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 FILOSOFIA DA MENTE NEUROCIÊNCIA, COGNIÇÃO E COMPORTAMENTO  João de Fernandes Teixeira Editora Claraluz, São Carlos - SP 2005

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FILOSOFIA DA MENTE NEUROCINCIA, COGNIO E COMPORTAMENTO

Joo de Fernandes Teixeira Editora Claraluz, So Carlos - SP 2005

II

Para Malu, mais uma vez e sempre.

III

SUMRIO Apresentao de Lucia Santaella .........................................................................................I Introduo.............................................................................................................................1 1a. Parte: Crebro A cincia cognitiva e o crebro........................................................................................4 Mentes e mquinas no-clssicas.......................................................................................20 Uma nota sobre Sartre e Damsio ou as emoes entre a fenomenologia e a neurobiologia .......................................................................................37 2a. Parte: Comportamento Behaviorismo radical e cincia cognitiva.......................................................................50 Notas para uma teoria do pensamento no behaviorismo radical: vagando entre Skinner, Dennett e Calvin..63 Mais uma nota sobre o operante.73 As bases neurais da equivalncia de estmulos....................85

IV

Filosofia da mente para desconstruir clichs Uma maneira simples e conveniente de se apresentar a cincia cognitiva seria defin-la como o estudo cientfico da mente e do seu papel na produo do comportamento inteligente, isto , comportamento propositado e orientado para um alvo. Os principais protagonistas da cognio humana tm sido a mente, o crebro, a linguagem, a ao e suas relaes com o mundo. A rea tem, ou pelo menos teve at hoje, um carter interdisciplinar e mesmo transdisciplinar. Entre as disciplinas que se conjugam para a composio dessa rea hbrida encontram-se as cincias da computao, a lingstica, a psicologia, a neurocincia e a filosofia, mais especificamente, a filosofia da mente. No se trata a de uma filosofia exgena, isto , de sistemas filosficos externos que so transplantados para a rea da cognio, mas sim de uma filosofia endgena que, evidentemente sem abandonar as razes seculares de que se originou, nasce e se desenvolve com a finalidade de problematizar e refletir sobre as encruzilhadas conceituais e as contradies tericas que so prprias da rea. Nesse sentido, dentre as disciplinas do elenco cognitivo, a filosofia da mente aquela que desempenha o papel de advogado do diabo, pois a ela que cabe questionar as implicaes epistmicas, os vazios explicativos (explanatory gaps) e as incoerncias lgicas do estado da arte apresentados por esse campo do conhecimento. muito justamente essa funo de advogado do diabo que este livro de Joo de Fernandes Teixeira cumpre magistralmente. O autor est longe de ser um novato na filosofia da mente. Ao contrrio, responsvel por um nmero considervel de importantes publicaes em cincia cognitiva que fazem dele um dos maiores especialistas brasileiros nesse campo e, sem dvida nenhuma, o mais prolfico. Por essa razo, esta uma obra madura na qual o autor, com a intimidade e segurana que s os anos de pesquisa sria podem trazer, sintoniza suas idias para assumir uma voz prpria frente ao estado mais atual das questes colocadas por sua rea de investigao em um circuito internacional. No se trata, portanto, de um livro para principiantes. Isso no quer dizer que no possa ou no deva ser lido por iniciantes. H pelo menos duas maneiras de se iniciar nos estudos de uma rea do conhecimento. O primeiro deles parte do mais simples para o mais

V complexo. Esse o procedimento mais comum. Mas nada impede que se comece pelo mais complexo para, depois, ir percorrendo os estudos de modo relativamente aleatrio como quem visita lugares desconhecidos com a ateno aberta e a sensibilidade acesa. Por meio desse procedimento, muito atual nesta nossa era das configuraes hipermiditicas, o conhecimento vai se perfazendo de modo a-seqencial, atravs de conexes que so movimentadas pela bssola da curiosidade e do interesse intelectual. Esse procedimento poderia ser chamado de motivacional. Quando empregado, samos de um texto complexo com a cabea to cheia de interrogaes, inquietudes e enigmas que somos colocados, mesmo sem termos conscincia disso, em estado de alerta para o futuro. Aos que j esto iniciados no assunto, o livro um deleite e, ao mesmo tempo, uma instigao, um desafio e um convite ao debate e, at mesmo, ao combate, pois a obra inegavelmente polmica, no sentido mais rico desse adjetivo. Argumentos ousados -- e corajosos na desconstruo de confortveis clichs -- so inteligentemente elaborados para morder o esprito do leitor, obrigando-o a reagir dialogicamente. No me demorarei aqui na apresentao do contedo do livro, pois isso j est claramente explicitado na introduo do autor. Limito-me a acentuar que o livro est recheado de interrogaes cruciais, diagnsticos lcidos e propostas originais. Entre eles destacam-se, por exemplo, interrogaes sobre o futuro que a ascendncia da neurocincia cognitiva trar para a sobrevivncia da filosofia da mente. Os diagnsticos giram, por exemplo, em torno da falsa equiparao entre a proposta funcionalista e o modelo computacional da mente. Giram tambm em torno da falsa obsolescncia da inteligncia artificial diante das novas faces que ela apresenta na robtica atual. As propostas so muitas. Entre elas merece nota a utilizao de lgicas no clssicas, paraconsistentes, na teoria da computao como meio de superao de discusses estreis que vm assombrando o cenrio da cincia cognitiva desde a ltima dcada. Enfim, o livro est recheado de problematizaes como, por exemplo, aparecem na corajosa crtica to celebrada teoria neurobiolgica das emoes de Antonio Damsio, luz, nada mais, nada menos, do que a ontologia da emoo presente na obra Esboo de uma teoria das emoes, de Sartre. Aparecem tambm na remoo dos preconceitos, para o autor injustificados, contra o behaviorismo radical de Skinner e na conseqente proposta de uma reavaliao dessa teoria frente s preocupaes com o comportamento, a

VI autolocomoo, a corporeidade e a nova concepo da natureza da representao, que ocupam um lugar central na nova robtica e no dinamicismo, a teoria da cognio corporificada. No Brasil, onde, infelizmente, ainda est em falta a necessria valorizao da extrema relevncia da cincia cognitiva e da filosofia da mente, cujos estudos se expandem pelo mundo afora, admirvel e digno de nota que surja entre ns um livro com tal nvel de maturidade e autonomia de pensamento, em dilogo com os debates internacionais mais avanados dessa complexa rea. Isso faz com que esta obra de Joo de Fernandes Teixeira brilhe como um astro magno iluminando a jornada daqueles que pretendem se aprofundar na disciplina mais abrangente e questionadora do feixe das disciplinas que compem a cincia cognitiva: a filosofia da mente, neste caso, amplificada na filosofia da psicologia. Lucia Santaella Professora Titular do Curso de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC-SP Schningen, julho de 2004

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INTRODUO Este um livro escrito para provocar psiclogos, analistas do comportamento, neurocientistas, filsofos e cientistas cognitivos. Nele encontramos uma coleo de ensaios inditos sobre dois temas contemporneos: o crebro e o comportamento. O primeiro ensaio A cincia cognitiva e o crebro talvez devesse se chamar O que a neurocincia tem a ver com a filosofia da mente?. Em seu texto so apresentados os primeiros passos para a construo de uma disciplina que ainda est por ser desenvolvida: a filosofia da neurocincia, que no deve ser confundida com a neurofilosofia do casal canadense Churchland. Tive a oportunidade de apresentar recentemente sua verso preliminar num colquio na Universidade do Porto, em Portugal (o Segundo Encontro Nacional de Filosofia Analtica) onde recebi inmeras sugestes e crticas que me levaram a quase recompor inteiramente o texto inicial. Sua concluso aponta para a necessidade de buscar novas maneiras de conceber a computabilidade, um tema que motiva o ensaio seguinte. Computao Paraconsistente busca mostrar que a inteligncia artificial simblica a GOFAI (Good Old-Fashioned Artificial Intelligence) - no est morta, como muitos se apressaram a proclamar, sem antes examinar cuidadosamente vrias hipteses possveis acerca da analogia entre mentes e softwares. Nele propomos a utilizao de lgicas noclssicas como fundamento para a cincia da computao e para a descrio das atividades cognitivas humanas uma alternativa para continuar a manter a inteligncia artificial no seio da proposta interdisciplinar da cincia cognitiva. Trata-se de um texto bastante tcnico, dirigido queles bastante familiarizados com cincia da computao, mas que poder (ou dever) ser pulado pelo leitor leigo nesta rea. O terceiro ensaio, intitulado Uma nota sobre Sartre e Damsio ou as emoes entre a fenomenologia e a neurobiologia fala do crebro emocional e visa mostrar que, contrariando crticas habituais, uma neurobiologia das emoes no nos fora a embarcar no projeto implcito de construo de uma psicologia sem psych. Trata-se na verdade de uma tentativa de resposta s criticas freqentes de que a cincia cognitiva estaria ignorando

2 o universo emocional. Sua inspirao surgiu da leitura do livro Em busca de Espinosa, de autoria de Antonio Damsio, recentemente traduzido e publicado no Brasil. Os ensaios que compem a segunda parte comportamento mostram que possvel pensarmos uma continuidade entre behaviorismo radical e cincia cognitiva. Uma continuidade que, alis, nunca deixou de existir a no ser que repensemos a histria da psicologia no sculo XX com a luneta deformadora de Noam Chomsky. Chomsky se autoproclamou o heri de uma revoluo cientfica a revoluo cognitiva que nunca teria ocorrido a no ser numa viso manualesca da histria da psicologia. Esta a motivao do primeiro ensaio que abre a seo sobre comportamento, intitulado Behaviorismo Radical e Cincia Cognitiva. O ensaio seguinte, A teoria do pensamento no behaviorismo radical: vagando entre Skinner, Dennett e Calvin constitui um esforo para conceber o que teria sido uma teoria do pensamento no behaviorismo radical se Skinner tivesse conhecido o trabalho de dois cientistas cognitivos contemporneos: Daniel Dennett e William Calvin. Tenho a certeza de no ter retratado, neste ensaio, o pensamento skinneriano e sim de t-lo distorcido numa leitura retrospectiva. No se trata, contudo, de uma pura e simples reconstruo anacrnica do pensamento skinneriano e sim de uma tentativa de re-conceber uma de suas categorias freqentemente esquecida ou ignorada, qual seja, o pensamento. Ao mostrar que o behaviorismo radical pode acomodar uma teoria do pensamento desfazemos mais uma caricatura simplificadora acerca da psicologia skinneriana. O terceiro ensaio da seo sobre comportamento Mais uma nota sobre o operante dedico a meu colega Bento Prado Jr. e pode ser lido como uma continuao de seu artigo Uma nota sobre o operante: circularidade e temporalidade, publicado na coletnea por ele organizada em 1982, Filosofia e Comportamento que, infelizmente, no encontrou continuidade em novas re-edies ou re-impresses. Mais do que rediscutir o conceito de operante no behaviorismo radical, este ensaio visa desmistificar o uso indevido de teorias fsicas como as do caos e dos sistemas dinmicos muito caras a vrios tericos contemporneos - como instrumento de explicao psicolgica. Mostramos que, neste caso especfico, a transdisciplinaridade entre cincia cognitiva e behaviorismo radical no possvel.

3 Finalmente, o quarto ensaio, escrito para os analistas do comportamento e intitulado As bases neurais da equivalncia de estmulos empreende a busca pelas bases neurais da equivalncia de estmulos tal como apresentada nas teorias de Sidman e Tailby. Mais uma vez, insistimos na continuidade entre neurocincia e cincia do comportamento, enfatizando tambm que a investigao emprica indissocivel da reflexo epistemolgica uma proposta que encontramos tanto na cincia cognitiva como na filosofia da mente. bem provvel que ao terminar a leitura desta segunda parte comecem a aparecer os contornos da proposta que defendo - ainda que de forma incipiente - do que chamo de behaviorismo neurocognitivo. Embora a unidade terica destes ensaios no fique imediatamente aparente ao leitor menos atento, possvel, contudo, perceber sua inteno de recuperar a autenticidade do projeto de uma cincia da cognio, cuja interdisciplinaridade visa integrar o estudo do crebro, da computao, das emoes e do comportamento como caminho para a compreenso/replicao da vida mental humana. esta a proposta do behaviorismo neurocognitivo cujos delineamentos comeo a desenvolver neste livro uma proposta de integrao entre cincia do comportamento e neurocincia cognitiva anti-cartesiana. O behaviorismo neurocognitivo fundamenta-se em duas premissas bsicas. A primeira (captulos I a III) consiste em sustentar que o comportamento inteligente pode ser modelado e estudado computacionalmente (usando robs dotados de lgicas clssicas ou no-clssicas). A segunda, que o torna um behaviorismo sem caixa preta, consiste em sustentar que o crebro e os estados mentais (pensamentos e emoes) podem ser considerados variveis ambientais (captulos V a VII). A ausncia de uma unidade final na apresentao desta proposta tem a vantagem de poder preservar a independncia destes ensaios, que podem ser lidos separadamente, embora isto tenha me levado, ocasionalmente, a algumas repeties inevitveis pelas quais peo desculpas ao leitor. REFERNCIA BIBLIOGRFICA Prado Jr. B. (1982) Uma nota sobre o operante: circularidade e temporalidade in Prado Jr. B. (org.), 1982, Filosofia e Comportamento . So Paulo: Brasiliense.

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A CINCIA COGNITIVA E O CREBRO

No incomum encontrarmos a afirmao de que a filosofia da mente contempornea teria surgido com a publicao do livro de Ryle, The Concept of Mind , em 1949.1 Mas porque tomar esta obra como um marco da apario desta nova disciplina, de um passado to extenso? No se trata de desmerecer a importncia e a originalidade da obra de Ryle, mas esta , com certeza, uma razo insuficiente para situarmos o comeo da filosofia da mente no sculo XX. Talvez seja melhor, ento, perguntarmos o que conferiu obra de Ryle essa importncia de marco inicial, buscando no contexto de publicao de sua obra aquilo que os historiadores chamam de razes estruturais. Seriam estas que confeririam importncia ao livro de Ryle e no vice-versa. No incio da dcada de 50 o behaviorismo radical dava seus primeiros sinais de cansao. Ou melhor, a comunidade cientfica parecia ter comeado a ficar cansada dele e ansiava por novidades. Em nenhum momento se conseguia atacar o behaviorismo mostrando algum tipo de incoerncia ou falha terica, mas era possvel anunciar sua morte recorrendo quilo que ele no podia fazer: abrir a famosa caixa preta que seria nossa cabea. S assim poder-se-ia abandonar a abordagem estritamente periferalista do behaviorismo radical. Quem se incumbiu dessa tarefa foi a neurocincia uma neurocincia ainda incipiente se comparada quela que dispomos hoje. Ela abriu o caminho para re-enunciar o problema mente-crebro como problema cientfico re-introduzindo uma ontologia para os estados internos. Neste cenrio, a identificao entre o mental e o fsico era a posio preferida; uma posio que encontrou defesa nos partidrios da teoria da identidade mente-crebro, os australianos Place, Smart e Armstrong. Desde ento, a filosofia da mente, seja nas suas vertentes dualistas ou monistas materialistas no pde mais ignorar o que ocorria na vizinha neurocincia.

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Dennett, D. (1978).

5 A teoria da identidade mente-crebro, defendida pela escola australiana, gozou de um sucesso efmero, limitando-se praticamente a repisar a famosa equao [estados mentais = estados cerebrais] e a apostar que a neurocincia, no futuro, provaria a verdade deste enunciado uma neurocincia que, entretanto, ainda no dispunha de instrumentos para observao da atividade cerebral in vivo, algo que se consolidaria s mais tarde com o advento da dcada do crebro. Estranhamente, porm, os filsofos da mente, mesmo aqueles mais ambiciosos na defesa do identitarismo pouco parecem ter se importado com os problemas epistemolgicos ou metodolgicos que a neurocincia apresenta e como estes poderiam afetar suas posies filosficas. Afinal, do que estavam e esto falando os filsofos da mente quando se referem ao crebro? Que papel deve ter a neurocincia na filosofia da mente? Uma hiptese ainda pouco explorada e que poderia iniciar uma epistemologia da neurocincia ao mesmo tempo que servir de guia para uma futura historiografia da filosofia da mente a idia de que a histria da neurocincia, ou de como se concebe o crebro ao longo do sculo XX, a histria verdadeira ou secreta da filosofia da mente e de suas ramificaes na cincia cognitiva. Ao falarmos do crebro, no estamos nos referindo a um objeto que nos seria dado perceptualmente, como as mesas e cadeiras que esto a nossa volta e que compem nossa ontologia ingnua. Superar esta ingenuidade metodolgica e epistemolgica com que os neurocientistas tm tratado o objeto de sua cincia o primeiro passo para constituirmos uma filosofia da neurocincia; tarefa esta que, j tive oportunidade de observar, encontra-se inteiramente por fazer. A cincia do crebro deve ser concebida como uma cincia de como ns representamos nosso prprio crebro, ou seja, de como falamos de uma entidade construda atravs do conhecimento neurocientfico uma entidade terica. Como ento construir essa entidade que chamamos de crebro? Ou melhor, como comear a construir nosso conhecimento acerca de nosso crebro? A construo de um conhecimento do crebro comea pela chamada cartografia cerebral, que constitui um problema que exige decises metodolgicas e epistemolgicas. Quando se fala em mapeamento cerebral (relao entre atividades cognitivas e regies cerebrais) preciso definir com que tipo de mapa do crebro estamos trabalhando, ou seja, qual o critrio cartogrfico utilizado para dividir o crebro em suas vrias regies. Desde

6 que se descobriu que o crebro no poderia ser uma massa indiferenciada, a idia de traar limites entre reas abriu vrias possibilidades de fazer esse mapeamento, desde o critrio especificamente neuro-anatmico, passando pelo critrio de conectividade, at chegarmos ao mais importante que envolve a questo de forma e funo. A idia de que a funo depende da forma parece ser um enunciado intuitivo. Formas especficas ou arquiteturas especficas do crebro parecem ser responsveis pelo desempenho de funes tambm especficas. A formas especficas corresponderiam regies especializadas do crebro e nesse sentido que o debate forma/funo se entrecruza com a questo da cartografia cerebral, ou seja, com a questo dos modos de fazer o mapeamento de funes cognitivas ou outras no crebro. Uma primeira questo que podemos formular indagar at que ponto os critrios cartogrficos adotados podem ter uma influncia sobre as possveis solues para o problema mente-crebro. Uma segunda questo, igualmente complexa, consiste em saber at que ponto as funes cerebrais dependem de formas especficas. O principal desdobramento desta segunda questo diz respeito possibilidade de sustentar o modelo computacional da mente e a doutrina filosfica que o apia, qual seja, o funcionalismo. Antes de discutirmos estas questes examinaremos brevemente as principais formas de conceber a arquitetura cerebral que se consolidaram ao longo da histria da neurocincia. (1) A arquitetura funcional do crebro ao longo da histria. Existem trs opes metodolgicas no que diz respeito a pensar a arquitetura funcional do crebro: a) localizacionismo, b) holismo, c) equipotencialismo. O localizacionismo tornou-se, contemporaneamente, o localizacionismo funcional, ou seja, a localizao de reas obedece a um critrio essencialmente funcional. O holismo nega que funes mentais possam ser entendidas em termos de reas isoladas, mas no se choca com o localizacionismo, pois ele no precisa negar a especializao das reas. (Holistas eminentes na histria da neurocincia foram, por exemplo, K. Goldstein e K. Lashley). Em outras palavras, o holista no se ope necessariamente ao localizacionista, trata-se de uma questo apenas de nfase na parte ou no todo. Para os equipotencialistas no existiria especificidade funcional - o que bem diferente do que dizem os holistas. Freqentemente holismo e equipotencialismo so tomados como sendo a mesma coisa, mas

7 h uma diferena: o equipotencialista sustenta que cada parte do crebro funcionalmente equivalente a outra. Note-se que o localizacionista pode correlacionar uma funo com um tipo especial, por exemplo, de clula no crebro, mas esta clula pode estar difusa em vrias regies do crebro. A localizao neste caso perde o sentido especificamente geogrfico ou espacial ela pode ter a ver com os tipos de clulas ou com os diferentes grupos de clulas. preciso notar tambm que, atualmente os equipotencialistas concordam com um certo localizacionismo de funes mais simples, como as sensrias e as motoras, mas no estendem o localizacionismo para o caso das funes cognitivas mais complexas.2 Ao longo da histria da neurocincia as posies localizacionistas e equipotencialistas se alternaram, numa espcie de movimento pendular, trazendo para este debate grandes figuras como Gall e Flourens. Gall, no sculo XVIII, defendeu a frenologia ou a cranioscopia, um localizacionismo declarado, embora primitivo para os dias de hoje. Sua influncia, e seu legado foram, porm muito grandes. Hegel, na sua Fenomenologia do Esprito critica abertamente Gall sugerindo que a inteligncia humana no um osso; Fodor vai relembrar Gall na sua teoria da modularidade da mente.3 Em 1901 o neuroanatomista Bernard Hollander, do Royal College of Surgeons de Londres, publicou um manifesto revivendo a frenologia, chamado The revival of phrenology. Ao que pesem as crticas atuais que, freqentemente relembram Gall como algum que tinha uma hiptese errada com uma metodologia correta ele , inegavelmente, o pai do localizacionismo e dos estudos de citoarquitetura que se seguiram a suas hipteses iniciais. Infelizmente, o localizacionismo de Gall foi ofuscado pelo equipotencialismo de Flourens e s foi reaparecer mais tarde, a partir da metade do sculo XIX. Broca ser a figura que reviver o localizacionismo. Flourens defendeu o equipotencialismo a partir de estudos com o crebro de animais (quase sempre pssaros ou pombos) a partir da extirpao de partes desses crebros para ver quais funes desapareciam, usando um mtodo parecido com o que Lashley usaria anos mais tarde: como as funes no desapareciam aps essas extirpaes seria razovel manter o equipotencialismo. Flourens era um cartesiano de formao, ou seja, acreditava na hiptese dualista que separa corpo e alma, crebro e mente. Ele achava que com o2 3

Este seria o caso, por exemplo, de um cientista cognitivo como J. Fodor. Veja-se Fodor, (1983), p. 14.

8 equipotencialismo, ou seja, mostrando que funes cognitivas no dependiam de reas e clulas especficas do crebro estaria reforando este tipo de hiptese, ou, em outras palavras, a teoria cartesiana da unidade e indivisibilidade do mental. Um outro episdio que pode ser visto como parte do debate entre localizacionistas e equipotencialistas ocorre no final do sculo XIX: a polmica entre Golgi e Cajal e o aparecimento da doutrina do neurnio. Golgi pode ser lido como um equipotencialista ao pretender que o crebro seria um tecido contnuo, o que foi desconfirmado por Cajal que mostrou que o crebro um conjunto discreto de clulas. Na verdade, a doutrina do neurnio no nem localizacionista nem equipotencialista, mas de certa forma a posio de Golgi favorece o equipotencialismo. Hoje em dia, aps a inveno do microscpio eletrnico e da descoberta dos neurotransmissores sabe-se que a teoria de Golgi insustentvel. No incio do sculo XX a neurocincia parece inclinar-se decididamente para o localizacionismo, sobretudo por causa da influncia dos trabalhos de K. Brodmann. Em 1908 ele fez um mapeamento e parcelamento das regies do crebro que usado at hoje. Seu trabalho citado nos melhores manuais, como, por exemplo, o de Kandel. Ele introduziu o chamado Princpio da Correlao Funcional, ou seja, o princpio de que diferenas fsicas do crebro demarcam fronteiras funcionais. No se tratava de argumentar em termos de localizao de funes apenas, mas de correlacionar funes com diferenas celulares e histolgicas. No seu trabalho, o crebro foi dividido em seis camadas, o que at hoje aceito; localizou reas visuais e outras e traou fronteiras cito-arquitetnicas. O debate entre localizacionistas e equipotencialistas, entretanto, nunca terminou. Em 1946 Lashley faz um violento ataque s concepes de Brodmann, criticando todos os seus critrios de mapeamento por serem imprecisos e sujeitos a erros Brodmann teria passado por cima das diferenas entre indivduos da mesma espcie. A histria da neurocincia no parece ter feito muita justia a holistas como Lashley e Goldstein. A obra deste ltimo a que pese sua grande influncia sobre filsofos como M. Merleau-Ponty somente comea a ser recuperada nos ltimos anos. A concepo holista do crebro forneceria uma resposta a vrios enigmas com os quais a neurocincia vem se enfrentando nos ltimos anos. Por exemplo, diante do problema das localizaes lingsticas, o holismo sustenta que h localizaes relativamente a certas formas, mas no

9 aos elementos que as compem. O sistema nervoso um todo e no um aparelho composto de elementos heterogneos. O funcionamento da regio central do crtex no pode ser compreendido como a atividade de mecanismos especializados correspondendo cada um a uma funo. Neste sentido, leses de reas especficas no significam necessariamente a perda de funes - as quais poderiam ser desempenhadas por outras partes do sistema nervoso sem que isto nos force, entretanto, a assumir a veracidade do equipotencialismo. Em outras palavras, no existe uma correspondncia biunvoca entre localizaes e funes, nem tampouco a ausncia total de uma correspondncia.

(2) Mapeamento cerebral e cincia cognitiva - Agora que terminamos esta breve introduo histrica ao desenvolvimento das diversas noes de arquitetura funcional do crebro podemos contar mais um trecho da histria secreta da filosofia da mente ou de como esta foi afetada pelas concepes de crebro desenvolvidas pela neurocincia. Nas dcadas de 60 e 70 ocorre uma influncia mtua entre cincia cognitiva e neurocincia uma influncia que se inicia a partir da concepo do crebro como um computador (a metfora computacional) e culmina na idia da mente como o software do crebro. A noo de uma inteligncia artificial como realizao de tarefas por dispositivos que no tm uma arquitetura nem uma composio biolgica e fsico-qumica igual nossa abala profundamente a idia de que funes cognitivas dependeriam de formas ou arquiteturas/regies especficas do crebro. Esta idia vai se chocar com a doutrina filosfica subjacente inteligncia artificial, qual seja, o funcionalismo. Uma noo intuitiva, mas ao mesmo tempo precisa do que o funcionalismo nos proporcionada por Haugeland (Haugeland, 1993). Ele nos convida a considerar o que est envolvido em um jogo de xadrez, se so as regras do jogo e a posio das peas no tabuleiro ou se o material, tamanho, etc de que feito este ltimo. Certamente so as regras e a posio das peas. Pouco importa se o bispo e o cavalo so feitos de madeira ou de metal, se o tabuleiro grande ou pequeno. Em outras palavras, o jogo de xadrez tem uma realidade independente do material que utilizamos para fazer as peas e o tabuleiro. Mas no haveria jogo de xadrez se no dispusssemos de algum material para representar o tabuleiro, as peas, e as regras. No podemos suprimir inteiramente o material com o qual construmos um tabuleiro e suas peas, mas podemos vari-lo quase indefinidamente.

10 Ademais, as regras e estratgias do xadrez no sero redutveis ao marfim se as peas forem desse material, tampouco ao plstico se elas forem de plstico e assim por diante.4 Faamos agora uma analogia entre jogo de xadrez e a mente. A idia do funcionalista que a mente no se reduz ao crebro, da mesma maneira que no jogo de xadrez as regras e estratgias no se reduzem composio fsico-qumica do tabuleiro e das peas. O crebro instancia uma mente, mas essa no o crebro nem se reduz a ele. Podemos agora perceber porque os pesquisadores da inteligncia artificial apoiaram o funcionalismo, pois se tratava de apoiar a possibilidade de replicao mecnica de segmentos da atividade mental humana por dispositivos que no tm a mesma arquitetura nem a mesma composio biolgica do crebro. O aspecto mais interessante do funcionalismo sua caracterstica no-reducionista, do qual podemos derivar a chamada tese da mltipla instanciao (multiple realizability). De acordo com esta tese, dois computadores podem diferir fisicamente um do outro, mas isso no impede que eles possam rodar o mesmo software. Inversamente, dois computadores podem ser idnticos do ponto de vista fsico, mas realizar tarefas inteiramente distintas se seu software for diferente. A mesma analogia vale para mentes e organismos: um mesmo papel funcional que caracteriza um determinado estado mental pode se instanciar em criaturas com sistemas nervosos completamente diferentes. Um marciano pode ter um sistema nervoso completamente diferente do meu, mas, se ele puder executar as mesmas funes que o meu, o marciano ter uma vida mental igual minha. Isto uma conseqncia do materialismo no-reducionista: um rdio (hardware) toca uma msica (software); a msica e o aparelho de rdio so coisas distintas, irredutveis uma a outra, embora ambas sejam necessrias para que possamos ouvir uma msica. Nunca poderemos descrever o que o rdio est tocando atravs do estudo das peas que o compem. O materialismo no-reducionista dos funcionalistas leva-os a defender um tipo especial de teoria da identidade entre mente e crebro chamada de token-token identity. A token-token identity sustenta que alguma instncia de um tipo mental idntica a alguma instncia de um tipo fsico, sendo que este pode ser o sistema nervoso de um ser humano, de um marciano ou o hardware de um computador. Neste sentido, o funcionalismo uma4

Ver Teixeira, (2000), p. 124, f.

11 espcie de materialismo/fisicalismo minimalista onde diferentes tipos de estados fsicoqumicos podem manifestar um mesmo estado psicolgico: esta , como vimos, a tese da mltipla instanciao. A tese tem dupla mo: diferentes estados psicolgicos podem ser manifestados por um mesmo tipo fsico-qumico. Contudo, preciso notar, como o faz Mundale (1997), que os pioneiros do funcionalismo, como Putnam e Fodor no especificam o que devemos entender por um mesmo estado mental ou por um mesmo estado neurolgico. Considere-se, por exemplo, o estado mental estar com fome. Para Putnam tanto um ser humano quanto um peixe esto no mesmo estado mental quando tm fome, apesar de no estarem no mesmo estado neurolgico, pois seus sistemas nervosos apresentam grandes diferenas. Resta indagar se os estados mentais do ser humano e do peixe, ao ter fome, seriam funcionalmente equivalentes. Funcionalistas como Putnam e Fodor certamente diriam que sim. Contudo, preciso considerar que no caso do ser humano, a fome envolve a preparao de comida ou a ida a um restaurante. O mesmo no ocorre com o peixe. Os estmulos que podem causar fome em um ser humano so tambm distintos daqueles que causam fome no peixe. As opes de alimento para um ser humano tambm so distintas daquelas que podem satisfazer um peixe. Neste sentido, a fome do ser humano e a fome do peixe, s podem ser consideradas funcionalmente equivalentes se vistas a partir de um contexto especfico um contexto que abstrai suas peculiaridades para torn-las funcionalmente equivalentes. Esse tipo de abstrao parece ter sido o grande pressuposto da abordagem funcionalista, que, por ignorar as peculiaridades resultantes dos diferentes tipos de implementao fsica ou neurolgica de estados mentais, estipula, apressadamente, equivalncias funcionais em estados mentais distintos. Estipula tambm que esses estados mentais podem ser tratados independentemente de qualquer peculiaridade da base fsica na qual eles podem ser instanciados. Sustentar o funcionalismo e sua conseqente tese da mltipla instanciao exige uma representao equipotente do crebro onde no haja especificidade funcional nem dependncia de funes relativamente a formas e arquiteturas especficas, caso contrrio, essas funes no seriam reprodutveis em dispositivos diferentes do crebro humano. Em outras palavras, o equipotencialismo uma pressuposio implcita do funcionalismo e da

12 inteligncia artificial, que aposta na utilizao de hardwares genricos para reproduzir funes cognitivas humanas. A mltipla instanciao irrestrita baseia-se na idia de que haveria uma classe ilimitada de hardwares que poderiam reproduzir o software da mente - a classe das mquinas digitais com arquitetura von Neumann, que teriam apenas uma caracterstica comum, qual seja, a capacidade de efetuar computaes. Esse pressuposto levou a uma falsa equiparao entre a proposta funcionalista e o modelo computacional da mente. No outro extremo, tenta-se derivar da neurocincia a idia de que somente seres dotados de um crebro semelhante ao nosso poderiam pensar e ter experincias conscientes, como se somente os pssaros pudessem voar e no os avies, por serem estes ltimos feitos de metal e no terem asas. Mas este o prximo captulo da histria que queremos contar. Paradoxalmente, o desenvolvimento da neurocincia estaria levando a cincia cognitiva a um fim um fim pouco glorioso. Ao defensor da mltipla instanciao e, portanto, do equipotencialismo tambm s resta contra-argumentar que, a despeito de evidncias empricas crescentes em favor do localizacionismo funcional na neurocincia, at agora no foram fornecidas evidncias da possibilidade de uma reduo psiconeural completa, uma reduo que fosse uma autntica correlao type-type, ou seja, entre tipos de estados mentais e tipos especficos de regies/funes cerebrais. Examinaremos uma objeo a este argumento e uma possvel hiptese que justifique esse insucesso at o momento no item a seguir. (3) A dcada do crebro: mapeamento cerebral e filosofia da mente Na metade da dcada de 90, filsofos da neurocincia como W. Bechtel e J. Mundale argumentaram que a questo das relaes entre forma e funo , no caso do crebro, uma questo essencialmente emprica e no matria de discusso filosfica (Mundale, 1997). Mundale sugeriu que aps os estudos de Brodmann, verificou-se que a citoarquitetura e a histologia (forma) so determinantes da funo. Se o equipotencialismo estiver incorreto - e a neurocincia atual, sobretudo a neurocincia cognitiva parece inclinar-se para esta direo ao subsumir cada vez mais funes a formas especficas - boa parte do trabalho em inteligncia artificial, a incluindo o conexionismo, estaria condenado ao fracasso.

13 Estas afirmaes tiveram forte repercusso, sobretudo numa poca em que a cincia cognitiva vivia um forte re-arranjo de sua interdisciplinaridade onde o computador estava deixando de ser um modelo de mente para se tornar uma ferramenta de investigao do crebro. Neste sentido era preciso repensar as teorias da identidade mente-crebro e, com elas, o papel que os critrios cartogrficos de mapeamento cerebral podem ter sobre as possveis solues para este problema. Quando se fala de uma relao entre mente e crebro (o problema mente-crebro) estamos falando, hoje em dia, do tipo de correlao que podemos estabelecer entre funes cognitivas e crebro. O tipo de correlao ser dado pelo tipo de mapeamento que est sendo feito um tipo de mapeamento que nos fornece a concepo ou representao do crebro que foi escolhida para ser um dos plos da relao mente-crebro. Em outras palavras, o mapeamento define o que se entende por crebro, e neste sentido que seu papel fundamental para a filosofia da mente. Ao discutirmos esta questo, o problema da relao entre forma e funo reaparece: se a idia de forma prevalece, ou seja, se funes cognitivas dependem de formas especficas dadas por regies especializadas do crebro, a filosofia da mente ter de inclinar-se em direo a algum tipo de teoria da identidade entre mente e crebro. Neste caso, estaremos pensando num tipo de identidade mais estrita, algo que sustenta que [estados mentais = estados cerebrais], da mesma forma que a teoria da identidade dos anos 50, proposta pelos australianos Smart, Place e Armstrong sustentava. Esta identidade algo para a qual poderamos, agora, contar com a confirmao emprica fornecida pelos novssimos instrumentos de mapeamento cerebral, como por exemplo, o fMRI. Trata-se de uma proposta bastante diferente do materialismo no-reducionista dos funcionalistas de que falvamos acima; um materialismo no-reducionista que implicava o equipotencialismo no modo de conceber o crebro. Ora, se esse equipotencialismo rejeitado em nome de uma identidade entre tipos mentais e regies funcionais especficas do crebro, estamos diante de um outro tipo de identitarismo, a chamada type-type identity, ou a idia de que a determinados tipos de funes cognitivas correspondem determinados tipos de substratos neurolgicos. Este triunfo do materialismo identitarista implicaria, tambm, na rejeio do modelo computacional da mente e em boa parte das pesquisas que atualmente so desenvolvidas na cincia cognitiva. Mas significa a rejeio do modelo computacional que

14 podemos proclamar o triunfo da reduo psiconeural num futuro prximo? Teria a neurocincia tornado a filosofia da mente incua? Uma possvel resposta a esta indagao fora-nos a repensar as relaes entre neurocincia e filosofia da mente, alm de envolver vrias nuances e sutilezas conceituais. Em outras palavras, longe de ser uma questo emprica, parece-nos que ela precisa ser discutida primordialmente em terreno conceitual. Sustentaremos como razo principal para esse aparente insucesso do fisicalismo que tudo depende de como so construdos ou taxonomizados os tipos de funes cognitivas e seus correspondentes tipos cerebrais ou neurolgicos. Desta perspectiva, o fisicalismo/materialismo torna-se uma posio perfeitamente sustentvel, embora seu conflito com a pesquisa atual em cincia cognitiva e com o funcionalismo ainda merea mais reflexes, as quais esboaremos no item (4). Como construmos os tipos psicolgicos, os tipos neurolgicos e como se concebe a correlao entre eles? Tipos no so dados a priori, ou seja, no existe uma determinao a priori de quais entidades psicolgicas e quais entidades neurolgicas devem ser consideradas tipos. Com efeito, h vrias maneiras de fazer o mapeamento do crebro, seja a partir de tipologias evolucionrias, tipologias baseadas no desenvolvimento ou outras. Ademais, existem muitos instrumentos e tecnologias para individuar reas cerebrais. Existem, por exemplo, preparados a base de tinturas para discriminar variaes de padres celulares (o mtodo conhecido como cito-arquitetura) e o PET scan tambm usado para discriminar tipos diferentes, de acordo com diferenas em padres funcionais de ativao. Mtodos diferentes produzem diversas tipologias tipologias que podem at mesmo, em alguns casos, entrar em conflito. Assim sendo, seria ingnuo supor que a neurocincia venha algum dia a produzir um nico sistema classificatrio de tipos neurolgicos ou um nico mapeamento cerebral. Estes dependem de contextos e interesses. Por exemplo, uma tipologia clnica diferir de uma tipologia com finalidade fisiolgica. Podemos ento falar de uma variedade de mapas do crebro, da mesma maneira que falamos de uma variedade de mapas de um pas: mapa geogrfico, mapa poltico, mapa populacional, etc.5 Ora, a hiptese que precisamos explorar e que at hoje parece ter passado despercebida pela filosofia da mente por causa da inexistncia de uma reflexo metodolgica/epistemolgica sobre a neurocincia se o aparente fracasso das teorias da5

Esta mesma observao feita por Mundale (19997).

15 identidade se deve a uma impossibilidade de se sustentar o fisicalismo ou ao modo de mapear o crebro a partir de tipologias inadequadas para se correlacionar funes cognitivas e tipos neurolgicos. Neste caso, a representao do crebro seria a responsvel pelo fracasso do materialismo estrito, e se esse problema fosse resolvido, estaramos abrindo caminho para uma soluo definitiva para o problema mente-crebro (!). Finalmente cabe observar que em ambas as discusses, seja quando se argumenta em favor de uma identidade token-token como fazem os funcionalistas, seja quando se argumenta em favor da identidade type-type como fazem os materialistas/fisicalistas estritos, h um aspecto comum: a escolha tendenciosa de exemplos para ilustrar a equivalncia funcional ou a subsuno do estado mental a uma forma/arquitetura especfica do crebro. Os primeiros sempre tendero a focalizar exemplos mais abstratos, como a ateno, as emoes, a conscincia, onde o mapeamento neurolgico ainda muito incipiente. Os segundos, ou seja, os materialistas/fisicalistas, tentaro sempre focalizar exemplos cujas correlaes neuro-anatmicas encontram-se mais elucidadas como o caso da dor e de outros casos perceptuais. Certamente no podemos explorar plenamente esta hiptese aqui ela ultrapassa as ambies deste ensaio. Contudo, cabe enfatizar, antes de terminarmos esta seo, que se uma correlao type-type no pode ser obtida, isto no significa necessariamente que o fisicalismo seja uma teoria errnea e sim que isso pode se dever a alguma falha na escolha do sistema tipolgico a ser usado, seja para caracterizar o mental, seja para caracterizar o neuronal. Podemos selecionar, arbitrariamente, tipologias nas quais o mapeamento ocorrer ou outras que podero ser usadas como contra-exemplos proposta fisicalista. (4) O futuro do funcionalismo Agora que vimos que uma type-type identity defensvel e que, portanto, invocar a impossibilidade da reduo psiconeural completa no constituiria uma defesa para o materialista no-reducionista, podemos nos fazer a seguinte questo: qual ser o futuro do funcionalismo? Significar, de fato, a neurocincia da dcada do crebro e com ela a possibilidade de uma type-type identity o fim do funcionalismo como apregoam Bechtel e Mundale? (1997) Haver alternativas para este conflito entre a pesquisa em cincia cognitiva e a neurocincia? Ou dever esta ltima assumir papel

16 preponderante que relegaria a interdisciplinaridade de uma cincia da mente a apenas uma iluso temporria? A inspirao do funcionalismo nos anos 70 foi no apenas que o crebro poderia ser comparado a um computador, mas, mais especificamente, a um computador digital, uma mquina com arquitetura von Neumann. Associou-se o funcionalismo com o modelo computacional da mente (modelo simblico) e a tese da mltipla instanciao com a idia de que diferentes hardwares podem executar um mesmo software e vice-versa. Neste sentido, o funcionalismo trabalharia com hardwares ou bases fsicas excessivamente genricas e sua contrapartida neurolgica teria de ser, quase que necessariamente, o equipotencialismo cerebral. Contudo, mltipla instanciao no significa instanciao irrestrita.6 Caberia perguntar, ento, at que ponto seria sustentvel a tese da mltipla instanciao ( multiple realizability), ou seja, qual seria o limite para o conjunto de formas que podem realizar uma mesma funo? Esta era a pergunta que os funcionalistas, ou melhor, os defensores do funcionalismo digital como Putnam e Fodor no queriam fazer. A neurocincia no nos ensina que o crebro necessariamente irreplicvel; tampouco que no podemos reproduzir suas caractersticas funcionais usando outros materiais e arquiteturas para simular a mente da mesma maneira que uma mquina de dilise simula um rim. Neste sentido, o funcionalismo digital tem seus dias contados, mas no o funcionalismo como tese geral. O funcionalismo como tese geral parece vir fundamentar a terceira onda da inteligncia artificial, qual seja, a nova robtica de Brooks. O projeto terico da nova robtica tem como ponto de partida a idia de que a complexidade do comportamento biolgico derivada no apenas das caractersticas dos organismos, como tambm de sua interao com um meio ambiente igualmente complexo o que aproxima as idias de Brooks com as do behaviorismo radical de Skinner. O crebro dessas criaturas (sejam organismos ou os agentes robticos autnoimos de Brooks) concebido luz do comportamento exibido por elas. Insetos podem apresentar comportamento complexo, sem que para isso seus crebros tenham que representar regras lgicas. O mesmo podemos afirmar acerca de gaivotas que fazem vos rasantes para apanhar peixes no mar certamente seus crebros no representam regras e equaes da balstica para evitar que um desses vos resulte em algum tipo de coliso fatal ou6

Ver, Teixeira, J. de F. (2000) p.178.

17 afogamento. No crebro destes organismos, forma e funo esto muito prximos, sobretudo se se concebe funo como comportamento. Seus crebros operaram a transformao de comportamentos ou processos em hardwares (ou wetwares) especficos ao longo do processo evolucionrio. Se h representaes nestes crebros, elas so representaes implcitas ou encarnaes fsicas de processos, como , por exemplo, o caso de uma calculadora de bolso que encarna funes matemticas embora suas regras de funcionamento sejam estticas e invariveis. Certamente outros hardwares mais flexveis podem ser formados a partir das interaes comportamentais dos organismos/robs com a complexidade do meio ambiente. Neste caso, estamos diante de hardwares plsticos que podem se modificar a si mesmos nestes processos interativos e este o verdadeiro sentido da afirmao de que processos/comportamentos podem se transformar em hardwares ou no limite em wetwares. Esta concepo de crebro torna forma e funo indissociveis por associar a elas um terceiro elemento: o comportamento. Mas a indissociabilidade de forma e funo, neste caso, torna-se perfeitamente compatvel com o funcionalismo como tese geral de que falamos h pouco e a afasta do funcionalismo digital alis este parece ser o verdadeiro sentido das crticas de Brooks inteligncia artificial tradicional ou representacionalista. A crtica a um funcionalismo des-cerebralizado pode ter outras conseqncias que no exploramos aqui, como por exemplo, a necessidade de redefinir nossas concepes de computabilidade. Mas mesmo que esta no tenha ou no possa, no limite ser modificada, a importncia de nossa crtica sugerir que um computador um dispositivo regido por leis fsicas que podem instanciar leis lgicas e no apenas um dispositivo puramente abstrato que se torna definvel por uma excessiva generalidade, o que permitiria, por exemplo, incluir na classe dos computadores uma mquina de Turing construda com tampinhas de refrigerante e desenhos no cho. Mas esta discusso que no poderemos adentrar aqui requer uma reflexo sobre o estatuto ontolgico do que chamamos software e nossa tendncia a conceb-lo como entidade matemtica com uma existncia independente de sua realizao fsica; uma questo que nos leva, por sua vez, para o campo de uma nova disciplina, a saber, a filosofia da cincia da computao. Esta disciplina, que ainda no adquiriu nenhum tipo de cidadania filosfica ou acadmica deve comear com uma indagao primordial, qual seja, se a informao deve ser considerada uma entidade fsica

18 ou matemtica ou, alternativamente, como uma entidade fsica ou processo descritvel matematicamente. Mas, neste ltimo caso preciso atentar para no confundir descrio com objeto de descrio uma confuso que faz com que se ignore a especificidade dos objetos que esto sendo descritos simplesmente pelo fato de se postular a existnciaq um descritor universal, qual seja, a mquina de Turing.

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20

MENTES E MQUINAS NO-CLSSICAS

Este artigo retoma a velha G.O.F.A.I. G.O.F.A.I. a sigla criada pelo filsofo J. Haugeland para designar Good Old Fashioned Artificial Intelligence que nada mais do que outro nome para o paradigma simblico: a idia de que a mente um sistema formal que manipula smbolos (representaes) atravs de programas computacionais que resolvem problemas. Resolver problemas seria a prpria definio de inteligncia; uma tarefa que poderia ser executada por um computador imitando o grande processador de informao, ou seja, a mente humana. Nos anos 70 a G.O.F.A.I. viveu sua poca de ouro, tendo frente pioneiros como M. Minsky, J. McCarthy, H. Simon. Sua influncia foi to forte que naquela poca quase que se identificava cincia cognitiva com inteligncia artificial. A historiografia da cincia cognitiva de que dispomos hoje embora ainda nascente tem sido injusta com a G.O.F.A.I. Fala-se dela como algo obsoleto, que deve ser abandonado enquanto proposta metodolgica de abordagem da natureza do funcionamento mental. Novos paradigmas para a descrio da atividade mental como, por exemplo, o conexionismo, a robtica e o dinamicismo, estariam progressivamente substituindo a G.O.F.A.I. Em nome deste discurso, vrias possibilidades e hipteses abertas pelo paradigma simblico deixaram de ser exploradas. Uma delas a possibilidade de explorar novos conceitos de computabilidade luz de lgicas no-clssicas. A identificao da atividade cognitiva humana com a de um computador foi baseada em conceitos de computabilidade e de mquina de Turing que foram desenvolvidos na dcada de 30, tendo como pressuposto a lgica clssica. Nesta perspectiva, a mente seria um sistema formal clssico ou uma mquina lgica clssica deixando-se de lado na histria da constituio da G.O.F.A.I., outras possibilidades como a que sugerimos aqui, provavelmente pelo desconhecimento ou pela relativa averso s lgicas no-clssicas nos Estados Unidos.

21 Esta possibilidade no passou, entretanto, totalmente desapercebida por alguns autores mais recentes, como, por exemplo, J. Copeland. Em um de seus artigos (1997), ele chama nossa ateno para as implicaes da adoo de lgicas no-clssicas para conceber os conceitos bsicos de uma teoria da computabilidade e para estend-la, em seguida, para uma nova idia de mente, a mente-no-clssica. As conseqncias desta adoo, como notou Copeland, podem abalar profundamente os alicerces da cincia da computao que conhecemos. Uma delas seria o Teorema da Parada da Mquina de Turing (Turings Halting Theorem) que, focalizado a partir da computabilidade no-clssica ou paraconsistente, exigiria uma reforma geral da cincia da computao - tarefa herclea que no pode ser empreendida aqui, o que nos fora a apresentar apenas algumas conjecturas. As implicaes da idia de uma computabilidade no-clssica foram-nos, entretanto, a uma reflexo acerca do estatuto ontolgico das entidades da cincia da computao e sua relao com mquinas fsicas um item importante, porm pouco explorado, que deve estar presente numa futura filosofia da cincia da computao. Por fim, preciso saber se esta nova idia de computabilidade pode ser um bom descritor da atividade cognitiva humana, ou seja, se nossas mentes seriam melhor descritas como dispositivos lgicos noclssicos. A lgica paraconsistente e o Teorema da Parada de Turing Comecemos por explorar esta terra incgnita: at que ponto nossas concepes de computao so relativas a uma determinada concepo da lgica? Pode a adoo de lgicas no-clssicas afetar nossas concepes ortodoxas de computao? Conforme notamos, a teoria da computao surgiu nos anos 30, quando a lgica clssica era um pressuposto inquestionvel na formulao de teorias matemticas e, se abandonarmos esse pressuposto, uma das conseqncias mais interessantes seria a possibilidade de concebermos alternativas para o Teorema da Parada de Turing. O Teorema da Parada de Turing (daqui para diante tambm referido como TPT) consiste na demonstrao de que no existe um procedimento algortmico para demonstrar se, quando alimentada por um input especfico, uma mquina de Turing ir parar ou no. Em outras palavras, no podemos saber, de maneira automtica (por um algoritmo) se uma mquina de Turing parar ou no. a contradio que estabelece esta afirmativa, ou seja,

22 que no h algoritmo universal para decidir se uma mquina de Turing vai ou no parar. Se houvesse tal algoritmo, chegaramos a uma reduo ao absurdo do tipo n = n+1, o que no pode ocorrer na lgica clssica.7 Consideremos agora uma verso intuitiva de TPT atravs de um exemplo sobre a computao de um nmero natural n. Se chamarmos essa computao C(n) podemos conceb-la como fornecendo uma famlia de computaes na qual existe uma computao separada para cada nmero natural 1,2,3,, ou seja, as computaes C(1), C(2),C(3)...C(n) so a ao de uma mquina de Turing (MT) sobre o nmero n, que, no caso, constitui o input da mquina. Suponhamos agora que temos um procedimento computacional A que, quando ele termina, fornece uma demonstrao de que uma computao como C(n) nunca pra. Se em algum caso particular A chega a um fim, isso seria a demonstrao de que a computao especfica a qual ele se refere nunca pra. Dizemos, ademais, que A correto se ele no fornece respostas erradas. Pois, se A fosse incorreto, ele afirmaria (erroneamente) que a computao C(n) nunca termina, quando na verdade ela pra. Mas, nesse caso, efetuar a computao C(n) levaria a uma refutao de A. Para aplicar A para computaes em geral, precisamos codificar todas as diferentes computaes C(n) de forma que A possa se utilizar dessa codificao para realizar sua ao. Todas as possveis computaes C podem de fato ser listadas como: C1,C2,C3,C4 ...,

7

O enunciado tcnico do Teorema da Parada de Turing : Dada uma mquina de Turing qualquer com programa P e um conjunto de inputs arbitrrios I, no existe um programa de Mquina de Turing que pare aps um nmero finito de passos e nos diga se P vai terminar de processar o input I. Prova: Uma vez que seqncias computveis so enumerveis, considere an como sendo a n-tupla.seqncia computvel e n(m) a m-tupla. representao em an . Seja a seqncia tomando 1- n(n) como a n-tupla. representao. Uma vez que computvel no existe um nmero k tal que 1- n(n)= k(n) para qualquer n. Se tomarmos n=k segue-se que 1=2 k(k). Absurdo.

23 e podemos nos referir a Cq como a qth.computao. Quando tal computao aplicada a um nmero particular n podemos escrever: C1(n),C2(n),C3(n),C4(n),.... Esta ordenao pode ser vista como uma ordenao numrica de programas de computador. Esta listagem computvel, ou seja, existe uma computao singular C que nos d Cq quando lhe apresenta q ou, em outras palavras, a computao C atua sobre o par de nmeros q, n, (q seguido de n) para nos fornecer Cq(n). O procedimento A pode ento ser concebido como uma computao particular que, quando se lhe apresenta o par de nmeros q, n afirma que a computao Cq(n) nunca pra. Assim sendo, quando a computao A termina, temos a demonstrao de que Cq(n) no pra. Como depende dos dois nmeros q e n a computao A pode ser escrita como A(q, n), e temos: (1) Se A(q,n) pra, ento Cq(n) no pra. Consideremos agora os enunciados especficos (1) para os quais q igual a n. Com q igual a n temos: (2) Se A(n,n) pra, ento Cn(n) no pra. Note-se que A(n, n) depende apenas de um nmero, n e no de dois, e assim sendo ele deve ser uma das computaes C1,C2,C3,C4 ..., (aplicada a n) uma vez que esta constitui a listagem de todas as computaes que podem ser realizadas sobre um nico nmero natural n. Suponhamos que de fato ele Ck e neste caso ns temos: (3) A(n,n)= Ck(n). Agora, examinemos o valor particular n = k. De (3) ns temos: (4) A(k,k) = Ck(k). e de (2) com n = k (5) Se A(k,k) pra, ento Ck(k) no pra. Substituindo (4) em (5) encontramos: (6) Se Ck(k) pra, ento Ck(k) no pra.

24 Disto podemos deduzir que a computao Ck(k) no pra pois se parasse, no pararia tampouco, de acordo com (6). Mas A(k,k) no pode parar tampouco, pois temos que, por (4), ela o mesmo que Ck(k). Assim sendo, nosso procedimento A no pode afirmar se essa computao particular Ck(k) no pra, mesmo que ela no o faa. Neste caso, ou estamos diante de uma contradio do tipo (n = n+1) ou nosso procedimento A incorreto uma hiptese que no faria sentido considerar aqui. Esta demonstrao de Turing tem, claramente, como pressuposto, a lgica clssica: encontrar uma contradio significa implodir o sistema. Uma alternativa lgica clssica so as chamadas lgicas paraconsistentes. Lgicas paraconsistentes so lgicas noclssicas. Nossa opo por elas nesta investigao deve-se ao fato de estas no se oporem diretamente s concepes da lgica clssica, visando, ao contrrio, complement-la com ferramentas alternativas para resolver alguns problemas matemticos e lgicos que escapam da esfera do formalismo clssico. Esta proximidade lgica clssica tem uma vantagem: se a adoo de uma lgica paraconsistente resultar na rejeio do Teorema da Parada de Turing, esta ser uma concluso que no se seguir trivialmente ou pelo simples fato de termos topado com uma contradio. O desenvolvimento histrico das lgicas paraconsistentes tem levado a vrios questionamentos acerca do modo como devemos interpret-las. Elas podem ser concebidas a partir de dois diferentes pontos de vista: a) como uma lgica complementar lgica clssica ou b) como uma lgica heterodoxa, incompatvel com a lgica clssica e cujo objetivo substituir esta ltima em algumas ou talvez em todas as suas aplicaes 8. Defendemos o primeiro ponto de vista. Na medida em que o raciocnio paraconsistente no leva trivializao na presena de contradies, ou seja, na medida em que ele elimina algumas inferncias que poderiam se seguir de uma contradio (na lgica clssica qualquer coisa ou inferncia pode se seguir de uma contradio) entendemos que este tipo de raciocnio constitui um refinamento em relao aos raciocnios clssicos. Mais do que isto: a lgica paraconsistente pode ser concebida como uma tentativa de pensar para alm das contradies em vez de simplesmente rejeit-las. Porm, no discutiremos aqui se8

Para maiores detalhes acerca desta discusso veja da Costa, Beziau & Bueno, (1995).

25 raciocinar para alm das contradies fora-nos a conceber a lgica clssica como um subconjunto das lgicas no-clssicas ou, mais especificamente, das lgicas paraconsistentes ou seja, se estas contm os raciocnios clssicos ou pelo menos, boa parte deles. Enfatizaremos apenas que a lgica paraconsistente pode ser concebida como a lgica subjacente s teorias inconsistentes no-triviais. Contudo, colocaremos mais uma restrio a nossa escolha de uma lgica noclssica para conceber o Teorema da Parada de Turing. Selecionaremos uma lgica paraconsistente especfica, o mais prximo possvel da lgica clssica. Este o caso de C1+, desenvolvida por da Costa, Bziau e Bueno. C1+ pode ser vista como coincidindo com a lgica clssica em vrios aspectos, e talvez esta seja sua caracterstica mais surpreendente. C1+ permite alguns padres de raciocnio paraconsistente na presena de contradies que, de uma perspectiva mais ampla, coincidem com o raciocnio clssico. isto que aproxima C1+ do formalismo clssico, isto , o resultado geral de C 1+ est prximo da idia de que de uma contradio qualquer coisa se segue. Contudo, C1+ difere da lgica clssica na medida em que seu raciocnio paraconsistente na presena de contradies no leva trivializao, apesar do fato de que ele possa coincidir com o raciocnio clssico. Esta proximidade lgica clssica pode ser tomada como um critrio relevante para escolher C1+ dentre uma famlia de possveis lgicas paraconsistentes com o propsito de investigar que conseqncias podem surgir ao concebermos o Teorema da Parada de Turing a partir de uma perspectiva no-clssica. O que aconteceria, se, por exemplo, TPT no puder ser derivado de C1+? Ser que isto significa que TPT choca-se com a idia clssica de que de uma contradio qualquer coisa pode se seguir? Se este for o caso, a veracidade de TPT torna-se questionvel, at mesmo a partir de uma perspectiva clssica. Mas, certamente, este seria um resultado demasiado forte; um resultado que requereria uma caracterizao clara das relaes entre as lgicas clssicas e as paraconsistentes. Como tal clarificao ainda no se tornou possvel, no discutiremos esse assunto aqui. Apenas sugeriremos que TPT pode no ser derivvel de C1+ e apresentaremos algumas conseqncias que se seguem da idia de que a lgica clssica no precisa ser considerada como um paradigma inquestionvel para a teoria da computao.

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Alguns delineamentos de C1+. -

Comearemos nossa investigao apresentando

brevemente C1+. Deixaremos de lado, contudo, detalhes tcnicos. Nossa abordagem ser atravs de exemplos de raciocnios paraconsistentes em C1+, apresentados por da Costa, Bziau & Bueno (1995). O primeiro raciocnio (Raciocnio 1) um tpico raciocnio paraconsistente no sentido de restringir o que pode ser derivado quando uma contradio encontrada, ou seja, uma demonstrao de como o raciocnio paraconsistente desafia o principio de que qualquer coisa se segue de premissas contraditrias. O segundo raciocnio (Raciocnio 2) um padro especfico derivado da lgica paraconsistente C1+: um padro de raciocnio que coincide com a lgica clssica. A caracterstica mais interessante de C1+ est no fato de que ambos os raciocnios, ou seja, Raciocnio 1 e Raciocnio 2 podem ser derivados dela. Neste sentido, padres de raciocnio em C1+ no conflitam, em ltima anlise, com a lgica clssica, a no ser pelo fato de que eles no se tornam triviais quando uma contradio encontrada. Comecemos pelo Raciocnio 1. Um certo Sr. X est doente e vai consultar o Dr. B, que diz que ele tem cncer. O Sr. X decide ento consultar outro especialista, o Dr. P. que diz que ele no tem cncer. Dr. P. no concorda com seu colega acerca deste ponto, mas h uma coisa que ambos reconhecem: (1) Se o Sr. X tiver cncer, ele morrer nos prximos trs meses. Usando raciocnio tipicamente paraconsistente, o Sr. X pode fazer raciocnios interessantes sem ter de supor que Dr. B ou o Dr. P. estejam errados. A partir do enunciado do Dr. B, o enunciado do Dr. P e o enunciado acerca do qual ambos concordam, o raciocnio paraconsistente no permite a seguinte inferncia: (2) Se o Sr. X no tiver cncer, ele no morrer nos prximos trs meses. No raciocnio clssico teramos: a = Sr. X tem cncer, a = Sr. X. no tem cncer, b = Sr.X morrer nos prximos trs meses. De a, a e b, (1) e (2) se seguem. O raciocnio tipicamente paraconsistente impede (2), pois na lgica paraconsistente (e em C1+) no temos que de { a, a, a b } segue-se, como na lgica clssica, que a b. O aspecto interessante deste raciocnio paraconsistente o fato de que ele no permite

27 a trivializao na presena de contradies. Em outras palavras, a vantagem da lgica paraconsistente que podemos fazer raciocnios sem que, como na lgica clssica, tenhamos que supor que um dos termos da contradio deva ser rejeitado ou de que a partir de uma contradio possamos derivar qualquer coisa. Examinemos agora o Raciocnio 2. Suponhamos que o Dr. B diga: No possvel que: O Sr. X no tenha cncer ( a). E O Sr. X vai morrer nos prximos trs meses (b). A partir deste enunciado e apenas a partir deste - C1+ nos permite inferir, como na lgica clssica que: (2) Se o Sr. X no tiver cncer ele no morrer nos prximos trs meses. A caracterstica interessante de C1+ que, alm do Raciocnio 1, podemos derivar outros tipos de raciocnios (Raciocnio 2). Uma vez que C1+ impede (2) no Raciocnio 1 e permite (2) no Raciocnio 2, podemos sustentar que os resultados gerais de C1+ coincidem com os da lgica clssica. Contudo, a diferena em relao lgica clssica est no fato de que no h trivializao, ou seja, a presena de uma contradio no implode o sistema: no qualquer coisa que pode se seguir quando uma contradio encontrada. A excluso de (2) no Raciocnio 1 e a possibilidade de (2) no Raciocnio 2 no so conseqncias triviais de uma contradio como ocorre na lgica clssica. Ora, o que ocorre se aplicarmos raciocnios paraconsistentes derivados de C1+ para o Teorema da Parada de Turing? Ser que a lgica paraconsistente C1+ desenvolvida por da Costa permite-nos afirmar a existncia de um algoritmo (o procedimento computacional A) para o problema das computaes que no terminam? Existir computao para alm das limitaes clssicas propostas por Turing no seu artigo de 1936? Uma dificuldade prima facie surge ao tentarmos enveredar por esta perspectiva: ser que TPT um problema que pode ser tratado a partir de uma tica paraconsistente? A questo surge na medida em que poderamos sustentar que raciocnios paraconsistentes

28 aplicam-se somente a situaes reais do mundo, nas quais contradies podem aparecer. Se mquinas de Turing podem ser concebidas como entidades no mundo ou entidades puramente matemticas discutiremos mais adiante, embora possamos adiantar, desde j, que no nos inclinamos idia de que os elementos da cincia da computao sejam entidades puramente matemticas. Ser o fato de uma mquina de Turing parar ou no parar comparvel a uma situao de diagnose mdica na qual existe desacordo? O diagnstico mdico pode se tornar controverso em muitos casos, principalmente pela falta de evidncias conclusivas. Em alguns casos, no se trata apenas de falta de evidncias, mas do modo de interpret-las. Neste caso, o conflito de interpretaes emerge na medida em que o diagnstico baseia-se em teorias e concepes cientficas mutuamente exclusivas. No acreditamos que o caso de TPT seja inteiramente comparvel situao de diagnose mdica, mas nem tampouco concordamos que ele possa ser tomado como uma verdade absoluta com validade para qualquer tipo ou concepo de matemtica e de lgicas subjacentes. Note-se ademais que, o possvel carter de TPT como uma verdade absoluta, independente de como se concebe a matemtica no parece ser uma questo sobre a qual exista univocidade. Por exemplo, Isles (1998) assinalou que TPT no pode ser sustentado a no ser que assumamos a verdade (questionvel) de um sequenciamento intuitivo dos nmeros naturais dada pela funo +1.9 Existem pelo menos mais duas razes para sustentar que TPT pode ser tratado a partir de uma tica paraconsistente. Em primeiro lugar, conforme dissemos no comeo deste artigo, podemos considerar que TPT, ao proceder por reduo ao absurdo, um tipo de raciocnio na presena de contradies. A intuio subjacente a TPT que uma vez que a trivializao surge a partir de uma contradio, estamos diante de uma reduo ao absurdo. (Certamente esta uma pressuposio da lgica clssica). A segunda razo a coincidncia entre raciocnios clssicos e paraconsistentes como um resultado geral de C1+. Se tal coincidncia no apenas fortuita (por que seria?) o tratamento clssico e o paraconsistente de TPT so igualmente plausveis. O que precisamos investigar e isto permanece ainda como uma conjectura - se o tratamento paraconsistente ainda implica na verdade de TPT. Ou seja, se mudarmos a lgica subjacente teoria da computao por uma9

Isles questiona TPT ao levantar o problema acerca da ordem dos nmeros naturais e prope uma verso mitigada de TPT. Contudo, no compartilho com ele seu intuicionismo.

29 lgica paraconsistente do tipo da C1+ possvel que a veracidade de TPT no seja mais demonstrvel!! Ora, que tipo de implicaes seguir-se-iam deste tipo de suposio? Mquinas no-clssicas Em vez de mergulharmos nesta demonstrao cujos resultados so ainda desconhecidos examinaremos preliminarmente algumas conseqncias que emergem da conjectura que acabamos de fazer e que poderiam, prima facie invalidar a suposio que acabamos de enunciar. Para comear podemos colocar duas questes: (1) Como seria possvel uma lgica mais fraca como C1+ resolver mais problemas na teoria da computao do que a lgica clssica? (2) Ser que o raciocnio que desenvolvemos at agora implicaria em que qualquer prova matemtica por reduo ao absurdo poderia ser descartada? Uma possvel resposta para a primeira questo consiste em sugerir que uma vez que utilizamos a lgica paraconsistente como a lgica subjacente teoria da computao escapamos das limitaes clssicas colocadas pelos teoremas de incompletude uma afirmao que seria tambm aplicvel a qualquer sistema lgico que admita algum tipo de inconsistncia.10 Mas ser que isto torna, C1+ mais forte do que a lgica clssica? Provavelmente no, uma vez que h mais teoremas na lgica clssica do que em C1+ . Porque deveramos, ento, lanar mo da lgica paraconsistente para fundamentar a matemtica e a teoria da computao? Esta questo leva-nos diretamente ao segundo conjunto de problemas que enunciamos: se a contradio e os argumentos diagonais podem ser rejeitados, uma srie de conseqncias indesejveis podem surgir, como, por exemplo, o colapso da aritmtica (n seria igual a n+1!). O preo a ser pago pode ser excessivamente alto. Mas, poderamos asseverar a possvel existncia de um algoritmo de parada, ou seja, rejeitar a verdade de TPT sem ter de pagar tal preo? Se houver algumas alternativas (e vamos explor-las a seguir) cremos valer a pena continuar explorando nossa suposio. Enunciaremos as seguintes hipteses: a) TPT pode ser concebido como uma verdade matemtica, mas no necessariamente como uma verdade da teoria da computao, na medida em que esta ltima um captulo de matemtica aplicada.10

Para a completude e decidibilidade de C1+ ver da Costa, Bziau & Bueno (1995) e Bziau (1995).

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b)

As verdades matemticas e as verdades da teoria da computao no

precisam coincidir, na medida em que esta ltima lida com objetos especficos, quais sejam, objetos virtuais. c) Verdades matemticas no correspondem necessariamente a estados de coisas no mundo. Este pressuposto anti-realista perfeitamente aplicvel a TPT. Assim sendo, pode existir algo como um algoritmo de parada, embora este no seja apreendido pela lgica clssica. Quando abandonamos o absolutismo da lgica clssica adotando a paraconsistente, a existncia de um algoritmo de parada torna-se concebvel. Comecemos por introduzir algumas teses anti-realistas. Isto significa, em primeiro lugar, questionar o estatuto epistmico de TPT. Tal considerao pode ser uma possvel resposta para a questo (2). Certamente TPT uma verdade matemtica se nos restringirmos lgica clssica, mas, at que ponto essa verdade necessariamente corresponde a um estado de coisas no mundo? A discusso desta questo comporta, contudo, vrias nuances. Para comear, no h razo para supor que uma computao paraconsistente no continuaria para alem das limitaes clssicas derivadas de um elemento contraditrio encontrado na diagonal. Em outras palavras, um computador no mundo real no pra quando uma contradio encontrada, a no ser que ele tenha uma instruo especfica para parar. Supondo que o elemento diagonal d e que a instruo aumentar a diagonal por 1, o elemento diagonal encontrado tal que d = d+1. Se d for binrio, em vez de encontrar 0 ou 1, o que encontrado 0 e 1.11 Estaramos diante de uma mquina noclssica. As computaes podem continuar e a possibilidade de encontrar um algoritmo de parada no pode ser imediatamente descartada. A verdade de TPT pode ser mantida, mas apenas como uma verdade formal que no corresponde necessariamente a um estado de coisas no mundo. Isto no significa, contudo, afirmar que lgica clssica no correspondem estados de coisas no mundo e que o mesmo no ocorreria com a lgica paraconsistente. Esta questo no pode ser discutida unicamente no mbito da matemtica e da lgica. Outras consideraes, derivadas da filosofia da cincia, tornam-se necessrias. Ressaltaremos apenas, para o momento, que a vantagem desta viso anti-realista de TPT reside no fato de que no precisamos rejeitar a lgica clssica ao mesmo tempo em que11

Veja-se a este respeito Sylvan e Copeland (1997).

31 mantemos a possvel existncia de um algoritmo de parada. H ainda uma outra vantagem na adoo deste ponto de vista: no precisar rejeitar todas as demonstraes matemticas que procedem por reduo ao absurdo. A principal objeo a esta perspectiva consiste em sustentar que existe um mapeamento entre TPT e estados de coisas no mundo, apesar de os elementos da teoria da computao serem puramente matemticos, de onde se seguiria que algo como um algoritmo de parada nunca poderia existir. Paradoxalmente, sustenta-se o realismo, a partir de uma afirmao muito cara aos matemticos: a de que a teoria da computao nada tem a ver com mquinas reais e sua implementao, pois deve ser essencialmente matemtica. A conseqncia de tal objeo (tambm paradoxal) que a teoria da computao pode ser concebida como um jogo formal que pouco tem a ver com computadores reais embora determinasse o tipo de computadores que podemos, em ltima anlise, construir (!!). Mas, se a teoria da computao pode ser concebida apenas como um jogo formal, podemos com toda razo reivindicar uma lgica no-clssica para constituir seu fundamento, uma vez que no temos nenhuma razo para aceitar a lgica clssica como sua nica possibilidade. As conseqncias seriam devastadoras e contra-intuitivas: a aritmtica entraria em colapso,

2 tornar-se-ia racional...e da? Se este o cenrio, azar da

matemtica, e azar da teoria ortodoxa da computao! Haveria ainda uma outra conseqncia possvel: uma lgica no-clssica subjacente a teoria da computao (uma na qual existe um algoritmo de parada) poderia ser concebida como englobando a lgica clssica, ou, em outras palavras, nesta conviveriam duas possibilidades contraditrias: a de que tal algoritmo existe e a de que ele no existe (!!) Temos ento de encontrar um caminho que evite o colapso da aritmtica e, ao mesmo tempo, no pressuponha o absolutismo da lgica clssica como fundamento para a teoria da computao. As dificuldades envolvidas nesta tarefa podem ser superadas se refletirmos acerca do estatuto ontolgico que desejamos atribuir aos elementos que compem a teoria da computao. Sugerimos que a viso anti-realista de TPT, na qual as entidades da teoria da computao no coincidem, nem tampouco tm o mesmo estatuto ontolgico das entidades matemticas, ajuda-nos a preservar grande parte da lgica clssica e, ao mesmo tempo, sustentar a possvel existncia de um algoritmo de parada.

32 Certamente estamos diante de uma questo epistemolgica delicada que no pode ser banalizada. Argumentar em favor da existncia de uma diferena entre entidades da teoria da computao e entidades matemticas no o mesmo que argumentar pela existncia de uma diferena entre uma teoria matemtica e um computador real, dizendo, por exemplo, que mquinas reais no tm uma fita infinita como pressupe a definio de uma mquina de Turing. A diferena para a qual queremos apontar mais sutil, no se tratando de algo pura e simplesmente implementacional. A diferena entre fitas infinitas e fitas reais no parece afetar a teoria da computao: trata-se da mesma diferena que existe entre tringulos fsicos e tringulos matematicamente considerados: os primeiros no tm 180 graus, mas uma verdade matemtica inquestionvel na geometria euclidiana que tringulos tm 180 graus. Ora, a diferena que buscamos de outra ordem. Certamente a teoria da computao encontra seus fundamentos em uma lgica subjacente e num conjunto de verdades matemticas. Mas deve haver mais coisas na teoria da computao do que uma recapitulao de verdades j conhecidas. O que distingue a teoria da computao o fato de a partir deste conjunto de verdades conhecidas, mquinas abstratas ou virtuais poderem ser concebidas. Neste sentido, a teoria da computao um captulo da matemtica aplicada alis, um captulo bastante especfico. Tal especificidade reside na maneira pela qual a teoria da computao estabelece uma correspondncia entre verdades matemticas e lgicas com estados de coisas no mundo: um mapeamento que estabelece uma correspondncia com elementos virtuais. Trata-se de um mapeamento bastante peculiar, embora este possa ser considerado como uma correspondncia com algo do mundo. Que estatuto ontolgico devemos atribuir a uma mquina virtual? Ter uma mquina de Turing o estatuto de uma entidade puramente matemtica, isto , o estatuto de algo que no ocorre no espao e no tempo? Uma computao algo que ocorre no mundo, mesmo quando realizada por uma mquina virtual: uma computao envolve tempo, uma vez que a idia de seqenciamento (no importando se se trata de um modo de operao linear ou um ciclo de atividade paralela) est na essncia de qualquer processo algortmico. Mquinas de Turing envolvem um seqenciamento temporal na execuo de operaes matemticas um seqenciamento sem o qual a soluo de certos problemas no poderia

33 ser realizada.12 Neste sentido, Mquinas de Turing envolvem um elemento do mundo, pois no importa o quanto nossa concepo de tempo seja abstrata, ela continuar sendo uma magnitude fsica.13 Assim sendo, a teoria da computao no pode ser puramente matemtica, mas no pode ser emprica tampouco. Seus elementos devem ser classificados como pertencentes a uma espcie de ontologia cinzenta de elementos virtuais que mantm alguns elementos oriundos do mundo e uma referncia a este elementos virtuais que podem ser utilizados em vrios tipos de aplicaes empricas. essa infiltrao sub-reptcia de uma referncia ao mundo que nos permite tratar mquinas virtuais como algo no mundo. neste sentido que TPT pode ser mantido como uma verdade da matemtica clssica apesar do fato de desqualificarmos seu realismo e seu carter absoluto ao conceblo sob a tica paraconsistente derivada de C1+. TPT uma verdade matemtica, mas no necessariamente uma verdade da teoria da computao no quando ela se refere a mquinas virtuais, isto , mquinas cujo comportamento embora seja descritvel por teorias matemticas no devem ser vistas como algo inteiramente preditvel a partir de qualquer tipo de teoria matemtica (muito menos em se tratando de um formalismo clssico). A estranheza mas ao mesmo tempo a fora - deste ponto de vista pode ser ilustrada por um paralelo entre lgica clssica/lgica paraconsistente e geometria euclidiana/geometria no euclidiana. As geometrias no-euclidianas ajudaram-nos a lidar com novas concepes derivadas da fsica contempornea como, por exemplo, espao com uma curvatura varivel. Da mesma maneira, a lgica paraconsistente pode ajudar-nos a12

No podemos conceber uma mquina de Turing (como mquina virtual) sem uma referncia ao tempo. Mesmo uma mquina de Turing com apenas uma instruo requer uma segunda, seja para parar ou para no parar. O sequenciamento pode ser abstrado se concebermos a mquina de Turing como entidade puramente matemtica, ou seja, de forma no-holonomica, (o que estamos rejeitando aqui), mas at nesta maneira uma idia de sequenciamento permanece, pois duas instrues no podem ser realizadas ao mesmo tempo; uma ter de seguir a outra. 13 Mesmo concepes subjetivistas do tempo admitem que ele envolve referncia a algo no mundo. Kant, por exemplo, que defendeu que o tempo uma forma a priori da sensibilidade, diz que O tempo no uma forma discursiva, ou como ele as vezes chamado, uma concepo geral, mas uma forma pura da intuio sensvel (nfase minha). A primeira antinomia de Kant enfatiza a necessidade de distinguir as esferas sensveis e inteligveis ao lidar com as noes matemticas pelo menos como um meio de evitar a gerao de pseudoproblemas. O mesmo ponto enfatizado por Kant em seus trabalhos anteriores (1770/1967) onde ele afirma que A = A no pode ser considerada uma relao puramente lgica se a igualdade for mediada pelo tempo. (A enim et non A non repugnant nisi simul (h.e. tempore eodem) cogitata de eodem, post se autem (diversis temporibus) eidem competere possunt p.60). Tal distino parece ter sido ignorada nas discusses acerca da natureza dos elementos da teoria da computao.

34 lidar com peculiaridades dos elementos da teoria da computao, isto , a lgica paraconsistente deve substituir a lgica clssica em algumas de suas aplicaes, como o caso de alguns de seus teoremas fundamentais. Neste sentido, a possibilidade de encontrar um algoritmo de parada no deve assustar os matemticos, nem nos fora a abandonar o estudo de uma das mais belas peas da matemtica do sculo XX, qual seja, o Teorema da Parada de Turing. Mentes no-clssicas A utilizao de lgicas no-clssicas poder inaugurar uma nova onda para a GOFAI no sculo XXI. Sabemos que a inteligncia artificial dos anos 70 fracassou em grande parte por causa de sua excessiva rigidez (brittleness) que simulou brilhantes jogadores de xadrez, que eram, contudo incapazes de executar qualquer tarefa do mbito do senso comum. A Nova GOFAI (este termo j uma contradio!) poder contribuir com uma parcela significativa de simulao de atividades cognitivas humanas: aquelas nas quais est envolvida a contradio ou a presena de crenas contraditrias. A simulao destas ltimas, alis, abre caminho para a simulao do senso comum, constituindo-se como uma alternativa para o programa de estoque de memria da robtica tradicional (Lenat e Guha, 1990) e o programa de memria-quase-zero de Brooks, (1991) que caracteriza a Nova Robtica. Esta ltima talvez no precise de novas concepes de computabilidade como sugerimos no ensaio anterior, mas apenas utilizar-se das possibilidades abertas pela computabilidade no-clssica na construo de seus agentes autnomos. Robs programados com lgicas no-clssicas podero evitar desafios de situaes reais do mundo nas quais as contradies aparecem. Um exemplo tpico a do rob programado para se locomover at um certo lugar numa usina e apertar um conjunto de chaves para impedir que uma exploso ocorra. No caminho, porm, h uma barreira de fogo causada por um incndio em curso. Uma mquina clssica seria levada autodestruio ou simplesmente ficaria travada no mesmo lugar e a exploso ocorreria em seguida. J uma mquina no-clssica teria melhores chances de lidar com a situao contraditria. O ponto cego da inteligncia artificial simblica, como muito bem observou um de seus fundadores, Marvin Minsky, tem sido a impossibilidade de simulao do senso comum. Nos ltimos anos isto dividiu a pesquisa em inteligncia artificial e cincia

35 cognitiva em duas vertentes que dificilmente poderiam se reconciliar: a que parte da simulao de atividades simblicas complexas (jogos de xadrez, clculos de matemtica e de engenharia) para depois tentar resgatar o senso comum e a segunda vertente, que vai na direo oposta, que parte do comportamento em direo atividade simblica como o caso da robtica de Brooks. Sabemos que dificilmente estas duas estratgias podero se encontrar no meio do caminho entre, de um lado a simulao do senso comum e de outro a possibilidade de ascender de comportamentos simples a atividades simblicas complexas como a linguagem natural humana. Neste sentido, mquinas no-clssicas seriam uma alternativa para abreviar o percurso necessrio para este encontro que nos proporcionaria uma conciliao entre estas duas estratgias e suas concepes divergentes acerca da natureza da cognio. Outras discusses (algumas delas mais antigas) tambm podero ser clarificadas pela Nova GOFAI. Quando Penrose (1989,1994) reabilitou os argumentos de Lucas (1961) no incio da dcada de 90 e os transformou numa mquina de guerra contra a inteligncia artificial, certamente ele se esqueceu das possibilidades abertas pelas lgicas no-clssicas para resolver TPT. Ele sustentou que TPT no pode ser resolvido por uma mente raciocinando classicamente, mas isto no pode ser estendido para uma mente que acomode contradies, ou seja, uma mente no-clssica. Em outras palavras, se TPT sustenta-se por uma reduo ao absurdo, a lgica paraconsistente permite pensar para alm da contradio sem que necessariamente tenhamos uma situao de incomputabilidade que nos foraria, no limite, a postular a existncia de uma intuio matemtica mgica (ou quntica) uma intuio que permitiria aos seres humanos saber quando um procedimento algortmico pra ou no. Pensar para alm da contradio significar no apenas conceber a possibilidade de uma mente no-clssica como tambm questionar a existncia de uma independncia total entre as lgicas de computao e as mquinas que as implementam mesmo sendo estas mquinas virtuais. Pois, conforme observamos, a mquina no clssica no pra mesmo quando encontra uma contradio, ou seja, novamente a idia de que um computador deve, primordialmente ser concebido como um dispositivo fsico que instancia leis lgicas e no uma idealidade matemtica. Encontramos aqui, mais uma vez, assunto frtil para a filosofia da cincia da computao.

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UMA NOTA SOBRE SARTRE E DAMSIO OU AS EMOES ENTRE A FENOMENOLOGIA E A NEUROBIOLOGIA

No seu best-seller Em busca de Espinosa Antonio Damsio retoma uma idia que parece percorrer toda sua obra desde seu primeiro livro publicado em 1995: a impossibilidade de separar emoo de cognio, mesmo que esta separao seja apenas metodolgica como queriam os partidrios da inteligncia artificial e do modelo computacional da mente. Ao lermos o primeiro e o ltimo livro de Damsio (O Erro de Descartes e Em Busca de Espinosa) ficamos com a clara impresso de que a cincia cognitiva no pode se furtar de preencher o vcuo deixado pela ausncia de uma teoria da emoo e de seu papel no conhecimento e em outras regies de nossa vida psquica.14 no seu livro de 2004 que os contornos de uma teoria das emoes delineiam-se de forma mais ntida na obra do neurobilogo portugus. Sua obra, numa prosa magnfica, oferece uma abordagem da natureza das emoes que oscila entre a psicologia darwinista e um fisicalismo que, por vezes, beira o materialismo eliminativo.15 preciso achar uma funo para as emoes, um papel cognitivo para suas diversas variedades, um papel que esteja li