendem a responder "não" às perguntas cruciais colocadas. Talvez você seja uma dessas pessoas. Vamos considerar agora um terceiro experimento mental.

UNIDADE 3

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Experimento mental nº 3: Este terceiro experimento mental é uma variação do segundo, mas com uma grande diferença. Em vez de os estados e ações mentais da pessoa serem predestinados pelos deuses, seus estados e ações mentais são predeter-minados por causa das leis da física. Suponha que o fisicalismo seja verdadeiro e que tudo seja físico. Suponha ainda, como discutimos no Tópico 1 desta Unidade, que todo evento causado tenha uma causa física. Novamente, pergunte a si mesmo a pergunta crucial: Será que a pessoa está escolhendo baunilha por vontade própria, por livre-arbítrio?

Algumas pessoas que contemplam esse terceiro experimento mental responderão “não” à pergunta-chave. Elas sustentam que o tipo de determinismo descrito é incompatível com o livre-arbítrio. Elas sustentam uma posição conhecida, por razões óbvias, como incompatibilismo. Outras pessoas que contemplam esse terceiro experimento mental responderão "sim". Essas pessoas não veem problema em supor que o determinismo é verdadeiro e que o livre-arbítrio existe. Eles ocupam uma posição conhecida como compatibilismo (MATTHEWS, 2007).

O debate filosófico entre compatibilistas e incompatibilistas é especialmente premente devido ao modo como ele se conecta à noção de responsabilidade moral (KANE, 2002). A ideia de que as pessoas podem ser moralmente responsáveis por suas ações desempenha um papel central em nossas deliberações práticas, éticas e legais. E, sem dúvida, se alguém é moralmente responsável por alguma coisa parece depender do fato de se escolheu aquela coisa por livre-arbítrio.

Considere um caso em que alguém causa a morte de um ser humano. Os julga-mentos sobre se o assassino merece uma punição e quão severa deve ser a punição de-pendem amplamente de julgamentos sobre se escolheram livremente matar. O assassino pode receber uma punição menos severa ou nenhuma punição se descobrir que suas ações foram forçadas. Talvez o assassinato tenha sido causado por circunstâncias, como uma arma apontada na cabeça, ou por fatores internos, como um tumor cerebral ou de-sequilíbrio químico. Segundo muitos pensadores, o livre-arbítrio é necessário para a res-ponsabilidade moral. No entanto, como já vislumbramos nos três experimentos mentais, a questão de saber se alguém tem livre-arbítrio é ameaçada pela proposição de que suas ações são determinadas no sentido de serem predeterminadas. Além disso, existem ar-gumentos poderosos em favor da visão de que todo evento é determinado dessa maneira.

2 FONTES DO DETERMINISMO

Existem dois componentes principais da ideia de determinismo. O primeiro é a noção de uma coisa fazendo outra coisa acontecer. Um exemplo típico envolve dois eventos relacionados como causa e efeito. A ideia de causas antes dos efeitos está intimamente relacionada às concepções de determinação como predeterminação. O segundo componente-chave do determinismo é a ideia de que, para qualquer evento que aconteça, ele teria que acontecer e não poderia ter sido de outra maneira (BUTTERFIELD, 1998).

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Os dois componentes do determinismo não são totalmente independentes um do outro. Se, de fato, um evento fez com que outro acontecesse, parece que, dado o primeiro evento, o segundo evento teve que acontecer e não poderia ter sido de outra forma. Considere, para exemplificar, a seguinte suposição contrária: suponha que o evento E1 ocorra e mesmo que o evento E2a aconteça a seguir, ainda poderia ser inteiramente possível que algum outro evento, o E2b tivesse acontecido. Parece claro, então, que, nesse caso, o E1 não fez o E2a acontecer. Talvez o E2a tenha acontecido após E1 por uma questão de uma chance aleatória. Ou talvez o que realmente fez o E2a acontecer não foi o E1 por si só, e sim o E1 em conjunto com algum outro evento. Resumindo, então, se um evento inicial faz com que um evento posterior aconteça, então, dado o primeiro evento, o segundo evento tem que acontecer e não pode ser de outra forma. Assim, sem dúvida, as duas ideias principais do determinismo não são totalmente independentes uma da outra.

Apesar dessa dependência entre os dois componentes do determinismo, os dois componentes aparecem em conflitos separados entre compatibilistas e incompatibilistas (KANE, 2005). O componente que tem a ver com eventos anteriores determinando eventos posteriores, conflita com as concepções de livre-arbítrio, nas quais o agente é a fonte última de suas ações. O componente que tem a ver com acontecimentos que “não poderiam ter sido de outra maneira” conflita com concepções de livre-arbítrio que exigem que agentes livres possam fazer ou escolher o contrário.

No restante desta seção, examinaremos cinco linhas de pensamento em favor do determinismo. Essas cinco linhas de pensamento concordam, de modo amplo, em suas conclusões. Elas diferem principalmente nos tipos de raciocínio que levam a suas conclusões determinísticas. As cinco linhas de pensamento podem ser classificadas em dois grupos, grupos que diferem sobre quantos eventos são determinados. O primeiro grupo diz respeito ao determinismo global, a visão de que todos os eventos são deter-minados. O segundo grupo diz respeito ao determinismo local, a visão de que alguma classe restrita de eventos é determinada. Em particular, os determinismos locais que examinaremos enfocam os eventos que podem ser classificados como ações humanas.

Os determinismos globais incluem determinismo físico, determinismo teológico e determinismo lógico. Os determinismos locais incluem determinismo ético e determinismo psicológico. Vamos agora examinar essas cinco linhas de pensamento determinístico com mais detalhes.

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2.1 DETERMINISMO FÍSICO

A tese do determinismo físico (ou causal ou nomológico) se encaixa muito bem com os tipos de fisicalismo que estudamos nos Tópicos anteriores, especialmente o fisicalismo discutido no texto complementar sugerido na Unidade 2 – Mente, Cérebro e Máquinas Pensantes, de Kevin D. S. Leyser. Se pensarmos no fisicalismo como a visão de que tudo é idêntico a partículas físicas ou determinado por arranjos de partículas físicas e acrescentamos a ideia de que todo evento é causado de uma maneira que é totalmente governada pelas leis da física, então estamos muito próximos da tese do determinismo físico.

Para entender melhor a tese do determinismo físico, considere a seguinte maneira de observar o desenrolar dos eventos no universo desde o seu início, durante o Big Bang. Considere o estado total do universo no momento presente. Tudo o que está acontecendo no momento presente é a consequência causal do que estava acontecendo no momento anterior. Podemos resumir isso dizendo que o estado global do universo no tempo “t” é totalmente causado ou totalmente causalmente determinado pelo estado global do universo no tempo “t-menos-1”. Uma maneira de resumir a ideia-chave do determinismo físico é dizer que qualquer estado do universo é determinado pelo estado anterior do universo mais as leis naturais. Outra maneira de resumir essa ideia-chave é dizer que todo evento é determinado por um evento anterior mais as leis da natureza.

A maior parte do suporte empírico ao determinismo físico vem das ciências físicas e, portanto, faz com que ele se adapte bem ao fisicalismo (HOEFER, 2016). No entanto, estritamente falando, o fisicalismo não implica nem é implicado pelo determinismo físico. É possível abraçar o fisicalismo (a visão de que tudo é físico) e também o indeterminismo (a visão de que alguns eventos não são determinados por eventos anteriores e pelas leis naturais). Também é possível abraçar o dualismo, mantendo também que os eventos mentais são totalmente determinados por eventos anteriores e leis especiais que regem o mental.

O determinismo físico é a variação do determinismo com o qual nos preocuparemos principalmente no presente tópico. No entanto, antes de sair desta seção, vamos dar uma breve olhada nos outros tipos de determinismo.

2.2 DETERMINISMO TEOLÓGICO

Segundo muitos que acreditam na existência de Deus, Deus é ao mesmo tempo criador de tudo e onisciente (conhecedor de tudo). Um criador onisciente conhece todos os fatos (PEREBOOM, 2011). Uma suposição sobre o que significa ser o criador é que Deus estava presente no começo do universo. Uma suposição sobre o que significa conhecer todos os fatos é que mesmo os fatos pertinentes ao futuro são conhecidos. Se Deus não soubesse todos os fatos sobre o futuro, haveria pelo menos um fato que ele não saberia–assim, ele não seria onisciente.

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2.3 DETERMINISMO LÓGICO

O determinismo lógico surge de um enigma discutido por Aristóteles (2013) no capítulo 9 de sua obra De Interpretatione (Da Interpretação). Considere a frase "haverá uma batalha marítima amanhã". Segundo muitos lógicos e filósofos, é uma lei da lógica que toda sentença seja verdadeira ou falsa, e não ambas as coisas, tampouco nenhuma. Isso parece implicar, então, que a frase "haverá uma batalha marítima amanhã" ou é verdadeira agora ou falsa agora. Se é verdadeira agora, então deve haver uma batalha marítima amanhã. Se é falsa agora, então não deve haver uma batalha marítima amanhã, mas o que quer que aconteça amanhã, não pode contradizer o que quer que seja o valor de verdade da frase hoje. Se houver uma batalha marítima amanhã, então, quando acontecer, será verdade que não poderia ter sido de outra forma. Da mesma forma, se não houver uma batalha marítima amanhã, será verdade que não poderia ter havido uma batalha marítima.

2.4 DETERMINISMO ÉTICO

Os antigos filósofos gregos, Sócrates e Platão, sustentavam que uma pessoa sempre escolhe o que considera ser bom (LOPES, 2005). Isso não significa que as pessoas sempre escolhem o que realmente é bom, pois há um espaço para uma diferença entre pensar que algo é bom e este algo realmente ser bom. Talvez o que tais pessoas consideram bom não seja bom.

No entanto, de acordo com Sócrates e Platão, o que quer que uma pessoa escolha é algo que ela considera ser bom. Se ela não achasse que fosse bom, por que ela escolheria isso? Será que o simples fato de que alguém escolheu algo não significa que ele quer este algo? E será que há realmente alguma diferença entre querer uma coisa e pensar nela como boa? Nessa visão, então, as escolhas de uma pessoa são determinadas pelo que elas pensam. Deste modo, elas são assim determinadas. Dado o que elas pensam, há apenas uma coisa que elas escolherão: elas não escolherão o contrário. As escolhas de uma pessoa são, portanto, determinadas por seus estados psicológicos anteriores – seus pensamentos sobre o que é bom.

Portanto, para qualquer evento futuro, parece que só há uma maneira de isso acontecer. Isso inclui eventos relacionados à ação humana. Se você virar à esquerda em vez de à direita enquanto caminha no parque, Deus sabia no início dos tempos que você iria virar à esquerda em vez de à direita. Se você tivesse virado para a direita em vez de para a esquerda, isso contradiria a crença anterior de Deus sobre o que você faria. Dado que Deus sabia, há bilhões de anos atrás, o que você fará em um determinado momento, então a cada momento, há apenas uma coisa que você pode fazer. Para cada coisa que você faz, você não poderia ter feito o contrário, pois isso contradiria o perfeito conhecimento de Deus sobre o futuro.

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2.5 DETERMINISMO PSICOLÓGICO

O determinismo psicológico é semelhante em um importante aspecto ao determinismo ético. O determinismo psicológico é a visão de que uma pessoa sempre escolhe o que mais deseja. Como o determinismo ético, a escolha de uma pessoa é determinada por seu estado mental anterior. O determinismo psicológico difere do determinismo ético se houver uma diferença entre desejar algo e pensar que este algo é bom (KANE, 2005).

Analisamos esses cinco tipos de pensamento determinístico para transmitir a ideia de que existem muitas maneiras de chegar a conclusões determinísticas. Certamente, cada um desses argumentos foi criticado de várias maneiras por vários filósofos (KANE, 2002). No entanto, apresentar um argumento coerente contra todas as formas de determinismo é uma tarefa altamente difícil. O determinismo não desaparece silenciosamente!

Agora, voltaremos nossa atenção para a questão da natureza do livre-arbítrio e se é o tipo de coisa que é compatível com o determinismo.

3 COMPATIBILISMO

Os compatibilistas sustentam que a existência do livre-arbítrio é compatível com o determinismo (KANE, 2005). Por uma questão de simplicidade, vamos nos referir principalmente ao determinismo físico para a discussão que se segue. Você deve lembrar dos dois aspectos principais do determinismo que os incompatibilistas alegam serem ameaças à existência do livre-arbítrio: (1) de acordo com o determinismo, suas preferências e ações são determinadas por eventos que ocorrem antes deles, incluindo eventos que ocorreram antes do seu nascimento; (2) dado o estado atual do universo e as leis naturais, há apenas um estado futuro possível do universo e, portanto, para o que você realmente faz, é falso que você poderia ter feito o contrário. Os compatibilistas discordam dos incompatibilistas sobre se os aspectos (1) e (2) são ameaças ao livre-arbítrio.

Uma linha de pensamento a favor do compatibilismo se origina com o filósofo Harry Frankfurt (1971). O argumento de Frankfurt pode ser entendido como tentando mostrar a compatibilidade do livre-arbítrio e o aspecto (2). De acordo com a linha de pensamento de Frankfurt, não é um requisito do livre-arbítrio que alguém possa ter feito o contrário.

No centro do argumento de Frankfurt (1971) estão certos cenários hipotéticos ou experimentos mentais, cenários hipotéticos que passaram a ser chamados de "casos de Frankfurt". Os casos de Frankfurt são projetados para mostrar que ter livre-arbítrio não exige que alguém possa fazer o contrário.

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Para ter uma ideia dos casos de Frankfurt (1971), vamos imaginar um futuro em que a tecnologia de controle cerebral tenha sido aperfeiçoada. Nesse futuro, certas pessoas têm acesso a microchips que podem ser implantados no cérebro de outras pessoas. Esses implantes cerebrais permitem que uma pessoa controle remotamente outra. Agora imagine que há duas colegas de quarto, Ana e Beatriz, que concordaram em se revezar na tarefa de passar o aspirador de pó em seus tapetes em segundas-feiras alternadas. Na próxima segunda-feira, será a vez de Beatriz aspirar, mas Ana está preocupada que Beatriz não faça isso. Ana está esperando alguns convidados muito especiais e ela quer que o apartamento esteja muito limpo quando eles chegarem. Ana espera estar muito ocupada fazendo outras coisas em preparação para os convidados e não será capaz (ou estará disposta) de aspirar o pó do tapete sozinha.

Enquanto Beatriz está dormindo, Ana implanta um microchip de controle do cérebro no cérebro de Beatriz. A maneira como este chip foi projetado para funcionar é monitorar o cérebro de Beatriz, verificando se ela decide aspirar na próxima segunda-feira. Se Beatriz não decidir aspirar, o chip mudará do modo de monitoramento para o modo de controle e fará com que Beatriz decida aspirar. Se, no entanto, Beatriz decidir fazer a aspiração do pó, o chip permanecerá no modo de monitoramento e não fará nada que afete as decisões ou ações de Beatriz.

Suponha que segunda-feira chegue e Beatriz decida fazer a aspiração. Ela decide por conta própria, sem nenhuma intervenção do chip. Parece intuitivamente plausível que tanto Beatriz não poderia ter feito o contrário quanto que ela é, de qualquer modo, moralmente responsável pelo serviço de aspiração do pó. Ela não poderia ter feito o contrário, porque o microchip a impediria de fazer o contrário.

Ela é moralmente responsável por fazer a aspiração do pó, uma vez que sua decisão de fazê-lo e, assim, cumprir como acordado no contrato, resultou em um tapete limpo, sendo, portanto, moralmente digna de louvor.

Na suposição de que o livre-arbítrio é um requisito da responsabilidade moral, o seguinte parece ser verdadeiro para Beatriz: como ela era moralmente responsável pela aspiração de pó resultante, ela decidiu por vontade própria fazer o serviço. Seu livre-arbítrio é, portanto, compatível com o fato de ela não ter sido capaz de fazer o contrário. A moral que muitos compatibilistas extraem dos casos de Frankfurt é a seguinte: o livre-arbítrio, pelo menos o tipo necessário para a responsabilidade moral, é compatível com o determinismo.

4 INCOMPATIBILISMO

Suponha, pelo menos por um momento, que definamos compatibilismo como a visão que afirma tanto (1) a existência do livre-arbítrio quanto (2) a verdade do determinismo. Dada essa definição, existem três formas de negar o compatibilismo e afirmar o incompatibilismo (KANE, 2005). A primeira maneira é abraçar uma forma de incompatibilismo conhecida como determinismo duro, a visão que nega a existência

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do livre-arbítrio e afirma a verdade do determinismo. A segunda maneira é adotar uma forma de incompatibilismo conhecida como libertarianismo, a visão de que o livre-arbítrio existe e o determinismo é falso. A terceira maneira nega que o livre-arbítrio existe e nega que o determinismo é verdadeiro. Essa terceira maneira geralmente não é o que as pessoas têm em mente quando discutem o incompatibilismo, e não existe um nome amplamente aceito para isso.

Neste Tópico, examinaremos dois argumentos para incompatibilismo. O primeiro é o argumento da origem. O segundo é o argumento da consequência. Os argumentos não sustentam se o livre-arbítrio existe. Tampouco se posicionam sobre se o determinismo é verdadeiro. O objetivo desses argumentos é apoiar uma declaração condicional, "se-então". O objetivo desses argumentos é mostrar que, se o determinismo é verdadeiro, então o livre-arbítrio não existe. Um objetivo logicamente equivalente é mostrar que, se o livre-arbítrio existe, então o determinismo é falso.

Esses dois argumentos podem ser distinguidos em termos de dois aspectos diferentes que os incompatibilistas acham que constituem o livre-arbítrio. O primeiro aspecto do livre-arbítrio incompatibilista é a ideia da fonte última de livre escolha que reside em uma pessoa. Nessa concepção, uma pessoa ou algum ato mental de uma pessoa é a fonte verdadeira e definitiva de suas ações livres. Esse aspecto do livre-arbítrio incompatibilista desempenha um papel fundamental no argumento da origem.

O segundo aspecto do livre-arbítrio incompatibilista é a ideia de que, ao ter livre-arbítrio, é possível escolher alternativas genuínas. Isto é a ideia de que existem maneiras genuínas pelas quais as coisas poderiam ter sido. Esses são eventos possíveis que seriam reais se a pessoa os tivesse escolhido.

Ao considerar algum curso de ação futuro, existem múltiplos futuros alternativos genuínos que a pessoa tem algum poder para tornar realidade. Esse aspecto do livre-arbítrio incompatibilista desempenha um papel fundamental no argumento da consequência.

4.1 O ARGUMENTO DA ORIGEM OU DA CADEIA CAUSAL

O argumento da origem (ou argumento da cadeia causal) depende do aspecto do determinismo que envolve eventos passados que determinam eventos posteriores. Esse aspecto do determinismo entra em conflito com uma certa concepção que envolve o livre-arbítrio, a saber, que se alguém tivesse livre-arbítrio, seria a fonte última das decisões que vai tomar (VIHVELIN, 2018).

Como a ideia de eventos passados determinando eventos posteriores entra em conflito com o fato de a pessoa ser a fonte última de suas decisões? O ponto aqui é melhor entendido ao contemplar os eventos que aconteceram antes de você tomar

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suas decisões. Se é verdade que cada evento que acontece é determinado por algum evento anterior, isso também se aplica a cada uma de suas decisões, já que cada uma delas é um evento, algo que acontece. Se o determinismo é verdadeiro, uma decisão sua é um elo de uma cadeia causal. Elos anteriores fazem as decisões acontecerem e as próprias decisões fazem suas ações acontecerem, mas se essa ideia de uma cadeia causal do determinismo estiver correta, nem você nem as coisas que acontecem dentro de você são as fontes últimas de suas decisões, escolhas e ações. Seja qual for a fonte última, é algo que aconteceu antes de suas decisões. Talvez a fonte última seja algo que aconteceu há muito tempo, como a formação do universo físico durante o Big Bang.

Suponha que ter livre-arbítrio requer ser a fonte última de suas escolhas e ações. Se o determinismo é verdadeiro, nem você nem nenhum aspecto seu é a fonte última. Portanto, se o determinismo for verdadeiro, você não terá livre-arbítrio.

4.2 O ARGUMENTO DA CONSEQUÊNCIA

No cerne do argumento da consequência está um conflito sobre a natureza do tempo (VIHVELIN, 2018). O conflito diz respeito, por um lado, ao que o tempo precisa ser para que o livre-arbítrio exista e, por outro lado, o que tempo precisa ser para que o determinismo seja verdadeiro. Uma maneira de colocar essas posições conflitantes é dizer que elas conflitam sobre se o futuro está aberto de uma maneira que o passado não está.

Muitas pessoas sustentam que há uma grande diferença entre o passado e o futuro. O passado está definido.

É algo sobre o qual não temos mais controle. Não temos mais nada a dizer sobre seu desfecho. O passado já acabou e não há nada que possa ser feito sobre isso agora. Por outro lado, o futuro está aberto.

Suponha que você decida quais roupas usar para sua entrevista de emprego amanhã. As opções estão abertas – você pode usar sua roupa azul ou vermelha. Podemos colocar esse ponto em termos de futuros possíveis. Em um futuro você vai para a sua entrevista de emprego vestida/o de azul, outro futuro você vai para a sua entrevista vestida/o de vermelho. Cabe a você escolher um ou outro. Pelo menos, é o que você pensaria se achasse que tinha um certo tipo de livre-arbítrio.

Agora vamos considerar qual seria a natureza do futuro se o determinismo fosse verdadeiro. Na hipótese do determinismo, parece que não existem várias vertentes na sua frente para você escolher. Se, como diz o determinismo, qualquer momento dado é determinado em algum momento anterior em conjunto com as leis da natureza, então o momento presente (mais as leis) determina apenas um único futuro. Nesta visão do determinismo, parece que o futuro é tão definido ou fixo quanto o passado. O livre-arbítrio exige que o futuro esteja aberto, mas o determinismo implica que o futuro está fechado. O determinismo parece ser incompatível com a existência do livre-arbítrio.

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5 O LIVRE-ARBÍTRIO

Voltemos agora à pergunta: "O que poderia ser o livre-arbítrio?" Uma maneira de abordarmos essa questão é primeiro deixar o “livre” (a liberdade) de lado, por enquanto, e perguntar, o que é o arbítrio, a vontade?

5.1 O QUE É O ARBÍTRIO?

Embora não seja totalmente incontroverso na filosofia se existe algo ou aspecto da mente que vale a pena chamar de “arbítrio” ou "vontade", não gastaremos muito tempo examinando a controvérsia sobre se o arbítrio existe. Em vez disso, esboçaremos uma breve explicação que diz algumas coisas gerais sobre o que seria o arbítrio, se este existisse. Ou seja, forneceremos um esboço rápido de uma resposta para a pergunta de que tipo de coisa ou coisas a expressão "o arbítrio" pode estar se referindo.

O arbítrio como vontades: eventos mentais que são comuns à ação intencional e à tentativa de realizar ações. De uma perspectiva, o termo “o arbítrio” serve para selecionar um certo tipo de estado mental ou evento mental. Estes são estados ou eventos que podemos chamar de "vontades" ou "atos de vontade" (KANE, 2005).

Uma maneira de entender as vontades é comparando-as e contrastando-as com sensações. Se pensarmos na percepção sensorial como a interface na qual o mundo externo influencia a mente, as sensações são o primeiro elo mental de uma cadeia causal que leva do objeto externo ao evento mental de percebido. Em contraste com a percepção, que está intimamente ligada aos inputs (entradas) da mente, a ação está intimamente ligada aos outputs (saídas) da mente. A ação intencional pode ser pensada como a interface na qual a mente influencia o mundo externo. As vontades, então, podem ser pensadas como o último elo mental de uma cadeia causal que leva de um plano ou desejo a um movimento ou ação corporal.

Lembre-se de nossa discussão sobre percepção no Tópico 2 desta unidade. Lá enfrentamos o problema da ilusão. Lembre-se de que um motivo para postular coisas como dados dos sentidos ou sensações era explicar uma aparente semelhança entre perceber com acurácia um objeto e aluciná-lo. Em uma explicação da percepção, o que ambas as situações têm em comum é a presença de um dado ou sensação sensorial. Um tipo de linha de pensamento análogo pode ser usado em favor das vontades (KANE, 2002). Aqui, a aparente semelhança surge entre, por um lado, executar intencionalmente e com êxito alguma ação e, por outro lado, tentar executar uma ação, mas falhar, devido a nenhuma culpa própria. Para ilustrar, compare (1) atirar com sucesso e intencionalmente uma bola de papel em uma cesta de lixo e (2) tentar fazê-lo, mas falhar porque, no último momento, seus músculos cederam ou uma brisa através de uma janela aberta lançou a

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bola fora de curso. Ao comparar essas duas situações, notamos uma semelhança mental ou psicológica entre a ação bem-sucedida e a mera tentativa. Ambas são vontades ou atos de vontade. Tanto na tentativa bem-sucedida e quanto na fracassada, existe a vontade. Existe um ato de vontade de atirar a bola de papel, um ato de vontade que resulta na entrada da bola na cesta em (1), mas não resulta em (2).

O arbítrio como fonte de poder e fraqueza: força de vontade, akrasia e fraqueza de vontade. Outra maneira de pensar sobre o arbítrio (consistente com a maneira anterior de pensar sobre isso) é que o mesmo é algo que varia ao longo de um espectro de poder versus fraqueza. Essa variação tem a ver com a força de vontade. Baixos graus de força de vontade estão associados à fraqueza de vontade – o que os filósofos às vezes chamam de akrasia (STROUD; SVIRSKY, 2019).

A ideia de fraqueza de vontade é uma ideia do senso comum. Muitos de nós já experimentamos dificuldades em fazer algo que consideramos a coisa certa ou preferível. Queremos fazer uma coisa, mas falhamos devido a alguma falha dentro de nós. Um exemplo disso pode ser alguém tentando resistir a lanches altamente tentadores enquanto tenta manter uma dieta nova e saudável.

Apesar de parecer enraizada no senso comum, a ideia de que existe uma fraqueza de vontade levantou vários problemas filosóficos. Não há um consenso claro sobre como resolver os problemas (STROUD; SVIRSKY, 2019). Vamos aqui fazer um rápido esboço do cerne do problema.

Imagine que João resolve parar de beber álcool. João tem certos estados mentais relativos ao álcool. Ele acredita que o álcool causa danos ao fígado e deseja não mais beber coisas que prejudicam o fígado. Em suma, João acredita que o álcool deve ser evitado e deseja evitá-lo.

As crenças e desejos de João constituem seus motivos (razões) de ação. Em qualquer ocasião em que João realiza uma ação intencional, nós citamos tais estados mentais como suas crenças e desejos para explicar suas ações. Citamos suas razões para agir de tal forma respondendo a perguntas como "Por que João fez isso?".

Agir por razões distingue a ação intencional do comportamento involuntário. Quando João faz algo de propósito, é algo causado por suas crenças e desejos. Quando João se comporta de maneira involuntária, como quando sua perna se move reflexivamente ao ser atingida no joelho, a explicação do movimento da perna envolve algo além de crenças e desejos.

Suponha que João esteja em uma festa e ele recuse uma cerveja oferecida a ele. Por que ele recusou a cerveja? Ele recusou porque acredita que seria ruim para o fígado e deseja evitar danificá-lo. Essas são as razões dele para a recusa.

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Agora considere um caso que se pareça com João exibindo fraqueza de vontade. Suponha que haja uma ocasião em que, apesar de acreditar que o álcool deve ser evitado e desejar evitá-lo, João “ceda a tentação” e tome uma bebida alcoólica. Mais tarde na festa, é oferecido novamente a ele uma cerveja. Ele diz: "Bem, eu realmente não deveria", mas depois vai e se põem a beber de qualquer maneira.

Por que ele fez isso? Parece que esta é uma ocasião em que ele agiu, apesar do que ele acreditava e desejava. João agiu de maneira contrária a sua "melhor razão" ou "melhor julgamento". No entanto, ao tomar a bebida, ele age intencionalmente. Não é como se beber cerveja fosse algo involuntário, como em movimentos reflexivos ou sonambulismo.

Então, o que está acontecendo aqui? Um tipo de resposta seria dizer que devemos estar enganados sobre o que João realmente desejava. Talvez naquele momento ele realmente desejasse álcool mais do que desejava evitá-lo. Um tipo diferente de resposta apela a uma diminuição da força de vontade, uma fraqueza temporária da vontade.

Nessa visão, os desejos (e crenças) de João sobre álcool permaneciam constantes, mas havia uma flutuação em sua determinação, sua força de vontade.

5.2 EM QUE CONSISTE O “LIVRE” DO ARBÍTRIO?

Voltemos, agora, à questão da liberdade do arbítrio. O que significaria para o arbítrio ter o tipo de liberdade que importa para a responsabilidade moral, o tipo de liberdade que está no centro dos debates entre compatibilistas e incompatibilistas?

Não deve ser surpresa a essa altura que haja muita controvérsia sobre como responder a essa pergunta (KANE, 2005). É a isso que se resume grande parte da controvérsia entre compatibilistas e incompatibilistas. Aqui, apresentaremos apenas dois dos muitos modelos em que consiste a liberdade do arbítrio. O primeiro é o que mais se ajusta ao compatibilismo e o segundo se ajusta mais ao incompatibilismo.

O modelo de hierarquia dos desejos da liberdade do arbítrio: uma explicação compatibilista do livre-arbítrio. Este modelo do livre-arbítrio se origina do filósofo Harry Frankfurt (1971). Existem duas noções-chave no modelo. A primeira é uma distinção entre estados mentais de primeira ordem e de ordem superior (segunda ordem, terceira ordem etc.), especialmente estados mentais como desejos. A segunda noção-chave é a de um desejo que se torna volição.

Primeiro, vamos considerar a noção relevante de ordem. Um desejo de segunda ordem é um desejo sobre um desejo de primeira ordem. Então, o que é um desejo de primeira ordem? É um desejo sobre algo que em si não é um desejo. Suponha que João deseje uma cerveja. Este é um desejo de primeira ordem. Suponha que, apesar de ter desejo de cerveja, João deseje ser o tipo de pessoa que não deseja cerveja. Então, ele tem um desejo de segunda ordem – um desejo de não desejar cerveja.

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Continuando, vamos agora considerar o que significa um desejo se tornar uma volição ou, em outras palavras, um desejo se tornar o arbítrio ou vontade de alguém. Pode-se ter um desejo, mas, por um motivo ou outro, falhar em agir sobre ele. Por exemplo, alguém deseja ter um casaco azul, mas todos os casacos azuis à venda são muito caros e, portanto, este alguém compra um casaco vermelho. Nesse caso, o desejo não se tornou o que se tinha vontade, não se tornou uma volição. Se no dia seguinte este alguém receber algum prêmio em dinheiro, ou os preços dos casacos azuis caírem, o desejo por um casaco azul poderá se tornar uma volição.

Combinando a ideia de desejos de segunda ordem com a ideia de volições, surge a ideia de volições de segunda ordem.

Nesse modelo, ter livre-arbítrio consiste em ter volições de segunda ordem. Em alguma ocasião específica em que uma pessoa age, ela agiu livremente se a ação estiver de acordo com sua vontade de segunda ordem. Tudo isso é compatível com todos os estados da pessoa sendo determinados por algum estado anterior do universo, mais as leis físicas. Portanto, a visão resultante é uma visão compatibilista.

O modelo da origem última da liberdade do arbítrio: uma explicação incompatibilista do livre-arbítrio. Nesse modelo de livre-arbítrio, uma pessoa ou seu arbítrio deve ser o criador final de suas escolhas ou ações – se o arbítrio é causado ou determinado, então não é livre. Uma versão do modelo de origem do livre-arbítrio é o modelo de causação de agente. Central para esse modelo é a ideia de causação de agente, um tipo de causação distinta da causação de eventos (VIHVELIN, 2018). Geralmente, pensamos em causação como uma relação entre eventos, como quando a explosão de uma bomba causa o colapso de um edifício. O evento da explosão da bomba é a causa e o evento do colapso do edifício é o efeito. Em contraste com a causação de evento, na causação de agente, a causa de um evento pode ser um agente, uma pessoa.

Na versão da causação de agente do modelo de origem última do livre arbítrio, a liberdade do arbítrio requer um tipo especial de causação, que não seja uma relação entre dois eventos, mas entre um agente e um evento (VIHVELIN, 2018). Muitos rejeitam esse modelo como incoerente, pois é bastante difícil ver como um agente pode ser uma causa (KANE, 2002). De acordo com os críticos da ideia de causação de agente, quando um agente está envolvido na causação, alguma mudança de estado ou condição do agente deve ser a causa, ou seja, algum evento envolvendo o agente e não simplesmente o próprio agente deve ser a causa. Uma das principais críticas, então, ao modelo do livre-arbítrio de causação por agentes, é que a própria ideia de causação de agentes, que deveria ser distinta da causação de eventos, não faz sentido.

Talvez mais do que qualquer outro aspecto da mente, o arbítrio é especialmente significativo nas avaliações da responsabilidade moral. Como alguém pode ser moralmente responsável por um ato, a menos que o escolha livremente? Apesar dessa conexão do senso comum entre liberdade e responsabilidade, há muitos desafios sérios

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à ideia de que o livre-arbítrio existe. Os principais desafios têm a ver com o determinismo. Alguns filósofos veem os desafios tão severos que concluem que o livre-arbítrio não existe. Outros permanecem otimistas quanto às perspectivas de um compatibilismo viável, segundo o qual o livre-arbítrio pode existir em um universo determinístico.

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TEORIAS DA CONSCIÊNCIA

O leitor atento deve ter notado que até agora estivemos usando as palavras "mente'', "estados mentais" e "experiência consciente" como designando a mesma coisa. Em nenhum momento marcamos uma diferença entre "mente" e "consciência". Seguindo essa tendência histórica da filosofia da mente do século XX, não enveredamos por essa discussão. Até a metade dos anos de 1980, estabelecer essa distinção não parecia ser uma preocupação visível entre os filósofos da mente. Havia grande entusiasmo com as perspectivas abertas pela inteligência artificial e com a possibilidade de simulação mecânica das atividades mentais humanas através da construção de mentes artificiais. Pouco importava se uma máquina de jogar xadrez sabia ou não o que estava fazendo. O tema "consciência" não fazia parte da agenda dos funcionalistas, pois, para esses, processamento de informação e experiência consciente eram dissociáveis. Mas seria possível simular a cognição humana sem simular, ao mesmo tempo, seu aspecto consciente? Não seria essa uma diferença essencial entre mentes artificiais e humanas?

Essas foram as perguntas que começaram a ser formuladas no final da década de 1980. Tudo se passava como se a simulação da atividade mental humana fosse uma tarefa perfeitamente exequível, dependendo apenas de avanços tecnológicos. Restaria apenas saber o que tornaria um estado mental algo consciente, e, para isso, seria necessário responder algumas questões que não deixavam de causar perplexidade: "O que é consciência?", "Que tipo de papel desempenha essa na explicação da cognição humana?" "Existe cognição sem consciência?" "Terá a consciência um papel causal na produção da cognição e do comportamento?" "Podemos tratar a questão da consciência como um problema científico, isto é, como um problema empírico?"

Desde então, uma profusão de teorias acerca da natureza da consciência começou a proliferar na filosofia da mente. A tarefa a ser enfrentada era (e continua sendo) notadamente árdua: não existe nada mais imediato do que a experiência consciente, mas, ao mesmo tempo, não existe nada tão difícil de ser explicado.

As tentativas de montar estratégias para responder a essas perguntas produziram uma divisão de águas entre grupos de filósofos que professam opiniões conflitantes. De um lado estão os naturalistas, aqueles que acreditam poder explicar a natureza da consciência através de teorias computacionais ou através do estudo do funcionamento cerebral. Filósofos e cientistas cognitivos como R. Jackendoff (1987), os Churchlands (1986, 1995), W. Calvin (1990), D. Dennett (1991), O. Flanagan (1992) seguem essa tendência, apostando no triunfo de teorias materialistas e aliando-as, às vezes, ao darwinismo. Os não naturalistas

LEITURACOMPLEMENTAR

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como Swinbume (1984) e Nagel (1974, 1986) adotam uma posição radicalmente oposta: para eles qualia e experiências conscientes são intratáveis do ponto de vista de qualquer tipo de teoria neurocientífica. A impossibilidade de formular uma teoria científica da consciência toma o problema mente-cérebro insolúvel e força uma ruptura com o monismo materialista.

Formou-se ainda um terceiro grupo: os chamados "novos misterianos" (new mysterians). Esses não descartam a hipótese naturalista, mas sustentam que desvendar a natureza da consciência constitui um problema cuja complexidade ultrapassa a capacidade cognitiva humana. Os seres humanos podem até formular o problema da consciência – o que os distinguiria de outros animais –, mas seu cérebro é incapaz de resolvê-lo. Dentre os novos misterianos, destaca-se McGinn (1991). McGinn sustenta que o cérebro humano, forjado pela evolução para sobreviver numa sociedade pré-industrial, não pode resolver esse tipo de questão, da mesma maneira que insetos não podem compreender a teoria da relatividade ou resolver uma equação diferencial. Não podemos transpor os limites de nossa própria razão. Na filosofia da mente, da mesma maneira que na matemática, há problemas cuja solução é impossível.

A predominância crescente do naturalismo gerou uma espécie de curto-circuito na história da filosofia da mente nas últimas décadas: de teorias da mente saltou-se para teorias da consciência, para retomar rapidamente para uma equiparação entre consciência e mente, num movimento quase imperceptível. Esse movimento se inicia no final dos anos de 1980 quando se enfatizou a necessidade de elaborar uma teoria da consciência por acreditar-se que uma teoria da mente não seria suficiente para explicar a natureza da experiência consciente. Uma teoria filosófica da natureza da experiência consciente tinha de começar por definir e caracterizar esse tipo de fenômeno, o que significava uma dificuldade quase intransponível. Para começar, seria preciso, pelo menos, unificar a pluralidade de sentidos que se pode atribuir ao termo "consciência" o que, aparentemente, não foi possível. Os filósofos da mente foram acusados de ficar girando em círculos, num exercício especulativo árido e inútil, onde nunca se chegou a qualquer tipo de consenso que servisse de ponto de partida para a elaboração de algum tipo de teoria.

O naturalismo rejeitou essa estratégia filosófica baseada na análise conceitual, acentuando que, em vez de ficarmos perguntando o que é a consciência - a busca por uma resposta para o hard problem de que nos fala Chalmers – temos de tratar essa questão como um problema científico, isto é, como um problema empírico. Em vez de definir consciência, precisamos estudar suas manifestações. Os Churchlands, por exemplo, propunham uma estratégia do tipo "dividir para dominar": em vez de tentarmos elaborar uma teoria geral da consciência, temos de elaborar teorias específicas de processos mentais nos quais essa se manifesta, ou seja, teorias acerca da natureza da atenção, da memória, dos processos cerebrais subjacentes à produção do sono e da vigília etc. Quando desvendássemos todos esses aspectos da nossa vida mental, encontrando seus correlatos neurais estaríamos de posse de uma teoria da consciência.

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Ora, esse tipo de estratégia levou a uma equiparação entre teorias da consciência e teorias da mente num movimento inverso àquele que se iniciara no final dos anos de 1980. Uma teoria completa da mente seria, também, uma teoria da consciência. O resul-tado dessa manobra foi uma dissolução das fronteiras entre filosofia da mente e neuro-ciência, que assistimos até hoje. Proliferaram teorias acerca dos correlatos neurais da consciência, tornando a tarefa de discorrer sobre todas elas quase impraticável. A filosofia da mente passou também a ser invadida por teorias oriundas da física, onde se busca uma equiparação entre experiência consciente e fenômenos quânticos, numa tentativa frequentemente ironizada como a busca da explicação do obscuro pelo mais obscuro.

Um quadro, ainda que incompleto, de todas essas teorias, remete-nos a uma lista razoavelmente longa dos possíveis correlatos neurais da consciência:

• Oscilações de 40 hertz no córtex cerebral (CRICK & KOCH, 1990).• Núcleo intralaminar no tálamo (BOGEN, 1995).• Mapas reentrantes nos sistemas tálamo-corticais (EDELMAN, 1989).• Atividade neural no tempo (LIBET, 1993).• Alguns neurônios no sulco temporal superior (LOGOTHETIS & SCHALL, 1989).• Atividade rítmica em 40 hertz nos sistemas tálamo-corticais (LLINAS, RIBARY,

JOLIOT & WANG 1994).• Gestalts neuronais num epicentro (GREENFIELD, 1995).• Coerência quântica nos microtúbulos do cérebro (HAMEROFF, 1994).

De todas essas hipóteses, as que se tomaram mais populares foram as de Edelman e as de Crick e Koch. Crick, ganhador de um Prêmio Nobel, popularizou-a no seu livro The Astonishing Hypothesis [A hipótese assombrosa], publicado em 1994. Nesse livro Crick chamou de hipótese assombrosa a possibilidade de explicar a natureza de nossos pensamentos, alegrias, tristezas e outras emoções como resultando da atividade de alguns grupos de neurônios de nosso cérebro. Não muito tempo depois, várias resenhas e comentários desse livro apontaram para o fato de que, afinal de contas, ninguém mais considerava que essa fosse uma hipótese assim tão assombrosa.

Crick supôs que a chave para desvendar o mistério da consciência estaria no estudo dos mecanismos neurais subjacentes à organização da percepção visual. A hipótese que ele desenvolveu baseou-se no fato de que a consciência visual está correlacionada com uma oscilação, em 40 Hz, das camadas cinco e seis do córtex visual primário. Ou seja, quando o córtex visual reage à estimulação, alguns grupos de neurônios disparam de forma sincronizada.

Ora, seriam esses, efetivamente, os correlatos neurais da consciência? Certamente não poderíamos esperar que qualquer dispositivo físico com partes oscilando em 40 Hz (um rádio, por exemplo) torne-se, necessariamente, consciente. A oscilação sincronizada parece relacionar-se com a produção de experiências conscientes unicamente quando ocorre no cérebro. Ou seja, a oscilação sincronizada não poderia ser isolada ou dissociada de outros elementos presentes no cérebro, o

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que a torna necessária, mas não suficiente para explicar a produção de experiências conscientes. Esse é o chamado linking problem que ainda constitui um grande desafio para os neurocientistas.

A teoria de Edelman (1987, 1989, 1992) não se popularizou tanto como a de Crick e Koch, embora tenha atraído a atenção de neurocientistas e cientistas cognitivos. Para a formulação de sua teoria, o darwinismo neural, Edelman partiu de cinco ideias básicas acerca do funcionamento cerebral. A primeira delas é que seria impossível para o ge-noma humano especificar inteiramente a estrutura do cérebro. As conexões sinápticas não são preestabelecidas e desenvolvem-se a partir da interação do cérebro com o seu meio ambiente e com processos bioquímicos endógenos. Em segundo lugar, os cérebros dos indivíduos apresentam diferenças em termos de estrutura e de conectividade. Como consequência, não há um mapeamento fixo entre tipos de estados mentais e tipos de es-truturas neuronais. Em terceiro lugar, da mesma maneira que pressões ambientais sele-cionam membros mais aptos numa espécie, as informações que entram no cérebro sele-cionam grupos de neurônios reforçando as conexões entre eles. Esses grupos competem entre si na tentativa de criar representações eficazes, ou mapas, da grande variedade de estímulos que chegam do meio ambiente. Grupos que formam mapas bem-sucedidos predominam, ao passo que os outros definham. Em quarto lugar, grupos de neurônios podem desempenhar múltiplos papéis. Detectores de vermelho são ativados quando coi-sas vermelhas estão na minha frente. Contudo, eles podem também ser ativados para reconhecer rosa ou púrpura. Em quinto e último lugar, a perda de neurônios não implica, necessariamente, na perda de capacidade funcional do cérebro, salvo quando essa perda é massiva como no caso, por exemplo, da doença de Alzheimer.

Dadas essas características do cérebro, a consciência surge a partir da possibilidade de o cérebro estabelecer uma distinção entre experiência interna e externa, ou seja, distinguir entre mudanças decorrentes de variações orgânicas internas ao organismo (sinais que acusam modificações endócrinas) e mudanças ocasionadas por sua interação com o meio ambiente. Forma-se, com isto, uma distinção preliminar entre interno e externo, entre "eu" e "não eu", a partir de uma segregação entre dois tipos de sistema nervoso efetuada pela seleção neuronal, um para efetuar o registro interno e outro para efetuar o externo. Distinguir entre o interno e o externo é tarefa vital para a sobrevivência de alguns organismos, mas isto não seria possível se essa segregação inicial não viesse acompanhada, posteriormente, de uma coordenação entre esses dois tipos de sistema nervoso.

Dessa coordenação teriam surgido as primeiras formas de percepção consciente. Contudo, mais um passo teria sido necessário para o surgimento da consciência entendida como um fluxo serial. Para isto foi necessária a formação de um sistema de memória capaz de projetar para o futuro experiências bem-sucedidas no passado e atualizar-se constantemente com base nos novos resultados obtidos. Esse sistema estaria implementado no cérebro na forma de "mapas reentrantes". A reentrada é uma espécie de realimentação entre mapas ou grupos de neurônios selecionados. Assim sendo, se um mapa A envia um

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sinal a um mapa B e esse responde com um segundo sinal, esse reentra em A. A reentrada permitiria a categorização, o aprendizado, a projeção para o futuro e a formação de conceitos, passos necessários para a passagem de uma consciência perceptiva primária para formas mais sofisticadas de experiência consciente, incluindo a própria autoconsciência.

As teorias de Crick e Koch e a de Edelman são consideradas marcos importantes nas tentativas de elaboração de uma abordagem naturalista da consciência. Contudo, nelas não encontramos uma explicação da natureza da experiência consciente, ou seja, elas não explicam o que, em última análise, torna um estado mental algo consciente. Crick e Koch identificam a experiência consciente com a organização da percepção, buscando uma explicação de sua unidade em mecanismos neurais subjacentes. No caso de Edelman, encontramos uma identificação implícita entre consciência e atenção. Ambas são teorias neurológicas da mente e não da consciência. Não se poderia esperar de uma abordagem naturalista uma explicação do que é a consciência (o hard problem de Chalmers) – essa não é a proposta de Edelman, nem de Crick e Koch. Mas poderíamos – ou deveríamos – esperar uma explicação de como e por que a consciência afeta a cognição, ou seja, que diferença faz ter experiências conscientes.

Flanagan (1998) enfatiza que uma teoria da cognição que não leve em conta o papel que a consciência desempenha na nossa vida mental será necessariamente incompleta. O papel da experiência consciente na cognição deve ser o ponto de partida de uma teoria da consciência. Reconhecer que a experiência consciente faz diferença no processamento de informação constitui, aliás, o primeiro passo a ser dado para se construir essa teoria – um passo que nos força a restabelecer uma distinção entre mente e consciência como ressaltaram os filósofos no final dos anos de 1980. O grande desfio a ser enfrentado por uma teoria da consciência é escapar, de um lado, da especulação filosófica estéril e, de outro, de achar que uma teoria da mente seria automaticamente uma teoria da consciência – como querem os naturalistas influenciados pelo funcionalismo.

Podemos perceber que o papel da consciência no processamento de informação não é apenas um efeito colateral se compararmos jogadores de xadrez mecânicos e humanos, como é o caso de Deep Blue e G. Kasparov. Deep Blue venceu Kasparov em 1997 após uma longa disputa. Reconhecemos em Deep Blue uma máquina inteligente, apesar de ela ser totalmente inconsciente, o que reforçaria o pressuposto funcionalista de que inteligência e consciência podem ser dissociadas e que essa última seria apenas um efeito colateral dispensável. Mas dificilmente reconheceríamos em Deep Blue um modelo de como os seres humanos jogam xadrez ou processam informações de outros tipos. Como ele não tem experiências conscientes, não podemos sequer imaginar o que é ser como o Deep Blue – o que nos coloca numa situação muito mais radical do que aquela concebida por Nagel quando esse nos diz que não podemos saber o que é ser como um morcego. Em Deep Blue não reconhecemos nada parecido com a cognição humana, apesar de ele ter sido construído por uma equipe de engenheiros e programadores e, do fato de seu programa registrar milhares de jogadas e soluções para problemas de xadrez executadas por seres humanos nas últimas décadas. A inconsciência de Deep Blue toma sua "psicologia" totalmente opaca para nós.

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Consideremos agora o jogador de xadrez humano, ou seja, Kasparov. Sabemos o quanto Kasparov se sentiu frustrado após sua derrota, atribuindo-a, frequentemente, ao descontrole emocional por que passou durante o jogo com Deep Blue. À diferença deste último, podemos imaginar o que é ser como Kasparov. Kasparov é consciente e a maioria de suas jogadas foi acompanhada por experiências conscientes – talvez apenas algumas tenham sido executadas "automaticamente". O mais provável é que essas experiências conscientes tenham provocado, no decorrer do jogo, seu descontrole emocional e, finalmente, sua derrota.

Ora, essa comparação entre Deep Blue e Kasparov, proposta por Flanagan, retrata em grande parte por que a ciência cognitiva não se ocupou em tentar explicar a natureza da consciência, até o final dos anos de 1980. E por que, igualmente, quando começaram a surgir teorias da consciência na década de 1990, essas se contentaram em ser teorias da mente, deixando de lado a explicação da especificidade da natureza da experiência consciente.

Para os funcionalistas, Deep Blue é um exemplo de que o processamento inteligente de informação não requer consciência ou de que experiências conscientes são um efeito colateral perfeitamente dispensável na construção de modelos do funcionamento mental. Experiências conscientes podem ser abstraídas na elaboração desses modelos, da mesma maneira que, em teorias físicas, abstrai-se, por exemplo, fatores que possam interferir na consideração do comportamento ideal das moléculas de um gás.

Por outro lado, os naturalistas tenderam a excluir a consideração da experiência consciente nas suas teorias por receio de enfrentar um problema intratável que poderia escapar do domínio de teorias neurocientíficas e que, em última análise, os forçaria a adotar algum tipo de dualismo. Por causa desse receio os naturalistas preferiram desenvolver teorias da mente e não teorias da consciência. Ao equiparar consciência com mente, eles trataram a experiência consciente da mesma maneira que os funcionalistas, ou seja, como uma espécie de efeito colateral ou algo, em última análise, rebarbativo no funcionamento mental.

A estranheza que sentimos diante da afirmação de que Deep Blue seria um modelo de funcionamento da cognição humana não se deve apenas ao fato de essa máquina não ter experiências conscientes e ao reconhecimento de que essas afetam o processamento de informação e o comportamento. Comparemos novamente Deep Blue e Kasparov. Após o jogo, Kasparov ficou deprimido, Deep Blue com certeza não sentiu nada. A inconsciência de Deep Blue toma-o um modelo contra intuitivo da cognição humana na medida em que as experiências conscientes, quando acompanham nossos processos cognitivos, tomam-nos capazes de sentir felicidade, amor, prazer ou dor. É a consciência que toma nossa cognição diferente daquela de um computador ou de insetos que copulam sem sentir prazer. Se quisermos explicar esse tipo especial de cognição, teremos de dispor de uma teoria da consciência – uma teoria que comece por reconhecer a função que essa desempenha em nossa vida mental.

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McGinn (1989) chama a atenção para o fato de que é o caráter consciente de nossas experiências o que, em última análise, nos permite ver o filme do mundo em technicolor. E chama atenção também para o fato de que o grande mistério que precisamos ainda desvendar é saber como a massa cinzenta de nosso cérebro pode produzir esse filme colorido. Carl Sagan, na sua novela Contact [Contato], publicada em 1985, lança um desafio parecido. Ele nos diz: "pense que nesse momento você está num estado consciente. E diga-me se, em algum momento, esse pensamento te remete a algo como alguns bilhões de neurônios disparando nesse instante".

Essas afirmações de McGinn e de Sagan alertam para o risco envolvido nas tenta-tivas de formulação de teorias da consciência. Reconhecer a existência – a ontologia pró-pria – da experiência consciente pode levar-nos ao dilema de não podermos situá-la em nenhum quadro conceitual compatível com uma visão científica do mundo. Por outro lado, rejeitar a existência da consciência pode levar-nos a um empobrecimento teórico inaceitá-vel. Haverá alguma estratégia teórica e metodológica que nos livre desse dilema? [...]

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RESUMO DO TÓPICO 3Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como:

• Existem dois componentes principais da ideia de determinismo, o primeiro é a noção de uma coisa fazendo outra coisa acontecer, o segundo componente-chave do determinismo é a ideia de que, para qualquer evento que aconteça, ele teria que acontecer e não poderia ter sido de outra maneira.

• Os dois componentes do determinismo não são totalmente independentes um do outro. Se, de fato, um evento fez com que outro acontecesse, parece que, dado o primeiro evento, o segundo evento teve que acontecer e não poderia ter sido de outra forma.

• Apesar dessa dependência entre os dois componentes do determinismo, os dois componentes aparecem em conflitos separados entre compatibilistas e incompatibilistas.

• A tese do determinismo físico é dizer que todo evento é determinado por um evento anterior mais as leis da natureza.

• A maior parte do suporte empírico ao determinismo físico vem das ciências físicas e, portanto, faz com que ele se adapte bem ao fisicalismo.

• Os compatibilistas sustentam que a existência do livre-arbítrio é compatível com o determinismo.

• Para os compatibilistas, o livre-arbítrio, pelo menos, o tipo necessário para a responsabilidade moral, é compatível com o determinismo.

• Existem três formas de negar o compatibilismo e afirmar o incompatibilismo: abraçar uma forma de incompatibilismo conhecida como determinismo duro, a visão que nega a existência do livre-arbítrio e afirma a verdade do determinismo; adotar uma forma de incompatibilismo conhecida como libertarianismo, a visão de que o livre-arbítrio existe e o determinismo é falso; negar que o livre-arbítrio existe e negar que o determinismo é verdadeiro.

• O argumento da origem (ou argumento da cadeia causal) depende do aspecto do determinismo que envolve eventos passados que determinam eventos posteriores, esse aspecto do determinismo entra em conflito com uma certa concepção que envolve o livre-arbítrio, a saber, que se alguém tivesse livre-arbítrio, seria a fonte última das decisões que vai tomar.

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• No cerne do argumento da consequência, está um conflito sobre a natureza do tempo, o conflito diz respeito, por um lado, ao que o tempo precisa ser para que o livre-arbítrio exista e, por outro lado, ao que tempo precisa ser para que o determinismo seja verdadeiro.

• De uma perspectiva, o termo “o arbítrio” serve para selecionar um certo tipo de estado mental ou evento mental, estes são estados ou eventos que podemos chamar de "vontades" ou "atos de vontade".

• Outra maneira de pensar a respeito do arbítrio é que ele é algo que varia ao longo de um espectro de poder versus fraqueza.

• O modelo de hierarquia dos desejos da liberdade do arbítrio se origina do filósofo Harry Frankfurt e possui duas noções-chave: uma distinção entre estados mentais de primeira ordem e de ordem superior, especialmente estados mentais como desejos; um desejo que se torna volição.

• No modelo da origem última da liberdade do arbítrio, uma pessoa ou seu arbítrio deve ser o criador final de suas escolhas ou ações – se o arbítrio é causado ou determinado, então não é livre, uma versão do modelo de origem do livre-arbítrio é o modelo de causação de agente.

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1 Existem dois componentes principais da ideia de determinismo. Quais são esses componentes e como eles se relacionam entre si?

2 Quando falamos das relações, se houver alguma, entre determinismo e livre-arbítrio, uma das posições é o que chamamos de compatibilismo. Explique o que é o compatibilismo.

AUTOATIVIDADE

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