a grande chantagem - margery hilton

116
A GRANDE CHANTAGEM THE DARK SIDE OF MARRIAGE MARGERY HILTON Karen não via Nick Radcliffe há dois anos. Nesse tempo, tinha comido o pão que o diabo amassou, tentando arrancar da alma a dor de ver seu casamento desfeito. Sim, ela precisava esquecer aquele homem que nunca a amou, que a condenou sem provas. E, no entanto, ele estava agora à sua frente, com um pedido absurdo: — Você vai voltar a viver comigo e fingir que ainda é uma esposa apaixonada, pelo bem de minha mãe, que não sabe o que houve entre nós e está à morte. — E agora? De onde Karen tiraria forças para conviver com um homem que a desprezava... e sem deixar que ele percebesse que ela ainda o amava? Digitalização: Ana Cris Revisão: Cris Paiva

Upload: fabiana-nogueira

Post on 18-Jul-2015

1.922 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Romance de banca

TRANSCRIPT

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 1/116

 

A GRANDE CHANTAGEM

THE DARK SIDE OF MARRIAGE

MARGERY HILTON

Karen não via Nick Radcliffe há dois anos. Nesse tempo, tinha comido o pão

que o diabo amassou, tentando arrancar da alma a dor de ver seu casamentodesfeito. Sim, ela precisava esquecer aquele homem que nunca a amou, que acondenou sem provas. E, no entanto, ele estava agora à sua frente, com umpedido absurdo: — Você vai voltar a viver comigo e fingir que ainda é umaesposa apaixonada, pelo bem de minha mãe, que não sabe o que houve entrenós e está à morte. — E agora? De onde Karen tiraria forças para conviver comum homem que a desprezava... e sem deixar que ele percebesse que ela aindao amava?

Digitalização: Ana Cris

Revisão: Cris Paiva

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 2/116

 

EDITORA EDIBOLSO — GRUPO ABRIL Caixa Postal 2372 — São Paulo

Copyright: MARGERY HILTONTítulo original: "THE DARK SIDE OF MARRIAGE"

Publicado originalmente em 1978 pela Mills & Boon Ltd., Londres, InglaterraTradução: MARIA LUIZA LOPEZCopyright para a língua portuguesa: 1981EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São PauloUma empresa do GRUPO ABRILComposto e impresso nas oficinas da ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIALFoto da capa: TRANSWORLD

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 3/116

 

CAPITULO I

"Preciso vê-la."Karen Radcliffe ficou parada, sentindo tudo rodopiar em volta enquanto a frasedo cartão que tinha nas mãos martelava sem parar em sua cabeça. Ao voltar das compras, encontrara o cartão debaixo da porta.

Então Nick tinha voltado... e estivera ali!

Karen desabou na cadeira mais próxima. Sentia as pernas bambas e quasedeixou o cartão cair no chão. Não cessava de ler e reler suas lacônicaspalavras: "Preciso vê-la. Precisamos nos encontrar nas próximas vinte e quatro

horas. Festa até as nove. Casa logo depois. Nick".Por mais que se esforçasse, não conseguia entender o significado daquelaspalavras. Começou a sentir a velha angústia; isso era típico de Nick! Nenhumaconsideração ou gentileza, apenas ordens imperiosas e arrogantes. O que éque ele queria? Por que voltara após dois anos de silêncio e de tudo o queacontecera? Na certa esperava encontrá-la ansiosa, pronta para cair a seuspés.

Virou o cartão e leu o endereço que lhe era tão familiar... Havia sido o de seu

lar um dia, e ainda seria se...Karen levantou-se com o olhar amargurado. Era tarde demais paraexplicações, nada mais restava para ser dito. O melhor seria rasgar o cartão eignorar o bilhete, como se nunca o tivesse recebido. Foi até a janela. Criançasbrincavam do lado de fora. Karen tocou distraidamente a aliança queconservava ainda no dedo e mordeu o lábio; sentia-se trêmula e com medo.Continuava remoendo aquelas palavras e tentando buscar o significado delas.Será que Nick tinha mudado de idéia? Talvez quisesse sua liberdade total,apesar de todas as promessas feitas no passado. Quem sabe encontrara uma

outra mulher...

 As batidas na porta trouxeram-na de volta à realidade e, sem querer, sentiu ocorpo se aquecer na esperança de que talvez fosse Nick. Ele estava ali, dooutro lado da porta! Não conseguiu tomar nenhuma atitude; estava paralisada eansiosa. As batidas se repetiram e ela então ouviu uma voz familiar:

— Está aí, sra. Radcliffe? Sou eu!

Era a sra. Biggins, sua senhoria. Decepcionada, Karen abriu a porta paraaquela senhora de feições magras e avental surrado.

— Imaginei que já estava de volta, querida. Vim avisar que alguém veio

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 4/116

 

procurá-la, assim que você saiu.

— Sim, eu sei — respondeu Karen.

Não fez menção de convidá-la a entrar, pois sabia que as conversas da sra.Biggins eram intermináveis e, às vezes, muito inconvenientes.

— Ele deixou um bilhete, não é? — ela insistiu. — Fui eu quem sugeriu, poisele disse que era importantíssimo vê-la. Um belo rapaz! Alto, moreno,elegante... O tipo de homem que faz uma garota perder a cabeça! — disse elae cutucou Karen com o cotovelo.

Isso a irritou, pois, mesmo sabendo que Nick tinha realmente uma bela figura,não gostava do modo como aquela mulher curiosa e intrometida o descrevera. A sra. Biggins, no entanto, não era de desistir facilmente.

— Está chateada por não tê-lo encontrado? — perguntou ela, olhando paraKaren. — Eu disse a ele que podia esperar em minha casa, se não seincomodasse com as crianças, é claro... Sabe como elas são... Mas, afinal, nãose pode repreendê-las o tempo todo. A infância é tão curta, não é mesmo?

Enquanto fazia uma pausa para respirar, a sra. Biggins lançou um olhar penetrante para dentro do quarto, como se esperasse ver algum homem por trás de Karen. Por fim, disse relutante:

— Bem... afinal ele lhe deixou um bilhete... Passou-o por baixo da porta, é?

— Foi, sim — respondeu Karen. — A senhora foi muito gentil em convidá-lo aesperar. Bem, se me dá licença, estou muito ocupada.

E, dizendo isso, fechou a porta, a despeito da profunda decepção estampadano rosto da sra. Biggins.

Karen começou a pensar — e não era a primeira vez — se não seria melhor procurar um outro lugar para morar. A sra. Biggins era gentil e cobrava umaluguel muito razoável, mas tinha o grave defeito de ser mexeriqueira e devigiar cada movimento de Karen, inclusive os telefonemas que dava e recebia.Mas não era nada fácil achar um lugar decente em Londres para morar, eaquela casinha velha e gasta havia caído do céu.

Karen morava no andar superior da casa e, quando queria, podia fechar a portae se isolar do barulho das crianças da sra. Biggins e do cheiro de peixe fritoque vinha do andar inferior. As paredes descascadas e o ambiente familiar lhedavam uma sensação de aconchego. Estava a poucos passos do metrô que alevava todas as manhãs à firma onde trabalhava como secretária. Na verdade,era uma sorte morar num lugar como aquele, pois ali estava conseguindoreconstruir a sua vida e esquecer um passado doloroso demais para os seus

vinte e dois anos.Embora o choque de sua separação já estivesse diminuindo, restava ainda

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 5/116

 

uma certa dor, que o cartão recém-recebido veio aumentar.

Com aparente tranqüilidade, ela arrumou a mesa e colocou uma chaleira deágua no fogo. Depois, em meio a pensamentos desencontrados e excitantes,preparou mecanicamente uma refeição simples: torradas com manteiga e um

ovo cozido. Algo imponderável parecia ter inundado aquele pequeno quarto,até há pouco tão sossegado.

Seu marido Nick!

Esse pensamento silencioso descontrolou-a subitamente, fazendo com quederrubasse água fervendo na mão, enquanto preparava o chá. Não podia haver outra explicação, ele havia encontrado outra pessoa. Dois anos era temposuficiente para um homem como Nick arrumar dúzias de garotas, sobretudo na  América do Sul, onde passara a maior parte desse tempo. Na certa as

mulheres davam em cima dele como moscas no mel.Karen apertou os punhos, lutando contra a antiga dor que ela julgava ter superado. Nick havia assegurado que jamais concordaria com a separação,que não facilitaria as coisas e que colocaria todos os obstáculos possíveis.Caberia a ela esperar os dois anos determinados por lei e depois tratar dadocumentação necessária para a homologação do divórcio.

E agora estava ele à sua procura! Talvez tivesse mudado de idéia, o que eraaté engraçado. Mas, para isso, poderia simplesmente tentar um acordo através

de um advogado. Afinal, milhares de casais procedem desta forma, usando osmeios legais.

Não! Decididamente não era só isso. Nick queria alguma coisa! Senão nãoteria vindo pessoalmente, nem teria deixado um recado tão intimidador.

Despertou desses pensamentos enquanto mastigava um pedaço de torrada.Por mais que tentasse não conseguia engolir nada. Por fim desistiu da refeição,afastando o prato e a xícara de sua frente. O que fazer?, perguntou-se.

 As emoções sobrepunham-se à razão. Não seria uma enorme tolice rever 

Nick? Isso provavelmente poria por água abaixo seus esforços para esquecê-lo. Ele que arranjasse um outro jeito de se comunicar com ela. Não!Definitivamente, não queria vê-lo.

Decidiu mandar-lhe uma carta. Uma carta tão fria quanto a que tinha recebidoao se separarem. Nela Nick lhe comunicava que poderia receber a mesada nobanco durante a sua ausência e que qualquer outro assunto deveria ser resolvido com o seu advogado, o velho dr. Collins. Sim, ia escrever para ele.Mas onde estava o endereço?

Levantou-se e foi até o armário. Tirou de dentro a caixinha preta metálica ondeguardava certidões, documentos e antigos papéis de família. Certamente

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 6/116

 

estaria lá o endereço do dr. Collins.

Os papéis da caixa lhe avivaram lembranças do passado. O retrato de suamãe, a casa onde passara belos momentos em sua infância... Fora um ternoperíodo, quando Nick, Lisa e Vince eram apenas o futuro. Um futuro oculto em

nuvens negras.

Karen apressou-se em enxugar as lágrimas. Já chorara demais por Nick, nãoqueria chorar mais, acontecesse o que acontecesse! Por baixo da papeladaestava o velho, caderno de endereços. Folheou tristemente as páginasamareladas e não conseguiu encontrar o do dr. Collins. Mas havia um modo dedescobrir, por meio da Kent Consultores. Passaria por lá amanhã, na hora dealmoço.

  Apanhou novamente o cartão. Maldito Nick! Por que não podia ser mais

objetivo? Por que procurar por ela novamente? Por que o encontro no Fiesta,se havia tantos outros lugares?

Lágrimas brilhavam em seus olhos enquanto tentava ajeitar os pratos sobre apia. O Fiesta... centro dos aficionados da música flamenga, onde haviam tido aprimeira briga de namorados e Nick a abandonara impetuosamente; onde ummês depois transbordava de felicidade quando ele a pediu em casamento. Eagora Nick escolhia o Fiesta novamente para selar o fim de tudo? Era irônico eassustador ao mesmo tempo.

Enxugou a louça e sentiu aumentar cada vez mais a sua inquietação. Não secontendo, Karen apanhou o casaco e a bolsa e saiu precipitadamente doquarto. Passou o restante da tarde perambulando distraidamente pelas ruas.Entrou em um cinema e viu apenas um pedaço do filme; saiu e tomou um cafénum bar solitário. Já eram mais de nove horas quando voltou para casa.

Quando chegou diante da porta, olhou involuntariamente para baixo. Não havianenhum movimento anormal na casa da sra. Biggins. Ninguém a procuraradurante a sua ausência...

Da janela, viu a garota do prédio vizinho abrir a porta para o namorado. Fechoulentamente a cortina, sentindo um pesado manto de solidão e melancoliaabater-se sobre o seu pequeno mundo, sobre a sua vida de agora... Nãorestava nada a fazer a não ser tomar um banho quente e ir dormir.

Mas era tão desconfortável! Em primeiro lugar, não tinha um banheiro privativo.Usava um banheiro comum no corredor da casa, o que não era nada íntimo, esempre se sentira constrangida com isso. Depois, havia a questão da porta.Seu maior pavor era o de ficar trancada do lado de fora do quarto, pois suaporta, além de bater com a maior facilidade, tinha uma fechadura muito velha e

usada, que constantemente emperrava.Karen nunca se esqueceu do dia em que a porta bateu, forçando-a a descer ao

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 7/116

 

térreo de penhoar e cabelos molhados para pedir uma chave sobressalente.Por coincidência, a sra. Biggins tinha saído. Apesar da gentileza do sr. Bigginse dos meninos, ela não se lembrava de ter passado por tanto constrangimento.Desde aquele dia jurou para si mesma que nunca mais deixaria aquilo se

repetir. O banho, portanto, era sempre antecedido de cuidadosos preparativospara calçar a porta e evitar uma batida acidental. Só depois de tudo verificadoconseguia relaxar e gozar convenientemente a ducha.

 Alguém havia apagado as luzes da escada quando Karen saiu do banheiro.Não era o hábito da casa, mas, como já estivesse bastante familiarizada com ocaminho, ela foi tateando pelo corredor até o seu quarto. Chegando à porta,deixou a toalha sobre a balaustrada. Seu coração parou ao tocar na maçaneta,pois em vez de a porta estar entreaberta com uma sandália de calço, como decostume, estava encostada e a sandália havia sumido. Olhando pela fresta,

Karen viu luz dentro do quarto. Mas estava certa de que tinha apagado a luz!

Um arrepio percorreu-lhe a espinha à medida que se aceleraram as batidas deseu coração. Seriam ladrões? Não! Impossível que algum ladrão entrasse emseu quarto sem que a sra. Biggins o visse, já que a sala ficava bem em frente àporta de entrada. Talvez as crianças tivessem planejado pregar-lhe um susto...Mas isso também era improvável, já que nos dois anos em que morava ali elasnunca tinham feito esse tipo de brincadeira com ela. Então, o que seria? Nada,talvez o vento, ou simplesmente um excesso de imaginação.

Entrou cautelosamente no quarto, deixando a porta bem aberta e com umavontade louca de gritar. Tudo parecia normal. As cortinas continuavamfechadas e não havia o menor sinal de intrusos. Apenas a sua sandália estavado lado de dentro, a poucos passos da porta. Talvez fosse um gato? Quebobagem, na casa não havia gatos! Pensando nisso foi entrando no quartomais tranqüila, mas, ao tropeçar numa cadeira, levou um susto e o som queveio do dormitório a deixou totalmente paralisada. Com os olhos arregalados,levou instintivamente a mão à garganta, tentando reagir contra o terror que seapossava dela. Vislumbrou, então, uma silhueta alta e ereta junto ao batente da

porta. Karen estava desnorteada, sem saber o que fazer.— Você! — conseguiu afinal sussurrar.

— Eu, sim — afirmou Nick, caminhando para a saleta de um modo tão naturalque parecia viver ali há anos. — Será que a assustei?

Karen esforçava-se para manter a calma. Com muita dificuldade respondeu,agressiva:

— O que está fazendo aqui? Como se atreveu a entrar assim no meuapartamento?

— A porta estava aberta — respondeu ele, dando por encerradas as

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 8/116

 

explicações.

E sempre com a mesma atitude indolente e auto-suficiente, dirigiu-se à portado corredor e bateu-a com tanta força que Karen deu um pulo para trás.

— O que está fazendo?

— Estou fechando a porta — disse ele; virou-se então com as mãos nos bolsosdo paletó e ficou parado, olhando-a com um ar irônico. — Achei que você nãoatenderia ao meu pedido.

— Então, pensou mesmo que eu ia largar tudo... para correr ao seu encontro?E pretensão demais!

— Ainda conserva a mania de gaguejar quando está nervosa, meu bem? Vejoque não mudou nada...

— Também não posso dizer que você tenha mudado! — retrucou Karen. —Continua sempre arrogante! Acho que até mais do que antigamente! Naverdade, não sei como pude me apaixonar por você um dia. Você ésimplesmente...

— Gostaria que me poupasse da velha discussão... — disse ele secamente. —Não tenho a mínima disposição de recomeçar com isso. Basta uma vez parabancar o idiota.

— Saia daqui! — gritou ela, furiosa. — Não tenho nada para dizer a você!

Nada!— Mas eu tenho e não pretendo sair daqui antes de fazê-lo.

— Então diga logo e dê o fora! Se é a liberdade que veio pedir, não precisavater se dado ao trabalho; há dois anos já lhe tinha oferecido, quando meameaçou!

— Então é nisso que está pensando? — Havia desprezo em sua voz. — Vocênão passa mesmo de uma ordinária...

 A dureza daquelas palavras chocou-a profundamente. Sentiu reabrirem-se as

velhas feridas e, correndo em direção à porta, gritou, fora de si:

— Isso é o que tinha para falar? Pois bem, já o disse! Agora caia fora!

 Abriu a porta num arranco e ficou esperando, desafiadora.

Nick ficou parado, encarando-a com um brilho de ódio nos olhos. Apesar dosesforços para se conter, sua expressão traía a raiva que sentia. Finalmentemoveu-se para um canto da sala e disse:

— Não vim por sua, causa, e sim por Elizabeth.

— Elizabeth? — Karen surpreendeu-se. — Mas o que há com ela? Sofreualgum acidente?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 9/116

 

Nick sacudiu os ombros com pesar e respondeu:

— Elizabeth está doente.

— Oh, isso é horrível! — balbuciou ela, deixando a mão cair da maçaneta. —E... é sério?

— Ela não escapará...

Karen fechou os olhos por um instante, após ouvir aquelas palavras terríveis.Não podia ser verdade! Elizabeth, a mulher com quem ela convivera durantealguns meses e que chegara a amar como a uma verdadeira mãe... Elizabeth,a quem Nick devia tanto, e por quem ele seria capaz de fazer qualquer coisa...Não, definitivamente não podia ser verdade o que acabara de ouvir... E noentanto bastava olhar para Nick para perceber que era.

 Aquilo estava realmente acontecendo. Algo que soava como um pesadelo, masalgo real.

— O que aconteceu, afinal? Quando foi que você soube? — perguntou, aflita.

— Soube ontem, ao chegar... Escute, Kari, você não tem nada aí para beber?— perguntou com naturalidade, sem perceber que usara o apelido com quecostumava chamá-la na intimidade.

— É terrível... Estou com medo, Nick... — murmurou. — Olhe, acho que sótenho licor e limonada... Oh, espere aí, ainda há um resto de rum. Você quer se

servir?— Está bem... — disse ele, apanhando um copo. Já não havia mais em seurosto vestígios de ressentimento e tristeza. Olhou para Karen e perguntou: —Você não quer tomar um?

— Não, obrigada — respondeu, perturbada com a proximidade dele. Aoperceber que o penhoar estava ligeiramente aberto, fechou-o com rapidez eapertou fortemente o cinto. — Eu... eu vou tomar um copo de leite combiscoitos antes de dormir.

Ele a examinou detidamente e, antes que ela se afastasse, sorriu com ironia eperguntou:

— Ainda toma o seu leite com biscoitos antes de se deitar?

— É um hábito, você sabe... Nick, pelo amor de Deus, fale-me de Elizabeth!

— Eu não tenho muito o que contar! Não sabia de nada, ninguém me contounada — disse ele, deixando-se cair numa poltrona, com uma expressãoacusadora. — E você, nunca mais esteve com ela?

— Não, é claro que não! — exclamou. — Afinal, concordamos que seria melhor para ela que... Bem! Nunca estive realmente convencida disso. Estávamosapenas protelando uma decisão. Cedo ou tarde Elizabeth tinha de saber.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 10/116

 

— Não! Não tinha! Não agora, depois de tudo...

— Pois saiba que eu senti muita falta dela.

— Sentiu mesmo? — perguntou, sarcástico. — Isso me surpreende, sabe? Nãoacha que é tarde para remorsos?

— Ouça aqui, Nick, não estou disposta a recomeçar com brigas estúpidas.Sinto por Elizabeth, quer você acredite ou não. E, se eu puder fazer algumacoisa, é só falar. Mas...

— Há algo, sim, que você pode fazer! — interrompeu-a bruscamente. — Edesta vez vai fazer a coisa direito, sem erros, pelo menos uma vez nesta suavida de mesquinharia e egoísmo!

— Grosseiro! Mal-educado! Saia daqui antes que... — Mas ela se calou ao

sentir as mãos de Nick em suas costas.Sem oferecer-resistência, deixou que os dedos dele tocassem sua pele macia,enquanto chorava baixinho e gemia de prazer. Subitamente, com a mesmarispidez com que a segurara, ele a soltou e afastou-se com os olhos brilhandoe um sorriso duro e cruel.

Foi então até a mesa para se servir de bebida e, ao voltar, disse:

— Estou aqui para propor uma trégua, embora eu não saiba se estou agindocorretamente.

— Uma trégua, Nick? O que quer dizer com isso? Sem olhar para ela,respondeu:

— É melhor eu contar do princípio.

Havia se inteirado da doença de Elizabeth dois meses atrás, quando receberauma carta dela dizendo que se sentia muito cansada ultimamente e quedecidira passar uma temporada com os Mitchells. Karen nunca ouvira falar,neles, sabia agora que eram amigos de longa data de Elizabeth e haviam sefixado em Marbella depois de se aposentarem. Ali viviam uma velhice pacífica

numa linda casinha, e freqüentemente escreviam à amiga convidando-a paraque os visitasse.

 A carta seguinte de Elizabeth, Nick a recebera três semanas depois. Nela diziaestar muito bem na companhia dos amigos, mas sentia f muito a falta dele e deKaren, e esperava estar em casa no fim do mês para que eles a visitassem.

Karen engoliu em seco ao ouvir as palavras dele. Então Nick tinha mantido osegredo durante todo o tempo em que estivera na América do Sul, fazendoElizabeth crer que o casamento deles estava em perfeita ordem e que Karen

estava com ele no exterior!— Oh, Deus! — exclamou ele, desolado. — Acho que você tinha razão...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 11/116

 

devíamos ter contado a ela. Elizabeth teria ficado magoada e sentida, mas como tempo aceitaria o fato. E agora... é tarde!

Karen concordou silenciosamente, embora tivesse vontade de acusá-lo. Ela jamais tinha concordado com esse segredo absurdo. E sabia por que ele havia

agido assim. Medo de que Elizabeth, com a sua força e personalidade, seempenhasse em reaproximá-los. Não desistiria enquanto não conseguissereconciliar a vida daquele que, para ela, era um verdadeiro filho e da mulher que ele havia escolhido para esposa. Elizabeth amava-os de todo o coração enão merecia ser enganada por todo esse tempo. Karen pensou nisso mas nãodisse, pois seria muito inoportuno.

Por outro lado, talvez tivesse sido melhor assim. Se Elizabeth houvesseconseguido reconciliá-los, provavelmente descobriria o verdadeiro motivo dabriga, o que para ela seria um sofrimento muito grande. Sim, talvez Nick, semconsciência do que fazia, tivesse optado pela melhor solução. Karen sentiu umarrepio ao pensar nisso.

— Sim, é tarde demais... — murmurou ela, retomando a frase de Nick. — Estoucom tanto medo... Pobre Elizabeth!

— Mas não é tarde demais para dar a ela uns últimos momentos de felicidade.

Enquanto falava, segurou a mão de Karen entre as suas, olhando para ela comuma expressão de fria determinação.

— É claro que não! Se eu puder fazer alguma coisa, será de todo o coração! Acredite ou não, Nick, apesar de não conhecê-la tão bem quanto você, aprendia amá-la e a respeitá-la durante a nossa curta convivência. E o fim do nossocasamento não alterou em nada os meus sentimentos em relação a ela!

— Ótimo! Isso torna as coisas mais fáceis para mim, para que eu possa lhedizer o porquê da minha presença aqui esta noite.

 Apesar de se assustar um pouco com as últimas palavras de Nick, Karen ficouatenta, procurando manter a serenidade. Ele se levantou, deu alguns passos,

como se não soubesse por onde começar, e finalmente disse:— Eu e Elizabeth tivemos uma longa conversa esta tarde, e ela manifestou odesejo de voltar a Dellersbeck. Ela nasceu lá e passou ali a maior parte davida. Foi só depois da morte de James que a família a pressionou para mudar de cidade. Por isso veio se instalar no apartamento em Granton Place. — Nickdeu um longo suspiro e balançou a cabeça.

— Mas você alugou a casa, não foi? — perguntou Karen. — Não chegou avendê-la...

— Não! — respondeu Nick. — Nunca permiti que ela se desfizesse da casa. Aluguei-a por alguns meses a uma construtora. Agora está vazia e hoje liguei

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 12/116

 

para o corretor, pedindo para não alugar mais a casa. Amanhã darei um pulo lápara fazer alguns arranjos e creio que, na próxima semana, já poderei levar Elizabeth.

Karen não pôde evitar de sorrir com amargura. Sempre o mesmo Nick! Quando

tomava alguma decisão, ia até o fim.

Essa determinação nunca lhe faltou, e graças a ela Nick, um rapaz pobre, tinhachegado à liderança de um complexo centro de engenharia e cálculos comcontratos pelo mundo todo. Sim, era preciso reconhecer esse mérito em Nick.Era o que ela 'mais amava nele. Isto e a sua incrível devoção por Elizabeth, aresponsável direta pelo sucesso dele.

— Fico contente com isso... — disse ela. — Acho que nada a faria mais felizque voltar a Dellersbeck.

— É... — concordou Nick. — Só que tem mais um detalhe. Karen percebeuuma súbita alteração em sua voz e em suas atitudes.

— O que quer dizer? — perguntou ela.

— A família... aqueles a quem ela ama, e que devem estar perto dela.

— Oh, é natural! — exclamou Karen nervosamente, para depois perguntar,desconfiada: — Você quer que eu vá visitá-la?

— Quero muito mais que isso,

— Não estou entendendo...

— Quero que venha a Dellersbeck comigo e fique lá enquanto Elizabethprecisar de nós.

Karen estava a ponto de concordar, em parte motivada pela pena que sentia deElizabeth, e em parte pela atração que a personalidade de Nick exercia sobreela. Mas refez-se imediatamente ao pensar nas conseqüências.

— Sim... é claro... — balbuciou, Perturbada. — É... é claro que irei com vocêpara vê-la... mas não poderei ficar! Afinal, eu tenho um emprego! Poderia tirar 

uns dois dias de folga para ir até lá, mas...

— Você não está disposta a colaborar, Karen? Ou está deliberadamente sefazendo de desentendida?

— Não! Não é isso... — disse Karen, quando se deu conta do verdadeirosignificado das palavras de Nick. — Oh, não! Você não pode estar querendo...

— É exatamente o que estou querendo — ele a interrompeu com extremadureza. — Você irá comigo a Dellersbeck... como minha esposa!

— Oh, não... não! Eu não poderia... não depois de...— Você pode e irá! — Seus olhos brilhavam intensamente quando Nick a

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 13/116

 

agarrou pelos ombros e a forçou a olhar para ele. — Iremos juntos aDellersbeck, e vai fingir ser minha mulher. Será romântica e carinhosa, comose nada houvesse acontecido. Será minha mulher para todos os efeitos e atéquando eu julgar que seja necessário e suficiente!

— Não pode estar falando sério! — disse, tentando se desvencilhar das mãosdele. — Então acha que é possível fingir amor e amizade, como se nadahouvesse acontecido?

— Acho... e nunca falei tão sério em minha vida — disse ele, incisivo. — E nãome venha dizer que não sabe fingir, porque eu a conheço bem demais! Ouçabem, querida Karen, se não colaborar comigo, serei forçado a contar tudo aElizabeth. Tudo, entendeu bem? Como acha que vai ficar a bela imagem daminha inocente esposinha e de Vince Kayne? O que acha que vai acontecer aElizabeth?

— Não! Você não seria tão desumano! — gritou ela, desesperada com a dor provocada pela pressão dos dedos de Nick. — Largue-me, Nick, você está memachucando!

— Você merece, minha querida! — disse ele, enquanto a afastava comviolência. — Ah, pelo amor de Deus! Não comece a choramingar...

Ela se apoiou numa cadeira para não cair e tentou se refazer, enquanto alisavamecanicamente os cabelos. Finalmente endireitou-se e deu um profundo

suspiro.— Está bem... — sussurrou lentamente. — Você ganhou! Só que preciso deuns dias para solicitar uma licença no emprego. Afinal, não possosimplesmente...

— Eu cuido disso. Quem é o seu chefe?

— Meu superior é o sr. Drummond, da seção de vendas de...

— Quero o nome do chefão — cortou Nick, impaciente. — Não vou falar comum simples funcionário.

— Ah, como é bom ser influente... — disse Karen, tentando parecer sarcástica.— Só que não se esqueça de que eu continuarei vivendo... e preciso do meuemprego. Além disso, gosto de trabalhar com o sr. Drummond, e...

— E o que diabos faz com o dinheiro que eu lhe dou todos os meses? Pelovisto é uma péssima administradora.

Karen apertou furiosamente os lábios; nesse ponto ela levaria vantagem.

— Nunca toquei em nenhum centavo do seu dinheiro e nem o farei! — afirmou

com uma expressão atrevida e desafiadora.Mas, para sua decepção, Nick não pareceu afetado pelo que acabara de ouvir.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 14/116

 

Simplesmente sacudiu os ombros e completou:

— Então estamos combinados. Entrarei em contato dentro de no máximo doisdias, assim que terminar de ajeitar as coisas.

Ela não respondeu. Estava louca para que ele se fosse logo, para poder desabar o corpo exausto numa poltrona. Sentia-se no limite de suas forçasfísicas e mentais. Sem olhar para ele, escutou seus passos e o som da portase abrindo. Mas, em vez da esperada batida, tornou a ouvir a voz dele juntodela:

— Karen?

— Sim? — conseguiu responder com o que lhe restava de fôlego.

— Isso significa muito para mim. Obrigado!

Ele estendeu a mão para ela. Vendo, que não haveria retribuição, fez um gestode desalento e tornou a baixá-la. Depois abriu a porta e saiu em silêncio.

Somente com a batida da porta Karen deu-se conta do estado emocional deNick. Deu um passo instintivo à frente, mas já era tarde. A porta estava fechadae no quarto restava apenas o eco das palavras dele. Então sentou-se eabraçou tristemente o seu próprio corpo trêmulo.

Sentiu-se fria, triste e dolorida. Se tinha vontade de estrangular Nick por suaarrogância e crueldade, ao mesmo tempo queria abraçá-lo e afagar os seus

cabelos. Afinal, ele tinha admitido que teria sido melhor contar tudo a Elizabeth. Agora não teria de forçar essas encenações absurdas. Tudo culpa dele, de seuorgulho prepotente. Ele não queria enfrentar Elizabeth, por isso preferiuembarcar para a América do Sul e esperar que o tempo se encarregasse detornar mais fácil a tarefa de dizer a verdade.

Karen levantou-se e passeou pela saleta.

Pensou no que o futuro reservava para ela e estremeceu. Como poderiasuportar aquilo? Viver novamente com Nick, sob o mesmo teto, voltar adissimular e esconder coisas do homem que amava apesar de tudo, suportar odesprezo e a ironia dele, viver uma mentira diante de Elizabeth...

CAPITULO II

Pela primeira vez, em seis meses, Karen chegou atrasada ao trabalho. Umatraso de vinte minutos.

Pressentiu que aquele ia ser um dia péssimo assim que se levantou e

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 15/116

 

descobriu um buraco em sua meia de seda. Ao tomar o café com pressa,derrubou-o na blusa. Foi preciso trocá-la. Saiu correndo para a estação dometrô e no caminho escorregou, não levando, por pouco, um tombo nacalçada. Mas quebrou o salto de um dos sapatos, o que a obrigou a voltar para

casa. Desesperada com o atraso, viu partir o metrô assim que pôs os pés naestação. Não teve outra saída: foi andando até o escritório.

Chegou esbaforida, suada e exausta. Ao menos, pensou, toda essaatrapalhação serviu para afastar Nick da minha cabeça. Saiu precipitadamentedo elevador e quase deu de encontro com o sr. Drummond, no momento emque ele saía de sua sala.

— Oh, queira me desculpar! — disseram ambos ao mesmo tempo, enquanto osr. Drummond recuava um passo.

— Estava imaginando o que teria acontecido à senhorita — disse ele.— Oh, sim... estou terrivelmente atrasada! — balbuciou Karen, ainda ofegante.— Parece que tudo está contra mim hoje!

— Não se preocupe... — tranqüilizou-a com um sorriso gentil. — Você semprefoi pontual e, dadas as circunstâncias, é perfeitamente justificável...

— Muito obrigada... — Karen agradeceu, sem entender muito bem. — Masvinte minutos! Oh, se alguém...

Não pôde terminar a frase, porque o sr. Drummond já entrava em seuescritório, acrescentando:

— Sinto muitíssimo saber que está com problemas de doença na família, sra.Radcliffe. Eu...

Nisso o telefone tocou e ele foi atender, fazendo um gesto para Karen colocar acorrespondência em ordem.

Ela se sentou depois de atender a seu pedido, e ficou imaginando com quemele teria falado. Seria Nick? Ou talvez o dono da companhia... Só podia ser umdos dois, pois o sr. Drummond já parecia inteirado da doença de Elizabeth.Tudo levava a crer que fosse Nick.

Havia desapontamento no rosto do sr. Drummond quando voltou a falar comela. Encarou-a com o rosto um pouco pálido e disse num tom meio áspero:

— Fui comunicado de que a senhora precisa de uma licença por tempoindeterminado.

— Oh, sim... se for possível... — confirmou Karen, nervosa e sem graça. — Eugostaria de voltar o mais rápido possível, mas creio que é imprevisível... E,

bem... se ajudasse, eu poderia levar algum trabalho para fazer...— É evidente que não! — exclamou o sr. Drummond. — Como poderia

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 16/116

 

trabalhar e cuidar de uma senhora enferma ao mesmo tempo? Não, sra.Radcliffe, vá cuidar de sua doente. Tenho certeza de que arranjaremos algoquando você voltar. Saiba que admiramos muito a sua dedicação ecompetência.

Enquanto Karen agradecia, ele assumiu um ar de falsa zanga e acrescentou:

— Só não a perdôo por não ter vindo antes me contar os seus problemas. Afinal, nunca fui um chefe ranzinza...

— Mas... eu ia fazer isso, sr. Drummond... — desculpou-se ela, terrivelmenteconstrangida, enquanto intimamente amaldiçoava a precipitação e a falta detato de Nick. — Afinal, eu só soube ontem à noite!

— Há gente influente por trás da senhora, não é? — indagou ele. — Não sabiade suas relações com a empresa Radcliffe... ou mesmo com a família.

— Oh... eu... nunca me ocorreu mencionar isso... — murmurou ela, sentindo orosto pegar fogo.

— Ora, que indiscrição a minha em me intrometer nos seus assuntospessoais... — desculpou-se sorrindo o sr. Drummond. Depois, levantando amão num gesto de despedida, prosseguiu: — Creio que está ansiosa para ir embora, sra. Radcliffe... Sei como é desagradável um caso de doença. Vai nosmandar notícias, não é?

— Oh, sim! Prometo que escreverei — respondeu Karen. — E quero agradecer a amabilidade que o senhor está demonstrando... Mas, como vai se arranjar sem mim... com as cartas e as outras coisas?

— Ah, não se preocupe com isso! A srta. Pinkney me dará uma ajuda enquantoreorganizamos a nossa vida sem a senhora.

— Ainda bem, sr. Drummond... — Sentia-se confusa e estranha.

Saiu da sala do sr. Drummond andando sem direção. Tudo parecia de cabeçapara baixo e tinha a sensação de ter sido demitida sem o desejar e sem saber por quê. Estava totalmente sem rumo, ao sabor das ondas. Ou melhor, aosabor das vontades de Nick. Onde estaria ele? Havia prometido entrar emcontato, mas, se tivesse partido pela manhã para Dellersbeck, provavelmentedemoraria uns dois dias antes de dar algum sinal. Podia ao menos tê-ladeixado permanecer no trabalho até a hora de partir... De repente, viu-separada no meio do corredor.

Por um momento pensou seriamente em voltar à sala do sr. Drummond e pedir para que a deixasse ficar mais uns dias. Poderia colocar a correspondência emdia, fazer pequenos trabalhos de rotina, ajudar a datilografa... Quando o

elevador abriu a porta, Karen tinha tomado uma decisão: ficaria.Quando se preparava para voltar, ouviu a voz da jovem secretária, Sandra, que

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 17/116

 

a chamava do corredor.

— Puxa, que sorte, Karen! Estava com medo de que já tivesse ido embora! —exclamou Sandra enquanto lhe dava um papel, com um recado escrito. — Éverdade o que estão dizendo? Você vai mesmo embora?

Karen confirmou, sorrindo para Sandra. Olhando para o bilhete, viu um númerode telefone que ela conhecia muito bem e o seguinte recado: "Telefone estamanhã, antes das dez e meia". Não havia assinatura, mas também não eranecessária.

— Puxa, estou chateada... — disse Sandra. — Sentirei a sua falta, Karen... Ese há algo que eu possa fazer...

— Obrigada, mas está tudo bem — respondeu Karen com um sorriso. —Também vou sentir a sua falta.

Dando um rápido adeus, correu para o elevador que já se fechava. Tudo o queela queria agora era sair depressa das dependências da companhia, paraevitar perguntas. A esta altura provavelmente todos já deviam estar a par doque estava acontecendo, e Karen tinha receio de que a procurassem parasaber maiores detalhes. Sempre se preocupara em manter sua vida privadafora das conversas no trabalho. A idéia geral era a de que ela fora casada, masenviuvara, e ela nunca fez nada para desfazer esta impressão. Agora podiamcomeçar a investigar, e como Nick, apesar de não ser famoso, executava um

trabalho que o levava sempre a aparecer nos jornais e noticiários, Karen temiaque acabassem por descobrir a sua identidade.

Para seu alívio, não havia ninguém na portaria e ela pôde passar despercebidapela porta de entrada. Assim que pisou na calçada, procurou um telefonepúblico nas imediações. Viu um logo na esquina, foi até ele e discou o númerodo bilhete. Enquanto a ligação se completava, Karen tentou ignorar o pulsar doseu coração ansioso. Olhou distraidamente para as pessoas que passavampelas ruas, alheias ao seu drama interior.

— Karen? — Ouviu a voz de Nick do outro lado da linha. — Eu tinha certeza deque era você.

— Recebi seu lindo bilhete... — disse ela, procurando ser a mais fria possível.— Fez realmente um bom trabalho... Já me puseram fora do emprego. Nãoacha que poderia ao menos ter esperado...

— Pare de exagerar, Karen! — interrompeu-a, impaciente. — Aquilo foinecessário! Agora preste atenção. Quero que vá agora mesmo àquela pocilgaque você chama de sua casa e faça as malas. Passarei lá em uma hora paralevá-la à nossa casa antes de partir para Dellersbeck.

— Ei, espere um momento, Nick! — gritou, chocada. — Não posso me aprontar 

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 18/116

 

em uma hora apenas! E se pensa que vou acompanhá-lo à sua casa, estáficando totalmente maluco! Concordei em. ir até Dellersbeck com você, masnão...

— Quer calar a boca por um momento? Você não tem escolha, e tampouco eu!

Elizabeth está ficando desconfiada e não pára de me fazer perguntas. Quer saber por que você não estava comigo ontem e resolveu lhe fazer uma visitaesta tarde. E ouça: é melhor que ela a encontre lá! Porque senão...

Nisso, o telefone deu sinal para depositar outra ficha. Karen procurouprecipitadamente uma na bolsa, mas o fez tão afoitamente que acaboudeixando cair o fone. Depois de apanhá-lo, toda atrapalhada, ainda gritou juntoao bocal:

— Nick... Nick!

Mas ele já havia desligado e, se ela bem o conhecia, não atenderia a um novochamado. A essa altura, já devia estar na rua.

Ficou parada, confusa e perdida. Pensou em telefonar a Elizabeth, mas tevemedo de que ela estivesse de cama. Mas, então, como é que iria visitá-la àtarde? Se ao menos tivesse arrancado informações mais precisas de Nick nanoite passada, em vez de ficar discutindo como uma tola! Então subitamente selembrou de que Nick lhe dera apenas uma hora! E uma hora para elesignificava exatamente isso: sessenta minutos para arrumar todas as suas

coisas e pagar o aluguel devido. Então era isso! Nick tinha planejado tudo! Nãoqueria lhe dar tempo para nada. Assim evitaria ter que lhe explicar as coisas.Ele detestava dar explicações.

Karen suspirou de alívio ao saber que a sra. Biggins não estava em casa. Issosignificava se ver livre de um longo e estafante interrogatório sobre por que iase mudar dali, o que provavelmente iria atrasá-la ainda mais. Mas, à medidaque ia enfiando as coisas nas malas, sentiu que ia ter problemas.

Nos últimos dois anos em que vivera só, havia acumulado uma infinidade deobjetos e quinquilharias que não prestavam para nada, mas que não tinhacoragem de jogar fora. Suas duas maletas não seriam suficientes para carregar tanta coisa. Além disso, era preciso acertar as contas com a sra. Biggins, e elaestava fora. O que fazer? Bem que gostaria de conservar o apartamento paradeixar ali guardadas as coisas que não iria precisar e não tinha como levar.Talvez a sra. Biggins concordasse com isso, se ela lhe pagasse algunsaluguéis adiantados. E se ela não voltasse a tempo? Além disso, como fariapara arranjar dinheiro para os aluguéis? Havia perdido o seu emprego e estavatotalmente dependente de Nick!

Karen começou a sentir pânico. Seu orgulho e seu maior trunfo sobre Nick erao fato de jamais haver tocado no dinheiro que ele lhe enviava mensalmente.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 19/116

 

Mas agora teria que apelar para isso. Se ao menos houvesse outraalternativa...

Subitamente parou, angustiada pelo pensamento que lhe ocorrera. Ali estavaela se preocupando com os seus problemas enquanto Elizabeth... Não estaria

sendo egoísta demais? Será que Nick tinha razão, apesar de tudo? Por queaquilo tinha de estar acontecendo com Elizabeth?

Passou a mão nos olhos e deu uma olhada nervosa para o relógio. Eram quasedez e meia e Nick devia chegar a qualquer momento. Resolveu escrever umrecado para a sra. Biggins, comunicando a mudança, e deixar-lhe algumdinheiro, avisando que entraria depois em contato para uma explicação maisdetalhada.

Finalmente, depois de muito esforço, conseguiu escrever: "Precisei viajar para

atender a um chamado urgente. Por favor, pague por mim a conta do leite eguarde a minha correspondência até eu enviar o meu novo endereço". Karenrelia o que tinha escrito quando ouviu o barulho da batida de porta de um carro.Foi até a janela e viu Nick entrando na casa.

Ficou parada, com o coração batendo descompassado e os lábios secos,esperando ouvir a qualquer momento os passos dele na escada. Quando acampainha tocou, ela levou um susto e correu para abrir a porta. Nick entroucomo um furacão.

— Não há ninguém em casa! — defendeu-se Karen com frieza. — Todossaíram, e eu já estava...

— Bem, vamos ao que interessa... — interrompeu ele. — Não entendeu asminhas instruções? Ainda não está pronta?

— Não, não estou! Tenho muita coisa para arrumar e não tenho malassuficientes. Além disso...

— Então, deixe tudo aí. Depois mando alguém apanhar para você

— disse ele, enquanto subia as escadas. — Por ora, leve apenas o necessário.

 Ao abrir a porta do apartamento, ele não escondeu o seu desagrado.

— Isso foi o melhor que pôde arranjar? — comentou secamente.

— Esta casa caindo aos pedaços nesta ruela escondida? Francamente, Karen,nunca pensei que...

— Ouça aqui, Nick... — reagiu ela, furiosa. — Talvez lhe pareça desagradável,mas é uma casa limpa e acolhedora. É ideal para mim! E depois, com essa suahistória de fingir que estava tudo bem e que havíamos viajado juntos para a

 América do Sul, não queria que eu arrumasse uma casa perto da nossa antigavizinhança para correr o risco de que algum conhecido me visse, queria?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 20/116

 

— Mas também não precisava morar numa espelunca! Londres é uma cidadegrande.

— Sim, e o mundo é pequeno...

— Não terá sido uma boa desculpa para se esconder aqui, convenientemente?— perguntou ele, arrogante.

— Pense o que quiser, Nick! Mas não admito que fale assim desta casa!

Ele não respondeu, limitando-se a observá-la entrar no quarto e tirar a mala decima da cama. O peso era excessivo e quase a fez despencar no meio docaminho; mesmo assim, ela agüentou firme. Quando chegou à porta da rua,Nick a alcançou e a fez parar.

— Agora chega, Karen. Penso que fizemos um trato a noite passada. É melhor 

você colaborar, senão as coisas vão engrossar!Por alguns instantes ela ficou parada, dominada pelo olhar penetrante de Nick.Finalmente concordou, hesitante:

— Está certo... Levarei a mala menor.

Em silêncio levaram a bagagem até o carro, e, enquanto Nick se ocupava emajeitá-la no porta-malas, Karen voltou à casa para deixar o bilhete para a sra.Biggins. Feito isso, voltou e acomodou-se no carro ao lado de Nick.

O fato de estar ali, na companhia dele, trouxe-lhe recordações. Aqueles velhos

gestos, tão conhecidos, o jeito de Nick sentar-se, de ajustar o cinto desegurança e de dar a partida a afetavam de um modo estranho. Karen virou orosto para a janela num movimento brusco. Não queria tornar a viver aquelaintimidade tão perturbadora. Afinal, o passado era o passado e o maisimportante era conservar , a paz que havia conquistado a duras penas.

Nick não pareceu perceber nada. Manteve-se calado durante todo o tempo esó quebrou o silêncio quando estacionou numa lanchonete de supermercado.

— Ei! — gritou para a garçonete. — Queremos um sanduíche!

Enquanto fazia a escolha, Karen observou-o detidamente. Ele pediu um café eficou bebericando enquanto esperava, totalmente alheio aos pensamentos quepovoavam a mente dela.

Meu Deus, pensou desesperada, não valeu de nada o esforço de todos essesanos. Tudo havia se evaporado ao simples contato com Nick. Todas as antigaslembranças, as ansiedades e as inquietações voltavam avassaladoramente!Ela era novamente uma mulher casada!

Você está casada e Nick é seu marido, parecia ouvir uma voz dizendo-lhe,

enquanto observava Nick apanhar os sanduíches e colocá-los dentro do carro.Quando ele deu a partida novamente, ela sentou-se rigidamente e sentiu um

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 21/116

 

arrepio percorrer-lhe o corpo. Dois anos de sua vida haviam se desfeito comofumaça no ar...

  As sinalizações na estrada indicando Valentine Grovet aumentaram asensação de familiaridade, e Karen agarrou mais forte a bolsa para que Nick

não percebesse o tremor de suas mãos. Ela reconhecia todas aquelas ruasbelas e arborizadas, o estilo imponente das construções antigas, os jardinsbem cuidados... Era como se o tempo tivesse parado durante dois anos, e ela eNick estivessem voltando de sua lua-de-mel.

Naquele dia havia muita alegria quando o carro deles cruzou o portão deentrada e atravessou os jardins. O som de risos, o ambiente de calor eaconchego, a comida farta e a boa bebida... Agora, porém, tudo estavasilencioso, como se ninguém se atrevesse a perturbar a quietude da casavazia.

Karen entrou na frente, muito vagarosamente. No hall, ainda estava o bustoentalhado em carvalho e, junto a ele, o pequeno nicho de vidro feito pelopróprio Nick, para proteger o telefone. A porta ao fundo estava entreaberta,deixando ver parte da moderníssima e reluzente cozinha, toda decorada empreto e branco. Automaticamente, Karen encaminhou-se para lá, seguida deNick, que resmungou ao apanhar duas cartas sobre a mesinha do corredor.

— Hum! Eles não são de perder tempo.

Por algum tempo ele a deixou entretida a admirar os detalhes do ambiente.Então, perguntou:

— Gostou do modo como eles deixaram a casa?

— Quem? — perguntou Karen, surpresa.

— Os Gilburn — respondeu ele. E, vendo que ela continuava sem entender nada, explicou: — Claro que você não podia saber: Aluguei a casa para elesdurante esses dois anos.

Falou, então, sobre o casal de americanos que havia morado ali. Gilburn havia

sido mandado a Londres por sua firma para ali ficar durante um ano, mas oprazo tinha se prorrogado devido à súbita transferência de seu superior para afilial italiana. E como a sra. Gilburn ficara horrorizada diante da possibilidade depermanecer por mais dois anos no apartamento em que estavam instalados,John Bain, um amigo comum, intercedeu junto a Nick para que alugasse a casapara eles.

— E a história toda é essa — concluiu Nick. — Agora vou buscar as nossascoisas. Creio que vai querer arrumá-las a seu modo.

— Nick! — exclamou Karen. — Aqui não há nada! Onde você passou a noite?— Eu? Bem, achei melhor ficar num hotel.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 22/116

 

— Ora, mas no cartão você tinha dito que estaria em casa!

— É verdade... Mas uma vez que fui ao seu apartamento para conversarmos,não achei necessário ficar aqui. — E, olhando-a penetrantemente, prosseguiu:— Eu disse a Elizabeth que os Gilburn só deixariam a casa hoje, de modo que

ficaríamos por uns dias no hotel.

— Mas por quê, Nick?

— Ora, pelo amor de Deus, use a cabeça, Karen — disse ele, impaciente. —Não acha que Elizabeth teria ligado para você assim que soubesse da nossachegada? Tive que dizer que você tinha ido atrás de uma mala na alfândegapara que ela não estranhasse o fato de não estar comigo. É apenas umamentira a mais para justificar a sua ausência.

Karen empalideceu e respondeu:

— Não me olhe como se eu fosse a culpada! Afinal, a idéia não foi minha...

— Sei disso. Só queria que ficasse a par de tudo — disse Nick com um ar cansado. — E já que falamos nisso, fiz uma relação de coisas que você devesaber de cor.

E, dizendo isso, passou a Karen uma lista de anotações numa folha de papel,contendo referências tais como: o endereço onde hipoteticamente tinham vividoaqueles dois anos, o nome de alguns colegas engenheiros sul-americanos, alocalização da obra em que trabalhara e vários outros detalhes profissionais eturísticos.

— Agora você vai memorizando essas coisas — continuou ele. — Quando euvoltar, lhe darei mais algumas informações. Deve estar preparada paraenfrentar qualquer assunto que porventura venha à tona.

— Não, Nick, eu não conseguirei! — exclamou Karen, desesperada. — Nuncaestive na América do Sul! Como espera que eu vá sustentar uma conversaçãosobre seus países e suas cidades?

— Não espero nada de você! — respondeu Nick, exasperado. — Apenas fiquecalada e concorde com tudo o que eu disser! Farei o possível para facilitar ascoisas, mas não será fácil e você precisa agüentar... por Elizabeth! E depois...Bem, depois de tudo acabado, você pode ir para o inferno. E, afinal, não teráperdido completamente o seu tempo. Será instrutivo, você vai ver...

Karen sentiu os olhos cheios de lágrimas ao ouvir aquelas palavras.

— Como pode falar desta maneira? — soluçou ela. — Não percebe quefalando em depois... está simplesmente contando o tempo que resta à pobreElizabeth?

— E por que não? A verdade deve ser enfrentada.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 23/116

 

— Oh, você é monstruoso! — gritou, furiosa. — Dizendo-me o que fazer com omeu tempo! Parece até que está comprando a minha disponibilidade... É...

— Hum... isso também é verdade — Nick interveio rispidamente.

— Se prefere colocar as coisas assim... eu tenho condições de comprar o seutempo. Afinal, se outro homem pode fazê-lo, por que não eu, o seu marido?

— Nick! Como se atreve a falar desse jeito comigo? — Avançou para ele e oesbofeteou.

Nick, por sua vez, ergueu a mão direita e aproximou-a do rosto de Karen comuma lentidão exasperante, pousou-a em seu pescoço frágil e delicado ecomeçou a apertá-lo.

— Sua bruxa! Sua cadela vagabunda! Eu... — Ele parecia totalmente

transtornado. — Eu poderia matá-la agora mesmo!O telefone, então, tocou. Nick deixou pender o braço enquanto Karen recuavaum passo, com as pernas bambas e a ponto de desmaiar. Ele virou-se eatravessou o corredor em silêncio.

— Sim? — Sua voz havia recobrado a serenidade costumeira. — Ah, nósacabamos de chegar! Sim, querida, ela está aqui comigo!

Pela porta, Karen viu o marido dar meia-volta e, com um gesto muitocontrolado, estender-lhe o telefone. Sentiu as pernas pesadas como chumbo e

se dirigiu para ele. Ao tomar o aparelho de suas mãos, apoiou-se sobre amesinha para não cair.

— Alô... — disse quase num sussurro.

— Karen, minha querida! — respondeu Elizabeth com voz macia e calorosa. —Não sabe como é bom ouvir você novamente! Como está passando?

— Oh, eu estou muito bem... — respondeu Karen, percebendo que pelaprimeira vez se sentia constrangida ao falar com Elizabeth.

— E você? Como vai?

Teve medo de que Elizabeth notasse o tremor de sua voz e instintivamenteolhou para Nick, em busca de apoio. Mas ele apenas ouvia com atenção,observando-a com um olhar duro. Felizmente, Elizabeth parecia contentedemais para notar algo.

— Estou bem melhor depois das férias que tirei, querida! — disse elaalegremente. — Mas a sua volta foi o melhor remédio para mim. Está feliz por voltar?

— Oh, sim... claro! — respondeu Karen num fio de voz. — E senti muitíssimo asua falta. Não vejo a hora de nos revermos e Nick também...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 24/116

 

— Deus a abençoe, filha — disse Elizabeth. — Mas creio que estouatrapalhando, porque você deve ter um milhão de coisas para fazer, não é?Desfazer as malas, dar um jeito na casa... Eu sei como são essas coisas!Sabe, eu só liguei por causa disso. Nick é um cabeça-dura impetuoso e acho

uma loucura arrastá-la a Yorkshire por minha causa, nem bem você pôs os pésem casa. Quero que tire essa idéia da cabeça dele. Talvez você o consiga,porque quanto a mim, francamente... Nick não quer me dar ouvidos!

— Oh... e você acha que ele vai dar ouvidos a mim? — respondeu Karen, já nolimite das suas forças. — Mas não se preocupe, Elizabeth, nós vamosdescansar bastante juntas aí. Creio que o melhor será deixar que Nick decida,não acha?

— Está bem, querida. Mas não consigo convencê-lo de que não preciso debabás. Está certo que tive alguns probleminhas, mas também não se podedeixar que os médicos nos apavorem, não é mesmo? O que eu realmentedetesto é criar problemas para os outros. Afinal, eu sei quando estou bem, nãosei?

Karen mordeu o lábio e assentiu com a cabeça, suspirando profundamente.Isso não passou despercebido de Elizabeth.

— Está tudo bem mesmo com você, Karen? — Havia preocupação em suavoz. — Há algo de errado?

— Não... não, nada... Ah, é que eu... — Karen gaguejava quando Nickarrancou-lhe o fone da mão com brutalidade.

— Ei, mamãe — disse ele brincalhão, enquanto a fulminava com o olhar. — Acho que a estas horas sua conta de telefone já deve ter dobrado! Ouça, Karenirá buscá-la assim que arrumar a bagagem e eu... Bem, nós nos veremosdentro de uns dois dias, está bem?

Com os olhos cheios de lágrimas, Karen viu estarrecida Nick sorrir,provavelmente de algo que Elizabeth estava dizendo a seu respeito. Despediu-se com algumas palavras de carinho e depois se voltou para ela e disse comsuavidade:

— Não fraqueje, pelo amor de Deus! Não se entregue!

Ela meneou a cabeça e tentou afastar-se, quando sentiu que ele a seguravapelos ombros, forçando-a a olhar para o seu rosto.

— Não, Karen... — disse baixinho e com a expressão atormentada. — Perdoe-me, por favor... Não tinha o direito de dizer o que disse há pouco. Mas é queesta situação...

Karen estremeceu ao sentir o contato das mãos de Nick. E documente sedeixou ficar junto dele, murmurando:

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 25/116

 

— Acho que também lhe devo desculpas, por ter batido em você...

— Basta. Não diga mais nada! — Nick interrompeu, apertando de leve osombros dela. — É preciso tentarmos esquecer nossas diferenças... Sei que nãoserá fácil, mas temos que tentar! Por Elizabeth!

Deixou-a então abruptamente e saiu da casa. Ela ficou ali parada, respirandofundo para se livrar do torpor que paralisava seus membros. Quando Nickvoltou, carregando as duas maletas, já a encontrou melhor.

Enquanto o ajudava com as malas, Karen pensava no curto momento em queficaram parados cara a cara ao lado do telefone. Naquele momento ela estavacerta de que Nick a beijaria ardorosamente. Mas ele não o fez, apesar doterrível desejo que Karen sentiu. Estavam tão próximos, seria a atitude normala ser tomada...

Ela sacudiu a cabeça para se livrar destes pensamentos. Por que estava comaquelas coisas na cabeça?

Entretida na arrumação da cozinha, só percebeu que estava com muita fomequando viu Nick entrar e lembrou-se dos sanduíches que ele tinha compradono caminho. Vendo-o relaxado, resolveu arriscar um gesto de paz.

— Acho que vou fazer um café para nós.

— Eu realmente não tenho tempo! — disse ele, ajeitando a gravata. — Querochegar a Dellersbeck até as quatro, para ter tempo de fazer algo ainda hoje.

— Não vai ficar para almoçar?

— Como alguma coisa na estrada.

Decididamente ele parecia ansioso para cair fora. Karen ficou em silêncio,apesar do impulso de se oferecer para preparar um lanche para ele comer nocaminho.

Mas não, pensou ela, é melhor mantê-lo distante. Com tristeza, concluiu queera tarde demais para retomar a antiga intimidade.

— Deseja mais alguma coisa, antes que eu me vá? — perguntou ele.

— Não, creio que não.

— Não? — insistiu, irônico. — E quanto a isso? As chaves! Você ainda tem assuas chaves? E dinheiro? E o telefone de Dellersbeck?

E, sucessivamente, ele ia tirando o objeto correspondente e largando na mesa,com um ar de profunda gozação. Karen torceu o nariz ao ver o maço de notasque ele deixara sobre a mesa.

— Não preciso disso — afirmou, orgulhosa.— Hum, então guarde-o para mim, está bem? Caso precise pode usá-lo como

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 26/116

 

um empréstimo. Prometo que cobro os juros...

Karen sentia uma incrível vontade de dizer algo gentil, algo que quebrasse ogelo entre eles. Mas não se animou, ao constatar a fria indiferença de Nick.

Bem... sempre poderia conversar com ele em Dellersbeck. Mas, valeria apena? Tudo levava a crer que ela só tinha interesse para Nick enquanto fizesseparte de seu plano.

Karen fechou vagarosamente a porta após ele sair e contemplou, melancólica,a imponente solidão da casa que um dia fora o seu lar. Hoje ela e Nick estavamdistantes, com um abismo entre eles. Nick não a amava mais! E talvez nunca ativesse amado...

CAPITULO III

Enquanto fazia café, Karen perguntou-se por que razão uma simples briga comNick a transtornava a ponto de ter as mãos geladas e trêmulas, obrigando-a afazer um esforço enorme para não derrubar a água da caneca. Na verdade,não era só a briga. Toda a situação era absurda e até mesmo imoral. Estavaconstrangida por ter que fingir para Elizabeth aquela mentira. É certo que

houve antes amor e felicidade entre ela e Nick, mas fora tudo tão fugaz epassageiro...

O calor da xícara queimou os seus dedos e a trouxe de volta à realidade.  Apoiou o rosto nas mãos e ficou contemplando fixamente os azulejos daparede. Tinham um desenho misterioso, algo semelhante a olhos dissimuladose diabólicos multiplicados em série. Karen nunca conseguira gostar deles. Foraidéia de Lisa e seu presente de casamento. Eram a única coisa colocada nacasa sem a interferência dela e de Nick. Ah, como desejaria retroceder notempo e voltar àquela manhã, três dias antes do seu casamento!

Karen bebeu um gole de café, exasperada consigo mesma. De que valia agoraficar pensando no que poderia ter acontecido? Será que teria ocorrido algummilagre que desfizesse o terrível mal-entendido em que se viu envolvida? Não,ela havia prometido segredo, embora nem suspeitasse das conseqüências queaquela promessa acarretaria...

Levantou-se abruptamente do banco, decidida a esquecer de vez aquelasmalditas lembranças. Resolveu manter-se ocupada, arrumando a casa a seumodo. Afinal, fora habitada por estranhos durante dois anos e, agora que

estava de volta, era natural que ajeitasse tudo a seu gosto.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 27/116

 

Chegando ao pé da escada, vacilou antes de subir. A cada degrau surgia umnovo fantasma do passado sombrio. Ali estava o golfinho prateado que haviamtrazido da Flórida, num eterno mergulho na sua cúpula de vidro. Mais adiante,a pequena prateleira que Nick insistira em instalar ele mesmo, em

conseqüência do que tinha dado tamanha martelada no dedo que ela teve delevá-lo ao pronto-socorro.

 Ah, como ela se lembrava daquele dia! Chegou a ficar doente, com medo deque Nick ficasse com o dedo defeituoso. Ele havia se divertido muito e, vendo-a indignada com suas risadas, derrubou-a sobre a cama e disse, enquanto seatirava em cima dela: "Mesmo sem um dedo, ainda posso fazer amor comvocê!"

 Afastando esses pensamentos da cabeça, Karen voltou à arrumação da casa.Estava tudo vazio e limpo. Encontrou no quarto apenas dois travesseiros,lençóis e um bilhete da sra. Gilburn que dizia: "Agradecemos muito por nos ter confiado a casa. Tentamos deixá-la do modo como gostaríamos de encontrar anossa. Desculpem por alguma coisa. Espero que nos perdoem por qualquer estrago que porventura tenhamos causado. Sue Gilburn".

Quase agradecida, Karen desceu com as roupas e colocou-as na máquina delavar. Não havia realmente muito o que fazer, pois logo iriam para Dellersbeck;assim, decidiu não desempacotar o que não era essencial. Além disso, todosos pertences dela e de Nick, bem como os da casa, estavam embalados e

guardados no porão, e remexer naquilo tudo significaria mais lembrançasdolorosas. Por isso, limitou-se a estender as roupas que lavara e, depois de umrápido almoço, subiu ao quarto de hóspedes a fim de preparar uma cama parapassar a noite.

O quarto de hóspedes era o menor e o mais frio de toda a casa. A calefaçãonunca funcionou direito lá. Assim mesmo, Karen preferiu ficar nele em vez deseu antigo quarto, que lhe trazia muitas recordações do passado.

No princípio havia sido tudo maravilhoso... Tinham casado imediatamente após

assinarem o contrato para a construção da casa. Ainda estava em obrasquando voltaram da lua-de-mel. Havia fios elétricos, tábuas e outros materiaisde construção espalhados por todos os lugares. E, em meio a toda essaconfusão, deram uma linda recepção para os amigos mais chegados.

 A festa fora toda improvisada por Nick. E como havia sido maravilhosa! Aspessoas dançavam sobre as tábuas do assoalho da saía de jantar. Com doiscavaletes, improvisaram uma mesa e nela colocaram o toca-discos. Um dosconvidados afundou o sapato numa fôrma de cimento fresco e ficouperturbadíssimo ao ver as marcas que deixou por toda a sala. E, no melhor da

festa, os fusíveis queimaram e todas as luzes se apagaram. Assim mesmo,continuaram dançando no escuro, até que um casal caiu sobre as latas de

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 28/116

 

tinta, provocando uma gargalhada geral. Ela nunca mais se esqueceria decomo ficou abraçada a Nick, ambos rindo como loucos no meio de toda aquelaconfusão.

Os olhos de Karen agora estavam sombrios. Aquela festa maravilhosa fora o

prelúdio do desastre que se seguira, pois fora naquela noite que haviamconhecido Tony Foster. Tony chegara com um amigo de Nick, e foi atravésdele que conheceram Vince Kayne, artista consagrada e pivô do drama quearruinaria sua vida de casada.

— A minha vida! — exclamou Karen com raiva.

Enquanto enxugava as lágrimas, teve ímpetos de gritar: "Pare de pensar,idiota! Está tudo acabado, é tarde!" Mas, como deixar de pensar naquilo quepusera fim a seu casamento?

Como um autômato, Karen armou a cama desmontável e a colocou no meio doquarto. Por que não encarar as coisas de outro ângulo? Não tinha sido melhor daquele jeito, pondo fim a tudo antes que nascesse uma criança? Não foramelhor descobrir logo a pouca confiança que Nick lhe depositava? Sim, isso ahavia ferido mais profundamente que tudo: o fato de ele acreditar no pior e deacusá-la de coisas terríveis antes mesmo de lhe dar oportunidade para sedefender.

Karen tomou um susto ao ouvir a campainha tocando. Quem podia ser? Será

que era Nick?Desceu apressadamente as escadas, tomada de estranha excitação. Talvezfosse um vendedor, ou o homem que fazia a leitura do medidor de luz...Estacou, então, estarrecida diante da silhueta que se distinguia contra o vidroopaco da porta. Era Elizabeth! A madrasta de Nick! Sim, era ela sem dúvida!

— Elizabeth! — exclamou.

Elizabeth abriu os braços para Karen com um sorriso radiante e terno.

— Espero sinceramente não estar atrapalhando, querida Karen — disse ela,

enquanto a apertava fortemente entre os braços. — Não agüentava mais desaudades! Diga que não se incomoda!

— Oh, claro que não! — respondeu Karen. — É que...

— Sim... sim! — interveio Elizabeth. — Você não contava com isso, não é?Mas, como vê, ainda estou bem.

Karen respirou fundo. Nunca imaginaria que algum dia pudesse ter medo deencarar Elizabeth. Mas lá estava ela, alegre e carinhosa. E quase nenhumamudança... Apenas um pouco emagrecida talvez, com alguns cabelos grisalhos

a mais. Os olhos, no entanto, conservavam a habitual limpidez e vivacidade, ea pele rosada e suave continuava lhe dando aquele charme tão característico e

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 29/116

 

marcante. Somente após uma observação mais detida é que se notavam ossulcos e os pequenos sinais de sofrimento, cuidadosamente disfarçados com amaquilagem e o vestido elegante.

— Vim ver se precisava de ajuda — disse Elizabeth. — Sei como é terrível

voltar a um lugar depois de tanto tempo... Oh, Karen, não avalia como foramlongos esses dois anos para mim!

Karen esforçou-se para sorrir, sentindo um nó na garganta. Afastou-se deElizabeth e conduziu-a para a sala, dizendo, embaraçada:

— É maravilhoso tornar a vê-la, Elizabeth. Sente-se que vou preparar um chápara nós.

Enquanto fazia o chá, esforçou-se ao máximo para se recompor emocionalmente. Quando voltou à sala com a bandeja, estava mais relaxada e

pronta para conversar mais informalmente.

— Nick saiu há pouco — disse ela, enquanto estendia a xícara a Elizabeth. —Você o teria encontrado, se tivesse chegado mais cedo.

— Não queria encontrar Nick, querida. Vim aqui para falar com você.

Karen estremeceu ao ouvir aquelas palavras. Sentou-se diante de Elizabethpensando: será que ela já sabe de tudo?

— Mas por quê? — perguntou impetuosamente. — Há algo errado?

Imediatamente percebeu como havia sido desastrada a pergunta.Por sorte Elizabeth estava entretida com as suas próprias preocupações e nãose deu conta.

— Oh, nada errado — respondeu, enquanto se servia de açúcar. — Naverdade, fico preocupada com você, por causa deste arranjo de Nick. Eleteimou em nos levar a todos para Dellersbeck e ninguém vai tirar essa idéia desua cabeça. Mas sinceramente, Karen, não queria vê-la aborrecida com isso!

— Mas por que eu estaria aborrecida? — indagou Karen, aliviada com o rumo

que a conversa tomara. — Acho a idéia maravilhosa, Elizabeth!— Acha? — Elizabeth parecia escandalizada. — Pois eu não acho nem umpouco! É francamente uma maluquice fazê-la sair daqui depois de tanto tempolonge e logo após descer do avião!

— Pois isso não me preocupa em nada, e faça o favor de parar com essastolices, Elizabeth!

— Receio que Lisa não vá gostar nem um pouco — continuou Elizabeth,preocupada. — Você sabe como ela se aborrece em Dellersbeck. E há o

Clifford, que só poderá ir a Yorkshire nos fins de semana; ele terá que passar asemana sozinho naquele apartamento. E Nick não quer nem saber desses

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 30/116

 

detalhes! Oh, Karen, será que você não poderia dissuadi-lo dessa idéia?...

— Eu? — Karen estava atônita. Era até engraçado, depois de Nick arrancá-lade seu apartamento, fazê-la perder o emprego e quase tê-la esganado... —Não tenho a mínima ilusão de mudar qualquer plano de Nick, querida...

— Sim, era o que eu temia... — Elizabeth suspirou. — O problema é que nãoestou segura de que seja a melhor atitude. Sei que Nick tem a melhor dasintenções, embora não esteja nem um pouco interessado na minha opinião,como de costume. Sabe, Karen, não é nada reconfortante saber que toda a suafamília está a seu redor, apenas esperando pela sua morte!

— Oh, não! Não é isso que Nick está...

— Será que não, minha querida? — Elizabeth interrompeu-a com amargura. —Então por que ele teve essa idéia? Embora ele negue, eu sei que, no fundo, vê

as coisas assim.

Karen não teve ânimo de responder; sentia-se trêmula como uma criançasurpreendida ao fazer uma travessura. Vendo-a silenciosa, Elizabeth sorriutristemente e continuou:

— Não fique assim, meu bem. Sei perfeitamente o que está para vir e nãoalimento nenhuma falsa ilusão. Só não desejo ver minha família e os seres queamo participando de um velório antecipado e opressivo. Queria vê-losconstruindo as suas vidas e buscando a felicidade. Você me entende?

Karen concordou com a cabeça silenciosamente. Estava comovida em ver acoragem e serenidade com que Elizabeth aceitava o futuro sombrio. Nick lhehavia contado como ela exigira um diagnóstico franco dos médicos, e a firmezacom que ouvira a terrível sentença. Será que não teria o direito de pelo menosescolher como queria passar o resto dos seus dias?

Elizabeth tomou mais um gole de chá; tinha as mãos firmes e a voz serenaquando prosseguiu:

— Eu disse a Nick que amava Dellersbeck na primavera, no verão e até

mesmo no outono, mas, se ele pensa que vou passar o inverno lá, estáredondamente enganado! Pretendo voltar a Marbella em novembro, se Deusassim o permitir.

— É que Nick acha que você não é feliz naquele apartamento — arriscouKaren timidamente.

— Bem... também não significa que eu seja infeliz na cidade... — respondeuElizabeth com determinação. — E agora começo a perceber que sempreexagerei quando falava de Dellersbeck, apesar de amar muito aquele lugar.

Por isso Nick pensa que é tudo o que eu desejo no mundo e resolveu me levar para lá à força...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 31/116

 

Sim, pensou Karen, é exatamente assim que Nick se comporta. Sua friadeterminação se acentuava ainda mais quando se tratava de Elizabeth. Ela erao que importava para ele, e seria capaz de tudo para dar um pouco defelicidade à mulher que o apoiara num momento negro de sua vida. Nick jamais

esquecera o que Elizabeth tinha feito por ele.Isso sempre intrigara Karen. Nick nunca havia lhe falado sobre isso, mesmonos momentos mais íntimos, e Karen tinha uma enorme curiosidade em saber o que acontecera com ele. Nick só disse uma vez que havia ficado órfão aosonze anos, e que fora adotado por Elizabeth e seu marido, com quemaprendeu a amar e ser amado. Num impulso incontido, Karen levantou-se,sentou-se junto de Elizabeth e abraçou-a com força.

— Por favor, não fique se preocupando, Elizabeth — pediu carinhosamente. —Deixe tudo por nossa conta e eu lhe prometo que farei o que puder paraconvencer Nick a deixá-la fazer as coisas a seu modo. Verá como vai dar tudocerto!

— Deus a abençoe, querida — Elizabeth agradeceu com os olhos úmidos. —Sei que tenho muita sorte por ter o filho e a nora mais gentis e maravilhosos domundo... Bem,- agora tenho que ir, senão Magda vai ficar preocupada comigo.

— Magda ainda está com você?

— Sim, apesar de eu insistir para que se aposente. Mas acho que só tenho

cabeças-duras a meu redor, Karen...Karen sorriu e acompanhou-a até a porta. Repentinamente se deu conta daidiotice de sua pergunta sobre Magda, a empregada que trabalhava paraElizabeth há trinta e quatro anos.

— A propósito, querida, quero lhe agradecer pelas cartas gentis que meescreveu da América do Sul. Não sabe o que significaram para mim, pois Nick jamais escreve, a não ser quando eu o ameaço terrivelmente. Foi ótimo vocêter a máquina, sabe? Apesar de algumas pessoas acharem que torna a cartaimpessoal, eu prefiro, porque me facilita a leitura.

Dirigiu-se para o carro e deixou Karen sentindo remorso e um certo mal-estar.O que será que Nick escrevera por ela? À medida que o carro se distanciava,avaliou a verdadeira dimensão daquela situação, seus perigos e armadilhas.Havia tido uma pequena amostra do que se seguiria nas próximas semanas.Dissimulações, preocupações e sobressaltos...

Um drama ia se desenrolar em Dellersbeck! Elizabeth e o espectro de suadoença, ela e Nick reconstituindo uma vida arruinada e Lisa... Sentiu o sanguecorrer mais rápido nas veias. Não havia mais como evitá-lo. Fizera um trato,

empenhara a sua palavra e, no íntimo, talvez até não o quisesse evitar. Por mais que negasse, não podia deixar de sentir algo por Nick. Pela primeira vez

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 32/116

 

em dois anos, estava excitada.

Karen passou os três dias seguintes num estado de espírito lastimável. Nicknão dera sinal de vida; ele jamais telefonava sem necessidade. Ela, por suavez, não procurou Elizabeth, temendo encontrar-se com Lisa. Ficou

simplesmente à espera de Nick.

Elizabeth telefonou algumas vezes, convidando-a para jantar, mas Karenrecusou delicadamente, alegando outros compromissos. Ela queria evitar umencontro com Lisa, pois ainda não se sentia preparada. Podia parecer ridículo,mas não podia prever a reação _ de Lisa. Resolveu então aproveitar o tempolivre para ir até seu antigo apartamento, terminar de arrumar suas coisas e dar uma satisfação pessoal à sua senhoria.

Como era de se prever, a sra. Biggins crivou-a de perguntas. Ofereceu-se para

guardar seus pertences no sótão, uma vez que se vira obrigada a alugar oapartamento de Karen a uma sobrinha recém-casada. Seria apenas por doismeses, mas prometeu a Karen que o reservaria para ela quando voltasse.

— Sabe como é, querida. Estamos numa situação apertada e todo dinheiro queentrar é bom — justificou-se. — Além disso, não sabia quanto tempo vocêficaria fora...

Karen respondeu que entendia e que estava tudo bem. Afinal de contas, já eratranqüilizador saber que teria um lugar garantido ao voltar, e isso já era mais do

que poderia esperar. Ela estava certa de que a sra. Biggins manteria a palavra.Depois de fazer algumas compras voltou para casa e, quando enfiava a chavena fechadura, ouviu o telefone tocar. Precipitou-se pelo corredor, já sabendo deantemão quem era.

— Onde você estava? — perguntou Nick impaciente, assim que atendeu. — Éa terceira vez que telefono, tentando encontrá-la!

— Desculpe, saí para fazer compras. — respondeu Karen. — Esperava queligasse de noite... Gomo estão as coisas aí?

— Mais ou menos. Estarei de volta esta noite, e creio que poderemos vir todosamanhã.

— Mas precisa dar algum tempo para Elizabeth se preparar, Nick! Já não sãoquase sete horas?

— Podemos viajar depois do almoço. Ouça, tenho trabalho aqui e não possoficar fora muito tempo. Agora faça as malas e assim poderemos ajudar Elizabeth amanhã de manhã. E não me espere para jantar, porque vou chegar muito tarde. Ainda tenho uma reunião às oito da noite.

— Está bem — Karen limitou-se a dizer, sabendo que nada mais que dissesseadiantaria.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 33/116

 

— Quero que ligue para Elizabeth e avise a ela. Isso vai me poupar tempo —pediu Nick.

— Está bem — respondeu, enquanto ele desligava secamente, sem mesmo sedespedir.

Depois de transmitir o recado a Elizabeth, Karen desempacotou suas compras,preparou seu jantar e começou a arrumar as malas para a viagem. Enquanto ofazia, não conseguia deixar de pensar no porquê de Nick voltar tão tarde. Sóhavia uma explicação: outra mulher.

Evidentemente, pensou ela, Nick não viveu como um monge nos dais últimosanos. Afinal, por que estava se martirizando daquela maneira? Agora Nick nãopassava de um estranho, apesar de estarem ainda legalmente casados. Aaproximação forçada não alterava em nada as coisas. Era apenas para o bem

de Elizabeth!Karen não conseguiu dormir direito, pois havia a perspectiva de Nick chegar aqualquer momento. À uma e meia, terminou o livro que estava lendo e esfregouos olhos vermelhos de cansaço. Nesse instante ouviu um suave ronco demotor aproximando-se da casa e, logo depois, o barulho da chave nafechadura da porta de entrada.

Karen ficou em suspenso, observando a luz por baixo da fresta da porta. Assimpermaneceu durante vinte minutos aproximadamente, sem que Nick desse o ar 

de sua graça. Começou então a se sentir aflita. O que estava acontecendo?Nick não era de comer antes de se deitar, além de que não se ouvia nenhumruído na parte de baixo da casa. O que estaria ele fazendo?

Finalmente não pôde mais se conter. Livrando-se das cobertas, saltou da camae foi até o hall, pé ante pé. Nenhuma luz na cozinha nem na sala de jantar.Dirigiu-se então para a sala de estar e, abrindo receosa a porta, chamoubaixinho:

— Nick?

Viu-o então sentado numa poltrona. Ele cochilava; na mesinha ao lado haviaum copo de uísque. Uma grossa mecha de cabelo caía sobre a testa e suaexpressão era de cansaço.

Ela ficou parada, indecisa a respeito do que fazer. Deixá-lo dormir? Mas comopoderia ele dormir bem naquela posição, depois de dirigir por um longopercurso? Talvez estivesse bêbado. Nick nunca fora de beber demais, masquem sabe? Dois anos podem mudar muito uma pessoa. Karen deu um passohesitante à frente e de súbito estacou, assustada. Nick tinha os olhos bemabertos e a observava detidamente.

— Bem, Karen, já tinha me esquecido do que é ter uma esposa me esperando

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 34/116

 

até estas horas...

— Eu... eu julguei que estivesse adormecido — respondeu ela, constrangida.

— E estava mesmo, até você entrar feito um zumbi... O que há? Está levando asério mesmo o seu papel de esposa?

— Nick, sabe que horas são? — perguntou ela, tentando ignorar o sarcasmodele. — Se pretende dirigir de volta a Dellersbeck amanhã, não acha que émelhor ir para a cama?

— Está preocupada comigo! — exclamou ele, enquanto afrouxava o nó dagravata e desabotoava a camisa. Logo em seguida acrescentou: — Ou seráque tem outras idéias em mente?

— Outras idéias? — repetiu Karen, atônita. E, ao compreender com que

intenção ele dissera aquilo, recuou chocada e fechou instintivamente a partesuperior de seu penhoar, dizendo: — Acho muita pretensão da sua parte!

— Por quê? Você afinal ainda é minha mulher!

Nick levantou-se como um gato. Aproximou-se rapidamente e, antes que Karense desse conta, enlaçou-a pelos quadris, puxando-a com força contra o seupróprio corpo e roçando os lábios no pescoço dela.

— Diga-me, Karen, o que pensaria se eu lhe confessasse que voltei a sentir por você os mesmos desejos que pensei estarem soterrados para sempre?

— Eu diria que você está maluco! — exclamou Karen, lutando com todas asforças contra a onda de excitação que lhe provocava a proximidade com ocorpo de Nick. Ainda nos braços dele, continuou, quase sem fôlego: —Esqueça, Nick! Sabe muito bem que isso não faz parte do trato.

— Sei mesmo? — disse ele, sem afrouxar o abraço. — Julguei que nosso tratotambém incluísse isso.

— Está bem, mas lembre-se de que foi só por Elizabeth!

Karen arrependeu-se do que disse, mas já era tarde. Nick afastou-a para trás

com brutalidade e, após se recompor, disse com amargura:

— Claro, eu me lembro. Puxa, como estou cansado!

— Você não é o único — observou ela, tentando ignorar o que se passara. —Quer que eu lhe prepare algo para beber? Há leite na geladeira e chocolate...

— Leite? Pelo amor de Deus, Karen! Poupe-me pelo menos desse seu zelo deesposa perfeita.

— Está bem, se você pensa assim... — disse ela, amuada. — Achei que o

ajudaria a dormir melhor.— Posso me virar sem isso — escarneceu ele, para logo em seguida esvaziar 

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 35/116

 

seu copo de uísque em dois goles. Depois, vendo que ela ainda estava aliparada, ordenou com rispidez: — Vá dormir, Karen, deixe-me sozinho! — Eatirou-se sobre a poltrona pesadamente.

Karen deixou-se cair sobre a cama assim que entrou no quarto. Tremia dos pés

à cabeça, estarrecida com o que havia ocorrido e amaldiçoando-se pelo seupróprio comportamento. Que idiota havia sido! O que mais poderia pensar Nickvendera lá, de penhoar e camisola? Bêbado ele não estava, mas certamentetomara vinho no jantar, e ela aparecia vestida daquela maneira... Oh, queestúpida! Ajeitou o travesseiro e tentou dormir, a despeito das lágrimas que lheescorriam pelo rosto: lágrimas de raiva e de frustração.

Já que criara toda aquela situação, por que não se deixara beijar? Oh, teriasido tão fácil! Quase natural! E novamente deixara o maldito orgulho prevalecer sobre o seu desejo! Sim, ela o desejara! Por que não tinha cedido a ele, emvez de permitir que um impulso de arrogância destruísse aquele clima deaconchego e ternura?

Mas foi sempre assim, pensou ela, enxugando os olhos com as costas dasmãos. O relacionamento deles sempre se baseou no orgulho, no amor-próprioe na teimosia. E não era a primeira vez que Nick lhe provocava raiva, dor efrustração. Será que não haveria fim para o seu sofrimento?

CAPITULO IV

No dia seguinte partiram logo após o almoço. Fazia um belo dia quandoiniciaram a viagem, mas nem bem haviam rodado oitenta quilômetros e já océu ficava nublado e os primeiros pingos de chuva começaram a cair. Logodesabou um temporal.

Nick dirigia em marcha reduzida, concentrado no volante. Felizmente a chuva

não afetou o ânimo de Elizabeth e Magda, que iam no banco traseiro. Magda,particularmente, um pouco gorda mas ainda muito viva nos seus sessentaanos, estava radiante com a perspectiva de rever sua querida Yorkshire econversava com Elizabeth alegre e animada.

Karen, sentada ao lado de Nick, estava totalmente absorta em seuspensamentos. Pensava na manhã que tivera. Havia tomado o café da manhãcom Nick. Ambos se comportaram naturalmente, como se nada tivesseacontecido na noite anterior. Depois, ela deu graças por ter um milhão de

coisas a fazer antes da partida. Arrumou toda a bagagem, guardou-a no carro,verificou se tudo estava em ordem na casa e ligou o alarme. Depois foi ao

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 36/116

 

apartamento de Elizabeth para ajudá-la com as malas. Quando deixaram tudopronto, já era hora do almoço.

Karen reprimiu um bocejo. O calor do carro, o monótono sacolejar e o ruído dachuva deram-lhe conta de seu esgotamento, tanto físico como mental. Aos

poucos foi mergulhando numa espécie de torpor que a mantinha alheia àconversa dos outros. Subitamente despertou com um movimento mais bruscodo automóvel. Devia ter cochilado por alguns minutos. Ouviu Elizabeth dizer aNick:

— Não seja teimoso, Nick! Não podemos prosseguir...

 Ao abrir os olhos, Karen viu que a chuva aumentara ainda mais. Estava escurocomo se fosse noite e os raios cortavam o céu, seguidos de trovõesensurdecedores.

— Agora não posso parar, mesmo que queira! — retrucou Nick, mal-humorado.— Controlem-se que eu vou em frente.

 As três ficaram nervosas e não trocaram uma palavra até surgirem as luzes deum posto onde Nick manobrou o carro, estacionando-o no abrigo dorestaurante. Ali acalmaram os nervos com um pouco de café e bolachas,enquanto esperavam diminuir a chuva.

— Você parece cansada, Karen — comentou Elizabeth.

Karen sentia-se meio desligada, envolvida numa espécie de torpor, masaprumou-se ao ouvir a voz de Nick.

— Ela está bem, não é mesmo, Karen?

— Como pode dizer isso, Nick? Você não tem coração? — observou Elizabeth,com um tom de censura. — Ela está pálida como um fantasma!

— Está assustada com o temporal, querida? — perguntou Nick, enlaçando-apelos ombros num gesto protetor.

— Não, Nick — respondeu ela, forçando um sorriso, contente por ter uma

chance de alfinetá-lo. — Só me assusta o modo como você dirige...Elizabeth deu uma gargalhada enquanto Nick retirava o braço, dizendorudemente:

— Se as meninas não precisam de mais nada, proponho irmos andando.

 A chuva diminuíra, o que contribuiu para devolver a boa disposição aosviajantes. Magda propôs pegarem uma estradinha secundária que ela conheciae que os faria ganhar vários quilômetros, e Nick aceitou. Porém, depois dealgumas horas rodando por caminhos estreitos, sinuosos e barrentos, seu bom

humor desapareceu. Karen e Elizabeth suspiraram aliviadas quando finalmentechegaram à estrada principal.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 37/116

 

— Normalmente faço o trajeto todo em três horas — disse Nick, irritado efulminando Magda com o olhar.

— Oh, lamento tanto! — desculpou-se ela. — Eu tinha certeza de que o atalhonos levaria à rodovia Helmsley.

— É, mas por pouco não voltávamos a Yorkshire, por causa disso! — exclamouNick.

— Nick, querido, o que importa isso? — interferiu conciliadora-mente Elizabeth.— Afinal, não estamos participando de um rali...

O sol despontou radiante por entre as nuvens quando chegaram ao topo dacolina. A beleza da vista que se. descortinou era indescritível. Lá estavaDellersbeck, linda e bucólica no fim da trilha verdejante e cheia de curvas. Aoredor, o campo pacífico e verde assemelhava-se a um lençol ondulante, onde

se viam casinhas de pedra protegidas por árvores frondosas.

Elizabeth estava feliz e ia indicando cada casa por que passavam. Tudo ali lheevocava lembranças agradáveis, de uma infância e uma juventude plenas defelicidade. Quando o carro passou ao lado de uma rua estreita no fim de umapequena ponte, ela não se conteve e, estendendo o braço para a frente, disse:

— Pare, Nick, por favor! Quero dar uma espiada aqui!

Sem dizer nada, Nick freou bruscamente. Elizabeth olhou ao redor e exclamou,enlevada:

— Meu Deus, como tudo isso é lindo! Como pude abandonar tudo um dia? — Abriu então a porta, desceu do carro e disse suavemente: — Vão andando,vocês! Quero dar um passeio.

— Não creio que seja aconselhável — protestou Nick. — Poderemos vir amanhã com calma, e...

— Não vou me perder, Nick... — Elizabeth parecia surpresa com a objeção. —E depois, são apenas dez minutos de caminhada! Lembra-se de que eu nasciaqui?

Karen notou um brilho estranho no olhar de Nick, enquanto ele observavaElizabeth afastando-se. Sem pensar, ela desatou o cinto e, pegando a bolsa noporta-luvas, disse:

— Deixe que eu vou com ela.

— Vai mesmo, Karen? — Havia gratidão em sua voz. — Muito obrigado.

Karen desceu do carro sentindo-se de repente inundada de um calor estranho.Finalmente haviam se tocado. Tomara uma iniciativa e ele ficara grato a ela.

Se bem que, pensou, no fundo, Nick só está se importando com a mãe, e eu,mais uma vez, agi segundo a vontade dele.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 38/116

 

Karen correu então ao encontro de Elizabeth, que já tinha alcançado a beira darepresa. Ao vê-la, exclamou:

— Oh, não! Nick forçou você a ficar comigo?

— Nem pense uma coisa dessas, Elizabeth! — respondeu Karen. — Eu estavaenjoada de ficar sentada no carro.

— Sim, foi uma longa viagem — observou Elizabeth, voltando a caminhar easpirando profundamente o ar puro do campo. — Eu precisava andar umpouco! É como se fosse a primeira vez novamente! Sabe, há muitos anos nósviemos aqui pela primeira vez e ambos tivemos o mesmo impulso de saltar docarro para caminhar pela margem da represa, como estamos fazendo agora...

— Nós? — perguntou Karen. — Refere-se a seu marido?

— Era um dia de março... — continuou Elizabeth. — Tudo era novo, inclusive avida, que recomeçava após um longo inverno. Havia conhecido James poucassemanas antes, mas desde o primeiro momento soube que seria dele parasempre. E quando todos nos esperavam em Yorkshire, ele me disseimpetuosamente: "Vamos, venha comigo para casa!" E, dando a volta no carro,viemos para cá... Quando chegamos à rua depois da ponte, ele desceusubitamente, pegou na minha mão e disse que queria me mostrar a trilha darepresa. É logo ali adiante...

Karen deixou-se conduzir em silêncio, talvez da mesma forma como Elizabeth

se deixara conduzir anos antes. O caminho estreitava-se por entre as copaslargas e arqueadas das árvores, e logo divisaram as águas da represa.Chegaram a uma clareira por onde passava um pequeno riacho com umapontezinha rústica. A água corria cristalina por debaixo dela e tudo em voltatrazia tanta paz que Karen sentiu os olhos inundados de lágrimas. Jamais viraum local tão lindo e tranqüilo como aquele.

— Foi nesta ponte que James me pediu em casamento — disse Elizabeth,comovida. — Daqui fomos direto à casa dele para falar com seus pais. Oh,como éramos felizes!

Karen não disse nada. Não se atreveu a quebrar aquele encanto e aquelacomunhão tão íntima entre Elizabeth e a paisagem que a cercava.

— O pai dele morreu seis meses depois do nosso casamento — prosseguiuElizabeth com a voz embargada. — E nós resolvemos construir o nosso lar aqui. A mãe dele ficou morando conosco; era uma mulher tão meiga e dócilque jamais houve atrito entre nós... Éramos simplesmente uma família feliz,numa casa feliz.

Karen baixou a vista e olhou para a água límpida. Era a primeira vez que ia aDellersbeck, apesar de já conhecer a cidade e a casa de Elizabeth por fotos.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 39/116

 

Mas nenhuma delas conseguia transmitir toda a magia daquele lugar maravilhoso.

— A casa pertence à* família há muito tempo? — perguntou baixinho.

— Há uns trezentos anos mais ou menos — respondeu Elizabeth. — Sei quehoje em dia seria impossível para vocês virem morar aqui, mas espero queNick não a venda depois da minha morte.

— Não! Estou certa de que não! Nick ama Dellersbeck...

— Oh, sim, eu sei disso. E até acho estranho como ele, que não é meu filholegítimo, tenha mais amor a este lugar do que Lisa. Ela, apesar de ser sanguedo meu sangue, jamais gostou daqui, e mal pôde esperar completar os dezoitoanos para ir embora. Sei que Lisa nunca moraria aqui, ao contrário de Nick. Elesempre foi fascinado por esta região. Sabe, quando James sofreu seu primeiro

ataque, Nick quis voltar a todo custo para ficar conosco, e quase tivemos demantê-lo à força na universidade. Afinal, precisava completar o curso, nãopodia abandoná-lo assim. Mas ele acabou concordando conosco ecorrespondeu plenamente a tudo o que esperávamos dele...

Karen jamais negaria isso, mesmo com o fracasso de seu casamento. Podiacompreender o sentimento de uma criança solitária, apesar de ela mesma ter tido uma infância feliz, ao lado de pais amados e protetores.

— Sim, acho que só quem teve uma família unida e feliz pode entender o que é

viver num orfanato. O tratamento pode ser o melhor possível, mas nunca seráequivalente ao dos verdadeiros pais...

Elizabeth encarou Karen com uma expressão de surpresa e disse:

— Orfanato? Mas, Karen querida, Nick jamais esteve num!

— Oh! Mas eu pensei... — Era a vez de Karen ficar intrigada. — Eu semprepensei que...

— Mas então ele nunca lhe contou?

— Bem, sei apenas que era órfão e que vocês o adotaram quando ele tinhaonze anos, depois de uma infância terrivelmente infeliz! — disse Karen. — Seitambém que a adora e faria qualquer coisa por você. Mas a respeito de suavida, Nick nunca me falou nada. Chegou mesmo a ficar zangado quando euinsisti para que falasse sobre isso comigo depois de nos casarmos... Ele medisse que nunca mais queria falar sobre isso.

— Oh, sim... — murmurou tristemente Elizabeth. — Ele tentou sempre apagar aquele tempo de sua memória. Inclusive proibiu a mim de tocar nesse assunto,e eu sei que está certo, depois de tudo por que passou. Nem mesmo Lisa sabe

da verdade, mas o que me surpreende é que ele nunca tenha falado a você,minha cara.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 40/116

 

— A verdade? Mas que verdade? — perguntou Karen. — Eu não entendo. Afinal, o que houve com ele para que... — Interrompeu-se com os olhossúplices. Tinha necessidade de conhecer todos os detalhes, mas ao mesmotempo não queria forçá-la a revelar coisas contra a vontade. Mas se tratava de

Nick! Ainda bem que Elizabeth se mostrava disposta a falar.— Foi muito triste — murmurou Elizabeth. — Na verdade, mais do que triste, foitrágico.

E passou a relatar todos os fatos que por tanto tempo foram mantidos debaixode um manto de névoa e de esquecimento.

— Nick nunca chegou a conhecer seus verdadeiros pais. Sempre lhe disseramque sua mãe tinha morrido quando ele era um bebê, e que seu pai, um oficialda Marinha, havia morrido no mar. Aos oito anos, soube da forma mais cruel

que sua mãe o teve aos dezessete anos de idade e o abandonou logo a seguir,desaparecendo em Londres. Seu pai, também muito jovem, alistou-se comomarinheiro e também sumiu, sem sequer revelar seu sobrenome. Seus avósmaternos resolveram então, ficar com o bebê e cuidaram dele até os sete anos,quando morreu o avô. A viúva, ainda bastante jovem, casou-se de novo, mascom um homem terrivelmente brutal e inescrupuloso. Não demorou muito paraque começasse a tornar um inferno tanto a vida da esposa como a do menino,submetendo-o a constantes espancamentos. Além disso, era pai de trêsgarotos mais velhos que judiavam muito de Nick. Sua avó, frágil e infeliz, não

tinha meios para protegê-lo, e Nick, então, fugiu de casa.Elizabeth fez uma pausa para recobrar fôlego. Karen esperava, entreimpaciente e fascinada.

— Nick foi encontrado em Durham, roubando comida num supermercado. Foidevolvido à família, e você pode imaginar a surra que levou, tanto que duassemanas mais tarde fugiu novamente, desta vez para Leeds, onde um guardao encontrou dormindo num abrigo de ônibus em plena madrugada. O pobregarotinho lutou tão selvagemente quando lhe disseram que iriam levá-lo para

os pais, que um dos guardas desconfiou. Ao examinar o corpinho dele,constatou, horrorizado, os ferimentos e as marcas de espancamento.Chamados em juízo, os pais adotivos disseram que Nick era um meninoimpossível e de maus instintos, além de uma série de outras mentiras. Com apromessa de que as surras não se repetiriam, foram autorizados a levar omenino, mas é claro que as coisas não mudaram. Meses mais tarde, o garotosofreu um espancamento tão cruel, que precisou ser internado num hospital.

— Meu Deus! Nunca pensei que essas coisas aconteciam de verdade! —exclamou Karen, horrorizada.

Ela simplesmente não podia crer no que estava ouvindo. Imaginou Nick,

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 41/116

 

pequeno e indefeso, à mercê de um mundo cruel e terrível... Elizabeth tinha lhedesvendado um outro lado de Nick, duramente sufocado. Por que ele nunca lhefalara sobre isso?

Elizabeth suspirou e prosseguiu:

— Depois da última surra e do internamento, Nick passou a ver o mundo deuma nova maneira. Para ele, tudo e todos eram ameaças, inimigos empotencial. Então começou a fazer guerra contra todos, numa atitude bastantecompreensível para um espírito revoltado contra tantas injustiças. Assim,passou a roubar e agredir pessoas, até que foi parar no Juizado de Menores.Meu marido era curador de menores e, a despeito da opinião de todos de que omenino não tinha remédio, viu nele qualidades inatas. Tratou portanto dearranjar-lhe um lar, onde ele pudesse desenvolver de forma sadia o seupotencial. E Nick foi adotado por um casal no dia do seu aniversário. Paratodos, aquilo significou o fim dos problemas do garoto. Teria finalmente umverdadeiro lar, onde poderia superar a infância infeliz e se realizar comohomem. Mas, três meses depois, soubemos que Nick estava em encrencasnovamente. Nessa época eu fazia parte do Comitê de Auxílio aosDesamparados. Fui então visitar Nick em caráter puramente social. Seus paisadotivos me disseram que não queriam mais nada com ele, pois era agressivoe intratável e recusava-se a aceitar qualquer regra. Nick, por sua vez, acusou ocasal de crueldade. Alegou ser odiado por eles, o que ambos negaram,indignados e perplexos. Como prova mostraram fotos de outras três criançasque já haviam adotado antes de Nick, agora bem empregados e encaminhadosna vida. A culpa só podia ser dele. Meu marido, no entanto, tinha se afeiçoadoao menino, vendo por baixo daquela aparente agressividade um caráter extremamente generoso e uma aguda inteligência. Era preciso apenascanalizar as energias de Nick para o caminho certo.

Nisso, Elizabeth calou-se, acompanhando com o olhar a passagem de umafolha sendo arrastada pela correnteza. Sua voz parecia vir das profundezas dopassado quando disse:

— Todos viam Nick como um caso perdido, mas nós conversamos muito comele e com todos os que o cercavam na época. O casal voltou a adotar outrogarotinho, um ano mais jovem que Nick. — Elizabeth sorriu com doçura. —Pergunto-me, às vezes, se Nick ainda se recorda do pequeno Richie e dequanto deve a ele...

Karen respirou fundo, mantendo-se absolutamente calada. Aquela tarde era derevelações, e aí estava mais uma passagem da vida passada de Nick que eladesconhecia e que estava para ser desvendada.

— Era um amor de menino — prosseguiu Elizabeth como que para si mesma.— Richie era uma criança viva, dessas que agradam professores, e tinha um

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 42/116

 

rostinho de anjo, que fazia com que todos confiassem nele mais do que nummenino como Nick. Por isso, quando um dia ele foi ao Juizado de Menores efez queixa contra o casal, quase da maneira como Nick o fizera, a coisa foiencarada de um outro modo...

Karen olhou fixamente para Elizabeth e perguntou, quase temerosa:

— Então havia algo de errado como eles?

— Se havia algo de errado? — repetiu Elizabeth. — Mas claro que havia!Nunca vi na vida algo semelhante.

Explicou então que os casais que se ofereciam para adotar as crianças dainstituição passavam por um teste rigoroso, a fim de se avaliar suas aptidõespara cuidar de garotos problemáticos; por isso mesmo os aprovadosdesenvolviam um trabalho maravilhoso, dando às crianças um ambiente de

verdadeiro lar e a segurança necessária para enfrentar o mundo. Mas, por algum motivo, parecia ter havido um monstruoso engano na seleção daquelecasal em particular. Ambos eram positivamente insanos.

— As piores queixas de Nick foram confirmadas pelo depoimento de Richie. Ocasal submetia as crianças às mais estarrecedoras torturas psicológicas, numexercício terrível de sadismo e maldade. As outras crianças que estiveram sobos cuidados deles foram interrogadas, e só concordaram em falar a verdadedepois de lhes assegurarem que não haveria represálias por parte do casal,

tanto era o medo que sentiam. Com a coincidência de todos os depoimentos,chegou-se à conclusão de que o casal simplesmente se divertia ao fazer sofrer e ao provocar medo naquelas crianças indefesas. Um caso extremo deperversão psíquica. Os meninos eram constantemente trancados num quartoescuro, sem janelas, passando a pão e água. Uma espécie de solitáriadoméstica. Além disso, havia outros castigos, tais como sentar-se à mesa masser proibido de tocar na comida, ou ver seus animaizinhos de estimação sendomortos diante de seus olhos. Pode-se imaginar o efeito desse tipo detratamento na mente de uma criança de nove anos. O casal jamais maltratava

fisicamente, mas seu processo de tortura mental era devastador.Karen gemeu aterrorizada, enquanto tapava os olhos com as mãos. Estava sesentindo mal e desejou que Elizabeth parasse de falar sobre aquelas crianças. Ao perceber o medo e a incredulidade no rosto de Karen, ela disse, suave:

— Sim, parece inacreditável tudo isso hoje, não é? Mas aconteceu, há mais devinte anos. Na época, fiquei sem poder tirar Nick da cabeça. Ele tinha sidolevado por outro casal para passar umas férias no litoral, enquantoprovidenciávamos algo definitivo para ele, e sabíamos que se falhássemosnovamente poderíamos destruí-lo. Por isso, não me surpreendi em nadaquando James me disse uma noite que também não conseguia tirar Nick da

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 43/116

 

cabeça. Na manhã seguinte ele propôs que adotássemos o garoto. Concordeiimediatamente, pois era exatamente o que eu queria, desde o primeiromomento em que vi Nick. Foi difícil esperar pelos documentos legais deadoção, pois não víamos a hora de levar Nick para casa. Mas queríamos fazer 

tudo certinho para não perdê-lo, caso sua verdadeira mãe voltasse um dia. Naépoca, muitos amigos tentaram nos dissuadir disso, uma vez que havia Lisa,com quase quatro anos; além do mais havia a possibilidade de os médicosterem se enganado quando me asseguraram que eu não podia mais ter filhos. Apesar de tudo, estávamos firmei mente decididos e hoje agradeço a Deus por ter inspirado o nosso gesto.

Elizabeth ficou um longo momento em silêncio, tentando recompor o estado deespírito abalado por lembranças tão tristes. Karen tinha um nó na garganta.Queria perguntar tantas coisas, mas não conseguia emitir uma só palavra.

Simplesmente não podia ajustar ai imagem atual de Nick à do garotinho sofridoe indefeso da historiai de Elizabeth. Nessa tarde ela havia conhecido um novoNick, um personagem cuidadosamente escondido e abafado durante todosaqueles anos. Elizabeth arrumou um pouco sua malha e disse:

— Eu acho que seria melhor você se manter discreta a respeito destas coisasque eu contei. Nick não me perdoaria por ter traído o seu segredo, mas pensoque era justo você conhecer a verdade. Pode ajudá-la a entendê-lo melhor emseus momentos de retração.

— Sim... — concordou Karen. — E quero lhe agradecer por ter sido sinceracomigo...

— Eu conheço o caráter dele e sei que muitas vezes Nick é difícil de seconviver... Isso porque foi marcado pela infância, solitária e infeliz. Mesmo comLisa, a quem adorava quando criança, ele mantinha sempre uma certa reserva.Seus amigos mais íntimos desconhecem seus verdadeiros sentimentos. Masvocê é diferente, Karen... Nick vai precisar de você, desesperadamente, e deveestar pronta a ampará-lo, porque é a esposa dele, e só você contará no finaldas contas.

Karen estremeceu com aquelas palavras. Sabia que era hora de dizer algo,pois Elizabeth se calara, à espera. Mas teria ela forças para falar, sem trair oseu verdadeiro estado de espírito? Então viu as mãos ossudas e frágeis deElizabeth agarradas na borda da ponte. Sentiu pena dela e, num impulsocomovido, passou o braço pela sua cintura enquanto dizia carinhosamente:

— Será que lhe agradaria saber que eu jamais amei outro homem a não ser Nick? Tudo o que quero é continuar ao lado dele para amá-lo ainda mais ecuidar dele quando precisar.

Karen calou-se. Nem bem começou a dizer a frase e já percebeu que era

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 44/116

 

exatamente o que sentia no íntimo. Era a pura verdade! Mas será que falaracom a devida convicção? Havia muito ressentimento entre ela e Nick, e temiaque isso pudesse ter interferido no tom de suas palavras. Tranqüilizou-se,contudo, ao sentir o aperto da mão de Elizabeth. Sorriu então para ela e disse:

— Mas você está gelada, Elizabeth! Já está escurecendo, não acha melhor voltarmos?

Elizabeth, entretanto, relutava em voltar, permanecendo colada ao corrimão,talvez desgostosa por ter que deixar de lado um passado cheio de tão boasrecordações.

— É tão claro este céu noturno do campo! — disse ela, meneando a cabeça. —É amplo e pacífico, e como traz conforto à alma. Até parece que o tempo nãoexiste! Como estou feliz por estar de volta, Karen!

— Sim, mas não ficará nada feliz se apanhar um resfriado, é o que aconteceráse ficar aqui neste ar frio — disse Karen, com um leve tom de censura. — Nickvai ficar furioso, sabe? E não vai ser com você, mas comigo, por não tomar conta direito de você.

Elizabeth sorriu enquanto passava também o braço pela cintura de Karen. Assim abraçadas, tomaram a trilha de volta. Karen, apesar da aparência joviale relaxada, sentia-se tensa por dentro. O peso das revelações de Elizabethfazia se sentir em seus pensamentos. Nunca mais ela poderia encarar Nick

como fizera até então. Finalmente encontrava uma explicação para as atitudespassadas dele. Sabia que tudo aquilo ia interferir decisivamente no futurorelacionamento entre eles. Mas de que forma?

Se ao menos ela pudesse prever o que iria se passar dali para a frente...

CAPITULO V

Nick esperava por elas do lado de fora. Com uma expressão contrariada,correu ao seu encontro assim que as viu despontar na alameda que levava àcasa. Karen instintivamente encolheu-se ao encará-lo.

— Já não era sem tempo! Onde vocês se meteram? — perguntou comrispidez. — Estava a ponto de mandar uma patrulha em busca das duas.

— Ora, que bobagem! — zombou Elizabeth. — Pensou que estávamosvagando, perdidas num pântano ou coisa parecida, querido? Ficamos apenas

conversando lá na pontezinha. Eu quis que Karen tivesse uma primeiraimpressão da casa à luz do dia!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 45/116

 

Sem dizer nada, Nick tomou Elizabeth pelo braço e a conduziu para a casa.Voltou-se em seguida para Karen e falou:

— Realmente, Karen! Achei que tivesse juízo suficiente para não expor Elizabeth ao sereno a esta hora!

— Chega, Nick! — cortou Elizabeth com severidade. — Karen não teve culpa!Fui eu que insisti, e não sei o que a América do Sul fez a você, mas nãomelhorou em nada o seu temperamento!

Karen estivera a ponto de comprar a briga. Sentia-se profundamente feridacom a injustiça com que era novamente atingida. Era uma sensação que jáexperimentara muitas vezes na companhia de Nick. Mas controlou-se aopensar em Elizabeth. Não desejava perturbar sua paz de espírito com umadiscussão inútil. Por isso, respondeu calmamente:

— Volto num minuto. Vou preparar algo quente para Elizabeth.

— Não é preciso, Magda fez um chá! — retrucou Nick. — Se bem que deveestar gelado a esta altura. Vocês ficaram quase uma hora por aí...

— Ora, por favor, Nick... é que eu comecei a falar do passado e nem senti otempo passar! — Elizabeth interveio, conciliadora. — Agora vamos a esse chá,mesmo gelado, querida Karen... Talvez possamos obter o nosso perdão.

Dizendo isso, conduziu Karen pelo braço por baixo de uma porta em arco atéum lindo hall, de onde se descortinava a sala de estar. Era acolhedora e o fogoaceso na lareira a tornava ainda mais aconchegante. Sobre uma mesinha baixade centro estava colocada uma bandeja com um bule de chá, biscoitos,sanduíches, vários tipos de doces e salgados e um pequeno bule de leite.Quando Karen se preparava para servir o chá, Magda entrou precipitadamentecom outro bule nas mãos.

— Largue esse bule, senhora! — disse ela, enquanto colocava o que tinhatrazido sobre a bandeja. — Acabei de fazer um chá novinho!

Sua expressão era radiante e feliz. Em Dellersbeck, Magda se transformava

numa mulher simples e descontraída. Era o seu ambiente, ali se sentia àvontade. Servia a todos comentando as virtudes e os defeitos do pão,desculpava-se dizendo que doravante iria fazê-lo em casa e, depois de todosservidos, perguntou:

— Bem... e quanto ao jantar?

— Jantar? — perguntou Elizabeth. — Já são quase sete horas, Magda! Aindavai fazer jantar?

— Bem... o sr. Nick sugeriu um rosbife e...

Elizabeth balançou a cabeça, interrompendo-a, e disse:

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 46/116

 

— Não acho certo colocá-la atrás do fogão depois de uma viagem tão longa. Além do mais, você precisa desfazer toda a bagagem ainda. Por mim, bastaficar aqui diante deste fogo maravilhoso. — E, olhando para Karen, perguntou:— E quanto a você, meu bem, está disposta a jantar?

— Estou sem fome — afirmou Karen. E, apontando para a bandeja,acrescentou: — Principalmente depois desse chá maravilhoso.

— Ainda não esteve na cozinha, não é, sra. Radcliffe? — perguntou Magda.

— Não — respondeu Elizabeth, surpresa. — Por quê? Há algo errado?

— Oh, não... nada errado! Mas está tão diferente! Há um novo congelador,cheio de comida. Aliás, há comida até o teto, em todo lugar. Nunca vi tantacomida assim na minha vida! O sr. Nick deve ter...

— Oh, sim, pode acreditar que sim! — cortou Elizabeth, sorrindo.— É um tremendo exagerado! Fico até com medo quando ele se mete a fazer compras, parece um louco!

— Nem sei se conseguirei achar as coisas... — continuou Magda.

— Ele comprou uma batedeira que serviria para um hotel! Diz que é parafacilitar o meu trabalho...

O sorriso alargou-se no rosto compreensivo de Elizabeth. Para consolar Magda, disse:

— Pois se você não aprova, já sabe o que fazer, minha cara! Afinal, não será aprimeira vez que você expulsa Nick da cozinha. Deve mostrar a ele que quemmanda ali dentro é você! — Tirou os sapatos, estirou as pernaspreguiçosamente e, indicando o sofá, disse: — Agora sente-se um pouco,Magda, e tome um gole de chá.

Magda obedeceu, depois de relutar um pouco. E as duas ficaram entretidas por um bom tempo em comentários sobre a casa, a alegria por estarem de volta, achegada de Lisa e o marido Clifford no dia seguinte, e outros assuntos que só

pessoas que conviveram muito tempo juntas podem ter.Karen permaneceu em silêncio o tempo todo, pensando em se deveriaoferecer-se para fazer algo para Nick. Provavelmente ele teria fome, e Magdaestava cansada da viagem. Por outro lado, sabia quanto ela era zelosa com acozinha, que considerava seu domínio absoluto. Mas Karen também se sentiaprofundamente cansada e o calor agradável do fogo fez efeito. Quase nãoconseguia manter os olhos abertos, e lutava desesperadamente para conter osbocejos que lhe vinham a todo instante. Nisso, entrou Nick como. um furacão.

— Nick! — disse Elizabeth, antes que Karen pudesse abrir a boca. — Quehistória é essa de jantar? Estamos todas exaustas e não creio que devamos...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 47/116

 

— Eu quero jantar! — exclamou ele com um gesto imperioso. — E não meimporto se vocês se satisfazem com um bocado de biscoitos com chá. Mas nãose preocupem, que está tudo sob controle! O jantar será servido às oito e meiae não quero ninguém atrapalhando lá na cozinha, entenderam bem?

Ele olhava significativamente para Magda enquanto falava. Esta, esquecidados ressentimentos anteriores, ficou imediatamente alerta.

— Qual será o cardápio, sr. Nick? — perguntou ela. — Bife e batatas fritas?

— Você me surpreende, Magda! — zombou Nick. — Será que deu para ter ciúme, nessa idade?

— Eu? Ciúme? Não entendo...

— Maggy, querida... Ainda não sabe que os melhores cozinheiros do mundo

são homens? Só preciso de quem lave os pratos depois!— E que tal se deixássemos os pratos para amanhã? — sugeriu Elizabeth,bem-humorada.

— Oh, não! Maggy cuidará deles num instante.

— Ah, não! Nada disso! — protestou Elizabeth, indignada. — Nem espere queeu permita que Magda vá lavar o montão de louça que você sujará, comosempre faz quando resolve divertir-se na cozinha.

— Oh, está bem... — disse Nick, apaziguador. — Deixaremos então para

Timsey, quando ela chegar amanhã.

— Timsey! — exclamou Elizabeth com os olhos arregalados. — Nick... nãoestá me dizendo que...

— É isso mesmo que eu disse — confirmou Nick, radiante pelo efeito causado.— Timsey virá trabalhar para você, como nos velhos tempos, lembra? Ela sónão veio hoje porque teve que tomar conta dos netos.

— Timsey! Não posso acreditar! Agora sei que estou de volta à casa! —Elizabeth ergueu-se para dar um apertado abraço em Nick.

— Ba melhor surpresa que poderia me dar, querido!

Ele a segurou carinhosamente entre os braços e disse, brincando:

— Então acho que merecerei o seu perdão.

— Perdão? Mas perdoar o quê?

— Bem... fui um pouco rude com vocês agora há pouco.

— Oh, nem pense nisso, filho! A tempestade nos deixou com os nervos à flor da pele, não é? Agora vá pedir desculpas à sua esposa, vamos! A pobrezinhaparece tão cansada! Mal pode manter os olhos abertos...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 48/116

 

Pela primeira vez desde que entrara na sala, Nick olhou para Karen. Ela estavamuito abatida e profundamente ansiosa após a sugestão feita por Elizabeth.Sentiu que Nick se aproximava mansamente, sentando-se no braço da poltronaem que estava. Segurou-a pelos ombros e puxou-a para perto de si.

— Cansada, querida? — sussurrou em seu ouvido;

Karen ficou mais tensa nos braços de Nick e odiou-o por tratá-la como umsimples brinquedo à sua disposição. Mas, diante do olhar de Elizabeth, viu-seforçada a conter o impulso de repeli-lo, limitando-se a dizer, num tomdisplicente que disfarçava a sua angústia:

— Oh, sim... um pouco. Mas já vai passar... Diga-me, quem é Timsey?

— Timsey era a espinha dorsal de Dellersbeck! — explicou ele, sempreabraçado a ela. — Era governanta da casa e babá de Lisa. Magda era só

cozinheira, na época. Quando nos mudamos para Londres, Timsey não quisdeixar a família. O marido dela, Rob, foi cavalariço de meu pai muitos anos. —Olhando para Elizabeth, perguntou:

— Lembra-se do dia em que ele me pegou tentando montar Lúcifer? Esteve aponto de me dar uma surra!

— Se me lembro... Nunca esquecerei aquilo! — exclamou Elizabeth. —Felizmente eu passava pelo estábulo e o impedi de bater em você. Nem sei setive mais raiva de Lúcifer ou de Rob, tentando impor disciplina a você daquele

 jeito. Foi intolerável. Afinal, você...— Elizabeth calou-se, então, apertando os lábios.

Mas o provável resto da frase sobreveio à mente atenta de Karen: "Afinal, você já tinha sofrido mais punições do que mereceria a vida toda". Não era o queElizabeth ia dizer? Em vez disso, ela deu outro rumo à conversa:

— Lúcifer era realmente um cavalo indomável! Se eu me preocupava até queJames o montasse, imagine Nick, um meninote...

— É... — disse Nick. Sua voz tornara-se seca repentinamente. Tirando osbraços de Karen, ele se levantou e disse: — Agora com licença, senhoras,preciso cuidar da carne.

E se dirigiu à porta, sem perceber que Karen se levantara num pulo e oseguira. Só deu por ela quando ia fechar a porta.

— Vou ajudá-lo.

— Pensei que estivesse cansada, querida...

— Oh, por favor, pare com isso, Nick! — desabafou ela, enquanto encostava a

porta atrás de si. — Lembre-se de que estou tentando fazer o melhor possível!— Oh, desculpe... Acho que estamos todos excitados.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 49/116

 

— Pois seria bem mais fácil se você não levasse tão a sério tudo isso! —sussurrou Karen, irritada.

— Ah, é? Pois a mim me parece que você não está se esforçando tanto quantodiz — comentou Nick, empurrando a porta que dava para uma larga cozinha.

— São necessários dois para levar isso adiante, sabia?

— E mesmo?

— O que quer dizer?

— Basta um para começar uma discussão... você!

— Já disse que sentia muito! — disse Nick, chateado. — Oh, pelo amor deDeus, olhe para esta carne! Como vamos poder comer, dependendo destavelharia?

Nick referia-se ao antigo fogão de lenha que servira a casa quando ainda nãohavia gás e que a mão de Elizabeth quisera conservar. Karen abriu o fornopara dar uma olhada e foi atingida por um fortíssimo bafo de calor no rosto.

— Está tudo bem — disse, depois do susto. — O forno está quente demais!Será que não dá para esfriá-lo?

— Nunca soube como o pessoal de antigamente conseguia lidar com estasgeringonças — resmungou Nick, mal-humorado. — Mas amanhã mesmo vouchamar um eletricista para instalar um termostato; só assim se pode controlar 

um pouco o calor.— Na verdade, esses fogões são muito eficientes quando se aprende a lidar com eles — comentou Karen. — Quem sabe se perguntássemos a Magda?

— Já disse que o jantar desta noite será por minha conta! E será mesmo! —insistiu teimosamente Nick. — Nunca na vida fui derrotado por um monte delata velha. Você poderia preparar alguma coisa para acompanhar.

Karen concordou e Nick ficou empenhado na luta com o fogão, vermelho comoum camarão e suando em bicas, enquanto ela inspecionava a despensa,

procurando algo para fazer. Como estivesse superlotada de mantimentos, nãodemorou a encontrar os ingredientes necessários para preparar um creme dedamascos como sobremesa.

Enquanto isso, Nick lavava e descascava as batatas. Ao vê-lo atarefadodaquele jeito, Karen não pôde conter o riso.

 A cozinha estava um pandemônio, e Karen podia imaginar a reação da pobreMagda quando a visse. Não havia mais lugar onde pôr comida e mantimentos;o congelador, a despensa e a geladeira estavam completamente abarrotados.

Havia utensílios de cozinha por toda a parte, alguns ainda em suasembalagens.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 50/116

 

Karen ferveu água para o café e colocou leite numa panela, depois de cortar queijo e colocar biscoitos numa travessa. Deu mais uma olhada no forno eperguntou a Nick:

— Onde é o meu quarto? Ainda vai demorar uns vinte minutos e eu gostaria de

me arrumar um pouco para o jantar.

— Lá em cima, primeira porta à esquerda, o quarto com banheiro anexo —respondeu ele, distraído em sua tarefa. — Já levei a sua bagagem para lá.

Karen chegou ao quarto depois de subir uma bela escada de madeiraentalhada, admirando no caminho as paredes cobertas de tapeçarias antigas.No topo da escada havia um grande hall, que se dividia em três largoscorredores. Num deles estavam os dormitórios. Abriu a primeira porta àesquerda e deu uma espiada. Lá estavam as suas malas, estava no quarto

certo. Com alívio, fechou a porta atrás de si e olhou curiosa para o ambiente.Como todos os quartos antigos, era amplo, tinha o teto alto e janelas enormescom cortinas azul-claras até o chão. Havia uma lareira com o depósito de lenhacheio. A mobília era muito sóbria, em estilo rústico. Karen lembrou-se de suacasa em Kent. Não se assemelhava em nada a Dellersbeck, mas ambastinham em comum a quietude e a mesma atmosfera acolhedora.

Sentiu os olhos se encherem de lágrimas, ao pensar na casa onde passara ainfância. Eram tempos que não mais voltariam, e ela, que muitas vezes não

dera o devido valor ao que tinha, sabia agora o que perdera. Enxugourapidamente os olhos e apanhou roupa de baixo numa das malas. Em seguidadespiu-se e abriu a torneira do banheiro, torcendo para que a água saíssequente. Foi então que se deu conta de uma coisa: o banheiro era grandedemais e havia duas camas no quarto!

Saiu precipitadamente do banheiro e correu até o guarda-roupa. As suassuspeitas se concretizaram. Estavam ali todas as roupas de Nick, suascamisas, meias, calças... Karen voltou ao banheiro só para constatar que aliestavam também seus cremes e loções, os apetrechos de barba e o robe.

Estava perplexa, sem saber o que fazer. Não era possível que Nick tivesselevado a encenação até aquele ponto! Karen tinha os lábios trêmulos e o rostotranstornado pela raiva. Saiu perturbada do banheiro e deu um pulo ao ver umasombra projetada sobre o tapete.

Era Nick, parado junto à janela.

— O que há, viu algum fantasma no banheiro? — perguntou ele com ironia.

— O que você está fazendo aqui?

— Vim fechar as torneiras que deixou abertas e as cortinas também —respondeu calmamente. — O que tem isso?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 51/116

 

— O que tem isso? — Karen falava, engasgada. — Saia já daqui!

— Sair? Do meu quarto?

— Seu quarto?

— Estou aqui desde a semana passada...— Então, por que trouxe as minhas coisas para cá?

— Acho que é óbvio, não é? — Ele sorria, sarcástico.

— O que você quer dizer com isso, Nick?

— Mas não é natural que marido e mulher ocupem o mesmo quarto? —respondeu Nick, enquanto ajeitava a gravata no espelho.

— Não neste caso! — retrucou Karen. — Estamos apenas fingindo e isso não

faz parte do meu papel!— Ora, não achei necessário discutirmos esses detalhes, pois acreditava quenão haveria dúvidas a respeito.

— Oh, você! Você... — Karen simplesmente não acreditava no que estavaouvindo. — Você é mesmo um cínico!

— E você, não está sendo uma tola? — indagou Nick, sem se perturbar. — Oque acha que Elizabeth pensaria se ocupássemos quartos diferentes?

Karen tremia de ódio. Sabia que os argumentos dele procediam e, ao mesmo

tempo, pressentia suas intenções pelo prazer arrogante que se desenhou emseu rosto ao ver que ela dispunha de meios para resistir. Estava numa belaarapuca, e era obrigada a agir segundo a vontade de Nick...

— Posso ajudá-la em algo? — perguntou ele.

— Não! — respondeu, orgulhosa.

— E por que não? — insistiu ele. — Tem medo de que eu não resista aos seusencantos, se me aproximar?

— Deveria ter, depois de todo o seu desprezo nesses dois anos?— Talvez, depois de tanto tempo, minha memória precise ser reativada...

— Talvez, mas não o seu cinismo, com certeza. E, além do mais, não tenho amínima vontade de ajudá-lo a refrescar nada! — disse Karen, enquanto sevestia desajeitadamente. Uma vez vestida poderia enfrentá-lo de igual paraigual. — Ouça, Nick, falando sério, eu exijo outro quarto para mim!

— Você sabe que não será possível — respondeu ele.

— Não quero saber de desculpas. Dê um jeito!

— Sinto muito, Karen, mas não tem escolha.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 52/116

 

— Nick! — Karen assumiu um ar trágico. — Eu não vou dormir com você!

— Não adianta nada você tornar as coisas mais difíceis do que já estão.

— Vou ser mais clara ainda, Nick: não farei amor com você!

— E quem falou em fazer amor? — Nick parecia surpreso. — Eu disse algoque pudesse sugerir isso?

— É bom que não diga mesmo!

— Espere aí, menina, e me ouça com muita atenção — disse ele, avançandocom ar ameaçador e agarrando-a pelos braços. — Está pensando que eu atrouxe aqui para violentá-la ou coisa parecida? Depois de tudo o que aconteceuhá dois anos? Acha que sou imbecil a esse ponto? Que tenho memória fraca?

— Nick, solte-me.

Karen estava assustada com a expressão de Nick. Ele a apertou com maisforça ainda, apesar da resistência dela.

— Como acha que eu me senti durante todo esse tempo? Sempre' remoendo oque havia se passado! Nem mesmo na América do Sul consegui me livrar disso. Um dia, estava caminhando por uma rua de uma cidade grande, lá...quando vi aquele... aquele...

— Olá?

 Aquela voz suave, seguida de uma batida na porta, congelou instantaneamenteo casal. Karen continuava paralisada, com os olhos arregalados, enquanto Nickrapidamente tirava as mãos dela, Voltando-se para a porta ele falou, num outrotom de voz:

— Sim? Pode entrar!

E assim dizendo, caminhou em direção à porta. Karen levou a mão trêmula aopescoço, tentando dominar o pavor que sentia por ele. Seu descontrole eratanto que Elizabeth ficou intrigada assim que entrou e a viu no meio do quarto,pálida e frágil. Apagando o largo sorriso que trazia no rosto, ela olhou para Nick

e disse, constrangida:

— Só vim avisar que está tudo pronto. Sentimos o cheiro da batata queimando,e só deu para Magda salvar a carne.

— Eu pensei ter dito que o jantar seria por minha conta — disse Nick, distraído.— Eu...

— Pois eu achei que foi muita sorte não o termos levado a sério — retrucouElizabeth, séria. — Vão demorar ainda?

Nick passou a mão nos cabelos. Olhou em torno e falou:— Karen vai descer logo, isto é, nós desceremos.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 53/116

 

Enquanto isso, Karen ajeitava os cabelos e a roupa, procurando dominar o seuintenso nervosismo. Finalmente correu em direção à porta, como se fugisse deuma tempestade.

— Eu já estou pronta...

Desceram todos em absoluto silêncio. Elizabeth sentia a tensão no ar, nomutismo zangado de Nick atrás dela e no tremor das mãos de Karen à suafrente.

O jantar daquela noite foi o pior de toda a vida de Karen. Invejouprofundamente Nick, por sua presença de espírito e por sua capacidade deocultar os sentimentos. Ele se portava de modo natural, falando com suavidadee confiança, servindo vinho e contando anedotas sobre sua passagem pela América do Sul. E tornando tudo fácil para ela, que só tinha de responder sim

ou não às suas observações. Nick conduziu a conversa com tal habilidade, queacabou contagiando Elizabeth, fazendo-a animar-se ao comentar algo sobre jardinagem.

— Vou me levantar ao nascer do sol! — comunicou alegremente a todos. —Quero fazer uma caminhada de inspeção.

— Oh, não vai, não! — proibiu Nick, brincalhão. — Você vai tomar café nacama e só sairá dela quando estiver bem descansada...

— Oh, Nick! — protestou Elizabeth. — Se acha que vou concordar em ser 

tratada como uma inválida, está redondamente enganado!Karen se aproveitou da oportunidade para sair da mesa, dizendo que ia fazer um café e pedindo a Magda para ajudá-la. Sentia-se culpada, apesar de haver concordado em fazer o jogo de Nick. E ele era mais um filho amoroso do quepropriamente um bom ator. Sabia que Elizabeth não era uma pessoa fraca, quetinha uma extraordinária energia para lutar contra uma moléstia mortal. E ainterferência demasiado protetora de Nick poderia acabar destruindo aautoconfiança daquela mulher forte e cheia de vida. Mas Nick havia posto nacabeça um objetivo, e ninguém no mundo poderia arrancá-lo dela.

Sim, Nick era feito de um material raro, desses forjados pela dor e pelosofrimento. E com esta tempera ele tinha vencido na vida, galgando umaposição de destaque na qual se mantinha a ferro e a fogo. Agora Karen podiaentender as razões que o levavam a agir e a pensar assim. Tinha tomadocontato, graças a Elizabeth, com a página secreta da vida de NicholasRadcliffe. E isso, em vez de lhe dar alguma vantagem sobre ele, aumentava asua impotência.

Terminando de fazer o café, Karen levou-o à sala de visitas e foi chamar os

outros na sala de jantar. No momento em que atravessava o hall, o telefonetocou. Hesitou antes de atender, sabendo que não poderia ser para ela. Só

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 54/116

 

podia ser para Elizabeth ou Nick, e ela não sabia se deveria chamá-los.Finalmente, resolveu atender.

— Quem está falando? — perguntou uma voz do outro lado da linha. Karen areconheceu imediatamente.

— Aqui é Karen... — respondeu, tentando manter a calma. — Como estápassando, Lisa?

— Oh, tudo bem... — Lisa também parecia insegura. — Eu não tinhareconhecido a sua voz.

— É que há muito tempo não nos falamos — respondeu Karen. — Mas espereque vou chamar a sua mãe.

— Certo! Um instante, Karen... — Depois de uma pausa, Lisa prosseguiu: —

Está... está tudo bem aí?Karen ficou olhando para o hall vazio, surpresa por perceber um certo medo navoz de Lisa. Depois respondeu:

— Sua mãe está muito feliz por estar de volta. Ela está com ótima disposição,apesar da viagem cansativa que tivemos...

— Ah, que ótimo! — disse Lisa. — Nick está aí?

— Está sim, quer falar com ele?

— Não... não agora! — Apesar da distância, Karen podia imaginar a expressãode Lisa. Ela estaria mordendo o lábio inferior ao dizer: — Se puder chamar amamãe, por favor... Não vou cansá-la demasiado.

— Acho que ela já vem vindo... — disse Karen, ouvindo o som de vozes nocorredor. Estendeu o fone a Elizabeth assim que ela apareceu na porta, eavisou: — É Lisa.

Depois de passar-lhe o fone, Karen foi para a sala de visitas. Serviu café paraMagda, Nick e para si mesma e sentou-se numa cadeira num canto escuro.Sentia-se entorpecida e dominada pelo cansaço. Tudo o que desejava era ficar 

só, isolada de todos. Fazia apenas algumas horas que chegara a Dellersbeck,mas tinha a impressão de que já se haviam passado dias. Olhando para orelógio, viu que ainda eram nove horas, muito cedo para se recolher. Faltavaresolver o problema do quarto, e era preciso uma solução imediata, pois Nicktinha que entender que a representação não poderia ser levada a tal ponto.

Isso a levou a pensar novamente no relacionamento entre eles. Às vezes,imaginava se o casamento e o breve período em que estiveram juntos nãopassara de um sonho. Um sonho louco, onde caminhavam de mãos dadas,

intoxicados de felicidade por se haverem encontrado. Subitamente o sonhotinha acabado. Um fim irreversível e definitivo, soterrando o amor e a

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 55/116

 

compreensão e erguendo entre eles uma barreira. Um fim que revelou um Nickdiferente, um Nick acusador e impiedoso, sem disposição para ouvir e discutir.E finalmente a desilusão, o desinteresse em se defender e a certeza de não ter sido nunca amada de verdade. Quem ama confia, jamais exige explicações

impossíveis, jamais condena sem compreender...Karen piscou assustada ao abrir os olhos. Algo a arrancara do devaneio emque estava, e ela soube logo o que era, depois de acostumar a vista à luz dofogo. Nick olhava para ela com um brilho intenso nos olhos. Parecia estar humanizado, pronto para um contato aberto. Mas quando ele se moveu umpouco, voltou a surgir a habitual agressividade, fazendo Karen suspirar,decepcionada. A dureza sempre estivera naqueles olhos, ela é que se deixaraenganar pelo reflexo do fogo.

No momento em que Nick se levantava, Elizabeth entrou na sala. Pediudesculpas por haver demorado; trazia no rosto uma expressão preocupada.

— Era Lisa — explicou ela. — Disse que não poderia estar aqui amanhãporque chegou um sócio de Cliff de Nova York e eles terão de recepcioná-lo.Mas espera estar livre na quinta-feira à tarde... — Interrompeu-se, sentando emsilêncio e aceitando a xícara que Magda lhe estendera.

Nick resmungou algo ininteligível, e saiu da sala, deixando as três mulheres asós. Karen ficou observando atentamente Elizabeth. Lá estava ela, calada epensativa, olhando para o fogo. Suas atitudes haviam mudado radicalmente

após o telefonema de Lisa e, pela primeira vez no dia, deixava transparecer ossinais de sua doença. Tinha o rosto pálido e murcho, os olhos pesados eabatidos e as mãos tremiam ao segurar a xícara. O que Karen gostaria desaber era se aquele súbito abatimento se devia a algo que Lisa dissera ou osimples desapontamento com o adiamento da tão esperada reunião familiar.Sentiu de repente uma profunda compaixão por Elizabeth.

— Vá se deitar, querida — disse gentilmente. — Você teve um dia longo ecansativo.

— Sim... — concordou Elizabeth com um leve sorriso. — Sinto-me realmenteexausta. Não se importa que eu a deixe?

— Ora, não diga isso! — censurou Karen docemente. — Há algo que eu possafazer para ajudar?

Mas Magda já se antecipara e estava tirando a xícara das mãos de Elizabeth.

— Vou levar um bom copo de leite para você quando estiver deitada — disse,sorrindo. — O café costuma tirar o sono...

Depois de as duas terem deixado a sala, Karen ficou imaginando onde Nickpoderia estar. Ele havia simplesmente desaparecido. Enquanto o esperava,

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 56/116

 

tirou a mesa. Depois de tudo arrumado, achou que seria bom deixar a mesapreparada para o café da manhã, e estava entretida nessa tarefa quando ouviupassos entrando na sala. Virou-se bruscamente, mas relaxou ao ver que eraapenas Magda. Ela viera esquentar um pouco de leite e repreendeu-a por estar 

trabalhando ainda.— Oh, mas você já tem tanto trabalho, Magda — disse Karen, desculpando-se.— E eu me sinto melhor em saber que posso ajudá-la um pouco. Não está meachando intrometida, não é?

Magda riu, ao contrário do que Karen esperava, e respondeu carinhosamente:

— Dou graças a Deus por estar aqui, senhora! Eu estava preocupada empensar no que faria para cuidar das coisas com a família toda por aqui. É umacasa muito grande esta, e a sra. Lisa, como sabe, não é de dar uma mão. Pelo

contrário, sei que não deveria dizer, mas é das que gostam de ser servidas emtudo! É a própria donzela... Mas, pudera, casou-se com um sujeito tão distinto enobre... — Nisso Magda interrompeu-se para desligar o fogo, e continuou: —Sim, senhora... Lisa fez um ótimo casamento!

Karen preferiu não dizer nada sobre o que ela pensava sobre o casamento deLisa. Ainda mais que Magda não era capaz de esconder nada de Elizabeth.Mas Magda estava mais interessada em seus próprios pensamentos.

— O que conta é uma pessoa ser feliz, não importa com quem se case, não é

mesmo?— É verdade, Magda — concordou Karen, forçando um sorriso. — Agora émelhor eu ir, porque Nick pode estar preocupado.

— Oh, o sr. Nick está lá fora! — disse Magda. — Ele costuma dar sempre umacaminhada à noite. Só que antes ele levava um cachorro, e agora vai só. Mas,ouça... Acho que é ele!

Karen olhou para fora, na direção apontada por Magda, e viu uma sombra semovendo em direção à casa. Como a luz da cozinha era mais clara do que lá

fora, era difícil identificar quem vinha. Deu graças a Deus por estar emcompanhia de Magda, pois poderia ser um intruso tentando entrar na casa.Mas quando a porta da cozinha se abriu, viu que era Nick.

— Venha, Karen — disse ele, sereno. — Vamos lá fora respirar um pouco de ar puro antes de fecharmos a casa.

Karen estava pronta a recusar quando se lembrou de que estavam diante deMagda. Assim mesmo tentou escapar, dizendo:

— Deve estar frio lá fora, e não tenho agasalho aqui.

— Tome este meu — disse Nick. — Não se preocupe com a elegância, porqueninguém vai vê-la, mesmo.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 57/116

 

— Sim, vá! — Magda apoiou. — Um pouco de ar fresco ajuda a gente a sesentir melhor.

Nick já tinha pego uma velha malha dependurada atrás da porta e estendeu aela.

O que Karen menos desejava naquele momento era caminhar com Nick. Masnão viu outra saída senão encolher os ombros e seguir obedientemente emdireção a ele.

CAPITULO VI

 Ao colocar-lhe a malha, Nick tocou-a nos ombros e apertou-a por um momento.Para qualquer pessoa aquilo seria um gesto carinhoso de um marido protetor,mas para Karen não passava de mais um reforço à tremenda encenação emque ambos estavam comprometidos. Nada mais que isso.

Nenhum deles falou enquanto saíam da casa e davam a volta por umapassagem lateral, na escuridão da noite e debaixo de um vento frio e forte. Nickentão parou, de repente.

— Eu a trouxe aqui para podermos falar sem sermos interrompidos — disse ele

em voz baixa mas firme.

— Já não foi tudo dito? — respondeu Karen, enquanto fechava melhor oagasalho e olhava fixamente para ele. — Acho que só resta um problema a ser solucionado e você sabe qual é.

— Não estamos nos saindo muito bem nesse jogo, não é?

— Não vá pôr a culpa em mim, Nick! Eu avisei que seria difícil e você tambémnão está facilitando nada!

— Não posso dizer que você esteja sendo maravilhosa. Além disso, estápensando que...

— Espere aí, Nick. Vamos esclarecer só uma coisa: eu não vim até aqui paradiscutir ou ouvir novas recriminações! Eu... eu não vou . agüentar por muitotempo...

Karen sentia-se alterada, apesar dos desesperados esforços para se manter fria. Mas aquele momento era um dos poucos em que poderia desabafar,mesmo que fosse para Nick. Por isso não tentou controlar as suas palavras:

— Pelo amor de Deus, Nick! Tente me compreender... Oh, seja razoável!— Como acha que eu me sinto? — retrucou ele. — Acha que isso me agrada?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 58/116

 

— Não sei, Nick... só sei que está sendo mais duro do que eu imaginava! Naverdade, seria até melhor que eu me fosse daqui... Elizabeth entenderia que...

— Não! Você não pode fazer isso, pois arruinaria tudo o que fizemos até agora!Ouça, Karen, é preciso evitar a todo custo que Eliza-beth descubra algo!

— Tenho medo de que ela descubra por eu ficar...

— Não, se nós esquecermos as nossas diferenças, ao menos por enquanto —propôs Nick, olhando-a fixamente. — Se você parar de se preocupar com esseproblema do quarto, eu...

— Oh, não! Sei que me comprometi a fazer tudo para o bem de Elizabeth,mas...

— Karen... — Nick interrompeu-a segurando-lhe os braços. — Sei como se

sente, mas temos um problema a enfrentar! Ouça, eu só poderei ficar aquialguns dias por semana, uns dois ou três no máximo. E eu lhe prometo quenada farei para transgredir os limites de sua intimidade, nada que não seja doseu inteiro consentimento! Está bem assim?

Karen olhou-o, indecisa. Ele parecia estar sendo sincero, como ela jamais ovira, e sabia quanto lhe custava falar daquele jeito. Ao mesmo tempo, oproblema não parecia tão simples de ser resolvido: ambos num mesmo quarto,compartilhando de uma intimidade tão grande e ao mesmo tempo com tantasbarreiras entre si... No fundo, era um desafio para os nervos. Por outro lado,

ela ainda não se havia esquecido daquela noite em que tinha «idosurpreendida de penhoar em plena sala.

— Ouça aqui, Karen, eu sei que está tudo acabado entre nós! — falou Nick,parecendo ler os pensamentos dela. — Estou perfeitamente ciente de quenada mais pode ser feito. E então, confia na minha palavra?

Karen estava a ponto de suplicar: "Não, não permita que tudo termine assim".Lá estava ele, tão junto dela, com a certeza de uma vida arruinada. Parecia tãonatural que se abraçassem como fizeram tantas vezes no passado... No

entanto, tudo era diferente agora. Nick afastou-se um pouco dela e disse, firme:— Se isso a ajuda a colaborar, eu prometo facilitar as coisas para você se livrar de mim rapidamente e com uma boa pensão, quando tudo estiver terminado.

— Não é preciso me subornar. Não quero nada de você.

— Estou fazendo isso por Elizabeth, querida.

 Aquilo pôs fim ao pouco de calor que renascia dentro dela. Apesar de o ventoestar mais fraco, Karen sentia frio, um gelo a envolver seu corpo e seucoração.

— Eu também... — disse ela. — Acho que isso está bem claro. — E virou-se

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 59/116

 

rapidamente, para evitar que ele notasse a decepção que se estampara emseu rosto, caminhando de volta para a casa.

Nick somente a alcançou quando estava quase na porta. Ela sentiu a mão deleem seu braço, detendo-a.

— Espere aí, Karen.

— O que quer agora?

— Não pode entrar desse jeito, como se eu fosse o monstro mais repelente domundo. Tenha cuidado com Magda, por favor!

— Magda?

— Sim, Magda! Não notou ainda o jeito dela?

— Não estou entendendo, Nick...

— Por acaso você é cega? Não vê que Magda é uma solteirona, e quesolteironas não deixam escapar nada?

— Ainda não consigo entender. O que quer dizer?

— Ela não tem nenhum laço emocional que interfira em seu julgamento, Karen.Magda é inteiramente fiel a Elizabeth, acha que tem o dever de contar a elatudo o que vê, ouve e repara! Entendeu agora? Será que preciso ser maisclaro? Todos, menos você, podem ter esquecido daquilo!

  Aquelas palavras atingiram frontalmente Karen. Sentia-se confusa, maspressentiu instintivamente o que Nick estava sugerindo. Por isso arriscou:

— Está me dizendo que Magda sabe?

— Espero sinceramente que não! Fui elegante o bastante para convencê-la deque não era você quem estava naquela fotografia...

— Fotografia?

— Ora, vamos, Karen! — Nick parecia surpreso e irritado ao mesmo tempo. —Não vai querer me convencer de que não sabe a que foto eu me refiro. Não

sou tão imbecil a ponto...

— Está bem! — interrompeu ela, exasperada. — Mas o que tem ela a ver comMagda?

— Magda viu a foto — esclareceu Nick, seco. — Ela me perguntou até se nãoera você, alguns dias atrás.

— Não! É impossível! — exclamou Karen; tomada de súbita fraqueza. —Ninguém poderia ter me reconhecido! A imagem estava péssima, e...

— Acalme-se, pelo amor de Deus, Karen! — pediu Nick enquanto a amparavacom os braços. — Eu estou só prevenindo... Cuidado com Magda! Eu disse a

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 60/116

 

ela por telefone que devia estar enganada e que havia centenas de garotas emLondres daquele jeito! Acho que ela engoliu porque não insistiu mais. Mas eutive certeza! Embora a sua figura estivesse meio fora de foco, reconheci logo abolsa que eu lhe havia dado de presente. Foi isso o que me deu certeza, mas,

felizmente Magda não reparou no detalhe. E a manchete... "Stephan. Essa é agarota misteriosa, hoje no estúdio de Vincent Kayne". — Sua voz tornou-seamarga e acusadora: — Tudo o que me ocorreu na hora era que devia evitar que Elizabeth soubesse!

Karen cambaleou, sentindo-se terrivelmente mal. Aquilo novamente aperseguia... Será que nunca teria paz? Fez um esforço para se livrar dosbraços de Nick e derrubar o agasalho. Nick agachou-se e apanhou-o,recolocando-o em seus ombros enquanto dizia:

— É melhor entrarmos agora, você -está tremendo demais. — Abriu a porta eacrescentou: — Lembre-se: cuidado!

Talvez fosse apenas impressão, mas Karen poderia jurar que Magda, junto àpia, lançava um olhar especulativo aos dois quando entraram. Sorriacarinhosamente, no entanto.

— Está frio lá fora, não é? As noites daqui são sempre mais frias do que emLondres — comentou a governanta. — Quer que eu lhes prepare uma bebidabem quente?

 A única coisa que Karen desejava no momento era fugir dali, ficar só, massentiu o olhar firme e observador de Nick às suas costas. Isso a fez esforçar-separa manter a calma e responder:

— Não, obrigada, Magda. Tenho que desfazer as nossas malas ainda.

— Você está cansada, querida. Não espere por mim — disse Nick suavemente.— Ainda tenho que verificar umas coisas na casa. Se quiser, pode ir se deitar.

  Apesar do tom gentil e cordial, ela sentiu a advertência contida naquelaspalavras. Por isso, concordou levemente com a cabeça e despediu-se de

Magda, torcendo para que ela não pensasse mais naquela fotografia.Mas ainda persistia a horrível dúvida quando Karen se preparou para dormir. Ese Magda se lembrasse? Talvez o fato de vê-la novamente tivesse avisado amemória de Magda, fazendo-a recordar-se do que vira há tanto tempo eassociar isto à partida repentina de Nick para a América do Sul. Quem sabeMagda tivesse até guardado o recorte do jornal?

Karen tentou se acalmar, convencendo-se de que não valia a pena imaginar opior. Afinal, estava se comportando de forma perfeitamente natural, e, se Nicknão tivesse revelado aquelas coisas, ela nem mesmo teria se preocupado coma presença de Magda. Agora, porém, sabia que não teria mais paz. A

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 61/116

 

governanta parecia ter adquirido uma nova feição, sinistra e inquietante.

Bem, pensou, Nick resolverá qualquer problema que houver; fará o que for necessário para garantir a tranqüilidade de Elizabeth. Depois, Karen não tinhamais o que perder. Tudo o que mais desejara na vida tinha sido destroçado por 

acontecimentos relâmpagos e forças incontroláveis.

 Ali deitada, na fria solidão do quarto escuro, era impossível deixar de pensar naquela manhã fatal, dois anos atrás. Fazia um dia frio e chuvoso e otelefonema a apanhou indecisa sobre se ia ou não sair para fazer compras. Seao menos tivesse saído um minuto antes, não teria ouvido aqueledesesperado, irrecusável pedido da ajuda. E depois, se houvesse recusadoaquele drinque oferecido por Stephan... Tivera a premonição do desastre e aentrada do fotógrafo a fizera perder o controle. Se ela não tivesse corrido... Ofotógrafo notou a sua fuga e imediatamente a associou à tal garota misteriosa.Depois a foto, o escândalo, as acusações e o amargo suplício daquelas cenascom Nick... E ela prometera, jurara guardar segredo. A terrível opção entrequebrar a palavra ou perder um amor...

Karen acordou, sobressaltada. Havia cochilado sem perceber. Nick estavaentrando silenciosamente no quarto, com o máximo de precaução para nãoperturbá-la. Ele estava cumprindo a sua parte do trato, esforçando-se por manter aquela convivência dentro dos mais cautelosos limites do respeito. Masno silêncio que se seguiu, cortado pela respiração firme e regular de Nick,

Karen continuava perdida em suas lembranças. Será que conseguiria pegar nosono?

Tinha Nick a seu lado, quase ao alcance da mão. Nunca pensou que estasituação voltasse a se repetir depois da separação. E como dormiam felizes umao lado do outro antigamente! Como se procuravam com ansiedade durante anoite.

Karen despertou com o toque suave de Nick em suas costas. O sol já brilhavae ele estava sentado na cama, ao lado dela. Na mesa-de-cabeceira havia uma

bandeja com chá.— Magda trouxe o seu café da manhã, mas eu disse a ela que eu mesmo adespertaria — disse Nick, sorrindo. — Achei que você se sentiria melhor assim.

— Oh, sim... Obrigada.

Karen recostou-se no travesseiro, tratando de ajeitar a alça da camisola sobreos ombros nus. Sentia-se perturbada e indefesa naqueles trajes, emdesvantagem em relação a Nick. Ele, no entanto, tratou logo de desfazer osseus temores, comentando com uma careta:

— Céus, você está horrível!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 62/116

 

Karen estendeu a mão trêmula para apanhar a xícara, dizendo, constrangida:

— É... é que não dormi muito bem...

— É, reparei. E chorou também durante a noite, não é?

— Eu chorei?— Sim. Pode me dizer por quê?

— Eu não chorei! — exclamou ela, enrubescida. — Deve ter sido imaginaçãosua.

— Minha imaginação não me levaria a me levantar da cama — replicou Nick.— Quase a acordei para saber se estava se sentindo bem, mas conclui quenão seria bem interpretado.

— Ficou com pena de mim? — perguntou Karen para disfarçar a perturbação.

— Bem... No fundo, sabe, até que tenho sentimentos.

— Não diga! Mas pode estar certo de que não me provocaria nenhuma lágrima.

— Oh, claro. Além disso, é um pouco tarde para estas coisas. Agora beba oseu chá.

Uma onda de raiva voltou a invadir o coração de Karen. Por mais que tentasse,não conseguia enfrentar Nick de igual para igual. Tomou o chá e pulou dacama, já prevendo um dia cheio. Levou um susto ao se olhar no espelho. Nick

não exagerara no comentário que fizera: tinha o rosto pálido e os olhosinchados de chorar. Sua aparência era tão desanimadora que sentiu impulsosde voltar para a cama e ficar lá o resto do dia. Mas sabia que isso eraimpossível, já que tinha feito um trato.

Karen tentava lutar contra os seus próprios escrúpulos. Desejava ardentementeencarar Elizabeth com naturalidade, parar com aquela terrível dissimulação eenfrentar a todos de cabeça erguida. Censurava-se amargamente por não seconvencer de que não tivera culpa no rompimento com Nick. Afinal, ela semprese mantivera fiel à verdade, jamais lhe mentiu. Jurara nunca ter encontrado

Stephan antes daquele dia fatídico e prometera que nunca mais o veria. Nicknão acreditara numa palavra. Depois, Vincent Kayne, amigo de Nick, o únicoque poderia ajudá-la a desfazer o mal-entendido, morrera num acidente deautomóvel, deixando-a só, desacreditada e com uma promessa a ser mantida.

Karen suspirou profundamente. Ao descer a escada, viu Nick acabar de tomar o café e se preparar para sair. Explicou rapidamente que iria comprar algumasmudas na cidade para Elizabeth e deixou-a só na sala. Logo que ele saiu,Elizabeth entrou muito satisfeita e aparentando disposição.

— Acho que vou acompanhá-la em mais uma xícara de café! — exclamou,depois de dar um beijo em Karen. — Tenho milhões de coisas para fazer aqui e

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 63/116

 

não vou ficar numa cama!

Passou então a relacionar uma série de coisas a serem feitas, como trocar osestofados da sala, as cortinas, o papel de parede do hall e consertar um vidrodo quarto que estava trincado.

— O vidro é o principal! — afirmou, séria. — Preciso trocá-lo antes que Lisachegue, pois a desastrada se cortaria, na certa!

Karen permaneceu calada, pensando em Lisa. Sempre fora assim, todos sepreocupavam em proteger Lisa das encrencas. Desde pequena, parecia ter umdom especial para meter-se em confusões. Quando criança, costumava ter acidentes constantes e, mesmo com a chegada de Nick, não deixou de dar preocupações constantes a Elizabeth. Na época, Lisa tinha apenas quatro anose causava terríveis dores de cabeça a todos. Talvez por isso mesmo

precisasse de proteção constante.— Esta será a primeira tarefa do dia — insistiu Elizabeth.

— Oh, perdão! — exclamou Karen num sobressalto. — Eu não estavaprestando atenção.

— Então não sou só eu que tenho essa mania! — disse Elizabeth, sorrindo. —Eu estava dizendo que é preciso deixar o quarto arrumado para a chegada deLisa e Clifford!

— Quarto? — Karen ficou curiosa. — Qual quarto?

— Oh, o meu, naturalmente! — esclareceu Elizabeth. — Eu me mudarei para oquarto de trás. Não posso deixar Lisa e Cliff junto com Magda e Timsey. Cliff não aprovaria! Ele acha que não se deve ficar junto com os empregados,sabe? E Lisa também não gostaria de usar o velho banheiro do segundo andar.Por outro lado, não quero fazer Magda e Timsey subir escadasdesnecessariamente, portanto já tenho tudo planejado: Lisa e Cliff ficarão naminha suíte; você e Nick na suíte dos hóspedes; Magda, Timsey e euocuparemos os quartos menores e dividiremos o banheiro. Assim se evita de

utilizar a parte superior da casa, e nem eu...— Um momento! — Karen interrompeu, sem se conter. — Não pode fazer isso,Elizabeth! Lisa e Cliff podem muito bem ficar com o nosso quarto. Eu não meimporto em dividir o banheiro e Nick jamais permitirá que você deixe o quartoque sempre ocupou!

— Oh, não, querida... Eu nem sonho em instalá-los num aposento que não temsequer uma pia! Além disso, já pensou no pobre do. Nick, tendo que dividir obanheiro com três mulheres?

— Pois acho que ele vai gostar menos ainda é do seu plano.— Você acha, é? — Elizabeth parecia sinceramente surpresa. — Mas ele é tão

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 64/116

 

sensato! Certamente vai entender!

O soar frenético da campainha, seguido de um vozerio excitado e ruidoso,interrompeu a discussão. Timsey chegava em alto estilo, parecendo querer derrubar a casa.

O nome Timsey sempre sugerira a Karen uma mulher pequena e frágil, mas apessoa que entrou desfez totalmente esta imagem. Timsey era enorme,barulhenta e esfuziante, e fez Elizabeth sumir em seus braços fortes. Tinha orosto cheio e queimado, os cabelos curtos e a fisionomia ao mesmo temporude e carinhosa da gente do campo. O que mais se destacava nela eram osolhos bondosos e brilhantes que a tornavam simpática logo à primeira vista.

Karen, porém, não estava preparada para o aperto de mão que recebeu deTimsey; teve de se esforçar para não berrar de dor. Em poucos instantes, ela

encheu a casa de alegria e calor. Karen deixou-a numa conversa animada comElizabeth e subiu ao quarto para fazer a mudança. Estava com melhor disposição, contagiada pela vitalidade devastadora da criada.

Como ninguém a tivesse incomodado, terminou logo de guardar as coisas delae de Nick nas malas e de dobrar cuidadosamente as toalhas. Fazia a camaquando Nick entrou, possesso.

— Que diabos está fazendo? — perguntou ele, feroz, e atravessou o quarto emlargas passadas. Agarrou-a pelos ombros, gritando, exaltado: — O que pensa

estar fazendo? Não me diga que você vai embora!— Nick! Quer me largar? Eu não vou a lugar nenhum!.— balbuciou Karen,tonta com os safanões que levara.

— Então por que está arrumando as malas? Não tente me enrolar, Karen! Nóstemos um acordo, lembra-se? Não me ponha tudo a perder!

— Quando acabar com as suas imprecações, talvez me deixe explicar tudo! —exclamou Karen, mal podendo conter o riso.

 Algo em seu rosto deve ter acalmado Nick, porque ele a largou e ficou mais

gentil, apesar de ainda estar pálido. Fitando-a com muita atenção, eleexclamou:

— Então não entendo mais nada, raios! Por que estava...

Karen interrompeu-o e, com calma, contou-lhe a conversa que havia tido comElizabeth à mesa e os planos que ela fizera. A expressão de Nick foi sesuavizando, traduzindo seu alívio. Mas de repente ele tornou a franzir o cenho.

— É isso, então? — limitou-se a resmungar.

— E eu achei que nós é quem devíamos nos mudar — completou Karen. —Tenho certeza de que você concordará.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 65/116

 

— Sim, claro... — murmurou, pensativo. — Mas eu entendo o ponto de vistadela. E quanto a você? Não se incomodará com isso?

— Com o terrível sacrifício de não ter um banheiro privativo? — ironizou Karen.— Acho que não... De fato, nem sabia o que era um, antes de nós nos

casarmos.

Divertia-se pensando que, apesar de toda a preocupação de Nick, ele nuncasoubera que ela nunca tinha tido um banheiro dentro de casa durante toda ainfância. Ainda se recordava da horrorosa aventura que era tomar um banhonaquela época, sobretudo no inverno. Faltava muito pouco para virar umsorvete, a despeito das toalhas quentes que sua mãe preparava nessasocasiões.

— O problema é que Dellersbeck não acompanhou o progresso —. disse Nick.

— Mas ainda vou dar um jeito. Venha, Karen, acho que você ainda nãoconhece a casa toda.

— Ainda não — confirmou ela, enquanto terminava de empilhar a roupa dacama.

Nick já a aguardava na porta, com visível impaciência. Juntos percorreram oprimeiro andar. Aos poucos Karen começou a entender a preocupação deElizabeth. As duas suítes, que davam para a parte da frente, eram ensolaradase agradáveis; já os quatro quartos estavam abandonados há muito e

mostravam visíveis sinais de umidade e má conservação.— Devem ter sido lindos quando novos... — comentou Karen, tentando aliviar aexpressão de desagrado de Nick. — Estes desenhos de estilo da parede estãosendo muito reproduzidos e valorizados hoje em dia...

— Pois, por mim, podiam continuar na obscuridade — resmungou Nick,olhando em volta. — Não sou a favor de se voltar no tempo. Estamos no séculoXX e temos que viver de acordo com ele.

— Oh, não... — murmurou Karen, magoada com o tom de suas palavras ao

falar da impossibilidade de voltar no tempo, apesar de ela mesma nãoalimentar ilusões quanto ao futuro. — Mas a vista daqui é linda!

— É verdade — concordou Nick. — A vista daqui é mais bonita do que a dafrente. Vamos abrir a janela para arejar um pouco.

Não foi tarefa fácil abrir aquelas janelas, emperradas por anos de desuso. Afinal Nick conseguiu fazê-las ceder, levantando com isso uma nuvem depoeira. A lufada de vento que entrou trouxe pó e lascas de pintura gasta para orosto de Karen. Ela sentiu uma dor aguda no olho direito e virou-se com umgrito.

— O que houve? — perguntou Nick.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 66/116

 

— Nada... Acho que entrou algo no meu olho...

— Vamos ver isso! — disse ele, seco, puxando-a pelo braço. Ela quase gostouquando Nick a puxou para bem perto dele e,

segurando cuidadosamente seu queixo, tentou forçar a pálpebra com o dedo.O olho de Karen estava bastante vermelho e lacrimejante, mas naquelemomento isso não importava muito.

— Já estou vendo — murmurou Nick, atento. — Fique bem quietinha que tiroesse cisco com o meu lenço.

Karen estava trêmula de emoção ao sentir o calor da respiração dele no rosto.Na segunda tentativa, ele conseguiu remover o cisco.

Nick usou o lenço para enxugar com suavidade as lágrimas que estavam ainda

de sua vista e não soltou o seu queixo.— Karen — disse ele, fazendo-a olhar para cima —, desculpe-me se fui rudecom você.

— Não tem importância... — balbuciou ela timidamente.

— Talvez não, mas quero que saiba que reconheço os esforços que estáfazendo... Sei que não tem sido fácil para você. Para falar a verdade, nemestava seguro de que concordaria em me ajudar.

— Eu não tive escolha, Nick...

— É, admito que não... Foi por causa de Elizabeth, sabe... Se você soubesse oque ela significa para mim, entenderia o que eu sinto...

"Eu entendo, Nick", sentiu-se tentada a dizer, mas conteve-se sabendo queElizabeth só lhe contara tudo porque tinha confiança em sua discrição. Edepois, não fazia grande diferença que ela soubesse do passado de Nick. Eraaté melhor ter bem em mente as reais intenções dele para evitar umenvolvimento emocional mais profundo ou marcante naquela curta e forçadaconvivência. Mas seria realmente a contragosto que ela estava ali, nos braços

dele, sentindo seu hálito, o contato de suas mãos?Karen ficou tensa subitamente. Precisava livrar-se do encanto daquele contato. Aquilo só poderia trazer mais mágoas e decepções. Tinha plena consciência deque, mesmo que se entregassem um ao outro naquele momento de emoção,seriam movidos apenas por um impulso irracional. Logo que Nick recuperasseo controle, voltaria a agir com a habitual agressividade e dureza, fazendo-asofrer.

Por isso Karen levantou-se precipitadamente e apoiou-se no peitoril da janela,

pondo o rosto para fora e esperando que o vento frio a ajudasse a se acalmar.— Eu... acho que posso entender... — murmurou, perturbada. — Agradeço o

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 67/116

 

seu pedido de desculpas, de qualquer forma...

— Quando eu a vi fazendo as malas, pensei que...

— Sim, eu sei... —Karen interrompeu, já mais refeita. — Mas saiba que eu nãopartiria dessa maneira, sem um aviso. — Apesar de tudo, a presença de Nickainda era inquietante. — Oh, Nick, mostre-me o resto da casa. O que é ali?

— Era o quarto de estudos, onde passei tremendos apuros — contou-lhe Nick,seguindo-a de perto. Ao chegarem ao pé da escada que levava ao segundoandar, perguntou: — Quer subir?

— Sim, quero! Mostre-me o seu quarto antigo, depois subiremos, está bem?

— Oh, sim, claro — concordou ele, retornando pelo corredor. Parou diante deum quarto e disse: — É esse aqui. Creio que servirá à Timsey, se Elizabeth

não fizer objeção.Karen aproximou-se curiosa da porta que Nick havia aberto. O quarto erapequeno e ainda conservava a decoração com motivos infantis. A mobília era aque se vê em qualquer quarto de criança, toda decorada em tons creme ebranco.

— Foi você quem escolheu a decoração? — perguntou Karen.

— Foi, sim — confessou Nick, enquanto arrancava dois  posters da parede. —Duvido que Timsey aprove isto.

Vasculhando distraidamente a escrivaninha. Karen se deteve intrigada diantede um pequeno martelo de madeira entalhada, junto à cama.

— O que é isso?

Nick não parecia muito disposto a explicar.

— Eu o instalei quando tinha treze anos. Há um jogo igual a esse no quarto aolado, que era de Lisa. — Dizendo isso, ele apanhou o martelo e o revirou napalma da mão.

Karen continuava à espera, visivelmente insatisfeita com a explicação. Nicksuspirou fundo e continuou:

— Nós encontramos um par de martelinhos quando brincávamos pela casa;não tenho a menor idéia de por que estavam aí.

— Deviam ser objetos de adorno — sugeriu Karen, apenas para falar algumacoisa.

— É, sim... — concordou Nick, relutante. Por fim resolveu contar: — Lisa tinhapesadelos terríveis à noite, sabe? Isso então me deu uma idéia curiosa:

coloquei um martelo em cada parede e disse a ela que, quando tivesse medo,bastaria dar três pancadinhas na parede; eu responderia com outras três e ela

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 68/116

 

saberia que eu estava aqui, acordado e velando por ela. Bem... aos poucosfomos inventando um código, que nos permitia conversar durante a noite. Erauma bobagem, mas ajudou muito Lisa. Por isso ela nunca permitiu que eudesmontasse esse aparelhinho infantil de comunicação...

— Mas as batidas não repercutiam pela casa toda, incomodando os outros? —quis saber Karen.

— Eu acho que não, embora não esteja certo disso — respondeu Nick,pensativo. — As paredes são muito sólidas ei estes quartos são isolados dorestante da casa. Mas creio que mesmo se Elizabeth ouvisse não teria achadoruim. Ela só tinha a agradecer tudo o que ajudasse Lisa a vencer o medo.

Nick fez uma pausa, com o olhar perdido no infinito. Depois olhou para Karen edisse:

— Nunca vou me esquecer da primeira vez que vi Lisa ter um pesadelo. Tinhasonhado que estava amarrada numa fogueira, e acordou gritando desesperadae correu para o quarto dos pais. Chorava e se esfregava freneticamente, comose estivesse apagando chamas no corpo. Nunca vou esquecer aquela cena...— repetiu ele com voz rouca. — Tivemos que ficar todos a seu lado por muitotempo, até que ela conseguiu dormir novamente.

Karen acompanhou Nick até o quarto que fora de Lisa um dia e que agora seriaocupado por Magda. Estava ainda bastante impressionada pelo relato de Nick.

Ela própria, apesar dos pesadelos que costumava ter, nunca ouvira nadasemelhante ao caso de Lisa. Sentiu um arrepio pelo corpo quando olhou paradentro. O quarto estava vazio. Nada havia nele agora que lembrasse apresença da pequena Lisa. Nada, a não ser o martelinho pendurado à parede,única testemunha muda dos medos daquela criança.

— De qualquer modo, Magda ou Timsey terão um bom remédio, caso algumadelas tenha pesadelos à noite — ele comentou.

Karen não ouviu as últimas palavras, pois estava novamente perdida em seuspróprios devaneios. Sonhava acordada. E, neste sonho, era ela quem dormiana cama daquele quarto nu. E na cama estreita, infantil, ela ria feliz edespreocupadamente enquanto transmitia com o pequeno martelo ternasmensagens de amor e conforto a Nick, do outro lado da parede.

Nick parecia também ligeiramente aéreo, entorpecido pelas lembranças dopassado...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 69/116

 

CAPITULO VII

 A faxineira que Nick contratara para a temporada mandou um recado dizendo

que só poderia aparecer na semana seguinte. Conseqüentemente o trabalhocaseiro acabou recaindo em grande parte sobre os ombros de Karen. Ela atéagradeceu por isso, pois a casa a manteria ocupada, evitando assim de pensar em seus problemas. Além disso Nick mostrara-se bastante prestativo,ajudando-a na medida do possível.

Estavam naquele momento consertando a cortina do quarto deles quando Nick,do topo da escada em que estava, praguejou:

— Diabos! Veja só o que ela está fazendo com esse frio todo! Está ajoelhada láfora!

Karen desligou o aspirador de pó que estava usando e foi dar uma espiadapela janela. Efetivamente Elizabeth estava ajoelhada na grama, arrancandoervas daninhas. A seu lado estava Timsey, examinando as roseiras e falandoanimadamente, talvez censurando-a por sua imprudência.

— Quero que me prometa uma coisa, Karen! — pediu Nick de repente.

— Se estiver a meu alcance... — murmurou ela, meio desconfiada.

— Sei que Elizabeth não gosta que eu a proteja tanto, mas também não posso

deixar de me preocupar. Será que você não poderia ficar de olho nela,impedindo-a de cometer excessos?

— Ora, Nick, nem precisava me pedir isso! — exclamou Karen, aliviada. —Mas você não acha que Elizabeth £em bom senso suficiente para saber atéonde pode ir? Não a estaremos perturbando se a vigiarmos como se ela fosseuma irresponsável?

— Ela andou falando com você, é?

— Para falar a verdade, sim!

— Foi o que pensei — disse Nick, contrariado, ao descer da escada. — Bem,não vou obrigá-la a me contar o que ela disse, mas saiba que conto com você,está me entendendo?

Na manhã seguinte, Karen sentiu que Nick a olhava duramente antes de ir embora para a cidade, como se fizesse uma advertência. Beijou Elizabeth e,enlaçando Karen, conduziu-a para fora da casa. Parecia bem-humoradoquando disse, baixinho:

— Não vá se esquecer das minhas recomendações, ouviu?

— Não se preocupe — respondeu Karen friamente.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 70/116

 

— Está bem, eu lhe telefono à noite — disse Nick. E, olhando em direção àcasa, acrescentou: — Ê o que elas esperam que eu faça, assim como issotambém. — Tomou-a então nos braços e beijou-a demoradamente na boca.

Karen estremeceu, mas não o repeliu. Quando ele a largou, ela disse, evitando

olhá-lo:

— Não se preocupe, tomarei conta de Elizabeth.

— Ótimo! — exclamou ele, enquanto punha a mala dentro do carro e dava apartida. — Estarei de volta na terça.

Nick partiu e Karen ficou ali parada, sentindo ainda nos lábios o calor daquelebeijo perturbador.

Os dias em Dellersbeck pareciam vazios sem a presença marcante de Nick.

Karen tentava se consolar, dizendo para si mesma que finalmente teria umpouco de sossego, mas alguma coisa dentro de si parecia desmenti-la, pois sesurpreendia constantemente pensando em Nick. Sentia sua falta, sobretudoporque Lisa estava para chegar e ela detestaria ter que enfrentar essemomento sozinha.

 À medida em que se aproximava o dia, Karen ia ficando mais apreensiva. Nãosabia como seria o encontro com Lisa, apesar de não haver aparentementenenhum motivo para temê-lo. Afinal, Lisa desconhecia o que se passara entreela e Nick, e mesmo que soubesse jamais contaria à mãe. Assim como Nick,

Lisa nutria um profundo respeito por Elizabeth e jamais a magoaria.Mesmo assim, quando um reluzente Mercedes branco estacionou junto à casa,Karen sentiu as mãos geladas e o corpo tenso. Era um fim de tarde de umaquinta-feira. Cliff, o marido de Lisa, foi o primeiro a descer. Era alto, de físicobem constituído e cabelos claros. Então a porta da direita escancarou-se,revelando uma figura bem vestida, com os braços extravagantemente abertosnum gesto de exagerada alegria, como que querendo abraçar a casa e todosque estavam nela.

— Mamãe! — gritou Lisa ao descer do carro. — Timsey! Oh, que alegria!Lisa continuava atraente e elegante como sempre. Trajava um conjuntoescarlate, com blusa e botas brancas e um pequeno chapéu sobre os cabeloscurtos, claros e bem cortados. Tudo nela combinava com perfeição.

— Karen, minha querida! Como é bom vê-la de novo! — Lisa saudou-a com asmãos estendidas. — Puxa, temi que Nick a tivesse perdido em alguma floresta!

Karen teve dificuldade para reconhecer Lisa, agora de cabelos louros. Não quedois anos a tivessem mudado muito, mas é que se lembrava dela com cabelos

castanhos e com um outro penteado. A mudança confundiu-a, a princípio. Nomais Lisa continuava a mesma, sem aparentar os vinte e sete anos que tinha

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 71/116

 

agora.

Clifford, por sua vez, exibiu seu costumeiro sorriso amarelo. Habitualmentereservado e austero, ele nunca mantivera com Karen uma conversa informal.Ela jamais pôde compreender como duas pessoas tão diferentes como Lisa e

Cliff podiam ter sentido atração um pelo outro. Talvez uma questão de química,deduziu, enquanto Cliff ia distribuindo os cumprimentos de praxe e Lisasaltitava pela casa, dando gritinhos de excitação e prazer. Finalmente pôs-sediante do fogo aceso da lareira e, estendendo as mãos para aquecê-las,exclamou alto:

— Oh! Como é bom saber que Percy continua aqui!

Percy era uma velha e assustadora armadura medieval colocada junto àlareira, como que a vigiar a entrada da sala.

— Oh, lembram-se do dia em que entrei nele para assustar Nick e fiqueientalada lá dentro? — perguntou Lisa a todos.

— Se me lembro! — antecipou-se Timsey. — Seu pobre pai ficouassustadíssimo, pensando que a casa estava desmoronando!

— Sim — confirmou Elizabeth, rindo. — E como foi duro arrancá-la daí! Aparede ainda está marcada por causa disso...

— Nick disse que eu deveria ter ficado presa o resto da vida, para aprender!Bem, foi adorável, não foi? Por falar nisso, onde está ele?

— Nick precisou voltar a Londres — respondeu Karen, já que todos semantiveram calados.

— Londres? — Lisa olhou para Karen como se ela fosse culpada. — Como eleousa estar fora no dia em que eu chego?

— Ele achou que você só viria no início da próxima semana, querida! —Elizabeth justificou. E, dando uma olhada para Karen, completou: — Ele estaráde volta na terça, não é mesmo?

— Mas não seria melhor ajudarmos Clifford com a bagagem? — sugeriu Karen,hesitante.

— Oh, deixe! — disse Lisa. — Cliff é forte; além disso não há muita bagagem,pois ele só vai ficar o fim de semana.

 Apesar disso, e conhecendo Lisa, Karen foi dar uma olhada. Clifford vinhaentrando com duas malas enormes e dentro do carro havia ainda umainfinidade de sacolas ei maletas. Karen apanhou algumas e dirigia-se à casaquando Clifford a deteve com um gesto e disse com firmeza:

— Agradeço a sua gentileza, mas pode deixar comigo!— Mas, já que tenho de lhe mostrar o quarto, não custa nada levar alguma

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 72/116

 

coisa! — replicou Karen, começando a subir a escada.

— É isso mesmo! — disse Timsey, que também viera para ajudar.

— G melhor é aproveitar a viagem.

— Lisa! — gritou Clifford, visivelmente contratei to. — É melhor recolher o restodas coisas, parece que vem chuva!

 Apesar do modo cortês como falou, algo no seu tom de voz demonstravaclaramente a sua insatisfação. Algo que Lisa também percebeu, pois selevantou imediatamente da poltrona e correu para fora, voltando carregada desacolas e pacotes.

— Não vai chover coisa nenhuma! — gritou ela, emburrada. — E onde é onosso quarto? — perguntou, enquanto subia.

— Aqui — respondeu Karen, mostrando a porta aberta.— Céus! — exclamou Lisa, encantada. — Sempre sonhei em dormir aqui! Massó ficou pronto depois que eu me casei!

— Bem, querida, tivemos que fazer algumas reformas para justificar o preçofantástico que o corretor pediu pela casa — disse Elizabeth, que subiratambém e estava encostada ofegante no armário. — Mas está uma beleza, nãoacha?

— Maravilhoso!. — afirmou Lisa, olhando-se no espelho. — E não se esqueça

de que fui eu que escolhi as cores de tudo! — E, dizendo isso, saiu para ocorredor disposta a visitar o resto da casa.

Todos a seguiram quando a ouviram gritar de longe:

— Cliff! Venha ver o meu quarto de antigamente! Meu Deus, como parecepequenino agora... — Chegaram a tempo de vê-la voltar da janela e pegar omartelinho da parede. — Oh, está aí ainda! — E dando umas batidinhas nopainel, exclamou: — Era esse o nosso código secreto. Nick e euconversávamos assim durante a noite. Oh, Nick sempre teve idéias tão

maravilhosas!— É, mas já está crescidinha para essas bobagens, não é, querida?

— observou Timsey, enquanto ajeitava a colcha que Lisa desarrumara ao seajoelhar sobre a cama.

— Ora, só é bobagem quando se está muito velha! — disse Lisa, recolocandoo martelo no lugar e dando uma rápida olhada em Karen. Depois abraçouTimsey e acrescentou: — Você, por exemplo, já não aprecia mais isso, não é,minha velha Timsey?

Saiu novamente pelo corredor, deixando todos parados. Timsey disse que iaajudar Magda com a comida enquanto Elizabeth seguia Lisa para saber se

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 73/116

 

precisava de alguma coisa antes de se preparar para o jantar. Cliff permaneceuimóvel junto de Karen por um curto momento, indeciso sobre o que fazer.Karen notou algo em seu olhar. Uma estranha suspeita, misturada comdesespero, que surgira quando Lisa falava do martelo e que permanecia até

agora.O fim de semana, que marcava a volta de Elizabeth a Dellersbeck, acabousendo festivo. Lisa parecia feliz por estar ali, junto da mãe e de Timsey, e atémesmo Cliff tinha, aos poucos, abandonado o mutismo e o mau humor em queestivera desde a chegada. Timsey, por sua vez, estava sempre ao lado deElizabeth, particularmente nos momentos em que ela parecia abatida ouamedrontada. Karen ficara muito agradecida a Timsey por isso e estavacontando tudo para Nick ao telefone.

— Ótimo! — disse ele. — E os outros, estão bem?

— Sim — respondeu Karen. Então, vacilando um pouco, comentou: — Lisaficou muito decepcionada com a sua ausência...

— Ah, eu não tive tempo de preveni-la — respondeu ele num tom casual, paradepois perguntar: — Ela está aí?

— Não, ela e Cliff foram tomar um drinque em Longdale.

— Ela já se aborreceu por estar aí?

— Acho que não... Parece estar muito feliz.

— Bem, então podemos encerrar o relatório — disse Nick. — A gente se vê naterça! Até lá!

Karen desligou o telefone. Então era tudo... nem uma pergunta a respeito dossentimentos dela...

Mas também, pensou tristemente, que tolice esperar tal coisa de Nick!

O tempo virou no domingo. Amanheceu chovendo e ventando. Apesar disso,Elizabeth teimou em ir à igreja, dizendo que nada e ninguém a impediria de ir lá

depois de tantos anos longe de Dellersbeck. Cliff levou todas até St. Stephen,uma igreja do século XV, construída em pedra e distante sete quilômetros deDellersbeck. Ali, Elizabeth e James haviam se casado; ali tinham batizado Lisae Nick fizera lá a sua primeira comunhão; ali também fora palco doacontecimento do ano: o casamento de Lisa. O pastor estava encantado por ver Elizabeth novamente.

— Ah, minha mulher vai lamentar tanto não tê-la encontrado, minha cara —disse ele, enquanto apertava fortemente a mão de Elizabeth à saída do culto.— Ela precisou atender a uma parente enferma. Mas você não voltará a

Londres tão já, não é?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 74/116

 

— Oh, não! Estou amando estar aqui de novo! — respondeu Elizabeth,radiante. Depois apresentou Karen ao pastor, cumprimentou os velhos amigose conhecidos e convidou vários deles para jantar com ela em Dellersbeck. Sódepois concordou em entrar no carro para voltar à casa.

— Aquele alemão que convidou sua mãe para jantar pareceu-me bastanteatraído por ela, não acha? — perguntou Cliff com um brilho malicioso no olhar,depois que Elizabeth se retirou para a sesta habitual.

— É mesmo? — indagou Lisa com um muxoxo. — Acho que devíamos impedi-la de aceitar tantos compromissos.

— Ah, é? E como poderíamos fazer isso? — perguntou Cliff.

— Eu não sei... Mas garanto que Nick saberia!

— É mesmo, Lisa? Mas será que se deve influir nas decisões de uma pessoaadulta? — questionou Cliff, respirando fundo e pondo de lado o jornal queestava lendo. — Ela não terá direito de se reunir a velhos amigos? Estaráinválida a tal ponto?

— Não sei... — respondeu Lisa, olhando a chuva bater na vidraça. — Não épor isso que está aqui? Que estamos todos aqui?

Seguiu-se um silêncio constrangedor. Cliff abanou a cabeça sem dizer nada eKaren não se sentia animada a responder a Lisa. Mas ela insistiu, desta vezdiretamente:

— Diga-me, Karen, você acha que mamãe vai morrer?

— Eu... não sei. Espero que não... — disse Karen, aflita.

— Oh, eu não acreditei nisso, mesmo quando os médicos asseguraram quesim! Mas agora eu tenho medo... estou acreditando neles.

— Meu Deus, Lisa, você precisa ser tão mórbida? — disse Clifford.

— Mas é a verdade, não é?

— Nada é verdade enquanto não acontece, Lisa! — disse Cliff, segurando-apelos ombros. — E, até lá, nada podemos fazer, está entendendo? Agora, quer um drinque?

— Não, obrigada.

— Você quer, Karen?

— Não, obrigada, Cliff.

— Bem, eu vou querer um — decidiu ele e saiu da sala. Karen olhou para Lisae levou um choque ao constatar sua palidez.

Levantou-se da poltrona e perguntou:

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 75/116

 

— Está se sentindo bem, Lisa?

— Oh, sim... estou bem! — respondeu Lisa, assustada. — Bem, acho queafinal vou aceitar aquele drinque...

E dizendo isso saiu da sala, deixando Karen com a estranha sensação de quea cunhada a estava evitando. Mas não podia ser real, Lisa não tinha o quetemer dela, não tinha porque se esquivar. Só podia ser coincidência!

Mas no dia seguinte Karen teve certeza. Em duas ocasiões ela ficara só comLisa. E, nas duas vezes, Lisa dera uma desculpa para se retirar.Definitivamente a evitava. Mas por quê? Não havia motivos. Embora ambasnunca tivessem se tornado íntimas, não significava que fossem inimigas...Karen sabia que sempre houvera uma barreira entre elas, mas sempre atribuíraisso ao caráter de Lisa. Era o tipo de garota que não se relacionava com

pessoas do mesmo sexo. Seu ambiente era o dos homens que sempre aadoraram. Elizabeth nesse ponto era completamente cega, Lisa fora sempre asua filha única e preciosa. Nick contara a Karen como Elizabeth sofrerá paradar à luz, ficando incapacitada para ter outros filhos. Isso até o dia em quetrouxeram para casa um pobre órfão miserável e solitário.

 A pequena Lisa teria aceitado esse "irmão"? Pela primeira vez Karen pensouno assunto. Teria sentido ciúme do intruso que viera dividir com ela o afeto e osprivilégios que até o momento eram exclusivamente seus? Tudo parecia indicar que não, que Lisa o aceitara como uma posse a mais, um a mais para protegê-

la e servi-la. E, com o tempo, habituara-se a confiar em Nick para tudo, maisaté do que no marido. Quantas vezes ela não tinha ido à casa de Karen e Nickpara pedir conselhos a ele? E sempre agira estritamente de acordo com asinstruções de Nick. Ele, por sua vez, tratava-a com a indulgência de um irmãomais velho. De um...

Karen sentiu um arrepio que a deixou gelada. Será que Lisa sentia algo por Nick, além do amor de irmão? Desesperada, tentou tirar a idéia da cabeça,mas ela teimou em persistir... Lisa amava Nick! Amava não o irmão, mas o

homem! Seria loucura imaginar isso? Mas por que, se não havia entre elesnem um laço de sangue? Isso explicaria tantas coisas passadas.

Mas, e quanto a Nick? Saberia ele dos sentimentos de Lisa? Outro calafrioassaltou Karen; ainda que por intuição, tinha certeza de que Nick nãopartilhava o mesmo sentimento por Lisa. Sabia, pois Nick havia amado a ela,Karen! Tanto que a fizera sua esposa, mesmo que por tão curto tempo.

Nisso a porta da sala se abriu e entrou Timsey.

— Graças a Deus, alguém está em casa! — exclamou, pálida e ofegante. —

Onde será que eu encontro aspirina?— Acho que deve ter lá em cima... — sugeriu Karen, assustada pela expressão

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 76/116

 

de Timsey. — Está doente, Timsey?

— Oh, não! Mas receio que a sra. Radcliffe esteja com um princípio de gripeforte!

— Meu Deus! Quando você descobriu?

— Agora há pouco! — respondeu Timsey. — Fui chamá-la para o chão e aencontrei toda encolhida, ardendo em febre e quase sem voz! Eu já estavaficando apavorada por não ouvir barulho na casa, julguei que a senhoratambém tivesse saído...

— Bem que notei como ela estava calada no almoço! — comentou Karen. —Vou agora mesmo procurar a aspirina.

— Sim, por favor. Estarei esperando na cozinha.

Quando voltou com os comprimidos, Karen encontrou Timsey aflita, procurandoalguma coisa na despensa.

— Queria fazer um chá de limão — explicou ela. — É ótimo para baixar a febre,mas só resta um limão e é, pouco!

— Quer que eu vá buscar na vila? — ofereceu-se Karen.

— A senhora não se importaria?

— Oh, claro que não! Acha que devo trazer um médico?

— Ela ficaria furiosa! — disse Timsey. — É melhor esperarmos para ver comoela passa esta noite...

Karen concordou e, apanhando rapidamente o casaco, saiu da casa. Dezminutos depois entrava na única loja da vila que era ao mesmo tempoarmazém e correio. Ali comprou os quatro últimos limões do estoque, umpacote de cevada e uma garrafa de conhaque. Ao chegar em casa, Timseyestava levando para Elizabeth o chá que fizera com o limão disponível. Karen aacompanhou.

Elizabeth estava metida na cama, de camisola e com um xale nas costas.Sorriu para Karen ao vê-la. Tinha as faces muito vermelhas e sua voz estavarealmente muito fraca e rouca.

— Ficar tanto tempo conversando na igreja, debaixo da garoa e do frio... —censurou Timsey carinhosamente.

— Oh, mas você vai ver que amanhã estarei melhor! — respondeu Elizabeth,recostando-se no travesseiro.

Karen não parecia muito convencida disso. Aproximando-se, tomou as mãos

da enferma, tocou sua testa e tomou-lhe o pulso.— Tem um jeito muito profissional, querida — comentou baixinho Elizabeth. —

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 77/116

 

 Até parece que já foi enfermeira!

— Eu não, mas minha mãe era e me ensinou algumas coisas — respondeuKaren. — Está febril, Elizabeth. E a garganta?

— Um pouco irritada — admitiu ela. — Não é nada...

— Insisto em chamar um médico, querida Elizabeth! — disse Karen, firme. —Nick me matará se souber que a deixei assim!

Elizabeth acabou concordando. O médico chegou um pouco depois das seis.Era um senhor idoso e muito querido por todos, segundo Timsey. Ele eElizabeth eram velhos conhecidos e brincaram muito um com o outro. Ao sair,ele pediu que Karen o acompanhasse para apanhar a receita. Assim quesaíram do quarto, ele abanou lentamente a cabeça e disse, pensativo:

— Não posso dizer nada no momento, minha cara... só podemos esperar e ver se ela melhora. Amanhã voltarei para visitá-la.

O jantar daquela noite decorreu num ambiente soturno, apesar da excelentecomida que Magda preparara. A boa disposição de Elizabeth, que tinhaanimado a todos no início, parecia esmorecida agora, o que transmitia medo einsegurança a todos ali. Mesmo Lisa, que chegara entusiasmada com b belocarro que tinha alugado, ficou deprimida ao saber da novidade.

— Mas ela estava tão bem de manhã! Até pediu para que lhe trouxessesementes para a floreira da janela!

E o resto da noite ela passou subindo e descendo as escadas, agitada eimpaciente, indo e vindo do quarto à sala.

— Pelo amor de Deus, querida! — exclamou Cliff, exasperado. — É melhor decidir se fica aqui ou lá com sua mãe! Andando assim pela casa você só tornaas coisas piores para ela!

 Abatida como uma criança, Lisa se deixou convencer e aceitou o convite parauma partida de cartas com Cliff, Karen e Magda. O jogo acabou cedo, pois Cliff pretendia viajar na manhã seguinte e precisava arrumar a bagagem. Magdaresolveu preparar alguma coisa para tentar convencer Elizabeth a comer umpouco, já que não o fizera o dia todo. Karen percebeu então que não teria nadade útil para fazer, pois muita gente à volta de Elizabeth só iria perturbá-la.Decidiu então recolher-se mais cedo.

 A noite foi longa, cheia de pensamentos deprimentes e tristes; Karen ficoualiviada quando finalmente amanheceu. Eram seis horas ainda, mas haviaruídos fora da casa e não tardou a ouvir o ronco de um motor. Eraprovavelmente Cliff, que partia.

Não conseguindo mais ficar na cama, levantou-se tremendo de frio e, depoisde se lavar, foi ver Elizabeth. Torcia para que, estivesse melhor, por ela e

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 78/116

 

também por Nick. Preferiu não avisar Nick da doença de Elizabeth para nãopreocupá-lo e temia agora que ele ficasse zangado por isso. Cruzou os dedosao entrar no quarto. Encontrou Elizabeth já mais animada, apesar de estar ainda rouca. Mas a febre já passara e sua aparência tinha melhorado.

— Acorda cedo, querida! — exclamou Elizabeth ao vê-la. — Você está bem?

Karen assentiu com a cabeça e num impulso deu-lhe um beijo. Elizabethafastou-a suavemente, murmurando com um sorriso:

— Fique longe dos meus germes, não quero ninguém perto de mim até estar recuperada. Timsey cuidará de mim, ela nunca pega nada, acho que osgermes é que a evitam!

— Não posso fazer nada realmente?

— Não, querida! — determinou Elizabeth, ajeitando-se na cama. — Já vão metrazer o café e espero que você vá tomar o seu como uma boa menina que é.

Karen sentiu um nó na garganta e lágrimas nos olhos. Há muito temponinguém lhe falava nesse tom carinhoso e maternal. Preparava-se paraobedecer quando ouviu um ronco de carro fora da casa.

— Será que Cliff ainda não partiu? — indagou Elizabeth.

— Talvez tenha voltado para apanhar algo — sugeriu Karen, dirigindo-se à  janela. Um carro vermelho-escuro, muito familiar, estacionou à porta,

causando-lhe um sobressalto. — Não, não é Cliff! É Nick!Nick saltou muito ágil do carro, elegantemente vestido. Deu uma olhada emtorno e caminhou em direção à casa em largas passadas. Nesse instantesurgiu de dentro da sala uma figura exuberante e agitada, vestindo um penhoar vermelho vivo que realçava maravilhosamente os cabelos louros muito curtos eo rosto corado pela brisa matinal. De braços estendidos, Lisa atirou-se contraele.

Karen sentiu um calafrio e apertou os dentes contemplando a euforia do par láfora, celebrando o encontro.

— É Nick, mesmo — disse para Elizabeth à guisa de explicação. — Ele voltoumais cedo do que esperávamos... — Sua voz soou estranha como se nãosaísse dela. Não podia afastar os olhos daquela cena, apesar da vontade quetinha de fugir dali correndo e trancar-se no quarto.

O rosto sorridente e feliz de Lisa aparecia por cima do ombro de Nick, elaencostava os lábios na orelha dele e apertava-o fortemente contra o corpo. ENick retribuía o abraço com igual fervor e euforia! Karen cambaleou, atingidapela súbita confirmação de suas suspeitas. Era a pura realidade: Lisa estava

apaixonada por Nick!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 79/116

 

CAPITULO VIII

Karen não soube sequer explicar como tinha saído do quarto de Elizabeth evoltado ao seu. Tudo o que sentia era o sabor amargo de ódio e despeito, quea deixava trêmula e fraca. Tudo o que desejava era estar só e tentar apagar aquela imagem da mente, a imagem de dois corpos enlaçados e felizes.Cravou as unhas nas palmas das mãos, pensando o diabo a respeito de Lisa.Como podia abraçar o próprio irmão daquela forma amorosa e sensual? Seráque não tinha escrúpulos nem consciência, ou estava apenas expressando oseu alívio com a chegada do irmão todo poderoso numa hora de crise? Seriauma inocente demonstração de alegria fraterna?

Impossível!, concluiu Karen, feroz. Ela, como mulher, sabia interpretar certosgestos... E quanto a Nick? Será que ele não percebia ou...

— Karen!

Ela deu um pulo ao .vê-lo entrar, furioso.

— Está aí, então... Por que não me avisou? — perguntou ele, olhandoduramente para ela.

— Avisá-lo de quê? — Karen sentiu o sangue ferver. — E como se atreve aentrar gritando desse jeito? Não sou sua criada!

— Acho que foi tudo muito aborrecido para você, não é? — retrucou Nick,enquanto atirava as coisas sobre a cama. — Se não fosse Lisa ter metelefonado...

— Lisa?! Eu devia ter adivinhado!

— O que está querendo dizer com isso?

— Preciso explicar? Volte cinco minutos no tempo! — sugeriu ela, antesmesmo de se dar conta do que estava dizendo.

Nick franziu a testa.

— O que é que deu em você? — perguntou, sério.

— Lisa! É isso que estou dizendo! — gritou Karen, sem poder mais se contar.Lisa telefonou para você depois de passarmos horas discutindo e resolvermosque era melhor não alarma-lo. E depois, abraçando-o daquele modo sensual,como numa provocação deliberada! Como se... como...

— Deus! Então é isso... — Nick aproximou-se com os olhos arregalados. —Você viu aquilo e pensou... — Então ele deu uma gargalhada. — Não! É

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 80/116

 

incrível demais para ser verdade!

— Também acho! — completou Karen, furiosa.

— Não me diga que acredita que eu tenha me apaixonado por Lisa! — disseele, num tom entre divertido e ameaçador.

— Não disse nada disso! — protestou, assustada.

— Mas imaginou, não é? — insistiu Nick, erguendo a mão como se fosse bater nela. — Oh, não! É demais, e vindo de você!

Karen deu-lhe as costas, furiosa. Aquilo a magoara dolorosamente e não pôdeconter as lágrimas. Nick a virou com um safanão e, ao vê-la chorando,exclamou:

— Meu Deus, você está com ciúme! Está louca de ciúme!

— De você e Lisa? Nunca! — protestou, desesperada. — Mas já que ela ochamou, tão preocupada, não seria melhor ir ver com os seus próprios olhoscomo está Elizabeth?

— Ela está acordada? — perguntou Nick, mudando completamente de atitude.

— Sim, e tomando café, na certa! Não a largamos às traças tão logo vocêpartiu, como poderá constatar pessoalmente! — Ao vê-lo vacilar, prosseguiu:— Eu estava com ela quando você chegou. Duvido que ela esteja tranqüila,sabendo que você passou a noite toda dirigindo do modo como dirige!

— E isso a preocupa também?

— Preocupa... quando é desnecessário!

— Bem, agora já estou aqui — disse ele, caminhando para a porta. — Saibaque farei sempre tudo por Elizabeth. Compensarei tudo o que fez por mim,mesmo que tenha de dar a vida para isso ou tirar a vida de quem porventura afaça sofrer, entendeu?

Lançou um olhar fulminante para Karen e saiu, deixando-a pálida e estatelada

no meio do quarto. Quando ela conseguiu se mover, foi se olhar no espelho.Impulsivamente apanhou o batom na penteadeira, largando-o em seguida,desconsolada.

Para seu alívio, Lisa não apareceu à mesa para o café. Karen não desejaria vê-la ou ser forçada a falar com ela. Nick entrou na sala quando estavam nametade da refeição e anunciou intempestivamente que ia dormir até a hora doalmoço e não queria que o incomodassem. Explicou que saíra à meia-noite deLondres e chegara às três em Dellersbeck, tendo dormido no carro até oamanhecer para não assustar ninguém da casa. Disse também que havia

transferido todos os seus compromissos para seu colega Lester Kirby, por issomesmo estava livre para ficar por três semanas com Elizabeth.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 81/116

 

 A contragosto, Karen teve de reconhecer que a notícia lhe agradava. Gostoude saber que teria Nick por perto durante tanto tempo, se bem que Lisaconseguira estragar em poucos minutos o árduo trabalho de aproximação eentendimento a que haviam chegado ela e Nick, e não sabia o que iria

acontecer dali para a frente...O dia se arrastou para Karen e ela foi tomada de pavor quando ficou a sós comNick no quarto, embora ele tenha se mantido num mutismo total. Karensuspirou, aliviada por não ter de ouvir mais suas recriminações.

 A gripe de Elizabeth não tardou a se espalhar por todos os moradores da casa.Magda e Lisa foram as primeiras a cair com os mesmos sintomas. Depois, ainvulnerável Timsey, que a contragosto admitiu não estar se sentindo bem.

Dois dias mais tarde, foi a vez de Nick entregar os pontos. As visitas do médico

começaram a se tornar freqüentes. Ele informou a todos que a gripe sealastrara por toda a vila, sob forma de epidemia. Mas bastavam quarenta e oitohoras de repouso absoluto para contorná-la, fato que não consolou em nada oimpaciente Nick.

Na quinta-feira, Cliff ligou avisando que não iria a Dellersbeck para o fim desemana, pois estava muito ocupado, o que contribuiu para piorar o estado deânimo de Lisa. Nem mesmo as flores que ele mandou foram suficientes paraaliviar o seu abatimento. Ela se recusava até mesmo a comer.

— Lisa é teimosa... — comentou Elizabeth com tristeza, enquanto olhavaKaren à mesa depois do almoço. — Já está prostrada há mais de uma semanae não apresenta sinais de melhora...

Karen olhou para a bandeja que voltara do quarto de Lisa. Tomara apenas osuco de frutas, com duas torradas. Lisa passava os dias na cama, pálida comoum cadáver e não querendo ver ninguém. Chegara a proibir Nick de pôr os pésdentro do seu quarto.

Talvez esteja arrependida, pensou Karen. Talvez Lisa fosse de naturezaexpansiva e Karen confundiu as coisas, levando tudo para o plano emocional.Talvez tivesse sido até injusta para com Lisa.

— Ela está magra demais! — afirmou Timsey, que se recusara a permanecer deitada e ajudava na cozinha. — Não sei por que ela se recusa a ser ajudada.Bastaria comer um pouco, faria bem!

Elizabeth apanhou o pano de pratos para ajudar a enxugar a louça. Estavamuito abatida. Tinha olheiras profundas e a pele incrivelmente pálida. Já quenão conseguia convencê-la a ficar em repouso, Karen puxou uma banqueta e aforçou a sentar, dizendo, um pouco impaciente:

— Enxugue os pratos pelo menos sentada!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 82/116

 

— Não comece com isso, por favor, Karen! — protestou Eliza-beth, com vozirritada. — Já me bastam Magda, Timsey e Nick a me vigiarem o dia todo, paraque você também comece a me tratar como a uma inválida!

— Oh, lamento...

— Por favor, perdoe-me, querida — disse Elizabeth. — Não devia dizer isso,mas ando tão irritada ultimamente. É que estou preocupada com Lisa,compreende?

— Claro, Elizabeth — respondeu Karen. — Sei que não é fácil, mas procurenão se preocupar tanto. O médico nos preveniu de que a gripe deixava apessoa deprimida, lembra-se?

— É, mas eu sei quando minha filha não está bem! — afirmou Elizabeth,impaciente. — James sempre dizia que Lisa demorava para se recuperar de

doenças só para poder ter alguém a seu lado a servi-la. Mas agora é diferente,sabe? Eu sei que Lisa não é feliz!

— Mas o que a faz pensar assim? — perguntou Karen.

— Oh, não sei... Puro instinto maternal, talvez... Mas há tempo que ela estáassim. Tenho medo de que as coisas não andem bem com Cliff. Só pode ser isso, não acha?

— Ela disse a você? — insistiu Karen, já sentindo um frio na boca do estômagoe as mãos começando a tremer.

— Não, e ela nunca teve segredos para comigo!

— Talvez não seja nada, afinal de contas...

— Gostaria tanto de ter certeza! — exclamou Elizabeth. — Diga-me, Karen,você que esteve ausente dois anos, não notou nenhuma mudança em Lisa?

— Francamente, não! — respondeu Karen, indecisa. — Se bem que nuncaconheci Lisa profundamente. Você já conversou a respeito com Nick?

— Já, e ele disse que eu estou imaginando coisas. Mas isso faz parte da rede

protetora que se armou sobre mim, sabe? — lamentou-se Elizabeth comlágrimas nos olhos. — Todos fazem tudo para me esconder coisas que achamque poderiam me preocupar ou magoar! E você sabe como é desagradávelficar sem saber da verdade, apenas imaginando, supondo... Meu Deus, como étriste!

Karen abraçou-a ternamente, enquanto ela chorava baixinho. Nisso entrouNick, com uma sacola cheia de frutas, que largou assim que as viu abraçadas.

— Mamãe, o que aconteceu? — perguntou ele, abraçando Elizabeth com uma

ternura incrível. — O que houve afinal, Karen?— Ela está preocupada com Lisa.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 83/116

 

— Estou bem agora... — murmurou Elizabeth, tentando se desvencilhar doabraço de Nick, que dirigiu um olhar furioso para Karen.

— Agora sente-se e conte-me o que a aflige, enquanto Karen faz um chá! —sugeriu ele, amparando Elizabeth.

— Sim, claro — concordou Karen, embora estivesse tão preocupada quantoElizabeth com o casamento de Lisa.

Karen não conhecia Clifford muito bem. Sabia apenas que ele era gentil,atencioso e prestativo, e que a família nunca tivera nenhuma queixa dele.Sempre tratara bem a Lisa, ouvindo suas opiniões e satisfazendo os seusdesejos. Não havia, portanto, nada que o desabonasse.

Mas, pensou Karen, quem pode conhecer um homem a fundo enquanto nãoviver com ele algum tempo? Isso ela sabia bem!

 Ao servir o chá, encontrou Elizabeth já mais animada. Nick apressou-se emtomar a bandeja de suas mãos e, colocando-a sobre a mesa, murmurou algo esaiu da sala.

— Você deve estar tendo uma bela impressão da nossa família!

— disse Elizabeth com um sorriso.

— Oh, nem pense nisso, Elizabeth!

— Trouxe um pouco de uva para vocês! — disse Nick, voltando com uma

sacola nas mãos.

— Oh, Nick, você vai acabar me estragando com tantos mimos

— falou a mãe. E, olhando para Karen, acrescentou: — Não acha que suaesposa merece algo também por tudo o que faz?

— Você acha que eu me esqueceria de Karen? — E, dizendo isto, estendeu aKaren um embrulho.

Quando ela se aproximou para pegá-lo, ele a enlaçou e deu-lhe um beijo na

boca. Perturbada com o beijo, Karen abriu o pacote. Era uma caixa debombons.

— Está vendo como me lembro até do seu sabor favorito? — observou ele,enquanto Karen ensaiava um agradecimento. — Mas será que não ganho nadaalém de um agradecimento?

Não havendo como escapar, ela tratou de envolver o pescoço de Nick com osbraços, deixando-se abraçar por ele. Nick a apertou fortemente, beijando-a norosto e no pescoço, enquanto pousava uma das mãos em seu seio.

— Nick! Elizabeth está olhando! — murmurou Karen.— E daí? — retrucou ele no mesmo tom. — Quando eu dou um presente,

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 84/116

 

querida, quero retribuição à altura, entendeu?

— Você encabulou a pobrezinha — disse Elizabeth. — Você continua omesmo, não é, Nick?

— É que meu sangue ainda conserva o calor da América do Sul! E agora, quetal comermos os bombons?

O telefone então tocou. Nick fez um sinal arrogante para Karen atender. Elasentiu ódio do marido, mas mesmo assim obedeceu. Era um chamado doalemão Lindner. Elizabeth abriu um largo sorriso ao saber disso e foi atender.

— Espero que ela não vá se envolver com compromissos — resmungou Nick,contrariado.

— Não acha que deveria lhe dar uma chance de decidir por si mesma o que é

melhor para ela? — Karen virou-lhe acintosamente as costas e saiu da sala.Resolveu dar um passeio para descarregar a raiva que sentia de Nick, apesar de o tempo cinzento e frio não ser nada animador. Saiu caminhando emdireção à queda d'água de Dellersbeck. Chegando ali, sentou-se num bancotosco e ficou entretida, contemplando a água e a espuma branca. Era um localtranqüilo e fascinante, e apesar da umidade Karen sentia-se verdadeiramenterelaxada e despreocupada. Estava tão absorta em seus pensamentos que nãonotou a chegada de Nick.

— Está zangada ainda ou apenas meditando?

Karen deu um pulo. Sem se voltar, respondeu friamente:

— Nem uma coisa nem outra.

— Por que veio aqui, então?

— E por que você me seguiu?

— Por várias razões, querida. Você saiu feito uma fera daquela sala e nãoficava bem eu deixá-la sozinha. Além do mais, não tive outra opção...

— Como assim?— Veja aquilo — disse ele, apontando para a frente.

Karen olhou e viu um denso nevoeiro que se estendia por todo o mato.Sorrindo, observou:

— Que tocante! Teve medo de que eu me perdesse no nevoeiro?

— Se você conhecesse os nevoeiros daqui, não zombaria...

— Pois é uma pena que você não se perca nele!

— Oh, ainda está zangada com o meu gesto carinhoso.— Não! Estou apenas aborrecida! — exclamou Karen. — Não havia

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 85/116

 

necessidade de fazer aquilo comigo!

— Pode ser... — retrucou ele. — Mas eu gostei muito.

— Pois eu não gostei nem um pouco!

— Ora, mas nem um pouquinho mesmo? — Oh, você é impossível!— Não, minha cara! — disse Nick, sério. — Sou um homem que reage demodo normal diante de uma bela mulher. E tenho que reconhecer que vocêcontinua atraente demais! Tentando se controlar; Karen respondeu:

— Nick, não é preciso ficar me alisando para convencer Elizabeth de que tudovai bem! Além de desnecessário, é terrivelmente desagradável!

— Pare com esse puritanismo idiota, querida! Não fica bem em i  você —retrucou Nick.

— É um absurdo! E não me importo com o que você pense, Nick! — protestouKaren. — Embaraçou mais a Elizabeth do que a mim!

— De certo modo, é isso o que espero ter feito.

— O quê? Está me dizendo que fez tudo de propósito?

— Sim! Por razões que lhe deviam ser óbvias, Karen!

— Ouça, Nick, não sei o que pretende, mas eu o proíbo de fazer aquilonovamente.

— Não há necessidade de me proibir.

— Assim espero! Senão desfaço o nosso trato!

— Não é um simples trato. — Sua voz estava gelada. — Não se atreva aesquecer que você me fez uma promessa!

— Você não me deixa esquecer!

— Ora, chega! — cortou Nick, levantando-se e começando a andar impacientemente. — Tudo o que eu fiz foi desviar a atenção de Elizabeth para

nós.— Não me consta que ela esteja preocupada conosco.

— Felizmente, e espero que continue assim!

— Mas não precisa ficar me relembrando coisas, Nick! Jamais direi a verdade aela.

— Não é só isso o que me preocupa, Karen. Há também o caso de Lisa, quevai me dar muito trabalho!

— Oh! Você não quer me dizer que...

— É isso mesmo. O casamento dela está por um fio.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 86/116

 

— Mas eu sempre pensei que... Lisa e Cliff...

— Pensou errado — interrompeu-a Nick. — Cliff atendeu a todo os desejosmateriais de Lisa: dinheiro, jóias, posição... Deu-lhe tudo que ela poderiasonhar. Mas não foi o bastante...

— Mas pensei que ele a amava! Sei que ele é esquisito. ...

— Uma pedra de gelo é o que todas as pequenas pensam dele. Só que ele nãoé bem assim, Karen... O homem é um vulcão quando se trata de Lisa! Temciúme de tudo o que ela faz.

Lisa é difícil de se contentar, pensou Karen. Nenhum homem conseguiriasatisfazer as vontades dela.

— O casamento deles começou a morrer no instante em que deixaram o altar 

— prosseguiu Nick como se falasse para si mesmo. — Eles possuemtemperamentos totalmente diferentes. É até surpreendente que tenhamconseguido manter-se juntos por tanto tempo assim.

— Não entendo! — observou Karen. — Por que Lisa se casou com ele? Comum homem por quem não tinha amor?

— Lisa cometeu um erro no qual incorrem muitas garotas do tipo dela —respondeu Nick. — Achou que o dinheiro, as jóias e uma vida de luxo eextravagâncias compensariam a falta de amor e entendimento. E agora, tardedemais, ela compreendeu que estava errada.

CAPITULO IX

Nenhum dos dois quebrara o silêncio durante a caminhada de volta. Foisomente quando já se divisava a casa em meio à névoa que Nick observou:

— Esse nevoeiro poderá durar dias.Os três dias seguintes vieram comprovar as suas previsões, pois a neblinacobriu densamente a região e só muito raramente se pôde ver o sol. Cliffordchegou a Dellersbeck na quinta-feira. Ele tinha viajado com sol até a altura deYork, e seu bom humor chegou mesmo a contagiar Lisa, arrancando-a umpouco da apatia em que mergulhara, principalmente quando exibiu váriosfolhetos de agências de viagens com planos para as próximas férias de verão.

Lisa e Cliff logo se decidiram por Seychelles; Magda sugeriu sonhadoramente aItália, Timsey preferia ir ao sul para visitar uma irmã e Elizabeth, bem a seufeito, elaborou um exótico roteiro que incluía Bali, Tailândia e Japão. Somente

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 87/116

 

Nick não partilhava a agitação, dizendo que teria de trabalhar.

— Então não vai tirar férias este ano, Nick? — quis saber Lisa, muitointeressada.

— Eu as estou tirando agora, lembra-se?

— Oh, isto não são férias! E quanto a Karen?

— Ela sabe que pode viajar sem mim, não me importo.

Karen ainda tentou ensaiar alguma justificativa, mas as palavras de Nick játinham causado o efeito pretendido. Lisa e Elizabeth abriram a boca ao mesmotempo e se olharam.

— Fale você, querida — disse Elizabeth, sorrindo. — Estou certa de queambas íamos dizer a mesma coisa!

— Temo que não, mamãe — declarou Lisa. — Talvez você ache monstruoso,mas eu acho perfeitamente natural que marido e mulher tirem férias emseparado. Oh, Cliff vai me abominar por isto, ele e muito convencional! Mas oque vocês acham?

— Isso depende de com quem se vai passar as férias — respondeu Nick,quebrando o silêncio constrangedor da sala.

— Presumo que a escolha de um parceiro seja o próximo passo destaconversa — resmungou Cliff, algo incomodado.

— Oh, pare com isso, Cliff! — exclamou Lisa. — Uma mulher pôde muito bemviajar só. Nick concorda, não é?

— Não vejo o porquê dessa agitação. Não me lembro de ter dito nada deextravagante.

— Não foi o que disse, Nick querido, mas o modo como disse! — esclareceuLisa, diante da surpresa de todos.

— Acho que foi só um comentário casual -r- defendeu-se Nick.

— Nada que mereça tanto espalhafato.— Não fiz espalhafato, apenas fiquei surpresa! — disse Lisa, olhandosignificativamente na direção de Karen. — Mas já chega de falar de viagens,prefiro mudar de assunto, se ninguém se opõe.

— Eu já mudei — disse Nick, mal-humorado.

Ligou então o televisor e concentrou-se num noticiário. Todos olhavam para elee Karen, fazendo com que ela se sentisse mal, sobretudo porque reparara noolhar irônico que Nick lhe dirigira. Aquela situação caminhava rapidamente para

o intolerável e a presença de Lisa só vinha acentuar o clima hostil e depressivodaquela casa. Karen estava com medo, sabia que poderia explodir a qualquer 

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 88/116

 

momento.

 A neblina só se dissipou no princípio da semana seguinte. Começara a atenuar na hora da partida de Cliff e, quando se sentaram para almoçar, o sol jábrilhava.

Herr  Lindner, o amigo alemão de Elizabeth, telefonou convidando-a para olanche. Lisa saíra para visitar amigos e Nick muniu-se de algumas ferramentaspara fazer reparos na casa e escalou Karen para ajudante. Haveria tréguanaquela tarde.

No dia seguinte, saíram todos para um passeio de carro. Partiram logo aoamanhecer, por sugestão de Elizabeth, que foi no carro de Nick juntamentecom Karen e Lisa. Timsey pegou seu pequeno carro e levou Magda junto.Como fazia uma manhã radiante e ensolarada, cruzaram com vários grupos e

famílias a passeio. A estradinha tortuosa e estreita era muito bonita, com suasárvores e as suas pequenas casas de pedra. Era tudo tão lindo e convidativoque logo pararam os carros e resolveram andar a pé, para aproveitarem o ar puro e o sol.

Lisa não perdeu tempo em tomar o braço de Nick e levá-lo na direção de umvelho mosteiro. Magda sumira de vista e Elizabeth admirava uma velha igrejaem companhia de Timsey.

Karen ia caminhando só e pensativa quando um grito de Lisa arrancou-a do

devaneio, Voltando-se, viu Lisa correndo pela grama e soltando gritos deprazer, enquanto Nick a perseguia. Ele a alcançou logo e ela jogou-se em seusbraços, rindo bastante.

Karen voltou-se bruscamente e caminhou apressada, tentando apagar aquelaimagem da mente. Aquilo podia bem ser uma simples demonstraçãoespontânea de afeto entre irmãos, mas de qualquer forma serviu para destruir o encanto do passeio, atormentando o seu coração. De nada adiantou ela secensurar, dizendo para si mesma que seu casamento com Nick estavaterminado e que não devia se importar com o que ele fizesse ou com que

mulher ficaria.

Mas seu coração não dizia isso e, quando se sentaram para almoçar, umagrande depressão tomou conta dela. Lisa estava radiante como nunca etagarelava incessantemente, ao passo que Karen parecia ter entrado numaespécie de transe, em que via a todos numa espécie de névoa, como numsonho. Por uma leve fração de segundo seu olhar cruzou com o de Lisa.  Apesar de ela desviar rapidamente os olhos, Karen teve a impressão devislumbrar algo indefinível. Seria remorso?

O resto da refeição foi uma tortura para Karen. Tentava esquecer a cena damanhã e esforçava-se para não sentir inveja de Lisa, que desfrutava de tanta

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 89/116

 

intimidade, camaradagem e afeto de Nick. E no entanto Lisa, que pareciaexercer tanto poder sobre os demais, temia a ela. Isso se percebia no menor dos seus gestos.

— Você está bem, querida? — ouviu Elizabeth perguntar, enquanto a tocava

no braço. Imediatamente reagiu, lutando contra o tremor que lhe percorria ocorpo.

— Estou bem — respondeu ela. — É só uma dor de cabeça. Não se preocupe,Elizabeth.

Sentindo a atenção de todos sobre si, Karen ruborizou-se e baixou o olhar parao prato, que quase nem tocara.

— Tenho aspirina comigo. Quer uma? — ofereceu Magda.

— Oh, sim, obrigada — aceitou ela, sem vontade.Engoliu dois comprimidos apenas para evitar que o assunto se estendesse erejeitou a oferta de Elizabeth para que todos voltassem. Olhando para Nick,percebeu nele uma expressão reprovadora e fria, embora perguntassesuavemente:

— Tem certeza de que está bem, Karen?

Ela assentiu. Para seu alívio, Nick pediu café e mudou de assunto. Após o caféprosseguiram com o passeio pelos pântanos de Lastingham e Rosedale,

depois pegaram uma estradinha que cortava o vale Esk até chegarem à antigae pitoresca cidade de Whitby, à beira do rio. Ali tomaram um rápido lanche,para depois visitarem o velho e histórico porto fluvial.

 A caminhada pelas ruelas antigas e estreitas terminou por animar Karen umpouco, fazendo-a distrair-se dos acontecimentos da viagem. Assim passaram oresto da tarde, passeando e olhando lojinhas na cidade. Quando Nick sugeriuque voltassem, Elizabeth olhou para trás e pediu:

— Espere só um minuto, Nick! Há uma loja linda lá atrás e eu queria comprar uma lembrancinha para Karen!

— Onde está Lisa? — quis saber Nick.

— Está naquela butique — respondeu Magda, apontando uma loja. — Ela ficoulouca por um blusão que viu na vitrine.

Karen atravessou lentamente a rua, sabendo que não haveria pressa paraninguém enquanto Lisa estivesse fazendo compras. Subitamente Nick, queestava do outro lado, saltou em sua direção e arrastou-a violentamente para acalçada. Por pouco ela não foi atropelada por um caminhão de carga. Ainda

ofegante nos braços dele, Karen ouviu as imprecações de Magda contra omotorista, desejando nunca pôr fim àquele instante de prazer e aconchego.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 90/116

 

Quando Nick a largou, ela voltou a atravessar a rua, tentando disfarçar suaperturbação, quando foi novamente arrastada para trás. Desta vez era umasimples bicicleta. Pela segunda vez Nick evitara um acidente.

— O que há com você? Não está bem?

— É claro que estou! — retrucou Karen friamente.

— Bem! Tenha mais cuidado! Você parece estar sonhando.

— Eu não estou sonhando! — protestou, furiosa.

— Diga isso para o ciclista que você quase atropelou.

— Não posso adivinhar as coisas, não é, Nick?

— Não, mas pode ter mais cuidado ao atravessar ruas.

— Eu não sabia se você ia esperar Lisa ou acompanhar Elizabeth, por isso meatrapalhei! — explicou Karen, recriminando-se por seu comportamentodesastrado. Desvencilhando-se dele, acrescentou: — Não podia esperar queum caminhão passasse nesta ruela estreita, não é?

— Está tudo bem. Esqueça, sim?

— Nick, não fale comigo como se eu fosse uma debilóide!

— Não estou falando!

— E não grite comigo! — exclamou Karen e saiu correndo. Nick alcançou-a

rapidamente e, agarrando o seu braço, disse:

— Não gritei com você. E abaixe a voz. Se quer ter um ataque histérico, espereao menos voltarmos para casa!

— É que você é insuportável! — ela explodiu.

— Posso dizer o mesmo de você — retrucou Nick. — Afinal, o que há comvocê hoje?

— Você ainda pergunta? Veja, Nick, Elizabeth está vindo para cá.

— É — concordou Nick, sarcástico. — Faça o favor de me aturar por maisalguns momentos e tente manter um comportamento decente, está bem? Senão é por mim, pelo menos por Elizabeth.

— Não se preocupe — garantiu Karen no mesmo tom. — Só lamento que meutalento para representar não esteja à sua altura.

Nick tomou-a pelo braço sem o mínimo carinho e puxou-a em direção aElizabeth, que olhava uma vitrine e sorriu quando os viu chegar.

— Veja esta bolsa indígena, não é linda? Você gosta ou quer entrar para olhar 

o resto? — perguntou Elizabeth para Karen.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 91/116

 

— Vão ver as bolsas — insistiu Nick.

— Oh, não, Nick! — protestou Elizabeth. — Quero que entre também paraajudá-la na escolha. Timsey cuidará dos outros.

Karen evitou demonstrar entusiasmo por alguma peça, uma vez que se sentiaconstrangida em forçar Elizabeth a gastar com ela. Elizabeth pegou, então,uma caixinha de ouro revestida de couro, examinou-a demoradamente e disse:

— Este é perfeito! Será um presente para os dois!

— Oh, não, por favor! — disse Karen. — Isso é caro demais!

— Ouça, não me esqueci do terceiro aniversário de casamento de vocês —disse Elizabeth. — E couro é o que se dá...

Tanto Nick quanto Karen permaneceram num silêncio embaraçoso, até que a

balconista confirmou:— É verdade, senhora. O terceiro ano é o de bodas de couro.

Elizabeth deu-se por satisfeita e, após mandar embrulhar a caixa, continuouvendo outros artigos. Depois de comprar coisas para Lisa, Timsey e Magda,virou-se para Karen e pediu:

— Por favor, querida, escolha algo agora a seu gosto! Quero lhe dar uma coisaque me deixe segura de que gosta!

Karen resistiu em vão e a vendedora, radiante com a cliente que ganhara,indicou o pavimento superior da loja, onde estavam expostos cristais,porcelanas e artigos de maior valor.

— Meu Deus! — exclamou Elizabeth quando chegaram ao topo da escadinha.— Como estou adorando este passeio!

— É, sua diversão é gastar dinheiro com a família — observou Nick. — Esperoque não compre toda a loja.

— Seria meio difícil carregá-la conosco, não é?

E, deixando-o amuado num canto da loja, as duas começaram a passear por entre as prateleiras coalhadas de objetos e louças. De repente, ambas ficaramparalisadas diante de um maravilhoso pássaro de cristal azul.

— Acho que já encontramos, não é mesmo? — disse Elizabeth diante dosilêncio deslumbrado de Karen. — É belo demais e eu adoraria oferecê-lo avocê, querida... — Dizendo isso, fez um gesto à balconista para que oembrulhasse.

Nisso, Nick gritou da escada para onde tinha ido:

— Que barbaridade!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 92/116

 

Elizabeth e Karen viraram-se a tempo de ver Lisa chegar ao topo da escadacom uma infinidade de pacotes e embrulhos, seguida de Magda. Lisa deu umsorriso e disse:

— Espere até quando eu terminar, Nick! — E, caminhando por entre as

prateleiras, começou a vasculhar cuidadosamente cada uma delas.

Sabendo que aquilo iria demorar, Karen apanhou um sininho de cristal everificou quanto dinheiro tinha consigo, pois queria dá-lo de presente aElizabeth, mas só o faria se fosse com o seu próprio dinheiro. Seu orgulho nãolhe permitia gastar um centavo sequer do dinheiro de Nick. Levou o sininho àbalconista e estava para mandar que o embrulhasse quando a voz de Lisasoou às suas costas, fazendo-a virar-se.

— Oh! Vejam só o que temos aqui!

  Atraída pelo tom de voz de Lisa, Karen dirigiu-se distraidamente com osdemais na direção dela. Num canto da loja havia uma pequena galeria. Namaioria dos quadros expostos predominava os tons escuros, e, entre eles, sedestacava uma tela de fundo branco com formas terrivelmente agressivas.Karen sentiu suas pernas bambearem. A pintura parecia crescer assustadoramente para ela, dominando todo o espaço da loja. Não ousou olhar para Nick, mas adivinhava o que ele estava pensando.

 A voz de Elizabeth soou de muito longe:

— É um tanto quanto indecente, creio eu, mas agrada-me. Karen não dissenada, mas ouviu Nick responder a Elizabeth:

— Não concordo com você. É uma coisa barata, comercial e suja. Além disso...

Nisso ouviram um grito. Era Lisa, que soltara um gemido de agoniaincontrolável, desmaiando logo em seguida.

CAPITULO X

 A consternação foi total. As mulheres gritaram, apavoradas, enquanto Nicksocorria Lisa com rapidez, colocando-a numa cadeira, desapertando-lhe asroupas e amparando-a com extrema delicadeza. Finalmente ele suspiroualiviado, ao ver que Lisa começava a voltar a si, trêmula e ofegante.

— Está tudo bem, querida, tenha calma — sussurrou ele.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Eu desmaiei?

— Sim, e como! — respondeu Nick, dando-lhe um copo de água que a

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 93/116

 

balconista trouxera.

Lisa bebeu uns goles e pediu com voz fraca e vacilante:

— Pelo amor de Deus, Nick, leve-me para casa!

— Iremos assim que estiver em condições de andar — disse Nick. — Osdegraus aqui são muito estreitos para eu carregá-la lá para baixo. Agoraacalme-se e tente se recuperar.

Lisa, no entanto, estava, ansiosa demais. Apoiou-se no braço de Nick e forçou-o a levá-la até a escada. Karen desceu por último, levando a bolsa e um pacoteque Lisa deixara cair. Ela própria estava se sentindo mal e não via o momentode sair daquele lugar, antes tão acolhedor.

Encontraram a dona da loja no pavimento inferior e, como Nick largara o carro

longe, ela insistiu em levar Lisa até lá em seu próprio automóvel. Mas nele sócabiam quatro pessoas, por isso Karen voltou para Dellersbeck no carro deTimsey. Chegaram à casa quase uma hora depois dos outros, pois Timsey erauma motorista muito mais prudente que Nick. Quase não se haviam faladodurante o trajeto e Karen dirigiu-se à sala de estar assim que entrou em casa.

Elizabeth estava estirada no sofá com uma expressão exausta e tensa,enquanto Nick, de pé e com um braço apoiado na lareira, parecia imerso empensamentos. Ao vê-la entrar, ele disse suavemente:

— Já estávamos ficando preocupados com você.

— E Lisa, como está? — indagou Karen timidamente.

— Ela adormeceu — respondeu Elizabeth, desolada. — Não permitiu quechamássemos um médico. Oh, estou tão preocupada com ela! Viram como eladesmaiou de repente?

Karen concordou com a cabeça. Ainda se lembrava do modo como Lisa caíra ea palidez mortal que ela mostrava ao acordar.

— E ela me parecia tão bem hoje! — prosseguiu Elizabeth. — Acho que está

precisando fazer um check up! 

— Está certo, mas ela terá de concordar também — disse Nick, sorrindocarinhosamente. — Sei que ainda não se acostumou à idéia de que a suacriança cresceu, não é?

— Tem razão, querido — concordou Elizabeth, com uma ponta de humor. — Ecabe a você dar um jeito nisso, rapidamente.

— A mim? — retrucou Nick. E dirigindo-se a Karen, que ficara vermelha comoum pimentão, perguntou ironicamente: — E quanto a você, Karen? Que acha

de pezinhos correndo pela casa toda?— Eu... bem... — balbuciou Karen, revoltada com o cinismo e o sarcasmo dele.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 94/116

 

— Acho que nenhum de nós dois está preparado para isso no momento, não émesmo, Nick?

— Pois Nick parece ansioso para me dar um neto — disse Elizabeth.

— Não diga que não lhe agradaria a idéia — observou Nick.

— Oh, é claro que eu adoraria segurar um netinho nos braços antes que... —Subitamente se calou, ao perceber a atmosfera sombria que criara; mudandode assunto, perguntou a Nick: — E os pacotes? Já os trouxe para dentro?

— Ainda estão no carro — respondeu ele. — Vou buscá-los agora. Karenaproveitou-se do momento para dar seu presente a Elizabeth.

— Oh, minha querida Karen! Que sorte a minha em ter uma família tãomaravilhosa!

Karen sentiu um nó na garganta. Jamais tivera oportunidade de perceber comoamava profundamente Elizabeth e como ansiava em vê-la feliz. Nesse instanteentrou Nick e largou uma infinidade de embrulhos sobre as poltronas.Elizabeth, com os olhos úmidos ainda, entregou o pássaro de cristal que haviacomprado a Karen, que agradeceu, comovida.

— Cuidado que ele pode sair voando — zombou Nick por trás dela,assustando-a.

— Não amole, Nick! — censurou Elizabeth e, sorrindo para Karen, disse: —

Não ligue para ele, querida, é um cínico.Karen, no entanto, sabia perfeitamente que aquilo não fora uma brincadeirainocente, e que cada palavra de Nick tinha o objetivo premeditado de magoá-lae feri-la. Sem dizer palavra, foi até a lareira e colocou o pássaro sobre ela.

— Agora é melhor ir se deitar — disse Nick carinhosamente a Elizabeth. —Sabe que tem uma consulta amanhã cedinho!

— Outro especialista... — Elizabeth suspirou, desolada. — Será que tudo issoestá valendo a pena, querido?

— Você sabe que sim — respondeu Nick e, olhando pára o relógio, disse: —Tenho que sair agora para tratar de um negócio.

— Mas, Nick... — protestou Elizabeth fracamente.

— Realmente não posso deixar de ir — interrompeu ele, dando um beijo nela eoutro em Karen. Depois acrescentou: — Não me espere, Karen, vou chegar tarde.

Karen não pôde deixar de se sentir aliviada em vê-lo sair, a ponto de nem seimportar com o fato de ele não lhe ter dado sequer uma explicação. Mas o diahavia sido dos piores e a presença de Nick só a deixaria mais tensa eperturbada.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 95/116

 

 À noite, quase ninguém jantou. Lisa não despertara ainda. Elizabeth recolheu-se pouco depois das nove, após tomar um comprimido e pedir que alguémfosse dar uma olhada em Lisa e a convencesse a comer algo.

Karen achou que a tarefa lhe cabia e tratou de preparar um lanche rápido para

levar a Lisa.

— Vai esperar por Nick? — perguntou Magda subitamente, enquanto punha amesa para o café da manhã seguinte. — Ê que alguém precisa verificar se acasa está bem fechada.

— Pode ir se deitar, Magda — respondeu Karen, inquieta com a expressãoestranha da cozinheira. — Eu ficarei esperando, porque ainda tenho que levar o lanche a Lisa e tomar banho.

Magda ainda hesitou um pouco, mas resolveu ir dormir. Assim que preparou

tudo, Karen apanhou a bandeja, foi até o quarto de Lisa e bateu na porta. Nãohouve resposta a não ser um fraco murmúrio. Karen resolveu abrir a porta eentrar.

— Lisa? — chamou baixinho na penumbra.

— Quem está aí? — respondeu ela.

— Sou eu, Karen. Trouxe-lhe um lanche, pois não pode ficar sem comer, Lisa— disse ela. Na luz fraca da cabeceira, ela vislumbrou um rosto petulante edesafiador, apesar de pálido.

— Leve isso de volta, não quero nada.

Olhando para aquele corpo mole e largado debaixo das cobertas, Karen tevevontade de ordenar: "arrume-se!" Mas em vez disso limitou-se a sorrir eacariciar-lhe os cabelos, dizendo:

— O que há com você, Lisa?

— O que quer dizer com isso? — retrucou Lisa rudemente. — Sinto-mehorrível! Gostaria de estar morta, entendeu?

— Não diga isso, Lisa... Não posso fazer nada para ajudar?

— Não! Ninguém pode! A menos que... — Lisa tomou alguns goles do leite queKaren trouxera e acrescentou: — Não! Saia daqui! Quero ficar sozinha, por favor!

— Não, Lisa. — Karen estava decidida a descobrir o que estava ocorrendo comLisa, pelo bem de Elizabeth. Por isso, insistiu: — Você disse a menos que... Amenos que o quê, Lisa? Diga...

— Está certo, vou-lhe dizer! — gritou Lisa. — Cedo ou tarde você iria descobrir mesmo... Estou grávida, Karen!

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 96/116

 

— Grávida?! — exclamou Karen, perplexa. — Mas então você não estácontente com isso?

— Está brincando? É terrível! É simplesmente terrível!

— Mas, Lisa! Elizabeth e Cliff vão ficar radiantes! — disse Karen, ainda sementender direito. — Por que não disse nada?

— Eu não tinha certeza, isto é, não queria admitir. Mas agora não há maisdúvidas! — Lisa soluçou contra o travesseiro. — Oh, Karen! Tenho medo! Nãoconseguirei suportar a dor! E o meu corpo, o que vai ser dele? E se for umamenina, terei de começar tudo de novo, porque Cliff quer um filho! Meu Deus,como me arrependo de ter me casado com ele! E agora, o que vou fazer?

Lisa estava tão desesperada que Karen a abraçou impulsivamente, esquecidade seus próprios problemas.

— Está tudo bem, Lisa — murmurou, tentando consolá-la. — Você tem medoporque é a primeira vez, mas não é ruim como está pensando! Talvez sinta umpouco de mal-estar, mas é tudo...

— Não, você não sabe! Nunca passou por isso!

— Está bem, mas você terá de enfrentar isso pelo seu bebê, por Elizabeth!Lisa, ela vai ficar louca de contentamento, e você precisa contar a ela! Talvezaté lhe prolongue a vida, porque Elizabeth a ama mais do que tudo! Nãopercebe isso?

— Eu sei! — Lisa soluçou. — Digo isso a mim mesma. Sei que sou egoísta efútil, mas não sei se suportarei isso!

— Ninguém é perfeito, Lisa — consolou-a Karen, surpreendida com o acessode autocrítica dela. — Já é um passo se reconhecer isso. Afinal, acho que sóos santos não foram egoístas.

— Eu tento agir direito, mas é terrível, Karen! — exclamou Lisa. — Em minhavida sempre tive todos à minha volta, protegendo-me! Meus pais, minha avó,Nick e agora Cliff... Todos esperando de mim coisas que não consigo dar! Nãoconsigo ser como mamãe, entende? Não consigo viver segundo as suascrenças, tradições e preceitos. O casamento puro, a noiva virgem, a fidelidadeao marido são coisas absurdas para mim! E a família de Cliff é pior ainda!Divórcio é uma monstruosidade para eles!

— Está me dizendo que você quer se separar de Cliff? — indagou Karen, aindachocada pelas confissões de Lisa.

— De que jeito, agora, com esta gravidez?

— Lisa, estou certa de que Cliff a ama muito.— Cliff simplesmente me possui, e tenta fazer de mim o que jamais poderei

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 97/116

 

ser: a esposa perfeita! — lamentou-se Lisa. — Jamais tive coragem suficientepara pedir o divórcio e desapontar aqueles que esperam tanto de mim. MeuDeus, tentei ser o que meus pais, Nick e Cliff queriam que eu fosse... Mas...

Lisa respirou fundo. Parecia aliviada por haver desabafado com alguém as

coisas que a perturbavam tanto.

— Sinto muito, Lisa — murmurou Karen depois de um momento.

— Realmente não sei o que dizer...

— Não há o que dizer, Karen. Agora sei que estou presa, como todos os queacabam descobrindo a sua própria condição real.

— É, mas procure ver as coisas de um modo positivo — confortou-a Karen,apesar de saber que, no fundo, Lisa tinha toda a razão.

— Quem sabe você até se acostuma à idéia do bebê. Mas quero que meprometa que contará tudo a Elizabeth, está bem?

— Agora já me sinto melhor, depois de contar a você — disse Lisa, apanhandoum sanduíche para comer.

Karen ficou calada, observando a cunhada. Depois ajudou-a a se acomodar entre as cobertas, ajeitando os travesseiros. Quando ia sair do quarto, Lisachamou-a novamente:

— Karen, por favor, não fale a ninguém sobre o assunto.

— Não, claro que não — tranqüilizou-a.

— Nem mesmo ao Nick. Especialmente a ele.

— Prometo que não.

Deixando Lisa, Karen desceu as escadas com o coração pesado de dor. Orelógio batia onze horas quando ela acabou de verificar se as portas e janelasestavam trancadas. Sentia-se deprimida, numa solidão absoluta. Fazia muitofrio, e a escuridão do quarto somada ao silêncio cortado por um súbito gemido

de um animal encheram o seu coração de temor e inquietação.Tentou pensar em Lisa e no bebê para afastar da cabeça os problemas que aoprimiam, enquanto tomava banho. Elizabeth ficaria feliz, como todos. E apromessa que fizera a. Lisa? As coisas que Nick nunca saberia... Abruptamente ela apanhou a toalha e se enxugou. Estremeceu enquanto vestiao penhoar. Sabia que a depressão não passaria enquanto Nick não chegasse enão raiasse um novo dia. Apanhou mecanicamente as suas coisas e foi para oquarto. Por debaixo da porta havia uma fresta de luz.

— Nick? — sussurrou ela, enquanto entrava no quarto.

Estava tudo silencioso e Karen tentou lembrar se havia esquecido a luz acesa

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 98/116

 

quando seu olhar foi atraído por uma moldura sobre a cama.

— É para você. Por que não dá uma olhada?

Karen voltou-se rapidamente e viu Nick. Ele estava de robe e, passando por ela, segurou o quadro e forçou-a a olhá-lo. Era uma fotografia, uma lembrançado passado que ela tentara desesperada-mente esquecer, mas que agoravoltava para inocular o seu veneno destruidor. Karen tapou o rosto com asmãos e tentou esquivar-se, mas chocou-se contra Nick.

— Olhe bem para isso! — berrou ele, possesso.

— Não! — gritou Karen, apavorada.

— Por que não? Se o mundo todo pode admirar esta maravilha... Se cada bar,cada sala possui o seu exemplar? Será que o mundo todo está errado? — Sua

voz cortava como navalha. — Acho que temos o direito de ter um também, emnossa sala!

— Por Deus, Nick, eu não suporto mais!

— E quanto a mim? Acha que é fácil vê-la desse jeito, sabendo que você eVincent Kayne... Quantas vezes saiu da cama dele para a minha? Diga!

Karen fechou os olhos cheios de lágrimas, tentando fugir daquele pesadelo,mas Nick a impedia. Agarrou-a pelos ombros e gritou, enquanto a sacudia combrutalidade e fúria:

— Fale! Quero saber tudo! Stephan Esse estava lá também, fora da foto, masobservando... esperando! Diga, você deve se lembrar muito bem! Ele tambémdormia com você?

— Eu já lhe disse toda a verdade! — soluçou, tentando desvencilhar-se dele.— Nunca fui amante de Vincent e só vi Stephan Esse uma vez! Jamais traívocê em toda a minha vida!

— Meu Deus! Como pode persistir nessa mentira? E isso? — explodiu ele,apontando para a foto com o rosto vermelho de ódio. — Minha própria mulher!

Despida para o mundo todo contemplar! Servindo de estímulo sexual paraqualquer um! Na companhia de dois homens que são conhecidos por teremtodos os vícios possíveis. Você me julga um completo imbecil, por acaso?

— Não! Eu nego tudo! — gritou Karen, à beira da histeria. — Cada palavra doque eu disse é a pura verdade e você foi o único com quem eu dormi. Nadamais posso revelar, será que você não pode acreditar na minha palavra?

— Acreditar em você? — Nick deu uma gargalhada.

— Você está bêbado! — acusou Karen, ao sentir o odor de álcool.

— Estou, é?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 99/116

 

— Está, sim!

— Oh, não! Mas gostaria de estar! Até agora eu me comportei para nãoprovocar queixas, mas já é hora de começarmos!

 Agarrou-a, então, com força. Karen lutou para libertar-se, mas não conseguiu.Nick segurou-a com mais força, prendendo seus pulsos atrás das costas.Subitamente beijou-a, de forma tão brutal que a feriu nos lábios.

— Você não vai fazer isso! — pediu Karen.

— Ah, tenho sido um idiota! Sonhando por dois anos com algo que é meu dedireito! Você é minha, Karen, e posso fazer o que bem entender de você! Eestá na hora de fazê-lo!

— Não! Deixe-me em paz! — implorou ela, pálida e aterrorizada. — Pare com

isso, Nick... Está me machucando!— Você está pedindo por isso, mocinha, e desta vez o idiota aqui não vaisimplesmente cair fora da cama! — Ele a apertava cada vez mais contra si,beijando-a com violência. — Não vai gritar, não é, querida? Não vai querer acordar a casa toda e arranjar uma platéia, não é mesmo? Ou Será que é esseexatamente o seu estilo?

— Você está louco!

— Não, querida esposa, estou são como nunca estive!

Nick jogou-a sobre a cama e deitou por cima dela. Karen sentiu-se fraca eindefesa e gemeu quando ele arrancou o seu penhoar e começou a tocar-lhe ocorpo. Nick apagou então o abajur da cabeceira. Por alguns instantes, sujeitouKaren pelos pulsos, demorando-se a contemplar seu corpo nu. Finalmentesoltou um grito de desejo e atirou-se a ela, beijando-a nos seios.

— Não, Nick... — suplicou ela, sem fôlego. — Não assim! Não dessa maneira,Nick...

Mas ela sabia que nada poderia fazer contra a força e o ímpeto daquele

homem enlouquecido pelo desejo. Sem nenhuma alternativa, submeteu-se aele, deixando-se possuir, entregando-se às suas carícias brutais. Com o rostobanhado em lágrimas, Karen se lembrou da maneira suave e carinhosa comque Nick a amara outrora, a relação sexual solidária e cheia de ternura quemantinham, tão diferente dessa de agora.

Quando finalmente ele se satisfez, saiu de cima dela e foi deitar-se na própriacama. Karen permaneceu deitada, sem ânimo nem coragem de se mover.Seus olhos úmidos e embaçados fitavam o teto. Somente quando Nickcomeçou a ressonar é que ela se ergueu, cobrindo-se com o lençol e

procurando dominar o tremor que lhe tomava o corpo de assalto.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 100/116

 

Silenciosamente foi ao banheiro. Com a mesma cautela voltou ao quarto eenfiou-se entre os lençóis gelados, rezando baixinho:

— Oh, meu Deus, faça com que eu pare de desejá-lo! Faça com que eu possaparar de amá-lo!

CAPITULO XI

Karen acordou arrasada. Já era tarde, pois ela só pegara no sono quandoamanhecia. Os raios de sol lhe provocaram tonteira e náuseas quando selevantou. Sentia-se tão mal que precisou fazer um grande esforço para não

voltar para a cama. Ao se olhar no espelho, sentiu-se pior, pois estava pálida ecom profundas olheiras. Estava apanhando o estojo de maquilagem, paratentar melhorar um pouco o seu aspecto, quando alguém bateu à porta.

Seu coração disparou com a perspectiva de ser Nick. Mas ele jamais teria feitoa cortesia de bater à porta antes de entrar!

— Entre — disse ela.

Era Lisa, que estava mais abatida do que ela.

— O que foi? — perguntou Karen. — Está doente, Lisa?— Desmaiei outra vez! Deus, como gostaria de poder... — Lisa interrompeu-seao reparar na expressão alarmada de Karen. Então, sentando-se na cama ecobrindo o rosto com as mãos, continuou: — Não fiz nenhuma bobagem,Karen. Não tenho essa coragem, sou das que vão levando. Mas e você, comoestá passando?

— O que quer dizer? — indagou Karen, assustada.

— Bem, eu a ouvi ontem à noite, e pensei... — Lisa vacilou antes de completar:

— Nick chegou muito bêbado, não é?— Oh, não! Você está imaginando coisas! — respondeu Karen, tentandomanter-se controlada, apesar do tremor no corpo.

— Não, não imaginei — afirmou Lisa. — Eu vi Nick chegar; desci para tomar um conhaque, porque não podia pegar no sono, e a aparência dele me deixouapavorada...

— Mas por quê? Por que você teria medo dele?

— Porque conheço o lado selvagem dele, e... Bem, temi por você. Ele estava

tão quieto, parecia um fantasma. Tomou-me o copo da mão e disse: "Nãodeixe que eu a pegue assim de novo!", e ficou lá parado, olhando-me até que

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 101/116

 

eu saí, apavorada. Ouça, Karen, está tudo bem mesmo com você?

— Claro que sim! Só tivemos uma pequena discussão e, como você estádizendo, ele é mesmo violento quando se irrita. — Diante do ar incrédulo deLisa, Karen disse: — Isso foi tudo, Lisa. Onde você pretende chegar, afinal?

— Bem... gostaria tanto de ter certeza.

— Certeza do quê, Lisa?

— Diga-me, Karen, aconteceu algo na América do Sul? — Lisa decidiu-se aperguntar. — Você voltou para Londres, não foi?

— Mas é claro que não! — protestou Karen, estarrecida.

— É que eu a vi, quando fazia compras uma manhã, no ano passado. Tenteifalar com você, mas havia muita gente e acabei perdendo-a na multidão. Então

soube que você voltara.— Oh, não, Lisa! Você deve ter se enganado...

— Estou certa de que não me enganei, porque eu a chamei e você pareceubastante assustada, pois entrou correndo numa loja. Mamãe recebeu umacarta sua da América do Sul uma semana depois e eu quase contei a ela. Masalgo me fez ficar calada, sabe? Agora quero que me diga francamente o queestá acontecendo.

Karen olhou para Lisa, incrédula. Logo ela, que tinha tanto a ver com o que se

passara!

— Pelo amor de Deus, Lisa! Será que você não sabe mesmo? Bem, é melhor que saiba logo, então... Eu nunca estive na América do Sul. Nick e eurompemos e só estou aqui a pedido dele, por consideração a Elizabeth, paraque ela não descubra o que na verdade aconteceu.

— Então quer dizer que... — Lisa tapou a boca com a mão e não terminou afrase. Estava totalmente desnorteada. — Karen, por que você não me contou oque estava acontecendo?

— De que teria adiantado? — retrucou Karen, passando nervosamente umbatom nos lábios. — Você teria podido ajudar?

Pelo espelho viu que Lisa estava surpresa. Então, de repente, ela perguntou:

— Nick descobriu ou ele...

— Ele viu a foto, Lisa — respondeu Karen devagar.

— Mas você não contou a ele?

— Não! Eu neguei tudo, mas ele não acreditou em mim.

— Oh, Deus! O que vamos fazer agora, Karen?

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 102/116

 

— Nada! — decidiu Karen, sentindo-se mais segura após ter dito tudo a Lisa.— Agora é tarde para qualquer coisa. Nick mostrou não ter a mínima confiançaem mim, e eu não quero mais nada com ele.

Dito isso, apanhou a bolsa, verificou quanto tinha e saiu, torcendo para não

cruzar com ninguém. Nick que arranjasse alguma desculpa por ela.

Nick tinha levado Elizabeth ao médico, por isso não podia detê-la. Karencomprou uma passagem de ônibus sem nem saber para onde ele ia. Tudo oque desejava era afastar-se de Dellersbeck, para um lugar onde ninguém aconhecesse e onde pudesse ficar só. Olhando a paisagem passar veloz pela  janela, decidiu que nunca mais fingiria. As lágrimas rolavam por seu rostopálido e abatido.

O ônibus a deixou numa cidade que ela não conhecia. Distraidamente

começou a andar pelas ruas, parando para olhar as vitrines. Mas em todas elasparecia ver o rosto duro e cheio de ódio de Nick. Fechando os olhos, apoiou-secontra o vidro, tentando afastar aquela imagem de sua mente. Ouviu às suascostas alguns comentários de pessoas que passavam e falavam sobre suaaparência. Tentou sorrir para elas e continuou andando, procurando manter umpasso cadenciado. Suas pernas pareciam ter adquirido vida própria, levando-aa esmo enquanto seu cérebro voava a quilômetros de distância.

Só quando sentiu pingos de chuva no rosto e olhou para o céu nublado é queteve consciência de que andara demais, e que era necessário voltar à sua vida

de mentira, ao lado de Elizabeth, de Lisa e de Nick; voltar enfim a ser a falsaesposa, feliz e fiel.

Chegando à estação, soube que o próximo ônibus só sairia dali a duas horas.Exausta, resolveu entrar numa lanchonete apinhada de gente. Um simpáticocasal de meia-idade ofereceu-lhe um lugar à sua mesa. Mais por sugestão dosdois do que por vontade, pediu um sanduíche e um café. Só quando começoua comer é que se deu conta de como estava faminta.

Karen deixou a lanchonete faltando ainda uma hora para o ônibus partir. Fazia

muito frio e ela arrependeu-se por ter saído sem nenhum casaco. Pensou nareação de Nick ao vê-la chegar tão tarde. Mas, afinal, quem se incomodavacom o que ele pensasse ou deixasse de pensar? O problema era Elizabeth. Aúltima coisa que desejava no mundo era magoá-la.

Recomeçou a andar pela rua para matar o tempo e para se aquecer. Mas nãoprestava atenção ao que fazia, perdida demais em seus pensamentos. Entãoescorregou e perdeu o equilíbrio. Tentou amparar-se, mas era tarde demais.Ouviu os transeuntes gritarem enquanto caía no meio da rua. De repente algoa atingiu com um baque surdo, e ela se viu projetada para cima, com tudorodopiando à sua volta, até que seu corpo tocou o asfalto úmido. Fez uma

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 103/116

 

tentativa para se levantar, mas não conseguiu. Uma luz explodia em seucérebro e tudo se apagava nas trevas.

Inconsciente, Karen não percebeu quando algumas pessoas a carregaram paraa calçada e um jovem policial cobriu-a com a sua farda. Tampouco a sirene da

ambulância, que a levou ao hospital. Só ao despertar deu-se conta de queestava sobre uma cama, num locai desconhecido. Algo preso em sua cabeça aincomodava, mas não tentou se mexer. Ouviu então uma voz suave:

— Ótimo, já está acordada... Como se sente?

Karen umedeceu os lábios e olhou na direção da voz. Uma enfermeira estava junto dela e tomava-lhe o pulso, sorrindo.

— O que aconteceu? — balbuciou, fraca. — Onde estou?

— Está no hospital, querida — esclareceu a enfermeira. — O médico já viráfalar com você.

Com a consciência, veio também a dor. Sua cabeça doía terrivelmente e Karentinha o corpo todo dolorido, como se a tivessem surrado. Mas só se lembravade ter tomado um ônibus e depois entrado numa lanchonete. De resto, pareciaestar vivendo um terrível pesadelo.

— E então? Como está, sra. Radcliffe? — perguntou um médico alto e magro ecom um sorriso bondoso no rosto. — Menos preocupada agora? Pode lembrar-se de quando fez a sua última refeição?

— Como sabe o meu nome? — perguntou Karen, confusa.

— Tivemos que examinar os seus documentos na bolsa — respondeu ele. — E já mandamos avisar os seus familiares.

Karen podia imaginar como se sentiria Elizabeth abrindo a porta para umpolicial e recebendo a notícia. Pediu, então, nervosa:

— Por favor, deixe-me telefonar! Eu preciso...

— Acalme-se, poderá telefonar quando quiser — tranqüilizou-a o médico, com

a mão em seu ombro. — Deve estar ansiosa para falar com o seu marido, nãoé mesmo?

Nick! Karen sentiu os olhos inundados de lágrimas à simples menção dele.Lembrou-se do motivo que a fizera sair de Dellersbec daquela maneira. Quantotempo já se havia passado desde aquele dia? Tentou olhar o relógio, quando omédico a impediu de move o braço, dizendo com voz persuasiva:

— Será que poderia parar de se preocupar? Quero que me diga quando comeupela última vez.

— Foi... foi na hora do almoço. Eram duas e meia e eu...

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 104/116

 

— Está bem, está bem... — o médico interrompeu. E, consultando o relógio,declarou: — Já pode ser levada à sala de gesso. Temos que dar um jeito emvocê, sabe?

— Será que posso beber algo? — pediu Karen.

— Não, mas poderá molhar os lábios. É que tivemos que lhe ministrar umanestésico enquanto tratávamos do seu braço. Tão logo passe o efeito poderábeber o que quiser, está bem?

— O meu braço! Vocês o operaram? — perguntou Karen. Quando médicoconfirmou, acrescentou, receosa: — Será que eu vou ficar boa?

— Mas que dúvida! — respondeu ele. — As radiografias mostraram que vocêestá perfeita; só tem uma fratura exposta e uma pequena concussão. Por issoterá que permanecer aqui por mais uns dois dias, para observação. Escapou

por um triz, sabia disso?

— Verdade?

Karen recostou-se nos travesseiros, abalada pelo que o médico disse: Meiahora depois, já de volta da sala de gesso, teve permissão para tomar um cafécom leite. Ainda tonta pelo efeito da anestesia, sentia uma terrível vontade dedormir. Nisso a enfermeira entrou, com um policial que veio tomar o seudepoimento. Karen não se lembrava de quase nada e fez declarações bastantevagas. Particularmente quando ele pediu que ela descrevesse o carro.

— Então foi um carro que me atingiu? — perguntou ela. — Do modo como mesinto, pensei que fosse um tanque!

— Sim — respondeu o policial com um leve sorriso. — E parece que a senhorao atingiu bem na capota.

— Oh, meu Deus! Ele não teve nenhuma culpa!

— A senhora escorregou, pois encontramos uma casca de fruta na sola do seusapato. Acho que foi exatamente isso.

Depois de ele sair, Karen tentou dormir de novo, mas logo a acordaram para o  jantar. Meio adormecida, ela devorou praticamente tudo o que havia nabandeja, depois tornou a cair no sono.

Na manhã seguinte, a enfermeira teve que chamá-la várias vezes para acordá-la.

— Sra. Radcliffe, o seu marido está aqui.

Karen abriu os olhos, surpresa. Ao pé da cama, estavam parados Elizabeth eNick. Ele estava muito sério e compenetrado, o que fez Karen sentir-se tentada

a gritar para que parasse de fingir, para não fazer aquela cara só porqueestava na frente de Elizabeth. Mas ele pareceu entender os seus pensamentos

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 105/116

 

e foi apenas gentil quando se inclinou para beijar-lhe o rosto, dizendo:

— Alô, Karen... como se sente?

Karen conteve o impulso de esbofeteá-lo, porque Elizabeth também seaproximara para beijá-la. Limitou-se então a responder:

— Com um pouco de dor; nem sei bem o que houve...

— Pobre criança! — lamentou Elizabeth, fitando-a com ternura. — Poderia ter morrido! Oh, quando vieram os guardas...

— Oh, perdoe-me, por favor — disse Karen, apertando as mãos dela. — Euestava tão preocupada com você...

— Eu só queria saber o que você estava fazendo aqui! — resmungou Nick,mal-humorado. — Afinal, ninguém sabia...

— Nada de interrogatórios agora, Nick — interveio Elizabeth com severidade.— Além do mais, Karen é livre para ir onde quiser, sem precisar ficar lhe dandosatisfações, seu cabeça-dura!

— Está bem — concordou ele.

Elizabeth sorriu novamente e estendeu a Karen uma bolsa com algumasroupas e objetos de toalete. Depois passou a transmitir as recomendações deMagda, Timsey e Lisa, que tinham prometido ir visitá-la no dia seguinte. Nick,enquanto isso, olhava repetidas vezes para o relógio, como se estivesse

ansioso para encerrar a visita. Finalmente perguntou, seco:

— Você está precisando de alguma coisa?

— Não, obrigada. Elizabeth já me trouxe tudo — respondeu Karen, evitandoolhá-lo. — O pessoal do hospital é maravilhoso; as enfermeiras e os médicosestão o tempo todo preocupados em saber se preciso de algo.

— Posso pedir para que a transfiram para a ala privativa — sugeriu Nick.

— Não é preciso. Vou ficar aqui só por uns dois dias.

Nick fez um ar de dúvida que assustou Karen. Será que o médico lhe disseraalgo que ela não sabia? Ficaram em silêncio por uns mo mentos, até queElizabeth disse a Nick com suavidade:

— É melhor deixarmos ela descansar. Karen parece cansada.

— Ainda temos tempo — argumentou ele.

— É, mas olhe só para .a pobrezinha, Nick!

Karen realmente não estava com bom aspecto. Haviam raspado uma parte deseu cabelo para fazer um curativo, tinha o braço direito engessado e uma gazena bochecha. Sem contar as inúmeras escoriações pelo corpo todo.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 106/116

 

— Amanhã nós lhe telefonaremos — disse Elizabeth, beijando afetuosamente.

Karen ficou perturbada ao ver que Elizabeth se levantou e sai antes, para queela e Nick tivessem um momento de intimidade; Era irônico, mas era o fechonormal da visita de um marido à esposa. E lá estava Nick, parado e rígido,

como se esperasse uma iniciativa dela. Karen puxou as cobertas quase até onariz e ficou olhando par o teto, sem se atrever a encará-lo. Ao mesmo tempo,não se senti com ânimo para se defender ou discutir, ou mesmo fingir umacamaradagem, que jamais poderia voltar a existir entre eles.

Finalmente Nick se levantou e, aproximando-se dela, disse:

— Bem, Karen, acho que não há nada para ser dito.

— Nada — concordou ela, sem olhá-lo. — E, mesmo que houvesse, este nãoseria o local para dizê-lo.

— Entendo. Então, já vou indo... Adeus, Karen.

O eco de seus passos permaneceu no quarto e na mente de Karen depois queele saiu. Então lhe ocorreu uma coisa estranha, algo que lhe soara mal nadespedida dele: Nick não dissera boa-noite ou até logo, mas adeus!

CAPITULO XII

 A visita de Nick desfez o pouco da calma que Karen tinha readquirido nohospital. Enfrentou uma noite horrível, maldormida e, na manhã seguinte,estava abatidíssima ao receber a visita do médico.

— Ainda não me habituei a isso — murmurou, erguendo o braço engessado.

— Está apertado? Podemos fazer alguns ajustes.

— Não, está tudo bem.

— Ótimo, vamos então verificar os outros ferimentos. — Enquanto aexaminava, ele perguntou: — Algo a está aborrecendo?

Diante da tímida negativa dela, ele explicou que perguntara porque osproblemas pessoais interferiam no tratamento. Se Karen tinha algum, eleestaria pronto a ajudá-la no que fosse possível. O fato de ver um estranho sepreocupando por ela, enquanto seu próprio marido a ignorava, comoveu Karena ponto de fazê-la chorar.

— Acalme-se — disse o médico com uma expressão de censura. — Não é

nosso costume fazer as pacientes chorarem.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 107/116

 

— Desculpe, não pude me conter — respondeu Karen.

— Bem, ao menos está mais aliviada. Agora vamos transferi-la para aenfermaria, para que a companhia de outros possa animá-la. Depois do almoço já poderá caminhar um pouco.

 A companhia de outros pacientes realmente fez bem a Karen e os primeirospassos que deu, apesar de lhe causarem dores terríveis, deixaram-na eufórica. Agora tinha certeza de que a sua recuperação seria apenas uma questão detempo.

Nick voltou à noite, trazendo Lisa, que estava mais bela do que nunca. Deu umbeijo em Karen e disse algumas palavras gentis. Karen notou que ela voltara aassumir aquele ar frívolo que exibia quando chegou a Dellersbeck e que nãomostrava nenhuma disposição para conversar. Assim mesmo, aproveitando-se

de um momento em que Nick se afastara, Karen perguntou casualmente:— Já falou com Elizabeth, Lisa?

— Oh, sim! Contei-lhe esta manhã, porque o seu acidente e a consulta delamonopolizaram a conversa de ontem. A pobrezinha está pior do que eu... Masacho que não posso mais usar este conjunto, não acha? Está ficando meioapertado...

— Bem, poderá usá-lo depois do parto.

— Oh, onde diabos se meteu Nick? — perguntou, aflita.

Karen olhou para o relógio. Percebeu o grotesco da situação, pois tanto elaquanto Lisa estavam loucas para ficarem longe uma da outra. Nick tambémnão queria ficar ali e tinha saído do quarto.

Estranhas visitas e estranha paciente, pensou ela com ironia. Se ao menosparassem de representar!

— Karen, não se importa que eu peça a Nick para me levar agora? —perguntou Lisa, constrangida. — É que este ambiente de hospital não me faznada bem!

— Claro que não, Lisa. — Karen ajeitou-se sob as cobertas. — Por que não vaiprocurar Nick? Diga-lhe que não precisa vir se despedir de mim. Sinto-meterrivelmente cansada.

Dizendo isso, fechou os olhos, evitando ver a saída de Lisa. Tampoucopercebeu quando Nick abriu a porta e fez menção de avançar, sendo contidopor Lisa.

Na manhã seguinte, não soube se ficava aborrecida ou aliviada quando o

médico aconselhou que ela permanecesse no hospital por mais vinte e quatrohoras, para observação. Seus ferimentos já não doíam e o gesso incomodava

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 108/116

 

menos. Só restava a apreensão de ter que voltar a Dellersbeck. Ofereceu-separa auxiliar a enfermeira nas tarefas mais simples, tentando afastar os mauspensamentos, mas a perspectiva de voltar a viver sob o mesmo teto que Nick adeixava doente.

Mas como dizer a verdade a Elizabeth? Pensou na sua própria tia Helen, únicaparente que lhe restara após a morte dos pais, e tão diferente de Elizabeth. TiaHelen só se preocupava com o seu gado de raça. Dificilmente poderia contar com ela num momento de necessidade. Karen sentiu-se irremediavelmente só.

 A aproximação do horário de visitas só veio piorar o seu estado de espírito.Mas quando a porta da enfermaria se abriu, não viu Nick, mas Elizabeth, queveio na companhia de seu velho amigo herr Lindner. Ele a cumprimentou comtoda a cortesia e colocou uma caixa de bombons sobre a mesa-de-cabeceira.

— Está com ótima aparência, sra. Radcliffe — observou ele, antes que Karentivesse tempo de agradecer pelos bombons.

— Sim! — concordou Elizabeth. — Quando virá para casa?

— Amanhã, eu creio — respondeu Karen.

Nisso percebeu que herr  Lindner e Elizabeth trocavam um estranho olhar,cheio de satisfação. Elizabeth então falou, com voz excitada:

— Não posso mais agüentar, querida, tenho que lhe contar. Vou quinta-feirapara a Alemanha com Reinhard!

— Alemanha?! — exclamou Karen, incrédula.

— Não é para sempre, pretendo trazê-la de volta — assegurou herr Lindner.

— Mas vai ficar lá a temporada? — perguntou Karen.

Houve nova troca de olhares entre os velhos e então herr Lindner explicou queperdera a esposa há cinco anos, padecendo do mesmo mal de Elizabeth, e quena época não pudera fazer nada. Mas soubera agora que, perto de sua casa,  junto à fronteira austríaca, havia uma nova clínica com um revolucionário

sistema de tratamento dos doentes que sofriam da mesma doença. Essemétodo, apesar da resistência que encontrava ainda junto à Medicinatradicional, já mostrara bons resultados, dando uma nova esperança aos que láchegavam. Por isso, iriam para lá. E, percebendo a dúvida estampada no rostode Karen, ele acrescentou:

— Não tenha receio, não se trata de nenhuma arapuca. Os médicos de lápossuem fama mundial e são de uma extraordinária dedicação. É um localmuito respeitado por médicos e cientistas.

— É verdade, Karen. Lá há a vantagem de eles fazerem um tratamentoespecificamente voltado às características individuais do paciente — explicou

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 109/116

 

Elizabeth. — Eles sabem que cada ser humano possui o seu próprio ritmobiológico e psíquico. Claro que ainda estão dando os primeiros passos, mas oque eu tenho a perder, querida? Pelo contrário, só terei a ganhar com estanova perspectiva. Por isso aceitei a generosa oferta de Reinhard, que está

disposto a me levar até lá e ficar a meu lado enquanto durar o tratamento.— E Nick, o que diz disso? — indagou Karen, curiosa.

— Ele não gostou muito da idéia — respondeu Elizabeth. — Mas não voudeixar que ele me impeça desta vez!

— Sim, seu filho é um cético — observou herr Lindner. — Eu o entendo e creioque também o seria, na posição dele. Mas você deve decidir, e, se resolver mudar de idéia ou pensar melhor, não hesite. Eu compreenderei...

— Não, estou decidida! — afirmou Elizabeth. — Isso foi uma verdadeira

bênção para mim e já pensei demais. Desta vez vou buscar o melhor para mimmesma. Nick terá que aceitar isso! Sabe, Karen, achei maravilhosa a idéia dereunir a família e agradeço a todos de coração, mas sei que nenhum de vocêsse sente bem em Dellersbeck e sinto-me culpada por isso. E... Bem, Karen, seique as coisas não andam bem entre você e Nick, assim como entre Lisa eClifford. Você sabe que, se precisar de mim, é só dizer. Mas eu tenho que lutar a meu modo contra a minha doença, e sei que o conseguirei melhor, sabendoque vocês estão vivendo as suas vidas, organizando as suas coisas eacertando as suas diferenças. E então, Karen, você me ajuda a fazer Nick

entender, por favor?

— Oh, rezarei o tempo todo para que você volte logo e traga boas notícias,Elizabeth! — disse Karen, abraçando-a com força. — E... muito obrigada.

Karen recostou-se no travesseiro, soltando um longo suspiro depois queElizabeth e herr  Lindner a deixaram. Aquele drama horroroso estava paraterminar e Elizabeth pareceu ter entendido o significado de seu agradecimentofinal. Em poucos dias poderia se ver livre de Nick e daquele seu papeldeprimente. Poderia voltar a Londres e escrever a Elizabeth, contando o que se

passara. E se ela se recuperasse, poderia então lhe dizer toda a verdade.Pensando nisso, comeu um bombom, sentindo-se feliz pela primeira vez desdeaquela noite na casa de Dellersbeck.

Na manhã seguinte, sentada no carro ao lado de Nick, Karen se sentiu tomadapor um sentimento estranho. Ele fora buscá-la para irem para casa. Ela sedespedira com carinho de todos no hospital e ali estava agora, calada epensativa, enquanto o automóvel deslizava velozmente pela estrada,conduzido pela mão firme de Nick.

— Karen, vamos tomar um drinque ali naquele bar — propôs ele de repente.— Não quero nenhum drinque.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 110/116

 

— Eu quero! E você também, para se recuperar um pouco.

E, sem dizer mais nada, estacionou o carro ao lado de um enorme restaurantede estrada. Enquanto Nick pedia duas bebidas, Karen ficou pensando em comoele podia agir daquele modo, como se estivesse tudo normal entre eles.

— Karen...

— O que você quer, Nick? Tome o seu drinque, mas não vamos conversar.Não estou disposta.

— Isso soa como um ponto final.

— O ponto final aconteceu muito tempo atrás.

— Bem... faria alguma diferença se eu...

— Nada agora faz diferença! — Karen interrompeu-o, largando o copo na mesa

e levantando-se. — Por favor, aceite isso... — E saiu para o terraço.

Depois de Nick pagar a conta, voltaram para o carro em silêncio eprosseguiram a viagem.

— Você soube de Elizabeth? — perguntou Nick, quebrando o silêncio que seestabelecera até então.

— Sim. Ela me contou, a noite passada.

— O que você acha?

— Acho que Elizabeth deve fazer o que tiver vontade, sem que ninguém aimpeça — respondeu Karen, um pouco surpresa pelo fato de ele a estar consultando sobre um assunto.

— Entendi. E quanto a nós? Não quer mesmo me escutar?

— Não acha que já o escutei demais, Nick?

E não disseram mais nada, pois o carro já entrava nos jardins da casa. Karendesceu e caiu nos braços de Elizabeth, Magda e Timsey. A casa estava cheiade flores para recebê-la. Herr Lindner chegava também naquele momento. Só

faltava Lisa.

— Lisa voltou para casa — esclareceu Elizabeth. — Lamento que ela nãotenha ficado para recebê-la, mas disse que queria contar a Clifford sobre obebê. Oh, espero que ela consiga superar os seus temores e ser feliz.Pobrezinha.

Nick permaneceu calado durante toda a manhã e o almoço. Seria a partida deLisa? Pensando melhor, Karen concluiu que não. Talvez ele se sentisse mal-humorado por ter sido substituído por um estranho no papel de protetor de

Elizabeth. Só podia ser essa a razão de seu mutismo.

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 111/116

 

Elizabeth, por seu lado, parecia feliz como jamais estivera. Conversavaanimadamente com herr  Lindner, com um brilho juvenil nos olhos. Então,subitamente, Karen percebeu o que estava acontecendo com Elizabeth. Oamor a rejuvenescera e a revitalizara. Mergulhada nesses pensamentos, Karen

não percebeu quando ela e herr Lindner convidaram a ela e a Nick para daremum passeio.

— Oh, não! — recusou Nick. — Obrigado, herr  Lindner, mas minha mulher precisa repousar.

E, antes que ela pudesse abrir a boca para protestar, ele a agarrou pelo braçoe a arrastou para o quarto, dizendo ameaçadoramente em voz baixa:

— Não discuta! Não quero que discuta!

Karen sentiu-se carregada como uma pluma escada acima; depois, foi quase

atirada para dentro do quarto. Nick ficou parado na porta com uma expressãode raiva.

— Por que, Karen? Por quê? — gritou ele.

— Por que o quê? — gemeu Karen, apavorada, pois ele a agarrara com força ea subjugava. — Nick, deixe-me!

— Por que você não me contou, sua idiota?

— Por favor, Nick... — soluçou ela. — Eu não agüento mais isso...

— Nem eu, Karen... Oh, Karen, querida! — E, segurando suavemente o rostodela, Nick o cobriu de beijos ardentes. — Dois anos! Dois longos anos... E tudopor culpa daquela vagabunda vaidosa e egoísta! Oh, como eu gostaria dematá-la!

— Mas, Nick... Quem?

— Lisa! — gritou ele. — Quem mais?

— Não entendo... — balbuciou Karen, totalmente confusa e deixando de resistir a ele. — Ela contou a você? Lisa?

— Sim, contou, para evitar que eu a enforcasse!

— Mas... mas como? Como você foi perguntar a ela?

— Você me falou, não se lembra? — disse ele.

— Não! Não falei nada! Eu prometi a Lisa que...

— Ora, cale-se! — cortou Nick, largando-a e indo até a janela. — Na noite emque estive no hospital com Lisa, eu fui falar com o médico que tratou de você.Sabe, estava completamente arrasado. Elizabeth me dizendo que ia embora, e

você, toda arrebentada por minha culpa! Aí a enfermeira me avisou que omédico queria falar comigo... Palavra, ele me recebeu como se eu fosse o

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 112/116

 

próprio satanás! Contou-me que você delirava incessantemente à noite,chamando por mim, dizendo que eu a odiava e que não queria ouvi-la, e outrascoisas que me reduziram a um verme. Disse-me que aquilo estava dificultandoa sua recuperação e que eu procurasse fazer algo para ajudar.

Karen soluçou, aterrada. Nick a olhava com ternura e retomou a narrativa:

— Foi aí que eu comecei a raciocinar. Fiquei observando Lisa durante ocaminho de volta. Então me lembrei de que ela costumava usar o cabelo domesmo jeito que o seu, e que vocês eram quase idênticas fisicamente. Ecomecei também a analisar os gestos e o comportamento dela, não como umirmão afetuoso, mas de uma maneira fria. Então sua verdadeira personalidadesurgiu como por encanto. Ali estava uma garota frívola, vaidosa e arrogante... Amesma garota que dera gritinhos de excitação quando conheceu VincentKayne na nossa festa de casamento. E associei a personalidade de Lisa àfama de Vincent, às suas garotas e às suas fotos escandalosas. E então tiveum estalo, Karen! Lisa se encaixava! Quando eu falei disso, ela começou achorar, dizendo que você tinha quebrado o ju r amento e que a havia traído.

— Mas eu não quebrei! — protestou Karen. Só então percebeu que tinha caídona armadilha, pois Nick ficou tenso e, aproximando-se dela, perguntou comraiva:

— Que juramento foi esse? Vamos, responda para mim! Que tipo de segredosórdido e miserável havia entre você e Lisa para valer o fim do nosso

casamento? Fale-me a verdade, Karen!

— Mas, Nick... Lisa já não lhe contou?

— Lisa não sabia que eu pensava que a garota da foto era você. Disse quefizera aquilo por mera diversão e que não tinha intenção de estragar a vida deninguém. Aí ficou histérica, gritando que não tinha culpa se Vincent a cortejavao tempo todo e lhe prometera   jamais vender a foto; não ia imaginar que elefaria aquilo. Jurou que só queria o seu relógio de volta e que nunca poderiasupor que ele fosse morrer no dia seguinte. Depois disso, não pude mais falar 

com ela, pois Magda, Timsey e Elizabeth vieram protegê-la. Como ela pôde ser tão ordinária e hipócrita? Agora você vai me contar!

— Não há muito o que contar... — disse Karen, sabendo que chegara a horada verdade. — Lisa teve um caso com Vincent Kayne e ele a convenceu aposar nua para uma foto. Eles se encontravam todas as tardes no estúdio delee, justamente um dia antes de Vincent morrer, Lisa esqueceu o belo relógioque ganhara de Cliff lá. Ela ficou em pânico, temendo que alguém visse seunome gravado no relógio. Como estava de partida com Cliff para Oxford,suplicou-me para que fosse lá apanhá-lo, falando que já ligara para Stephan eque ele levaria a chave para abrir a porta. Eu deveria levar depois o   relógio

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 113/116

 

para Elizabeth, dizendo que Lisa o esquecera em nossa casa.

— Então aquela maldita mentirosa já tinha a história toda armada, não émesmo? — concluiu Nick, irritado.

— Bem, eu fui porque fiquei com pena dela — continuou Karen. — Mas nãoesperava que houvesse jornalistas rondando o estúdio à caça da garotamisteriosa. Stephan tentou me proteger, mas só fez atiçar ainda mais acuriosidade dos fotógrafos. Afinal, um escândalo envolvendo a família doaristocrático Clifford... Só sei que eles bateram as chapas julgando que eufosse a garota misteriosa. E depois você viu as fotos e me acusou de ser... Oh,Deus, como foi duro comigo, Nick! E nada do que eu dizia convencia você...

— Mas por que você não me contou?

— Porque eu fiz uma promessa a Lisa! Ela me obrigou a jurai que não diria

nada a ninguém, especialmente a você! Se você visse como ela estavaassustada...

— Lisa assustada! — gritou Nick, exasperado. — Por Deus, que dizer que nãome disse nada e preferiu acabar com o nosso relacionamento por causa dessaegoísta? Mas por que essa lealdade a Lisa? Explique...

— Ouça, Nick, quando vi você cheio de ódio, me acusando, pronto a acreditar em qualquer coisa a meu respeito, me senti destratada. . . Por isso saí de casa,certa de que não merecia sequer a sua confiança. Você pediu explicações que

eu não podia dar, Nick. Você não admitia a idéia de que eu pudesse guardar uma promessa e ao mesmo tempo estar falando a verdade. Concluiu logo queeu o traí com o primeiro homem que me surgiu pela frente! Eu sei agora que jamais devia ter dado a minha palavra a Lisa, que não devia ter escondido ofato de você, mas na hora estava furiosa e magoada, Nick. Será que entende?

— Mas eu a amava, Karen! Tem alguma idéia do que eu sofri durante todosesses anos? — gritou Nick.

— E você? — Karen soluçou, desesperada. — Julga que não tenho passado o

pior naquele apartamento, só e agoniada por saber que você me odiavainjustamente?

— Não, não chore, minha querida — disse Nick, abraçando-a com força eternura. — Agora já passou... Procure entender, Karen... Tive uma infânciahorrível, fui enganado a vida toda, e quando a vi parada, insistindo em que nãotinha nada a me dizer... Deus! Eu desejei matá-la... Por isso desabafei em vocêtodos os anos de dureza por que tinha passado.

Karen sentiu a verdade de suas palavras e abraçou-o com força, como sequisesse protegê-lo em seu peito. Ela entendia. Começou a entender no dia emque a sábia Elizabeth revelou-lhe toda a história de Nick. Agora só queria

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 114/116

 

abraçá-lo, acariciá-lo.

— Karen, será que tenho o direito de esperar pelo seu perdão, depois de todoo sofrimento que lhe causei? Depois da dor que provoquei?

— Oh, Nick... Não peça perdão. Eu é que peço desculpas! Se você soubessecomo sofri naquele dia. Estava certa de que partiria para a América do Sul emsua companhia e, de repente, lá estava eu... só e deixando a casa! E você nãofazendo nada para me impedir...

— Não, Karen... Foi um pesadelo! Um pesadelo que passou — disse Nick. —Oh, minha Karen querida... como é maravilhoso tê-la novamente em meusbraços. Diga que não é um sonho!

— Nick! Diga que ainda me ama!

Ele a beijou com infinita ternura, como se desejasse fundir-se nela etransformarem-se numa só pessoa.

— Karen! Eu a quero desesperadamente! — sussurrou ele. — Mas tenho medode machucá-la... o seu braço...

— Eu quero você, querido! Quero que me ame agora, para certificar-me de queo pesadelo acabou!

Nick a deitou na cama e acariciou-a com intensa paixão, fazendo explodir nelao desejo reprimido por longos anos.

— Você está cheia de roupas — brincou ele.

— E isso alguma vez foi obstáculo para você, amor?

— Nunca! Mas pensar que, depois de dois longos anos, é a primeira vez quedispo minha esposa, que a beijo...

Karen fechou os olhos, feliz. Sabia que ele estava tentando apagar alembrança daquela noite terrível, quatro dias atrás. Nick a aninhou contra o seupróprio corpo, trêmula e extasiada, e falou baixinho:

— Karen, há uma coisa que me preocupa...— O que é, meu amor?

— Bem... Na outra noite, eu... Perdoe-me por ter sido tão rude...

— Esqueça, Nick... Nada disso importa agora.

— Não... Eu não gostaria de saber que um bebê poderá nascer depois defazermos amor daquele jeito.

— Não, isso não vai acontecer, Nick — murmurou Karen. — Pode estar certode que o nosso bebê só vai nascer de um momento de puro amor.

— Obrigado, querida. Fique certa de que não deixarei que sofra nunca mais! —

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 115/116

 

disse e beijou-a apaixonadamente.

FIM

5/14/2018 A Grande Chantagem - Margery Hilton - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-grande-chantagem-margery-hilton 116/116

 

Não perca esta espetacular edição!

JULIA123ANEL DE NOIVADO

Margaret Pargeter 

Julie tirou o anel do dedo e jogou-o no fundo da bolsa, como se aquela jóia preciosa fosse uma bijuteria qualquer. Seu anel de noivado! Que ironia! O queela mais tinha desejado no mundo era casar com Brad Hewson. Mas aquelesbrilhantes que ele lhe dera não significavam nada. Não eram a promessa deum futuro juntos, mas uma algema que a prenderia a ele... até que a atraçãofísica passasse. Mesmo casados, Julie nunca passaria de amante dele: amulher cujo corpo Brad comprara em troca de algumas pedras preciosas e deuma chantagem. Pois, se Julie não se entregasse, Brad mandaria seu padrasto para a prisão! 

Uma história inesquecível para você reviver!

JULIA 124DEPOIS DO BAILE...

Janet Dailey

"Eu tinha esquecido, Amanda, que você ainda acredita nessas bobagens sobremarido, esposa e finais felizes." As palavras zombeteiras de Jarod Colby aindaecoavam em seus ouvidos, enquanto ele a abraçava com paixão. Uma paixãoa que Amanda correspondia sem poder se dominar, tonta de amor e de desejo.Nos braços de Jarod, ela se sentia como uma viciada: não conseguia mais passar sem os beijos dele, sem suas carícias possessivas e dominadoras.Estava desesperada, perdida, fora de si... e morta de medo de que aquelafelicidade terminasse. Porque viver sem ele seria uma agonia!