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FILOSOFIA Volume 03

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  • FILOSOFIAVolume 03

  • 2 Coleo Estudo

    Sum

    rio

    - F

    iloso

    fia Frente A05 3 Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

    Autor: Richard Garcia Amorim

    06 17 Filosofia crist: a relao entre f e razoAutor: Richard Garcia Amorim

  • FRENTE

    3Editora Bernoulli

    MDULOFILOSOFIA

    Edessa

    Bizncio

    Istambul (atual)

    Delfos

    Corinto

    Polegas

    Imbros

    Tenedos

    Lemnos

    Icos

    Tasos

    Antipolis

    Peparetos

    Magara

    ArgosOlmpia

    Cefalnia

    Corcira Larissa

    Leucas

    Zanto

    Messena

    Pilos

    Esfactria

    Potidaco

    Samotrcia

    Pela

    bidos

    Hecatones

    Helesponto

    PrgamoAmbracia

    Termpilas

    Halonesos

    Elis

    Esparta

    CiteraAnafe TelosThera

    Olinto

    Proconeses

    Tria

    Ceos Siros

    Cs

    Icria

    Samos

    Quios

    Paira

    LerosParos

    CimolosSitnos

    Melos

    Clcis Sardes

    Magnsia

    MiletoEpidauro

    Andros

    Delos

    Rodes

    Crpatos

    Cnossos

    Gortina

    Amargos

    Astipaleia

    Naxos

    Trezena

    Lesbos

    Mitilene

    Faceia

    Patras

    AtenasMaratona

    CALCDIC

    A

    N

    ILRIA

    PIRO MACED

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    MAR DE CRETA

    MAR M

    IRTOICO

    MAR EGEU

    ACRNIA

    ETLIA

    TESSLIA

    LOCRIDA

    MAGNSIA

    TICA

    ARCDIA

    MSIA

    CRIA

    LDIA

    PELOPON

    ESO

    ACAIA

    MESSNIA

    LAC

    NIA

    CRETA

    EUBEIA

    AR

    GLIDA

    Grcia no sc. V a.C. Neste mapa, possvel observar as cidades-estados gregas, bem como a Macednia.

    Atlas histrico escolar. MEC/Fename.

    O Perodo Helenstico (ou Helenismo) compreende o perodo que se estende desde do sculo IV a.C. at o incio da Idade

    Mdia, apresentando caractersticas gregas e romanas. Seu incio est intrinsecamente ligado figura de Alexandre, o Grande,

    rei da Macednia, e s suas expedies e conquistas.

    A palavra helenismo, do grego hellenisms, significa falar grego. Assim, helenista o nome dado queles que utilizaram o

    idioma grego para se comunicar, seja por escrito ou apenas oralmente. Helenstico tambm pode se referir quele que adotara

    o grego como segunda lngua. Por exemplo, no livro Atos dos Apstolos, presente na Bblia Sagrada, a palavra helenstico foi

    utilizada para se referir aos judeus que substituram sua lngua materna pelo grego. importante notar que, com o tempo,

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

    05 A

  • 4 Coleo Estudo

    a palavra helenismo deixa de se referir somente a uma transformao de idioma para abranger toda uma cultura helenstica. Dessa forma, passou a representar o fenmeno de aculturao dos outros povos que, no sendo gregos ou orientais, adotaram a cultura e a forma de viver e conceber o mundo dos gregos. Para que tal

    transformao fosse efetuada, foi fundamental a figura de Alexandre, conhecido como o maior conquistador e

    estrategista da Antiguidade.

    O REINO DA MACEDNIAG

    unno

    r Bac

    h Pe

    ders

    en

    Busto de Filipe II mostra na Gliptoteca Ny Carlsberg

    Localizado na Pennsula dos Blcs ou Pennsula Balcnica, o reino da Macednia situava-se na regio nordeste da Grcia. A maioria de sua populao era formada por camponeses livres que se dedicavam a tarefas ligadas terra e criao de gado. Apesar de algumas diferenas, a lngua macednica era muito semelhante lngua grega.

    Os atenienses, pertencentes maior e mais importante cidade grega, tinham um modo muito peculiar de ver os estrangeiros. Embora fossem tambm gregos, os macednicos eram desprezados pelos atenienses, sendo considerados brbaros e devendo ser mantidos longe das glrias e dos privilgios reservados somente aos verdadeiros homens gregos.

    No ano de 359 a.C., Filipe se torna rei da Macednia, aos 23 anos de idade, no lugar do rei Amintas IV, ficando conhecido ento como Filipe II. Filipe II foi assassinado em 336 a.C., ao ser apunhalado por um de seus soldados, Pausnias, diante da populao durante o festival de outubro. Nesse festival, comemoravam-se as cerimnias de casamento da Macednia, inclusive o da filha do rei, Clepatra. Aproveitando aquela ocasio, Filipe II fez uma espcie de encontro internacional, convidando vrios enviados das cidades-estados gregas e outros lderes dos povos balcnicos.

    N0 450 km

    Imprio de Alexandre

    Batalhas

    Morte de Dario(330)

    Morte de Alexandre(323)

    Gaugamela(331)

    Bctria

    Babilnia

    Grdio

    Trcia

    Mnfis

    Alexandria

    Osis de Siwa

    Pella Granicius (334)

    Isso (333)

    DESERTO DAARBIA

    NDIAEGITO

    ASSRIA

    MACEDNIA

    PRSIA

    SAARA

    ANATLIA

    HINDU C

    USH

    Mesopotmia

    Pasrgada

    Hecatmpilos

    Susa

    Ecbatana

    BucefaliaProftasia

    Patala

    Morte de Dario(330)

    Pasrgada

    Hecatmpilos

    Susa

    Ecbatana

    Morte de Alexandre(323)

    Gaugamela(331)

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    Osis de Siwa

    Pella Granicius (334)

    Isso (333)

    DESERTO DAARBIA

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    MAR NEGRO

    Rio Dniester

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    Rio Veiga

    Rio Danbi

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    MAR CSPIO

    MAR DE

    ARAL

    OCEANONDICO

    MAR MEDITERRNEO

    GOLFO PRSICO

    O Imprio Macednico conquistado por Filipe e por Alexandre:

    territrio que se estendia dos Blcs ndia, incluindo o Egito

    e a Bctria (aproximadamente o atual Afeganisto).

    Antes de se tornar um grande rei, com glrias e honrarias devidas somente aos deuses, Filipe havia passado trs anos como refm na cidade grega de Tebas, num momento em que o reino da Macednia enfrentava uma grande crise, devido s guerras em que o reino esteve envolvido. Em Tebas, Filipe teve a oportunidade de estudar as tticas de guerra mais sofisticadas de seu tempo e tambm as inovaes estratgicas militares tebanas, principalmente a falange. Ao regressar para a Macednia em 360 a.C., tendo tambm estudado os mtodos militares dos gregos, com sua experincia, Filipe montou as falanges, constitudas de dez fileiras de infantaria armada com novas lanas, duas vezes mais longas do que aquelas comumente utilizadas, possuindo cada uma cerca de cinco metros de extenso. Com tal formao, os soldados que carregavam tais lanas podiam ficar mais distantes do que os que estavam frente na batalha. Desse modo, as lanas da retaguarda, projetando-se entre as da primeira fileira, eram absolutamente devastadoras contra os exrcitos inimigos. Como resultado dessa disposio e tcnica, as falanges formavam um escudo, quase como um ourio, praticamente indestrutvel. Apoiando a retaguarda, havia a cavalaria. Os homens que a constituam portavam uma armadura diferente em fora e peso e combatiam por trs os opositores, deixando os inimigos encurralados. Como reforo, o exrcito de Filipe ainda possua as catapultas, capazes de lanar pedras de mais de dez quilos a distncias que chegavam a 200 metros. Enfim, Filipe da Macednia formou um exrcito com fora e percia quase indestrutveis, composto de homens bem treinados e dispostos conquista do mundo, que se iniciou pela Grcia, j enfraquecida devido Guerra do Peloponeso.

    Frente A Mdulo 05

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    Os soldados (ou falangistas) mantinham uma formao cerrada, com as armas das primeiras linhas projetadas para a frente, de modo que seria impossvel atingir qualquer homem da formao sem ser perfurado por alguma lana. Essas lanas, chamadas sarissas, mediam de quatro a cinco metros e eram constitudas apenas de uma ponta afiada e um contrapeso. Os membros restantes da formao, aqueles que ficavam longe da primeira linha, mantinham as lanas elevadas em mdia de 45 graus, numa posio de prontido e anulando parcialmente um ataque pelo alto, por exemplo, caso a cavalaria inimiga saltasse sobre a primeira linha de lanas. Os homens que ficavam nas ltimas fileiras da falange eram usados como substitutos, quando os soldados da frente morriam ou tombavam, alm de constituirem uma fora de empurro para toda a formao, de modo que o inimigo era literalmente esmagado sob o avano do Exrcito.

    Aps a conquista da Grcia, os macednicos se puseram conquista da Prsia, que possua um vasto imprio, e dominaram tambm outros povos, sendo atrados, principalmente, por tesouros e terras cultivveis. Foi durante as comemoraes que antecederiam o incio da conquista dos persas que Filipe II veio a falecer, assumindo o trono ento seu filho, Alexandre.

    ALEXANDRE, O GRANDE: VIDA E CONQUISTAS

    Busto de Alexandre. Cpia romana em mrmore do original de Lisipo, de 330 a.C. (Museu do Louvre). Segundo Plutarco, as esculturas de Lisipo representavam fielmente o famoso conquistador macednio.

    Com a morte de Filipe II, Alexandre (356-323 a.C.) se tornou rei da Macednia, com apenas 20 anos. No entanto, sua pouca idade no representou qualquer empecilho para a genialidade de uma das figuras mais importantes da histria da Antiguidade. Tendo construdo um dos maiores imprios da histria, alguns homens de seu tempo chegaram a afirmar que Alexandre pertencia descendncia direta de Zeus. Antes de se tornar rei, Alexandre j tinha tido experincias polticas e militares ao lado do pai. Aos 16 anos, por exemplo, quando Filipe liderou um ataque contra a cidade de Bizncio em 340 a.C., Alexandre assumiu o controle do reino da Macednia. J na batalha de Queroneia, decisiva na conquista de Atenas, Alexandre liderou a cavalaria, o que foi fundamental para a vitria macednica. Conta-se que sua personalidade era sobremaneira singular. Por um lado, era um homem de viso diferenciada, extremamente inteligente, que buscava construir uma sntese entre o Oriente e o Ocidente. Alexandre era conhecido por seu respeito aos derrotados e por sua admirao pelas cincias e pelas artes, o que ficou claro com a criao da cidade de Alexandria (atual Istambul), que se tornou, substituindo Atenas, a cidade mais importante do mundo em sua poca, devido ao seu carter cultural, cientfico e econmico (talvez pela influncia do mestre e preceptor Aristteles, que educou Alexandre durante sua infncia), sendo substituda por Roma somente trezentos anos depois. Por outro lado, Alexandre apresentava-se como um homem extremamente instvel, violento e cruel, inclusive com aqueles que lhe eram mais prximos.

    Como resultado de todas as suas campanhas e guerras, Alexandre criou um imprio que se estendia da Grcia extremidade da ndia. Como rei e general de seus exrcitos, nunca perdeu uma batalha. No voltou para a Macednia, sua terra natal, depois de suas conquistas, permanecendo na Babilnia at sua morte.

    Em 323 a.C., com apenas 33 anos, Alexandre morreu, vitimado por uma febre. Seus generais passaram, ento, a disputar o poder entre si. O vasto imprio acabou se dividindo em reinos menores, entre os quais se destacam a Macednia, a Sria, Prgamo e o Egito. Os generais de Alexandre se tornaram os governantes desses reinos, que permaneceram at as invases romanas.

    As consequncias das conquistas de Alexandre para a cultura grega e para a Filosofia

    A consequncia poltica mais importante dos feitos de Alexandre foi o desmoronamento da importncia sociopoltica da poleis grega. Com as conquistas sobre toda a Grcia, a liberdade dos homens livres, caracterstica que sustentava a democracia grega, mais propriamente a ateniense, perdeu sua fora e vivacidade. Atenas, a principal polis grega, agora, fazia parte dos povos conquistados. Por mais que Alexandre respeitasse os atenienses e mantivesse a cidade

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

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    como sua aliada, a liberdade, sustentculo da democracia, foi duramente atingida. Aps a morte de Alexandre, com a formao dos reinos do Egito, da Sria, da Macednia e de Prgamo, a importncia da cidade livre, da polis, foi perdida e seu ideal de independncia e liberdade foi praticamente esquecido. Desse modo, a polis pensada por Plato e Aristteles, com seus ideais de moralidade e organizao tidos como a forma perfeita de organizao social e poltica, passou a ser vista como uma utopia.

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    Alexandre Magno e seu cavalo Bucfalo, na Batalha de Isso. Mosaico encontrado em Pompeia, hoje no Museu Arqueolgico Nacional, em Npoles.

    De cidado, o homem grego se tornou sdito. J no era a assembleia de homens livres que governava a cidade, mas agora eles recebiam ordens e tinham de acat-las, uma vez que estavam submetidos pela fora e pelo poder militar e poltico da Macednia.

    Em 146 a.C., com as invases romanas, a Grcia perdeu totalmente sua liberdade, tornando-se provncia de Roma. Desse modo, os gregos, no podendo definitivamente retornar ao ideal de cidadania da polis, aquele que valorizava os ideais cvicos de sua cidade e por isso o homem se identificava somente com ela (prova disso era o tratamento dos gregos dispensado aos estrangeiros), passaram a valorizar uma ideia cosmopolita, ou seja, j que no havia uma cidade com a qual o sujeito se identificasse, o mundo passaria, ento, a ser sua cidade.

    Nesse novo contexto de cosmopolitismo, o homem no estava mais preocupado em se tornar cidado, passando agora a se preocupar consigo prprio, no tendo mais como identidade a comunidade poltica, mas sim o indivduo, o homem particular, ou seja, ele mesmo. Desse modo, se a cultura do mundo clssico, das cidades-estados gregas, se empenhava em formar o cidado, esse novo mundo criado por Alexandre trouxe tona o indivduo, que, ao contrrio do cidado antigo, que se preocupava com o bem e com a felicidade de todos, passou a se preocupar consigo e com a sua felicidade. tica e poltica tornaram-se coisas distintas. A tica clssica, presente at Aristteles, baseava-se na unio entre homem e cidado, sendo que o bom poltico era, consequentemente, o melhor homem. Agora, a tica se estruturava de maneira autnoma, buscando compreender como o homem singular deve agir e viver para ser feliz particularmente.

    Da cultura helnica para a cultura helenstica

    Com as conquistas de Alexandre, o mundo se tornou um s reino. Isso significa que a cultura dos helenos, que antes era preservada somente entre os povos gregos, principalmente em Atenas, foi difundida pelo mundo. Por cultuar os ideais gregos, Alexandre, ao dominar os demais povos, difundiu a cultura helena, que se espalhou pelo mundo e foi absorvida, de um ou de outro modo, por todos os povos conquistados. A prpria Roma, que mais tarde dominou a Macednia, absorveu a cultura grega, por exemplo, quando renomeou os deuses gregos e os cultuou em seus ritos religiosos.

    Dentro da nova perspectiva de homem, visto agora como indivduo, se fez necessrio encontrar um novo modo de vida. Assim, foi preciso pensar em uma moral que levasse em conta o homem particular e que pudesse se constituir em uma forma para que este encontrasse a felicidade. Dessa maneira, a filosofia se dirigiu ao homem concreto e individual e, em alguma medida, ocupou o lugar antes reservado antiga polis e sua religio. A filosofia ofereceu novos contedos para a vida espiritual, iluminou a conscincia, ensinou o homem a viver e a ser feliz. A preocupao filosfica do helenismo foi predominantemente tica, tendo as demais especulaes filosficas se subordinado a este interesse prtico. H uma concepo teraputica da filosofia, segundo a qual os filsofos helenistas comparam sua arte com a do mdico. Dessa forma, assim como os mdicos curam os males do corpo, a filosofia cura os males da alma. A filosofia cuida das enfermidades da alma causadas pelas falsas crenas e pelos temores diante da vida e da morte.

    nesse contexto que surgem as escolas filosficas estoicismo, epicurismo, ceticismo e cinismo , que pretendem apresentar para os homens uma nova maneira de ser e viver que possa lev-los felicidade.

    O ESTOICISMO

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    Busto de Zeno de Ccio no Museu de Pushkin

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    Fundada por Zeno de Ccio (332-262 a.C.), cidade localizada em Chipre, em 300 a.C., a escola estoica representou a mais importante das correntes de pensamento do Perodo Helenstico. A palavra estoicismo tem sua origem no termo stoa poikil, que significa prtico pintado, local em que os membros dessa escola se reuniam. Dentre as principais figuras que compunham a escola estoica, esto Cleantes (331-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.).

    A ideia de natureza essencial para compreendermos o estilo de vida e a proposta de felicidade pregada pelo estoicismo. Segundo essa escola, a Filosofia dividida em trs partes, a fsica, a lgica e a tica, sendo esta ltima a mais importante. Nessa concepo, a Filosofia vista como uma rvore, na qual os frutos correspondem tica, a raiz fsica e o tronco lgica.

    Para o estoicismo, o homem deve viver segundo o que natural. Dentro dessa concepo tica, o homem pertenceria natureza, vista como o macrocosmo, sendo o ser humano somente um microcosmo. Dessa forma, o microcosmo est submetido ao macrocosmo. Para que o homem alcance a felicidade verdadeira, suas aes devem estar de acordo com o macrocosmo, ou seja, com aquilo que a natureza determina.

    So trs as virtudes que levariam o homem felicidade: a inteligncia, que o conduziria ao conhecimento e ao discernimento do bem e do mal; a coragem, que consiste em conhecer o que deve ser temido e o que no deve ser temido; e a justia, que seria o conhecimento do que deve ser dado a cada um segundo o que lhe devido. Em sua concepo, o estoicismo dir que no existe nada alm da vida terrena: se o homem natureza e deve se inteirar a ela, ao morrer ele continua a ser natureza, de outra forma, certamente, mas simples natureza. O homem dissolve-se na natureza.

    Dentro de sua proposta tica, podemos perceber que o estoicismo estar prximo de um determinismo ou fatalismo: as coisas esto determinadas pela sua natureza, e, se assim , o homem deve aceitar tal natureza, tal destino e cumpri-lo, fazendo sempre o que correto. Isso no significa que o sujeito no tenha vontade ou capacidade de pensar naquilo que certo ou errado, mas que ele deve aceitar o que inevitvel, se for isso o que a racionalidade do cosmos determinar. importante perceber que a natureza no arbitrria e irracional, por isso os estoicos insistiam no esforo para conhecer a racionalidade intrnseca natureza, compreendendo, assim, as suas determinaes, sem se desesperar diante delas.

    Nesse ponto, encontra-se aquilo que talvez seja o maior ensinamento do estoicismo: se os acontecimentos seguem o curso da natureza, o homem deve aceit-los de forma tranquila, buscando nessa aceitao a verdadeira felicidade. Dessa forma, o sujeito deve alcanar a ataraxia (estado de paz interior) por meio da tranquilidade da alma,

    possvel somente quele que constri sua fortaleza interior, ou atinge a apatheia, que seria a indiferena a tudo o que acontece, de modo que os fatos da vida, sendo inevitveis porque so naturais, no podem tirar a paz interior do homem. O estoicismo ensina o homem a enfrentar as vicissitudes da vida de forma calma, resignada, e, sobretudo, digna. Esse estado alcanado por meio do autocontrole e da austeridade de uma vida disciplinada e construda somente com o que estritamente necessrio sobrevivncia, sem qualquer luxo ou culto s coisas suprfluas.

    A escola estoica teve grande aceitao no mundo romano (posterior ao mundo helnico), tendo como principais representantes pensadores da qualidade de Sneca (4 a.C.-65 d.C.) e Marco Aurlio (121-180), imperador de Roma aps 161. Em sua verso latina, o estoicismo se manifestou principalmente na ideia de indiferena a tudo o que acontece na vida do homem, sem que este perca a paz interior construda com a racionalidade filosfica.

    Leon

    ardo

    Ale

    nza

    O suicdio no era um tabu para os estoicos. Diante de uma

    situao extrema, seria a soluo mais racional a ser tomada

    pelo homem.

    interessantssima a ideia trazida pelo estoicismo sobre a possibilidade do suicdio. De acordo com essa corrente, se a natureza racional e o homem deve viver de acordo com essa racionalidade, preservando o autocontrole e a paz interior, em alguns casos, o suicdio se torna natural. Por exemplo, quando o sujeito acometido de uma doena grave e incurvel, que lhe causar, inevitavelmente, uma dor tamanha, tirando-o do controle de si mesmo, provocando a angstia e o sofrimento como consequncias, afastando-o definitivamente da felicidade,

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

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    o mais racional seria, portanto, deixar de viver. Por isso, o suicdio visto pelos estoicos como um caminho racional diante de situaes extremas e no como um pecado ou um erro.

    As influncias do estoicismo sero claramente identificadas no cristianismo, quando este, anos depois, tecer elogios ao autocontrole, resignao diante dos acontecimentos e sofrimentos inevitveis e vida simples e abnegada em vista de um ideal maior que est para alm desse mundo.

    O EPICURISMO: O ENCANTAMENTO DOS JARDINS DE EPICURO

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    Busto de Epicuro

    Das escolas do Perodo Helenstico, talvez a que defender a mensagem mais fascinante seja o epicurismo. Fundado por Epicuro (341-270 a.C.), o epicurismo traz como pano de fundo de uma vida feliz a procura pelo prazer, que deve ser buscado em todas as coisas, o desprezo pela morte e a negao do temor aos deuses.

    Epicuro nasceu em Samos e chegou a Atenas em 323 a.C.,

    mesmo ano da morte de Alexandre, o Grande. Fundou sua escola em Atenas em 306 a.C., depois de viajar por muitos lugares e conhecer os homens e o mundo. Diferentemente das escolas de Plato (a Academia) e de Aristteles (o Liceu), a escola de Epicuro no era um centro de investigao filosfica em busca da verdade sobre o mundo ou sobre o homem, identificando-se mais como um permanente retiro espiritual, em que os amigos se reuniam para buscar

    a felicidade por meio de uma vida simples e regrada, entregue reflexo sobre o homem e busca do prazer.

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    Detalhe da obra Escola de Atenas, de Rafael Sanzio. Em destaque, Epicuro.

    Rejeitando o dualismo alma e corpo, Epicuro dir que o homem e o mundo so formados por tomos, ideia retirada do pr-socrtico Demcrito. Segundo este, os tomos, que

    em si so eternos, se juntam formando todos os seres, inclusive o homem. Uma vez que tais seres so destrudos, esses tomos so separados e voltam natureza, formando ento outros seres. Na concepo religiosa do epicurismo, no existiria vida aps a morte, uma vez que a prpria alma humana formada tambm por tomos e, quando o homem morre, esses tomos so simplesmente dispersados. Assim, Epicuro vai contra a preocupao dos homens em querer agradar os deuses com ritos e sacrifcios, uma vez que no h por que agrad-los, j que a alma no ir para junto deles aps a morte. Alm disso, Epicuro, em sua Carta sobre

    a felicidade, escrita para seu amigo Meneceu, dir que os

    deuses vivem em um lugar chamado de intermundo, no se importando com a vida dos homens, e, por isso, estes

    tambm no deveriam se preocupar em agrad-los, pois deles nada temos a esperar e nada a temer.

    Dentro de uma viso materialista, Epicuro dir que o nico conhecimento verdadeiro aquele obtido por meio dos sentidos, que tambm so materiais, sendo eles os instrumentos pelos quais o homem conhece os seres do

    mundo. Desse modo, o epicurismo valorizar as sensaes, pois entende que elas so o testemunho imediato dos sentidos, sendo sempre verdadeiras.

    Se no h vida aps a morte e o destino, em certa medida, segue a natureza dos seres, sendo que o homem pode tambm seguir algumas coisas determinadas por

    si mesmo, resta ao homem buscar uma vida feliz nesta realidade terrena, vivendo cada dia como uma construo propriamente humana em busca do prazer. A boa vida, a felicidade neste mundo, deve ser a meta a ser atingida pelo sujeito.

    Frente A Mdulo 05

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    Ao contrrio do que se pensou por muito tempo, Epicuro

    no pregava uma vida de prazeres imoderados e sem limites, no podendo ser considerado, assim, o defensor de um hedonismo1 raso e superficial, no sentido de que o que vale na vida o prazer em si mesmo, sem consequncias de qualquer natureza.

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    dn

    O hedonismo, no sentido mais conhecido da palavra, a busca pelo prazer sem medida e sem consequncias. Se entendido deste modo, o epicurismo no pode ser chamado de hedonismo.

    El hedonismo, de Ana Roldn.

    Segundo a doutrina epicurista, o homem atinge uma vida

    feliz medida que busca o prazer de forma moderada e equilibrada. H uma clara distino entre os prazeres ligados ao corpo e os prazeres ligados alma, sendo estes mais importantes do que aqueles. No so todos os prazeres que trazem a tranquilidade, mas somente os prazeres simples e racionalmente discernidos. Nas palavras de Epicuro, todo prazer bom, mas nem todos devem ser desejados. Toda dor ruim, mas nem toda dor deve ser rejeitada. Segundo a tica epicurista, o homem feliz aquele que austero e moderado, buscando os prazeres simples e virtuosos, racionalmente escolhidos. por isso que o filsofo dir que, de todas as virtudes, a mais valiosa a prudncia, pois

    por meio dela que o homem capaz de discernir os prazeres e escolher os melhores. Assim, Epicuro estabelece uma

    hierarquia entre os prazeres, dividindo-os em:

    1. Prazeres naturais e necessrios. Exemplo: comer o suficiente para saciar a fome.

    2. Prazeres naturais e no necessrios: Exemplo: comer comidas refinadas.

    3. Prazeres no naturais e no necessrios: Exemplo: riqueza, poder e prestgio.

    Segundo Epicuro, os prazeres da primeira categoria devem ser buscados, os da segunda podem ser buscados de vez em quando e os da terceira nunca devem ser buscados, pois

    so insaciveis e levariam o homem angstia.

    Sobre o mal e a dor, Epicuro dir que ambos so inevitveis. Desse modo, dir que o mal fsico ou facilmente suportvel ou, se insuportvel, dura pouco e leva morte. E a morte

    no deve ser vista com medo ou como um mal em si, ela , simplesmente, a suspenso dos sentidos. Epicuro, em sua Carta, dir que quando ela (a morte) est presente, ns no estamos, e quando ns estamos presentes, ela no est presente, por isso, a morte no deve representar nada para o homem. J em relao aos males da alma, Epicuro dir que a filosofia capaz de cur-los e de libertar completamente o homem de tais males.

    Como devemos viver: a sntese de Epicuro

    Epicuro nos forneceu uma sntese de sua mensagem no chamado quadri-frmaco (ou quatro remdios para os males

    do mundo), que consiste em quatro lies a serem seguidas para se alcanar a verdadeira felicidade:

    1. So vos os temores dos deuses e do alm.

    2. absurdo o medo da morte.

    3. O prazer, quando for entendido de modo justo, est

    disposio de todos.

    4. O mal ou de breve durao ou facilmente

    suportvel.

    Seguindo esses princpios, o homem poder alcanar a paz interior, a absoluta imperturbabilidade, sendo ento feliz.

    No fim de sua Carta sobre a felicidade, Epicuro diz:

    Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a

    elas congneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus

    semelhantes, e nunca mais te sentirs perturbado, quer

    acordado, quer dormindo, mas vivers como um deus entre

    os homens. Porque no se assemelha absolutamente a um

    mortal o homem que vive entre bens imortais.

    EPICURO. Carta sobre a felicidade a Meneceu. Ed. bilngue,

    grego/portugus. Traduo de lvaro Lorencini e

    Enzo Del Carratore. So Paulo: Editora Unesp, 1997.

    1 Hedonismo: doutrina que encontra no prazer o sumo bem e na busca do prazer o objetivo da vida do homem. Os cirenaicos so os fundadores dessa doutrina, colocando os prazeres do corpo acima dos prazeres da alma. Mas mesmo os cirenaicos condenavam os excessos e diziam ser necessrio manter um domnio sobre si mesmo ao experimentar os prazeres.

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

  • 10 Coleo Estudo

    CETICISMO

    Busto de Pirro, fundador do ceticismo

    Fundado por Pirro de lida (365/360-275/270 a.C.), o ceticismo, tambm conhecido como pirronismo, uma das escolas mais importantes do Perodo Helenstico. Apesar de a tradio considerar o ceticismo como uma escola, ao contrrio de Epicuro e dos estoicos, o ceticismo foi mais um pensamento, uma ideia que se disseminou pelo mundo do que propriamente uma escola. Os seguidores de Pirro no eram discpulos, mas simples admiradores que tomavam sua vida e atitudes como modelo para a busca da felicidade.

    Pirro fez parte do Exrcito de Alexandre, o Grande, e com ele foi at a ndia. Nesse caminho, percebeu que as convices gregas, as verdades que at ento eram arraigadas e inquestionveis de sua tradio, no passavam de um modo particular de ver o mundo, ou seja, as verdades ditas pelos gregos, que pareciam incontestveis e evidentes, eram somente mais uma viso particular ao lado de outras vises diferentes sobre os mesmos assuntos. Com isso, Pirro concluiu que verdades nicas e absolutas no existem, no passando de opinies.

    Pirro no deixou nada escrito, a exemplo de alguns pr-socrticos e do prprio Scrates. Quem escreveu sobre seus ensinamentos foi seu seguidor Tmon. Segundo Tmon, para que o homem seja feliz, ele deve ficar atento a trs coisas:

    Como so as coisas por natureza.

    Qual deve ser nossa disposio em relao a elas.

    O que nos ocorrer se nos comportarmos assim.

    De acordo com Tmon, Pirro d uma resposta a tais questionamentos:

    1. As coisas so igualmente sem diferena, sem estabilidade, indiscriminadas; logo, nem nossas sensaes nem nossas opinies so verdadeiras ou falsas;

    2. Sendo assim, no necessrio ter f nas coisas, mas sim permanecer sem opinies, sem inclinaes, sem agitaes, dizendo a respeito de tudo: no mais do que no , e no , ou nem , nem no ;

    3. Aqueles que se encontram nessa posio, ou seja, aqueles que atingirem tal atitude frente s coisas, em primeiro lugar alcanaro a apatia e depois a imperturbabilidade. Ou seja, essas pessoas

    alcanaro a felicidade.

    A dvida uma das atitudes do ctico. Ser que realmente

    existem verdades absolutas sobre as coisas? Para o ceticismo,

    no.

    A ideia central do ceticismo , portanto, que o homem no pode encontrar uma verdade absoluta sobre nada no mundo. Dessa forma, ctico aquele que no busca a verdade, pois sabe que ela impossvel de ser atingida, seja porque o homem no tem condies de encontr-la, seja porque ela no existe. De uma forma ou de outra, a postura do homem deve ser a de se abster de julgar o que as coisas so, de no emitir qualquer resposta pergunta: o que ? Assim, se as coisas so indiferentes, sem medida e indiscernveis, sendo que os sentidos, a razo, o pensamento no podem dizer o que as coisas so ou deixam de ser, o homem deve se contentar em simplesmente no buscar a verdade, permanecendo sem nenhuma inclinao, na total indiferena. essa indiferena que levaria o homem felicidade. No h por que se angustiar e perder a paz interior em busca da verdade, pois esta no existe ou impossvel de ser encontrada. Est aqui o ponto principal da argumentao ctica, resumida no conceito de poche, que significa a suspenso do juzo.

    Um dos mais importantes representantes do ceticismo foi Sexto Emprico (sc. II), que escreveu suas Hipotiposes Pirrnicas, principal fonte que temos de conhecimento do ceticismo antigo. Em sua obra, ele dir que o ceticismo a faculdade de opor de todas as maneiras possveis os fenmenos e os noumenos [coisas em si mesmas, essncias das coisas], e da chegarmos, pelo equilbrio das coisas e das razes opostas, primeiro suspenso do julgamento (epokh) e, depois, indiferena (ataraxia).

    Frente A Mdulo 05

  • FILO

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    11Editora Bernoulli

    CINISMO

    Han

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    ter

    Klu

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    lke

    Est

    el

    Digenes, o cnico mais famoso. Andava com uma lanterna nas mos em busca de um homem que fosse realmente justo.

    A palavra cnico, provavelmente utilizada pela primeira vez

    para se referir a Digenes de Sinope, tido como o fundador

    dessa escola filosfica, provm do grego kynism ou kyns e

    do latim cynismu, que significa co. Desse modo, Digenes

    e os demais cnicos ficaram conhecidos como os ces da

    cidade. Porm, Antstenes, seguidor de Scrates e quase

    contemporneo de Plato, foi o primeiro a viver segundo

    os princpios adotados pelo cinismo, sendo considerado,

    portanto, seu primeiro fundador. Nesse caso, Digenes

    visto como uma espcie de refundador do cinismo, pois

    ele o maior e mais importante expoente desse pensamento.

    A ideia central do cinismo a mais anticultural das

    concepes filosficas da Grcia Antiga: Digenes declarou

    que toda pesquisa filosfica abstrata e terica, bem como

    a matemtica, a fsica, a astronomia, a msica e todo e

    qualquer outro tipo de conhecimento terico, intil para

    levar o homem felicidade. Essa concepo claramente

    identificvel com sua clebre procura pelo homem. Conta-se

    que Digenes saa pela cidade, de dia, com uma lanterna

    na mo, dizendo procurar um homem que fosse justo.

    Com isso, ele queria encontrar um s homem que vivesse

    de acordo com a natureza, longe de todas as convenes

    da sociedade e indiferente ao prprio capricho da sorte e

    do destino, sabendo reencontrar sua verdadeira e original

    natureza, vivendo conforme essa natureza e com isso

    alcanando a verdadeira felicidade.

    O modo de vida do cnico, em especial de Digenes,

    resume o porqu de os participantes dessa escola serem

    conhecidos como os ces: os ces no se importam com

    nada, no perdem a paz em busca de comida, mas comem o

    que aparece; no se angustiam porque no tm onde dormir,

    mas dormem em qualquer lugar e, sobretudo, no tm

    qualquer vergonha em fazer o que natural, satisfazendo

    suas necessidades em frente a todos e quando sentem

    vontade. Da mesma forma deveriam ser os homens, que

    devem agir sem se preocupar com as convenes sociais ou

    qualquer norma de conduta. interessante observar que

    o animal que diz para o cnico como ele deve viver e agir,

    e no o contrrio: uma vida sem metas (metas que a

    sociedade coloca como necessrias, como obter riquezas

    e prestgio), uma vida sem necessidade de moradia fixa e

    tambm sem conforto. Segundo o cinismo, esses prazeres

    so criados pelos homens e so dispensveis vida feliz.

    Segundo Digenes, quanto mais se eliminam as

    necessidades suprfluas, mais se livre. Tal liberdade

    pregada pelos cnicos se manifestava em todos os sentidos:

    liberdade da palavra, pois diziam o que queriam da forma

    que queriam, sendo considerados, por isso, arrogantes;

    e liberdade da ao, pois faziam o que queriam, em qualquer

    lugar que estivessem e diante de qualquer pessoa.

    O trecho a seguir nos d uma viso mais clara do modo

    de viver e pensar dos cnicos:

    Costumava fazer qualquer coisa luz do sol, mesmo o

    que diz respeito a Demeter e Afrodite (comer e amar). [...]

    Se comer no estranho, nem mesmo na praa pblica

    estranho. No estranho comer; portanto, tambm

    no estranho comer na praa pblica. [...] Costumava

    masturbar-se em pblico e dizia: quem me dera pudesse

    aplacar a fome esfregando-me o ventre.

    DIGENES, Larcio. VI, 69.

    Os cnicos desprezavam o prazer, pois, segundo eles,

    o prazer no s debilita o fsico, mas escraviza a alma,

    que se torna dependente das coisas ou homens que trazem

    tal prazer. Dessa maneira, os cnicos viam como ideal de vida

    a ser alcanado a autarquia, ou seja, bastar-se a si mesmo,

    sendo preciso, para isso, a apatia e a indiferena diante de

    todas as coisas. Conta-se que um dia Alexandre, o Grande,

    foi visitar Digenes, que estava em seu barril (ele vivia em

    um barril), a tomar o sol da manh. Chegando perto de

    Digenes, Alexandre, o homem mais rico e poderoso da

    Terra, disse: Pede-me o que quiseres que eu te darei. Ao

    qual Digenes responde: No me faa sombra. Devolve meu

    sol. Apesar de parecer uma anedota, a histria resume o

    ideal do cinismo: o homem no necessita de nada a no ser

    daquilo que a prpria natureza se encarregou de lhe dar.

    Nada que no seja natural essencial vida, e a felicidade

    s pode ser alcanada a partir de uma vida simples e de

    acordo com a natureza.

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

  • 12 Coleo Estudo

    Pier

    re P

    uje

    t

    Alexandre visita Digenes. O rei admirava tanto o co que

    disse: Na verdade, se eu no fosse Alexandre, gostaria de ser

    Digenes.

    O encontro de Alexandre com Digenes de Sinope. Pierre Pujet,

    1680. Museu do Louvre.

    EXERCCIOS DE FIXAO

    01. Intelectual e espiritualmente, de fato, a poca de

    Alexandre assinala na Grcia uma mudana decisiva,

    que afetou especialmente as minorias cultas. No novo

    mundo dos grandes imprios, quando a civilizao grega

    j tinha se espalhado por todo o Oriente prximo, [...] os

    horizontes do indivduo grego viam-se consideravelmente

    alargados, mas ao mesmo tempo este havia perdido o

    sentimento de segurana que a vida da antiga cidade

    podia lhe dar.

    Segundo o texto, no Perodo Helenstico, os horizontes

    do indivduo grego viam-se consideravelmente alargados,

    mas ao mesmo tempo este havia perdido o sentimento

    de segurana que a vida da antiga cidade podia lhe dar.

    REDIJA um texto explicando o que isso representou para

    os gregos dessa poca.

    02. EXPLIQUE por que a ideia de cosmopolitismo foi

    importante para o Perodo Helenstico.

    03. No Perodo Helenstico a sensao de isolamento, desenraizamento e insegurana era, de fato, forte o bastante

    para estimular muitos homens a buscar uma forma de vida

    que lhes proporcionasse uma ntima sensao de segurana

    e estabilidade. Isto foi o que as novas filosofias do Perodo

    Helenstico se puseram a proclamar.

    A partir do trecho anterior, REDIJA um texto explicando a

    importncia das escolas filosficas para o Perodo Helenstico.

    EXERCCIOS PROPOSTOS

    01. (UFMG) Leia este trecho:Dependendo das condies anteriores, o mesmo vinho

    parece azedo para aqueles que acabaram de comer

    tmaras ou figos, mas parece ser doce para aqueles que

    consumiram nozes ou gro-de-bico. E o vestbulo da casa

    de banhos esquenta os que entram, mas esfria os que

    saem, se ficam esperando nele. Dependendo de se estar

    com medo ou confiante, o mesmo objeto parece temvel

    ou terrvel ao covarde, mas de forma alguma a algum

    mais corajoso. Dependendo de se estar em sofrimento ou

    em situao agradvel, as mesmas coisas so irritantes

    para os que sofrem, e agradveis para os que esto bem.

    ..........................................................................

    ..........................................................................

    Se, ento, no se pode preferir uma aparncia outra,

    com ou sem uma demonstrao ou um critrio, as

    diferentes aparncias que ocorrerem, em diferentes

    condies, sero indecidveis. De modo que a suspenso

    do juzo com relao natureza dos existentes externos

    introduzida tambm desse modo.

    SEXTO EMPRICO. Hipotiposes pirrnicas I, 110-117.

    Com base na leitura desse trecho, REDIJA um texto

    caracterizando a corrente filosfica que defende as

    afirmaes nele contidas.

    02. Habituar-se s coisas simples, a um modo de vida no luxuoso, portanto, no s conveniente para a sade,

    como ainda proporciona ao homem os meios para

    enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos

    perodos em que conseguimos levar uma existncia rica,

    predispe o nosso nimo para melhor aproveit-la, e nos

    prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.

    EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).

    Traduo de lvaro Lorencini e Enzo Del Carratore.

    So Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 41.

    REDIJA um texto respondendo seguinte pergunta:

    simplicidade sinnimo de felicidade?

    Frente A Mdulo 05

  • FILO

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    13Editora Bernoulli

    03. Leia o trecho a seguir.

    Mas acontecem muitos sobressaltos tristes, horrveis,

    duros de se agentar.

    Como no podia afastar-vos deles, armei vossos espritos

    contra todos: suportai bravamente. Nisto vs estais

    frente de um deus: ele est margem do sofrimento dos

    males, vs, acima do sofrimento.

    Desprezai a pobreza: ningum vive to pobre quanto

    nasceu. Desprezai a dor: ou ela ter um fim ou vos dar

    um. Desprezai a morte: a qual vos finda ou vos transfere.

    Desprezai o destino: no dei a ele nenhuma lana com

    que ferisse o esprito.

    Antes de tudo, tomei precaues para que ningum vos

    retivesse contra a vontade; a porta est aberta: se no

    quiserdes lutar, lcito fugir. Por isso, de todas as coisas

    que desejei que fossem inevitveis para vs, nenhuma

    fiz mais fcil do que morrer.

    Coloquei a vida num declive: basta um empurrozinho.

    Prestai um pouco de ateno e vereis como breve e

    ligeiro o caminho que leva liberdade [...]

    A isso que se chama morrer, esse instante em que a

    alma se separa do corpo breve demais para que se

    possa perceber to grande velocidade: ou o n apertou

    a garganta, ou a gua impediu a respirao, ou a dureza

    do cho arrebentou os que caram de cabea, ou a suco

    de fogo interrompeu o respirar; seja o que for, voa. Por

    acaso enrubesceis?

    Passa rpido o que temestes tanto tempo!

    SNECA. Carta sobre a Providncia Divina.

    A partir da leitura do trecho anterior e de outros

    conhecimentos sobre o assunto, REDIJA um texto

    caracterizando e explicando a corrente filosfica expressa

    por ele.

    04. Tambm ele, em criana, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a me lhe

    incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em

    que deixou cair toda essa vegetao parasita, e ficou s

    o tronco da religio, ele, como tivesse recebido da me

    ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dvida, e logo

    depois em uma s negao total [...]

    A partir do trecho anterior, retirado do livro A cartomante,

    de Machado de Assis, REDIJA um texto identificando a

    corrente filosfica presente no trecho e explicando sua

    premissa fundamental.

    05. por essa razo que afirmamos que o prazer o incio e o fim de uma vida feliz. Com efeito, ns o identificamos

    como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razo

    dele praticamos toda escolha ou recusa, e a ele chegamos

    escolhendo todo bem de acordo com a distino entre

    prazer e dor.

    EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu).

    Traduo de lvaro Lorencini e Enzo Del Carratore.

    So Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 41.

    A partir do texto e de outros conhecimentos sobre o

    assunto, REDIJA um texto se posicionando a favor de ou

    contra a seguinte afirmao: o homem feliz aquele que

    busca o prazer e se afasta da dor em todas as ocasies.

    06. A filosofia se preocupa com muitas questes tericas, como, por exemplo: o que a verdade? O que o

    conhecimento? O que distingue uma boa ao de uma m

    ao? O que justia? Ou, ainda, o que d legitimidade

    a um governo? Para essas questes, a filosofia oferece

    muitas respostas.

    SMITH, Plnio. O que ceticismo? So Paulo: Brasiliense, 1992.

    p. 07. Coleo Primeiros Passos, 262.

    A partir dessa citao, REDIJA um texto considerando a

    seguinte afirmativa: se a filosofia responde vrias coisas

    sobre as mesmas questes, podemos considerar alguma

    delas realmente verdadeira?

    07. Aprovo os sentimentos fortes e generosos dos esticos, que dizem que as coisas externas no so impedimento

    para a felicidade, mas que o sbio feliz, mesmo que

    o toro de Falrides o esteja queimando. Os idiotas no

    participam de nenhum bem, pois o bem virtude ou aquilo

    que participa as virtudes; as coisas que provm dos bens,

    que so aquelas das quais se tem necessidade, sendo

    vantajosas, cabem apenas aos sbios, assim como as

    coisas que provm dos males, que so aquelas das quais

    no se tem necessidade, cabem apenas aos viciosos. So,

    com efeito, coisas nocivas. E por isso todos os sbios

    so estranhos ao dano em ambos os sentidos; no so

    capazes de causar dano, nem de sofrer dano, enquanto

    os idiotas esto em situao contrria.

    CRISIPO. Fr. 586. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia:

    filosofia pag antiga. 3. ed. So Paulo: Paulus, 2003. p. 300.

    No texto anterior, Crisipo defende uma postura estoica

    diante das adversidades do mundo. REDIJA um texto

    definindo quais os princpios defendidos pelo estoicismo

    que levariam o homem a tal postura.

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

  • 14 Coleo Estudo

    08. Sustentava por isso que nada se pode obter na vida sem exerccios, alis, o exerccio o artfice de qualquer

    sucesso. Eliminados, portanto, os esforos inteis,

    o homem que escolhe as fadigas requeridas pela natureza

    vive feliz; a ininteligncia dos esforos necessrios

    a causa da infelicidade humana. O prprio desprezo

    pelo prazer para quem esteja a isso habituado algo

    dulcssimo. E assim como os que esto habituados a viver

    nos prazeres passam de m vontade para um teor de vida

    contrrio, tambm aqueles que se exercitam de modo

    contrrio, com maior desenvoltura desprezam os mesmos

    prazeres. Estes eram seus preceitos e a eles conformou

    sua vida. Falsificou realmente a moeda corrente, porque

    dava menor valor s prescries das leis do que s da

    natureza. Modelo de sua vida, dizia, foi Hracles, que

    nada anteps liberdade.

    DIGENES, Larcio. Vida dos filsofos. In: REALE, Giovanni.

    Histria da Filosofia: filosofia pag antiga. 3. ed.

    So Paulo: Paulus, 2003. p. 257-258.

    REDIJA um texto relacionando a citao anterior com

    a ideia de co trazida por Digenes de Sinope, a qual

    caracteriza a escola do cinismo.

    SEO ENEM

    01. Dizemos que a finalidade do ctico a tranqilidade nas matrias de opinio. Pois, tendo comeado a filosofar

    para julgar as representaes e apreender quais so

    verdadeiras e quais so falsas, de modo a obter a

    tranqilidade, deparou com uma discordncia de igual

    fora; e, no podendo decidi-la, suspendeu seu juzo

    sobre ela. Estando em suspenso de juzo, ocorreu-lhe

    casualmente a tranqilidade nas matrias de opinio.

    SEXTO EMPRICO. Hipotiposes pirrnicas.

    Em virtude dessa descoberta do ctico pirrnico, para

    que o homem se mantivesse no estado de tranquilidade,

    ele deveria

    A) afirmar que as coisas so como aparecem.

    B) negar que as coisas so como aparecem.

    C) opor a todo argumento um argumento igual.

    D) abster-se do julgamento e no emitir opinio.

    E) recusar-se a reconhecer os dados sensveis.

    GABARITO

    Fixao01. No Perodo Helenstico, os gregos, por terem

    tido suas terras invadidas pelos exrcitos

    macednicos, perderam sua liberdade poltica e,

    como consequncia, perderam a segurana

    que a cidade, sua cultura e os valores cvicos

    representavam para eles. Dessa forma,

    os gregos, em particular os atenienses, se viram

    na situao de povo dominado, o que retirou

    deles a possibilidade de se autodeterminarem e

    decidirem conjuntamente o seu futuro e o da polis.

    Por outro lado, seus horizontes se alargaram, uma

    vez que o mundo se tornou um nico territrio,

    havendo um sincretismo de culturas, o que fez

    com que os gregos pensassem em si mesmos,

    individualmente, sem se preocuparem com a

    cidade, estando exatamente nesse fato a origem

    das escolas filosficas do Perodo Helenstico.

    02. Com as invases macednicas, os gregos, por

    no mais se identificarem exclusivamente com

    sua cidade e seus valores, se viram pertencendo

    a um mundo muito maior. Dessa forma, no mais

    se definiam como cidados desta ou daquela

    cidade, mas agora se sentiam cidados do mundo

    ou cosmopolitas. Essa possibilidade permitiu que

    eles se desprendessem de sua origem, fazendo-os

    pensar no mundo todo como um nico lugar, no

    havendo mais a ideia de estrangeiro ou cidado.

    Sendo assim, independentemente da cidade que

    habitavam, a vida deveria ser vivida na busca da

    felicidade prpria e particular.

    03. Com as conquistas de Alexandre, os homens

    gregos viram-se sem uma cidade e sem um

    ideal de vida cvica a seguir. Aquilo que lhes

    garantia a felicidade, que era justamente o

    poder de se reunirem na praa pblica e juntos,

    como cidados, decidirem o futuro da polis,

    lhes foi retirado. Desse modo, um novo modo

    de vida deveria servir como caminho para que

    os homens pudessem novamente ser felizes,

    e foi isso que as escolas filosficas do Perodo

    Helenstico se propuseram a fazer. Cada uma

    delas trazia uma maneira de ser e viver com a

    qual o homem poderia alcanar a paz interior e,

    consequentemente, a felicidade.

    Frente A Mdulo 05

  • FILO

    SOFI

    A

    15Editora Bernoulli

    Propostos01. A corrente tratada o ceticismo. Essa corrente de

    pensamento defende a tese de que impossvel

    encontrar o conhecimento verdadeiro. Alm

    disso, para o ceticismo, ou pirronismo, o homem

    deveria suspender os juzos, pois ele no tem

    condies de saber emitir opinies sobre os seres

    ou o mundo.

    02. Resposta subjetiva (espera-se que o aluno seja

    capaz de se posicionar argumentativamente a

    favor de ou contra essa ideia. muito til, quando

    possvel, valer-se de outros filsofos em sua

    argumentao).

    A favor: Sim, simplicidade sinnimo de

    felicidade. Acompanhando o argumento de

    Epicuro, podemos perceber que a posse de bens

    vrios e abundantes no garantia de uma

    vida feliz e realizada. Existem muitos exemplos

    e testemunhos de pessoas que, apesar de

    terem uma vida luxuosa proporcionada pela

    riqueza, no so felizes ou realizadas, mas

    sofrem demasiadamente pela falta de algo que

    preencha seu vazio existencial. Dessa forma,

    uma vida mais simples, menos apegada aos bens

    materiais, embora estes sejam fundamentais

    para a manuteno do mnimo de conforto para a

    vida do homem, pode ser o caminho mais vivel

    para a felicidade.

    Contra: No, simplicidade no sinnimo de

    felicidade. Ser simples no significa ser feliz,

    pois, se assim o fosse, teramos de concordar

    que todas as pessoas que possuem uma vida

    mais luxuosa, mais rica, seriam necessariamente

    infelizes, e isso no se comprova. O que faz ou

    no uma existncia feliz a atitude interna do

    homem diante das situaes. Dessa maneira,

    totalmente possvel e plausvel que existam

    homens que gozem de luxos e sejam felizes,

    e homens que tenham uma vida simples, com

    poucos bens, e sejam profundamente infelizes.

    O que importa a atitude interna do indivduo,

    no o que ele possui, seja muito ou pouco.

    03. A corrente filosfica expressa no trecho em

    questo o estoicismo. Sneca foi um dos

    principais filsofos estoicos do perodo do Imprio

    Romano e suas influncias foram sentidas,

    inclusive, no cristianismo. Essa corrente filosfica

    se caracteriza pela busca da apatheia, ou seja,

    a perfeita indiferena a todos os acontecimentos

    externos vida humana, sejam eles bons ou

    maus. Assim, o estoicismo defender que o

    homem construa uma fortaleza interior que seja

    inabalvel e que garanta a ataraxia ou paz interior.

    Nada pode tirar a paz do homem, nada pode

    retirar o homem de seu estado de autocontrole

    e concentrao para a busca da sabedoria pelo

    estudo da Filosofia. Essa ideia de indiferena se

    manifesta no desprezo dor, morte, ao destino

    e pobreza presente no texto.

    04. O texto representa a corrente filosfica do

    ceticismo antigo ou pirronismo. Segundo tal

    corrente, o homem deve duvidar de tudo, pois no

    existem verdades absolutas sobre nada. Aquilo

    que se tem como verdade so ideias particulares

    dos indivduos que, no raras as vezes, so

    contrrias s ideias dos demais, o que leva

    concluso que nenhuma dessas ideias , em si,

    a correta. Tal corrente tem seu incio com Pirro,

    soldado do Imprio Macednico que, em suas

    batalhas ao lado de Alexandre, percebeu que em

    cada localidade, em cada povo, em cada cultura,

    as verdades sobre os mesmos temas variavam.

    A partir disso, concluiu que no existem verdades

    absolutas sobre qualquer assunto. Tal ideia se

    manifesta na dvida constante sobre todas as

    coisas, atitude prpria do ctico.

    05. Resposta subjetiva (espera-se que o aluno seja

    capaz de se posicionar argumentativamente a

    favor de ou contra essa ideia. muito til, quando

    possvel, valer-se de outros filsofos em sua

    argumentao).

    A favor: O princpio de toda escolha humana ,

    de fato, a busca pela felicidade e a recusa da

    dor. Tal atitude plenamente humana, uma

    vez que ningum pode, por natureza, desejar a

    dor como causa de possibilidade da felicidade.

    Os animais agem dessa forma, buscando o prazer

    que, no caso, a satisfao de seus instintos.

    Por que o homem seria diferente, se ele tambm

    goza de uma natureza instintiva? Tal princpio da

    satisfao do prazer e fuga da dor encontra-se

    vastamente defendido na histria da Filosofia,

    Helenismo: a difuso da cultura grega e a busca pela felicidade

  • 16 Coleo Estudo

    comeando com Epicuro, passando por Stuart Mill

    e chegando a Nietzsche e Freud. Tomando como

    exemplo, para corroborar o argumento, Nietzsche

    dir que a escolha daquilo que nega o prazer e

    busca deliberadamente a dor prprio dos seres

    inferiores, da moral de rebanho, apregoada

    pela moral crist ocidental, representando,

    segundo o filsofo, a decadncia humana. Quem,

    em s conscincia, escolheria deliberadamente

    o sofrimento e rejeitaria o prazer? No h

    justificativa razovel para tal atitude. Seria a

    prpria desnaturalizao do homem.

    Contra: A felicidade no pode ser consequncia

    somente das aes que trazem prazer ao

    homem. Se assim fosse, teramos de afirmar que

    todos aqueles que lutam e, devido sua luta,

    sofreram ou ainda sofrem por uma causa maior,

    moralmente justificvel, como a democracia em

    regimes totalitrios, no so felizes. Ao contrrio,

    percebe-se que, apesar da dor, que nesse caso

    o contrrio do prazer, essas pessoas so sim

    felizes, pois seu sofrimento tem como justificativa

    uma causa maior. Como exemplo, temos Santo

    Agostinho, quando este fala sobre a distino

    entre a cidade dos homens e a cidade de Deus.

    Segundo ele, vivemos na cidade dos homens e,

    para sermos fiis a Deus, devemos deixar todos

    os prazeres dessa cidade terrena e, assumindo a

    dor e o sofrimento, esperarmos o momento em

    que possamos ir cidade de Deus. Nesse caso,

    podemos dizer que a felicidade na Terra no

    trazida pelo prazer, mas a dor seria o caminho

    para a felicidade perfeita e plena.

    06. O argumento mais legtimo para defender o

    ceticismo justamente o de que o conhecimento

    verdadeiro no possvel, pois muitas so as

    respostas para as mesmas questes. Se muitas so

    as respostas, e vrias so plausveis e sustentadas

    pela razo, qual delas seria verdadeira? Como

    exemplo dessa tese, temos Descartes, que rejeita

    as bases filosficas que sustentavam as cincias

    justamente porque poderiam ser colocadas

    em dvida. Se algo realmente verdadeiro,

    tal verdade deve se legitimar por argumentos

    irrefutveis. No possvel pensar em uma

    cincia, por exemplo, a Fsica Moderna, em que

    os resultados dos clculos podem ser superados,

    encontrando-se outros resultados para o mesmo

    movimento dos corpos. Porm, a realidade das

    cincias humanas outra, diferentemente das

    cincias exatas. Se, nestas, a verdade deve

    permanecer sempre a mesma, naquelas, pelo

    fato de terem como objeto o homem, e sendo

    este essencialmente indeterminado, poderamos

    pensar que as verdades dessas cincias podem

    ser aprimoradas ou, mesmo, totalmente refeitas

    com o passar do tempo.

    07. O estoicismo a corrente filosfica do Perodo

    Helenstico que prega a total resignao do

    homem diante dos acontecimentos da vida para se

    atingir a felicidade. Nesse caso, o homem deveria

    construir uma fortaleza interior de modo que as

    vicissitudes da vida, ou seja, os acontecimentos,

    bons ou maus, no lhe tirassem do estado de paz

    interior ou ataraxia. Para o estoico, o ideal seria

    atingir a apatheia, que exatamente a indiferena

    diante de todas as coisas, pois s por meio dessa

    indiferena possvel alcanar a felicidade. Essa

    ideia clara no texto de Crisipo quando ele fala

    sobre o sbio, que suporta o fogo, ou seja, as

    adversidades e acontecimentos externos, sem

    perder contudo a paz, no sendo tais coisas

    impedimento sua felicidade.

    08. Representante mais importante da escola cnica,

    Digenes de Sinope demonstrou o total desprezo

    pelas coisas do mundo, sejam materiais ou no,

    em vista de uma vida simples e feliz. Para ele,

    o ideal de felicidade estaria no total desapego de

    todas as coisas, a exemplo do co, que no tem

    nada como seu e vive inteiramente de acordo

    com sua natureza. Para os cnicos, a vida natural

    a que deve fazer sentido para o homem, pois

    nada que no seja parte da natureza deve ser

    considerado para a busca da felicidade. O co vive

    totalmente entregue sua natureza e, por isso,

    vive feliz.

    Seo Enem01. D

    Frente A Mdulo 05

  • FRENTE

    17Editora Bernoulli

    MDULOFILOSOFIA

    Mic

    hel

    ange

    lo

    A Criao de Ado, de Michelangelo, pintado no teto da Capela Sistina (Detalhe)

    O perodo entre a Antiguidade e o Renascimento,

    preanunciado por Francesco Petrarca (1304-1374) e

    batizado por este de medium aevum, ficou conhecido como

    Idade Mdia. Pejorativamente chamado de Idade das

    Trevas ou Noite dos Mil Anos, esse perodo sofreu com

    a estagnao da poltica e da economia, devido ao sistema

    feudal, e com o atraso da cincia, impedida de avanar

    devido presena fiscalizadora da Igreja. Iniciando-se no

    sculo V, com a queda do Imprio Romano do Ocidente

    (476), quando da invaso de Roma pelos visigodos, e se

    estendendo at o incio do pensamento moderno, no final

    do sculo XV e incio do sculo XVI, a Idade Mdia foi

    palco de profundos avanos da histria e do pensamento

    ocidental, embora tenha sido amplamente criticada. As

    obras de grandes pensadores, como Agostinho de Hipona,

    Toms de Aquino, Pedro Abelardo e Guilherme de Ockam,

    so exemplos cabais da importncia e do fervor intelectual

    desse perodo. Podemos mencionar ainda a arte gtica,

    presente at os dias atuais, e a fundao das primeiras

    universidades a partir do sculo XI.

    na Idade Mdia que acontece, de forma sistemtica,

    a aproximao entre f (religio) e razo (filosofia).

    Porm, tal aproximao no se deu somente a partir do

    sculo V, uma vez que a religio crist teve seu incio j no

    sculo I, antes da queda do Imprio Romano do Ocidente.

    O pano de fundo que leva compreenso do surgimento e

    do crescimento do cristianismo o Helenismo, que permitiu,

    graas convivncia de vrias culturas num mesmo

    territrio, uma aproximao entre o judasmo e a cultura

    grega, preanunciando a filosofia crist que surgiria algum

    tempo depois.

    Filosofia crist: a relao entre f e razo

    06 A

  • 18 Coleo Estudo

    O primeiro pensador a buscar uma conciliao entre

    religio e filosofia foi Flon de Alexandria (25 a.C.-50 d.C.).

    Conhecido tambm como Flon, o Judeu, ele escreveu alguns

    comentrios ao Pentateuco a partir das ideias de Plato,

    fazendo uma aproximao entre a cosmologia platnica,

    presente no livro Timeu, e a criao do mundo por Deus.

    Plato se referiu ao Demiurgo, um semideus que criou

    todas as coisas do mundo a partir das ideias inteligveis

    j existentes. J para Flon, Deus criou todas as coisas a

    partir de suas prprias ideias, e no de ideias tidas como

    autnomas, como supunha Plato, que no provinham do

    prprio Deus.

    And

    r T

    heve

    t

    Flon de Alexandria

    O ponto mais importante de nossa anlise consiste

    justamente em nos determos na tentativa de conciliao

    entre f e razo1, ou seja, entre a filosofia clssica,

    principalmente a de Plato e Aristteles, e as verdades

    reveladas, crena fundante do cristianismo, o que marcar

    definitivamente o pensamento e o modo de ser e viver da

    Idade Mdia.

    Apesar de, historicamente, a Idade Mdia ter seu incio

    com a queda do Imprio Romano do Ocidente no sculo V,

    o pensamento medieval deve ser entendido a partir do incio

    do cristianismo, no sculo I. O crescimento do cristianismo

    foi um processo longo e gradativo, estendendo-se de seu

    nascimento, com a morte de Cristo e a formao das

    primeiras comunidades crists, at sua consolidao, com

    a converso e o batismo do imperador romano Constantino,

    no ano de 337, e a consequente institucionalizao da

    religio crist, mais especificamente do catolicismo,

    como religio oficial do Imprio Romano no ano 391.

    O cristianismo foi difundido aps a morte de Jesus de

    Nazar, judeu que afirmava ser o messias e que, por isso, foi

    crucificado, aos 33 anos, tendo pregado uma nova maneira de

    ser e viver, levantando a bandeira do amor, da compaixo e do

    perdo. Aps sua crucificao, pequenas comunidades foram

    formadas, principalmente como resultado da pregao dos

    apstolos e de outros neoconvertidos, como Paulo de Tarso,

    antes perseguidor de cristos e agora adepto do cristianismo

    aps ter tido uma experincia com o Cristo ressuscitado.

    Essas pequenas comunidades, em geral guiadas por um

    lder local, se reuniam em assembleias para a leitura e para a

    execuo de rituais que reviviam os atos e as mensagens de

    Jesus Cristo. Tais reunies representaram a semente do que

    ficou conhecido algum tempo depois como Igreja.

    Embora seguindo um mesmo mestre como modelo, nessas

    primeiras comunidades, no havia uma unidade em relao

    aos ritos, aos sacramentos e mesmo leitura dos textos,

    que eram comumente interpretados de maneiras distintas.

    Essas diferenas poderiam provocar uma ruptura interna no

    cristianismo, pois a doutrina e as crenas variavam e muitas

    vezes se contradiziam. Diante disso, surgiu a necessidade de

    se realizar uma institucionalizao que promovesse a unidade

    da nova religio, de seus ritos, textos sagrados, doutrinas e

    objetivos. Tal unidade deveria ser rapidamente confirmada,

    uma vez que o cristianismo crescia vertiginosamente e

    agregava, a cada dia, mais fiis, que compunham comunidades

    espalhadas por toda a Judeia e pelo Oriente Mdio.

    Pantocrator. Mosaico do sculo XII, que se encontra na Igreja de Santa Sofia, em Constantinopla, hoje Istambul, na Turquia.

    1 Este foi o principal e mais difcil problema sobre o qual os Padres da Igreja e toda a Idade Mdia tiveram de se debruar. Ser que a f contrria razo? Ser que a filosofia inimiga das verdades crists? na tentativa de conciliar f e razo que Agostinho constri uma sntese extraordinria entre a Bblia, as verdades da Igreja e a filosofia de Plato.

    Frente A Mdulo 06

  • FILO

    SOFI

    A

    19Editora Bernoulli

    Diante do desafio de se promover uma unio do

    cristianismo, fazia-se urgente a construo de uma unidade

    doutrinria. As perguntas fundamentais que deveriam ser

    respondidas eram: Em que acreditar? Como as leis e regras

    morais deveriam ser pregadas aos novos cristos? O que

    permitido e o que proibido fazer? Quem e quais povos

    poderiam se tornar cristos? Seriam todos os homens de boa

    vontade ou somente os provenientes do judasmo? Como

    defender doutrinariamente o cristianismo contra as outras

    religies e seitas que surgiam na mesma poca?

    Era extremamente necessrio munir o cristianismo

    de explicaes lgicas e coerentes que se fizessem

    compreender tanto pelos crticos da nova religio quanto

    pelos intelectuais neoconvertidos. Era inaceitvel participar

    de uma religio que no trouxesse consigo argumentos

    inteligveis de suas bases doutrinrias, argumentos estes

    que deveriam ter uma fundamentao filosfica, uma vez

    que a filosofia fazia parte da vida de praticamente todos os

    pensadores e intelectuais, trazida pela tradio helnica.

    Para os filsofos medievais, o fato de o cristianismo

    representar a Verdade era um dado inquestionvel.

    A questo era saber se os homens deveriam simplesmente

    acreditar na revelao crist ou se tambm deveria

    haver uma compreenso dessas verdades por meio da

    razo. Existiria uma relao entre os filsofos gregos

    e a Bblia? Haveria uma contradio entre a revelao

    de Deus aos homens, representada pela Bblia e pela

    interpretao da Igreja, e a razo, representada pela

    filosofia, ou ambas poderiam conviver em harmonia? Este

    o desafio que representou a grande questo medieval.

    Nesse sentido, cabe destacar um momento importante da

    Idade Mdia, o chamado Perodo dos Padres Apologistas, que

    se iniciou a partir do sculo II. Dentre os Padres Apologistas

    (Apologia: defesa, justificao), o mais importante foi, sem

    dvida, Justino Mrtir (100-165/167). Justino escreveu

    duas importantes obras, denominadas Apologias, nas

    quais busca defender o cristianismo, considerando-o

    a verdadeira filosofia, contrrio, portanto, a alguns

    antigos princpios filosficos que no se harmonizavam

    completamente com o cristianismo. Justino foi um grande

    estudioso de Plato e, ao se converter ao cristianismo,

    ele reviu suas crenas na filosofia platnica, principalmente

    no tocante possibilidade de, por meio dela, alcanar a

    verdade.

    A passagem a seguir demonstra seu posicionamento

    em relao filosofia: Eu sou cristo, glorio-me disso e,

    confesso, desejo fazer-me conhecer como tal. A doutrina

    de Plato no incompatvel com a de Cristo, mas no se

    casa perfeitamente com ela [...]. Desse modo, os Padres

    Apologistas representaram uma primeira tentativa de

    compreender a f crist.

    So Justino Mrtir. Os mrtires eram mortos por causa da

    perseguio aos primeiros cristos por parte dos romanos.

    As mortes eram as mais cruis possveis. Muitos cristos foram

    decapitados, outros jogados aos lees no Coliseu, outros

    queimados vivos, etc. So Justino foi decapitado em 165/167.

    Com os Padres Apologistas, comea a atividade filosfica

    crist. A tese comum que defendem de que o cristianismo

    a nica filosofia segura e til e resultado ltimo a que

    a razo deve chegar. Os filsofos pagos conheceram

    sementes de verdade que no puderam entender

    plenamente: os cristos conhecem a verdade inteira porque

    Cristo o logos, isto , a razo mesma da qual participa todo

    o gnero humano. A apologtica desses padres constitui,

    portanto, a primeira tentativa de inserir o cristianismo na

    histria da filosofia clssica.

    ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 5. ed. Traduo de Alfredo Bossi. So Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 74.

    Porm, o que mais nos interessa o momento posterior ao

    dos Padres Apologistas, denominado Perodo dos Padres da

    Igreja ou Patrstica, no qual se verifica uma crescente aceitao

    da filosofia grega pelos cristos e lderes do cristianismo.

    Filosofia crist: a relao entre f e razo

  • 20 Coleo Estudo

    A imagem mais antiga de Santo Agostinho, o mais importante

    pensador da Patrstica, no afresco do sculo VI, na Baslica de

    Latro, em Roma.

    Os Padres da Igreja constituam um conjunto de filsofos

    cristos, que, principalmente a partir do sculo III,

    aproximou, por meio de seus escritos e pregaes, a filosofia

    grega do cristianismo.

    Nesse contexto, a filosofia teve um papel primordial,

    servindo como base formulao de argumentos que

    defendessem de modo compreensvel a doutrina crist

    frente s heresias2, comuns tanto dentro quanto fora do

    cristianismo.

    claro que a f ocupa lugar primordial e precedente

    razo, mas, justamente pela necessidade de munir a

    f de argumentos racionais, a filosofia grega se torna

    imprescindvel para este processo. No entanto, no qualquer

    filosofia que pode ser aceita, sendo os textos, as ideias e

    os pensadores gregos cuidadosamente selecionados. Aqueles

    textos, ideias ou pensadores que pudessem representar,

    mesmo que timidamente, alguma ameaa doutrina

    crist e revelao so deixados de lado, buscando-se

    somente aqueles que servissem de base para uma nova

    interpretao dos textos e dos pensamentos a partir da

    lgica e da viso crist.

    Dessa forma, os textos, ideias e filsofos seriam

    selecionados se servissem ao objetivo da Igreja, que era o

    de fortificar a f a partir desses textos, agora interpretados

    luz da revelao divina.

    Gus

    tav

    Vas

    akyr

    kan

    Os santos triunfam sobre a heresia. Escultura de Gustav

    Vasakyrkan em Estocolmo.

    Essa postura crist foi amplamente difundida,

    principalmente nos Conclios de Niceia (325), Constantinopla

    (381) e Calcednia (451). Com o objetivo de legitimar e

    construir uma doutrina que atendesse a todo o cristianismo,

    as reunies da Igreja em torno de questes teolgicas e

    morais se dedicaram a uma conciliao entre f e razo,

    entre filosofia e revelao, que pudesse atender aos anseios

    do cristianismo nascente, nessa poca, j reconhecido como

    religio (313) e mais tarde elevado ao patamar de religio

    oficial do Imprio Romano (391). Durante a realizao

    dos Conclios, foi comum a utilizao de teorias e textos

    filosficos com o intuito de defender uma postura favorvel

    ao cristianismo e de condenar as heresias.

    nesse momento delicado do cristianismo que a filosofia

    encontra bases slidas de comunho com a doutrina crist.

    Alguns conceitos dos principais filsofos gregos, Plato e

    Aristteles, foram amplamente utilizados como fundamento

    terico para a doutrina crist. Exemplos disso so os

    conceitos de essncia, substncia, alma, corpo, ideia,

    causa, entre outros. Tambm a retrica e a lgica foram

    aplicadas de forma a defender a f e justificar a teologia,

    fornecendo a esta as bases de uma argumentao clara a

    favor das verdades reveladas.

    2 Heresia: doutrina contrria a uma verdade estabelecida pela religio. Esse termo amplamente utilizado para se referir a todas

    as ideias contrrias ou crticas s verdades fundamentais do cristianismo.

    Frente A Mdulo 06

  • FILO

    SOFI

    A

    21Editora Bernoulli

    Com eventos em todo o mundo em homenagem aos

    200 anos de nascimento do cientista britnico, celebrados

    amanh, e o 150 aniversrio de seu livro A Origem das

    Espcies, lanado em novembro de 1859, o Vaticano

    destacou que a Igreja Catlica nunca condenou Charles

    Darwin.

    Segundo o presidente do Conselho Pontifcio para a

    Cultura, arcebispo Gianfranco Ravasi, o livro do cientista

    britnico nunca foi parar no Index Librorum Prohibitorum

    ndice de textos proibidos da Igreja.

    No ltimo sculo, tanto o papa Pio XII como Joo Paulo II

    se manifestaram sobre a evoluo.

    Em sua encclica Humani Generis (1950), Pio XII j dizia

    que o magistrio da Igreja no probe o estudo da doutrina

    do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano

    em matria viva preexistente.

    Naqueles tempos, Pio XII insistia em afirmar que

    a f catlica manda defender que as almas so criadas

    imediatamente por Deus. O pontfice encorajava um

    confronto srio, moderado e temperado.

    Em 22 de outubro de 1996, Joo Paulo II fez um grande

    discurso na Pontifcia Academia das Cincias afirmando

    que a evoluo j no era uma mera hiptese, mas uma

    teoria. Aps declarar, como Pio XII, que era importante

    no perder de vista alguns pontos pr-determinados, Joo

    Paulo II reconheceu que a convergncia dos resultados

    de trabalhos realizados independentemente nesse campo

    constitua um argumento significativo a favor dessa teoria.

    O antecessor de Bento XVI declarou que a Igreja estava

    interessada diretamente na questo da evoluo, porque

    esta influi na concepo do homem, sobre o qual disse

    a Revelao mostra que foi criado imagem e semelhana

    de Deus.

    O papa polons ainda afirmaria anos depois que no

    basta a evoluo das espcies para explicar a origem do

    gnero humano, como no basta a casualidade biolgica

    para explicar por si s o nascimento de uma criana.

    J Bento XVI sempre defendeu a chegada f por meio

    da razo, apoiando o dilogo entre f e cincia. Da mesma

    forma que seus antecessores, o atual pontfice declara que

    no h oposio entre a f da compreenso da criao e

    a evidncia emprica da cincia.

    Algumas ideias das escolas filosficas do Perodo

    Helenstico tambm foram usadas como auxiliares da f,

    principalmente aquelas ideias que se referem vida

    simples e mortificada. Por exemplo, dos estoicos, veremos

    as ideias de austeridade, sacrifcio, abnegao, disciplina

    e autocontrole serem amplamente utilizadas como forma

    de preparar o cristo para se tornar digno da vida futura,

    depois da morte, junto a Deus.

    Apesar da constante tentativa de aproximao, o problema

    da relao entre f e razo ainda hoje um desafio enorme

    para a Igreja e para a Filosofia. De um lado, temos os

    defensores de uma verdade revelada inquestionvel e,

    do outro, aqueles que defendem um conhecimento cientfico

    construdo sem qualquer necessidade do transcendente.

    No entanto, a prpria Igreja Catlica, em acordo com as

    descobertas cientficas e com o prprio progresso da cincia,

    demonstra abertura para algumas concepes cientficas

    antes condenadas. o que podemos observar na reportagem

    a seguir:

    Vaticano considera no haver contraposio

    entre f e evoluo

    Juan Lara

    Cidade do Vaticano, 11 de fevereiro de 2009 (EFE).

    O Vaticano acredita que no existe, a priori, contraposio

    entre f e a ideia da evoluo, ainda que o papa Bento XVI

    no compartilhe das teorias que explicam a existncia da

    humanidade s como resultado do acaso e que, para Joo Paulo II,

    Darwin no bastasse para explicar a origem do homem.

    J. C

    amer

    on

    (Imagem acrescentada ao texto original)

    Charles Darwin, criador da teoria da evoluo, defendida em seu livro A Origem das Espcies, publicado em 1859.

    Filosofia crist: a relao entre f e razo

  • 22 Coleo Estudo

    A filosofia grega e a tradio crist

    Fran

    cisc

    o de

    Goy

    a

    (Imagem acrescentada ao texto original)

    Mesmo as verdades da religio precisam ser compreendidas pelos homens de forma racional.

    O sono da razo produz monstros. Francisco de Goya (1897-1898)

    A Grcia foi o bero verdadeiro da filosofia. Pela primeira

    vez no mundo ocidental, compreendeu e realizou a filosofia

    como investigao racional, isto , como investigao

    autnoma que em si mesma encontra o fundamento e a

    lei do seu desenvolvimento. A filosofia grega demonstrou

    que a f ilosofia s pode ser procura da liberdade.

    A liberdade implica que a disciplina, o ponto de partida,

    o fim e o mtodo da investigao sejam justificados

    e postos por essa mesma investigao, e no aceitos

    independentemente dela. A influncia do cristianismo

    no mundo ocidental determinou uma nova orientao da

    filosofia. Toda a religio implica um conjunto de crenas

    que no so fruto de qualquer investigao porque

    consistem na aceitao de uma revelao. A religio a

    adeso a uma verdade que o homem aceitou devido a um

    testemunho superior. Tal , com efeito, o cristianismo. Aos

    fariseus que lhe diziam: Tu alegas de ti mesmo e, portanto,

    o teu testemunho no tem valor, Jesus respondeu:

    O papa atual no compartilha, no entanto, do

    evolucionismo radical. Em visita Alemanha em setembro

    de 2006, criticou o que chamou de essa parte da cincia

    que se empenha em buscar uma explicao ao mundo na

    qual Deus suprfluo.

    Joseph Ratzinger considerou na ocasio irracionais as

    teorias que consideram a existncia da humanidade um

    resultado do acaso e destacou que, para os cristos,

    Deus o criador do cu e da terra e que para entender a

    origem do mundo preciso ter Deus como ponto de referncia.

    Para Bento XVI, afirmar que a fundao do cosmos e sua

    evoluo esto na sabedoria divina no quer dizer que a

    criao s tem a ver com o comeo do mundo e da vida.

    Implica tambm que Deus abarca essa evoluo e a apoia,

    a sustenta continuamente, completou recentemente o papa

    na Pontifcia Academia das Cincias.

    Em 2005, no incio de seu pontificado e com o objetivo

    de superar os receios entre cincia e f e para recuperar

    a unidade do saber, o Vaticano deu incio ao projeto Stoq

    (Cincia, Teologia e Pesquisa Ontolgica, na sigla em

    ingls).

    O Stoq considerado um dos mais prestigiosos

    programas de pesquisa existentes no mundo sobre a

    relao entre cincia, filosofia e teologia.

    Foi criado para ser fruto do renovado esprito de dilogo

    entre teologia catlica e cincia, inaugurado pelo Conclio

    Vaticano II e que culminou com a reviso do caso Galileu,

    segundo afirmou o ento ministro da Cultura do Vaticano,

    cardeal Paul Paupard.

    Segundo Paupard, o Stoq finca as bases para uma

    verdadeira mudana de mentalidade com relao cincia

    dentro da Igreja Catlica.

    Privilegiando conhecer a verdade, a Igreja no pode

    ignorar a cincia. A religio pode purificar a cincia da

    idolatria do cientificismo e dos falsos absolutos, afirmou

    Paupard. EFE

    Disponvel em: .

    Nov. 2009. Acesso em: 3 maio 2010.

    O texto que se segue mostra com clareza a necessidade

    de unio entre f e razo. Segundo o autor, Nicola

    Abbagnano, essa unio importante para a compreenso das

    verdades de forma racional, sendo, portanto, que filosofia

    e cristianismo devem se complementar em alguma medida

    e no simplesmente se exclurem.

    Frente A Mdulo 06

  • FILO

    SOFI

    A

    23Editora Bernoulli

    Eu no estou s, somos eu e aquele que me enviou

    (S. Joo, VIII, 13, 16), apoiando assim o valor da sua

    doutrina no testemunho do Pai. A religio parece,

    portanto, nos seus prprios princpios, excluir a

    investigao e consiste antes numa atitude oposta,

    a da aceitao de uma verdade testemunhada do alto,

    independentemente de qualquer investigao. Todavia,

    logo que o homem se interroga quanto ao significado

    da verdade revelada e tenta saber por que caminho

    pode realmente compreend-la e fazer dela carne da

    sua carne e sangue do seu sangue, renasce a exigncia

    da investigao. Reconhecida a verdade no seu valor

    absoluto, tal como revelada e testemunhada por

    um poder transcendente, imediatamente se impe a

    cada homem a exigncia de se aproximar dela e de a

    compreender no seu significado autntico para com ela

    e dela viver verdadeiramente. Esta exigncia s pode

    ser satisfeita pela investigao filosfica. A investigao

    renasce, pois, da prpria religiosidade, pela necessidade

    que o homem religioso tem de se aproximar, tanto quanto

    lhe for possvel, da verdade revelada. Renasce com uma

    tarefa especfica, que lhe imposta pela natureza de

    tal verdade e pelas possibilidades que pode oferecer

    sua efetiva compreenso pelo homem; mas renasce

    com todas as caractersticas, prprias da sua natureza,

    e com fora tanto maior quanto maior for o valor que

    se atribui verdade em que se acredita e se pretende

    fazer sua. Da religio crist nasceu assim a filosofia

    crist. Esta tomou tambm como objetivo conduzir o

    homem compreenso da verdade revelada por Cristo,

    de modo a que ele possa realizar o seu autntico

    significado. Os instrumentos indispensveis para este

    fim encontrou-os a filosofia crist, prontos a servirem, na

    filosofia grega. As doutrinas da especulao helnica do

    ltimo perodo, essencialmente religioso, prestavam-se

    a exprimir, de modo acessvel ao homem, o significado

    da revelao crist; e com esta finalidade foram,

    efectivamente, utilizadas da maneira mais ampla.

    ABBAGNANO, Nicola. Histria da filosofia. Vol. II.

    Traduo de Antnio Borges Coelho.

    Lisboa: Editorial Presena, 1969. p. 108-109.

    EXERCCIOS DE FIXAO

    01. Era extremamente necessrio munir o cristianismo

    de explicaes lgicas e coerentes que se fizessem

    compreender tanto pelos crticos da nova religio quanto

    pelos intelectuais neoconvertidos.

    REDIJA um texto explicando o que significa dizer que era

    necessrio munir a f de explicaes lgicas.

    02. claro que a f ocupa lugar primordial e precedente

    razo, mas, justamente pela necessidade de munir

    a f de argumentos racionais, a filosofia grega se

    torna imprescindvel para este processo. No entanto,

    no qualquer filosofia que pode ser aceita, sendo os

    textos, as ideias, os pensadores gregos cuidadosamente

    selecionados.

    REDIJA um texto explicando o posicionamento dos

    pensadores cristos em relao filosofia, com base na

    citao anterior.

    03. O estoicismo ensina ao homem a enfrentar as vicissitudes

    da vida de forma calma, resignada, tranquila e, sobretudo,

    digna. Este estado alcanado por meio do autocontrole

    e da austeridade prpria de uma vida disciplinada e

    construda somente com o que estritamente necessrio

    sobrevivncia, sem nada de luxos ou o culto s coisas

    suprfluas.

    REDIJA um texto explicando como o estoicismo auxiliou

    o cristianismo na formulao de sua tica.

    EXERCCIOS PROPOSTOS

    01. REDIJA um texto explicando a impropriedade de se

    utilizar o termo Idade das Trevas ou Noite dos Mil Anos

    para se referir Idade Mdia.

    02. REDIJA um texto explicando a importncia do Helenismo

    como possibilitador da aproximao entre religio e

    filosofia.

    03. REDIJA um texto explicando o papel de Flon, o Judeu,

    para o nascimento da filosofia crist.

    Filosofia crist: a relao entre f e razo

  • 24 Coleo Estudo

    04. O crescimento do cristianismo foi um processo longo

    e gradativo, estendendo-se de seu nascimento, com a

    morte de Cristo e a formao das primeiras comunidades

    crists, at sua consolidao, com a converso e o

    batismo do imperador romano Constantino, no ano de

    337, e a consequente institucionalizao da religio crist,

    mais especificamente do catolicismo, como religio oficial

    do Imprio Romano no ano 391.

    REDIJA um texto explicando por que, principalmente com

    a institucionalizao do cristianismo como religio oficial

    do Imprio Romano, se tornou urgente sua explicao

    de forma racional.

    05. Eu sou cristo, glorio-me disso e, confesso, desejo

    fazer-me conhecer como tal. A doutrina de Plato

    no incompatvel com a de Cristo, mas no se casa

    perfeitamente com ela [...]

    MRTIR, Justino. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia:

    Patrstica e Escolstica. 3. ed. So Paulo: Paulus, 2007. p. 39.

    A partir da citao anterior, REDIJA um texto explicando

    o posicionamento de Justino Mrtir em relao filosofia

    e religio.

    06. Alguns conceitos utilizados na filosofia crist foram

    claramente retirados da filosofia clssica, principalmente

    de Plato e Aristteles, e foram utilizados como base

    para defender as verdades da f. Dentre esses conceitos,

    so importantes os de essncia e alma / corpo retirados

    de Plato. REDIJA um texto explicando a relao entre

    a filosofia de Plato e o cristianismo a partir desses

    conceitos.

    07. A aproximao entre f e razo, entre religio e

    filosofia / cincia, sempre foi um desafio, principalmente

    para a Igreja Catlica. Na reportagem intitulada

    Vaticano considera no haver contraposio entre f

    e evoluo, o reprter Juan Lara cita uma frase do

    papa Joo Paulo II que diz no basta a evoluo das

    espcies para explicar a origem do gnero humano,

    como no basta a casualidade biolgica para explicar

    por si s o nascimento de uma criana. REDIJA um

    texto explicando o posicionamento da Igreja a partir da

    citao anterior.

    08. Todavia, logo que o homem se interroga quanto ao

    significado da verdade revelada e tenta saber por que

    caminho pode realmente compreend-la e fazer dela

    carne da sua carne e sangue do seu sangue, renasce a

    exigncia da investigao.

    ABBAGNANO, Nicola. Histria da Filosofia. V. II. Traduo de

    Antnio Borges Coelho. Lisboa:

    Editorial Presena, 1969. p. 108-109.

    No trecho anterior, vemos a necessidade da religio de

    se aproximar da filosofia. REDIJA um texto explicando

    a tese defendida pelo autor Nicola Abbagnano acerca de

    tal aproximao.

    SEO ENEM

    01. (Enem2001) O texto a seguir reproduz parte de um dilogo entre dois personagens de um romance.

    Quer dizer que a Idade Mdia durou dez horas?

    Perguntou Sofia.

    Se cada hora valer cem anos, ento sua conta est

    certa. Podemos imaginar que Jesus nasceu meia-noite,

    que Paulo saiu em peregrinao missionria pouco antes

    da meia noite e meia e morreu quinze minutos depois, em

    Roma. At