foge nicky, foge

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    FFOOGGEE,,NNIICCKKYY,,FFOOGGEE!!

    Nicky Cruz

    e Jamie Buckingham

    Ttulo original em ingls: Run Baby RunTraduo de Adiel de Almeida Oliveira

    6.edio, 1980Editora Betnia

    Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

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    PPrree ff cc ii oo

    QUANDO TOMEI A INICIATIVA de realizar esteprojeto, Catherine Marshall comentou que escrever umlivro deste tipo como ter um filho. Eu teria de vivercom ele, at que nascesse.

    Neste caso, no fui s eu quem teve de viver comele, mas a minha famlia e tambm a Igreja Batista do

    Tabernculo que eu estava pastoreando. Sofreramcomigo todos os ataques de mal-estar matutino, todasas dores de parto, e at mesmo uns dois alarmes falsos.Mas, tanto minha famlia como a igreja, compreenderamque este livro era concebido pelo Esprito Santo, escritocom orao e lgrimas, e deveria ser publicado para aglria de Deus. A igreja praticamente libertou-me detodas as obrigaes, at termin-lo; alm disso, vrios

    dos membros ajudaram no trabalho de datilografia.

    Contudo, os padrinhos do livro foram John eTibby Sherril e os editores da revista Guideposts. Arecomendao e a confiana de John deram incio aoprojeto, e no seu trmino, foi a crtica do casal Sherrilque nos deu a viso final da histria violenta, masempolgante, da vida de Nicky Cruz.

    Os mritos da movimentao da histria em sicabem, porm, a Patsy Higgins, que ofereceu volun-tariamente os seus servios para a glria de Deus. Elaviveu e sentiu o manuscrito como crtica, editora edatilgrafa revelando um talento para cortar ereescrever, que s pode ter sido dado por Deus.

    O livro em si quebra uma das regras bsicas dali teratura. Termina abruptamente. No h um finalapotetico ou bem elaborado. Cada vez que eu en-

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    procurando a verdade, a realidade e solues honestas.Alguns jovens de nossas favelas esto ansiosos para terum contato honesto com a sociedade, e com razo.Alguns deles so influenciados por defensores daviolncia e da fora bruta, e so facilmente atrados para

    o redemoinho dos distrbios de rua, incndios epilhagem. Foge, Nicky, Foge! um exemplo notvel deque essa mocidade insatisfeita pode encontrar umsignificado e um propsito para a vida, na pessoa deCristo.

    Em nossas campanhas, quase a metade dos ou-vintes tem menos de vinte e cinco anos. No vo s

    campanhas para zombar , mas para uma busca s incerada verdade e de objetivos para a vida. Centenas delesatendem ao chamado de Cristo.

    Foge, Nicky, Foge! uma histria emocionante!Minha esperana que ela seja muito lida, e que muitosleitores venham a conhecer o Cristo que transformou ocorao vazio e insatisfeito de Nicky Cruz e fez dele uma

    epopia crist de nossa era.Billy Graham

    PPrree mm bbuu ll oo

    A HISTRIA DE NICKY , possivelmente, a maisdramtica do movimento Pentecostal, mas no anica. Nicky um vivido representante de vasto nmerode pessoas que, nas ltimas dcadas, tm sidolibertadas do crime, do lcool, dos narcticos, daprostituio, do homossexualismo, e de quase todo tipode perverso e degenerao que o homem conhece.

    Tratamento psicolgico, cuidados mdicos e conselhosespirituais no conseguiram influenciar essas pessoas.Elas, porm, foram libertas de sua escravido de modo

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    inesperado e maravilhoso, pelo poder do Esprito Santo,e levadas a uma vida de servio til, e, algumas vezes,de profunda orao. muito natural desconfiar-se detransformaes radicais e repentinas. Porm no hrazo teolgica para se suspeitar delas. A graa de Deus

    pode apossar-se de um homem e transform-lo, numabrir e fechar de olhos, de pecador em santo. Porque euvos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos aAbrao. (Lucas 3:8.) O esforo humano no podeproduzir tais transformaes, nem na prpria pessoanem em outrem, porque a natureza exige tempo para sedesenvolver, gradualmente; mas Deus pode fazer em um

    instante o que leva anose anos para o homem realizar.Converses assim ocorreram na histria do cris-

    tianismo, desde o princpio. Zaqueu, Maria Madalena (apenitente de Lucas 7:37), o bom ladro, o apstoloPaulo, e mesmo Mateus, o discpulo, so os primeiros deuma longa lista. Contudo, o maior nmero de taisconverses est tendo lugar hoje em dia, em relao ao

    chamado Movimento Pentecostal, o que , creio eu,sem precedentes. Qual o significado deste fatoextraordinrio?

    Tenho meditado muito sobre isto, e o que me vem mente com freqncia a parbola das bodas (Mateus22:1-14). Quando as pessoas convidadas noapareceram, o senhor disse a seu servo: Sai depressa

    para as ruas e becos da cidade e traze para aqui ospobres, os aleijados, os cegos e os coxos. (Lucas 14:21.)Quando nem aquilo foi suficiente, o servo foi enviadouma vez mais, desta vez para os caminhos e atalhos,com a ordem: Obriga a todos a entrar, para que fiquecheia a minha casa. Creio que isto o que estamosvendo acontecer hoje. Os convidados mesa doSenhor, isto , os que nasceram no cristianismo, os

    ju s tos , os m em bros legt im os da s ocieda de, jdemonstraram sobejamente que so indignos. Eles vo igreja, mas na verdade no tm participado do

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    Captulo 1

    NNIINNGGUUMM MMEE QQUUEE RRSEGUREM ESSE GAROTO MALUCO! gritou

    algum.

    A porta do quadrimotor da Pan American malacabara de se abrir, e eu j me precipitava escada

    abaixo, em direo ao prdio do Aeroporto Idlewild, emNova York. Estvamos a 4 de janeiro de 1955, e o ventofrio fazia arder minhas faces.

    Algumas horas antes, meu pai me colocara noavio em San Juan: um rapazinho porto-riquenho,rebelde e amargurado. Fora entregue aos cuidados dopiloto; haviam-me recomendado que permanecesse no

    avio at a chegada de meu irmo, Frank. Porm,quando a porta abriu, fui o primeiro a sair, correndoselvagemente pela pista de concreto.

    Trs funcionrios do aeroporto se aproximaram demim, cercando-me, empurrando-me contra a cerca decorrentes de ao, ao lado do porto. O vento cortantezunia atravs da minha roupa tropical e leve, enquanto

    eu procurava escapar. Um policial agarrou-me pelobrao, e os funcionrios voltaram ao seu trabalho. Paramim aquilo era uma brincadeira; olhei para o guarda esorri.

    Porto-riquenho louco! Que diabo voc pretendefazer?

    Meu sorriso sumiu quando notei dio em sua voz.

    Suas bochechas gordas estavam vermelhas de frio, e osolhos lacrimejavam devido ao vento. Um toco de cigarroapagado estava esquecido entre seus lbios balofos.

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    dio! Senti-o circular por todo o meu corpo. O mesmodio que eu tivera contra meu pai e minha me, contrameus professores e os guardas em Porto Rico. dio!Tentei libertar-me, mas ele me prendeu com uma frreachave de brao.

    Venha, garoto, vamos voltar ao avio. Olhei paraele e dei uma cusparada.

    Porco! rosnou. Porco sujo! Ele afrouxou apresso sobre o meu brao e tentou segurar-me por trs,pela gola do casaco. Mergulhando por baixo do seubrao, deslizei pelo porto aberto que levava para oedifcio do aeroporto.

    Atrs de mim, ouvi gritos e pisadas rpidas. Corripelo longo corredor desviando-me, esquerda e direitadas pessoas que se dirigiam aos avies. De repente,achei-me em um grande salo. Descobrindo uma portade sada, zuni pelo salo e sa para a rua.

    Um grande nibus estava parado junto ao meio-

    fio, com a porta aberta e o motor ligado. A fila es tavaentrando. Com algumas empurradas, consegui entrartambm. O motorista me agarrou pelo ombro e pediu odinheiro da passagem. Encolhi os ombros e respondi-lheem espanhol. Ele me ps para fora rispidamente,ocupado demais para perder tempo com um rapazinhotolo que mal compreendia ingls. Quando ele desviou aateno para uma senhora que estava remexendo nabolsa, baixei a cabea e esgueirei-me por detrs dela,atravessei a porta e penetrei no nibus lotado. Dandouma olhadela por sobre o ombro, para ter a certeza deque ele no me vira, dirigi-me parte traseira do nibus,e sentei-me junto a uma janela.

    Quando o coletivo deu a partida, vi o guardagorducho e mais dois soldados sair ofegantes pela portalateral do aeroporto, e olhar em todas as direes. Nopude resistir tentao de bater na vidraa, acenar paraeles e sorrir atravs do vidro.

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    Afundando no banco, apoiei os joelhos nas costasdo assento da frente e apertei o nariz contra o vidro frioe sujo da janela.

    O nibus atravessou com dificuldade o trfego

    intenso de Nova York, em direo ao centro da cidade.L fora havia neve e lama pelas ruas e caladas. Eusempre imaginara que a neve era branca e bonita, comonos contos de fadas. Mas aquela era parda, comomingau sujo. Minha respirao embaou a vidraa.Afastei-me um pouco e passei o dedo nela. Era ummundo diferente, inteiramente diferente do que euacabara de abandonar.

    Minha mente voltou ao dia anterior, quando euparara no morro diante de minha casa. Lembrei-me dagrama verde que meus ps amassavam, salpicada dospontinhos de cor clara, das pequeninas florescampestres. O campo descia num declive suave, at avila, l em baixo. Lembrei-me da brisa fresca quesoprava contra minha face, e do calor do sol em minhas

    costas bronzeadas e nuas.Porto Rico uma bela terra de sol e de crian as

    descalas. uma terra em que os homens no usamcamisa, e as mulheres caminham preguiosamente sobum sol causticante. Os sons dos tambores de ao e dasguitarras ouvem-se noite e dia. uma terra de cantigas,flores, crianas sorridentes e gua azul refulgente.

    Mas tambm uma terra de feitiaria e macumba,de superstio religiosa e de muita ignorncia. De noite,os sons dos tambores da macumba ressoam nasmontanhas cobertas de palmeiras, enquanto feiticeirosexercem o seu ofcio, oferecendo sacrifcios e danandocom serpentes luz de fogueiras bruxuleantes.

    Meus pais eram espritas. Ganhavam a vida ex-pulsando demnios e estabelecendo um suposto con tatocom espritos de mortos. Papai era um dos homens maistemidos da ilha. Com mais de l,80m de altura, seus

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    enormes ombros encurvados haviam levado os ilhus ase referirem a ele como O Gran de Ele fora feridodurante a Segunda Guerra Mundial e recebia umapenso do governo. Mas, como havia dezessete meninose uma menina na famlia, depois da guerra ele recorreu

    ao espiritismo para ganhar a vida.Mame trabalhava com papai como mdium.

    Nossa casa era sede de toda sorte de reunies demacumba, sesses e feitiaria. Centenas de pessoasvinham de toda a ilha para participar das sessesespritas.

    Nossa casa enorme, no alto da colina, era ligadapor uma trilha sinuosa e estreita pequena vila mo-dorrenta de Las Piedras, escondida no vale, l em baixo.Os aldees subiam pela trilha a qualquer hora do dia ouda noite, para ir Casa do Feiticeiro. Eles tentavamfalar com espritos dos mortos, tomavam parte em atosde feitiaria, e pediam a papai para libert-los dedemnios.

    Papai era o chefe mas havia outros mdiuns quese utilizavam de nossa casa para sede de suas ati-vidades. Alguns permaneciam ali semanas seguidas, svezes invocando espritos, s vezes expulsandodemnios.

    Havia uma mesa comprida na sala da frente, aoredor da qual o povo se assentava, quando estavatentando se comunicar com os espritos dos mortos.Papai era muito entendido no assunto, e t inha umabiblioteca de magia e espiritismo, sem igual, naquelaparte da ilha.

    Certa manh, dois homens trouxeram uma se-nhora perturbada nossa casa. Eu e meu irmo Geneesgueiramo-nos da cama, olhamos por uma fresta daporta, e vimos quando eles a estenderam sobre a mesagrande. O seu corpo tremia e gemidos escapavam deseus lbios; os homens se postaram um de cada lado da

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    mesa, segurando-a. Mame ficou aos ps dela, com osolhos erguidos para o teto, repetindo palavrasestranhas. Papai foi cozinha e voltou com umapequena urna preta cheia de incenso a fumegar. Traziatambm um grande sapo que colocou sobre o estmago

    agitado da mulher. Depois, suspendendo a urna sobre acabea dela, aspergiu p de incenso sobre seu corpoconvulso.

    Ns tremamos de medo; ele mandou que os es-pritos maus sassem da mulher e entrassem no sa po.De repente, a mulher jogou a cabea para trs e soltouum grito agudo. O sapo saltou do seu estmago e

    espatifou-se contra a soleira da porta. Imediatamente,ela comeou a dar pontaps e, sacudindo-se, libertou-sedos homens que a seguravam, rolou da mesa e caiupesadamente no cho. Picou babando e mordendo alngua e os lbios; sangue misturado com espumaescorria pelos cantos de sua boca.

    Mais tarde aquietou-se e ficou imvel. Papai de-

    clarou que ela estava curada e os homens lhe deramdinheiro. Eles pegaram o corpo inconsciente e se foram,agradecendo a papai e chamando-o repetidamente deGrande Milagreiro.

    Minha infncia foi cheia de temor e sobressaltos.O fato de sermos uma famlia grande significava que muipouca ateno era dada individualmente a cada filho.

    Eu tinha raiva de papai e mame, e tinha medo damacumba que era realizada todas as noites.

    No vero anterior poca que eu devia entrar paraa escola papai trancou-me, um dia, no pombal. J eranoite e ele me apanhara roubando dinheiro da bolsa demame. Procurei correr, mas ele esticou o brao e meagarrou pela nuca: No adianta correr, moleque. Voc

    roubou; agora vai me pagar.Eu te odeio, gritei.

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    Ele me levantou do cho, sacudindo me diante desi Vou ensin-lo a falar assim com seu pai, disse entredentes. Colocando-me debaixo do brao como se eufosse um saco de farinha, atravessou o quintal escuro,dirigindo-se ao pombal. Escutei o rudo de suas mos ao

    abrir a porta. Para dentro, rosnou ele. Voc vai ficar acom os pombos, at aprender.

    Atirou-me porta adentro, e fechou-a atrs de mim,deixando-me em total escurido. Ouvi o trinco sendocolocado no lugar, e a voz de papai, abafada, atravs dasfendas da parede: E nada de jantar. Ouvi seus passosse diminuindo na distncia, de volta para casa.

    Eu estava petrificado de terror. Martelava a portacom os punhos. Chutava-a freneticamente, gritando echorando. De repente, a casinhola encheu-se do barulhode asas: os pssaros, assustados, haviam acordado;repetidas vezes, chocaram-se contra o meu corpo.Apertei as mos contra o rosto e gritei histericamente,enquanto as pombas se arremetiam contra as paredes, e

    bicavam ferozmente meu rosto e pescoo. Ca aturdidono cho imundo, e enterrei a cabea nos braos,tentando proteger os olhos e tapar os ouvidos para noouvir o som das asas que volteavam sobre minhacabea.

    Parecia que uma eternidade se passara, quando aporta abriu, e papai me fez ficar de p e arrastou-me

    para o quintal. Da prxima vez, voc vai lem brar-se deno roubar e de no responder com insolncia quandofor apanhado, disse ele asperamente: Agora, tome umbanho e v para a cama.

    Chorei naquela noite at dormir; depois, sonheicom pssaros esvoaantes que se chocavam contra meucorpo.

    Meus ressentimentos contra papai e mame rea-vivaram-se no ano seguinte, quando entrei para aescola. Eu odiava qualquer autoridade. Mais tarde,

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    quando j tinha oito anos, rebelei-me de uma vez contrameus pais. Foi em uma tarde quente de vero. Mame evrios outros mdiuns es ta va m sen ta dos gra n demesa da sala, tomando caf. Eu me cansara de brincarcom meu irmo e entrara na sala, brincando com uma

    pequena bola, batendo-a no assoalho. Um dos mdiunsdisse mame: O Nicky um menino bonito. Parececom voc. Deve orgulhar-se dele.

    Mame olhou sria para mim e comeou a ba-lanar-se na cadeira, para a frente e para trs. Seusolhos reviraram, a ponto de aparecer somente o branco.Estendeu os braos para a frente, sobre a mesa. Seu s

    dedos ficaram duros e tremiam e ela levantouvagarosamente os braos sobre a cabea e comeou afalar em tom de cantocho: Este... no... meu... filho.No, Nicky no. Ele nunca foi meu. Ele filho do maiorde todos os bruxos. Lcifer. No, meu no... no, meuno... Pilho de Satans, filho do diabo.

    Larguei a bola, que rolou pela sala afora. Encostei-

    me parede, e mame continuou em transe; sua voz selevantava e baixava, enquanto ela falava como emresponso: No, meu no, no, meu, no... a mo deLcifer sobre a sua vida... o dedo de Satans est nasua vida.. . o dedo de Satans toca na sua alma... amarca da besta no seu corao... No, meu no, meuno.

    Observei que lgrimas corriam pelas suas faces.De repente, voltou-se para mim com os olhos ar-regalados e gritou com voz esganiada: Sai, DIABO!Para longe de mim. Deixa-me, DIABO! Longe! Longe!Longe!

    Eu estava petrificado de terror. Corri para o meuquarto e joguei-me sobre a cama. Pensamentos

    passavam pela minha mente como rios canalizados emuma garganta estreita. No sou filho dela... filho deSatans.. . ela no me ama... Ningum me quer.

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    Ningum me quer.

    Ento as lgrimas vieram, e eu comecei a chorar ea soluar. A dor que sentia no peito era insuportvel, eesmurrei a cama at ficar exausto.

    O velho dio se agitou dentro de mim, a consu mirminha alma, como a onda da mar avana sobre umrecife de coral. Senti que odiava minha me. Puxa, comoa odiava! Eu queria feri-la, tortur-la, vingar-me.Empurrei a porta e sa correndo e gritando at a sala. Osmdiuns ainda estavam ali com mame. Esmurrei amesa e gritei. Estava to frustrado pelo dio quegaguejava e as palavras no saam direito: Eu eu... t-te o-o-odeio. Apontava um dedo trmulo para minhame e gritava: Vo-vo-vocme paga. Voc me paga.

    Dois de meus irmos mais novos estavam por taolhando, curiosos. Empurrei-os para o lado e corri paraos fundos da casa. Mergulhando escada abaixo, virei-mee arrastei-me para baixo da varanda e cheguei ao cantoescuro e frio onde eu sempre me escondia. Abaixado soba escada, no meio daquela poeira seca, ouvi as mulheresrindo e mais alta do que as outras, a voz de minha meecoando atravs do assoalho rachado: Viram, eu bemdisse que ele filho de Satans.

    Como senti dio dela. Queria destru-la, mas nosabia como. Esmurrando a poeira, gritei de desespero,meu corpo sacudindo-se em soluos, convulsivos. Eu teodeio. Eu te odeio. Eu te odeio, gritei. Mas ningum meouviu. Ningum se importou. No meu desespero pegavamancheias de p e atirava furiosamente em todas asdirees . A poeira a s s en ta va em m eu ros totransformando-se em pequenos riachos sujos aomisturar-se com as lgrimas.

    Mais tarde o frenesi acalmou-se e fiquei em si-lncio. Ouvi as crianas brincando no quintal. Umgaroto estava cantando uma msica que falava depassarinhos e borboletas mas eu me sentia isolado,

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    solitrio... Torturado pelo dio e pela perseguio eobcecado pelo medo. Ouvi a porta do pombal fechar-se eas ruidosas passadas de papai que vinha dos fundos dacasa; ele comeou a subir os degraus da escada.Parando, olhou para as trevas, por entre as rachaduras

    das tbuas dos degraus. O que est fazendo a embaixo, menino? Fiquei em silncio, com a esperana deque no me reconhecesse. Ele encolheu os ombros econtinuou subindo a escada, e entrou deixando a portabater atrs de si. Ningum me quer, pensei.

    Ouvi mais risadas dentro da casa, quando a vozde baixo profundo de meu pai uniu-se das mulheres.

    Eu sabia que eles ainda estavam rindo de mim.Ondas de dio me invadiram outra vez. Lgrimas

    rolaram pelo meu rosto, e comecei a gritar de novo. Eute odeio, mame! Eu te odeio. Eu te odeio. Minha vozecoou no vcuo sob a casa.

    Chegando a um auge de emoo, ca de costas napoeira, e rolei de um lado para o outro a poeira cobriameu corpo. Exausto, fechei os olhos e chorei, at cairnum sono agitado.

    O sol j tinha se escondido no mar, quando des-pertei e me arrastei para fora, saindo de baixo davaranda. A areia ainda rangia em meus dentes, e o meucorpo estava coberto de sujeira. Os sapos coaxavam. Osgrilos cantavam. Eu sentia o orvalho mido e frio sobmeus ps descalos.

    Papai abriu a porta dos fundos, e um jato de luzamarela projetou-se onde me achava, ao p da escada.Porco! gritou ele. O que voc estava fazendo tantotempo debaixo da casa? Veja como est. No queremosporcos por aqui. V se lavar e venha jantar.

    Obedeci. Porm, meditando enquanto me lavavadebaixo da bica, cheguei concluso de que haveria deodiar eternamente. Compreendi que nunca mais amaria

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    de novo .. a ningum. E nunca mais choraria.. . nunca.Medo, sujeira e dio para o filho de Satans. Foi quandocomecei a fugir.

    Muitas famlias porto-riquenhas tm o costume de

    mandar seus filhos para Nova York, quando estesalcanam idade suficiente para cuidar de si. Seis dosmeus irmos mais velhos j haviam deixado a ilha,mudando-se para Nova York. Todos estavam casados eprocurando construir vida nova.

    Eu, porm, era muito novo para ir. No obstan te,nos cinco anos seguintes meus pais chegaram concluso de que no era possvel que eu permanecesseem Porto Rico. Tornara-me rebelde na escola. Estavasempre procurando briga, principalmente com crianasmenores do que eu. Um dia atirei uma pedra na cabeade uma menina. Fiquei olhando, com um sentimento deprazer, o sangue que gotejava atravs de seu cabelo. Amenina estava gritando e chorando, e eu ali, rindo.

    Meu pai esbofeteou-me aquela noite at minhaboca sangrar. Sangue por sangue, gritou ele.

    Comprei uma espingarda pica-pau para matarpassarinhos. Mas, para mim, mat-los no era osuficiente. Gostava de mutilar seus corpos. Meus irmosse afastavam de mim, por causa do meu estranho desejode ver sangue.

    Quando estava no oitavo ano, tive uma briga como professor de artes manuais. Era um homem alto emagro que gostava de assobiar para as moas. Um dia,na classe, eu o chamei de negro. A sala ficou silenciosae os outros rapazes se esgueiraram para trs dasmquinas da oficina, sentindo a tenso no ar.

    O professor caminhou pela classe, at o lugar

    onde eu estava, ao lado de um torno. Sabe o que mais,rapaz? Voc pretensioso.

    Respondi com insolncia: Desculpe, negro, eu

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    Voltamos de novo atravs da pequena vila, e pelatrilha sinuosa, at em casa. Ele me puxava atrs de si,preso pelo brao. Mentiroso sujo, disse-me j defronteda casa. Levantou a mo para esbofetear-me, masconsegui sair fora do seu alcance, e corri ladeira abaixo.

    Est certo... Fuja, moleque! gritou. Voc h de voltarpara casa e quando voltar, eu vou lhe mostrar...

    Voltei para casa; mas s trs dias depois. A polciapegou-me andando na beira de uma estrada que levavas montanhas, no interior. Roguei-lhes que mesoltassem, mas devolveram-me ao meu pai. E elecumpriu a sua promessa.

    Eu sabia que precisava fugir outra vez. E maisoutra. Fugiria para to longe que ningum seria ca pazde me trazer de volta. Nos dois anos que se seguiram,fugi cinco vezes. Todas as vezes a polcia me encontrou eme levou de volta para casa. Finalmente, sem maisesperana, papai e mame escreveram para meu irmoFrank, perguntando-lhe se poderia receber-me para

    morar em sua companhia. Frank concordou, e elestraaram os planos para a minha ida.

    Na manh em que viajei, as crianas seenfileiraram na varanda frente da casa. Mame meapertou ao peito. Havia lgrimas em seus olhos quandoela tentou falar, porm no saiu palavra nenhuma. Euno tinha por ela sentimento de qualquer espcie.

    Pegando minha pequena mala, virei as costas,carrancudo, e dirigi-me velha caminhoneta onde papaime esperava. No olhei para trs.

    Levamos quarenta e cinco minutos para chegar aoaeroporto de San Juan, onde papai me deu a passageme enfiou em minha mo uma nota de dez dlaresdobrada. Telefone para Frank logo que chegar a Nova

    York, disse ele. O piloto vai tomar conta de voc at elechegar.

    Ficou de p olhando para mim durante lon go

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    tempo, bem mais alto do que eu, enquanto um cacho doseu cabelo grisalho e ondulado era agitado pela brisaquente. provvel que eu parecesse pequeno e patticoa seus olhos, parado ali na estrada, com a maleta namo. Seus lbios tremeram quando estendeu a mo

    para apertar a minha. Ento, repentinamente, envolveu-me em seus longos braos e apertou o meu corpo magrocontra o seu.

    Escutei-o s olu a r s u m a vez: Hijo m io(filho meu).

    Soltando-me, ele disse rapidamente: Seja umbom menino, passarinho. Virei-me, e sa correndo;galguei as escadas do enorme avio, e sentei-me junto auma janela.

    L fora vi a figura magra e solitria de meu pai, OGrande, encostado na cerca. Ele levantou a mo umavez, como se fosse acenar, mas pareceu envergonhar-se,e voltou, andando depressa, para junto da velhacaminhoneta.

    Por que ser que ele me chamara de passarinho?Recordei o momento quando, muitos anos atrs,sentado nos degraus da grande varanda, papai mechamara daquela forma.

    Estava sentado em uma cadeira de balano, fu-mando o seu cachimbo, quando me contou a lenda de

    um pssaro que no tinha ps, e por isso voavacontinuamente. Papai olhou-me sombrio, e disse: Essepassarinho voc, Nicky. Voc no tem descanso. Comoum passarinho, voc est sempre fu gindo. Meneou acabea vagarosamente, e levantou os olhos para os cus,soprando fumaa nas trepadeiras, que subiam at otelhado da varanda.

    Esse passarinho pequenino e muito leve. Nopesa mais do que uma pena. Ele levado pelas cor-rentes de ar, e dorme ao vento. Est sempre fugin do.

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    Fugindo de gavies, de guias, de corujas. Aves derapina. Ele se esconde colocando-se entre elas e o sol.Se elas voarem acima dele, podero v-lo, em contrastecom a terra escura. Mas as suas pequenas asas sotransparentes, como a gua clara da lagoa. Enquanto

    ele permanece no alto, elas no conseguem v-lo, eassim ele nunca descansa.

    Papai recostou-se e soltou uma baforada de fu-maa azul. Mas, como que ele come? perguntei.

    Ele come ao vento, respondeu papai. Falavavagarosamente, como se tivesse visto a avezinha. Eleapanha insetos e borboletas. No tem pernas.. . nemps... est sempre se movendo.

    Fiquei fascinado com a estria. E nos dias chu-vosos? perguntei-lhe. O que acontece quando o sol nobrilha? Como , ento, que ele escapa dos seusinimigos?

    Nos dias feios, Nicky, disse papai, ele voa to

    alto que ningum pode v-lo. A nica hora em que prade voar o nico momento em que pra de fugir anica vez que vem terra quando morre. Pois, umavez que toca o solo, no pode mais fugir

    Papai me deu um tapinha no traseiro e me tocoude casa. V agora, passarinho. Fuja, voe. Seu pai ochamar quando j no for hora de correr.

    Literalmente voei pelo campo gramado, batendo osbraos como um pssaro que tentasse alar vo.Contudo, por alguma razo, parece que no conseguiaganhar suficiente velocidade para subir.

    Os motores do avio tossiram, soltaram fumaanegra, e entraram em funcionamento. Finalmente, eu iavoar. Estava a caminho...

    O nibus parou. L fora, as luzes brilhantes e osanncios luminosos multicoloridos acendiam e

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    apagavam na penumbra fria. Um homem que estava dooutro lado levantou-se para descer. Segui-o at a porta,e samos. As portas se fecharam atrs de mim, e onibus partiu. Fiquei ali na calada... sozinho no meiode oitomilhes de pessoas.

    Apanhei um punhado de neve suja e tirei a crostaque a cobria. Ali estava: neve pura e brilhante. Desejeicoloc-la na boca e com-la Porm, ao olhar bem,pequenas manchas negras comearam a aparecer nasuperfcie. Compreendi que o ar estava cheio de fuligemdas chamins e que a neve estava tomando o aspecto dequeijo fresco pulverizado com pimenta-do-reino.

    Joguei a neve para o lado. No fazia diferena. Euestava livre.

    Vagueei pela cidade dois dias. Encontrei um ca-saco velho jogado em uma lata de lixo. As mangascobriam as minhas mos, e a barra varria a calada. Osbotes tinham sido arrancados e os bolsos rasgados,mas ele me aquecia. Aquela noite eu dormi no metr,encolhido em um banco.

    No fim do segundo dia, meu entusiasmo esfriara .Eu estava com fome... e com frio. Em duas ocasies,tentei falar com algum, pedindo ajuda. O primeirohomem simplesmente ignorou-me. Continuou andando,como se eu no estivesse ali . O segundo empurrou-mecontra a parede: Caia fora, seu. No ponha essas mosgordurentas em mim. Piquei com medo. Tentavaimpedir que o pnico subisse do estmago para agarganta.

    Naquela noite, percorri de novo as ruas da cidade,o palet comprido varrendo a calada e a pequena malasegura f irmemente em minha mo. Pessoas passavampor mim, e me olhavam, mas ningum parecia importar-se comigo. Apenas olhavam e continuavam andando.

    Nessa mesma noite gastei os dez dlares que

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    perder-se na floresta ou em uma ilha deserta. Porm,essa era a pior das solides. Vi pessoas bem vestidas,voltando do teatro para suas casas.. . velhos vendendojorn a is e fru ta s em pequ en a s ba n ca s qu e fica va mabertas a noite toda.. . policiais patrulhando, aos pares.. .

    caladas cheias de pessoas apressadas. Ao olhar paraseus rostos, elas tambm pareciam solitrias. Nin gumria. Ningum de rosto alegre. Todos apressados.

    Sentei-me na calada e abri minha pequena ma la.Encontrei um pedao de papel dobrado, com o nmerodo telefone de Frank, escrito por mame. De repente,senti algo empurrando-me por trs. Era um cachorro

    velho, felpudo que encostava o focinho no enormecasaco que cobria meu corpo magro. Rodeei seu pescoocom o brao, e puxei-o para mim. Ele lambeu meu rostoe eu enterrei a cabea no seu pelo sarnento.

    No sei quanto tempo fiquei ali sentado, tremen doe afagando o co. Quando olhei para cima, vi os ps epernas de dois policiais uniformizados. As suas galochas

    estavam molhadas e sujas. O cachorro sarnentopressentiu o perigo, e saiu correndo, desapa recendonum beco.

    Um dos guardas bateu no meu ombro com aponta do cassetete. O que que voc est fazendo aquisentado, no meio da noite? perguntou ele. A sua faceparecia estar cem quilmetros acima. Com dificuldade

    procurei explicar, em meu ingls de p quebrado, queestava perdido.

    Um deles murmurou algo para o outro, e se foi. Oque ficara ajoelhou-se ao meu lado, na calada suja.Posso ajud-lo, garoto?

    Acenei que sim e tirei o pedao de papel com onome e nmero do telefone de Frank. Irmo, disse-lhe,mostrando o papel.

    Ele sacudiu a cabea ao olhar para a escrita quase

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    ilegvel. a que voc mora, garoto?

    Eu no sabia responder e apenas disse: Irmo.Ele acenou que sim, levantou-me pelo brao, e dirigimo-nos a uma cabine telefnica atrs de uma banca de

    jorn a is . Pes cou u m n qu el n o bols o e d is cou o n m ero.Quando a voz sonolenta de Frank respondeu, ele meentregou o fone. Em menos de uma hora eu estava asalvo, no apartamento de meu irmo.

    A sopa quente que tomei j na casa de Frankestava gostosa, e a cama limpa, deliciosa. Na manhseguinte Frank me contou que eu deveria ficar com ele,que ele cuidaria de mim e me poria na escola. Algodentro de mim, porm, me dizia que eu no ficaria ali.Comeara a fugir, e agora nada me faria parar.

    Captulo 2

    NNAA SS EE LLVVAA DD OO QQUUAADD RR OO--

    NNEEGGRR OO

    FIQUEI DOIS MESES COM FRANK, aprendendo amanobrar o ingls. Porm no era feliz, e as tensesinternas estavam me perturbando muito.

    Frank, logo na primeira semana, matriculou-meno ginsio. A escola era quase inteiramente de negros eporto-riquenhos. Era dirigida mais como umreformatrio do que como escola pblica. Os professorese administradores passavam a maior parte do tempotentando manter a disciplina, de forma que pouco temporestava para o ensino. Era um lugar selvagem, cheio debrigas, de imoralidade e de constante batalha contra os

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    que tinham autoridade.

    Todas as escolas do Brooklin tm representantesde pelo menos duas ou trs gangs. Estas gangs soquadrilhas formadas por rapazes e garotas que vivem

    em um certo bairro. Algumas vezes as gangs soinimigas, o que invariavelmente cria conflitos, quandoso colocadas na mesma sala de aula.

    Aquilo era uma experincia nova para mim. Tododia na escola tinha de haver uma briga nos corredoresou em uma das salas de aula. Eu me encostava parede, com medo de que algum dos rapazes maioresme batesse. Depois da aula, sempre havia uma briga noptio, e algum saa ferido e perdendo sangue.

    Frank costumava advert ir-me, para no andarpelas ruas noite. As quadrilhas, Nicky. As qua drilhaspodem te matar. Eles saem como matilhas de lobos,durante a noite, e matam qualquer pessoa que noconheam.

    Ele me recomendou que viesse direto da escolapara casa, todas as tardes, e ficasse no apartamento, eme conservasse distncia das gangs.

    Logo fiquei sabendo tambm que as quadrilhasno eram a nica coisa que eu deveria temer. Haviatambm os pequenos. Eram terrveis moleques de novee dez anos que perambulavam pelas ruas tarde e

    noitinha, ou que brincavam diante dos pardieiros emque moravam.

    Tive meu primeiro encontro com os pequenosquando voltava da escola para casa certo dia, logo naprimeira semana. Uma gang de cerca de dez meninosentre oito e dez anos investiu contra mim, saindo de umporto.

    Ei, garotos, olhem por onde andam.

    Um dos meninos deu umrodopio e disse: V para

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    o inferno!

    Outro veio por trs e abaixou-se. Antes que medesse conta do que estava acontecendo, vi-me estateladode costas na calada. Tentei levantar-me, mas um dos

    garotos agarrou meu p e comeou a puxar. Gritavam eriam o tempo todo.

    Perdi a calma e dei um soco no que estava maisprximo, jogando-o na calada. Naquele momento, ouviuma mulher gritar. Olhei para cima, e vi-a debruadanuma janela no quarto andar. Afaste-se de meu filho,porco nojento, ou eu te mato.

    Naquele momento, no havia nada que eu dese-jasse mais do que afastar-me de seu filho. Mas os outrosmeninos estavam avanando. Um deles atirou umagarrafa de refrigerante na minha direo. Ela acertou nacalada, perto do meu ombro, fazendo chover vidro nomeu rosto.

    A mulher estava gritando ainda mais: No se

    meta com os meus meninos! Socorro! Socorro! Ele estmatando meu filho!

    De repente, outra mulher apareceu em uma porta,com uma vassoura na mo. Era gorda e bamboleava aocorrer; tinha a cara mais feia que eu j vi. Ela entrou nomeio da quadrilha de garotos, com a vassoura levantadaacima de sua cabea. Tentei rolar no cho, fugindo dela,

    mas era tarde a vassoura acertou em cheio nasminhas costas. Rolei de novo e ela me acertou no alto dacabea. Ela estava gritando. Percebi ento que vriasoutras mulheres estavam debruadas nas janelas ,gritando, e chamando a polcia. A mulher gorda megolpeou pela terceira vez, antes que eu pudesse pr-mede p e comear a correr. Ouvi-a dizer, atrs de mim:Se voc aparecer por aqui de novo, judiando de nossascrianas, ns te matamos.

    Na tarde seguinte, ao voltar da escola para casa,

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    sua garganta e deixar voc sangrar, como o animal queri como voc.

    Ei, ra-ra-rapaz, gaguejei. O que que h deerrado comigo? Por que que voc quer me esfaquear?

    Porque no gosto da sua cara, s isso, disse ele.Apontou a faca para o meu estmago, e comeou aandar em minha direo.

    Vamos, paizinho. Deixe-o. Esse menino acaba dechegar de Porto Rico. No conhece as regras, falououtro membro da quadrilha, um moreninho espigado.

    Certo, mas um dia vai saber. E melhor que nopise no domnio dos Bishops. Com um sorriso deescrnio, ele recuou.

    Viraram-se e foram embora. Corri para o apar-tamento e passei o resto da tarde pensando.

    No dia seguinte, na escola, alguns meninos ou-viram falar do incidente da praa. Descobri que o rapaz

    que tirara a faca chamava-se Roberto. Naquela tarde,durante a aula de educao fsica, estvamos jogandobeisebol. Roberto derrubou-me de propsito. Todos osoutros meninos comearam a gritar:

    D nele, Nicky. Bate nele. Mostre que ele no denada, quando no est com uma faca na mo. Vamos,Nicky, ns estamos com voc. D nele!';

    Est bem, disse eu, vamos ver se voc bom debriga. Levantei-me e limpei a roupa.

    Tomamos posio um diantedo outro, e os demaismeninos formaram um grande crculo nossa volta.Ouvi-os gritar: Lutem! Lutem! e percebi que o crculoaumentava.

    Roberto riu, porque eu tomara a posio tradi-cional de pugilista, com as mos diante do rosto. El?encurvou-se um pouco e tambm levantou os punhos

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    fechados, desajeitadamente. Era bvio que no estavaacostumado a lutar daquela forma. Dancei em direo aele, e antes que pudesse mover-se, acertei-lhe um socode esquerda. O sangue espirrou de seu nariz e ele deuu m pa ss o pa ra tr s , olh a n do-me su rpr eso. Ava n cei de

    novo.De repente, ele baixou a cabea e carregou con tra

    mim como um touro, acertando-me no estmago ejogando-me de costas no cho. Tentei levantar-me, masele me chutou com seus sapatos pontudos. Rolei para olado, e ele pulou sobre minhas costas e puxou-me acabea para trs, enterrando deliberada-mente os dedos

    nos meus olhos.Fiquei pensando que os outros meninos iriam me

    ajudar, ou pelo menos apartar a briga, mas se limitarama ficar ali, torcendo.

    Eu no sabia brigar daquela forma. Todas asminhas brigas haviam sido segundo as regras do boxe,mas pensei que aquele rapaz iria me matar, se nofizesse algo. Agarrei as suas mos e tirei-as dos meusolhos, enterrando os meus dentes no seu dedo. Elegritou de dor e saiu de cima de mim.

    De um pulo fiquei de p e tomei novamente po-sio de pugilista. Ele levantou-se vagarosamente,segurando a mo ferida. Dancei em sua direo eacertei-lhe dois socos de esquerda no rosto. Eu o ferira,e avancei para soc-lo de novo, quando ele me agarroupela cintura, prendendo meus braos ao lado do corpo.Usando a cabea como um bate-estacas, ele comeou adar-me cabeadas no rosto. Meu nariz comeou asangrar e fiquei cego de dor. Finalmente ele me soltou eme deu dois socos, e eu ca no p do ptio da escola.Senti que ele me deu um pontap, quando chegou um

    professor que o afastou de mim.Naquela noite quando fui para casa, Frank gritou

    comigo. Eles vo matar voc, Nicky. Eu lhe disse para

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    ficar longe das quadrilhas. Eles vo matar voc. Minhaface estava muito ferida e meu nariz parecia estarquebrado. Eu sabia, porm, que da para frente ningummais levaria vantagem sobre mim. Eu era capaz de lutarto deslealmente como eles e at mais. Da prxima

    vez estaria preparado .A prxima vez foi vrias semanas mais tarde. As

    aulas tinham terminado, e eu ia descendo pelo corredor,em direo porta. Percebi que alguns alunos estavamme seguindo. Dei uma olhada por sobre o ombro. Atrsde mim havia cinco garotos negros e uma menina. Sabiaque era comum haver brigas feias entre rapazes porto-

    riquenhos e negros. Comecei a andar mais depressa,mas percebi que eles tambm apressavam o passo.

    Saindo pela porta, eu descia um corredor quedava para a rua. Os garotos de cor me cercaram, e umdeles, um grando, me empurrou contra a parede.Derrubei os livros, e outro rapaz chutou-os corredorabaixo, e eles caram numa vala cheia de gua suja.

    Olhei ao redor, porm no vi ningum que pu-desse chamar em meu socorro. O que voc est fazendonestes domnios, rapaz? perguntou o granda lho. Vocno sabe que isto aqui nosso?

    Essa no! Isto domnio da escola. No pertencea quadrilha alguma, disse eu.

    No banque o espertinho comigo, menino, nogosto de voc.

    Colocou a mo contra o meu peito e me apertoucontra a parede. Naquele momento ouvi um clique epercebi que era o rudo de um canivete automtico.

    Quase todos os rapazes andavam com um desses.Eles preferiam usar um tipo de canivete de presso, que operado com o auxlio de uma mola. Quando umpequeno boto de lado apertado, a mola solta-se e almina se abre.

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    O rapago colocou a arma contra meu peito,picando os botes da minha camisa com a ponta afiadae fina.

    Olha o que vou fazer, espertinho, disse ele. Voc

    novo nesta escola, e ns fazemos todos os novatos nospagarem para receber proteo de ns. um bomnegcio. Voc nos paga vinte e cinco centavos por dia ens garantimos que ningum te amola.

    Um dos outros rapazes deu uma risadinha foradae disse: Sim, meu chapa; da mesma forma, nsgarantimos que no amolamos voc, tambm.

    Todos os outros rapazes riram.Ento eu disse: Ah, ? E quem me prova que

    mesmo que eu d vinte e cinco centavos para vocstodos os dias, vocs no judiaro de mim?

    Ningum prova, menino inteligente. Voc apenasnos d o dinheiro, de qualquer forma. Se no d, morre,respondeu ele.

    Est bem. Ento melhor que vocs me ma temagora mesmo. Porque se vocs no matarem, eu voltareimais tarde e matarei vocs um por um. Pude perceberque os outros ficaram um pouco amedrontados . Orapago que tinha a faca contra o meu peito,naturalmente, pensava que eu era destro. Por isso, noesperava que fosse agarr-lo com a mo esquerda. Torcia sua mo, afastando-a do meu peito, o fiz girar sobre simesmo e dobrei-lhe o brao por detrs das costas.

    Ele deixou cair a faca e eu apanhei-a do cho.Senti-me bem como ela na mo. Coloquei-a contra a suagarganta, pressionando-a a ponto de marcar a pele, semfur-la.

    Empurrei o seu rosto contra a parede com a facano lado da sua garganta, logo abaixo da orelha. Amocinha comeou a gritar, com receio de que eu fosse

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    mat-lo.

    Virei-me para ela e disse: Ei, boneca, eu conheovoc. Sei onde a sua casa. Hoje noite vou at l e temato; quer?

    Ela gritou mais alto e agarrou o brao de um dosoutros rapazes, comeando a pux-lo para lon ge: Foge!Foge! gritava ela. Esse cara louco. Foge!

    Eles fugiram, inclusive o rapago que estiverapreso contra a parede. Deixei que se fosse, sabendo queeles poderiam ter-me matado, se tivessem tentado.

    Desci pela calada at onde os livros estavam jo-gados na gua. Apanhei-os e sacudi-os. Ainda tinha opunhal na mo. Fiquei parado muito tempo, abrindo efechando a lmina. Era o primeiro canivete de pressoque segurava em minha mo. Achei delicioso manej-lo.Deixei-o cair no bolso do palet e fui para casa.Daquela hora em diante, seria melhor que elespensassem duas vezes antes de se enroscarem com o

    Nicky, pensei.Logo espalhou-se o boato de que eu era terrvel.

    Aquilo fez de mim uma isca atraente para qualquerrapaz que quisesse brigar. Cheguei concluso de quealgo drstico aconteceria: era apenas uma questo detempo. Mas, estava preparado.

    A exploso final veio dois meses depois de eu tercomeado a estudar. A professora acabara deestabelecer a ordem na classe e estava fazendo achamada. Um rapaz de cor chegou atrasado. Veiogingando e tinha um sorriso cnico nos lbios. Haviauma linda garota porto-riquenha sentada na ltimafileira. Ele curvou-se e beijou-a no pescoo.

    Ela afastou-se dele e sentou-se ereta na carteira.Ele deu a volta e beijou-a na boca; ao mesmo tem potentando acarici-la. Ela pulou do lugar e comeou agritar.

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    Os outros alunos estavam rindo e gritando: Va-mos, rapaz, larga brasa!

    Dei uma olhadela para a professora. Ela ps-se adescer entre as fileiras, mas um latago levantou-se

    diante dela e disse: Ora, professora, a senhora no vaiquerer estragar a festa, vai? A professora encarou orapaz que era mais alto do que ela, e recuou para a suamesa, enquanto a classe urrava, divertindo-se.

    A esta altura, o rapaz tinha a garota presa con traa parede, e tentava beijar lhe a boca. Ela gritava etentava afast-lo.

    Ele finalmente desistiu e deixou-se cair pesada-mente no seu lugar.

    A professora limpou a garganta e comeou de novoa fazer a chamada.

    Algo estalara dentro de mim. Levantei-me dacarteira e dirigi-me aos fundos da classe. A garotasentara de novo e soluava, enquanto a professora faziaa chamada.

    Cheguei por trs do rapaz, que agora estavasentado na carteira, l impando as unhas. Peguei umapesada cadeira de madeira que estava no fim do cor-redor e disse: Ei, olhe, garoto, eu tenho uma coisapara voc.

    Quando ele virou-se para olhar, dei-lhe umacadeirada no alto da cabea. Ele afundou na carteira,enquanto o sangue escorria de um profundo corte nacabea.

    A professora saiu correndo da classe e voltou emum segundo com o diretor. Ele agarrou-me pelo brao eme empurrou corredor a fora, para seu es critrio. Fiquei

    sentado l enquanto ele chamava uma ambulncia, etomava providncias para que algum cuidasse do rapazferido.

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    Virou-se para mim. Depois de dizer tudo o queouvira a meu respeito, nos ltimos dois meses, isto , asconfuses em que eu estivera metido, pediu-me umaexplicao do que acontecera na classe. Contei-lheexatamente o que houvera. Disse-lhe que o rapaz estava

    se aproveitando da garota porto-riquenha, e que aprofessora nada fizera para impedi-lo. Por isso eu mecolocara a seu lado.

    Enquanto falava, pude ver o seu rosto se aver-melhar. Finalmente, ele se levantou e disse: Est bom,j a g en tei es s a s b r iga s a t on de pu d e. Vocs vm a qu ie pensam que podem agir da mesma forma que agem

    nas ruas. Penso que j hora de dar um exemplo, equem sabe se a autoridade ser mais respeitada aquidentro. No estou para me sentar aqui todos os dias ever vocs se matando e mentindo depois, para explicar oque no tem explicao. Vou chamar a polcia.

    Pus-me de p: Senhor, a polcia vai me pr n acadeia.

    Espero que sim, disse o diretor. Pelo menos oresto desses monstros que h aqui aprendero arespeitar a autoridade.

    Chame a polcia, disse eu; ao mesmo tempo,encostei na porta tremendo de medo e de raiva, equando eu sair da cadeia, voltarei, e um dia pego osenhor sozinho e o mato.

    Meus dentes rangiam enquanto falava.

    O diretor ficou branco. Sua face empalideceu e elepensou durante um momento.

    Est bem, Cruz. Vou deixar voc ir desta vez. Masnunca mais quero v-lo nesta escola. No me importaonde voc vai; para mim, pode ir para o inferno; masnunca mais deixe que eu veja a sua cara aqui por perto.Quero que saia daqui correndo, e no pare enquantono estiver fora das minhas vistas. Compreendeu?

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    Eu compreendi. E sa... correndo.

    Captulo 3

    SS OOZZIINNHHOO

    UMA VIDA MOTIVADA pelo dio e pelo temor notem lugar para mais nada a no ser o prprio ego. Eu

    odiava a todo mundo, inclusive Frank. Ele representavaa autoridade, e quando comeou a reclamar porque euno ia mais escola e ficava fora at tarde da noite,resolvi deix-lo.

    Nicky, disse ele, Nova York uma selva. O povoque vive aqui, vive pela lei da selva. S os for tessobrevivem. Na verdade, voc ainda no viu nada, Nicky.

    Moro aqui h cinco anos e sei. Este lugar est cheio deprostitutas, viciados em narcticos, brios e assassinos.Esses indivduos podem matar voc, ningum vai saberque est morto, at que algum malandro tropece no seucorpo em decomposio, sob um monte de lixo.

    Frank tinha razo. Mas eu no podia mais ficarali. Estava insistindo para que eu voltasse escola, e eu

    sabia que tinha de tentar viver por minha con ta,sozinho.

    Nicky, no posso forar voc a voltar para aescola. Mas se voc no fizer isso, est perdido.

    Mas o diretor me expulsou. Ele disse para eu novoltar nunca mais.

    No tenho nada a ver com isso. Se quiser viveraqui, tem de voltar. Voc precisa estudar.

    Se pensa que vou voltar, est louco, Frank.

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    Respondi com maus modos. Se tentar me obrigar, eu temato.

    Nicky, voc meu irmo. Isto no coisa que sefale. Mame e papai me disseram para tomar conta de

    voc e no vou deixar que fale assim. Ou voc vai para aescola, ou sai daqui. V embora, se quiser. Mas vocvoltar, porque no tem onde ir. Mas se ficar, vai para aescola e s.

    Isso foi na sexta-feira de manh, antes de Franksair para o trabalho. Naquela tarde deixei um bilhetesobre a mesa da cozinha, dizendo-lhe que foraconvidado por alguns amigos para ficar com eles du-rante uma semana. Eu no t inha amigos, todavia nopodia ficar mais com Frank.

    Naquela noite, vagueei por Bedford-Stuyvesant,um bairro de Brooklin, procurando lugar para ficar.Dirigi-me a alguns rapazes que estavam parados nu maesquina. Algum sabe onde eu posso encontrar umquarto para morar?

    Um deles virou se e olhou para mim, tirandobaforadas de um cigarro. Sim, disse ele, apontan docom o polegar sobre o ombro, na direo da Escola deBrooklin. O meu velho zelador daquelesapartamentos, do outro lado da rua. Fale com ele, queencontrar um lugar para voc. L est ele sentado naescada, jogando baralho com aqueles outros caras. Ele o que est bbado. Todos os outros rapazes riram.

    O prdio a que o rapaz se referira pertencia aoprojeto Fort Greene, no corao de um dos maioresconju n tos res id en cia is do m u n do. Ma is de t r in ta m ilpessoas viviam nos altos edifcios, sendo que a maioriaera de negros e porto-riquenhos. O ConjuntoHabitacional de Fort Greene vai desde a Av. Park at aAv. Lafayette, e a Praa Washington fica no centro.

    Encaminhei-me para o grupo de homens e per-

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    guntei ao zelador se havia um quarto para alugar. Eletirou os olhos das cartas e grunhiu: Sim, tem um. Porqu?

    Hesitei e gaguejei: Bem, porque eu preciso de um

    lugar para morar.Tem quinze pacotes a? perguntou, cuspindo

    fumo na direo de meus ps.

    Bem, no, agora no, mas...

    Ento no tem quarto, disse ele, e voltou aobaralho. Os outros homens nem se dignaram a levantaros olhos.

    Mas posso conseguir o dinheiro, argumentei.

    Olhe, garoto, quando voc puder mostrar-mequinze pacotes adiantados, o quarto seu. No meimporta como vai consegui-los. Roube de alguma velha,no me importo. Mas at que voc tenha o dinheiro, nometa mais o nariz aqui, voc est me enchendo.

    Voltei para a Av. Lafayette: passei por PapaJohn's, Casa de Carne Harry, Bar Paradise, Shery's, TheEsquire, Bar Valhal, e Rendezvous do Lincoln. Parandoao lado do ltimo, entrei em um beco, procurandodescobrir como conseguir dinheiro.

    Sabia que se tentasse assaltar algum e fosseapanhado, iria para a cadeia, mas estava desespera do.

    Dissera a Frank que s voltaria depois de uma semana.Um quarto custava dinheiro, e eu no tinha um centavo.Eram quase dez horas da noite, e o vento de invernoestava frio de rachar. Recuei para a escurido do beco, evi pessoas passando na calada. Tirei o punhal do bolsoe apertei o boto. A lmina abriu-se com um estalido.Encostei a ponta contra a palma da mo. Minha mo

    tremia ao pensar como iria praticar o roubo. Seriamelhor empurr-los para o beco? Eu deveria esfaque-los, ou apenas amedront-los? E se gritassem?...

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    Meus pensamentos foram interrompidos por duaspessoas que conversavam na entrada do beco. Um velhobbedo fez parar um rapaz de uns dezenove anos, quelevava um enorme saco de mantimentos. O velho pedia-lhe uns trocados para tomar caf. Ouvi o rapaz,

    tentando escapar, dizer ao bbedo que no t inhadinheiro.

    Atravessou-me a mente o pensamento de que ovelho, provavelmente, estava com o bolso cheio dedinheiro mendigado e roubado. No ousaria gritarpedindo socorro, se eu o roubasse. Logo que o rapaz sefosse eu o puxaria para o beco e tiraria o dinheiro dele.

    O rapaz estava pousando o saco de mantimentosno cho. Enfiou a mo no bolso e encontrou umamoeda. O velho resmungou um agradecimento e foiembora.

    Diacho, pensei comigo. Que fao agora?

    Naquele instante o rapaz derrubou o saco de

    mantimentos. Duas mas rolaram pela calada. Elecurvou-se para apanh-las, e eu o puxei para o beco,apertando-o contra o muro. Ambos estvamos morrendode medo, mas eu tinha a vantagem da surpresa. Eleficou petrificado quando eu levantei a faca diante do seunariz.

    No quero machucar voc, mas preciso de di-

    nheiro. Estou desesperado. D-me dinheiro. J! De-pressa! Tudo o que tem, antes que o mate.

    Minha mo tremia tanto que eu tive medo dedeixar cair a faca.

    Por favor, por favor. Leve tudo, mas no memate, rogou o rapaz. Tirou a carteira do bolso e tentoupass-la para mim, mas derrubou-a. Ele tremia mais doque eu. Chutei a carteira ainda mais para o fundo dobeco. Caia fora, disse eu. Corra, homem, corra! E separar de correr antes do segundo quarteiro, um

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    homem morto.

    Olhou para mim, com os olhos arregalados deter ror , e com eou a corr er . Trop eou n osmantimentos e estatelou-se na calada, na entrada do

    beco. Cambaleando, levantou-se outra vez, e meio degatinhas, meio em p, saiu correndo rua abaixo. Logoque virou a esquina, peguei a carteira e corri com todasas foras na direo oposta. Emergindo da escurido emDe Kalb, saltei a cerca de corrente que cerca o parque, ecorri pela grama alta, em direo s rvores.Escondendo-me por trs de um aterro, parei para tomarflego e permitir que o meu corao acelerado se

    acalmasse. Abrindo a carteira, contei dezenove dlares.Era uma sensao agradvel ter as notas na mo. Atireia carteira no meio da grama alta, e contei o dinheirooutra vez, antes de dobr-lo e coloc-lo no bolso.

    Nada mal, pensei. As quadrilhas esto matandovagabundos por menos de um dlar, e eu conseguiradezenove na primeira tentativa. Afinal de contas, as

    coisas no iam assim to mal.Mas o sentimento de autoconfiana no removeu

    todo o medo e permaneci escondido detrs dos arbustos,at depois da meia-noite. A essa altura, j era tardedemais para ir procurar o quarto; voltei ento ao lugaronde havia cometido o roubo. Algum j juntara todosos mantimentos que haviam cado, com exceo de uma

    caixa de bolachas, que estava toda amassada. Apanhei acaixa e sacudi-a, fazendo com que os pedaos e o farelocassem na calada. Reconstitu o acontecido em meuspensamentos, e sorri. Eu devia t-lo cortado, s para vercomo era, pensei. Da prxima vez, vou fazer isto.

    Dirigi-me para a entrada do metr, perto de Pa paJohn, e peguei o primeiro trem que chegou. Passei a

    noite no metr, e no dia seguinte, logo cedo, estava devolta Rua Fort Greene para alugar o quarto.

    O zelador subiu comigo trs lances de escadas. O quarto

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    tinha janelas para a rua que ficava defronte EscolaTcnica de Brooklin. Era pequeno, com rachaduras noforro. O zelador disse-me que haviaum banheiro comumno segundo andar, e que eu podia regular o sistema deaquecimento com a maaneta do radiador de ao.

    Entregou-me a chave, e disse-me que o aluguel venciatodo sbado, uma semana adiantado. A porta fechou-seatrs dele . Escutei seus passos soando pesadamenteescada abaixo.

    Voltei-me e olhei o quarto. Havia duas camas desolteiro, uma cadeira, uma mesinha, um lavatrio e umpequeno guarda-roupa. Indo janela, olhei a rua, l

    embaixo. O trnsito, logo cedinho, movia-se com umzumbido na Av. Lafayette, no fim do quarteiro. Dooutro lado da rua erguia-se a Escola Tcnica deBrooklin. Ocupava todo o quarteiro e impedia a visode qualquer outro panorama, mas no fazia muitadiferena. Pelo menos, eu estava por conta prpria.

    Naquela manh, dei a primeira volta pela vizi-

    nhana. Descendo as escadas do pardieiro, vi um rapazsair cambaleando de debaixo da escada. Sua face estavaplida como um lenol, e seus olhos profundamenteencovados. O palet sujo e esfarrapado caa de um dosombros, e as suas calas ficaram com a braguilhaaberta, depois dele ter urinado atrs do radiador. Nosabia dizer se estava bbedo ou dopado. Parei no

    patamar e fiquei a observ-lo, enquanto saa pela porta edescia os degraus externos. Debruou-se sobre ocorrimo e vomitou na calada. Um grupo de pequenosirrompeu por uma porta lateral do primeiro andar ecorreu para fora, ignorando completamente suapresena. O cara parou de vomitar e deixou-se cair noltimo degrau, olhando inexpressivamente para a rua.

    Passei por ele e desci para a calada. Sobre aminha cabea ouvi uma janela abrir-se e olhei para cimaexatamente a tempo de desviar-me rapidamente de uma

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    O cheiro de urina, excrementos, vinho, fumo e graxa eramaior do que eu podia suportar. Sa depressa prendendoa respirao. Pelo menos eu tinha um quarto no terceiroandar.

    Comecei a descer pela calada. As prostitutasconstituam uma cena pattica. As mulheres brancasexerciam o seu comrcio do lado direito da rua eocupavam um prdio de apartamentos a um quar teirodo meu. As mulheres de cor trabalhavam do outro ladoda rua, e viviam perto da entrada do metr. Eram todasviciadas em narcticos. Picavam por ali, vestidas comcasacos sujos, em grupos. Algumas bocejavam ou

    porque estavam doentes, ou porque precisavam de umestimulante, uma picada de herona, logo de manh,para anim-las.

    Dois meses se passaram e eu ainda no me acos-tu m a ra com Nova York . L em Porto Rico vira gra vu ra sda esttua da Liberdade e do edifcio das Naes Unidas,mas aqui, nesta rea pobre, s havia edifcios de

    apartamentos at perder de vista, cheios de carnehumana. Cada janela simbolizava uma famlia,a m ontoa da em qu ar tos m in scu los, leva n do u m a vidamiservel. Pensei no jardim zoolgico de San Juan, ondeos ursos andavam lentamente, e os macacostagarelavam detrs das grades. Eles se espojavam nas u a pr pria im u n dcie. Comiam ca rn e est ra ga da ou

    alface murcha. Lutavam uns contra os outros, e a nicavez em que concordavam era quando se reuniam pararech a a r u m in tru s o. Os a n im a is n o fora m feitos pa raviver desta forma, s com uma floresta pintada naparede de trs da jaula, a recordar-lhes o lugar ondedeveria m es ta r. Nem a s pes soas . Ma s a qu i, n os gu etos ,elas vivem assim.

    Parei no meio-fio, na esquina da Av. Myrtle, es-perando o sinal abrir. Sobre minha cabea um tremrugiu e matraqueou, cobrindo os que estavam em baixo

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    com uma camada fina de fuligem e poeira. As ruasestavam cobertas com uma mistura lamacenta de neve,sujeira e sal, que o povo atravessava quando o sinalabria.

    Nos fundos dos prdios de apartamentos os va raisiam de uma sacada a outra, de uma chamin a outra.As camisas azuis e calas cqui drapejavam ao ventoglido. Roupas de baixo que uma vez haviam sidobrancas agora eram de um cinzento encardido, devido constante exposio ao ar poludo. O sbadoamanhecera. Os lojistas abriam as pesadas grades deferro defronte s lojas. Em muitos quarteires no havia

    loja que no tivesse uma grade de ferro em forma de telaou barras de ferro, para proteg-la das quadrilhas quepor ali vagueavam noite.

    Os apartamentos eram, porm, o que mais medeprimia. Havia evidncias de tentativas anmicas dosocupantes, procurando alguma forma de identidade,acima da selva de concreto e dos precipcios de tijolos.

    Mas era um esforo desesperado semelhana de umhomem que est se enterrando em areia movedia, quetateia s bordas do lodaal com dedos frementes,procurando uma raiz que seja, agarrando-se a eladesesperadamente, enquanto arrastado para o fundo,com a raiz quase esmagada nas mos apertadas emdesespero.

    Um vaso de cermica, sujo, com flores, enfeitava obatente de uma janela coberta de fuligem. Um gerniomal cuidado apoiava-se contra o vidro.

    Ocasionalmente, via um apartamento com esca-das pintadas de cores vivas, e s vezes os umbrais deuma janela estavam pintados, aparecendo assim emflagrante contraste com as pedras escuras. Em outro

    local uma jardineira improvisada, feita com a madeirarstica de um engradado, aparecia dependurada de umaja n ela im u n da . Nela , a lgu m a s flores a r t ific ia is

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    desafiavam o vento de inverno, cobertas da fuligem quesaa de milhares de chamins erguidas por toda acidade.

    Eu chegara Rua St. Edward, e parara defronte

    biblioteca Walt Whitman, perto do Distrito Policial. Dooutro lado da rua havia um enorme edifcio deapartamentos de doze andares, que cobria umquarteiro inteiro. Suas seiscentas janelas davam paraa rua, cada uma representando um estado miservel dehumanidade, tremendo por trs das vidraas De umadas janelas pendia um trapo esfarrapado, outrora decores brilhantes, agora desbotado devido s intempries.

    A maior parte das janelas' no tinha venezianas oucortinas estavam ali, arregaladas como os olhos deum cadver congelado, deitado na rua.

    Voltei sobre os meus passos, em direo Pra aWashington. O que h de errado com este povo, aquineste lugar imundo? pensei. Por que vive assim? No hquintais. Nem grama. Nem espaos abertos. Nem

    rvores. Eu no sabia que uma vez que algum mudapara uma daquelas gaiolas de concreto, fica prisioneirodela. No h escapatria na selva de asfalto.

    Naquela tarde, desci rua abaixo de novo. Eunotara que havia uma espcie de parque de diverses eespetculos, no ptio que havia atrs da Igreja Catlicade St. Michael e St. Edward na esquina das ruas

    Auburn e St . Edward. Era uma quermesse. Cheguei squatro horas. A msica do alto-falante ressoava novolume mximo. Ainda tinha um pouco de dinheiro querestara do furto, e o pensamento de uma quermessefazia meu sangue formigar. Na porta, notei um grupo derapazes em volta de um tocador de realejo. Vestiambluses negros, com dois M vermelhos costurados nas

    costas. A msica do realejo era quase sufocada pelobarulho que os rapazes estavam fazendo, batendopalmas e danando no meio da calada.

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    No centro do grupo estava um rapaz de cabelosnegros, bem magro, mais oumenos da minha idade. Seurosto bonito abria-se num sorriso, enquanto elesapateava, em ritmo acelerado. Com as mos na cintura,ele girava ao ritmo da msica. Repentinamente seus

    olhos negros encontraram os meus. Parou de repente e osorriso foi instantaneamente substi tudo por um olharduro e frio.

    Ei, cara, o que que voc est fazendo nesteterritrio? Aqui domnio dos Mau-Maus. Ns noqueremos nenhum quadrado rondando por aqui.

    Devolvi-lhe o olhar duro, e percebi que os outrosrapazes de bluso preto haviam, silenciosamente, for-mado um pequeno crculo ao nosso redor. O rapazbonito, de olhos frios como o ao, encaminhou-se paramim e me empurrou com o peito, rindo: Qual a suaturma, moleque?

    No tenho turma, respondi. Vim aqui paraentrar na quermesse. crime?

    Um rapaz do grupo avanou para mim.

    Ei, meu chapa, voc sabe o que isto? disse ele,brandindo uma faca aberta. Isto um punhal, cara.Isso vai cortar sua barriga. Quero ver voc a bancar oespertinho comigo! Eu no sou mole como o Israel.

    O rapaz a quem ele chamara de Israel fez sinalpara o outro afastar-se, e continuou: Sabe, um qua-drado pode ser morto num instante. Pode ser que eu omate. Agora, se voc quer viver, melhor pinicar .

    Eu estava com raiva, e pus a mo no bolso, pro-curando minha faca, mas cheguei concluso de que aminha desvantagem era muito grande. No queriaportar-me como covarde, mas sabia que haveria ou traoportunidade para demonstrar minha coragem. Assenticom a cabea e voltei rua acima, em direo PraaWashington, e ao meu quarto. Atrs de mim pude ouvir

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    a quadrilha rindo e apupando: Isto que falar, Israel.Aquele pirralho aprendeu a lio, desta vez. Vai fazer friono inferno antes que ele ponha o nariz aqui de novo.

    Eu estava zangado e frustrado. Passando por

    baixo do pontilho do trem na Av. Myrtle, entrei napraa e sentei-me em um banco. No notei que umgaroto de cerca de treze anos me seguira. Virei-me eolhei para ele, que riu e sentou-se no banco, ao meulado.

    Eles lhe fizeram passar um aperto, no? disseele.

    O que voc est pensando? perguntei. Eu douem todos eles, mas seria um bobo se tosse lutar contratodos de uma s vez.

    Rapaz, as quadrilhas aqui so duronas, disse omenino, tirando do bolso da camisa um cigarro feito emcasa. Matam a gente se no concordar com eles.

    Acendeu o cigarro e notou que eu o observava.

    Voc fuma maconha? perguntou. Meneei acabea, embora soubesse do que estava falando.

    Quer experimentar? Tenho mais um. brbaro,bicho.

    Claro, respondi. Recuara uma vez naquela tarde,e no queria recuar de novo.

    Ele enfiou a mo no bolso da camisa e tirou umcigarro dobrado e amarfanhado. Estava dobrado emambas as pontas, e manchado lateralmente, onde elelambera o papel para col-lo.

    preciso tragar, disse o rapaz. Se no, ele seapaga.

    Ele acendeu o cigarro e comecei a fumar cuida-dosamente .

    No, riu o menino, assim.

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    eu o pegar sozinho. Vou fur-lo atravess-lo com umafaca. Ele olhou para cima, o rosto contorcido e cansado.Parecia mais a face de um macaco velho, do que a deum rapazinho de treze anos.

    E o seu velho, ele tambm um pau dgua?No, eu sou de sorte. Eu nem mesmo tenho um velhoou uma velha, menti. Sou sozinho.

    O menino levantou a cabea: , agora eu tam-bm; espero.

    Depois, animando-se, acrescentou: Bem, ciao.Tome cuidado com as quadrilhas. Eles te matam, se te

    pegarem na rua durante a noite!Ei, e o que voc me diz dessas quadrilhas?

    Quantas so?

    Centenas, disse ele. Rapaz, h tantas que agente nem pode contar.

    O que que eles fazem?

    Brigam, meu chapa; o que mais? Esto sempresaindo para lutar contra outra gang, ou ento ficamperto de casa para defender seus domnios contra al-guma gang invasora. Quando no esto combatendo unscom os outros, esto combatendo com a polcia. Usamtudo o que podem para brigar. Carregam facas, porretes,pistolas, revlveres, soqueiras de bronze, rifles,

    espingardas de cano serrado, baionetas, tacos debeisebol, garrafas quebradas, t i jolos, pedras, correntesde bicicleta... rapaz, qualquer coisa que voc pensar,eles usam para matar. Chegam a afiar a ponta doguarda-chuva, pr pregos nos sapatos, e algumas dasquadrilhas dos italianos carregam navalhas, e colocamlminas de barbear entre os dedos, quando vo darsocos. Fique por aqui, e voc vai ver. por isto que nome uno a eles. Eu s ando pelos becos e ruas escuras, efico longe deles. Mas voc vai aprender; fica por a, quevoc aprende.

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    Ele se levantou e foi andando sem destino pelapraa, desaparecendo no crepsculo. Voltei ao n mero54 da Fort Greene. J estava ficando escuro.

    Captulo 4

    BB AATTIISS MMOO DD EE SS AANNGGUUEE

    VRIAS SEMANAS MAIS TARDE, sa de meuapartamento por volta de oito da noite, e fui at PapaJohn's, numa esquina da Av. Lafayette. Um moo porto-riquenho chamado Tico estava encostado na parede doedifcio, fumando. Eu j me encontrara com ele uma ouduas vezes, e sabia que era perito na faca.

    Ele olhou para mim e disse: Ei, Nicky, voc

    gostaria de ir a uma festinha? Vou apresent-lo aoCarlos, presidente da gang.

    Eu tinha ouvido falar dessas festinhas, masnunca fora convidado, por isso aceitei pressuroso o seuconvite, e acompanhei-o por uma rua transversal;entramos em um poro debaixo de um lance de escadasde um edifcio de apartamentos.

    Tive dificuldade em acostumar os olhos com apenumbra. Um quebra-luz estava aceso a um canto. Umpouco de claridade entrava pelas janelas, e umpouquinho, pela porta, vinda das luzes da rua, l fora.

    Quando entrei no salo, pude ver figuras agar-radas umas s outras , danando ao som de msicasuave. Suas cabeas caam no ombro uma da outra,

    enquanto os ps moviam-se em compasso com a m sicalenta. Um dos rapazes agarrou uma garrafa de vinho portrs das costas do seu par, e cambaleou ao mesmo

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    tempo que rodeava o pescoo da moa com o brao etomava um longo trago da garrafa.

    Vrios rapazes se achavam sentados diante deuma pequena mesa, jogando baralho e fumando ma-

    conha, como vim a saber mais tarde. Uma garrafa devinho fora colocada no meio da mesa.

    Bem ao fundo do salo, longe da lmpada, doiscasais estavam deitados numa esteira. Um casal estavaaparentemente dormindo, um nos braos do outro.Enquanto eu ainda os observava, levantaram, e saramtropeando por uma porta lateral.

    Tico olhou para mim e piscou. H uma cama ali.Eles podem fazer amor quando quiserem.

    Um monte de revistas com figuras de mulheresnuas e semi-nuas estava no cho, aos meus ps.

    Ento, isto uma festinha, pensei.

    Tico agarrou meu brao e empurrou-me salo

    adentro. Ei, turma, este um amigo meu. Vamos faz-lo sentir-se em casa.

    Uma garota loura surgiu das trevas perto da por-ta, e me agarrou pelo brao. Estava com um suter pretoapertado, uma saia vermelha, e descala. Coloquei amo ao redor da sua cintura e disse: Ei, boneca, querdanar comigo?

    Como se chama? perguntou. Antes que eupudesse responder, Tico falou: Seu nome Nicky. Ele meu amigo e um cara muito bom de briga. Pode serque entre na nossa turma.

    A garota deslizou minha frente e ficou bem pertode mim.

    T bom, Nicky, se voc to bom de briga, vamosver se bom tambm para danar.

    Danamos um pouco e depois paramos para ver

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    dois rapazes fazer o jogo da galinha com uma faca. Umdos rapazes estava de p contra a parede, e o outroatirava uma faca em direo aos seus ps. O objetivo eraespetar a faca to perto quanto possvel, semacertar nosps. Se o rapaz recuasse, ele era umgalinha.

    Surpreendi-me desejando que ele ferisse o rapaz.A idia de ver sangue me excitava. Ali de p, comecei arir interiormente, esperando que ele errasse, emachucasse o outro.

    A loura de suter negro me puxou pelo brao:Venha comigo. Quero que voc conhea um cara que muito importante.

    Segui-a at uma sala ao lado. Um porto-riquenhoalto e esbelto estava estirado numa cadeira, com aspernas sobre uma mesinha sua frente. Uma ga rotaestava sentada a cavalo em seu colo, encostada nele, eele soprava fumaa atravs do cabelo dela e sorria.

    Ei! gritou para ns. Vocs no tm educao?

    No sabem que no podem entrar aqui sem pedirlicena? Vocs podem me pegar fazendo alguma coisaque no quero que ningum veja. Riu, virou-se de lado,e deu tapinhas nos quadris da garota com ambas asmos.

    Olhando para mim, ele perguntou: Quem essecara?

    A loura respondeu: meu amigo Nicky. Veio comTico. Tico disse que ele bom de briga.

    O rapaz alto tirou a garota do colo e olhoucarrancudo para mim. Depois arreganhou os dentesnum sorriso e estendeu a mo.

    Toca aqui, Nicky. Meu nome Carlos. Presidente

    dos Mau-Maus.Cuidadosamente encostei minha mo aberta na

    sua e puxei-a para trs, escorregando a palma contra a

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    dele. Esta a maneira de cumprimentar das quadrilhas.

    Ouvira falar dos Mau-Maus. Eles tomaram essenome emprestado dos sanguinrios selvagens da frica.J os vira nas ruas, com seus bluses de couro com dois

    M vermelhos costurados s costas. Usavam chapusalpinos extravagantes, muitos dos quais enfeitados comfsforos de madeira. Quase todos carregavam bengalas eusavam sapatos pontudos e podiam matar um homem apontaps em questo de segundos.

    Carlos acenou com a cabea para o canto da salae eu reconheci o rapaz que vira na quermesse. Aquele Israel, vice-presidente dos Mau-Maus. O rosto de Israel,ao olhar para mim, estava inexpressivo. Seus profundosolhos negros pareciam querer perscrutar minha alma,deixando-me embaraado.

    Descobri mais tarde que o presidente e o vice-presidente esto quase sempre juntos. Protegem-se umao outro no caso de um dos dois ser atacado.

    Quantos anos, Nicky? perguntou Carlos.Dezesseis, respondi.

    Sabe brigar?

    Claro.

    Est disposto a brigar com qualquer um, at coma polcia?

    Claro, respondi outra vez.

    Ei, voc j furou algum ?

    No, repliquei pesaroso, mas falando a verdade.

    Algum j tentou fur-lo ?

    J, respondi.

    ?, disse Carlos, demonstrando renovado in-teresse. E o quefoi que voc fez com o cara?

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    Nada, disse eu, mas vou fazer. S estou es-perando peg-lo de novo, e quando isso acontecer, voumat-lo.

    Israel interrompeu-nos: Escute, meu chapa, se

    voc quer entrar para a nossa gang, precisa ser como

    ns. Somos os mais dures. At a polcia tem medo dagente. Mas no queremos bolhas. Para entrar para anossa quadrilha, no pode ser bolha. T certo? Se vocbancar o galinha, ns cortamos e matamos voc.

    Eu sabia que Israel estava falando a verdade, poisj ou vir a con ta r de ra pa zes qu e t in h a m s id o m ortos porsuas prprias quadrilhas, por terem denunciado umcolega de gang.

    Carlos, ento falou: Duas coisas, rapaz: se vocentrar para os Mau-Maus, para toda a vida. Nin gumpede demisso. Segundo, se a polcia te pegar e voc dero servio, ns acertamos voc quando sair da cadeia, ouentramos na cadeia e acertamos voc l. O fato queacertamos.

    Israel mostrou um sorriso escarninho no rostosimptico: Que tal, menino, voc ainda quer entrar naturma?

    Dem-me trs dias, disse eu. Se eu entrar paraa sua gang quero ir at o fim.

    T bom, meu chapa, disse Carlos, tem trs diaspara pensar. No fim desse prazo, volte aqui. Quero sabersua deciso. Ele ainda estava meio deitado na cadeiracom as pernas sobre a mesa. Atrara a garota para si,outra vez, e estava com a mo esquerda sob a sua saia,ao redor dos quadris.

    Virei-me para sair, e Carlos disse: Ei, Nicky, eume esqueci de lhe dizer: se voc contar a algum... aqualquer pessoa.. . onde estamos, eu o mato antes devoc dizer ai. Morou?

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    Morei, respondi. E eu sabia que ele falava srio.

    L fora, na rua, interroguei Tico: O que quevoc acha, Tico? Acha que eu devo entrar para os Mau-Maus?

    Tico apenas encolheu os ombros. um negcio bom, cara. Se entrar, eles tomam

    conta de voc. Se no entrar, eles so capazes de mat-lo por no ter entrado. Voc no tem muita escolhaagora. Alm disto, voc vai ter que entrar para umaquadrilha, para continuar vivo por aqui.

    Que que voc acha de Carlos ? perguntei, quetipo de sujeito ele?

    cem por cento. No fala muito, mas quan dofala, todo mundo escuta. Ele o chefe, e todos sabemdisso.

    verdade que o presidente escolhe a garota quequiser? perguntei.

    , disse Tico. Tem umas setenta e cinco garotasem nossa gang e o presidente escolhe qualquer umadelas. Cada dia uma diferente, se quiser. Rapaz, elasgostam disso. Voc sabe, namorar o presidente serimportante. Elas brigam para ver quem vai divertir-secom ele. E isto no tudo. A quadrilha cuida dopresidente. Ele tem a parte do leo em tudo o que

    roubamos o que geralmente d para ele pagar oaluguel, a comida e as roupas. Ser presidente um altonegcio.

    Ei, Tico, se voc to bom de faca, por que vocno o presidente ?

    Eu no, meu chapa. O presidente no briga mui-to. Ele tem de ficar para trs e fazer os planos. Eu gosto

    de brigar. No quero ser presidente. disso tambm que eu gosto, pensei. Prefiro

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    brigar... brigar.

    Tico foi p a ra o Pa pa J oh n 's ou tr a vez, e eu volteipara o n. 54 de Fort Greene. Sentia o sangue ferver nasveias ao imaginar o que me esperava. As festinhas, as

    garotas... Porm, acima de tudo, as brigas. Eu no teriamais de brigar sozinho. Poderia ferir tanto quantoquisesse, sem ser ferido. Meu corao comeou a batermais depressa. Talvez eu tivesse a chance de esfaquearalgum. Quase que j podia enxergar o sangueescorrendo pelas minhas mos e pingando na rua. Fizmovimentos com as mos, golpeando o ar, enquantoandava, como se estivesse com uma faca atacando e

    ferindo figuras imaginrias na escurido. Dissera aCarlos que resolveria em trs dias, mas j me decidira.Tudo o que queria era que algum me desse um punhale um revlver.

    Duas noites mais tarde, voltei sede da quadrilha.Entrei, e Carlos veio me encontrar na porta.

    Ei, Nicky, voc chegou bem na hora. H outrorapaz que deseja entrar para os Mau-Maus. Quer ver oritual de iniciao ?

    Eu no tinha idia do que fosse uma iniciao,mas queria assistir. Carlos continuou: Mas quem sabese voc veio para dizer que no quer entrar para a gang,hein?

    No, repliquei. Vim para dizer que quero en trar.Quero brigar. Acho que sou to duro como qualquer devocs, e luto melhor do que a maioria dos outros.

    Bom, disse Carlos, voc pode assistir, e depoisser a sua vez. Temos duas maneiras de saber se o cara covarde. Ou ele fica imvel enquanto cinco dos nossosrapazes mais fortes o surram, ou encosta na parede

    esperando a faca. Se fugir de qualquer uma das provas,no pode entrar para a quadrilha. Este rapaz diz que duro. Vamos ver se mesmo. E depois veremos se voc

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    tambm .

    Olhei para o outro lado do salo e vi o outrogaroto. Tinha cerca de treze anos, espinhas por todo orosto, e longos cabelos negros que caam sobre os olhos.

    Era pequeno e magro, e seus braos caam duros aolongo do corpo. Estava vestido com uma camisa brancade mangas compridas, manchada na frente e repuxadasobre o cinto. Pensei j ter visto aquele rosto espinhentona escola, mas no tinha certeza, pois ele era mais novodo que eu.

    Havia cerca de quarenta rapazes e garotas es-perando ansiosamente o espetculo. Carlos estava nadireo. Mandou que abrissem espao, e todo mundoencostou nas paredes. Carlos mandou que o menino seencostasse na parede nua, e ficou sua frente, com umpunhal aberto na mo. A lmina de ao brilhava mesmona luz fraca.

    Vou dar as costas para voc e dar vinte passosem direo outra parede, disse ele. Voc fica ondeest. Voc diz que duro. Bem, vamos ver se .Quando eu acabar de contar vinte, vou virar e atirar estafaca. Se voc se encolher ou tirar o corpo fora, galinha. Se no, mesmo que a faca acerte em voc, duro, e pode entrar para os Mau-Maus. Morou?

    O menino fez que sim.

    Agora, outra coisa, disse Carlos, levantando afaca diante do nariz do menino. Se ficar com medoenquanto eu estiver contando os passos, sgritar, masentomelhor nunca mais mostrar o nariz por aqui. Seaparecer, ns vamos cortar essas orelhonas, fazer voccomer, e depois arrancar o seu umbigo com um abridorde latas e deixar voc sangrar at morrer

    Os rapazes e garotas comearam a rir e a aplau-dir. Vamos, cara, vamos! gritavam para Carlos.

    Carlos deu as costas para o menino e

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    compassadamente cruzou a sala. Segurava a longa facareluzente pela ponta da lmina e cruzou os braos, coma faca diante dos olhos.

    Um... dois. . . trs. . . A turma comeou a gritar e

    a zombar : Acerta nele, Carlos ! Atravessa os olhos dele!Mostra a cor do sangue dele; rapaz, faz um furo nele.

    O rapazinho estava petrificado de medo, encos-tado parede, parecendo um ratinho que tivesse sidopego por um tigre. Estava tentando desesperadamenteser valente. Seus braos rgidos ao longo do corpo, suasmos aper tadas em punhos minsculos, as unhasenterrando-se na palma da mo. Seu rosto perdera todoo sangue, e os seus olhos estavam arregalados de terror.

    Onze... doze... treze... Carlos contava em vozalta. enquanto media as passadas. A tenso chegou aoauge, medida que rapazes e garotas vaiavam eclamavam por sangue.

    Dezenove.. . vinte. Vagarosamente Carlos virou-

    se e levantou a mo, altura da orelha, segurando afaca pela ponta da lmina, pontuda como uma agulha. Aturba de adolescentes mostrava-se selvagem no seufuror, pedindo sangue. No instante em que ele lanou opunhal para a frente, o menino dobrou-se, cruzando asmos por trs da cabea, e gritando : No ! No ! Afaca chocou-se surdamente contra a parede, a poucoscentmetros de onde estivera a sua cabea.

    Galinha !... galinha !... galinha !... rugiu a turba.

    Carlos ficou com raiva. Os cantos de sua bocaapertaram-se e os seus olhos se franziram. Peguem-no,silvou ele. Dois rapazes avanaram de cada lado da salae agarraram o garoto encolhido de medo, pelos braos,empurrando-o contra a parede.

    Carlos atravessou o salo e parou diante do me-nino que tremia. Galinha, falou ele entre dentes.Galinha ! eu sabia que era covarde desde a primeira,

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    vez que te vi. Devia te matar.

    Os rapazes por toda a sala aproveitaram-se dotema : Mate ! Mate esse sujo !

    Sabe o que fazemos com os covardes ? pergun-

    tou Carlos. O menino olhou para ele tentando mover oslbios, mas nenhum som saa.

    Eu vou lhe contar o que fazemos com galinhas,disse Carlos. Cortamos as asas, para no voarem mais.

    Arrancou a faca que estava espetada na parede demadeira. Estiquem o bicho! disse ele.

    Antes que o menino pudesse mover-se, os doisrapazes, com um repelo, abriram-lhe os braos,afastando-os do corpo. Movendo-se to rapidamente quecom dificuldade podia-se acompanhar o movimento dasua mo. Carlos levantou a faca em um golpe rpido,com toda a fora, e enfiou-a quase at o cabo na axila dogaroto. O menino contorceu-se e gritou de dor. O sanguesaiu aos borbotes, e em poucos instantes manchou devermelho sua camisa branca.

    Arrancando o punhal da carne do garoto, passou-o rapidamente para a outra mo. Veja, cara, jactou-seele, levantando-o ameaadoramente e enterrando-o naoutra axila, sou canhoto tambm.

    Os dois rapazes largaram o menino e ele caiu no

    cho, com os braos cruzados sobre o peito e as mosapertando lamentosamente a carne dilacerada. Elegritava e gemia, rolando pelo cho. A camisa estavaquase que completamente ensopada de sangue, de umvermelho vivo.

    Tirem isso daqui, ordenou Carlos rispidamente.Dois rapazes avanaram e, agarrando-o pelos bra os,

    puseram-no de p. Ele atirou a cabea para trs e gritouem agonia, quando eles lhe levantaram os braos. Carlostapou-lhe a boca e o grito cessou. Os olhos do garoto,

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    arregalados de terror, olhavam-nos por sobre a mo deCarlos.

    Vai para casa, galinha! Se eu ouvir voc gritarmais uma vez, ou se voc nos delatar, vou cortar sua

    ln gu a ta m bm , t ? En qu a n to fa la va , leva n tou opunhal, de cuja lmina o sangue ainda corria sobre ocabo de madreprola. Morou? repetiu Carlos.

    O garoto fez que sim com a cabea.

    Os rapazes levaram-no meio arrastado pelo choat a calada. A quadrilha de adolescentes no salogritou quando ele saiu: Vai para casa, galinha!

    Carlos voltou-se. Quem o seguinte ? pergun-tou... olhando bem nos meus olhos. A turba silenciou.

    Percebi ento que eu no estava amedrontado. Defato, eu tinha ficado to envolvido com as facadas e ador que estava gostando do espetculo. A vista de todoaquele sangue me dava uma sensao selvagementedeliciosa. Eu estava com inveja de Carlos. Mas agora eraa minha vez.

    Lembrei-me da declarao de Carlos que eu podiaescolher a forma da minha iniciao. O bom senso medizia que Carlos ainda estava enraivecido. Se eupermitisse que ele atirasse o punhal em mim, iria tentaracertar-me de propsito. Dentre as duas provas, pareciamais sbio escolher a outra.

    Tem outro covarde aqui? pilheriou Carlos.

    Avancei para o meio da sala e olhei minha volta.Uma das garotas, esbelta e alta, com calas compridasbem justas, gritou: O que que h, menino, voc estcom medo, ou o que ? Sobrou algum sangue, se vocno tem. A turba vaiou e gritou rindo. Ela tinha razo.

    O assoalho, perto da parede onde o menino estivera,estava coberto com uma camada grossa de sangue.

    Respondi: Eu no. No tenho medo. Pode me

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    um dos favoritos. Mais tarde fiquei sabendo que eles ochamavam Coruja porque era capaz de ver to bem denoite como de dia. Lutava na linha de frente, durante osquebra-paus, para que ele avisasse os outros dapresena de quadrilhas inimigas, quando elas se

    aproximassem. Tinha olhos grandes e rasgados, e umnariz recurvado que certamente fora quebrado diversasvezes. Perdera metade de uma orelha ao ser atingido poruma tbua com um prego comprido. Isso aconteceradurante um tumulto no ptio da escola, e o pregorasgara sua orelha, arrancando mais da metade. Corujaera um garoto baixo e gordo, e tinha um olhar maldoso,

    o pior que eu j vira.Paco! No cheguei a ver Paco. Ouvi-o dizer o meu

    nome, s minhas costas: Ei, Nicky. Virei-me para olhare ele me deu um murro nas costas, pouco acima dacintura. A dor foi excruciante. Parecia que ele merompera o rim. Procurei tomar flego, mas ele megolpeou de novo. Quando eu me endireitei e coloquei as

    mos s costas para apertar o lugar dolorido, um dosoutros rapazes me esmurrou no estmago com tantafora que perdi o flego. Senti que comeava a desmaiarde dor, quando algum me deu um soco no rosto, e euouvi o osso do nariz quebrar-se sob o impacto.

    No tive oportunidade de revidar. Senti-me cair.Percebi que algum me agarrou pelo meu cabelo

    comprido. Meu corpo despencou no cho, mas minhacabea continuava suspensa pelo cabelo. Um deleschutou-me o rosto com um sapato sujo, e pude sentir aareia em meus lbios e rosto. Eu estava levando chutesem todas as partes do corpo e, o que estava meagarrando pelo cabelo, golpeava-me na tmpora.

    As luzes ento se apagaram e eu no me lembro

    de mais nada.Algum tempo depois percebi que algum estava

    me sacudindo e estapeando-me as faces. Ouvi algum

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    senti-me arrepiar.

    Os Mau-Maus deveriam reun ir-se na PraaWashington perto de De Kalb. Deveramos estar l, porvolta das nove da noite. O nosso conselheiro de guerra j

    havia se encontrado com o conselheiro de guerra dosBishops, uma quadrilha de rapazes de cor, para marcara hora e o lugar. Dez da noite no parque atrs do 67.Distrito.

    Israel disse: Leva seu revlver. Todos os ou trosrapazes tm armas. Alguns fizeram suas prpriasespingardas, e Heitor tem um rifle serrado. Vamos daruma lio nos Bishops. Se tivermos de matar,mataremos. Mas se cairmos, cairemos lutando. Somosos Mau-Maus. Os tais. Os Mau-Maus africanos bebemsangue, cara, e ns somos iguais a eles.

    A gang j estava reunida, quando eu cheguei praa s oito e meia. Haviam escondido suas armas nasrvores e na grama alta, com medo que a polciachegasse. Mas naquela noite no havia polcia, e Israel eCarlos estavam dando ordens. s dez horas havia maisde cem rapazes vagueando pela praa. Alguns delestinham revlveres. A maioria tinha facas. Uns poucos,tacos de beisebol, porretes com pregos nas pontas, ouclavas feitas em casa. Outros tinham correntes debicicleta, que eram arma perigosa quando batiam nacabea de algum. Carlos tinha uma baioneta de cerca

    de sessenta centmetros, e Heitor, a sua espingardaserrada. Alguns rapazes deveriam ir dois quarteiresabaixo, passar por trs do ptio da escola, na Av. Park,para cortar a retirada dos Bishops. Deveriam esperar atouvir o barulho da luta e ento atacar pela retaguarda.O restante avanaria da R. St. Edward, ao lado daescola, tentando forar os Bishops a recuarem para

    onde o nosso peloto de retaguarda cortaria suaretirada.

    Movemo-nos s i lenciosamente, apanhando nossas

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    armas nos esconderijos ao sairmos. Tico estava ao meulado, rindo. Que tal, Nicky, est com medo?

    Rapaz, eu no ! isto que eu estava esperan do,disse, abrindo o bluso para que ele pudesse ver o meurevlver.

    Qu a n ta s ba la s tem a? pergu n tou . Es t ch eio,

    menino. Cinco balas. Puxa, disse Tico, assobiandobaixo, no est nada mal. Voc deve pegar um daquelesba s ta rd os pr etos es ta n oite, s em d vida . Eu ? Ficocom a minha faca.

    Dividimo-nos em grupos pequenos, a fim de pas-

    sarmos despercebidos pela delegacia que havia na es-quina das ruas Auburn e St. Edward. Reunimo-nosdefronte daescola, e Carlos deu o sinal de ataque.

    Corremos ao redor do edifcio, e entramos noptio. Os Bishops estavam nos esperando. Eia! eia!matem! peguem! gri tvamos, enquanto enxamevamosem direo ao ptio, e corramos pelo espao aberto que

    separava as du