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FICHA TÉCNICA Título original: Domina Autora: L.S. Hilton Copyright © L.S. Hilton 2017 Edição original publicada em língua inglesa por Zaffre, uma chancela de Bonnier Publishing, London Edição portuguesa publicada por acordo com International Editors Co. e Bonnier Publishing Fiction Os direitos morais da autora desta obra estão certificados Tradução: Maria de Almeida Revisão: Carlos Jesus / Editorial Presença Fotografia da autora: Derrick Santini Design da capa: Blacksheep-UK.com Capa: A. Sena Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, julho, 2017 Depósito legal n. o 428 317/17 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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Page 1: FICHA TÉCNICA Autora: L.S. Hilton Copyright © L.S. Hilton 2017 … · 10 Foge, dizia o meu olhar. Foge agora e não olhes para trás. Dei o segundo passo e estendi a mão para lhe

FICHA TÉCNICA

Título original: DominaAutora: L.S. HiltonCopyright © L.S. Hilton 2017Edição original publicada em língua inglesa por Zaffre, uma chancela de Bonnier Publishing, LondonEdição portuguesa publicada por acordo com International Editors Co. e Bonnier Publishing FictionOs direitos morais da autora desta obra estão certificadosTradução: Maria de AlmeidaRevisão: Carlos Jesus/Editorial PresençaFotografia da autora: Derrick SantiniDesign da capa: Blacksheep-UK.comCapa: A. SenaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, julho, 2017Depósito legal n.o 428 317/17

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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PRÓLOGO

Eu só queria despachar o assunto, mas obriguei ‑me a proceder com calma. Fechei as persianas das três janelas, abri uma garrafa de Gavi, servi dois copos, acendi as velas. Rituais familiares, reconhecíveis, reconfortantes. Ele pousou o saco e tirou o casaco lentamente, pendurando ‑o nas costas de uma cadeira, sempre a observar ‑me. Ergui o copo e dei um pequeno gole sem dizer uma palavra. Os olhos dele detiveram ‑se nos quadros e eu deixei que o silêncio entre nós se fosse estendendo até ele finalmente com‑preender.

— Aquilo é um...?— Um Agnes Martin — terminei por ele. — Sim.— É muito bonito.— Obrigada.Mantive um sorriso discreto e divertido nos lábios. Mais uma

pausa. A tranquilidade espessa de Veneza à noite foi perturbada pelo som dos passos que atravessavam o campo em baixo e ambos voltámos as cabeças para a janela.

— Vives aqui há muito tempo?— Há algum — respondi.A arrogância que ele demonstrara anteriormente no bar desa‑

parecera; parecia agora estranha, dolorosa e terrivelmente jovem. Era óbvio que teria de ser eu a dar o primeiro passo. Eu estava em pé, com um copo na mão, com o cotovelo apoiado no corpo. Estávamos a dois passos de distância. Dei um passo, olhando ‑o nos olhos. Conseguiria ele ver a mensagem que continham?

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Foge, dizia o meu olhar. Foge agora e não olhes para trás.Dei o segundo passo e estendi a mão para lhe acariciar o queixo,

onde a barba começava a despontar. Lentamente, sem nunca quebrar o contacto visual, curvei ‑me para a frente, tocando ‑lhe na boca ao de leve, permitindo que os meus lábios tocassem nos seus, até que a sua língua encontrou a minha. Não sabia tão mal quanto eu estava à espera. Libertei ‑me do beijo e afastei ‑me para trás, puxando o meu vestido pela cabeça num movimento fluido e deixando ‑o cair ao chão, seguido pelo meu sutiã. Afastei suavemente o cabelo dos ombros, passando com as palmas das mãos vagarosamente sobre os meus mamilos e deixando os braços penderem junto ao corpo.

— Elisabeth — murmurou ele.A banheira estava colocada aos pés da cama. Quando estendi a

mão e o fiz contorná ‑la em direção aos meus lençóis Frette, senti uma onda de cansaço sufocante a abater ‑se sobre mim, uma ausên‑cia daquilo que outrora fora tão familiar. Já não tinha qualquer raiva, nem qualquer réstia de desejo. Deixei ‑o fazer o que tinha a fazer e, quando acabou, sentei ‑me soltando risadinhas, com os olhos todos brilhantes. Não podia deixar que ele adormecesse. Atirei‑‑me para a frente, sobre os lençóis húmidos, e atirei para o chão o preservativo flácido com o seu triste e diminuto peso de vida, estendendo a mão para chegar à torneira da água quente.

— Apetece ‑me tomar um banho. Um banho e um charro. Boa?— Sim. Pode ser. — Agora que fodêramos, ele perdera as boas

maneiras. — Queres tirar as tais fotos?Conseguira convencê ‑lo a não tirarmos selfies quando estivéra‑

mos antes a beber uns copos. Ele já estava a remexer nas calças de ganga que atirara para algum lado, procurando agora o raio do telemóvel; era um milagre ele não ter tentado fotografar o próprio clímax para pôr no Instagram. Durante os poucos instantes em que ele cavalgava dentro de mim, esquecera que ele era um parvalhão de merda. Subitamente, isto pareceu ‑me muito mais fácil.

— Tira à vontade, bebé. Mas espera aí um bocadinho. — Sal‑titei toda nua até ao closet e desenterrei um pacote de mortalhas Rizla, aproveitando para ligar o misturador de wi -fi como pre‑caução. Não haveria cá mais atualizações em tempo real para ele.

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Acrescentei um pouco de água fria e uma gota de óleo de amêndoas ao banho e abri o pesado armário de atoalhados antigo para retirar de lá duas toalhas. O aroma doce do óleo espalhou ‑se com o vapor.

— Salta cá para dentro — disse eu sobre o ombro, enquanto me ocupava a retirar o tabaco de dentro de um cigarro. A minha echarpe Hermès, aquela com o padrão circassiano turquesa e azul‑‑marinho, estava atada em torno da alça da minha mala. Passei para trás dele quando ele entrou lentamente na água.

Pus ‑lhe o charro entre os lábios. Não tinha nada lá dentro, mas ele nunca viria a saber. Enquanto ele dava uma passa, pus ‑lhe a echarpe à volta do pescoço e puxei ‑a com força por detrás das suas orelhas. Ele engasgou ‑se instantaneamente com o fumo, esbrace‑jando dentro da banheira funda. Apoiei os pés na borda da banheira e encostei ‑me à cama, atrás de mim, puxando com mais força. Os pés dele debateram ‑se dentro de água, mas não tinham onde se apoiar dentro da porcelana oleosa. Fechei os olhos e comecei a contar. A sua mão direita, ainda a segurar absurdamente no charro encharcado, esforçava ‑se por me agarrar no pulso, mas estava num ângulo errado e os dedos dele só tocaram nos meus ao de leve. Vinte e cinco... vinte e seis... Não havia mais nada a não ser a eferves‑cência anaeróbica nos meus músculos enquanto ele se debatia, nada a não ser a aspereza grave da minha própria respiração a passar pelas minhas narinas enquanto o corpo dele se debatia. Vinte e nove, isto não é nada, trinta, isto não é nada. Senti ‑o a enfraquecer, mas depois ele conseguiu introduzir um dedo, e depois a mão toda, entre a echarpe e a sua maçã de Adão, catapultando ‑me violentamente para a frente; porém, quando o seu corpo foi libertado, mergulhou e eu dei a volta por cima dele até à borda da banheira, conseguindo forçar o meu joelho contra o peito dele e empurrando ‑o com todo o meu peso. Tinha sangue no meu olho e também o havia na água que emanava vapor, mas conseguia ver as bolhas a virem ao de cima enquanto ele se debatia. Larguei a echarpe e, às cegas, joguei as mãos para dentro de água na esperança de lhe apanhar o rosto e o pescoço. Ele estava a mexer o maxilar e a sua sobremordida ama relada tentava apanhar ‑me. As bolhas pararam. Recuperei lentamente o fôlego e os músculos do meu rosto puderam relaxar

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depois de terem estado tão contraídos pelo esforço. Não conseguia ver o rosto dele através do rosado leitoso da água. Fui cautelo‑samente deixando a minha bacia descair para a frente quando a água se ergueu numa onda mesmo antes de ele se içar na minha direção. Caí para cima dele, com uma perna de cada lado, enquanto a cabeça dele se esforçava desesperadamente por vir à tona. Conse‑gui mergulhá ‑lo de novo com o cotovelo e depois posicionei ‑me de modo a cravar as minhas pernas nos ombros dele. Ficámos naquela posição durante muito tempo, até uma gota de sangue pingar do meu rosto para dentro de água.

Talvez tenha sido a limpidez daquele som singular e diminuto. Talvez tenha sido a neblina de óleo de amêndoas na água fume‑gante e rodopiante ou talvez até a espuma arrefecida na superfície da água. Aquela tarde fria, aquele silêncio interminável, aquela primeira coisa morta que tive nas mãos. A falha geológica dentro de mim abriu‑‑se criando uma fenda que tudo engolfou e, com uma força que me arrancou o fôlego, foquei ‑me. Subitamente, o tempo comprimiu‑‑se, o passado condensou ‑se e regressou a mim. Abandonara ‑a há tanto tempo. Ela nunca fizera parte da história de vida que narrara a mim própria, mas estava a vê -la agora como se fosse a primeira vez. Entor‑pecidamente, pus novamente a mão dentro de água, mas encontrei apenas a carne de um estranho. Isto fora necessário, embora agora não me conseguisse lembrar porquê. A mão dele veio ao de cima e eu acariciei ‑lhe os dedos, movendo ‑os ao som de uma melodiazinha aguada. Posso ter estado a observar a ligeira ondulação durante alguns minutos, posso tê ‑lo feito durante uma hora. No momento em que voltei a mim, a água estava gelada.

Quando, por fim, consegui içá ‑lo de debaixo de mim, ele tinha os olhos abertos. Por isso, a última coisa que viu neste mundo terá sido a minha rata escancarada.

Ele tinha a pele escorregadia e rosada, inchada como um pãozi‑nho quente, e os lábios já estavam tingidos de cinzento. A cabeça dele caiu para trás; à luz das velas, o pescoço parecia não ter quais‑quer marcas. Agarrando ‑me às bordas da banheira, saí da água, com as pernas a tremer. Assim que o libertara, o corpo escorregara novamente para dentro de água e eu tivera de encontrar o ralo que

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estava debaixo do seu cabelo ondulante. Enquanto a água escorria, embrulhei ‑me numa das toalhas. Quando o peito dele ficou visível, pousei uma mão em cima do coração dele. Nada. Ainda sentada, espreguicei ‑me. O chão estava encharcado e a borda da banheira estava manchada de sangue e pontinhos de tabaco. Mais água quente para o limpar.

Tive de o abraçar por detrás para o içar por cima da borda da banheira. O corpo dele estava mole e flácido. Quando o estendi no chão, cobri ‑o com a outra toalha e sentei ‑me de pernas cruzadas ao lado dele até ele ficar frio.

Puxei um cantinho da toalha para lhe expor o rosto novamente, curvei ‑me e sussurrei ‑lhe ao ouvido:

— Não é Elisabeth. É Judith.

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CAPÍTULO UM

Oito semanas antes...

Enquanto me vestia, ouvia «Miss Otis Regrets», de Cole Porter, na versão de Ella Fitzgerald. Fez ‑me sorrir. Transformara o quarto do meu apartamento em Campo Santa Margherita num closet, forrado com armários Molteni com portas de vidro, que deixavam sempre visíveis os meus sapatos, as malas, as echarpes, os vestidos e os casacos. Isso também me fez sorrir. O apartamento ficava no piano nobile e dava para a praça com o seu antigo mercado de peixe num edifício em pedra calcária. Deitara uma parede abaixo na sala de estar para criar um espaço amplo, com a banheira colocada aos pés da cama sobre um grosso plinto de mármore verde, em frente a uma das três janelas em arco. A minha casa de banho, forrada com azulejos persas antigos, fora instalada por detrás do closet, no que antes fora uma escadaria. Era uma das muitas alegrias da casa da Elisabeth Teerlinc. O arquiteto resmungara qualquer coisa sobre vigas mestras e licenças, mas, nos nove meses que haviam decorrido desde que chegara a Veneza, descobrira que o salário do pecado torna muita coisa possível. Pendurara os quadros que adquirira em Paris — o Fontana, Susana e os Anciãos e o desenho de Cocteau — e acrescentei uma peça moderna, um pequeno quadro sem título de Agnes Martin em linhas brancas e cinzentas que comprara através do Paddle8, a casa de leilões online de Nova Iorque. As minhas outras peças francesas também se tinham juntado a mim, com exce‑ção do corpo sem cabeça de um tal Renaud Cleret, que continuava

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bem fechado num depósito de arte perto do Château de Vincennes. Independentemente do que o arquiteto pudesse pensar, na verdade, por vezes, eu preocupava ‑me com fugas.

O convite escrito à mão para a minha primeira exposição estava preso num canto do espelho. Elisabeth Teerlinc gostaria de contar com o prazer da sua companhia na Galeria Gentileschi... Reli as palavras mais uma vez enquanto prendia o cabelo. Conseguira. Era a Elisabeth agora. A Judith Rashleigh era menos do que um fantasma para mim, pouco mais do que um nome num passaporte sem uso que jazia numa gaveta da minha secretária. Passei com a mão pela fila ordenada de vestidos, saboreando o toque suave da malha e o peso maleável da seda boa. Escolhera um vestido preto justo de xantungue da Figue para a inauguração, apertado nas cos‑tas com botõezinhos turquesa e dourados como um vestido chinês tradicional. A cor rica do tecido luzia enquanto o acariciava com os dedos. Almejara o visual típico de uma galerista séria, mas, algures dentro de mim, um unicórnio bebé sacudia a sua crina. Sorri lentamente para o meu reflexo; Liverpool estava lá muito, muito longe.

Um dos empregos de curta duração da minha mãe fora como empregada de limpeza perto de Sefton Park, o confiante enclave vitoriano de árvo-res e estufas perto do centro da cidade, a três autocarros de distância do bairro social em que morávamos. Um dia, quando eu tinha uns dez anos, apercebi -me ao final do dia que me tinha esquecido da chave, por isso, quando saí das aulas, fui ter com ela.

As casas eram enormes; blocos de tijolo vermelho e janelas de sacada. Toquei várias vezes à campainha, mas ninguém veio à porta, por isso, ner-vosa, tentei a porta, que estava só no trinco. O hall de entrada cheirava a cera para os móveis e levemente a flores, as tábuas do chão estavam despidas em torno de um tapete quadrado e colorido e o espaço entre as portas e a curva larga da escadaria estava preenchido por prateleiras de livros grossos e com um ar pesado. Estava tudo tão silencioso. Assim que fechei a porta com cuidado atrás de mim, não se ouviu o murmúrio das televisões, nem a gritaria em staccato dos casais a discutir ou das crianças a brincar, não se ouviam motores em altas rotações, nem animais de estimação a

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arrastar as patas pelo chão. Apenas... silêncio. Apeteceu -me estender uma mão e tocar nas lombadas dos livros, mas não me atrevi. Chamei nova-mente a minha mãe e ela apareceu com o fato de treino que usava quando ia fazer limpezas.

— Judith! O que é que estás aqui a fazer? Está tudo bem?— Sim. Esqueci -me só da chave.— Pregaste -me um susto de morte! Pensava que eras um ladrão.Cansada, esfregou a mão no rosto.— Vais ter de esperar. Ainda não acabei.Havia um cadeirão ao fundo das escadas, com um candeeiro alto mesmo

ao lado. Acendi o candeeiro e a divisão adensou -se, brilhando em meu redor, tão calma, tão privada. Tirei a mochila das costas e arrumei -a cuida-dosamente debaixo da cadeira, antes de me dirigir às estantes. Acho que peguei no livro porque gostei da cor da lombada: um rosa -choque enérgico com o título destacado a dourado. Dizia Vogue, Paris, 50 Ans. Era um livro de moda, com reproduções de mulheres adornadas com roupas e joias extraordinárias, cujos rostos eram máscaras de maquilhagem perfeitas. Lentamente, virei uma página; lentamente, virei mais outra, ficando em transe com as cores ricas e delicadas. Uma imagem mostrava uma mulher com um vestido de baile azul -vivo com uma saia enorme, a correr pelo meio do trânsito como se estivesse atrasada para apanhar o autocarro. Fiquei fascinada. Fui virando uma página e vendo, virando outra página e vendo. Não me apercebi de que tinha passado muito tempo até perceber que estava cheia de fome. Com o corpo dormente depois de tanto tempo ali sentada, pus -me de pé e estava a pousar o livro com cuidado na cadeira quando a porta se abriu de repente, assustando -me e fazendo -me parecer agachada e culpada.

— O que é que estás a fazer aqui? — Cortante, a voz de uma mulher com uma pontada de medo.

— Desculpe. Peço imensa desculpa. Sou a Judith. Esqueci -me da chave. Estava à espera da minha mãe. — Esbocei um gesto vago indicando a porta que engolira a minha mãe há horas, segundo me parecia.

— Oh. Oh, já percebi. Ela ainda não acabou?A mulher fez sinal para que eu a seguisse por um corredor que levava

às traseiras da casa e que desembocou numa cozinha grande e acolhedora.— Está aí?

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Para lá da mesa, havia um sofá cujas almofadas coloridas tinham sido atiradas para o chão de modo a arranjar espaço para a minha mãe.

— Boa tarde.Eu pensava que tinha visto a garrafa de vinho no chão antes de ela

a ver, mas o tom resignado da voz da senhora disse -me logo que aquela não era a primeira vez. A minha mãe deve ter ido buscá -la ao frigorífico.

— Só estava a passar pelas brasas.Transformei -me num pedaço de carvão gelado de vergonha. A senhora

avançou determinada até ao sofá e, firme mas sem rudeza, ajudou a minha mãe a sentar -se.

— Já tínhamos falado sobre isto, não tínhamos? Tenho muita pena, mas acho que é melhor não vir cá mais, não lhe parece? A sua filha está aqui. — Na ênfase que deu à palavra, percebi que tinha pena de mim.

— Desculpe, eu só estava... — A minha mãe estava a repuxar o fato de treino, tentando compor -se.

— Não faz mal. — Agora mais severa. — Mas é melhor ir -se embora. Por favor, vá buscar as suas coisas, que eu vou tratar do seu dinheiro. — Ela não estava a ser desagradável, esse é que era o problema. Ela sentia -se envergonhada pelo que estava a fazer e aquela voz controlada e profissional era a sua tentativa de esconder esse sentimento e de nos empur-rar para a rua, onde podíamos guardar a nossa sordidez só para nós.

Fiz o caminho inverso e fiquei parada à porta com a minha mochila. Não queria ouvir mais nada. Quando a senhora deu à minha mãe duas notas de vinte libras, deve ter visto os meus olhos a serem atraídos nova-mente pelo livro.

— Porque é que não o levas? Como um presente? — Enfiou -me o livro nas mãos, já sem me ver. Deu -mo como se isso não representasse nada.

— Cabra snobe de merda — murmurava a minha mãe enquanto me arrastava para a paragem de autocarro.

Quando, finalmente, voltámos a casa, ela deu -me a chave e saiu pri-meiro do autocarro na paragem junto ao pub. Pensei apreensivamente nas quarenta libras. Não as iríamos voltar a ver. Barrei feijões numa torrada e tirei o livro da mochila. O preço no interior da capa era de ses-senta libras. Sessenta libras por um livro e a senhora dera -mo assim sem mais nem menos. Guardei o livro debaixo da cama, com muito cuidado, e vi -o tantas vezes que, com o tempo, comecei a saber os nomes dos fotógrafos

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e dos estilistas de cor. Na verdade, não era uma questão de eu efetivamente querer aquelas roupas. Só pensava que, se fôssemos do tipo de pessoa que as tinha, então sentir -nos -íamos diferentes. Se tivéssemos coisas bonitas como aquelas, poderíamos escolher quem queríamos ser, todos os dias. Poderíamos usar o nosso exterior para controlarmos o nosso interior.

Esfreguei os sapatos de salto alto com o saco em que os guardava antes de os calçar. Talvez a única coisa que a Elisabeth Teerlinc tinha em comum com a Judith Rashleigh fosse o facto de não ter empre‑gada doméstica. No fim de contas, transformar‑me na Elisabeth exigira muito mais do que um guarda‑roupa dispendioso. Uma armadura só protege verdadeiramente se for invisível e fora aí que residira a verdadeira batalha. Não me estou a referir apenas ao estudo e aos exames, mas também a manter a convicção de que seria capaz de vencer; a sair do bairro social em que crescera, sem me deixar subjugar pela esqualidez da vida da minha mãe; a resistir às provo‑cações, aos sussurros diários insidiosos de «vagabunda» e «cabra» sibilados atrás de mim nos corredores da escola só porque eu qui‑sera mais. Ensinara‑me a mim mesma a odiar as miúdas da escola e depois a ignorá‑las, porque, na verdade, o que é que seria delas dali a alguns anos a não ser mães adolescentes, flácidas, numa fila para apanhar o autocarro? Essa foi a parte fácil. A parte difícil foi eliminar todo e cada vestígio da proletária boquiaberta que me senti quando finalmente consegui entrar para a universidade, porque as pessoas conseguem perceber isso em nós. Não só a miúda triste que sonhava debaixo do edredão com o seu precioso livro de ilustrações de moda e a sua coleçãozinha de postais artísticos, mas o coração arrependido e lutador que havia dentro dela. Assim que apanhei o comboio que me levou de Lime Street para o Sul, nunca mais ninguém voltaria a ver aquela miúda. Lentamente, mas com segurança, apagara a minha pronúncia, mudara os meus modos, aprendera línguas, moldara e alisara as minhas defesas como um escultor trabalha o mármore.

Mesmo isso fora apenas o início das exigências da Elisabeth. Durante algum tempo, quando conseguira um emprego numa prestigiosa casa de leilões de Londres, acreditara que tinha conse‑guido, mas não tinha dinheiro nem pessoas conhecidas, o que

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significava que nunca iria ascender a mais do que a lacaia do depar‑tamento. Por isso, aceitei um emprego à noite, trabalhando como acompanhante num bar, o Gstaad Club, porque, seguramente, um fatinho melhor e um corte de cabelo melhor iriam fazer com que tudo resultasse, não era? Essa convicção tocante dissipou‑se logo mal descobri que o meu patrão, o Rupert, estava envolvido num golpe que envolvia uma falsificação. Demorara menos de cinco minutos a mostrar‑me a porta da rua. Um dos clientes do clube, o James, ofereceu‑se para me levar a passar um fim de semana na Riviera e, a partir daí, as coisas ficaram um pouco... desorgani‑zadas, durante algum tempo. Embora, em última análise, tivesse sido tudo altamente rentável, já que conseguira localizar e vender a falsificação que me custara o emprego e usara o dinheiro para me estabelecer como negociante de arte em Paris. É certo que houve algumas baixas. O James acabara por não regressar a Londres, embora eu não tenha tido propriamente culpa nesse caso. E o negociante de arte a quem eu roubara a falsificação, o Cameron Fitzpatrick, também não regressara a casa; tal como a minha velha colega de escola, a Leanne; o Renaud Cleret, um polícia a trabalhar à paisana; ou o Julien, o conivente dono de um clube de sexo pari‑siense. Mudar‑me para Veneza, com o nome de Elisabeth Teerlinc, fora uma necessidade prática. E não só porque eu queria evitar as atenções de um certo inspetor da polícia, colega do Renaud, o Romero da Silva. Fora preciso muito verniz para escurecer tudo isso. Porém, a fachada da Elisabeth acabara por ficar bastante boa e o seu brilho refletia apenas aquilo que as pessoas queriam ver. É verdade o que se costuma dizer: no fim de contas, é o interior que conta.

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