filosofia da ciência 01 o progresso da ciencia

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234 Introdução Ensino Médio I n t r o d u ç ã o Filosofia da ciência Ouve-se com freqüência que a ciência, com o seu rigor, tem em vista o crescimento do nosso conhecimento orientando a sua pesqui- sa em algumas particulares, e que a filosofia, geralmente, se ocupa de questões e problemas mais gerais. Ela nos mostra que o conhecimen- to científico é provisório, jamais acabado ou definitivo, sempre tributá- rio de um pano de fundo ideológico, religioso, econômico, político e histórico. Vivemos um momento de aparente triunfo da ciência, com o projeto – genoma, os transgênicos, a clonagem etc. – que fazem parte do nosso cotidiano, apresentados de forma cristalizada, definitiva. Tu- do indica que fazemos parte de uma civilização que elabora, sob me- dida, as condições ideais de nossa existência, numa perspectiva tecno- científica. A Filosofia da Ciência serve como uma ferramenta capaz de questionar tal visão. A distinção, acima mencionada, entre ciência e filosofia não é fa- cilmente elaborada e tão clara como possa parecer. Por exemplo, em que sentido podemos falar que Descartes, Newton, Popper e Kuhn, são cientistas ou filósofos? Uma tarefa bastante difícil. A pretensão de encontrarmos uma demarcação universalmente válida entre ciência e filosofia é ilusória, porque elas se relacionam de diversas maneiras, nas várias épocas da história antiga, medieval, moderna e contemporânea, principalmente porque o significado dos dois conceitos sofre modifi- cações estruturais com o decorrer do tempo. É bastante diferente olhar para a realidade e percebê-la sob a perspectiva da metafísica ou da antimetafísica, ou sob o olhar do empirismo ou do positivismo, sob o olhar da ciência ou da filosofia. Aqui, apresentamos a filosofia da ciência como um espaço aber- to, de discussão sobre as relações e conexões entre a filosofia e a ciência. No primeiro Folhas, O progresso da ciência, são apresentados, o ob- jeto e o método da filosofia da ciência. Definir a ciência como racio- nalidade é o que buscamos fazer com a ajuda de Bachelard. Marcelo Gleiser nos traz a compreensão da complementaridade que se pode en- contrar entre a ciência e a religião. São também relevantes as contribui- z

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234 Introdução

Ensino Médio

Introdução

Filosofia da ciência

Ouve-se com freqüência que a ciência, com o seu rigor, tem em vista o crescimento do nosso conhecimento orientando a sua pesqui-sa em algumas particulares, e que a filosofia, geralmente, se ocupa de questões e problemas mais gerais. Ela nos mostra que o conhecimen-to científico é provisório, jamais acabado ou definitivo, sempre tributá-rio de um pano de fundo ideológico, religioso, econômico, político e histórico. Vivemos um momento de aparente triunfo da ciência, com o projeto – genoma, os transgênicos, a clonagem etc. – que fazem parte do nosso cotidiano, apresentados de forma cristalizada, definitiva. Tu-do indica que fazemos parte de uma civilização que elabora, sob me-dida, as condições ideais de nossa existência, numa perspectiva tecno-científica. A Filosofia da Ciência serve como uma ferramenta capaz de questionar tal visão.

A distinção, acima mencionada, entre ciência e filosofia não é fa-cilmente elaborada e tão clara como possa parecer. Por exemplo, em que sentido podemos falar que Descartes, Newton, Popper e Kuhn, são cientistas ou filósofos? Uma tarefa bastante difícil. A pretensão de encontrarmos uma demarcação universalmente válida entre ciência e filosofia é ilusória, porque elas se relacionam de diversas maneiras, nas várias épocas da história antiga, medieval, moderna e contemporânea, principalmente porque o significado dos dois conceitos sofre modifi-cações estruturais com o decorrer do tempo. É bastante diferente olhar para a realidade e percebê-la sob a perspectiva da metafísica ou da antimetafísica, ou sob o olhar do empirismo ou do positivismo, sob o olhar da ciência ou da filosofia.

Aqui, apresentamos a filosofia da ciência como um espaço aber-to, de discussão sobre as relações e conexões entre a filosofia e a ciência.

No primeiro Folhas, O progresso da ciência, são apresentados, o ob-jeto e o método da filosofia da ciência. Definir a ciência como racio-nalidade é o que buscamos fazer com a ajuda de Bachelard. Marcelo Gleiser nos traz a compreensão da complementaridade que se pode en-contrar entre a ciência e a religião. São também relevantes as contribui-

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Filosofia

FILOSOFIA

ções por meio de exemplos retirados de Ptolomeu e de Galileu. Você encontrará alguns problemas que se apresentam à filosofia da ciência, assim como também algumas possibilidades de discussão que poderão ser ampliados na discussão de sala de aula.

O Folhas, Saber pensar a ciência: inicia-se com o problema da indu-ção, portanto, uma discussão sobre o método indutivo, sua validade, seu alcance, seus problemas. Na seqüência, o que encontramos é uma diferenciação/conceituação de ciência, senso comum, produção cienti-fica e suas implicações sociais, históricas, políticas e econômicas. Tho-mas Kuhn e Gaston Bachelard são basicamente os filósofos da ciência que nos auxiliam na discussão. De Kuhn, toma-se os conceitos de Pa-radigma, ciência normal, revolução científica e incomensurabilidade. De Bachelard, trabalha-se os conceitos de ruptura epistemológica, des-continuidade, obstáculo epistemológico e a filosofia do não.

No Folhas intitulado Bioética, a filosofia da ciência aparece como possibilidade de um olhar crítico sobre o fazer científico. A idéia é pro-ceder uma problematização quanto aos riscos, conseqüências, interes-ses que permeiam nosso tempo, cujo desenvolvimento tecnocientífico alarma, por um lado, por apresentar soluções aos problemas de saú-de, problemas técnicos e de uso dos recursos naturais e, por outro, por estar submetido aos interesses mercadológicos sem parâmetros éticos, justificativas sociais e preocupações com conseqüências a longo pra-zo das condições da vida dos animais, da biodiversidade e do próprio homem no planeta Terra.

Dentro desta perspectiva, a bioética, como problema da filosofia da ciência trata a questão da responsabilidade e autoridade do médi-co frente ao direito e dever do paciente, bem como das intervenções e limites aceitáveis de certas experiências, tais como o aborto induzido; inseminação artificial e esterilização; escolha e pré-determinação do sexo; a eutanásia; quebras de patentes; projetos de pesquisa sobre ge-nética (células tronco, transgênicos, clonagem humana e de animais); biopirataria, uso de animais e seres humanos como cobaias, etc., que são discutidos ou citados ao longo do trabalho e podem ser aprofun-dados em sala de aula.

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Ensino Médio

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Ensino Médio

Wilhelm Heise. O desaparecer da primavera. (autoretrato na mesa de trabalho) – 1926. Óleo sobre madeira. Munich, Städtische Ga-lerie in Leubachaus.

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Filosofia

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Filosofia

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O PROGRESSO DA CIÊNCIA

Anderson de Paula Borges1<

O QUE É CIÊNCIA?

A ciência evoluiu muito nos últimos anos. O volume de dados científicos é assombroso. Boa parte dos cientistas está conectada em tempo real com diferentes grupos de pesquisadores de todo o planeta, o que mostra que a ciência é hoje um trabalho eminente-mente coletivo.

Hoje os celulares são cada vez mais multifuncionais e o cinema já pode ser concebido integralmente no computador. Esses progressos, e muitos outros que a ciência tem feito nos últimos anos, demonstram possibilidades infinitas para a vida do homem na terra, sobretudo nas tarefas mais básicas do dia-a-dia. Mas será que esse homem, que acompanha diariamente pela televisão as novidades científicas, de fa-to sabe o que é a ciência, tem alguma noção sobre método científico, ou imagina a ciência com a visão romântica de que o cientista é um louco enclausurado no laboratório?

Albert Eisntein (1879 – 1955). <

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1Colégio Estadual do Paraná - Curitiba - Pr

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Ensino Médio

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Ensino Médio

DNA: Ilustração Parque de Ciên-cias Newton Freire Maia.

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O que é Ciência?

Quando ouvimos uma teoria como a do big-bang, segundo a qual o universo é resultado de uma explosão ocorrida há cerca de 14 bilhões de anos atrás, a primeira questão que pensamos é: como os cientistas chegaram na tese da explosão?

Segundo o filósofo e especialista em epistemologia francês, Gaston Bachelard (1972), a ciência é um conjunto de saberes cuja compreen-são histórica não se faz de traz para frente. Isso significa que não se entende a ciência investigando as origens de forma linear. Muitas ve-zes só se compreende as conexões de conhecimentos que permitiram uma descoberta científica num tempo posterior ao da descoberta. Ba-chelard cita o exemplo da pólvora, inventada por volta do século IX na China. Analisando os elementos que a compõem, sabemos que os co-nhecimentos que as pessoas tinham sobre enxofre, nitrato de potássio e carvão não eram suficientes para saber que a mistura desses ingre-dientes geraria uma explosão surpreendente.

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Gaston Bachelard (1884-1962). <

os constituintes, não tendo neles mesmos nem princípio de ignição, nem força de explosão, daí decorre que a pólvora de canhão não pode nem se inflamar, nem explodir. O velho inventor (...) não podia compreender sua invenção partindo do conhecimento comum das substâncias que ele misturava. (BACHELARD, 1972, p. 25)

Esse exemplo mostra a necessidade de se compreender a ciência a partir da história de seus métodos e diretrizes. A invenção da pólvo-ra, do cálculo infinitesimal, a descoberta do princípio de conservação da energia, as leis do movimento, etc., são fatos que devem ser enten-didos como ruptura, mas não necessariamente um rompimento cons-ciente de seus efeitos.

Após ler a citação abaixo discuta com seus colegas as questões que seguem.

Muitos pensam que a pesquisa científica é uma atividade puramente racional, na qual o objetivismo lógico é o único mecanismo capaz de gerar conhecimento. Como resultado, os cientistas são vistos como insensíveis e limitados, um grupo de pessoas que corrompe a beleza da Natureza ao analisá-la matematicamente. Essa generalização, como a maioria das generalizações, me parece profunda-mente injusta, já que ela não incorpora a motivação mais importante do cientista, o seu fascínio pe-la Natureza e seus mistérios. Que outro motivo justificaria a dedicação de toda uma vida ao estudo dos fenômenos naturais, senão uma profunda veneração pela sua beleza? A ciência vai muito além de sua mera prática.” (GLEISER, 2002, p. 17).

1. Que visão da ciência Gleiser critica?

2. Que sentido Gleiser dá ao trabalho científico?

3. Que é possível entender com a frase “a ciência vai muito além de sua mera prática”?

4. Compare o pensamento de Bachelard e Gleiser.

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Filosofia

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Filosofia

Filosofia e ciência

A filosofia da ciência é o estudo da metodologia científica. Trata-se de in-vestigar o que caracteriza a atividade científica, em quê a ciência se se-para do senso comum e da filosofia e quais hipóteses justificam e ex-plicam o conhecimento científico.

Uma das formas de estudarmos a ciência é fazê-lo do ponto de vis-ta das questões abordadas pelos filósofos que se ocupam com a meto-dologia das ciências. É preciso, porém, buscar distinguir o trabalho do cientista e os métodos filosóficos. Pensemos a ciência como um con-junto de conhecimentos divididos por áreas: física, química, geologia, mecânica, biologia, medicina, história, etc. Agora imagine um saber ca-paz de pensar a estrutura nuclear desses conhecimentos, independen-temente de suas manifestações históricas na ciência: é a filosofia. De um lado temos os procedimentos específicos e infinitamente especializa-dos da ciência. De outro lado uma busca de compreensão da totalida-de do conhecimento e da experiência humana. Mas o que é isto que chamamos conhecimento?

Você já deve ter experimentado o desejo de conhecer mais a fundo fenômenos como a descoberta de um novo planeta solar, o que são “quarks”, o modo com a luz se propaga, se o ciúme é biológico ou fru-to do hábito.

Essa curiosidade é natural. O filósofo grego Aristóteles, que viveu entre 384 e 322 a.C., escreveu que todos os homens por natureza de-sejam saber. Aristóteles dizia ainda que nossa visão, dentre todas as capacidades que temos, é a que mais nos dá prazer no conhecimen-to. Aristóteles é considerado o filósofo que deu o ponta pé inicial à or-ganização do conhecimento humano. Seu pai, Nicômaco, era médico da corte macedônia, fato que conecta o filósofo desde cedo ao mun-do do saber. Consta que Aristóteles teria constituído, para si próprio, a primeira biblioteca de que se tem notícia, a qual mais tarde inspiraria a Biblioteca de Alexandria. Para o professor Marco Zingano, Aristóte-les “foi um notável investigador da natureza. Suas observações dizem respeito aos mais diferentes domínios: a natureza dos astros, as órbi-tas celestes, os mais diversos tipos de animais, o desenvolvimento do embrião, as mudanças químicas, os primeiros elementos e suas modi-ficações físicas, os metais, os ventos, enfim: o campo inteiro da natu-reza”. (ZINGANO, 2002, p. 67).

A filosofia mostra que o conhecimento acerca de coisas ou idéias que fazem parte de nosso cotidiano é problemático. É um conheci-mento limitado porque não atinge a totalidade das coisas existentes. Por exemplo, apesar do enorme desenvolvimento da ciência neste sé-culo, ainda não sabemos se nossos comportamentos morais têm al-guma relação com a estrutura biológica do nosso cérebro, se estamos sozinhos no universo ou se existem partículas menores do que os qua-rks, além de muitas outras dúvidas.

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Aristóteles (384 e 322 a.C.) <

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Ensino Médio

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Ensino Médio

A turma se organizará em grupos e fará uma pesquisa com os professores da escola, investigando, por meio de uma entrevista, quais os conhecimentos científicos que sustentam as disciplinas esco-lares. Poderá ser feita a seguinte pergunta: o que caracteriza o objeto de estudo de sua disciplina e como é o método de estudo?

Os resultados da pesquisas serão apresentados em sala.

PESQUISA

Senso comum e ciência

A ciência é ruptura ou uma extensão intelectualizada do senso co-mum? A resposta parece óbvia, mas é preciso pensar o problema. O óbvio aqui é dizer que é ruptura, crítica ao senso comum, porque é evidente que a ciência é um saber cumulativo muito mais sólido que o saber do cidadão que vive normalmente sua vida, tem sua fonte de informações na TV e se interessa pouco pela literatura científica es-pecializada. Mas qual o sentido dessa diferença? Será que os cientis-tas fazem ciência por amor ao saber pelo saber? Será que se conside-ram acima dos simples mortais?

A primeira questão inevitável é esta: ciência é uma forma de sa-ber que não se constrói ao acaso, mas se obtém por meio de um mé-todo científico. O método científico exige uma dose considerável de penetração, de análise, experimentação e organização. Você pode até dizer que essas características também estão presentes no senso co-mum, mas não é a mesma coisa. O senso comum é caracterizado por um apego a imagens, sensações e por um desinteresse na busca de explicações e justificativas.

Esse esquema de pensamento não é exclusividade da vida cotidia-na. Senso comum é também uma forma de pensamento que se recu-sa a aceitar a contestação criteriosa, a crítica com argumentos e de-monstrações. Quando o Papa Urbano VIII, no século XVII, polemizou com Galileu e o impediu de veicular suas opiniões sobre a física do Universo, o que fornecia o alimento do ataque de Urbano a Galileu era justamente uma visão de senso comum milenar e antiga. Segun-do essa visão não há nenhuma contradição entre o que diz a bíblia, o que ensinou Aristóteles e os dogmas da Igreja. As teses de Galileu contestavam esse pensamento, mostravam fissuras graves na teoria geocêntrica do universo e indicavam os erros de Aristóteles.

Os cientistas, por seu lado, também se utilizam do esquema de imagens, sobretudo quando precisam ilustrar um complicado sistema físico ou químico, cuja estrutura é complexa demais para ser expos-

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Papa Urbano VIII (1568 – 1644). <

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ta em detalhes. Mas há algo no trabalho do cientista que não faz par-te do nosso cotidiano: é o hábito de considerar os novos dados como uma hipótese, que pode ser explicada por meio de leis e teorias, e que precisa ser abandonada tão logo uma nova hipótese se apresente como mais adequada e satisfatória. Essa é a essência do método científico e o principal ponto de conflito com o senso comum.

Bachelard explica que a exigência de um método e de uma lingua-gem especializada para comunicar os dados científicos afasta bastante a ciência do conhecimento comum. Por outro lado, o senso comum é bastante afeito ao um tipo bem rudimentar de experimentação: o con-tato físico com os objetos e as realidades. A ciência também valoriza a experimentação, mas não a supervaloriza. Como diz Bachelard:

Entre o conhecimento comum e o conhecimento científico a ruptura nos parece tão nítida que estes dois tipos de conhecimento não poderiam ter a mesma filosofia. O empirismo é a filosofia que convém ao conheci-mento comum. O empirismo encontra aí sua raiz, sujas provas, seu reco-nhecimento. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o ra-cionalismo e, quer se queria ou não, o racionalismo está ligado à ciência, o racionalismo reclama fins científicos. Pela atividade científica, o racionalismo conhece uma atividade dialética que prescreve uma extensão constante de métodos. (BACHELARD, 1972, p. 45)

Galileu (1564 – 1642). <

Há, portanto, entre senso comum e ciência uma ruptura que não é uma questão de saber versus ignorância, ou opinião versus razão. O trabalho da pesquisa científica, em sua essência, é uma aplicação do método racional no estudo da natureza, do homem e do universo. Lá onde não há ciência, ou existe religião, cujo núcleo é a fé, ou existe vivência, cuja estrutura é a imaginação, o desejo e a crença. Estes dois eixos da vida são importantes no mundo da cultura geral, mas não se identificam facilmente com o espírito científico.

Mas nem todos os estudiosos da ciência aceitam o paradigma da racionalidade como único critério que diferencia ciência de saber co-mum. Alguns, inclusive, rejeitam a oposição entre ciência e religião, di-zendo que para além da racionalidade científica reside um sentimen-to humano que conduz o homem na elaboração de respostas para as origens do Universo. A ciência seria um conjunto de tentativas de res-postas. A religião, por seu lado, uma experiência análoga à ciência. En-quanto uma utiliza métodos e experimentação, a outra se serve de mi-tos e contos. Mas, como ambas se constituem como buscas, hipóteses e ensaios, não se pode dizer que uma tem precedência ou mais valor que a outra. Essa posição é defendida, no Brasil, pelo físico e escritor Marcelo Gleiser, sobretudo em seu livro A Dança do Universo.

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242 Introdução

Ensino Médio

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Ensino Médio

Reúna-se em grupos e discuta as questões.

1. As considerações que fizemos acima apresentam duas visões de ciência. Na primeira há a posição de Bachelard, para quem a ciência é a aplicação do racionalismo no estudo dos fatos e ruptura com a percepção comum. Vocês concordam com essa posição? Justifique.

2. Há uma outra visão, que pode ser constatada na obra de Marcelo Gleiser, para quem ciência e reli-gião são distintas, mas se complementam. Como vocês encaram essa tese? Justifique.

Apresente os resultados à sala para um debate.

As regras para o debate encontram-se na introdução deste livro.

O universo de ptolomeu

A história da ciência é muito vasta. Seria temerário resumi-la nos limites deste material. Escolhemos aqui dois momentos importantes dessa história que servirão para ilustrar o modo como o conhecimen-to progride.

Entre os anos de 130-141 d.C, aproximadamente, o astrônomo ale-xandrino Cláudio Ptolomeu criou um modelo de explicação dos mo-vimentos dos planetas e corpos celestes em geral. Ptolomeu dava se-qüência a uma história de modelos astronômicos bastante fértil, que remonta à academia platônica do século V.

Como podemos observar nas imagens, no modelo de Ptolomeu a Terra ocupa o centro do universo. Em torno dela estão os planetas, o sol e a lua. Durante muito tempo, desde Platão, a grande dificuldade dos astrônomos era explicar o movimento dos planetas, ou seja, por-que eles têm determinadas trajetórias observadas do ponto de vista de quem está na terra. Ptolomeu aproveita idéias de outros astrônomos, sobretudo do astrônomo Apolônio, e imagina a seguinte estrutura: a terra está imóvel, mas fica numa posição um pouco afastada do centro, como podemos ver na figura acima. Os planetas se movem num círcu-lo imaginário chamado “epiciclo”. O epiciclo possui um centro que se move em outro círculo chamado “deferente”. Ptolomeu imaginou uma linha chamada “equante” para explicar o movimento não uniforme dos planetas. O “equante” é um ponto situado ao lado do centro do círcu-lo maior, o deferente, e sobre o qual os planetas fazem seu movimen-to epicliclo. (GLEISER, 2002).

É visível que o sistema é muito complexo. Mas, surpreendentemen-te, ele foi usado até o século XVI, quando o astrônomo Copérnico con-testou a tese de que a Terra é o centro dos movimentos planetários e do universo. As idéias de Copérnico sofreram dura resistência da Igre-ja, mas acabaram prevalecendo como verdadeiras. Vale lembrar, po-rém, o registro histórico do estudo e da perspicácia dos antigos, que não mediam esforços para explicar o universo.

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Ptolomeu (100 – 178). <

DEBATE

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Filosofia

243Progresso da Ciência

Filosofia

Galileu e o novo espírito científico

A história de Galileu é extraordinária. Nascido em 1564 em Pisa, na Itália, é considerado o primeiro pensador com perfil de cientista. Esse título se deve ao fato de Galileu ter feito experimentos famosos em fí-sica, como o clássico episódio da torre de Pisa. Mesmo que não haja provas de que o fato ocorreu, o experimento é um marco do novo es-pírito científico: Galileu teria jogado vários objetos com diferentes pe-sos do alto da torre, em frente a uma platéia de curiosos e professores aristotélicos. O objetivo de Galileu era provar que a tese de Aristóteles, de que o peso de um corpo depende do seu tamanho, é falsa. Galileu concluiu daí a lei da queda livre dos corpos, elaborada em 1604.

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Torre de Pisa – Itália. <

Galileu e o telescópio

Embora ainda exista algum debate sobre quem precisamente inven-tou o telescópio, pelo menos está claro que esse alguém não foi Galileu. A primeira licença para construir telescópios foi obtida por um oculista holan-dês chamado Johannes Lippershey no dia 02 de outubro de 1608, mas já em setembro “tubos ópticos de magnificação” foram vistos numa feira em Frankfurt. Os instrumentos atraíram tanta atenção que, em abril de 1609, era possível comprá-los em Paris. Assim que Galileu ouviu as novidades, ele ra-pidamente construiu seu próprio telescópio, de melhor qualidade do que os que existiam na época. Sendo uma pessoa astuta e de grande ambição so-cial, no dia 08 de agosto de 1609 ele convidou o Senado de Veneza a exa-minar o instrumento do alto da torre de São Marco, frisando o quanto o ob-jeto era importante como arma de defesa contra uma invasão marítima. Seu sucesso foi enorme. O Senado ficou tão impressionado com Galileu e seu telescópio que tornou sua posição em Pádua permanente, dobrando seu salário. Além de melhorar sua situação profissional e financeira, o telescó-pio iria se tornar a maior arma de Galileu na cruzada contra a visão de mun-do aristotélica; os céus jamais seriam os mesmos após Galileu apon-tar seu telescópio para as estrelas (GLEISER, 2002, p. 141).

As descobertas de Galileu

Com o telescópio Galileu pôde observar o aspecto montanhoso da superfície lunar e as manchas solares, des-cobrir inúmeras estrelas e ainda ver que Júpiter possuía satélites. Para a época isso já era extraordinário uma vez que, de acordo com a tradição, a lua possuía uma superfície lisa e perfeita, o único pla-neta centro dos astros era a terra e o sol não poderia ter imperfeição alguma, por ser um objeto criado por Deus.

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Ensino Médio

244 Filosofia da Ciência

Ensino Médio

Galileu contribuiu para fixar as leis da física moderna.

1. Faça uma pesquisa e relacione os princípios da ciência de Galileu (observação, experimentação e regularidade matemática).

2. Apresente para a turma o resultado de sua pesquisa, destacando os passos necessários à obten-ção de leis científicas.

3. Escreva um texto com o tema: “o novo espírito científico”. Argumente-o comprovando que, de Pto-lomeu a Galileu, houve uma ruptura no modo de se encarar o Universo.

PESQUISA

Referências

BACHELARD, G. “A atualidade da história das Ciências”, Revista Tempo Brasileiro, vol. 28, 1972, 22-26.

GLEISER, M. A Dança do Universo: dos mitos da criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GRANGER, G-G. A Ciência e as Ciências. São Paulo: UNESO, 1994.

HELLMAN, H. Grandes Debates da Ciência: dez das maiores contendas de todos os tempos. São Paulo: UNESP, 1999.

PENSADORES. Galileu. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

ROSSI, P. A ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da revolução científica. São Paulo: Edi-tora Unesp, 1992.

ZINGANO, M. Platão e Aristóteles; os caminhos do conhecimento. São Paulo: Odysseus, 2002.

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ANOTAÇÕES