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O MITO DA NEUTRALIDADE

CIENTÍFICA .

O MITO DA NEUTRALIDADE CJENT1FICA

Copirraite © 1975 de Hilton Japiassu

Editoração

··c oordenação: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA

Revisão: IOS:b CARLOS CAMPANHA

Capa : PAULO DE OLIVEIRA

1975

Direitos adquir:idos por IMAGO EDITORA L TOA. Av. N. Sra. de Copacabana, 330 - 109 andar te!.: 255-2715, Rio de Janeiro.

lmp(esso no Brasil Printed in Brazil

HILTON JAPIASSU

O MITO .DA NEUTRALIDADE

' CIENTIFICA

Série Logoteca

Direção de

JAYME SALOMÃO

Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analítica

de Grupo do Rio de Janeiro.

IMAGO EDITORA LTDA

Rio de Janeiro

SUMÁRIO

Introdução 7

I - Objetividade Científica e Pressupostos Axiológicos .19

II - Ciências Humanas e Praxeología 49

III - Fundamentos Epistemológicos do Cientific~s!!lo 71 -

IV - A 'Etica do Conhecimento Objeth·o . 97

V - O Problema da 'Ciência da CiênCia' 123

VI - Papel do 'Educador da Inteligência' 145

Conclusão 165

A péndice 181

Bibliografia Sumária 181

INTRODUÇÃO

Irremediavelmente marcada pela sociedade em que ela se insere, a ciência é portadora de todos os seus traços e reflete todas as suas contradições, tan­to em sua organização interna quanto em suas apli­cações. Portanto, não há "crise da ciência", mas somente aspectos específicos à ciência da crise so­cial geral.

Apresentação do livro dirigido por A. Jaubert e Lévy-Leblond, Autocritique de la science _ ( 1973).

O que é a ciênciaT A questão parece banal. As respos­tas, .. porém, são complexas e difíceis. Talvez a ciência nem possa-ser definida. Em geral, é mais conceituada do que pro-

- priamente definida. Porque "definir" um conceito consiste em formular um problema e em mostrar as condições que o tor­naram formulável. No entanto, para os cientistas em geral, a verdadeira definição de um conceito não é feita em termos de "propriedades", mas de "operações" efetivas. Mesmo assim, definições não faltam. Para o grande público, ciência é um

- conjunto de conhecimentos "puros" ou "aplicados", produzi­dos por métodos rigorosos, comprovados_. e objetivos, fazendo­nos captar a realidade de um modo distinto da maneira como a filosofia, a arte, a política ou a mística a percebem. Segundo essa concepção, os contornos da ciência são mal definidos. O protótipo do conhecimento científico permanece a física, em torno da qual se ordenam a matemática e as disciplinas bioló­gicas. A esse conjunto, opõem-se os conhecimentos aplicados e técnicos, bem como as disciplinas chamadas de "humanas". A verdadeira ciência seria um conhecimento independente dos sistemas sociais e econômicos. Seria um conhecimento que, ba­seando-se no modelo fornecido pela física, se impõe corno uma espécie de ideal absoluto.

Mas há outras definições: umas são extremamente am­plas e vagas, a ponto de identificarem "ciência" com "espe­culação"~ outras são demasiadamente restritivas, a ponto de

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excluírem do domínio propriamente científico, senão todas, pe­lo menos boa parte das disciplinas humanas. Algumas defini­ções podem ser classificadas como "idealistas", na medida em que insistem em reduzir a atividade científica à busca desinte­ressada do conhecimento ou da verdade; outras apresentam­se como "realistas", chegando ao ponto de identifjcarem pura e simplesmente ciência e tecnologia. Uma coisa 110s parece

_ certa: não existe definição objetiva, nem muito menos neutra, daquilo que é ou não a ciência. Esta tanto pode ser uma pro­cura metódica do saber, quanto um modo de interpretar a rea­lidade; tanto pode ser uma instituição, com seus grupos de pressão, seus preconceitos, suas recompensas oficiais, quanto um metiê subordinado a instâncias administrativas, políticas ou ideológicas; tanto uma aventura intelectual conduzindo a um conhecimento teórico (pesquisa),- quanto um saber rea­lizado ou tecnicizado. . - --

Se perguntarmos, por outro lado, sobre o modo de fun- · cionamento da ciência, sobre seu papel social, sobre sua ma­neira de explicar os fenômenos e de compreender o homem no mundo, perceberemos facilmênte que as condições reais em que ·são produzidos os conhecimentos objetivos e racionaliza­dos, estão banhadas por uma inegável atmosfera sócio~políti~ co-<:ultural. :S esse enquadramento sócio-histórico, fazendo da ciência um pmduto humano, nosso produto, que Ieva_9s co­nhecimentos objetivos a fazerem apelo, quer queiram .quer não, a pressupostos teóricos, filosóficos, ideológicos oa axiológicos nem sempre explicitados. Em outros termos,. não há ciência "pura", "autônQma': .e "neutra", com~ se fosse possível gozar do privilégio de não se sabe que "imaculada concepção". Es­pontaneamente, somos levados a crer que o cientista é um in­divíduo cujo saber é inteiramente racional e objetivo, isento não somente das perturbações da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Contudo, se o examinarmos em sua atividade real, em suas condições concretas de traba­lho, constataremos que a ''Razão" científica não é imutável. Ela muda. E histórica. Suas normas não têm garantia alguma de invariância. Tampouco foram ditadas por alguma divfnda~ de imune ao tempo e às injunções da mudança. Trata-se de normas historicamente condicionadas. Enquanto tais, evoluem

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e se alteram. Isso significa que, em matéria de ciência, não há objetividade absoluta. Também o cientista jamais pode dizer­se neutro, a não ser por ingenuidade ou por uma concepção mítica do que seja a ciência. A objetividade que podemos re­conhecer-lhe, não pode ser concebida a partir do modelo de um conhecimento reflexo. A imagem do mundo que as ciên­cias elaboram, de forma alguma pode ser confundida com uma espécie de instantâneo ~otográfico da . realidade tal como ela é· percebida. De uma forma ou de outra, ela é sempre uma in­terpretação. Se há objetividaae na ciência, é no sentido em que o discurso científico não engaja, pelo menos diretamente, a si­tuação existencial do cientista. A imagem que dele temos é a de um indivíduo ao abrigo das ideologias, dos desvios passio­nais e das tomadas de posição subjetivas ou valorativas. No entanto, trata-se apenas de uma imagem. Procuraremos desco­brir o que se oculta por detrás ·dela.

Não se pode ignorar que '~-- ciên~i.a é ao mesmo_ tempo um poder material e espiri_tl:Jal. Não é essa procura desinteressa­da de uma verdade absoluta, racional e universal, independeo-

. te do tempo e do espaço, que se distinguiria dos outros modos de conhecimento pela objetividade de seus teoremas, pela uni­versalidade de suas leis e pela racionalidade de seus resultados experimentais, cuidadosamente estabelecidos e verificados, e, portanto, -:-:-eficazes . .A produção -científica se . faz .numa soci~­dade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. ~-P~Qfu~~am~~te. marcada pe­la culturà em ·que se insere. Carrega em si os traços da socie­dade que a engendra, reflete suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações. Talvez não se­ja exagero dizermos que o "poder do conhecimento" está trans­formando-se rapidamente em "conhecimento do poder''. Nesse sentido, a ciência contemporânea, herdeira experimental das religiões "alienantes", está impondo-se, através da "inteligên-

. cia'', da "racionalidade", da "objetividade" e das "técnicas" de seus especialistas, como uma espécie de compensação da "estupidez" humana. Ela "canta" em cifras e em cálculos a grandeza do gênero humano, como se pudesse representar o

·· so~atório organizado e racionalizado de nossas ignorâncias e

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alienações. Veremos como essa mentalidade conduz facilmen­te à mistificação.

Em sua realidade concreta, a ciência é um poder exerci­do sobre as coisas e sobre os seres vivos. Esse poder torna-se tanto mais opressor quanto mais coincide com um saber-fazer, que apela, como a seu alterego, a tudo quanto não sabe pro­duzir: o poder de saber o que fazer. Somos levados a crer que o mundo esteja inflacionado de ciência, que ele padece de uma "doença" científica irreversível ou incurável. : Desde Descartes, ~.século XVII, a .ciência vem ensinando-nos a dominar a na­H~r.e~a. Parece ter conseguido seu intento com muito êxito, pois já trata de dominar o próprio homem. Todavia, ainda não conseguiu ensinar-nos como dqminar a dcminação. E quem acredita que ela, um dia, possa vir a desempenhar esse papel, está vivendo, no mínimo, uma ilusão. Ainda nos encontramos longe de pod~r "finalizar" o êxito científico-técnico por . um projeto capaz ·de restaurar,. para além d os saberes regionais e ' objetivados, um conhecimento ao mesmo tempo objetivante e de totalidade. Evidentemente, a _realização de semelhante pro­jeto não pode ser obra de um indivíduo, nem tampouco o re­sultado miraculoso de uma superteoria. Talvez seja o trabalho constante de um sem-número de práticas, de onde surgirãõ no­vas coerências, ou de outro tipo de teorização. Nesse domínio, é preciso ·· fazer uma escolha, correr riscos e adotar atitudes críticas. Porquê, sem tais posturas, a ciência poderá esmagar­nos sob o peso de seus sucessos e de seus benefícios.

Atualmente, a atividade científica defronta-se com sérios desafios internos e externos. De um ponto .de vista coletivo, os descontentamentos sociais ligados à introdução de inúme­ras inovações tecnológicas (da poluição industrial aos horro­res . das guerras químicas e eletrônicas), estão levando a um questionamento da equivalência entre ciência e progresso, en­tre tecnologia e bem-estar social. As manifestações objetivas dessa crise de confiança aparecem na redução dos investimen­tos em pesquisas, no número crescente de cientistas e de téc­nicos que se vêem condenados ao desemprego, e na crescente tomada de consciência, por parte dos próprios cientistas, das condições sócio-culturais em que são realizados seus trabalhos. A lguns colocam em questlio a escolha das prioridades nas ·pes-

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quisas, enquanto outros começam a fazer um crítica ideológi~ c a à prática social da ciência. Podemos compreender essa cri­se como. um desafio ao conceito de "racionalidade científica" e aos sistemas de valores culturais, intelectuais, sociais e éticos que se construíram sobre esse conceito. Essa questão será e~~ clareei da a propósito da "ética do conhecimento objetivo".

O que podemõs perguntar, desde já, é se não seria teme­rário entregar o homem às decisões constitutivas do saber científico. Poderia ele ser "dirigido" pela "ética do saber obje- · tivo"? Poderia ser "orientado'' por esse tipo de racionalidade? Não se trata de um "homem" ideal. Estamos falando desse homem real e concreto que somos nós; desse homem cujo pa­trimônio genético começa a ser manipulado; cujas bases bio­lógicas são condicionadas por tratamentos químicos; cujas ima­gens e .pulsões estão sendo entregues aos sortilégios das técni~ cas publicitárias e aos estratagemas dos condicionamentos de massa; cujas escolhas colet~as e o querer comum cada vez mais se transferem para as decisões de tecnocratas onipotentes; cujo ps.iquismo .consciente e inconsciente, individual e coleti~ vo, toma-se cada vez mais "controlado" pela ciência, pelo cálculo, pela positividade e pela racionalidade do saber cientí­fico; desse homem, enfim, que já começa a tomar consciência de qt,~e, doravante, pesa sobre ele a ameaça constante de um Apocalipse nuclear, cuja realidade catastrófica .~o constitui [email protected] objeto de refle~ãõ:·

Uma reflexão, · mesmo sumária, sobre-c ponto de partida .dos saberes científicos constituídos, e cúlminando em técnicas bastante eficazes, leva-nos facilmente a perceber que as ciên­cias, em sua vertigem crescente de objetividade e de raciona­lidade, conduzem aqueles que as praticam a um esquecimen­to progressivo e rápido dos pontos de partida e das decisões constitutivas de seu saber. Ora, uma retomada de consç_iência dessas "condições de origem" irá permitir-nos conjugar uma reflexão do homem aos saberes sobrt o homem. Ao biólogo "redutor", por exemplo, que declara: "o homem é apenas um sistema regulado de funções biológicas", poderíamos dar a se­guinte resposta: "considerado do ponto de vista biológico, e segundo o_ tipo de enfoque caracterizando tal epistemologia biológica, ele aparece como um sistema regulado de funções

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biológicas". E da nova consciência desse "considerado do pon­to de vista biológico" que surge a tarefa propriamente refle­xiva. Trata-se de uma tarefa cultural ainda irrealizada. Será levada a efeito pacientemente no interior de cada disciplina científica. Em seguida, nas pesquisas interdisciplinares. O ob­jetivo é atingir uma reflexão sobre as decisões constitutivas dos diversos saberes, quer dizer, retomar reflexivamente os resul­tados obtidos, as ligações descobertas, as inteligibilidades es­truturais, no interior de um saber reflexivo coerente do homem para ele mesmo. A esse respeito, impõem-se duas observa­ções.

a) f. dessa forma que as ciências humanas, por exemplo - cada uma segundo sua abstração metodológica própria -, poderão cooperar para que o llomem redescubra uma nova consciência .d~ si ou reelabore uma nova antropologia reflexi­va, não mats,tonstituída por introspecção ou por metodologia .... transcendental, mas por um coptacto direto com as ciências humanas, num diálogo interdisciplinar constante. ~ preciso que se parta das positividades elaboradas pelas ciências, para que se efetue uma retomada reflexiva da5Juilo que a razão cogni­tiva não cessa de se dar, em vários níveis conceituais, e de objetivar em saberes parciais. Ao ingressar num diálogo vivo, tr!lnqüilo ou polêmico, com as disciplinas que, de um modo ou de outro, tomam o homem como objeto de estuào, a an­tropologia reflexiva, num total respeito à autonomia de cada disciplina, e aproveitando-se das certezas já adquiridas, forne­cerá ao homem atual uma nova consciência de si, dessa vez apta, como deseja Jacques Monod, a suprimir "a alienação do homem ~oderno em relação à cultura científica".

b) A segunda observação consiste em responder à seguin­te questão: podemos fazer do conhecimento objetivo, como preconiza Monod, o único valor, a única ética digna do ho­mem atual? Evidentemente, o conhecimento objetivo pode bas­tar ao biólogo, ao psicólogo, etc., mas seria capaz de bl\Star ao homem? Talvez o problema seja mais bem elucidado se concebermos uma passagem do "saber sobre o homem" a um "saber-querer do homem", este, sim, capaz de dirigir sua ação. Porqu~ _ _p_ão _é na _ ciência, mas numa antropologia reflexiva,

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que iremos encontrar o discurso do homem sobre ele mesmo. Só esse discurso pode revelar, como originária e constitutiva do homem, essa dialética do "saber" e do "querer", do fato e do valor, do ser e do dever-ser. Ela é esse lugar onde aqui­lo que foi conquistado à maneira do ''fato", faz valer seus direitos em revestir-se da modalidade do "valor" e do "sen­tido". Com esse "saber-querer", a biologia, a psicologia, a so­ciologia, etc., não somente podem, mas devem coop_erar, sob o controle do pensamento livre, para a definição de uma ética da ciência. Por isso, não podemos admitir que o conhe­cimento objetivo possa constituir a única finalidade, o único valor. Porque, não sendo capaz de fundar uma ética, torna­se incapaz de constituir o valor supremo do homem. Os _yalo­res não podem surgir de um saber sobre o homem, mas de um querer do homem, ser inacabado -e sempre aberto às · pos­sibilidades futuras.

Depois dessas rápidas considerações introdutórias, con­vém apresentarmos sucintamente, não somente o conteúdo, mas as intenções do presente trabalho. Este não pretende ser outra coisa senão uma coletânea de elementos e de instrumentos in­trodutórios a uma reflexão mais. aprofundada e crítica por par­te dos eventuais leitores de um livro de iniciação a certos pro­blemas de ordem epistemológica. Trata~se, pois, de um con­junto de textos preparaàos e utilizados pelo autor em seus cur­sos de epistemologia na PUC do Rio de Janeiro. Aos textos originais foram feitas as necessárias alterações para fins de pu­blicação. Esses textos foram · escritos com o objetivo preciso de responder a preocupações bem determinadas, relativas a um contexto de ensino, melhor ainda, de seminários de estudos. Razão pela qual conservam sua linguagem por vezes polêmica, atendendo ao objetivo tanto de estimular a reflexão dos alu­nos sobre alguns pressupostos filosófiços presentes e atuantes nos processos de formação, de elaboração e de estruturação dos conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas, quan­to de proporcionar-lhes certas bases eonceituais para a com~ preensão desse "fundo de saber" ("solo" ou "horizonte~· epis­temológicos) sobre o qual se constroem certas teorias da ra-

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cioMlidade cóntemporânea. Portanto, trata-se de textos que, na origem, não estavam destinados a serem congregados. Don­de a ausência de uma ordenação lógica rigorosa, cada um po­dendo ser tomado como um todo. No entanto, todos se inscre­vem dentro de uma proJ>lemática fundamental: a das relações entre a ciência objetiva e alguns de seus pressupostos, isto é, entre a corrente de racíoMlidade que se exprime no movimen­to da industrialização. e da planificação, e o dinamismo de na­tureza ética, em interação -com a racionalização, embora autô­nomo em relação a ela.

Assim, a unidade dos vários capítulos do presente volu­me só pode ser a de uma perspectiva, não a de uma compo­sição orgânica e logicamente concatenada. Portanto, não se de­ve esperar dele uma análise ou uma reflexão cerradas ou sis­temáticas sobre-o modo .como as ciências se articulam com as grandes dimensões da aventura humana. Os capítulos que o compõem sãOl apenas enfo([Uit!s parciais e ocasiotraL:s, ainda bas-­tante incoati~os, de certos aspectos desse grande problema. São propostos apenas a titulo de ensaios provisórios, sugerindo al­~mas pistas de reflexão. Eles • tentam, sem excessiva preocu­pação de rigor metodológico, exprimir uma preocupação, mui­to mais do que estabelecer conclusões ou eixos seguros de pen­samento. Razão pela qual não quis sobrecarregá-los com cita­ções em -demasia, remetendo o leitQI_ à piblíografia fundamen­tal sobre o assunto. No entanto, seus capítulos obedecem a um certo -no condutor, religando a ciência objetiva a uma ética do ·saber objetivo, passando pelos pressupostos axiológicos das ciências humanas e por um esboço de crítica ao princípio da "neutralidade científica".

O primeiro capítulo é uma tentativa de colocar o proble­ma da o.bjetividade científica e de detectar os principais pres­supostos axiológicos presentes no - processo de constituição e de desenvolvimento das ciências humanas. O segundo visa ·a enfatizar o caráter cada vez mais praxeológico ou "intervencio­nista" dessas disciplinas. O terceiro tem por objetivo elucidar os fundamentos epistemológicos responsáveis pela atitude cien­tificista diante de todas as formas de conhecimento da reali­dade. O quarto é uma tentativa de mostrar que a "ciência ob­jetiva", apesar de n!io conseguir fundar uma "ética do conhe-

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cimento", não pode prescindir de uma ética que o funde. No quarto, tento situar o problema que hoje se coloca sobre a possibi!idade cada vez mais crescente de se construir uma epis­temologia científica, afirmando-se como "ciência da ciência" ou como "organização racionatt' da atividade científica.

Os capítulos 3 e 4 visam a mostrar, entre outras coisas, que o progresso dos conhecimentos não aparece mais, em nos­sos dias, como uma condição necessária e suficie_nte para a prosperidade humana e, menos ainda, como a garantia de um melhor bem-estar social e da felicidade dos indivíduos. O que se pode dizer é que tudo parece recolocado em questão: os meios de que a pesquisa científica dispõe, e, sobretudo, os fins que os justificam. Em outras palavras, a pesquisa fundamental ou teórica não pode ser mais vista como a condição neces~ária e suficiente do processo de inovação e de melhoria das condi­ções humanas de vida. Ao invocarem os "objetivos sociais" de suas pesquisas, os cientistas não têm mais o. direito de esta­rem seguros de que podem cumprir aquilo que vêm prometendo desde o século XVIII: a ciência para o bem da humanidade. F inalmente, achei por bem incluir um capítulo sobre a peda­gogia ·das ciências humanas. Batizei-o com o nome de ''O Papel do Educador da Inteligência". Poderá ser tomado à guisa de apêndice, pois só indiretamente está em linha de con­tinuidade com· os demais capítulos.

Por conseguinte, que ·o leitor, ao analisar criticamente este pequeno livro, não veja nele uma argumentação objetiva e sistemática, acabada ou dogmática, isenta de falhas e de toda ilusão. As formas de pensamento e de expressão utilizadas não estão isentas de pressuposições e de partis pri3 por vezes injustificados. Razão pela qual ficaria muito grato em receber críticas e sugestões. Estou consciente rias lacunas e da não­isenção, bem como do fato de nem sempre ter visto, pelo menos explicitamente, a contingência, a relatividade e as limi­tações de certas afirmações. Ademai!i, estou consciente de não ter emprendido uma reflexão exaustiva sobre os temas pro­postos à discussão, nem tampouco de ter apreendido de modo verdadeiro todos os problemas centrais referentes às relações da ciência com seus pressupostos axiol6gícos. Minha preocupa­ção fundamental, repito, foi a de expressar uma intençao: in-

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tenção de tentar comprender, de situar e de captar a lógica interna de uma tensão que se inscreve no cerne da atividade científica. Sobretudo, intenção de assumir essa tensão, de modo ao mesmo tempo vivido e refletido, não na perspectiva fala­ciosa de propor reconciliações indevidas, mas na esperança de abrir um caminho capaz_ de conduzir a uma reflexão mais aprofundada e mais bem embasada. Aquilo que se deixa entre· ver, através da evocação dos problemas analisados, é um momento de grande simplificação, em que não haverá mais nem enigma das ciências, nem questão de ética, mas o suspense de uma palavra unificada, dessa vez capaz de engendrar a verdade.

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I

OBJETIVIDADE CIENTÍfiCA E PRESSUPOSTOS AXIOLOGICOS

Toda realidade social- é constituída ao mesmo tempo de fatos materiais, de fatos intelectuais e afetivos que estruturam, pot sua vez, a consciência do pesquisador e que implicam, naturalmente, valorizações. Donde parece-nos impossível um estudo rigorosa, mente objetivo da..Sociedade.

L. GOLDMANN

Tudo se passa como se o empirismo ·radt­cal propusesse, como ideal, ao sociólogo, anular-se enquanto tal. A sociologia seria me­nos vulnerável às tentações do empirismo caso lhe fosse lembrado, com Poincaré, que "os fatos não falam". Talvez a desgraça das ciên­cias humanas esteja no fato de lidarem com um objeto que fala.

P. BOURDIEU

1 . Problemas epistemol6gicos

Falar da objetividade científica, é colocar ·um problema epistemoió"gico. Problema epistemológico, e não simplesmente metodológico. Porque aquilo que comumente chamamos de · ''metoãologia", não passa de um domínio da· interrogação epis­temológica. Assim, não podemos fazer um estudo crítico dos princípios das diversas ciências, de seu valor e de seu alcance, sem nos interrogarmos ao mesmo tempo sobre a nálureza e ·o valor dos procedimentos pelos quais elas se constroem e che­gam a um conhecimento objetivo. Ademais, a reflexão episte­mológica surge sempre co~Q. uma imposição das ~<crises" de$ta oll-daquela disciplina científica. E essas crises são ·o resultado de uma lacuna dos métodos anteriores, que deverão ser ultra­passados pela .invenção de novos métodos. Por outro lado, o método não pode ser estudado independentemente das pesqui­sas em que ele é empregado, a não ser que se faça um estudo abstrato, morto e incapaz de fecundar o espírito. Aliás, como já dizia Comte, em seu Cours de philosophie positilAe, tudo o que podemos dizer de real sobre o método, quando considerado abstratamente, reduz-se a generalidades vagas e sem qualquer i11fluência sobre o regime intelectual. Os procedimentos {ógi.cos ou metodológicos não podem ser satisfatoriamente explicados independentemente de suas aplicaçõe~. Por sua vez, o emprego dos métodos pressupõe a sua posse.

Por conseguinte, falar da objetividade científica, é falar de um problema epistemológico. Trata-se de saber, no fundo,

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qual a significação do termo ciência. A epistemologia atual reco­nhece que ~'a" ciência não existe mais. O que existe .sãos "as" ciências. Talvez fosse mais adequado falar de práticas cienti­ficas. Porque falar de "a" ciência, é adotar, no ponto de par .. tida, uma tese idealista e abstrata. E quando falamos de "sig­nificação" da ciência, queremos fa!ar da ciência enquanto prá­tfca humana. Nesse septido, a objetividade da ciência significa, antes de tudo, a int~nção subjetiva do cientista, que se carac­teriza pela busca do conhecimento. Em segundo lugar, significa as intenções implícitas ou explícitas daqueles que elaboram a "política" científica ou que, direta ou indiretamente, orientam a pesquisa, procurando estabelecer os critérios de sua valida· ção. Assim compreendida, e em nosso contexto, a significação da objetividade científica, ou simplesmente da ciência, refere-se ao creicimenJo racionalizado da produção. Evidentemente, a função desse crescimento não é de ordem científica nem, por-tanto, objetiya. .

O que a reflexão epistemológica atual mostra é cjue aquilo que comumente chamamos de "metodologia das ciências'', não passa de uma disciplina meram~nte instrumental. Em outros ter­mos, a metodoJogia não tem um fim em· si mesma. Ela é apenas um meio para atingir determinado fim. Os métodos são instru~ mentos que possibilitam ao cientista alçançar determinado ob­jetivo cognitivo. Hoje em di~, há uma tendência metodologi­zante que, de tanto discutir sobre os métodos, não consegue fazer uma análise dos conteúdos nem tampouco explicar os fenômenos. Donde o caráter abstrato de certos metodólogos que se deixam levar e envolver por uma teia de tecnicismos formais, apresentando-se como formalistas sem imaginação criadora. Ora. o estudo da realidade humana (educacional, psicológica, social~ etc.) deveria primar sobre as questões puramente metodoló­gicas. Aliás, é pelos problemas metodológicos que poderemos determinar a mediocridade ou a seriedade dos pesquisadores.

Nesse domínio, é bastante comum a confusão entre "meto­dologia" e "técnicas" de pesquisa. Exemplifiquemos com o caso da educação. Ningu6m coloca em d6vida que o conceito de pesquw «lucacional tenha a pretensão de ser um trabalho cien­tífico sobre a realidade educacional. Todavia, para atingirmos essa realidade, há dois caminhos possíveis: a) o primeiro con-

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siste na formulação de técnicas de coleta de dados: se uma pesquisa educacional nada nos "informa", certamente "defor­ma". Vale dizer: o estudo da realidade educacional supõe um contacto com ela, não podendo permanecer no domínio da pura especulação. Situam-se aqui ·os progressos realizados no campo da observação controlada, das escalas de medida, da estatístka, dos levantamentos, das análises de conteúdo, etc. b) O segundo caminho se refere à preocupação propriamente teó­rica em torno dos dados: a empiria, por si mesma, não asse­gura caráter científico à pesquisa; esta tem necessidade de um quadro teórico de contextuação. Evidentemente, essa perspectiva nega a filosofia empirista que acredita na evidência dos fatos, como se a realidade devesse impor-se ao sujeito. O vetor episte­mológico iria do real à razão, e nâo do racional ao real. Con­tudo, isso não quer dizer que a preocupação teórica tenha por finalidade desprezar a preoéupação empírica. Pelo contrário, a pesquisa.. científica deve integrar ambas as perspectivas, muito embora a perspectiva teórica tenha o primado -epistemológico de poder construir seus objetos científicos.

Nessas coP.dições, a distinção entre "metodologia" e "téc­nicas" de pesquisa não passa de uma divisão artificial . do trabalho em torno do problema 6nico: pesquisá educacional, por exemplo. Essa divisão do trabalho especifica um nível em­pírico ··e um nível teórico. Ela dá a entender que, para um estudo da realidade educacional, a coleta estatística dos dados só adquire significaçãu- real quando for construída ou elabo­rada por um enquadramento teórico. :.N.ã.o. J~m !Il~ito sentido epistemológico a distinção entre "metodologia empírica,. ( cha4

mada d~ "técnicas") e "metodologia teórica" (chamada de método) . Trata-se de uma distinção cuja desvantagem reside no dualismo teoria-empiria, que ela apresenta ou sugere. Muitos consideram a preocupação teórica como uma fuga da reali· dade. Mas a diferenciação teoria-empiria não passa de resquí­cio saudosista de um dualismo já ultrapassado.

Se a métodologia é válida e necessária para a formação dos pesquisadores em educação, parece-nos que o é muito mais enquanto uma discipUna instrumental, disciplina de indagação e de questionamento sobre a maneira como o pesquisador deve conhecer seu objeto. Por isso, não compreendemos metodo~gia

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alguma que não se faça acompanhar de um fundo epistemoló­gico. ~ nesse sentido que gostaria de propor algumas conside­rações epistemológicas sobre o conteúdo da metodologia educa­cional, mas que poderão estender-se às demais disciplinas hu­manas.

A. Em primeiro lugar, a atitude epistemológica, eminen­temente crítica, ·obriga todos aqueles que elaboram métodos educacionais a se questionarem sobre a cientificidade ou. obje­tividade de sua própria disciplina. Ademais, leva-os a se inter­rogarem criticamente sobre o valor científico de seus produtos intelectuais. Porque é a reflexão epistemológica que fornecerá as condições reais e as condições de possibilidade, permitin­do limitar ou demarcar aquilo que, na ordem âo saber, é ati­Vidade científica propriamente dita. Esta, em princípio, deve ser diversa de t~a atividade do- senso comum, da percepção ime,. diata, das acividades ideológicas ou especulativas: .a atividade científica deve estar isenta e · liberta de todas as aderências subjetivas e . "opinativas". Ess~ problema da demarcação colo­ca problemas estritamente epistemol9gicos: relação entre sujeito e objeto de conhecimento, objetividade, subjetividade, objeto construído, conceito, teoria, categorias de análise, etc. Sem o suporte de uma epistemologia, o metodólogo cai fatalmente num tipo de- atividade mecânica e pouco inteligente, porque acrílica. Nesse domínio, falar de epistemologia, é falar da neces- -sidade de fazer uma sociologia do conhecimento e, até mesmo, uma sociologia da ciência. Em nossos dias, há todo um esforço de relativizar a ciência. A demarcação científica variou bas­tante através dos tempos. Atualmente, tomou-se praticamente impossível sustentar a existência de uma "verdade" científica. Um pouco de epistemologia histórica revela que aquilo que já foi considerado <iumamente científico, foi posteriormente ridicula­rizado.

Por outro lado, se tomamos nosso exemplo da educação, _ não podemos negar a existência de várias "escolas", com teo­

rias contrárias ou antagônicas. Isso vem mostrar claramente que a atividade científica não pode ser considerada como um templo sagrado. Ela é uma atividade humana e social como qual·

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quer outra. Está impregnada de ideologias, de juízos de valor, de argumentos de autoridade, de dogmatismos ingênuos, che­oando mesmo a ser desenvolvida em instituições fechadas, ver­jareiras "seitas" científicas, com suas linguagens próprias, para uão dizer "dialetos". A educação, enquanto disciplina com pre­tensões científicas, ilustra bem o que acabamos de dizer. Na verdade, ela é uma disciplina que até hoje procura definir-se, autodeterminar-se, estabelecer seu estatuto de cientificidade, quer no interior das demais "ciências humanas", quer por oposição às influências da filosofia. Na prática, porém, ela não passa de um amontoado de "escolas", com um objeto de investigação bastante diversificado em múltiplas práticas educativas. Há o educaáor que pratica pesquisa educacional unicamente no nível metodológico, estatístico e de planejamento; há o educador que é herdeiro da filosofia educacional e humanista, produtor de altas teorias, mas sem caráter de operacionalidade; há os edu­cadores críticos que se julgam os avaliadores dos -sistemas edu­cacionais, não tendo dificuldades em propor soluções a curto ou a longo prazo para seus males. No entanto, ao nos deparar­mos com as " teorias" dos vários "pedagogos", somos quase que forçados a reconhecer que os profissionais da · educação se relevam profundamente incapazes de delimitar ou demarcar aquilo que constitui propriamente a realidade. educativa ou aquilo em que consiste a educação como disciplina científica que pretende ser.

Não podemos ser ingênuos a ponto · de ignorarmos que todo sistema educacional carrega as marcas da sociedade que o ins­taura. Tampouco podemos desconhecer que ele participa, direta ou indiretamente, do problema de dominação próprio a todo sistema social. ,As "ciências" da educação, à medida que ten­tam eliminar as ideologias, para se tornarem científicas, são prodtaoras de ideologias· e de sistemas valorativos. E a razão é a seguinte: nenhuma ciência humana pode ter a pretensão de ser uma determinação epistemológica pré-dada, supra-histórica e invariá~el. Além dos conteúdos buscados na teoria do conheci­mento, a demarcação real de qualquer ciência humana · só po­derá ser levada a efeito no interior da sociedade em que ela é praticada. Em outros termos, aquilo que é científico nesta ou naquela disciplina, não é um parâmetro feito uma vez por

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todas, atemporal, mas uma realidade essencialmente histórica, levando em seu bojo as marcas contínuas do conflito e das mutações sócio-culturais.

~ a essa realidade que chamamos de processualidade epis­tel7UJlógica das ciências. Nesse sentido, toda ciência é proces-

- sual. Devemos passar da idéia de um conhecimentcrestado à idéia de um conhecimento-processo. E a epistemologia outra coisa não é senão essa atitude reflexiva e critica que permite submeter a prática científica a um exame ·que, diferentemente das teorias clássicas do conhecimento, se aplica não mais à ciência verdadeira - de que deveríamos estabelecer as condi­ções de possibilidade e de coerência lógica, bem como seus títulos de legitimidade ou de validação - , mas à ciência em vias de se fazer, em suas condições reais e concretas de reali­zação, dentro de determinado contexto sócio-cultural. Assim. uma das tarefas essenciais da epistemologia é a de revelar a f!!QÇJ?S~uolit)ade dm ciências. Em outros termos, a função 'âa epistemologia consiste, entre outras atribuições, em mostrar que à atividade científica é um produto humano e, por isso, uma realidade só~io-liístórica. Por definição, a atividade .científica encontra-se em estado de constante inacabamento. Ela está sempre fazendo-se e construindo-se. Jamais atinge um estado definitivo. Uma produção científica acabada é um absurdo epis­temológico. Deixaria de ser científica para converter-se em dÕg­ma imutável. E como todo dogma, seria objeto de crença, e não de saber racional..A idéia bacheiardiana de .. corte eoistemõ­lógico" revela que não podemos conceber uma fase ·final na produção científica. Ademais, mostra que toda teoria científica é ap~nas uma hipótese provisória à espera de outra mais fe­cunda: O critério de verdade de uma teoria, longe de estar em~ sua certeza, está em sua superação num futuro mais ou menos próximo ou distante. ·

A processualidade da ciência poderá ser mais bem enten­dida se levarmos em consideração certos elementos epistemoló­gicos, expostos a seguir.

a) Se a ci~ncia é histórica, a ''verdade" cientifica não pode deixar de ser um conceito também histórico. A realiza-

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ção de uma "verdade" só poderá ser uma aproximação maior ou menor dela. ·

. b) Sendo um produto humano, a ciência participa das vicissitudes da ação social. Não há ciência absolutamente isenta de valorações e de ideologias. Não existe a "imaculada concep-ção" da ciência. _

c) A definição daquilo que é científico não decorre de parâmetros ou critérios prévios e invariantes que servem de medida absoluta para qualquer atividade científica. Ela depende dos controles intersubjetivos, freqüentemente apresentados como o resultado de uma "descentração" relativamente ao ponto de vista próprio, em direção ao "sujeito epistêmico".

·-d) O que mais entrava o progresso científico são as posições dogmáticas. O erro, tão vituperado em lógica for­mal, significa certa -carência dentro de uma teoria. Contudo, Bachelard mostrou que o erro é um elemento essencial da

- teoria, tendo sentido positivo. Teoria sem erro é teoria dogmá­tica. O "primado teórico do erro" significa: a objetividade será mais clara e distinta na medida em que aparece sobre um fundo de erros; o valor de uma idéia objetiva depende da superação das ilusões do conhecimento imediato; a objetivação procede de uma eliminação dos erros subjetivos e, psicologicamente. vale como consciência dessa eliminação .

. e) Na realidade, tudo é objeto de discussão. O critério mais seguro de objetividade é a disposiçãõ crítica do cientista, pois não pode haver um critério interno que seja exaustivo e perenemente válido. A formulação de um critério absoluto de verdade é um absurdo. Donde a impossibilidade de conceber a existência de um conceito universal, a menos que seja imposto autoritariamente. A atividade científica baseia-se no campo fér­til do pluralismo · das çoncepções, e não nu~a conêepção-mo-delo, parâmetro universal de objetividade. ·

B. Um dos conteúdos mais importantes da epistemolo­gia consiste no questionamento da construção do objeto cientí­fico. Se admitimos que "o ponto de vista cria o objeto" (Saus­sure), devemos reconhecer que a epistemologia demonstra o caráter meramente instrumental da metodologia para a pes­quisa científica. E essa afirmação epistemológica, segundo a

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qual o objéto da ciência é "construído", significa que, no pro­cesso do conhecimento, vamos do racional ao real, e não, como pensam os empiristas, do real ao racional. Todavia, essa posi­ção não significa uma recaída no idealismo clássico que con­feria um primado à idéia sobre o concreto. O objeto real existe independentemente de nosso conhecimei!tO, quer pensemos nele quer não. Contudo, a ciência não se interessa pelo objeto real em seu estado bruto. O objeto real só se torna objeto cientí­fic.o quando for retirado de seu estado "natural", vale dizer, quando for "construído", elaborado, pensado por uma teoria, ou seja, quando .for enquadrado por um ponto de vista teórico. Em outras palavras, o simples "acontecer" só atinge o nível do conhecimento científico quando for reconstruído teoricamen­te. E competi!_ à epistemologia revelar como a ciência constrói seus objetos. ~ de sua alçada mostrar por que os cientistas dão preferênci~ a este ou àquele tema em detrimento de outros, bem coriiofmostrar quais as categorias de análise_ (instrumental conceitual de uma teoria) que são empregadas.

Ora, se definimos uma· teoria como um sistema de con­ceitos desenvolvidos sob fotma coerente e consistente, deve­mas reconhecer que tais conceitos aparecem estratificados· na forma idealizada de uma pirâmide: alguns são mais essenciais do que outros; entre os essenciais, alguns são mais fundamen­tais. Todo cientista gira em torno de certas _ç_ategorias de aná-

- lise. E a epistemologia-· leva-nos a refletir .sobre tais categorias. Leva-nos ainda a questionar os pontos- de partida infundados. os axiomas gratuitos. as seletividades arbritárias e as prefe­rênc~as E~ssoais decorrent~s .de opções valorativas. Ademais, leva-nos a identificar as aderências ideológicas teóricas, os va­zios analíticos, e a situar o cientistas dentro do processo de pro­dução científica geral. Enfim, a epistemologia lança o desafio ·de comprovação concreta daquilo que é tido como científico: se pensaqtos fazer ciência, devemos saber fundamentar essa crença; se acreditamos que outras pessoas não fazem ciência, precisamos comprovar tal negação. E é por isso que a episte­mologia pode ser considerada como uma verdadeira "catarse intelectual": assim como a descoberta do fundo inconsciente de nossos problemas psíquicos conduz a um alívio psicológico, da mesm_!l forma uma depuração de nossa atividade científica;- até

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c;uas raízes inconscientes, poderá reverter-se numa maior fh­~eza teórica, numa definição mais clara de nossos enfoques, numa clarificação decisiva de nossos instrumentos conceituais c .·numa atitude mais modesta e aberta face à complexidade Jesconcertante · do esforço científico.

2 . Neutralidalle científica e juízos de valor

O problema epistemológico da objetividade científica co-­loca, quer queira quer não, a questão da neutralidade dos cien­tistas relativamente a todo e qualquer tipo de valoração e de engajamentos pessoais. Talvez não haja muito sentido epistemo­lógico em querermos deCidir, de modo claro e definitivo, algo sobre · esse problema extremamente co~pplexo e confuso. Não obstante, trata-se de um problema epistemelógico bastante rele­vante, sobretudo porque a objetividade sempre foi o ideal epis­temológico de toda disciplina c~m pretensões a passar do estádio pré-científico ao estádio propriamente científico, isto é, à aut(l­determinaçlio epistemol6gica no campo do saber. Já-se escreveu muito sobre essa questão. Não vamos aqui fazer uma síntese de tudo o que já se disse a respeito. Tampouco é nossa intenção dar uma contribuição original. Queremos apenas focalizar al­·guns elementos relevantes,-passíveis de elucidar melhor a pro-blemática da objetividade científica ~ de seus pressupostos axio­Jógicos ou valorativos. No processo de objetivaçao, a presença dos juízos de valor não é uma simples anomalia epistemológica, mas um dos elementos constitutivos do acesso ao saber obje­tivo. Este continua sendo o ideal das ciências humanas. Epist~­mologicamente falando, toda ciência constr6i seu objeto, ela­bora seus dados e seus fatos. O fato puro não existe. Todo fato 6 construído. E a objetividade sempre se perde em pres-supostos que estão longe de ser objetivos. ·

O problema da objetividade nas ciências humanas, tal como Max Weber o colocou, situou-se no clima em que se debatia a metodologia -das ciências humanas no ,fim do século XIX. Com efeito, em 1883, com a publicação da Introdução · às Ci~nclas do Espfrito de Dilthey, a questão metodológica que se colocava era bastante complexa. Tratava-se de saber se havia uma dlfe-

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. rença entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Se eram distintas, qual era a diferença entre essas duas categorias de ciências? Trabalhavam sobre o mesmo objeto ou sobre um objeto diferente? De um lado, havia a realidade física, deixando­se determinar quo.ntitativamente e submetendo-se a leis escritas; do outro, havia a realidade psíquica, de caráter qualitativo e singular. Teria · sentido esse dualismo, ou será que o objeto seria o mesmo em ambos os setores de conhecimento, emb.ora considerado sob pontos de vista- distintos, de sorte que a distinção entre os dois tipos de ciência seria apenas metodoló­gica?

Caso admitamos uma distinção entre os dois campos do saber, qual é o método próprio das ciências humanas. tendo em vista que. para a maioria dos teóricos dessa época, o mé­todo das ciências naturais escapava à discussão, seus procedi­mentos estando como que definitivamente estabelecidos? Por conseguinte, uàtava-se, em ge~al, de descobrir o mesnio rigor · metodológico para as ciências humanas. Uns acreditavam poder encontrar na psicologia a disciplina capaz de desempenhar o mesmo papel que a mecânica &sempenhava nas ciências na­turais. Outros insisti am na impossibilidade de eliminar a ética e os juízos de valor. Outros, ainda, procuravam um meio de investigação original, próprio às ciências humanas, fuHdado na distinçªo entre explicar e compreender: as ciências naturais e;;plicariam .seus fenômenos, as ciências humanas compreende­rÜJm os seus. Por sua vez, a noção de compreensão dava mar­gem a controvérsias: seria ela de natureza puramente intuitiva ou, pelo contrário, exigiria, para ser válida, ser controlada pe­los processos da explicação causal? Essas questões -suscit aram outras: quais são as disciplinas que pertencem às ciências hu­mana? Será que diversos aspectos dessas disciplinas não se deixariam apreender ~los procedimentos naturalistas, e outros por procedjmentos interpretativos?

Assim, o problema epistemológico central consistia em determinar os limites e o alctmce dos conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas. Esse problema revelava uma crise nas ciências humanas, dando inclusive lugar a uma intemperança crítica e dogmática que afastou os cientistas de seu verdadeiro objetivo epistemológico. Havia uma verdadeira epidemia_ meto-

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dológica. Em quase todos os seus estudos, os cientistas sen­tiam a necessidade de acrescentar observações de ordem meto­dológica. Eles queriam, cada um para sua disciplina, afirmar o caráter de cientificidade de seu conhecimento.

Para Weber, não se tratava, com o fim de chegar à objeti­l"idade nas ciências humanas. <ie impedir que os cientistas pro­pusessem soluções ou fizessem avaliações. J:: até mesmo fre­qüente -que aqueles que pretendem abster-se de qualquer juízQ de valor, são os primeiros a ser infiéis à sua resolução, quer porque se tornam vítimas de instintos, de simpatias e antipa­tias incontroladas, quer porque consideram como verdade cientí­fica a doutrina que triunfa no momento ou que tende a impor­se. E tudo ·1sso, como se a objetividade se deixasse decidir pelo domínio do mais forte sobre o mais fraco! No campo, per ex-emplo, da economia, a grande dificuldade consiste em discerni! quando uma proposiçác se origina da ciência econô­mica ou simplesmente da política econômica. Com efeito, con­siderada como ciência, a economia visa a explicar e a analisar a realidade econômica e, como tal, é "internacional", isto é, universal como toda ciência .. A~sim comprendida, ela está a ser~'-.... viço da verdade, seja porque estuda as condições objetivas da situação econômica de um país ou de uma época determinada, seja porque aprofunda o fenômeno econômico em si mesmo ou seu desenvolvimento . ..bistórico. A esse título, ·ela não pode t<Mnar-se profécia nem anunciar a manifestação de qualquer fim último. Dizer, por··exemplo, que a eco~omia deve favorecer a paz entre os homens, já é fazer um juízo de valor que nada tem a v~r com um enunciado científico. A política econômica. ao contrário, não pode pretender à universalidade. Ela deve ater-se ao particular, pois permanece ligada aos recursos dispo­níveis de um país determinado, dependendo das instituições e do regime de cada nação.

E nesse contexto que se coloca o problema do valor da ciência. Para Weber, nenhum valor, nem mesmo o da ciência, pode ser compreendido empiricamente. O objetivo da ciência é a procura indefinida e o progresso do conhecimento por si mesmo. Seus resultados só são verdadeiros em virtude das nor­mas lógicas de nosso pensamento. Evidentemente, a ciência pode ser colocada a serviço de interesses econômicos, políticos,

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médicos, técnicos e outros. Todavia, o valor de cada um desses fins é imposto de fora, não tendo justificação na própria ciên­cia. Ademais, do ponto de vista empírico, o valor da ciência "pura", entendida como pesquisa, permanece problemática e contestável. Ele pode ser combatido por motivos políticos ou religiosos: Contudo, o indivíduo que dá primazia ao llalor da vida sobre o valor do conhecimento, pode tornar·se adversário do conhecimento na medida em que o julga como uma ameaça à existência do homem. Inversamente, o negador da vida tam­bém pode opor-se à ciência, quer vendo nela uma manifestação sempre mais rica da vida, quer achando que ela pode aniqüi­Iar a vida. Nenhuma dessas atitudes é necessariamente con­traditória: a· glorificação e a depreciação da ciência supõem a adesão a valores. Portanto, nessas condições, a significação da ciência, para a cultura, bem como a significação da cultura, considérada -como nm crescimento de valor, não se deixaQ:t fundar cientificamente. Pelo contrário, são sempre pontos dé vista axiológicos e, por conse~inte, discutíveis. Assim, nossos juízos sobre a ciência e a cultura são juízos de seres civilizados e -que, como tais. estão familiarizados com uma escala de valores que outros homens podem rejeitar, sem por isso se tor­narem degradados ou inferiores. Todas essas posições são filosóficas e exprimem a intromissão do caráter inteligível na realidade empírica através do disface de · normas .éticas. _ Depois dessas considerações de ordem histórica; recolo­quemos o problema epistemológico da neutralidade científica: qual a relação entre as ciências humanas e os juízos de valor? No clima da sociologia alemã, onde o problema surgiu de modo mais explícito no início de nossos século, duas posições se defrontam: de um lado, situam-se os defensores da neutra­lidade científica; do outro, os partidários de um engajamento por parte dos cientistas. Os .. "11eutros" acham que os "engaja­dos" a~abam por envolver-se no sistema social vigente e por jysti_fic_ª-lo. Qs "engajados" acusam os "neutros'' de absen­teísino: quem ~a, consente; e o silêncio contra o regime é uma forma de justificá-lo. Em ambos os casos, há uma justificação do nacional-socialismo: uns prostituem as ciên­cias sociais por seu engajamento; outros as prostituem por sua neutralidade, que nada mais é do que uma forma de

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oportunismo. f: nesse contexto que se situa o pensamento de Max Weber. Determinaremos, em primeiro lugar, as rea­ções entre a noção de "independência face aos valores" t Wertfreiheit) e a tentativa weberiana de dar um fundamento ~bjetivo às ciências sociais. Em seguida, mostraremos se essa noção ainda pode ser aplicada atualmente. Situaremos o pro­blema num plano meramente epistemológico, deixando de Lado toda referência explícita à obra histórica e sociológica de Weber. -

A ) A independência face aos valores

Segundo Weber, a independência face aos valores está vinculada ao seguinte fato: a ciência, em geral, _e as ciências sociais, em particular,. devem limitar-se a um papel puramente explicativo. Nesse sentido, não devem determinar as -modalidades do comportamento humano, nem tampouco devem definir nor­mas políticas, econômicas, morais ou outras. A exclusão dos juízos de valor constitui a condição externa da objetividade das ciências sociais. A condição interna está na possibilidade da explicação causal. Essas duas condições constituem as re­gras gerais do método científico. Segundo Weber, as ciências sociais, para serem objetivas, devem excluir os juízos de valor. Por outro lado, a C<?mprovação dos fatos j~ permite a de­dução de normas de comportamento, nem tampouco aprecia­ções referentes a essas normas. Porque não se pode deduzir um juízo de valor de um juizo fático. A segunda condição da objetividade consiste na possibilidade de explicação- causal: as ciências sociais devem estabelecer as relações existentes entre os fatos e determinar as condições que as tomam p<?ssíveis.

Assim, segundo Weber, há uma distinção fundamental en­tre o conhecimento .. daq~ilo que _ê" e o conhecimento "daquilo que deve ser'". Uma colocação fundada núm · juízo de valor deve ser rejeitada, pois a tarefa das ciências experimentais não consiste em aferir normas e ideais obrigatórios para que deles decorram receitas para a prática .. Contudo, o fato de as ciênclas sociais excluírem os valores não -significa que não se relacio­nem com eles. Pelo -contrário, não somente podem tomar os

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valores como· objeto de suas investigações, mas também uma de suas tarefas principais consiste em determinar as condições de sua realização. Elas podem atribuir um caráter normativo aos valores, isto é, determinar se um valor deve ou não ser considerado como regra de conduta ou como base de aprecia­ção. Mas elas podem e devem determinar os meios que permi­tem realizar os valores, bem como as conseqüências que deri­vam dessa realização e do emprego dos meios. Assim, o estudo das relações entre o meio e o fim, e o estudo entre a realização e as conseqüências convertem-se no fundamento de um exame crítico e técnico dos valores.

Essa maneira de encarar o problema está manifestamente clara em "A Objetividade do Conhecimento nas Ciências So­ciais e nas Ciências Políticas" (Esrais sur la théorie de la scien­ce, Paris, 1965). Vejamos -as posições essenciais de Weber.

1 . "Toda análise reflexiva que diz respeito aos elementos últimos da átividade humana racional. está, antes de tudo, vinculada às categorias do 'fim' e dos 'meios' ( ... ) Aquilo que, antes de tudo, é imediatamente acessível ao exame científico, é a questão da conformidade dos meios quando é dado ·o fim . Uma vez que estamos em condições de estabelecer de modo válido quais são os meios aptos ou não a conduzir ao objetivo que _ nQ~ representamos, também podemos, por esse caminho, aquilatar as chances de consegüTr uin fim determinado, com o auxílio de determinados meios colocados à nossa disposição. Portanto, dentro desse contexto, podemos criticar indiretamente a intenção como praticamente razoável ou não razoável, se­gundo as condições históricas". Estamos, aqui, diante de um dos problemas centrais: a separação dualista ·entre meio e fim. A demarcação do fim entra no domínio da decisão polí­tica, especificamente valorativa; por sua vez, a questão dos meios, e somente elas, torna-se acessível ao domínio científico.

2. Também podem ser determinadas, além da realização eventual do fim visado, "as conseqüêncim que o emprego dos meios indispensáveis poderia acarretar", tendo em vista o con­texto global dos acontecimentos. Por conseguinte. a descrição das conseqüências !ie coloca fora do engajamento relativamente

.. ao fim em questão, uma vez que este não se toma objeto de

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escolha decisória, mas é tomado como um dado pressuposto. Ademais, é preciso que seja levado em conta o conhecimento da significação daquilo que se quer: os fi1ts são conhecidos e escolhidos de acordo com o contexto e a significação que se pretende. Em outros termos, os fins são escolhidos quando se pode indicar e desenvolv~r, de modo logicamente correto. quais são as "idéias" que estão, ou poderiam estar, subjacentes ao fim concreto. Porque "uma das tarefas mais importantes de toda ciência da vida cultural humana consiste em abrir a com­preensão intelectual às "idéias" pelas quais os homens lutaram ou continuam lutando". E Weber mostra que isso não ultra­passa os limites da ciência. Esta deve buscar "a ordem pen­sante da realidade empírica" e os meios que servem para a explicitação desses valores mentais.

3 . Weber crê na possibilidade de estudar os próprios íuízos de valor como objeto científico. O sujeito pode estudar cientificamente os valores sem se comprometer com eles, quer dizer, permanecendo isento de suas ·contaniinações. Por exem­plo, pode estudar a legitimidade ideológica de certo regime po­lítico, do ponto de vista de um valor vigente, sem no entanto sentir·se obrigado a tomar posição valorativa pró ou contra tal regime. E o que faz a sociologia do conhecimento, quando estuda o fundo social que dá origem e contexto a certo valor ou a certa· idéia valorativa. Por exemplo, a problemática social subjacente aQ. valor segundo o qual a mulher deve trabalh?r na sociedade industrial, é uma questão que depende do querer e da consciência pessoais, e não do saber científico. De um modo geral, "uma ciência empírica não pode ensinar a ninguém aquilo que ele deve fazer, mas somente aquilo que ele pode e, em cer­tas condições, aquilo que ele quer fazer".

CQmo podemos notar, a distinçlo we~tiana entre meio e fim · é bastante nuançada. Ele reconhece que nossas cosmovi­sões pessoais costumam atuar ininterruptamente no domínio das ciências. A argumentação científica pode realmente ser distorcida por f".Ssas cosmovisões. Elas contribuem para avaliar diferentemente "o peso dos argumentos científicos, inclusive no esfera da descoberta das relações causais simples, segundo o resultado aumente ou diminua ·as possibilidades dos ideais pes·

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soais". Contado, é bastante clara a postçao de Weber em favor da isenção dos valores nas ciências: só é científica a disciplina que proscreve a interferência dos juízos de valor. Todavia, a vida cultural sempre coloca o problema do sentido 4ue ela pode ter. Por isso, o juízo de valor sempre emerge ua argumentação científica. Mas Weber procura a todo custo, como um de.ver sagrado,- evitar que o juízo de valor seja tomado como s~ fosse um argumento científico. Chega mesmo a falar de um dever cientifico de procurar e atingir a verdade dcs f a-­tos. Essa verdade deve ser a mesma para todo mundo, indepen­dentemente do tempo e do espaço. Weber não esconde que ele mesmo é animado por dois juízos de valor que se convertem em dois deve!es para todo cientista:

Primeiro dewr: o cientista social deve, "a cada instante, explicitar escrupulosamente à sua própria consciência e à <!e se.us leitores, quais são as medidas de valor que ser-: -vem pata medir a realidade, e das quais o juízo de valor é deduzido, ao invés de cultivar, como ocorre demasia­do freqüentemente, as iluSões em torno dos conflitos de ideais por uma combinação imprecisa de valores de na­tureza bastante diversa, tentando "contentar todo mun­do". Segundo devu: o cientista social deYe explicitar a si mes­mo e ao leitor aquilo sobre o que fala o pesqUisador; deve

- - tornar claro onde e quando cessa a pesquisa do cientista e onde e quando o homem de vootaae se põe a falar; deve "indicar em que momento os argumentos se dirigem à razão e quando se dirigem aos sentimentos. A confu­sã-o permanente entre discussão científica dos fatos e ar­razoados valorativos é uma das particu1aridades mais freqüentes, mas também mais prejudiciais aos trabalhos de nossa disciplina. E é unicamente contra essa confusão que se dirigem nossas observações anteriores, e não con­tra o engajamento em favor de um ideal pessoal. Não há afinidade interna alguma entre ausência de doutrf.na e objetividade cientt!ica".

Essa ~ltima afirmação tornou-se famosa: a neutralidade científica é vista como um valor, embora não seja colocada

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neutramente. Weber fala constantemente de "dever científico" na busca da objetividade, apesar de reconhecer a impossibili­dade de uma total isenção do sujeito relativamente ao objeto. Nem por isso, ele deixa de postular uma atitude neutra, para que não seja subvertido aquilo que chama de "a ordem pen­sante" das ciências empíricas. A neutralidade é um postulado metodológico que, como qualquer postulado, depende de uma tomada de posição valorativa.

E é justamente nesse ponto do "dever" que Weber é mais contestado, sobretudo por Marcuse, que vê nele uma espécie de Marx do capitalismo. Segundo Marcuse, Weber teria colo­cado a ciência à disposição da economia política e, conseqüen­lemente, inteiramente a serviço do sistema, uma vez que re­nunciou a discutir o próprio sistema, em cujo contexto apa­rece a questão de seus fins e de seus valores. Não podemos esquecer, no entant.Q,_ o momento histórico vivido por Weber: os marxistas queriam chegar à cátedra, e tentavam transfor­má-la em púlpito de pregação doutrinária. Weber considera­va essa pretensão uma derrocada de suas concepções científi· cas e a entrega- da ciência às mãos de "bandoleiros". Daí, sua reação violenta contra toda interferência; na ciência, dos sis­lernas valorativos e ideológicos. O que não quer dizer · uma tomada de ~sição anética, pois a atitude ética é até mais im­portante do que a ciência, simples constatação de fatos logi,. camente ordenados. Weber pretende apenas separar as duas instâncias: a ·· ciência, isenta dos valores, atingiria melhor os fatos, ao passo que o jÚízo de valor se colocaria fora das ques­tões científicas.

Para estudar as relações entre os valores e a ciência, Weber utiliza a distinção introduzida por Rickert entre "juízos de valor" e "referência a valores". Nessa última noção está contido um princípio de seleção que possibilita. nas ciências sociais, a delimitação do campo das investigações segundo os casos específicos. Assim definida, a "referência aos valores" se confunde com o "ponto de vista'' em que nos situamos para proceder à investigação. A função metodológica dos va­lores consiste no fato de serem critéri~ de seleção chamados a determinar a orientação e o domínio das investigações cien­tífi_cas: E n·a referência aos· valores que se situa a "significa-

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ção" dos processos que constituem o objeto das ciências so­ciais. Na origem dessas disciplinas estão sempre presentes pressupostas axialógicos, condicionados historicamente pelo contexto cultural em que surge a investigação científica. Tais pressupostos são "subjetivos, , pois constituem um ponto de partüia extracientífico, não derivando da investigação objetiva. No entanto, a influência das circunstâncias históricas e a pre­sença dos pressupostos axiológicos não impedem que as ciên­cias sociais -cumpram seu papel explicativo e, portanto, cientí­fico: as relações de fato podem ser determinadas objet.ivamen­te através da experiência e independentemente da adoção des­te ou daquele pressuposto axiológico.

Em toda investigação científica, são inevitáveis os pressu­postos axiológicos. Contudo, o importante é que seu emprego deve estar submetido a certas regras. Píetro Rossi enumera três regras que seriam válidas para o conjunto das ciências sociais: - ·

1 • os pressupostos axiológicos devem ser enunciados for­malmente, a fim de que fique bem claro que se trata de apreciações;

2. devem ser utilizados como hipóteses de trabalho e postos à prova no decorrer da ~nvestigação;

3 . devem converter-se em "modelos explicativos" que se­rão conservados ou afastados segundQ_a experiência (Presencia de -Max Weber, Talcot Parsons y otros, 1971 ).

Evidentemente, embora sejaDf todas indispensâvels, essas regras não têm o mesmo valor, nem tampouco a mesma fun­ção. A primeira é puramente formal; é insuficiente, pois o fa­to de se admitir um pressuposto axiológico não garante que seja bem fundado, embora impeça que seja confundido com os fatos. A segunda se refere ao método e estabelece o cará­ter hipotético dos pressupostos axíológicos: hipóteses que po­derão ser refutadas ou confirmadas pela investigação científi­ca. A terceira determina a relação entre os pressupostos axio­lógicos e o processo explicativo, reconh~ndo que a referên­cia à experiência se toma decisiva _para a adoção ou a rejeição

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de uma hipótese explicativa. Consideradas em conjunto, as tr~s regras conseguem dar nova forma à noção de "indepen­dência face aos valores" e estabelecem o "modo de emprego" Jos pressupostos axilógicos.

Em suma, qual a função dessa rejeição dos juízos de va­lor nas ciências sociais? Ralf Dahrendorf mostrou recentemen­te que existem pelo menos seis pontos de contacto do cientis­la social com os juízos de valor. Em síntese, são os que se -:cguern:

I . O primeiro ponto se refere à escolha do tema. Nessa escolha, entram em jogo juizos de valor re1ativos à importância do tema. Mas isso não tem nada a ver com os juizos implicados no referido tema. pois po­demos dar-lhe um tratamento "objêtivado", muito embora ele possa ser escolhido segundo preferências pessoais.

2. O segundo é a seletividade da abordagem: em nossa investigação, devemos conservar certos pontos de vis­ta. O contexto teórico escolhido para "!ratar" o te­ma já· contém elementos seletivos. Ao lançarmos uma hipótese, sempre lhe acrescentamos certos dados e procuramos a teoria que melhor possa confirmá-la. Ninguém lança ..uma hipótese na espe@nça de-rejei­tá-Ia. Aliás, é o= que também ocorre nas diScussões: escolhem~ no adversário os seus pontos fracos, pa­ra melhor refutá-los. Assim, ao analisar o capitalis­mo, Weber destacou demais a influência do calvinis­mo, dando pouquíssima importância às invenções téc­nicas. Até certo ponto, ajeitou os fatos à sua aborda­gem teórica. Saussure já dizia que "o ponto de vista cria o objeto."

3. O terceiro diz respeito à relação entre o objeto da so­ciologia e os valores, quer dizer, aos valores como objeto: todo comportamento humano está regulado por normas sociais, por- convenções, por regras de costume, de etiqueta ou de direito.

4. O quarto consiste no esforço que tende a apresentar os postulados práticos ou políticos corno hipóteses

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científicas. Trata-se do problema da desfiguração ideológica: tentativa de fazer passar por colocações científicas posições valorativas pessoais. A desfigu­ração ideológica aparece como a inoculação sub-rep­ticia de elementos espúrios na ciência. Exemplo: a partir do fato de estªr desaparecendo a família pa­triarcaJ, um cientista conservador pode concluir que a família está desaparecendo. A razão de tal juízo pseudocientífico é o pressuposto, aceito sem provas, · de que a família patriarcal é a única forma de famí­lia ou sua forma "natural". Também um cientista "li­beral" pode profetizar o fim da família, por ser in­capaz de elaborar uma tipologia das diferentes for­mas de família. Nos dois casos, trata-se de um dog­matismo injustificado.

5 . O quinto consiste em ·saber se o cientista é capaz de passar da teoria à prática. Trata-se da aplicação da ciê!icia à prática. Weber ensina que jamais se pode demonstrar que um modo de agir deriva necessaria­mente dos dados da investigação. O que se pode afir­mar é que, em certas condições, certas conseqüências são previstas; em outras condições, outras conseqüên­cias. Não se pode dizer definitivamente que tal so­lução prática é justa e esta outra é falsa.

6 . o último ponto se refere à funçáQ social do sociólo-­go. Trata-se de saber se é da sua alçada tomar deci­sões práticas. Seria justificável a distinção preconcei­tuosa entre o homem de ciência e o homem de ação? O que Weber não queria era a confusão. Mas acei­tava as tomadas de posição em favor dos valores como preparativos à ação. Como Durkheim, não jus­tificava o simples interesse teórico das ciências . Da­va-Jhe uma atenção especial a fim de melhor resol­ver os problemas práticos.

B) Dicotomias Fato/Valor e Meio/Fim

Do ponto de vista epistemológico, há uma dicotomia en­tre fato e valor, quer dizer, não ·há uma ponte de dedutibili-

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Jade entre ambos: de um fato não se segue um valor; tam-1,0uco de um valor se segue um fato. Do valor, por exemplo, ~c:gundo o qual a mulher deve trabalhar, não se deduz logica­fll\!nte que ela trabalhe de fato. E mesmo que seja um fato lJtiC ela tr~balha,, não se .P~e deduzir que deva trabal~ar. À primeira v1sta, ha uma dJVJsao estanque entre esses dms ele­mentos. Não obstante, na vida real, fato e valor não se disso­ciam.

Segundo a terminologia weberiana, fato diz respeito àqui­lo que é, enquanto valor se refere àquilo que deve ser. Con­tudo, essa distinção não leva a uma demarcação radical en­tre algo puramente factual e algo puramente valorativo. Para alguns autores, um fato é um .fato; para outros, ele é prenhe de valor. E_ valor é tudo o que diz respeito à opção pessoal, ; 1 preferência subjetiva e- aos elementos volitivos - da pessoa. Enquanto fenômeno, o fat~ permanece exterior à pessoa. En­quantõ acontecimento valorativo, está ligado a_ela por um in­teresse. Nesse sentido, o fato não é neutro, pois, de algum modo, envolve a pessoa. Todo conhecimento, enquanto pro­cesso de apreensão de um objeto por um sujeito, inclui o tra­balho do sujeito sobre o objeto: lo sujeito seleciona o que lhe interessa na realidade. 'E. por isso-· que todo ·fá to· é de algum modo valorado. ·se não· é valorado, é porque não é conhecido, isto é, não despertou interesse no sujeito. E,ste só vê na reali- ~ dadc os pontos- que .Jbe interessam.

Weber reconhece que todo sistema social de ação i~pn:.­ca múltiplas idéias valorativas. Também o sistema da ciência segue i~_§ias de valores : ! idéia de verdade ou de objetividade científica. Assim, o descompromisso de Weber não passa de um compromisso indireto. Sua rejeição de todo juízo de valor é apenas uma reação antimetodológica. Ao aceitar o valor "ver­dade'', adere a outros valores: os que correspondem aos mé­todos da ciência, da lógica, etc. De sorte que a dicotomia fa­tojvalor só-se dá no campo da lógica. Na reaHdade, · O Iato é resultado de uma valoração. Nesse sentido, o conceito de neu­tralidade é irieaJ: i 'um modo de conferir valor a uma atitu­de de preferência a outras.

O mesmo ocorre com a- disjunção meiojfim. O meio não se s_itua no domínio objetivo, mas é função de um fim prees.:

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tabelecido. Pode o fim ser abstraído e desconsiderado? Ouan~ do se escolhe os meios para se atingir o fim, a propriedade do fim repercute na escolha: a aptidão do meio é julgada con­forme o que se queira no fim. Este está presente na escolha dos meios. Assim, relativamente ao fim, a neutralidade não é uma isenção, mas um modo específico de tomar posição. A distinção entre meio e fim é artificial. A neutralidade é uma

. atitude ética. Não se discute uma atitude anética, mas o tipo de ética em questão. A ideologia que comanda o fim pas~a para · os meios. O exemplo clássico é o da tecnologia: enquan­to técnica, ela é neutra, podendo ser usada para qualquer fim, pois não prescreve nenhum. Mas como a tecnologia está sem­pre vinculada a certos interesses, e como a racionalidade dos meios é sempre a racionalidade do sistema, os instrumentos de execução não podem ser puros instrumentos. Factualmen~ te, um revólver é um instrumento de lançar projéteis. Herme­neuticamente, porém, pressupõe a t&nica da morte. Por sua vez, a bomba atômica é factualmente um instrumento neutro de explosão. Todavia, no contexto de seus pressupostos, e que lhe conferem sentido, é um val<?!::_

·Quase todas as éticas adotam o princípio segundo o qual os fins não justificam os meios. Se estes fossem neutros, nem se colocaria o problema de sua justificação. Na medida em que são escolhidos em função de sua maior ou menor aptidão para se atingir o . fim, é porque neles está presente o valor do fim. Evidentemente, enquanto tal, um meio pode ser neutro. Acontece, porém, que esse meio não existe. Só existe no con~ texto dos pressupostos que lhe conferem sentido. A razão pe­Ja qual se escolhe este e não aquele meio, pelo menos em nos~ sa sociedade atual, é a racionalidade da ação e do pensamen­to. A racionalidade provoca uma iluminação da consciência, que é o postulado básico de toda ação refletida e responsável. ~ por isso que Weber vê incompatibilidade entre a eleição da ciência e a falta de moralidade. A eleição da ciência é uma decisão moral que pode ser ditada por interesses particulares: deve ser tomada em função de um valor universal, a verda­de. Nesse sentido, Weber é cartesiano, pois só aceita as idéias fundadas na razão. O racionalismo é o melhor meio de se

atingir a liberdade, pois não tem compromissos com a afetivi­dade nem com os condicionamentos psicossociais.

No dizer de J. Haberrnas (La technique et la science comme "idéologie", 1968), Weber introduziu o conceito de ··racionalidade" para caracterizar "a forma capitalista da ati­,·idade econômica, a forma burguesa das trocas no nível do direito privado e a forma burocrática da dominação. A racio­nalização designa, antes d~. tudo, a extensão dos domínios da ~m:íedade que estão submetidos aos critérios da decisão racio­nal. . . A ''racionalização" crescente da sociedade está ligada :'1 institucionalização do progresso científico e técnico". Nesse ~cntido, o fim de uma empresa capitalista é a eficácia: rnaxi­mização do lucro, acumulação de capital, consumo, investi­mento, etc. A racionalidade dos meios é proporcional ao fim visado. Num tipo de empresa que vê na produtividade o valor b;ísico do sistema industrial, a tecnologia é um instrumento c;'{celente, porque se presta melhor a tal objetivo. Ela não é puro meio, pois pressupõe a ideologia do fim. Em si mesma, é neutra. Acontece, porém, que a tecnologia, em si mesma, não existe, é pura abstração. Nesse nível, a neutralidade não pode significar isenção de valor. Ela é uma ideologia. Enquan­to tal, é um pensamento a serviço de algum interesse, pensa­mento justificador: racionalização ou justificativa racional dos

_ interesses de um grupo. Para realizar-se, a ideologia assume um -tom moralizante e persuasivo, tentando distorcer os fatos . em seu favor e sugerindo um "dever ser".

Conclusões ·

1 . Do que dissemos sobre o problema da neutralidade, o que está em jogo é o conceito de objetividade científica. Ora, a "objetividade" não existe. O que existe é uma "objeti­vação", uma "objetividade aproximada" ou um esforço de co­nhecer a realidade naquilo que ela é e não naquilo que gosta­ríamos que ela fosse. Bachelard fala de "éonhecimento apro­ximado". Sem dúvida, o projeto do conhecimento científico é atingir a realidade naquilo que ela é. Mas esse projeto é ir­realizável. Só conhecemos o real como nós ~ vemos: o sujei-

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. to constrói o objeto de sua ciência. :A objetividade não passa de um ideal: nenhum sujeito o realiza. Donde o conceito de objetivação. Até mesmo a ideologia pretende atingir conheci4

mentos objetivos, pois não lhe interessam conhecimentos ideo4

lógicos, deturpando os fatos em favor de certos interesses. E -como todo conhecimento vem acompanhado de ideologias,

corre o risco de ser arbitrário. A ciência não demole os va­lores. Por outro lado, não há critérios universalmente válidos de objetividade conferindo neutralidade para todos. Somente os critérios de objetivação poderão assegurar certa forma de aproximação da realidade, evitando as deturpações ideológicas. Dahrendod propõe três critérios:

a) treinamento, com a ajuda da psicanálise e da socio­logia do conhecimento; para a produção objetivada dos conhecimentos; a psicanálise do saber. _()bjeti\-·o

-( n.O sentido bachelardiano) consiste no esforço de lu­ta · contra as ideolog_ias;

b) revelação sincera dos valores pelos quais se luta·· e que formam o. pano de 'fundo ou o ponto de partida da pesquisa;

c) a crítica mútua como parâmetro de cientificidade.

-2. A objetividade das Ciências e dos cientistas-é um va­lor de natureza ideológica que se acrescenta à atividade cientí-

-fica e que surge de. um duplo processo de objetividade: a) a objetivação do produto dessa atividade, cujo desenvolvimento é interrompido para se fixar num saber que reproduziria uma "parte" do real; b) a objetivação do agente que "possui" esse saber, em troca de sua "'neutralidade" e de sua submissão ao real. Assim, as ciências objetivas forneceriam "verdades" in· dependentes da história e daqueles que a fazem; os cientistas objetivos, por sua vez, se limitariam a descobrir essas verda· des, apagando-se diante delas, fazendo "abstração" de sua subjetividade e elevando-se acima dos preconceitos, das ideo· logias, das paixões, etc. Ora, essa noÇão de objetividade não tem suporte epistemol6gico algum, apresentando-se como uma racionalização das crenças ingênuas no prestígio da ciência: crença na unidade-dos conhecimentos, em seu caráter absoluto

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c a-histórico e na independência da realidade, que seria conhc­.:iJa de modo imparcial. Ora, a objetividade tira seu valor dos l'bjenos construídos e do poder dos modelos utilizados relati­,·arnente aos dados da experiência: não é a reprodução fiel da ··rca•idade". Ela não está isenta de erros, nem tampouco de c~co!has. Se podemos falar de verdades científicas, é no sen­tido de uma conveniência entre os modelos e as predições, de um lado, e os fatos pertinentes que se prediz, do outro. Essa conveniência deve ser entendida como urna não-contradição. PMtanto, a objetividade se define pelo respeito às regras do 1,bjeto construído, e não por uma vaga adequação do espírito ;1 ' 'realidade".

3. 1:. nesse sentido que gostaria de citar um trecho de Bachelard, onde conceitua a objetividade científica como um processo constante de objetivação:

Basta que falemos de um objeto, para nos conside­rarmos objetivos. Contudo, através de nossa escolha ini·· cial, é o objeto que nos designa, mais do que o designa­mos_._ E aquilo que imaginamos serem nossos pensamen­tos fundamentais acerca do mundo, não passa, muitas vezes, de confidências a respeito da juventude de nosso espírito. Acontece ficarmos extasiados diante de determi­nado objeto. Acumulamos hipóteses e divagações. Ela­boramos, assim, certos conceitos que têm o aspecto de um conhecimento. Todavia, a fonte inicial não é pura: a própria evidência de onde se partiu, não constitui uma verdade fundamental. De fato, a objetividade científica só é possível se, antes de tudo, fizermos abstração do objeto imediato, se recusarmos a sedução da primeira escolha e se contrariarmos os pensamentos nascidos da primeira observação. Toda objetividade, devidamente ve­rificada, desmente o primeiro contacto com o objeto. Ela deve, antes de tudo, criticar tudo: a sensação, o senso comum, até a prática mais vulgar, porque o verbo, que é feito para cantar e encantar, raras vezes corresponde ao pensamento. Ao invés de extasiar-se, o pensamento objetivo deve ironizar. Sem essa vigilância hostil, nunca atingiremos uma atitude verdadeiramente objetiva. Quan-

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. do se trata de observar os homens ( ... ) • é a simpatia que encontramos na base do processo. Contudo, em face desse mundo inerte. que só vive através de nossa vida, que não sofre nenhuma de nossas penas nem se exalta com nenhuma de nossas alegrias, devemos dominar to­das as expansões e refrear nos~a pessoa. Os eixos da poesia e da ciência são, antes de tudo. inversos. Tudo o .que pode esperar a filosofia é tomar a poesia e a ciên. cia complementares, uni-Ias como dois contrários perfei· tos. Portanto, precisamos opor ao espírito poético expan •. sivo, o espírito científico taciturno, para o qual a antipa­tia prévia representa uma salutar precaução (Psychana­lyse du f eu) .

4. Finalmente, nesse· domínio tão vasto e complexo, na­da temos a concluir. Quisemos apenas elucidar um pouco a questão. Àssistimos hoje a · uma verdadeira ixnpregnação me­todológica. nas ciências humanas, de técnicas e de procedi­mentos estatísticos que nos fazem lembrar as questões meto­dológicas da época de Webêr. Toda essa produção metodoló­gica faz apelo à neutralidade dos cientistas. Essa neutralida­de axielógica surge como um meio excelente, pois, não se dis­cutindo os fins da sociedade, termina-se por justificá-la. Essa isenção aparece hoje sob a forma de um~ nova ideologia, a ideologia sistêmica, transformando a racionalidade dos meios na racionalidade do sistema. E a racionalidade científica trans forma-se em ideologia a partir do momento em que tenta im­po[-Se como a única forma . possível de racionalidade. A con­cepção a e ciência que clã pressupõe é a de um conjunto de realizações às quais o homem delega realmente o poder fun­dado sobre o saber. Trata-se de uma concepção tecnocrática da ciência: assim como o homem delega seus conhecimentos físico-qulmicos aos mísseis e foguetes. da mesma forma dele­ga seu saber aos computadores, aos programas, aos processos de automação e de cibernética social. Ora, esse processo de delegação de poder, por objetivação do saber numa técnica auto-regulada, é uma das características essenciais, diz Philipe_ Roqueplo (A.utocritique de la· science), da ciência contempo­râne_a . . Assim, .o dogma da racionalidade científica e -o da

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neutralidade axiológica não passam de miragens mantidas a serviço de escolhas políticas ou ideológicas. Numa palavra, não passam de mistificações, pois hipnotizam o olhar crítico, como se os conflitos reais e as contingências do conhecimento racional e objetivo pudessem adquirir um estatuto apenas "re­sidual'' da Natureza. Donde a importância de analisarmos o caráter praxeológico das ciências humanas, pois, ao se conver­te rem em t~cnicas de intervenção, em estratégias de ação, des-111ascara-se o mito da "neutralidade" de seus agentes e da "pu­reza"' objetiva de seus resultados.

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II

CIÊNCIAS HUMANAS E PRAXEOLOGIA

As ciências humanas, tais como elas exis­tem, em ·suas condições reais de realização, apresentam-se como técnicas de intervenção na realidade, participando ao mesmo tempo do descritivo e do normatit•o: são praxeolo­gias. A análise epistemológica não tem o di­reito de dissociar, no domínio das disciplinas humanas, uma teoria científica de uma técni­ca de aplicação, pois não somente se dão sen­tido uma à outra, mas também determinam­se- reciprocamente.

Num sentido bastante lato,:º . t~f.IUQ praxeoJogia pode ser c:ntendido como o conjunto . dos equipamentos técnico-meto­d~lógicos fornecidos sobretudo pelas ciências hu~anas, tendo em vista intervir e IYan$/ormar os horizontes do agir. humano c de seus comp~rt_a!IleQ~os sociais,.- Não é novidade para as pessoas cultas que, por seu próprio dinamismo, o "~M>irito científico" t~nde praticamente a açambarcar todos os fenôme­nos, a fim de tudo expúcar por um conhecimento ·racional ·e objetivo. Sua meta é apoderar-se de tudo através de um saber coerente e objetivo, não somente susceptível de desembocar eventualmente D\!ma prática operatória efiçaz, mas também c_a- ·­paz de pr_~ver e de planificar os "fenômenos" ou "comporta­mentos" novos. Seria ingênuo, de nossa parte, queref!DOS per­guntar se as ciências têm ou não o direito de empreender isto ou aquilo. O que podemos perguntar, é se elas conseguem realizar seu empreendimento, como e com que objetivos elas o realizam. Isso se toma particularmente inquietante quando se trata das ciências humanas. Nesse caso, é o próprio sujeito do conhecimento que passa a ser considerado como "objeto" de estudo científico. Sabemos que, nas ciências humanas, sem-. pre há a intervenção explícita ou implíçi ~a. de . :valorizaç!)es _par­ticulares. O desenvolvimento e a elaboração das idéias, no do­mínio hÚmano, apresentam sempre um caráter de intervenção imediata, e não apenas técnica ou metodológica. Portanto, nes­se domínio, por mais h~nestas, escrupulosas e críticas que se-

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jam, as pésquisas guardam sempre o caráter de -um desafio ao mesmo ·tempo teórico e práticq: _teórico, quanto à .máxima adequação possível ao objeto estudado; prático, quanto à pos. sí.bilidade de transformar ou de impedir a mudança da so. ciedade; ou d~ transformar alguns comportamentos, em detri. mento de outros.·· ·

No mundo moderno, a ciência, de contemplativa, tornou. se profundamente operatória. _O físico clássico mantinha sem. pre certa distância para com seu objeto de estudo. Atualmen­te, porém, o conhecímento científico abandonou por comple­to a ordem do espetáculo. Ele ingressou, de cheio, na ordem do trabalho. Em nossos dias, há um vínculo indissolúvel entre o observador e o sistema observado. A ciência moderna, nas­cida para "resolver o enigma do universo", torna-se cada v~l mais - intervenc~onista, acabando por instituir-se como rejeição de seu sujeito. Nas ciências humanas, o homem tornou-se um grande au~ente. Isso não quer dizer queele tenha sido supres­so. Essa ausência do homem, nas ciências humanas, pode ser considerada como um modo_·de ele estar presente nelas. Mas de um modo que não faça• daquele que o afirme, nem um objeto natural qualquer, nem uma subjetívidacre: · nem tam~ pouco uma pura-exigência moral ou ideológica. Contudo, es~a ausência não significa indeterminação,. Hoje em dia, as ativi­dades humanas, no plano_científico, são como que ocultadas pelas operações formais, caracterizando o espaço em que se produzem os acontecimentos humanos. Trata-se de "opera­ções" mais ou menos dissimuladas pelos "resultados" que lhes servem de suporte e que as alienam ao reduzirem-nas a "coisas", isto é, a realidades empíricas.

· _ _Fortanto, ao mesmo tempo em que o murido deixou de ser, para o cientista, uma representação, o homem tomou-se uma vontade: de poder, -de administração, de dominação e de polêmica. E é por isso que a epistemologia atual, pelo menos a de inspiração bachelardiana, não descreve, pois só se des­creve aquilo que se vê. Assim, parece não haver dúvida de que a lógica da teoria foi substituída por uma epistemologia da aproximação e por uma idéia da realização. Os conceitos Ç.ienqficos tornaram-se operatórios. E o racionalismo atual. .tor.­nou-se militante. Converteu·se num pensamento construtivo, . . .. . .

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··:tíll pensamento em açiío e em trabnllw. Cada vez mais, o . :nno cíência passa a significar um "saber eficaz.". Enquanto ~.:!,~r eficaz, a ciência passa a exigir: de um lado, a invenção ,!: conceitos operatórios, isto é, visando a dominar os elemen~ ~·" que eles constituem; do outro, a construção ou a produ­l.il'. sob o controle desses conceitos, de um "fato construído", ,~ 1b:raído ao fato empírico e susceptível de ser submetido a

. 1:nta prática experimental. É nesse contexto que gostaríamos de focalizar o probJe~

m:t das ciências humanas, enquanto elas se tornam praxeolo­·:ir.s ou técnicas de intervenção no domínio humano. Antes, ·p1)rém, convém mostrarmos rapidamente como as ciências hu~ manas, à medida que acediam à era da positividade, também :n!!rcssavam na .era praxeológica. Contudo, a era da positivi­d;;dc não deve ser entendida, relativamente à era da represen-1ação, como o resultado de uma simples modificação das ati~ tutlcs do pensamento e das idéia~ que e.ste se fazia. tanto de ,uas capacidades, quanto de suas normas. Teríamos. assim, ;lpl'nas a dimensão teórica do espírito de positividade·, no qual ,~ banham as ciências humanas em formação. Mais do que a representação, a positividade integra a perspectiva teórica e a prática. Com ela, algo de novo emerge na esfera do agir e do existir humanos. Assim, vejamos a emergência da "era pra- -xcológica" e suas características, para, em seguida, darmos al­gumas indicações de eomo as ciências humanas são praxeolo~ gias.

I . A emergência da "era praxeológica"

Como sabemos, o sistema conceitual da "era da repre~ scntação'' comportava a afirmação de uma distinção formal entre o .conheci!Y'.ento (ou ciência teórica) e o agir (domínio prático). Na "j}erspectiva desse sistema, a "ciêncià" é hierarqui­nda: em primeiro plano, situa-se o conhecimento, cujo obje­iivo é a "ciência" desinteressada da verdade ou da realidade dás coisas; em seguida, situaase o agir humano, segundo as determinações do conhecimento. Trataase de um agir que dá margem às aplicações práticas da ciência, na medida em que _

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esta torna possível a elaboração de técnicas científicas. Nesse sentido, a era da representação começa num estado de esta. belecimento do agir humano no nível do agir tradicional, ten. do por base a experiência humana e as determinações do co. nhecimento da natureza, ainda pré~ientífico: técnica artesana~, moral e política. A ciência emerge do mundo da representa~ ção como poder de conhecimento, possibilitando inúmeras aplicações práticas e o desenvolvimento de técnicas eficazes. Todavia, da esperança inicial ao momento das realizações ·em escala industrial (máquina a vapor, por exemplo) , há um e~· paço de dois séculos, justamente os da "era da representa. ção". A partir do momento em que a técnica científica, oriun­da da ·dência moderna da natureza, passa a ser utilizada de modo eficaz (entre 1780 e 1820), inaugura-se a "era da po­sitividade". A partir de então, torna-se realidade a intercone· xão entré teoria e prática.

Doravante; portanto, a prática não é mais encarada co- · mo a simples ·aplicação da ciência aos domínios da ação. E a ciência, de simples ciência da natureza virgem da ação e do empreendimento técnico humano, converte-se em ciência do próprio empreendimento técnico. Ela se toma, por assim dizer, o lugar natural dos fenômenos, -tomados em seu esta­do bruto. Perde a razão de ser a distinção entre tevria e pra­xís. E não há mais primado da teoria wbre a praxü.. A teoria deixa de ser teoria das coisas, acompanhada de umâ praxis de

- aplicação do saber à ação, para converter-se CD1 teoria de uma prática técnica de mánipulação das coisas. E, aos poucos, a ciência, de conhecimento de simples curioso ou de amador, converte~.se -em ciência de engenh~iro: os interesses do curioso, e do engenheiro se amalgamam a partir do início do século XIX.

Instaura-se, portanto, no início da "era da positividade", uma · mudança no sistema do pensamento: a inteligência, ao invés de continuar procurando conhecer ou compreender, is­to é conceber a verdade das coisas e do ser, preocupa·se mui­to mais em procurar o agir que possibilite transformar as con­dições da existência humana em todas as suas dimensões. O primeiro indício desse deslocamento é formulado por Goethe (antes de I8Ó8) num texto em que Fau,sto tenta traduzir, para

,

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(l alemão, o Evangelho de São João. Ao iniciar seu trabalho, Fausto hesita diante da primeira frase: "No princípio era o \ 'crbo". Não gostando do termo "Verbo", corrige a tradução: "No princípio era o Pensamento". Insatisfeito ainda, reformu­l:l a tradução: ' 'No princípio era a Força". Após ser inspira­Jo pelo Espírito, encontrou a solução: "No princípio era a ,lção". Trata-se, pois, da primeira superação do culto ao pen­samento e ao conceito e da primeira instauração da ação no nível de categoria dominante das preocupações humanas. G oe­tlll~ como que profetiza o que seria mais tarde uma das cate­uorias fundamentais da filosofia: a da ação. A mesma coisa D .

~erá dita por Marx algumas décadas depois, na última de suas .. teses sobre Feuerbach": "Os filósofos, até Jwje, preocuparam­se em compreender o mundo. Doravante, trata-se de transfor­má-lo". Ternos aí duas posições que se referem ao humano da ação e do mundo. :S para o homem que a ação humana é algo de fundamentat:-E é o mundo humano que a filoso fia deverá transformar.

:t um fato que, nessa ação transformadora, a ciência .in­tervém .. de modo todo especial: de um lado, como ciência da naJureza, daquilo que não é -humano ou que está aquém d<J homem; do outro, como ciência do homem ou dos· fa tos da realidade humana. Uma vez liberado, pela exclusão de Deus para fora das- referências da ciência, o homem, por urn duplo desloca·merito, vai tentar definir-se: de um lado, enquanto ob- · jeto de ciência (o homem se opondo à natureza);· do outro, enquanto sujeito da ciência (o homem se substituindo a Deus). Portanto, há uma dupla positividade que, com o tempo, passa a apresentar-se sob a forma de discursos formais, mas que se tornam práticos e operatórios. Inclusive, fala-se hoje em "en­genhari a )lumana" (human engineering), como se o tratamen­to dos fenômenos humanos pudesse estar submetido às deter­minações do tratamento das questões de "engenharia".

Foi através dessa dupla positividade que as ciências ins­tauraram o deslocamento filosófico das categorias do "Pen­samento" à categoria da "Ação". Também fo~ através dela que as ciências conseguiram dotar-se dos recursos do agir téc­nico. Antes do advento das ciências humanas, um novo ills­trumento de ação já havia entrado em cena. Com. a constitui-

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ção dessas disciplinas, o ser humano e suas condutas !n ssam a ser considerados como um dado positivo susceptível de ser apreendido e manipulado "objetivamente". Surge, assim, o conhecimento positivo da regularidade dos comportamentos desse objeto "homem". E é esse conhecimento que irá impor­se como o guia da ação humana. Para utilizar tal conheci. menta com objetivos "pragmáticos", o homem se vê obrigado a mudar seu ponto de vista tradicional sobre a ação ( sobre a "moral" c a "política") e a adquirir um novo ponto de vis­ta, dessa vez, praxeológico.

Um exemplo nos fará melhor compreender o conceito de "praxeologia". Com efeito, no início do processo civilizatório, o homem, para p roporcionar-se os meios de subsistência, Juta contra a Natureza. Ainda está int~grado ao sistema de suas visões quanto à sua relação com a Natureza e com seus se· melhantes. A os poucos, o homem vai adquirindo t:tovos meios de produção e de organização- da economia: desenvolvimento do artesanato; depois, da sociedade industrial. No início, tudo se faz por um movimento espontâneo que insere esse desenvol­vimento na perspectiva ainda das posturas tradicionais de re­lação do homem com a Natureza e com seus semelhantes. E com o advento da sociedade -industrial que as coisas se tor­nam complexas: os avanços ·são grandes. demais para que os fenômenos continuem entregues à confusão das iniciativas in­dividuais, e para qu~ certos dados humanos .não sejam anali­sados de modo p ositivo, racional e objetivo.

O início dessa mudança operou-se quando o espaço vi­tal da economia industrial revelou seu caráter concorrencial. O estado do mundo industrial úiiliza em larga eséala o cálculo econômico, levando em conta o fato da concorrência. E com a remuneração do trabalho, as relações dos homens entre si mudam de natur,eza: as negociações contratuais afastam as relações "moral'' e "política", e introduzem uma relação "pra­xeológica". O trabalho remunerado · torna-se um dos parâme­tros de uma equação mais ou menos complexa, cuja "solução" é entregue a uma "teoria"' dos funcionamentos econômicos e dos "jogos" empresariais. Essa equação recebe, no início, um tratamento de cálculos meramente aritméticos; posteriormen­te, um tratamento matemátic~ mais "científico", à medida qué

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,~ desenvolvem as ciências econom1cas. Aos poucos, o sufetto humano trabalhador vai senl,io substituído, através do cálculo ~.:onômico necessário à ação industrial e constituindo-se em ó~ncia dos fatos humanos, por um objeto que exerce o com­portamento "trabalhador" necessário à produção. O objetivo do cálculo econômico não é mais o homem da "moral" ou da "política"t mas a sobrevivência e a prosperidade da empresa Je produção. Também esta se torna um objeto, cujo "compor­tamento" ótimo precisa ser assegurado.

Esse simples exemplo já é suficiente para mostrar o des­locamento da natureza e da significação das relações entre os homens, no mundo da positividade: o conhecimento está a serviço da ação. Evidentemente, as estruturas dessa nova for­ma de relações já estão presentes no mundo industrial -maqui­nista ·do início do século XIX. A evolução ulterior virá apenas desenvolver, fortalecer e generaHzar o "equacionamento" · da ex~stência social segundo esse novo tipo de relações. As es:­truturas dessas novas re]ações operam, hoje, em quase todos os domínios: da indústria e da economia, mas também da vida social e cultural.

Convém, aquit mostrarmos como se operou a passagem de uma "filosofia prática" à ordem praxeol6gica. Comecemos por dizer quais as características essenciais da ordem_ praxeo­lógica.

a) ·Em primeiro lugar, ela é a ordem do olhar dà positi­ridade sobre o agir humano, vale dizer, sobre as situações nas quais se desenrola esse agir e sobre as coisas que lhe dizem respeito. Desse ponto de vista, o homem que é levado em con­la pela "praxeologia", é o homem das ciências humanas, isto é, o homem objetivado como ator efetivo de seus comporta­mentos.

b) Em segundo lugar, a "praxeologia" se apresenta co­mo ''estratégias'' de ação, graças aos modelos de conduta for­necidos pelas ciências humanas-: estas se tornam capazes de prever, de estudar os efeitos desta ou daquela iniciativa, desta ou daquela decisão. As decisões e as iniciativas dos indivíduos, <los chefes ne empresa e dos governos, recebem uma espécie

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de oconselhainento científico, baseado em dados e tm estudos positivos;

c) a terceira característica da "praxeologia" é que ela deixa de lado, pelo menos numa primeira aproximação, a re­flexão fundamental sobre os objetivos da ação. Quaisquer que sejam as formas de estabelecimento dos fins (espontaneidade humana, força das coisas, vontade refletida), sua determinação é prefixada. O trabalho praxeológico consjste em assegurar a melhor realização possível dos fins preestabelecidos, mas le:. vando em conta a exploração das possibilidades da ação. Evi­dentemente, a praxeologia não é estranha a toda finalidade humana. Contudo,, o que ela pretende é levá-Ia a efeito do modo mais eficaz possível: maximalização dos lucros da em­presa, alta taxa de crescimento econômico, etc. Podemos gi­zer que a praxeologia se encarrega da finalioode de execução e de todo o seu aparelho. Ela deixa de lado a finalidade de intenção ou 4e destino, só se interessando por eJa enquanto é uma simples determinação positiva daquilo que se realiza.

Ora, considerada em si mesma, a "praxeologia" já reve­la a existtncia de um fato humano e a possibilidade de um problema para as próximas gerações: a prática da positividade está em vias de tornar-se a prática do gênero humano em ge­ral. A espécie humana já é anunciada como o espaço global de uma "praxeologia" amadurecida e generalizada. Isso se de­ve ao processo de mundialização da ciência positiva e a seu caráter cada vez mais intervencionista. Não é de todo impro­vável que, num futuro próximo, o estofo humano da existên­cia venha a se tornar radicalmente intolerante em relação a esse imperialismo crescente da praxeologia positiva e científi­ca sobre os domínios da ação humana. No mo~ento, já po_­demos constatar sérias tentativas de constrÜ~ão de um siste­ma- p~axeológico capaz de dominar o gênero humano. Até pa­rece que, por sua natureza, a praxeologia já representa o "en­tendimento" dos tempos modernos, sobretudo atrnés do cará­ter cada vez mais "invasor'• de seus procedimentos técnicos científicos e calculadores. Tudo parece indicar que, se não houver uma mudança de perspectiva, esteja assegurada a con-

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~olídação desse sistema e, por conseguinte, garantido seu su­c~sso.

Com a emergência de uma praxeologia humana distinta do que eram a "moral" e a "política" tradicionais, algo de no­vo se produz na ordem prática, análogo ao que já se produ­zira anteriormente na ordem do saber teórico. O saber teórico pré-moderno era aJ mesmo tempo especulativo e empírico. Algumas ciências existiam em caráter rudimentar, embora não .:onstituíssem um sistema de conhecimentos distinto da especu­lação. Com a instauração da ciência moderna, as coisas ga­nham novo rumo. A intenção específica da ciência se define. Ela demarca seu campo de ação, inteiramente distinto do do­mínio dos saberes meramente especulativos. No final do pro­cesso, o antigo sistema do saber se bifurca em duas ordens diferentes: de um lado, a ordem explicitamente especulativa, em recessão, progressivamente esvaziada de sua empiria pré­científica; do outro, a ordem explicitamente científica, em pro­gressão, fazendo cada vez mais apelo aos--desenvolvimentos matemáticos e à assimilação crescente dos dados empíricos. Esquematicamente, o advento da ciência moderna provoca, no interior do saber~ a seguinte transição epistemológica:

SABER EM GERAL ---~

(confuso)

ESPECULATIVO OU RACIONAL

(despojado e reduzido)

CIENTÍ FICO.RACION AL

(em expansão)

Antes da "era praxeológica", a ordem ético-política era ao mesmo tempo, no domínio da praxis humana, ação e pen­samento da ação, havendo uma unidade global e confusa en­tre o agir e o pensamento desse agir. Essa situação mudou, graças a dois fatores: a) as artes e as técnicas, antes perten­centes ao domínio do "fazer" e dizendo respeito às coisas ma­teriais, são absorvidas pela ciência; b) o fato humanc passa a ser estudado como objeto _de ciência. A praxeologia surge co­mo retomada e reintegração das artes e das técnicas _antigas,

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bem como de tcdo aqu!lo CJ l!;! lhes <ku pros~~guírncnto c da.; ' ·antropot~cn icas" derivando das aquisições das c!énci~s huma­nas. No momento dessa retomada c dessa reintegração. opcra­!ie, na ordem da pra:rís, a seguinte transição epis!emológic~:

SlSTE:-.1A ÉTiCO-POLÍTICO~ j SISTE M:\ ÉTICO-POlÍTICO

(despojado e reduzido)

A~TIGO (global e confuso) l PRAXE.QLOGIA AT l':l.L

(em expansão)

P or conseguinte, ao velho sistema ESPECULATIVO- PRÁTICO, cor­respcnde, em nossos dias, o sistema do SABER e do AGIR, com­portando dois . níveis distintos e formando a seguinte matriz:

''ESPECULATIVO'' SABER ESPECULATIVO

"POSITIVO'' CIÊ.SCI..\ POSITIVA

2 _ A s ciências humanas siío «praxeo!ogias"

P RAXIS ÉTICO=

POLÍTICA

P R.\XEOLOGI,\

Ao dizermos que as ciências humanas são praxeologias, reconhecemos, de início, duas coisas: em primeiro lugar, que essas disciplinas são ciências, porque possuem um inegável corpo teórico e procedem dedutivamente; em segundo lugar,

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,1u~ ~ão disciplinas humanas, porque tomam. ~c não o homem, :~dt.> menos os fenômenos humanos como objeto de investiga­~-;11,_ Enquanto teorias desse conjunto de fenômenos humanos, t ! l!~ podemos expressar com o termo de "ação" humana, essas \i:,.:ipl!nas são praxeologias. Para il ustrar essa afirmação, to-111arcmos dois exemplos típicos: o da economia e o da socio-

A . Atualmente, as chamadas leis econom1cas não dizem 1•1:.1i-> respeito à ordem da representação. Não são nem psico­ilí!!.icas nem tampouco não-psicológicas, mas simplesmente eco­!ll~micas. O domínio específico da atividade econômica tem inicio quando há uma passagem, da produtividade meramente t.:cnica, a uma produtividade valorada. Nesse sen tido, a eco­nomia é uma teoria dos valores. A lei dos rendimentos de­crescentes só tem a aparência de uma lei física, pois supõe uma escolha tecnológica e uma valoração. Po r sua vez, a lei d;.t utilidade decrescente também não é uma lei de tipo físico. Ptlr isso, a economia, como as demais ciências humanas, é tima dência da ação. O valor é uma abstração, quer dizer, um f:lto científico que não se confunde com os preços nem com um fato psicológico. A economia deve seu valor exemplar ao fato de ultrapassar o dualismo da representação e das condi­n'u:s objetivas. A divagem que ela instaura, é a que instaura qualquer ciência: situa-se entre aquil9 que ela teoriza e. aquilo que, por abstração, ela deixa fora do campo da teoria. Aquilo \ fUC ela deixa de lado pode ser de ordem psicológica (a psi­ú>logiia econômica) ou de ordem institucional (instituições econômicas). Psicologia e instituições não são~ requisitos do funcionamento da economia, embora sejam um requisito da in~erção da teoria econômica no concreto.

Na situação atual das ciências humanas, o problema epis­temológico que se coloca não é mais o da "matéria" e o da .. consciência", tampouco o de saber se as "representações" podem ou não constituir um requisito par.a os processos obje­tivos. O problema importante é o da racionalidade ou írracio­nalidade das condutas ou das ações humanas. Tais como elas ~e apresentam em nossa sociedade, as ciências humanas, mui­to embora queiram guardar um caráter de objetividade e de

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neutralidade a·xiológicas, não podem deixar de serem conside­radas como técnicas de inten-·enção. Elas participam ao mes­mo tempo do descritivo e do normativo: são praxeologias. Por sua hipótese de racionalidade, permanecem humanas e têm uma sigRificação humana que ultrapassa seu sentido aparente. Donde o diagnóstico de G . G . Granger: "A dupla tentação das ciências humanas está em aterem-se simplesmente aos acon­tecimentos vividos ou, então, num !!Sforço mal adaptado para . atingir a positividade das ciências naturais, em liquidarem to­da significação, para reduzirem o fato humano ao modelo dos fenômenos físicos. Assim, o problema constitutivo das ciên-· cias do homem pode ser descrito como transmutação das sig­nificações vividas num universo de significações objetivas" (Pensée formelle et sciences de l'homme, 1960).

Essa posição coloca pelo menos três problemas: a) em primeiro luga_r, as ciências humanas são ao mesmo tempo des- . critivas e normativas. :I;: por isso que já se postula a elabora." ção áe uma teoria hipotético-dedutiva para a política, seme­lhante à da economia, e que seria a ciência por excelência da · intervenção. O que podemos perguntar é en1 que medida o homem deve ou ·não conformar-se a um optimum normativo. Toda praxeologia normativa deve fazer-se acompanhar de uma etologia descritiva capaz de comparar o ~omportamento à nor­ma. b) Em segundo lugar .-:-no interior do comportame!ltO- hu­rnãno, a parte do comportamento racional não é a maior. · ·Donde a objeção q~ se pode fazer àqueles que constroem · teorias da ação: será que elas têm validade para os compor­tamentos não-racionais e para os racionais? c) Enfim, o fato · de as ciências humanas se apresentarem como técnicas de in­tervenção, revelando certo tipo de significação humana, não : significa que isso deva ser um estado definitivo de seu desen­volvimento.

Portanto, como toda ciência, a economia é um discurso teórico. Não se trata, aqui, de denunciar a ficção de um homo aeconomicus em busca de uma racionalidade "redutora". A análise econômica clássica. por exemplo, não estuda aquilo que fazem os homens para alcançar, de modo eficaz. seus ob­jetivos econômicos, mas o que eles fariam se fossem hominer aeconomici mais racionais do que são, independentemente dos

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f:"lls escolhidos e dos meios que os levaram a escolhê-los. A ~·.:onomia se propõe a retraçar a lógica e os limites da ação, pMque nenhuma ação pode ser realizada por pura racionali­JaJc econômica. Na economia, como nas demais ciências hu­rn~111as, os conflitos de valores ocupam um lugar importante, ~ pnnto de ser praticamente impossível dizermos, hoje em dia, lmJc termina a teoria econômica (científica) e onde começa :1 doutrina ideológica ou política. Nos países desenvolvidos, l''- economistas intervêm de maneira cada vez mais direta nos :1,suntos privados e públicos: a economia-ciência está intima­mente inte,grada a seu contexto social e político.

Do ponto de vista epistemológico, a economia se carac­t.:riza por um dupio movimento: no plano tecnológico, cons­uói toda uma aparelhagem abstrata, de início tomada de em­pristimo às ciências da natureza, depois progressivamente re­novada em vista de uma instrumentação original; no plano

- da determinação de seu objeto, orienta-se para uma concepção que a Hga cada vez mais às ciências humanas. Todavia, a ~111álise epistemológica desses dois planos leva-nos a reconhe­t:cr que a economia, enquanto ciência teórica, não está mais dissociaôa de suas técnicas de aplicação: teoria e prática, não somente se dão sentido, mas também se determinam recipro­cnmente. E é por isso que a economia é, hoje, uma disciplina intervencionista, quer dizer, uma praxeologia: intervém na me­dida em que tenta prever fatos econômicos; intervém ainda, de modo mais radical, quando se põe a planificar: planificar é intervir, na escala de uma grande unidade econômica, para organizar racionalmente sua estrutura e seu funcionamento; intervém, enfim, na medida em que está intimamente ligada aos sistemas de controle da administração: organiza e contro­la as relações de produção e de distribuição do produto numa sociedade que tende à satisfação de certos ideais humanos.

B. Tanto no domínio da economia quanto no da socio­logia, a tJécnica tem grande conteúdo político, conseqüente­mente praxeo1ógico. Por razões tão diversas quanto evidentes, o sociólogo é levado a estudar o que se passa em seu redor, na "vida, e na sociedade. Tanto por seu ponto de partida quan­to por seu ponto de chegada, a sociologia atual está sobre-

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-carregada de significações polilico-ideológicas. T odo estudo global da sociedade pressupõe certo quadro teórico. E eSSe quadro coloca em jogo certos conceitos que já estão "conta. minados" pela ação. Por isso, por mais imparcial que possa_ parecer, o pesquisador que aceita perscrutar a vida da socie. dade> já é, pelo fato mesmo, um " tecnocrata" em potencia~ quer dizer: da análise daLJuilo que é à formulação daquilo qu~ deve ser ou é desejável, a distância é muito pequena.

Outro exemplo típico é o da medicina. Esta se apóia nu. ma ética da saúde, cujo princípio é reconhecido como Iegít~ mo: a conservação da vida é um "valor" evidente, mas que pode entrar em conflito com outros "valores", notadamente econômicos, religiosos, etc. Enquanto ciência, a medicina es­tá descompromissada de suas aplicações, a não se r em casos "excep::ionais": aborto, eutanásia, etc. Enquanto ciência, seria "neutra"; enquanto p_rática, porém, é uma técnica de ação.

A partir desses exemplos, podemos _fazer certas conside­rações sobre o caráter praxeológico das ciências humanas em geral, decorrente dos pressupostos ideológicos e da função Sil-

cial dessas disciplinas. •

1 . A intt!rferênda ideológica na psicologia é bastante · clara, sobretudo quando essa disciplina se relaciona com as estruturas sociais, passando a desempenhar uma função cultu·_ ral bastante retevante. Evidentemente, trata-se da prática psi­cológica, que tem uma função -explicativa. Cada ve?: m-ais os psicólogos são chamados a -responder a uma série de deman­d~s extrínsecas aos objetivos propriamente c ientíficos de sua disciplina. São chamados a exercer uma função cultural no seio da sociedade, fornecendo uma compreensão nova do ho­mem e do conhecimento - uma "visão do mundo e do ho­mem" - que se desenvolve graças às pesquisas reais, mas também e sobretudo graças à vulgarização dessas pesquisas. O homem atual tem uma imagem de si mesmo à qual a psicolo­gia não é estranha. A imagem que se forja para o homem mo­derno responde a uma necessidade, a saber, a necessidade de adaptação do comportamento dos indivíduos às necessidades de um sistema econômico, social político, cultural. Por outro lado, a prática psicológica em meio industrial ou ~scolar, res-

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.. ,.1:J.: a uma função de adaptação muito mais precisa. Trata· ~c óc adaptar o indivíduo às exigências de uma instituição. : .. uma empresa ou de um cargo. Em todos os casos, as fun­

'.'0 t:~ de adaptação, de seleção, de promoção, etc., respondem ~. o:i!!éncias que a prática psicológica não pode controla.r nem ;;a:~n;o criticar. Em alguns casos, os imperativos são econômi­: t"< em outros, culturais. Em todos os casos, a prática psico~ : ~ • !!i.:a é reduzida ao estado de meio em vista de um fim que n;iÕ depende da psicologia . Basta vermos como os países de­~cn\·olvidos multiplicaram os cargos de psicólogos, e como es­•a multiplicação repousa numa necessidade econômica e, em última análise, política.

2 . Esse fenômeno não é típico da psicologia. Desde o inicio de nosso século, a sociologia americana, por exemplo, engajou-se nos caminhos de estudos empíricos estreitamente ;!mirados, com o objetivo claro de responder às necessidades da sociedade americana. A .maiorparte dessas pesquisas, se­cundo o testemunho de Peter Berger (lnvitation to Sociology), ;t:dul.·Se a estudos fragmen tários da vida social, sem ligação ;t!guma com preocupações teóricas mais amplas. Semelhante ..-~lado de coisas foi favorecido pela estrumra econômica e pt>lítica daquela sociedade, que passa a exigir cada vez mais estudos sociológicos estreitamente delimitados, de preferência traduzidos em técnicas estaffsticas. O critério de produtividade ~ amplamente utilizado. A sociologia deve responder às deman­das sociais. O julgamento dos trabalhos pertence mais aos administradores do que aos cientistas sociais. E os critérios de ;1prcciação científica são tomados de empréstimo a uma imagem pública das ciências da natureza. O esfacelamento das pes­quisas em pequenos estudos fragmen tários e a multiplicação dos assuntos fictícios, bem como a utilização meio cega da aparelhagem estatística, já dão uma idéia da organização buro­crática da produção sociológica para fin:s práticos. Numa pala­vra, ela se converte numa praxeologia, quer dizer, numa estra­tégia de ação.

3. Basta olharmos com atenção as correntes ideológicas infiltradas nas ciências humanas, para percebermos imediata­mente como essas disciplinas perderam sua "inocência" cientí­fica, ou seja, seu caráter de "neutralidade axiológica", para

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assumirem um caráter bastante intervencionista, ou seja, pra. xeológico. São as ideologias que reforçam esta ou aquela orien­tação nas pesquisas científicas, na medida em que tendem a ocultar ou a impedir este ou aquele especto que mereceria ser pesquisado, ou na medida em que são levadas a esterilizar este ou aquele ramo de uma pesquisa científica, opondo-se implícita ou explicitamente a seu desenvolvimento. Não pode. mos negar, portanto, que as ciências sejam cada vez mais utilizadas para fins não-científicos: são construídas para res. ponder a todos os tipos de demandas. Certos objetos de pes­quisa aparecem como tão "estratégicos" ou "táticos", que se torna praticamente impossível separar seu aspecto propria­mente científico de seus aspectos praxeológicos.

4 . Salientemos, ainda, dois aspectos intervencionistas das pesquisas científicas no campo da economia: a) em primeiro lugar, a pesquisa econômica intervém enquanto mercado para a venda de }?ens. O que gera o interesse econômico da pes: quisa, não são os resultádos científicos possíveis da pesquisa, mas a produtividade e a venda de bens. Pouco importa se, em seguida, houver desperdício ou má utilização do ponto de vista social, dos bens vendidos. b) Em segundo lugar, a pesquisa científica intervém enquanto criadora de potencialidades de novas forças produtoras ou de reorganização das antigas, tanto no plano tecnológico quanto no do aprimoramento dos novos­recursos naturais. Ela coloca à disposiçã~ dos "dirigentes" uma gama de possibilidades, entre as quais escolhas tecnológicas são feitas em função das necessidades do mercado, e não da utili­dade social permitindo aos homens viverem melhor ou melhora­rem suas condições de trabalho. As escolhas tecnoe"ráticas não esgotam as potencialidades criadas: se algumas delas permitem uma real melhoria social, correm o risr.o de perturbar o mer­cado tal como ele existe.

5. Depois dessas quatro considerações sobre o caráter praxeológico das ciências humanas, seria o caso de estudarmos mais a fundo seus dados, suas estruturas e seu funcionamento. Isso nos levaria longe · demais, e ultrapassaria a despreten são de nosso estudo. Vejamos apenas aJgumas repercussões da "ordem praxeológica", que somente agora ganha consistência maior, no campo do pensamento e da prática humana em ge-

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·d Começaremos por uma repercussão de ordem mais intelec­;~1;~1 ou reflexiva. Com efeito, na medida em que, individual ou (t'ktivamente, o homem atual se vê imerso nessa ordem pra­xcLllógica, algo de novo lhe ocorre: ele começa a desenvolver 1Hwas "visões" sobre ele mesmo, começa a sentir novas reações :1kr ívas e a experimentar certas necessidades OUJtrora inexisten-16 E tUJdo iSso, de modo bastante confuso, por vezes contradi­hirio. Em geral, podemos dizer que o homem de hoje toma ..:tmsciência dessa ascensão da praxeologia: de um lado, como ,~ 1uJo capaz de dizer certa "verdade" a respeito dele mesmo e, por conseguinte, como sendo algo de inelutáveE, em relação a que ele deve colocar-se num número sempre crescente de situa­çôes P!'Íticas cotidianas; do outro, experimentando certo senti­!Jtrnto de frustração, e que se toma cada vez mais inquietante,

.rnaréria de reflexão e de contestação, devido a seu caráter alienante.

6. A instauração da "era praxeológica" vem opor-se às antropologias da representação, da consciência. da moral for­mal, da política clássica, etc. Ela se apresenta como a denúncia das mistificações da consciência, como a afirmação da positi­vidade e como a apologia da prática científica. f: o que se :~nuncia hoje, de modo meio pomposo e enganador, nos dis­cursos da "morte do homem", conseqüência da "morte de Deus" : de fato, trata-se apenas da recusa cultural e prática da imagem que a filosofia das Luzes criou do homem, imagem cujas insuficiências são mostradas pelas ciências humanas atuais. Contudo, essa recusa cultural está operando em grande escala c com bastante força em todo o conjunto social, sem que as

·sociedades modernas saibam bem o que colocar em seu lugar. Há uma solução prática bastante metfíocre, que consiste em considerar: de um lado, o indivíduo "público", inteiramente "dominado" por uma praxeologja técnico-científica; do outro, o indivíduo "privado", cada vez mais "enquadrado" na cultura de seu "jardim particular'', onde ainda podem florescer um pouco de estética pessoal, um pouco de ética, um pouco de religião, um pouco de "reflexão" ...

7. Uma conseqüência é previsível: as coletividades hu­manas ie apreendem hoje, mais ou menos sob o signo da confusão, sob o signo de uma ausência de projeto coletivo, num

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momento mesmo em que as grandes causalidades tornam-se cada vez mais compactas e ameaçadoras: demografia, desigual­dades econômicas, coagulação das insatisfações, etc. T udo isso é projetadc, confusamente no pensamento do homem: pensa. menta confuso, de massa, sustentado por todos os meios de difusão coletiva. A esse respeito, podemos dizer que a prática do pensamento torna-se cada vez mais praxeo{ógica, pois ela está confiada ao anonimato global da massa humana, a "opi. nião" dispondo de todos os recursos técnico-científicos para manter.se e desenvolver-se. Ora, essa prática precisa ser refle­tiM. Em outras palavras, as ciências humanas, através de seus produtos, agem na prática da vida e interferem no domínio do próprio pensamento, correndo o risco de fechar o circuito de seus resultados humanos e de constituir um grande sistema de intervenção técnico-científica sobre toda a economia do saber. Não se trata de dizer, com isso, que a emergência e a '001lstituição1 das ciências humanas postulam que se retome uma epistemologia das disciplinas especulativas. Precisamos apenas reconhecer que, nesse domínio, o problema é movediço, que seus termos se deslocam e que devemos tratá-lo em seu pró­prio movimento. Colocado. o problema, seria conveniente abor­dá-lo com um tratamento epistemológico bem mais amplo e mais aprofundado.

8 . Semelhante problema é· mul to ~amplexo para ser tratado nas dimensões de um artigo . .Queremos apenas situá-lo no contexto das duas características essenciais da ciência con­temporânea, dando especial destaque à segunda: a reflexividade e a tecnicidllde. E ssas duas caracteristicas "transcendem", por assim dizer, aquilo que constituía a dimensão própria da ciên­cia. O surgimento, na ciência moderna, de um caráter de refte­xividade, corresponde a uma espécie de integração, no domí­nio científico, da dimensão filosófica ou epistemológica da consciência. Com efeito, a ciência chegou a tal nível de matu­ridade, que se tornou capaz de colocar-se os problemas de seus próprios fundamentos, isto é, de interrogar-se sobre o sen­tido de seus conceitos fundamentais, sobre a validade de seus métodcs e sobre o alcance de seus resultados. Constituem-se, assim, o que podemos chamar de "epistemologias internas" ou "metateorias" que proporcionam à ciência, por assim dizer, um

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J,)mínio de reflexividade onde atuam seus atos decisivos. Assim, :to estudarmos a estrutura das operações fundamentais de certas ~corias. obteremos resultados válidos para todas as teorias con­~ideradas. Há uma simultaneidade entre o aprofundamento do projeto inicial e a extensão dos métodos. cuja característica con-5jste em integrar a reflexividade à própria demarche científica.

9. Considerando a ciência, não mais em seus aprofunda­rn~ntos teóricos, mas em· seus prolongamemos técnicos, não se rode negar que ela se encontra cada vez mais vinculada a uma certa trans/Of'mação do mundo. A ciência torna-se cada vez mais um instrumento eficaz de análise e de manipulação do real. Esse é o sentido profundo do processo crescente da matematização da ciência. Não somente ela se torna eficaz, mas dá um sentido preciso à noção de eficácia. · A instauração de um novo tipo de relação com a natureza, -no qual o homem, ao invés de submter-se a um conjunto de condições, modifica

- essas condições segundo seu próprio gosto, inscreve-se no pró- -prio projeto da ciência atual. Se quisermos compreender as ciências modernas da natureza, diz, por exemplo, W. Heisen­ocrg. devemos reconhecer que sua perspectiva central consiste no feixe de relações do homem com a natureza: "graças a essas relações, somos, !nquanto çriaturas vivas físicas, partes dependentes da natureza, ao passo que, na qualidade de ho­mens, dela fazemos parte ao mesmo tempo como objeto <k nosso pensamento e de nossas a~ões. ·A ciência, deixando de ser o espectador da natureza, se reconhece a si mesm·ã como parte das ações recíprocas entre a natureza e o homem" (La 11ature dahs la physique Cl!.l;ttemporaine, 196.2). Por conseguinte, os objetos de nossos conhecimentos e das transformações que operamos, não permanecem isolados relativamente ao sujeito cognoscente: é o próprio homem que, enquanto sujeito coletivo da ciência, se modifica ao modificar os objetos e, conseqüente­mente, suas próprias condições de vida.

1 O . Portao to, a ciência moderna, e com maior razão as ciências humanas, deixaram de ser uma t~ri4, uma visão ordenada do mundo, uma contemplação da essência das coisa<;, para tornar-se uma techné, uma intervençiio voluntária sobre os fenômenos. ~ por isso que a proliferação das técnicas e de ~uas inúmeras aplicações é coextensiva ao desenvolvimento das

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ciências: ao mesmo tempo que há uma conquista de perspecti. vas teóricas cada vez mais poderosas, há uma ampliação cada vez maior dos campos de aplicação. E as transformações intro. duzidas pelas ciências afetam o próprio homem: modificações profundas das estr}lturas sociais, econômicas e políticas; ademais, o desenvolvimento, segundo os métodos positivos, das ciências humanas, torna doravante possível até mesmo um "domínio" sobre o "biológico" e o "psíquico" do homem. Praticamente, todos os setores da vida humana inostram·se susceptíveis de se. rem "controlados" por uma técnica científica apropriada. Por todas as suas conseqüências no domínio da ação, o progresso científico atual está vinculado aos problemas de ordem ético.. política. A pesquisa científica torna-se um instrumento de po. der, e chega mesmo a constituir o elemento fundamental do poder : cada vez ~ais é o poder que fornece à pesquisa cien­tífica seus quadros, seus meios, seus planos de organização e seus objetiv~s. E é por isso que colocamos- a seguinte per; gunta: se as ciências em geral, e as ciências humanas em par­ticular, tornam-se cada vez mais uma atividade humana desem·. penhando o papel ou a função de flFrças prooutoras; se elas se tornam um modo de atividade humana cada vez mais impor· tante, e uma forma especüica de existência moderna do homem, como poderiam elas ser consideradas _de outro modo, senão como.--l'erdadeiras praxeologia.f . Evidentemente, não somente as diversas teoTÚls desenvolvidas ·pelas ciêncüu hrmumas tor-

-nam possível a produção tecnológica, mas também a orientação para a performance técnica exige, das teorias científicas, novas possibilidades. ~ enquanto são tecrios das ações humanas, que as ciências humanas podem ser consideradas como disciplinas praxeológicas: as teorias científicas não podem dissociar-se de suas técnicas de aplicação, pois determinam-se reciprocamente, dando sentido umas às out~as.

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III

FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS -no

CIENTIFICISMO

O método experimental, racional e obje­tivo, aumenta incessantemente seu impacto so­bre a vida social e cotidiana. Ele sempre impôs, de modo crescente. e intransigente, o primado da Razão sobre os demais aspectos da expe­riência humana. Apresentando-se como o úni­co instrumento particular da Razão, foi levado a assumir, estimulado por seus êxitos, um papel imperialista crescente, a ponto de identi­ficar-se com a própria Razão e de rejeitar como "irracional" e "subjetivo", tudo o que não conseguiu assumir.

Por "fundamentos epistemológicos -do cientificismo", en­tendemos, numa primeira aproximação, esse "fundo de saber" ( .. solo" ou "hprizoÕW' epistemológicos} sobre o qual se coos-1ruiu historicamente a concepção segundo a qual a "Ciência" p:lssa a desempenhar o papel de "fórmula laplaceana", no do­mínio -do conhecimento, das esperanças humanas. Graças à sua prodigiosa conquista do ü -niverso, ela dobra à obediência de seus próprios ditames as normas do pensamento humano. Ne­nhum conhecimento poderá pretender à dignidade científica, a não ser que Comprove sua capacidade de revestir as -formas ~ os cânones ditados pela ffsica e pelas matemáticas. Todas as verdades humanas, para terem significação cognitiva, deverão submeter-se aos critério·s de uma verificação experimental. A arte. a religião, a vida afetiva e a vida cotidiana, que não se deixam reduzir à obediência às normas físico--matemáticas, são desacreditadas como desprovidas de sentido. A experiência hu­mana em geral deixa-se confudir com a experiência cientifica em .particular. Tudo se passa como se os critérios da ciência devessem ser universalmente válidos, e como se a preponde­rância das preocupações científicas e técnicas devesse ser consi­derada como verdade eterna. Semelhante atitude, que pretende submeter a totalidade dos valores à jurisdição da "verdade cien­tífica .. , está fundamentada num juízo de valor prévio, pratica­mente impossível de ser racionalmente justificado. Porque não se pode procurar a verdade do mundo exclusivamente na or-

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dem das "essências" físico-matemáticas. Ademais, os funda. mentos e princípios das ciências rigorosas, devem ser criticados revisados, reformulados, e sua validade não pode impor-s~ como sistema dogmático, revestido de uma dignidade "sacros. santa .. , mas como sistema de linguagens técnicas destinadas a evidenciar este ou aquele aspecto de uma realidade extrema­mente complexa e confusa.

Nesse sentido, o discurso epistemológico das diversas ciên­cias é chamado a tomar consciência das insuficiências e do inacabamento das "verdades científicas". Nenhum discurso cien­tífico pode pretender cobrir a totalidade daquilo ·que é. Cada um dos discursos deve remeter a um discurso mais completo, horizonte comum aos discursos parciais, que seria o discurso de conjunto da realidade humana, da realidade tal como o homem pode descobri-la em função de sua situação no mundo. No dizer de W. Heisenberg, c.uma das características mais im~r­tantes ~a eyolução e da análise da física moderna,- é o fato de os conceitos da linguagem normal, com suas definições · vagas, parecerem mais estáveis, no decorrer da expansão do conhecimento, do que os termos precisos da linguagem cientí­fica; esses termos são uma idealização que versa apenas sobre uin grupo de fenômenos. Isso não deve surpreender-nos, pois os conceitos da linguagem normal são fornecidos pelo con­tacto direto com o real: eles representam a realidade. ~ ver­dade que não são bem definidos, não poàendo..sofrer as muta-. ções no decurso dos séculos, como a própria realidade, mas nunca perdem o contacto direto com o real,. (Physique_ et Phi/osophie, 1961 ) .

Como podemos notar, Heisenberg denuncia o fracasso do cientificismo ingênuo predominante no correr de todo o século XIX. Ao invés de procurarmos exclusivamente nas essências matemáticas a verdade do mundo, são essas verdades matem~­ticas que devem situar-se relativamen~e à realidade humana do mundo humano. Assim, a idéia segundo a qual os defensores do cientificismo clássico esperavam realizar um conhecimento unitário, sob a forma de uma matemática universal, muda pro­fundamente de significação. As ciências rigorosas, que tenta• vam e, mesmo, conseguiram ~Iienar a realidade humana, são

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r.-rçadas a empreender um esforço de redescoberta da "cons­·-~ncia humana" . .t o que tentaremos mostrar em nossa apre­:~ntação dos limites do científico atual. Antes, porém, ve­n:nlOS sucintamente como ele surgiu e se desenvolveu.

1 • Emergência do cientiiicismo

Nossa intenção, aqui, é evidenciar algumas dominâncias hi türicas do cientificismo, permitindo-nos compreender melhor ~ua significação contemporânea. O cientificismo não é produto de nosso século. Tem suas raízes no século XVIII, muito em­lwra só tenha se afirmado, como atitude intelectual, no de­~llrrer do século XIX. O "fundo de saber", ou o "solo episte­mológico"-do qual emergiu, foi esse clima espiritual criado pelo

•• ;1dvcnto da "era da positividade", em substituição, por oposição, · :'t "em da representação". Desde sua origem, o cientificismo revelou-se logo uma atitude intelectual bastante difundida . Os meios científicos do sécuio XIX e do início deste século, rece­hcram-na com muito entusiasmo, vendo nela, por assim dizer, a r:ureka da verdade do pensamento. Essa atitude, porém, já foi questionada, no próprio interior da ciência, desde seu surgi­tncnto. Esse questionamento, por exemplo, ganhou certo ll.igor 1m momento em que as· pr3prias matemáticas se colocaram as

· lJUcstões •'de fundan,~nto~·. E viu-se ainda revigorado qua_ndo .1 física se colocou as questões referentes ao abandono da fonna d;íssica de teoria, para aceitar suas formas contemporâneas: relativistas e quâoticas. Com tais questionamentos, ficava para ~cmpre sepultado o que podemos chamar de .. o primeiro cienti­ficismo", bastante ingênuo e crédulo em demasia no poder da Razão científica. Ora, tudo indica que, para além desse período de abalo e de transição, estamos assistindo hoje · à emergência c ao .. terrorismo" intelectual daquilo que podemos chamar de "o segundo cientificismo'•, muito mais poderoso, autoritário e, por vezes, "dogmático", do que o -primeiro. E sobre esse se­gundo cientificismo que faremos nossas críticas finais. Antes, porém, veremos alguns de seus suportes epistemológicos bis~ lóricos.

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Ao remontarmos à história do pensamento e da filosofia, podemos facilmente deS<:obrir que a doutrina kantiana sobre a ciência já contém em germe e já anuncia a epistemologia posi­tivista da ciência. De certa forma, não somente define o ter-1'eno, mas também estabelece a possibilidade da emergência de certo cientificismo. Também Hegel. à sua maneira, ao conce. ber a "ciência do entendimento como tal", formula-a de um modo que se aproxima bastante da concepção posi_tivista de_ ciência. Nesses dois grandes filósofos, aquilo que constitui o equilíbrio-, é a concepção que ambos propõem sobre as fun­ções da filosofia e da razão filosófica. Mas é apenas a partir de Comte e, de certa forma, de Marx (de modo diferente), que os aparelhos filosóficos dos dois filósofos do fim da "era clássica" serão abandonados. A partir de então, pelo menos no domínio das intenções, a filosofia positivista tenta defmir, já agora sobre as bases da própria ciência e do espírito cienti-· fico, a totalüúlde da visão do real (natureza e ser humano-). Ao mesmo tempo, essa filosofia passa a apresentar-se como a única e exclusiva referência verdadeiramente racional para o agir humano. Todavia, convém observarmos que, embora esse aspecto de inspiração geral da conduta humana (para além do simples uso prático do conhecimento científico) já seja claramente enfatizado pelo positivismo cientificista do século XIX, não podemos nos - esquecer de que o cientificismo se apresenta, antes de tudo, como uma doutrina ou uma teoria do conhecimento. O que essa teoria do conhecimento ou da ciên­cia pretende invalidar, por princípio, é toda e qualquer outra fonna de conhecimento que não satisfaça às exigências do conhecimento- positivo propriamente dito.

Portanto, historicamente, foi Kant quem estabeleceu as primeiras bases ou os primeiros fundamentos epistemológicos para a teoria cientificista do conhecimento. Como procedeu Kant? Simplesmente, ele reservou o título de "conhecimento" única e exclusivamente a essa espécie de deteaninação da vida mental que são, de um lado, a experiência sensível, do outro, sua elaboração empreendida mais ou menos previamente pelo entendimento; e o produto acabado do entendimento não pode ser outra .coisa senão o conhecimento cientifico, isto é, a ciên-

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,:; ;~ propriamente dita. E o suporte de base de todo esse conheci­:lt.:nto, inteiramente destinado a converter-se em conhecimento •1.:;ttífico, não é outro senão o dado fenomenológico, isto é, ~1 :~tualidade da manifestação sensível que Kant chama de "fe­nt>meoo". Todavia, ao tratar de definir o entendimento, não 'l1meote enquanto prática atual, mas .também enquanto pos­,jbi!idade do conhecimento científico (sendo este considerado, ~ 111 seu gênero próprio, como totalidade infinita) , Kant não hesita em falar do fenônemo como constituindo, a propósito Jas coisas e de seu universo, a totalidade de suas manifestações possíveis. E por isso que ele define o lugar da "experiência ~cnsível" e o espaço do conhecimento científico como um todo. Para ele, tanto a ciência efetiva ·quanto o entendimento cientí­fico devem caminhar indefinidamente nesse espaço da ciêncía, ~em que possa jamais chegar ao término desse estofo fenome-

- nológico indefinido, tanto dQ ponto de vista do indivíduo feno­menológico quanto do da teorização: através da.. descoberta de leis e das relações necessárias dos fenômenos entre si.

Não é de grande importância, porém, essa condição inde· finidamente "peregrinante" do conhecimento humano e de .sua elaboração científica. O que importa é que tanto o entendi­mento científico quanto a razão humana já sabem, como que por princípio, desde a origem e durante todo o percurso, que a l·iência não pode ser outra coisa senão o poder da totalidade do fenômeno, quer -do conhecimento, quer da explicação cientí­fica de tudo o que surge no horizonte do conhecimento. Quanto ;"tquilo que ainda possa constituir problema, pa.ra além da neces­~idade humana de conhec-er e de explicar, a ciência, que no momenlo já dispõe de certa aquisição de conhecimento e de explicação, está em condições de dar-lhe mais cedo ou mais !arde, uma resposta satisfatória. E a razão é a seguinte: o espírito científico traz dentro de si, como que por definição tia ciência, de seu recurso e de seu propósito específico, a espe­rança invencível de seu êxito. Aquilo que a ciência reivindica tle mocdo exclusivo, é o fenômeno. Mas ela reinvidica todo o fenômeno. Para além do fenômeno, nada existe, senio outros fenômenos: Nessas condições, ·não há outra coisa para conhe­cer q~:~e não seja aquilo que a ciência ou já conhece ou, en"lão.

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é cham:ada a conhecer. E isso, em virtude de uma indefinida progressão e ue uma infinda capitalização do:s conhecimen~ tos.

Üllltra marca distintiva da emergência do cienltificismo, airida no século XIX, pode ser encontrada na distinção introduzida por Kant entre natureza e história. No século XIX, essa distin. ção foi substituída, na filosofia vulgar, pelas clássicas distin~ ções entre corpo e alma, físico e moral, ou matéria e espírito. A ob!a de W. Dilthey contribuiu enormemente .IJ<tra a popula. rização da oposição entre esses dois conceit~: natureza e his~ tória. Essa oposição tornou-se tanto mais importante quanto foi tomada como equivalente da oposição entre necessidade e liber­dade. Do ponto de vista epistemológico, esse dualismo, repleto de conseqüências, gerou du.as ·tendências ap~rentemente anta~

. gônicas, porque assentadas sobre o mesmo pano ·de fundo posi­tivista: o naturalismo e o historicismo, cada um sendo portador de pressupostos filosóficos inegáveis, de pré-concepções valo­rativas inconfessadas e, inclusive, de preconceitos religiosos. A nosso ver, foi ·a corrente naturalista que mais influenciou a ati~ tude cientificista e que lhe forneceu os mais fortes argumentos para vir a impor~se, posteriormenTe, sem dar chance às pos­sibilidades de uma refutação. Por isso, daremos apenas algumas indicações sobre o naturalismo, deixando de lado o exame do historidsmo. -

Não podemos_ ver no conceito de "naturalismo" uma noçãu unívoca. Entre seus vários sentidos, destacaremos dois: o filo. sófico e o epistemológico. Do ponto de vista filosófico, o "natu­ralismo'' se apresenta, antes de tudo, como doutrina que exclui por completo toda e qualquer referência a um saber de ordem "espiritual", vale dizer, toda ingerência do sobrenatural ou do transcendente na interpretação dos fenômenos naturais. Do ponto de vista epistemológico, o "naturalismo" designa a teoria do conhecimento que nega . radicalmente, por uma questão de princípio, a especificidade das ciências humanas e a validade de seus conhecimentos, sob c pretexto de que o único modelo de ciência passível de ser aceito como verdadeiro, deve ser o das ciências naturais. As outras disciplinas só poderão ter al­gum valor científico e desenvolver~se, se, e somente se, adota-

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·ru 05 métodos e os procedimentos que já demonstraram sua ~fi.:ácia no domínio das ciências psicoquímicas.

Convém salientarmos que, embora o naturalismo radical t~nha perdido bastante de sua credibilidade, mesmo entre mui-( ,, cientistas de mentalidade positivista, por causa de seu 5im­~.

r! i5n1o filosófico, isso não quer dizer que tenha deixado de ~xcrcer grande influência e de orientar, de modo mais ou me­m.>s implícito, várias teorias das ciências humanas. Dois exem­l'll1s: a) o primeiro é o do-marxismo vulgar, cuja tendência ~ , 0 n;iderar o espírito como um simples reflexo da matéria; c isso, baseado nesta frase de Marx: "A totalidade, tal como ela aparece no espírito, como um todo pensado, é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo da única ma­neira possível, maneira que difere da apropriação deste mundo pd a arte, pela religião ou pelo espírito prático. O sujeito real -.ubsiste, tanto depois quanto antes, em sua autonomia fora do espírito"; b) o segundo, pode muito bem ser ilustrado pela psicologia behaviorista de Skinner, para quem não há diferença ~:ssencial (sic) entre os gatos, os ratos, os macacos e o homem, -cnáo que o homem ainda não foi bem estudado, devido aos preconceitos entorpecedilres da introspecção.

Não é fácil uma caracterização sucinta do_ naturalismo. Todavia, podemos indic;ar algumas de suas notas distintivas :

a. o naturalismo considera que as ciências da natureza constituem a base sólida e insuspeita de todo e qual quer conhecimento objetivo, quer dizer, somente elas detêm o modelo dos conhecimentos verdadeiros, pois são as únicas a poderem estabelecer as normas e os cãnones de toda cientificidade;

b . identifica todos os objetos de conhecimento numa indi­ferença axiológica total. sem levar em conta as par­ticularidades individuais; conseqüentemente, oü as criações e os produtos da atividade humana se redu­zem às determinações materiais ou técnicas, ou não terão nenhum valor cognitivo;

c. considera que as ciências humanas permanecerão cons~ tantemente num estado de imaturidade epistemoló~ gica, enquanto não se curvarem decidi~amente aos

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. critérios de cientificidade propostos pelas ciências na. turaís;

d. encara o pensamento filosófico como a etapa ultra. passada de uma-ciência imatura, porque, dentre todas as atividades humanas, devemos ver na atividade científica o critério único de verdade.

Evidentemente, os naturalistas não se alinham necessaria. mente no interior de um pensamento unitário. Distribuen.-~e em várias categorias: a) há os que se dão· um fundamento filosófico, quase sempre o materialismo, concebido de modo mecanicista, dialético, organicista ou simplesmente utilitarjsta; b) há os que se dão por modelo as ciências naturais em seu conjunto, ou, então, uma disciplina particular, dentre as ciên­cias naturais: física, biologia, fisiologia, etc., ou a psicologia, concebida c.omo ciência natural~ c) há os que tomam por ponto de partida uma teoria ou um conceito das ciências natutaiS: princípio do determinismo, conceito de Jei natural, conceito de meio, teoria energética, etc.; d) há os que se contentam em aplicar de modo mais ou menos pragmático, os métodos das ciências naturais, especialmente os métodos experimentais, sem ~e preocuparem com nenhuma justificação epistemológica ou filosófica.

Ora, segundo os naturalistas, ~a única epistemõlogia - deverá presidir à constituição das ciências humanas: mais com­

plexas que as cíênclãs naturais, devem tomar-lhes de emprés. timo os métodos para poderem ter assegurados seus resultados. Ademais, uma ciência digna desse nome, ou será experimental, ou não será científica. E esse é o estado de espírito mais difun­dido entre os cientistas do fim do séc'llW XIX. E esse estado de espírito. mesmo informulado, é mnito mais tirânico do que as próprias doutrinas. Concebida como "mestra"- de toda ver­dade, a ciência é a benfeitora número um da humanidade, recla­mando para si as direções materia1, espiritual e moral das sociedades. Somente ela pode fornecer as bases de doutrinas livremente consentidas pelos cidadãos do futuro. Ela domina todo, e nenhum homem, nenhuma instituição, poderão ter uma autoridade duradoura, se não se conformarem a seus ensina• mentos.

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Nessas condições, o naturálismo leva fatalmente a uma ~i tuação paradoxal: não somente tende a governar as ciências humanas, mas também tenta substituir-se a elas, tanto para ('xp!icar quanto para dirigir normativamente as atividades hu­manas. No dizer de G. Gusdorf, "parece que as ciências da na­tureza se tornaram, de direito, em ciências_ sociais ou, pelo menos, fazem autoridade no domínio social: esse deve, tanto l1uanto possível, imitar as estruturas e a conformação das dis­çiplinas na ordem físico-química e biológica. Em outras palavras, 3 certeza científica se basta a si mesma; ela estende mesmo sua jurisdição a domínios que ainda não lhe per.tencem; mas é feito um grande esforço para que sejam reduzidos, dentro em pouco, à obediência às normas que prevalecem nas ciências exatas ( ... ) A içléia de ciência do homem cede, pois, o lugar à esperança de uma ciência sem o homem, de uma ciência que não tem mais necessidade do homem e que o perde no meio do caminho, afogado na massa do real, não podendo ser mais distinguido por ninguém" (lntroduction aux sciences humaines, 1974).

2. Cientificismp contemporâneo e seus limites

Esse foi o caminho que conduziu,-do positivismo de La­marck e de Comte, ao cientifismo que acabamos de evocar. Segundo Lalande, o termo "cientificis.mo" teria sido criado no início do século XX por te Dantec, um dos vulgarizadores fran­ceses do materialismo biológico. O cientificismo surge como que para decretar o fim de toda filosofia, pois o discurso científico seria capaz, por si só, de enunciar todas as verdades. A ciência, afirma le Dantec, "não guarda traço algum de sua origem humaoa: ela tem, pense o que quiser a maioria de nossos con­temporâneos, um valor absoluto. Somente ela possui esse va­lor. t=: por isso que me proclamo cieotificista" (citado por La­lande, Vocabulaire de philosophie, verbete scientisme). Se, para Comte, a filosofia podia ser uma espécie de consciência da ciência, uma espécie de segunda leitura e de estabelecimento das aquisições do saber, para o cientificismo, só pode haver uma ciência· sem consciência, quer dizer, uma ciência capaz de

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absorver a p-rópria consciênci.a. tornando-a completamente inú. til. Podemos dizer que, em seu estado bruto, a ciência é capaz de fornecer certezas definitivas sobre uma realidade que não tem necessidade de ser considerada como uma realidade hu~ mana.

Ora, após a crise de incerteza e de_ conflitos epistemoló. gicos por que passou o cientificismo, no início de nosso século, . vemos organizar-se, em nossos dias, fundado nas bases epis. temológicas fornecidas pela teoria kantiana do conhecimento científico, um novo tipo de cientificismo, muito mais radical e poderoso que o precedente. Sua inspiração específica comporta uma pluralidade de dimensões. Sumariamente, podemos enume­rar as principais, aquelas que constituem uma espécie de deno­minador comum. à mentalidade cientificista contemporânea:

a . o . cientificismo atual afirma uma consciência dara e exPlícita da total autonomia intelectual -ªa ciência e do entendimento científico, quer dizer, não podem depender de nenhuma instância racional que seja ex­terior à ciência. Issb vai implicar o domínio autô­nomo da lógica e da linguagem da ciência; ·

b. .afirma a consciência bem mais aguda da continuidade - entre o estado de espontaneidade viva do conheci­

mento humano e o próprio conhecil)!_ento científico: continuidade genética e continuidade de destino, fa­zendo com que a espontaneidade natural do conheci­mento humano pertença, d~ algum modo, à ciência­e ao seu entendiment();

c. defende intrànsigentemente a idéia segundo a qual, à dimensão puramente teórica, o entendimento cientí­fico acrescenta e articula o conjunto de suas djmen­sões de repercussões práticas, técnicas, industriais, culturais, sociológicas, etc. Desse ponto de vista, as­sim como inscreve em si a continuidade com a espon­taneidade natural da vida cognitiva humana, da mes­ma fonna inscreve conscientemente em si uma con .. tinuidade bem menos claramente percebida com toda a organização voluntária da existência e da prática

_ humanas, convertendo-se em entendimento englobatr·

te de toda a vida; ademais, ao refletir "praxeologi­camente" sobre sua própria realização científica, pre­tende dizer respeito, não somente ao homem de ciência e de pesquisa, mas uo próprio homem consu­midor de ciência, quer dizer, a todo homem;

d . afirma solenemente que só o conhecimento científico é verdadeiro e real: os conhecimentos que não fo­rem expr~ssos quantitativamente ou que não puderem ser formalizados, ou que se mostrarem absolutamente refratários a uma repetição em condições de experiên­cias em laboratórios, não podem ser considerados como tendo validade epistemológica; o conhecimento "verdadeiro", também chamado de "reatt' ou de "ob­jetivo'', deve ser. universal, quer dizer, válido em todo tempo e lugar, independentemente da!; condi­ções sociais e das formas culturais;

e. afírma, ainda. que só será cie.ntíficõ-é, por conseguinte, válido e aceitável o conhecimento capaz de ser ex­presso de modo coerente em termos quantitativos, e ser passível de uma experimentação eni laboratório; em outros termos, a verdade se identifica com o co­nhecimento científico;

f. deixa entender claramente que o ideal da ciência é atingir uma· concepção ·~mecanicista", .. formalista" ou "analítica" da natureza. Em outras palavras: tl"da a realidade, inclusive a experiência e as relações huma­nas, os acontecimentos, as forças sociais e políticas, tudo isso deve ser expresso numa linguagem forma­lizada, em termos de sistemas de partículas elemen­tares. No fundo, o mundo não passa de uma estrutura particular no seio das matemáticas;

g . postula que o conhecimento, quer em seu desenvolvi­mento, quer em sua "transmissão" pelo ensino, deve ser cortado em várias especialidades. Para toda ques­tão referente a um domínio qualquer de conhecimento somente a opinião do expert desse domínio particular merece crédito: para cada setor do conhecimento, só o expert conhece. Por outro lado, somente a ciência e a tecnologia (\Ue (!Qla d~oqe, pod,erão resolver os

problema~ do homem, quaisquer que sejam; e so. mente os acessares técnicos estão habilitados a pan~ cipar das decisões, pois s6 eles "sabem·~; -

h. crê que o conhecimento científico deve fundar-se exclusivamente sobre a Razão. Há uma supremacia da

-Razão e do Intelecto sobre todos os demais asp«t05 da experiência e das capacidades humanas. E o único instrumento particular -da Razão humana, é o métodtJ experimental e dedutivo. Ele teve tantos êxitos e111 certos domínios da investigaçã.o e das realizações hu. manas, que passou a exercer uma função imperialista e, finalmente, a identificar-se com a própria "Razão", rejeitando tudo o que não pode assumir, ao domínio do meramente "irracional", "emocional" , "subjetivO>"' ou "não humano".

Comd se pode notar facilmente, todas essas característi~ do entendimento científico contemporâneo revelam a emergên,. cia de um novo cientificismo~ humanamente muito mais tota~ tário que o do século XIX. Esse cientificismo não somente está constituindo-se com grande força, como também tem a pre. tensão de apropriar-se de todas as estruturas intele-ctuais oa mentais do mundo civilizado. Ele não é apenas um cientificis­mo doutrinário, tentando justificar-se ou -abrir sua doutrina l

- discussão -polêmica, mas um cientificisrno de vida, para todos os homens e não apenas para os "inteleetuais". Trata-se de um cientificismo tácito, afirmando-se sem proclamações explí­citas ou sem declarações de princípios. Contudo, -ele ~stá em ação em todo m.omento, tendo-se mesmo tornado como que o princfpio organizador da existência humana individual e cole· tiva. Trata-se de um cientificismo de vida, cientificismo prd­tico, como que impregnando toda a vida humana e sempre reemergindo, de todos os contornos da problemática hum.ana, como um dos principais recursos intelectuais e praxeológicos, melhor ainda, como o único meio realmente eficaz para. o "tratamento" e o "domínio" da problemática humana. Ele começa a apresentar-se de modo tão "natural", tão "consubs­tanciai" à nossa ciYJliuçJo e à nossa sociedade, que chega mesmo a bloqu~ar ou inibir, com muita força, toda -reflexio

,, 11 toda reinterrogação sobre aquilo que ele poderia ocultar . .. w fazer isso, ele como que obriga, pela própria força de seu .. :~ 1cma vivjdo tacitamente, o silenciamento de todo inconfor· ~üsmo ou sua mais ou menos rápida "acomodação". Estamos Jiantc de um cientificismo praticamente "calculador'' de uma ,l1cicdadc 'autocalculadora", tanto no detalhe quanto no con­junto.

Nãó se pode negar a enorme força anti·revolucionária . J!:sse novo tipo de cientificismo e de seu funcionamento so­cial. O que não quer dizer, absolutamente, que seja estático ~ conservador. Por seu próprio funcionamento, instaura ao mesmo tempo o crescimento desmesurado e a deriva do hu­mano. Num certo sentido, ele se apresenta como a própria rt!volução, que se implanta em escala planetária, com um pa. der impessoal extremamente forte. Evidentemente, no univer­so desse no,vo cientificismo, o destino conferido àquilo que não . pertence propriamente à orilem do entendimento, bem como a todos os meios para se construir um organismo de vida e de expressão, é bem mais precário do que a "sorte'' dada à

. filosofia, no interior do universo intelectual do "primeiro cien· tíficismo". Não somente os "interstícios" do conhecimento científico, no interior dos quais a filosofia podia ainda sobre. viver e movimentar·se, tomaram-se muito mais reduzidos, mas é o próprio organismo tradicional e integrado ddilosofia que p:~ssa por um processo de desmantelamento radical, a ponto de ver-se c.antonadõ numa espécie de cidaãela inútil ou "des­construída". A metafísica é negada. A moral e a política ca· Ja vez. mais são substituídas por uma "praxeologia". A esté. tica é informe. O discurso natural toma·se confuso. A violên­cia crítica parte não se sabe de onde, para ir a lugar nenhum, simplesmente varrendo o que encontra em seu caminho. As violências culturais, intelectuais e verbais, são substitutivos simbólicos de uma espécie de violência impotente para efeti· var-se no nível da materialidade social das infra-estruturas humanas. Eis, entre outros, alguns indícios de um passado cultural em vias de eliminação pelo cientificismo contempo. râneo.

Esse- cie~tificismo se apresenta como sendo capaz de re­solver os problemas epistemoló,gicos -colocados por todos os

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tipos de teorias do conhecimento. Para .tanto, não tem neces. sidade de recorrer a nenhum discurso parti'cular, nem tampou. co a uma autoteorização, pois se apresenta a si mesmo como a forma de existência e de prática humanas. Também não teta necessidade de um ensinamento vindo de fora, pois é do in. terior mesmo da vida que ele se toma "regente" do pensamen. to e "disposição" da inteligência que o indivíduo contrai co111 a vida e com a educação necessária à civilização atual. Con. quistado por ele, o indivíduo pensante pode, no entanto, · dis. tanciar-se dele, nem que seja para reconhecer seu sistema e seu funcionamento. Distanciado do cientificismo, o indivíduo consegue entrever aquilo que pode conduzir o espírito a 1IDI "enclausuramento~• ou a uma "saída". A esse respeito, duas observações se impõem, que apenas indicaremos.

A primeira consiste em reconhecermos que o universo do entendimento científico não é capaz de absorver o dado priva-

. do, consciente e pessoal do indivíduo. Desse dado privado, não há, enquanto tal, ciência no sentido em que há ciência do entendimento. De sorte que o universo do entendimento científico encolll.l'a, por assim dizer, em cada ser humano, \li. vendo pessoalmente sua própria vida interior, uma espkie ·de 'ponto limite", do qual só pode considerar a exterioridade, a objetividade acessível à razão (o conteúdo latente de um so­nho e sua significaç.ão, por exemplo), não podendo assumir as rédeas das decisões pessoais livres nem estar "péssoalmerr te" presente ao ato do vivido. Por natureza, a ciência e seu entendimento são públicos. O valor do entendimento está na· quilo que há de despersonalizado no conhecimento e na ação. E por isso que, não somente pode, como deve haver um con· junto de formações humanas do espírito, não apenas prévias à constituição do entendimento científico e a seu desenvolvi· mento, mas também, por assim dizer, "pós-científicas'', capa· zes de ser o que a ciência não pode ser. E nada pode impedir que as grandes dimensões de uma filosofia, respeitosa do en­tendimento científico, mas livre em relação a ele, ensinem ao homem o desabrochamento positivo de sua capacidade pessoal de agir livremente. _

A segunda consiste em reconhecermos que o entendimen­to científico se faz acompanhar de um fato bastante importan-

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ti!: urna espécie de opacidade crescente e paradoxal do pró­prio enteudi~e~to. Em ~erto sentido, trata-se de uma opaci­dade no propno plano mtelectual: a "era da representação'' m:wifestava-se de modo "claro e distinto", não dissimulando nada além dela mesma; a "era da positividade" é sempre, de um modo ou de outro, o anúncio de uma imensa "nuvem de sombra", na qual mergulha e termina por se perder a lumi­nosidade da inteligência. Trata-se, também, de uma opacidade no nível. da prática científica, forçosamente fragmentada, im­potente para se unificar, quer no plano do conhecimento, quer 110 de sua aplicação ao agir humano. Tanto o reino intelectual quanto a sociedade humana do entendimento científico torna­ram-se obscuros a si mesmos, impenetráveis ao olhar çomo um meio que, de transparente que era, se tornou opaco e, de mo­do cada vez mais espesso, difunde caoticamente. sua luz, vindo chocar-se contra inumeráveis pequenos obstáculos "molecnla-res''.

A essa opacidade, para a inteligência humana, segue o dinamismo crescente, em escala humana, da ação do entendi­mento, numa espécie de espontaneidade revolucionária que ten­ta integrar de modo incontrolável seu próprio impulso. Torna­se cada vez mais evidente que essa modalidade de crescimen­to do universo humano da -ciência é repleta de inconvenientes, de sérios riscos, provocando profundas inquietações. Donde a emergência, no próprio interior da .consciência científica, de mal-estares mais ou menos angustiantes e de movimentos de reações críticas da própria ciência e de seus atuais desenvol­vimentos. A própria natureza desse duplo fenômeno de opa­cidade a si e de submissão impotente a seu-próprio cresci­mento, que caracteriza o entendimento científico atual e seu universo humano, obriga·nos a uma reflexão e a uma tomada de posição. Não vamos analisar aqui os vários movimentos de cientistas que já compreenderam as ambigüidades do papel que desempenham ou são forçadOs a desempenhar, dentro dessa mentalidade cientificista. Eles desejam construir uma ci2ncia critica, isto é, uma ciência responsável, consciente de seu pa­pel real e preocupada em controlar suas próprias atividades dentro da sociedade. Talvez isso seja uma utopia,. pois o pro­blema é político; essa utopia, porém, não é desprovida de sig-

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nificação liêiU de intcrc:.:>~. E. para terminar, fnçamos algumas considerações sobre outros suportes do cientificismo, mais pro. priamente ideológicos do que epistemológicos.

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1. Como vimos, o cientificismo atual está ancorado na eficácia e no prestígio do método experimental e de. dutivo. Há quatro séculos esse método vem progres. sivamente re~elando sucessos espetaculares. Não se pode negar que ele aumenta incessantemente seu im­pacto sob a vida 'cotidiana de cada um e sobre a vida social em geral. Talvez somente hoje seu pres­tígio comece a declinar. Todos sabemos que, atra­vés de um processo de "anexação imperialista'', a ciência criou sua ideologia própria, passando a ter as ·várias características de uma nova religião. :e a essa "religião'! que chamamos de cienti.ficismo. Seu _ po~er de fascínio sobre as massas humanas, deve­se ao prestígio da ciência, com seus êxitos inegáveis e retumbantes.

2 . O cientificismo está profundamente arraigado, hoje, nas mentalidades. Podemos até dizer que ele suplan­tou o prestígio das antigas religiões. Ele se insinua ~ penetra nos sistemas educacionais e "controla" o pensamento universitário. O homem comum, que só conhece de modo grosseiro alguns dos resultados da ciência, quase nada compreende daquilo que realmente se passa no reino da ciência. Essa igoo· rância vem sendo perpetuada através do sistema de ensino das ciências. Na verdade, o ensino das ciên­cias é muito mais um ensino dogmático, como pre~ vira e ordenara Comte, que uma introdução e pre­paraçlo à pesquisa. Para quem tem mentalidade cientificista, a ciência é ensinada como se fosse uma "verdade revelada". Por isso, o poder da palavra "ciência", ·sobre a mentalidade do grande público, ~ de essência quase mística e, certamente, irracio­nal. Para o comum dos mortais, a ciência se apre­senta como uma espécie de magia negra, sua auto·

ridade sendo ao me5mo tempo indiscutível e incom­preensível.

3. O cientificismo. ao apn:sentar-!>c com esse caráter meio "religioso", bastante irracional e emocional em suas motivações, tem uma característica que lhe é bastante peculiar:· a intolerância relativamente a to­do outro saber que não seja o da ciência, da forma como esta deve ser concebida por seus.. partidários. Essa intolerância chega ao ponto de excluir do do­mínio do saber todo conhecimento que não se ba­sear única e exclusivamente na Razão científica.

4 . Se o cientificismo pode ser comparado a uma reli­gião, seus Sumos Sacerdotes atuais são os próprios cientistas, num sentido lato ou, se preferirmos, os tec­nólogos, os tecnocratas e os experts. Somente eles podem entrar no "Santuário" sagrado do saber, e revelá-lo, numa linguagem cifrada, técnica, meio esotérica, aos não-iniciados. Eles como que estão imbuídos desse papel de detentores exclusivos do conhecimento, tanto mais que se situam no mais alto degrau da hierarquia científica. Reagirão pron­tamente a todo e qualquer ataque a essa "religião" ou a um de seus dogmas. Quase sempre, essa rea­ção é profttndamente emocional, sobretudo quando se trata de contrà-atacar aqueles que criticam o con­forto de suas competências tecnológicas ou tecno­cráticas.

5 . O cientificismo contemporâneo confere aos experts uma espécie de poder intelectual cujo efeito, pare­cc-nos, 6 espiritual e intelectualmente estropiante, pois os afasta sempre mais do convívio dos seres vivos, para reduzi-los a um simples mecanismo ce­rebral, mais ou menos cibernetizados, à medida que se tornam cada vez mais especializados. Podemos dizer que, mesmo sobre os experts. o cientificismo prodw: efeitos paralisantes: intercepta o gosto de saber mais, atrofia o engajamento moral e a res­ponsabilidade pessoal em todos os domínios, por­que contribui para cavar o abismo crescente entre

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os três pólos da existência ]1Umana: o pensamento a emoção e a ação. Em termos sócio-políticos, ~ cientificismo justifica a hierarquização rígida da s~ ciedade, e tende a fortalecê-la sempre mais, col~ cando em seu cume uma tecnocracia fortemente hie­rarquizada que tomará as decisões.

6. Na maioria dos países, e sob os mais variados dis-. farces, o cientificismo é tomado como a ideologia mais apta e eficaz para fundar e justificar as "po­líticas nacionais". Enquanto tal, é amplamente uti, lizado para fornecer as justificações e as racionaJi. zações às diversas filosofias do "progresso", do "d~ senvolvimento", vistos exclusivamente como ·progres-

. so e desenvolvimento científicos e técnicos. E é jus­- tamente a utilização desse cientificismo que consti·

_tu,i uma das ·forças motrizes mais importantes para dinamizar essa outta "religião" da produção cres­cente e do continuo · crescimento por si mesmos. Es­sa corrida desenfre~da ao aumento da produtivida­de e esse crescimento por vezes insensato dos bens, engendraram a crise ecológica que tanto nos inquie­ta hoje em dia. E essa crise está apenas em seu co­meço. O cientificismo, que foi uma das forças de­cisivas para gerar essa crise, parece revelar-se com­pletamente incapaz de superá-la. Não se trata de afinnar algo que seja capaz de rebaixar a ciência, o que . seria, no mínimo, preconceito e obscurantis4

... mo. Trata-se de reconhecer que a ciência não dis­põe de recursos para resolver, por si mesma, as crises que ela própria gerou. Na sociedade da bom­ba atômica, do desperdício, da poluição, da tecno-. cracia, dos mass media e dos tranqüilizantes, os sin­tomas da crise geral e das crises setoriais multipli­cam-se dia a dia. Não se trata de evocar visões apo­calípticas, mas de constatar que provavelmente nos aproximamos de um limiar perigoso. Talvez um áos objetivos prioritários a ser empreendido, seja o de dominar, pela reflexão e pela ação sócio-política, o

·próprio dinamismo da sociedàde científica. Nlío se

trata apenas de aspirarmos ao pmgresso, mas de uos protegennos contra a barbárie!

Uma crítica aos fundamentos epistemológicos do cientifi~ cismo e a seus suportes ideológicos significa colocar em ques· to o próprio conceito de ciência. A concepção que dela se faz 0 cientificismo está apoiada em dois mitos: a) o da ciência conduzindo neces~ariamente ao progresso; b) o da ciência pu­ra. Durante muito tempo, o primeiro mito foi aceito como uma ~spécie de dogma. Em nossos dias, bastante atenuado, ele ser· ve de argumento para o angariamento de recursos financeí· ros: a ciência é julgada segundo o valor social de seus resul· tados. O segundo mito, por sua vez, concebe a ciência como seu- próprio fim, embora possa prestar s~rviços relevantes. To· davia, o mito da "ciência pura" repousa no postulado segun· do o qual a procur.S! _do "conhecimento" ou da ••verdade" é algo bom em si, não possuindo, intrinsecamente, qualquer sig­nificação moral ou política. :B nesse sentido que a ciência e a tecnologia devem ser consideradas como atividades ideolo­gicamente neutras, progredindo apenas segundo sua lógica in· terna. A direção correta, bem- como a rapidez desse progres­so, podem ser influenciadas por fatores externos (de ordem so~ cial ou econômica), mas a natureza "objetiva" do conteúdo da ciência e da tecnologia não poderá ser contestada. A ciên·_ cia e a tecnologia são neutras. Seu valor ideológico vem ape~ nas da utilizaÇão que delas for feita.

Essa é a posição adotada pelos cientificistas conteropo~ râneos relativamente à sua concepção da ciência. Ora, segun~ do D. Dickson ("·Les nouvelles tendances de la science", Eco­nomie et Humanisme, 212, 1973), a grande desvantagem des­sa posição está no fato de não levar em conta que, em nossos dias~ a ciência está integrada à ideologia da industrialização. E a conseqüência direta de tal posição consiste em interpre­tar o desenvolvimento social, especialmente o papel desem­penhado pela ciência e pela tecnologia, "em termos de inter­disciplillaridade funcional entre a mudança tecnológica (ou inovação) e o desenvolvimento econômico. Em outras pala· vras, num momento dado, as inovações tecnológicas que são absorvidas pela máqwna econômica e social, são as que podem

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ser consideradas como adaptadas à:; condições economtcas e sociais predominantes, aumentando a eficácia dos processos produtivos; inversamente, as condições econômicas e sociais encorajam certo~ tipos de inovação tecnológica. O desenvolvi­mento social aparece como o resultado desse processo dialéti­co". Ora, em nossa civilização, o cientificismo é uma ideolo­gia fazendo parte da ideologia global que considera a ciência e a tecnologia como atividades livres, e que utiliza e·ssa pre­tensa Hberdade para ocultar as forças sociais e políticas. En­quanto tal, ele é a ideologia da industrialização, que admite uma relação de equivalência entre "desenvolvimento", "indus­trialização" e "mordernização". E ela é utilizada para legiti­mar não só o desenvolvimento dos meios de produção no sen-· tido estrito, mas também toda a estrutura burocrática que· os · cerca, inclusive as técnicas de planificação sociaL ·-

Outra copseqüência direta da- posição cientificista- consis- . te em revigorar a ideologia te::nocrática através da "vulgariza­ção científica'·. Ora, o paradoxo entre a verdade "cultural" e a verdade "científica" parece co.odenar a "vulgarização" a uma ambigüidade. Sem dúvida, a intenção de transmitir o saber é legítima e corresponde a uma necessidade cultural. Contudo, devemos interrogar-nos sobre a '~ôperação" real da partilha do saber. Muitas vezes ela leva a uma mistificação cultural, so­bretudo quando se reduz a um mero "efeito de vitrine". En­quanto "vitrine da ciência". a vulgarização- contnbui para eri· gir culturalmente a ciência em mito. A função efetiva da vul­garização situa-se no contexto cada vez mais tecnocrático dt nossa sociedade. Por tecnocracia, dcwemos entender ao mesmo tempo: a) a tecnomuura, ou ciência realizada em técnica; b) a tecnoestrutura, ou o conjunto complexo de "tecnocratas" ge­rindo o sistema econômico a título de sua competência espe­cializada. Assim, a vulgarização científica, além de represen­tar uma exigência de partilha real do saber, pode muito bem ser utilizada para fazer os "não-iniciados, a aceitarem como "natural", "racional" e "inelutável" tanto o fenômeno tecno­crático, quanto o poder incontrolado da tecnoestrutura. Isso não coloca em dúvida as intenções dos "vulgarizadores"! nem infirma, em absoluto, a necessidade de as ciências se toma­r~m presentes culturalmente em · nossa sociedade. O que que-

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reme~ afirmar é que, em nos~:c cont~ xh:: atua!. a função real da vulgarização n:to é tão gratuita e inocente como se pode· ría pensar.

A tgumas conclusões

1. O cientificismo, tal como o descrevemos, per{ence me­nos à história da filosofia que à história das idéias. Jamais se revelou como uma doutrina explícita, mas como uma atitude "espiritual" comum a várias doutrinas. Ele se formou, depois do movimento enciclopedista do século XVIII, como uma atitude de otimismo e de confiança cada vez mais ilimitadas nos "poderes" da ciência. A partir de Kant, com efeito, os fi­lósofos tendem a apresentar seus "sistemas" como uma ciên­cia, ·quer porque acreditam ter atingido o rigor demonstrativo e a-fidelidade ao real, quer porque desejam que seus produ-­tos intelectuais venham acompanhados de um emblema de credibilidade. Isso é verdade de Fichte, de Comte, ·de Hegel, de Marx e, mesmo, de Husserl. Todavia, no fim do século XIX, forma-se um movimento filosófico de crítica à ciência, encabeçado sobretudo por Bergson, Nietzsche e Merleau-Pon-ty. Foi um dos primeiros movimentos a lançar dúvidas no oti-

·-mismo e na confiança· depositadas na ciência. O _que .pretende­mos mostrar, é que essas duas tradições prolongaram-se até os dias de hoje. Entre todos os transtornos culturais d~ nos­sa civilização, podemos constatar um que parece evidente: em tomo da ciência, tudo está em vias . de agoojzar, enquanto ela mant6m sua estabilidade e dá prosseguimento a seu dinamis­mo. Doravante, não se pode ignorar que é praticamente im­possível viver sem a ciência; tampouco pensar independente­mente de suas normas. Por outro lado, é sabido que o modo como ela é praticada, explorada, conduzida, parece levar à morte. Não se pode viver ou pensar sem ela, e é possível que será a responsável por nossa morte coletiva. Convertida no fato sócio-cultural total, a ciência -tomou-se o lugar de nossas esperanças e de nossas angústias. 2. O otimismo e a confiança na ciência ainda perduram ho­je. NÇ~ in.íçiÇ> -do s~culo XIX. o saber científico apresentava-

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se como .um sistema coerente e bem estabelecido,· relativamen. te simpies, em que o bom senso funcionava a partir de prin­cípios universais, bastante fiel ao real para ser utilizado como um conjunto de estratégias adaptadas à prática. Os contempo­râneos de Laplace, sobretudo Comte, estavam convictos de que esse monumento esgotava possas exigências de rigor e de precisão, que ele fornec ia soluções e respostas à altura exata da amplitude de nossas necessidades. Restava apenªs tornar científico o estudo dos grupos humanos e da história política. -E a aventura da humanidade terminaria, depois de muitos so­nhos e lutas, no paraíso da Razão. Podia-se conceber um pro­gresso indefinido das técnicas. Estava próxima a compreensão exaustiva do real. E as soluções práticas para os problemas concretos seriam encontradas quando os problemas fossem bem- colocados. O real é racional. A humanidade só se colO: ca problemas. que pode resolver. A ciência elimina a dúvida, · e promete a ~elicidade. . . · 3 . De fato, é impressionante o balanço das promessas cum. pridas, das incertezas eliminadas e dos problemas resolvidos pela ciência. Contudo, coloca-se hoje em dúvida a natureza e a final idade das performances científicas. Esse questiona­mento, porém, em seu início, apesar de sua lucidez, fornece más razões: a nostalgia de uma natureza imaginária, a Jasti­mação mftica de um paraíso perdido e o desespero face aos poderes que desaparecem. Ora, · quando toda ideologia é subs­tituída por uma doutrina, esta se converte em mitologia. Dois mitos opostos entram em conflito: o dos cientificistas e o dos anticientificistas, isto é, dos ideólogos do tudo ou do nada. Nenhum dos dois fala da ciência diretamente; cobiçam o po­der que ela proporciona, não o poder sobre as coisas, mas o poder sobre os homens. Isso nos leva a outra conclusão. 4 . A apregoada "dominação total" da natureza pela ciên· cia não passa de um engodo. As previsões históricas do cien· tificismo são altamente improváveis. Hoje em dia, essas pre­visões são mais pessimistas que otimistas. Ninguém nega a existência de um progresso, de um crescimentó ou de inova­ções. O que se contesta é que suas conseqüências sejam nc· cessariamente. contribuições efetivas para o bem do homem. O dogma da "ciência conduzindo à felicidade do gêncm> h\1•

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1113110•· parece não ter mais sentido. Por ·.outro lado, asslS11DlOS

3 uma dissolução do horizonte de compreensão exaustiva das !:l1isas, quer se trate do formal, do real, do ser vivo ou do

1~cnológico. Esse horizonte esbarra com limites intransponí­,·cis. As ciências rigorosas tomam consciência de seus limites a parti: d7 GOdef, as ciências exatas. ~ p~rtir de Heisenberg, e :1s cienctas humanas começam a descobnr os seus. Por exem­plo, diante de uma máqqina complexa, o que ocorre? Sabe­mos fabricá-la, conhecemos suas performances, mas geralmen­lc não sabemos dizer como ela funciona em detalhe. A domi­nação total é um mito. O real não é mais o racional. Hoje, colocamos problemas que não podemos resolver. A interven­ção geral~ teórica e prática, .aescobre sua própria limitação. Assrm, os dois prognósticos, histórico e racional, feitos pelo cien·tificismo, parecem seriamente ameaçados. 5. Temos ainda o direito de . crer na "ciência universal"? Tudo- nos leva a crer que não. O mundo está dramaticamente dividido em duas partes: de um lado, o dos Cientistas, do ou­lro, o mundo real e vivido de cada um de nós. Esta divisão nos é familiar, embora incompreensível. Ela favorece a emer­gência de uma mitologia. Conseguimos optimizar uma ação, mas .essa ação corre o risco de converter-se em passividade. Por · outro lado, esta divisão se dá entre as disciplinas, cada uma falando um dialeto fechado às outras. A esperança de universalidade-diminui dia a dia. A iQéia· de uma língua co­mum a todas as ciências está em franco retrocesso. Evidenta­mente, cresce a informação, toqta-se exponencial a acumula­ção dos conhecimentos, mas carecemos ainda da primeira con­díção âe uma síntese. Põdemos admitir que seja possível a do­minação do real e de nossos artefatos. Mas não é seguro que possamos dominar nosso melhor meio de dominação: a pró­pria ciência. No entanto, ou marchamos para uma síntese, ou nossos . instrumentos se converterão num destino. Porque o problema mais urgente, colocado pela ciência, é o da própria ciência. Donde a importância de se repensar sua distribuiçio, seus meios e seus objetivos, bem como sua relação com a so­ciedade. Foi tentando levar a efeito uma crítica ao cientificis­mo contemporâneo, que se criou, nos últimos anos, certos mo­vi~entos. entr~ I';)S quais, Science for the People (EUA),

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Lassítoc. (S;!éd a) , British Scciety for Sc~ial Responsâbility it Science (Inglaterra) e Survivre et Vivre (Fratiça). Todos es. ses movimentos tentam reavaliar as conseqüências das pesqui. sas científicas sobre o futuro da humanidade. Seria isso possí.

_ vel? Semelhante idéia pode parecer uma utopia. Todavia, se a resposta pode prestar-se a discussão, a questão é real e ur. gente: é preferível o tatear da utopia à inútil lamentação do paraíso perdido! 6. Convém salientarmos que a crítica se dirige, não à ciên­cia em si mesma, mas ao cientificismo. Em resumo, consiste: a) em negar que os problemas que se colocam à humanidade, serão todos resolvidos pelo progresso científico-técnico; b} em negar que o processo de desenvolvimento técRico-cientffico seja independente dos sistemas político, cultural e social; c) em negar que exista uma solução ótima, e somente uma, para todos os pr.oblemas, e que. _compete aos experts determinar es.. sa solt~ção; /d) em .negar que o mundo real seja unicamente o dos fenômenos quantificáveis, pois isso levaria a um materia­lismo simplista~ negando a mais nobre motivação da ciência: a procura do conhecimento; e) el!L_negar que o conhecimento científico seja neutro e independente do sujeito ·observador; f) finalmente, last but not least, em colocar em questão a pos­sibilidade do conll.ecimento científico do mundo dos homens poder tomar esse mundo mais humano; em outras palavras, em duvidar que o valor exemplar das ciências naturais possa­dar uma resposta Õbjetiva às. questões que se coloca sobre a sociedade, sobre sua natureza profunda e sobre sua transfor­mação. Porque o poder que o homem e,;erce, ao agir sobre a natureza e sobre ele mesmo, é de natureza diferente. A na­tureza é objeto para o homem. O homem na sociedade, é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Se é apenas objeto para o es­tudo das sociedades primitivas, é ao mesmo tempo sujeito e objeto em nossa sociedade. Eis o problema. ·

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IV

A ÉTICA DO -coNHECIMENTO OBJETIVO

A ciência, enquanto produto humano, es­tá jotegrada no processo social e político to­tal. Os cientistas, por uma que!tão de princí­pio e de método, recusam-se a ditar normas à sociedade, pois aspiram a ser supracultu­rais. No entanto, intervêm cada vez mais na orientação efetiva da sociedade. Daí o par.a­doxo: influenciam a moral, mas de modo niio moral. ·

Numa entrevista recente sobre "a ciência como valor su­premo do homem", Jacques Monod. prêmio Nobel em biolo­gia molecular, reconhece que a ciência atual aliena o homem. Essa alienação pode ser explicada pela impossibilidade de atin­gir cientificamente uma "ética do conhecimento". Trata-se de uma_alienação facilmente encontrada em certas correntes filo­sóficas, literárias ou artísticas de nossa época. Também pode ser identificada em várias obras neo-esotéricas, que divulgam conhecimentos onde se pode notar uma tremenda mistura de magia, de pseudociência e · de charlatanismo.

A primeira razão dessa alienação reside no fato de a ciên­cia ser extremamente difícil. O homem comum depara-se dia­riamente com técnicas oriundas da "ciência fundamental,. e que, basicamente, não é capaz de compreender. Essa ignorân­cia gera um estado de profunda humilhação. Humilhação que leva o homem atual a apelar para todos os tipos de compen­sações de ordem '"mistérica", "mística" ou esotérica. A segun­da razão está no fato de a ciência objetiva depor o lwmem de seu lugar privilegiado no mundo. No universo, ele é hoje um simples "estrangeiro", quase um acidente. As teonas cien­tíficas provam que o lugar do homem, no mundo, é apenas infinitesimal, e que nem mesmo é necessário, mas por acaso. Enfim, há uma razão mais inquietante: o profundo hiato en­tre o conbecunento objetivo e as teorias dos valores. Por de-

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finição, a ciência deve ignorar os valores. Não podendo co. nhecê· los, é incapaz de fundar uma ética objetiva.

Assim, para a quase totalidade dos problemas do hometn atual, os cientistas não podem propor soluções objetivas, quer dizer, fundadas na ciência. Não obstante, o simples falo de fazer ciência, pressupõe uma êtica, pelo- menos uma "ascese da objetividade". A ciência não funda um~ ética, mas é fun. dada por uma ética. Nenhum cientista chega a um saber ob. jetivo sem adotar, previamente, uma ética do conhecimento, sobre a qual deve fundar-se. O critério ou valor essencial des. sa ética não é o homem, mas o próprio conhecimento objeti­vo. E segundo Monod, foi a ética da felicidade, do conforto e do êxito individuais, que criou 1r ciência atual e continua fundando todos os seus progressos.· Por outro lado, a socie­dade atual, completamente impregnada de ciência, está ba~ seada em valçres arruinados, não expressos ou formulados nu­ma vaga büsc:;a da felicidade imediata. Donde a urgência de se fundar uma ética à altura dp homem de hoje. Nenhuma, porém, poderá ter êxito, se não for capaz de convencer o ho­mem atual da existência de "algo" mais importante do que· . ele mesmo. E como não se pode fundar uma ética objetiva, surge o impasse. Se o cientista escolheu fazer ciência, fói por­que quis, porque aderiu a um sistema de valores e, por con­seguinte, a uma ética. Ora, a concepção do mundo que nos .fQrnece a ciência atual, é-vazia de toda ética. Mas a procura de uma ética constitui uma ascese, implica um sistema de va- · Jores. Qual é essa ética, criadora de· conhecimento? Monod não dá uma resposta satisfatQ.ria. Reconhece apenas, citando Nietzscbe, que "todas as ciências trabalham, hoje, para des­truir no homem o antigo respeito por si mesmo. . . Elas co­locam seu ideal austero e rude de tranqüilidade estóica a ali­mentar no homem o desprezo de si mesmo, obtido ao preço de tantos esf~rços, apresentando-o como seu 11Jtimo e mais sério título à estima de si mesmo ... " (Aula inaugural no Col­lege de France, 1967). No entanto, resta uma esperança, diz Monod em sua entrevista: .. Um dia, será ensinado nos colé­gios que o valor supremo do homem é provado pelo fato de ele ter conseguido essa incrível ascese de chegar a demonstrar_ a si mesmo que ele não tinha nenhuma importância. O uni-

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verso não foi posto no mundo para nós, mas podemos con­quistá-lo pelo conhecimento. Estamos em vias de conquistá­lo".

.h a partir dessas colocações de Monod que iremos ques­tionar os critérios de objetividade científica e, conseqüentemen­te, a "neutralidade axiológica" dos que pensam fundar seus conhecimentos única e exclusivamente nas demarches internas ao próprio processo de cientificidade. Em outras palavras, ten­taremos mostrar que. a ciência não está tão isenta das conta­minações valorativas ou éticas como pensam os partidários da "neutralidade" científica: a ciência se ocupa apenas dos fatos, por isso é "neutra", podendo ser usOLÚJ para o bem ou para o maL Há, aqui, uma dicotomia estrita entre o mundo dos fa­tos e o "mundo dos valores", entre a "esfera" do conhecimen­to e ·a "esfera" da avaliação. O cientista não é responsável pelo uso que se faz de seus produtos· intelectuais, porque: a) só se ocupa com os fenômenos observáveis; b) visa a conhe­cê-los e explicá-los utilizando um método rigoroso; c) só aban­dona a neutralidade ética qu·ándo estuda os objetos psicosso­ciológicos.

1

Comecemos por apresentar sucintamente a situação atual da ciência e da pesquisa cientificâ. Não é novidade para nin­guém que a ciência se apresenta ou é apresentada, em nos­sos dias, como um saber ao mesmo tempo onipotente e oni­presente. Ela é venerada como uma espécie de divindade. Tão grande é o .fascínio que exerce sobre todos e cada um de nós, que seu caráter por vezes mágico impõe não só respeito e acatamento, mas temor e medo. O grande público a consi­dera como esse conjunto extraordinirio de conhecimentos "pu­ros,. e "aplicados .. , produzidos coletivamente através de mé· todos comprovados, objetivos, rigorosos e universais, opostos aos da filosofia, da arte e da política. Em suas "verdades'' to­do mundo acredita sem discussão. Apesar de sua .. imagem de marca", segundo a qual a ciênda não seria um sistema dog.­mãtico e fechado, mas controvertido e aberto, porque falível

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e capaz de progredir sempre, não se pode negar que suas "verdades" se apresentam com a solidez dos dogmas.

Na prática, a "imagem" da ciência aparece como o fun- -damento da tecnologia. O conceito de tecnocracia não pode­ria significar o ••poder'' ( cracia) de certos homens (os tecno­cratas), se não significasse, antes, o poder da técnica, quer dizer, da ciência realizada. ~ por isso que, apesar de todas as motivações subjetivas dos cientistas, a significação real da ciên- _ cia deve ser buscada, não mais no -saber enquanto tal, "puro" e "desinteressado", mas no poder que o saber científico con­fere. Esse poder é exercido por um triunvirato, formando es­sa espécie de "Santa Aliança" dos tempos. modernos: ciên­cia-técnica-indústria. Não se trata mais de um saber aristocrá­tico, de uma contemplação amorosa e gratuita da verdade, mas de uma ciência tecnicizada, governando esse gigantesco pro~ cesso de produção racionalizado e industrializado. Tudo nos leva a crer qu·e, estando preso às mil solicitações do ter, e es­tando submetido às ast~ias de um controle social sempre mais insidioso, o homem moderrio está em vias de instalar-se no "conforto" que lhe proporciona uma tecnonatura cada dia mais aperfeiçoada. A memória do computador, por exemplo, fornece-lhe todos os dados concernentes à sua identidade, à sua saúde física e mental ou, at6 mesmo, a seu passado ju­diciário.

Estãria ~ ciência convertendo-se numa !le_rrível promessa de uma sociedade--labirinto, ocupando cada vez mais as di­mensões do planeta, onde o passo do homem se torna cada vez mais oscilante? Que esperanças pode ela ainda alimentar? Suas promessas de felicidade não teriam fracassado? 'Tanfo o sonho ingênuo do Iluminismo, quanto a mitologia cientificis­ta que lhe deu prosseguimento, no século XIX, que faziam do progresso indefinido da ciência o incansável motor de nossa felicidade, parece que nos abandonaram. Não se trata de . ne­gar que, pela ciência e por seus produtos técnicos, o mundo tenha mudado. E por vezes, substancialmente. Contudo, a ciên­cia, embriagada com seus próprios b:itos, aliás inegáveis, já começa a inquietar muita gente, sobretudo os próprios cientis­tas. O problema da t~pomabilidade KJCial dos cientistas e dos tknicos torna-se, hoje, uma das questões cruciais de nossa

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~"tlltura. A ciência e a técnica, antes tranqüilas em seu desen­,-olvimento, em seus processos de conhecimento, de domina­ção da natureza, de previsão de novos acontecimentos, etc., constituem, hoje, problema. Até o fun do século passado, nem mesmo os intelectuais mais extremados ousavam contestar ou criticar a ciência, embora criticassem todas as demais institui­ções sociais. Nem mesmo os n iilistas, que fizeram todo uro tra­ba[ho _de demolição dos valores morais, religiosos e filosóficos, tiveram a coragem de colocar em dúvida o valor da ciência. Pelo contrário, achavam que todos os males da humanidade tinham sua raiz profunda na ignorância, e que eles seriam es· tirpados pela ciência: esta, no futuro, seria capaz de resolver rodos os problemas e males humanos.

Ora, em · nossos dias, esse otimismo parece nãe ter mais razão de ser. Muitos cientistas, de forma alguma revoltados nem tampouco niilistas, çomeç~m a· suspeitar que a própria ciênciá, pelo menos em suas condições reais de ela9oração e de uso, pode ser um mal-; e que se torna urgente remediá-lo, antes que seja tarde. Evidentemente, o espírito do Iluminismo d!o século XVIII ainda é bastante forte e contínua vivo na mentalidade de muitos homens de ciência. Uma das correntes mais significativas, que aperfeiçoou esse "espírito", tem por rundamento ideológico a fé quase cega na ciência e em. seus resultados tecnológicos: domínio da natureza.L. riqueza mate-

_rial, organização eficaz da vida social, etc. Mãs isso não im.: pede o surgimento de suspeitas cada v.cz maiores quanto ao número tam~m crescente de conseqüências desastrosas do de­senvolvimento científico-técnico: degradação das relações in­dliviauáis, utilização das pesquisas científicas para fins destru­tivos, possibilidade crescente de manipulação dos indivíduos, utilização maciça dos cientistas, de seus métodos e de seus resultados para fins repressivos, obsessão patológica pelo con­sumo, esgotamento progressivo dos recursos naturais, poluição, etc.

Diante dessa nova situação, certos cientistas começam a ''aC<lrdar''. Por exemplo, diante de um acontecimento _de sig­nificaçio em escala planetária, cuja causa pode ser atnõufda à "alienação" dos cientistas, estes podem tomar dois tipos de atitude: a) ou aceitam essa alienação como algo natural, e

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continuam a éstabelecer uma dicotomia entre a responsabili­dade de criação e a da utilização de seu s~ber; b ) ou tentam reagir contra essa alienação, isto é, contra seu estado de "ino­centes" produtores de informação, inteiramente despreocupa­dos com os objetivos fundamentais de suas pesquisas. Nessa segunda hipótese, eles modificam sua concepção sobre a na­tureza de sua tarefa, abandonam a idéia de que a ciência se­ria positiva e neutra, e passam a adotar, em relação a e.la, uma atitude mais crítica e responsável. Essa atitude diz também res­peito ao emprego dos métodos científicos e ao uso que é feito de seus produtos tecnológicos. Numa palavra, esses cientistas passam a preocupar~se com a utilização de suas descobertas para fins não-humanos e meramente extracientíficos.

Aqueles, porém, ql!e adotam a primeira atitude, conti­nuam presos à estreita divisão do trabalho e tentam inocen- · tar-se, argumentando que a objetividade científica nada tem a véf ·com os ·engajamentos pessoais. Para eles, a utilidade da

· ciência é umá simples conseqüência de sua objetividade. Se a sociedade financia a ciência, 6 porque sabe que seus conhe­cimentos produzem bons rendimentos, quando aplicados. Con­tudo, o problema da aplicação escapa ao domínio da ciência. Ele pertence aos técnicos. São estes que empregam o conheci­mento científico para fms práticos~ e co~pete aos políticos a

- responsabilidade da utilização da ciência e da _tecnologia para benefício da humanidade; o que os cientistas podem fazer. é aconselhar os políticos quanto ao modo de fazerem uso racio­nal, eficaz e bom da ciência.

Como podemos notar, os cientistas que se julgam "irres­ponsáveis" pelo uso da ciência, escondem-se por detrás da seguinte idéia: se as pesquisas que empreendem não fossem eticamente neutras e livres de toda e qualquer referência aos sistemas valorativos, elas perderiam seu caráter de saber obje­tivo e se tomariam simples conhecimentos de ordem ideoló­gica. Ademais, muitos cientistas proclamam que não podem ter má consciência pelas "desgraças•• engendradas por seu sa­ber. A situação, declaram. é muito clara: a Ciência, enquanto tal, é a procura metódica e desinteressada de um saber sem­pre mais vasto e mais certo. O físico ou o biólogo, por exem: pio, não devem preocupar-se com as utilizações que poderiam

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ser feitas de seus trabalhos. Essas utilizações não dependem deles, mas do poder político, das iniciativas da indústria, etc. Além do mais, seria extremamente difícil uma previsão das passíveis aplicações. Por outro lado, uma mesma descoberta pode ser utilizada ao mesmo tempo para o bem e para o mal. Em todo caso, não é "a Ciência" a responsável pela l?omba atômica, pelos desfoliantes, etc. Ao construírem os instrumen­tos cje morte, os cientistas o fazem a título de cidadãos, e não como representantes da ''Ciência".

à primeira vista, essa argumentação parece irrefutável. A ciência fornece um saber; esse saber é elaborado tecnicamente de modo a fornecer instrumentos de ação; e os fins a que ser­vem tais meios não dizem respeito aos cientistas! -No entanto, pesquisadores menos otimista~ criticam esse- modo de ver a ciência e denunciam seu caráter idealista. -Enquanto institui­ção, a ciência sofre "a lei do meio ... Para subsistir, tem ne­cessidade de muito dinheiro. Há "secretarias.,- ou "ministérios" que se ocupam dela, e que traçam sua "política". Os cientis­tas dependem de inúmeras escolhas e de numerosas decisões cujo controle lhes escapa. Administrativa e fi nanceiramente, a pesquisa depende de múltiplos organismos oficiais. Ela está mancomunada com a indústria. Boa parte das pesquisas é esti­mulada, por razões que nada têm a ver com o "saber puro". Até mesmo as chamadas "pesquisas fundamentais" são "orien:.. tadas'' para fins extracientíficos.- Nenhum espírito " realista" pode admitir a "pureza" da ciência. Socialmente, a "ciência pura" não passa de ficção. Por detrás da dicotomia ciência/ aplicações, oculta-se ~ idéi_a de que a "Ciência" tem um esta­tuto transcendente relativãinente à sociedade. E la seria intem­poral, estranha às vicissitudes sócio-culturais. Os pesquisadores elaborariam conhecimentos que não pertenceriam a nenhuma época. a nenhum país. Os ci:ntistas devem ser honestos, não podem trapacear com suas experiências e com seus resultados. Todavia. trata-se de uma ética puramente interna, consistindo apenas no respeito às normas em vigor. Só conta a procura da. Verdade. Vista desse ângulo, a ciência seria autônoma e neu­tra: ela se dá suas próprias normas, não havendo deontologia impondo aos pesquisadores deveres para com a sociedade. Es­ta dá sua ajuda às pe~quisas, mas é porque estima que a pro-

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cura da Verdade deve ser empreendida. Isso não compromete o postulado da autonomia e da neutralidade dos cientistas. Em virtude de um contrato implícito, eles têm por missão aumen­tar os conhecimentos. E devem deixar de lado as questõe~ sociais relativas ao objeto de suas pesquisas. O poder político e as demais forçàs sociais não interferem na "Ciência Pura".

Como se explica a persistência, ainda hoje, dessas idéias? Precisamos saber que elas são bem recentes. Até o fim do século passado, uma das funções mais específicas da ciência era justamente a de proporcionar uma avaliação crítica da so­ciedade e da realidade. O critério dessa avaliação estava ba­seado em duas noções filosóficas: a) a primeira era a idéia de ordem natural e de direitos IUJiurais do homem~ b) a segunda era a idéia de progresso, p~rmitindo uma atitude crítica do es­tado em . que se encontravam a economia, a política e o direi­to, justamente em nome da ordem e do progresso. Ademais, essas idéias se.' apresentavam não só como-criticas, mas tam­bém como justificadoras. Assim, a economia capitalista era considerada como a ordem econômica que melhor podia cor­responder à natureza humana, _sertdo capaz de favorecer o mais rápido progresso.

A partir do momento, porém, em que começaram a sur­gir resistências a e~sas idéias, os cientistas, sobretudo sociais, passaram a empreender um esforço -gigantesco para eliminar das ciSncias todo e qualqueijuízo de valor, para reduzir as .pesquisas sociais a uma pura descrição e explicação dos fatos concretos. Os conecitos problemáticos de "ordem natural" e de "progresso" não foram substituídos, até hoje, por outras categorias normativas. ~ o que pode ser ilustrado, por exem­plo, pelo recente positivismo lógico, ainda bem presente e atuante na formação "filosófica" dos cientistas atuais. Com efeito, os seguidores da corrente neo-empirista consideram to­dos os juizos de valor pura e simplesmente como expressões afetivas, desprovidas de toda e qualquer significação cognitiva. A filosofia viu-se reduzida à "filosofia da ciência" ou, mais precisamente, ã. lógica da ciência ou da linguagem científica, perdendo seu papel de instrumento antecipador (heurístico), de critica e de orientação. A ciência passou a ser a única for­ma de saber dotado de sentido: ela é interpretada como o es-

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tudo de certos fenômenos dados, e empmcamente observá­\'eis, possibilitando o estabelecimento de certas regularidades entre os fenômenos e a extrapolação dessa possibilidade a ou­tros tantos fenômenos. Toda avaliação concernente às neces­sidades, aos sentimentos, às normas morais, é tachada de fundamentalmente irracional, desprovida de sentido e devendo ser rejeitada.

Assim, a neutralidade ética da ciência passa a ser consi­derada como fator de progresso. Max Weber afirmava que, ao limitar-se a liberdade da pesquisa e do ensino científico~, ainda pode ser salvo o princípio da neutralidade ética. E esse princípio salvaguarda a homa e a dignidade do cientista, per­mitindo-lhe tomar certa distância relativamente aos objetivos imorais dos meios dirigentes. Nesse sentido, e em semelhante sttuação, a ciência, uma vez livre de todo sistema valorativo, pode assumir um papel desmistificador e tomar-se favorável ao progresso. No entanto, nas sociedades atuais, parece que o principal perigo social não provém tanto dos regimes auto­ritários ou tirânicos, como temia Max Weber, quanto de um vazio espiritual crescente e generalizado. Diante das procta-

- mações do século XIX, de que "Deus morreu" (Nietzsche) e de que "a verdade morreu" (Hilbert), e da última "profecia" do século XX, a de que "o homem está em vias de desapa- . recimento", que é mero produto do acaso, não é n«essário, por ser l!m simples. acident-e no mundo, pergunta-se: como preencher esse vazio? -

Parece que o preenchimento desse vazio está sendo ten­tado por uma fé no poder e no êxito da ciência realizada ( tec­nologia), numa ideologia do consumo, numa obsessão quase patológica pela eficácia dos meios, etc., tudo isso estreitamen­te ligado a um profunda falta de interesse pelo problema da racionalidade e da humanidade dos objetivos. De tanto racio­nalizar os ~. o homem atual torna-se irracional quanto a seus fin.r. Até parece que está construindo uma sociedade on­de ele será livre para fazer -tudo, mas onde não terá na<!a pa­ra fazer; então, ele será livre para pensar, mas nlo terá mais nada para pensar! O que se pode notar é que, nt!sa situaçio histórica ou nesse clima espirituaJ, nio . vemos como o prin­cípio da neutralidade ltica nio possa desempenhar um papel

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profundament~ mistificador de suporte ideológico desse tipo de sociedade. Por sua indiferença relativamente à construção de um "projeto coletivo" para os homens, e por seu ceticismo · em face das transformações verdadeiramente humanas da so-­ciedade, a "ciência neutra" c9ntribui poderosamente para· au. mentar e reforçar não apenas a alienação dos homens em ge. ral, dos cientistas em especial, mas a eficácia alienante dos processos naturais e históricos, no quadro das estruturas só­cio-culturais existentes. Ora, uma sociedade que "diviniza" e privilegia esse tipo de ciência, está privando-se de um grande potencial de consciência crítica. Donde a necessidade de rede­finir os fundamentos epistentol6gícos da ciência. Porque, na prática, ela está penetrada pelas normas, pelos valores e pelas ideologias de seu meio sócio-cultural. E descobrir a importân­cia desses fatores t sumamente importante para ·que os cien­tistas ~e sintam também responsáveis por aquilo que fazem ..

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Várias tentativas vêm sendo realizadas a fim de estabe­lecer um novo fundamento epistemológico para a categoria "ciência·•. Todas elas passam a reconhecer, de um lado, a di­mensão social da prátka científica, e do oütrã; a necessidade

·-de os cientistas tomarem consciência dessa dimensão. O que se postula, portanto, é o desenvolvimento do que já se chama de "epistemologia crítica", cujo objetivo fundamental seria uma atit~e . reflexiva sobre os projetos de pesquisas científicas; ten­do em vista a descoberta, a análise e a crítica das diferentes conseqüências funestas ao homem e à natureza, geradas pela tecnologia em curso. Na ciência, atuam duas forças: uma ex­terna, correspondendo aos objetivos da sociedade, outra inter­na, correspondendo ao desenvolvimento natural da ciência. Se não houver um equilíbrio entre essas forças, o sistema corre o risco de desmoronar. Por isso, as ameaça.s que pesam_ sobre a ciência, tanto as de dentro quanto as de fora, são enormes, porque ela está integrada ao processo social e poHtico. Por isso, os ·problemas, os métodos e os objetos de pesquisa da ciência, quando epistemologicamente criticados, são :susceptí·

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\·eis de fornecer um fundamento prático para uma nova con­cepção do homem, em suas relações consigo mesmo e com a natureza.

Outra tentativa de redefinição do fundamento epistemo­lógico da ciência, pretendendo escapar às tradições reducionis· 1as e analíticas do método científico, a fim de substituí-las por um enfoque coerente e global, tentando tomar consciência da ~-omplexidade da sociedade humana e do meio ambiente na­tural, vai buscar sua inspiração na "ciência concreta" de que fala Lévi-Strauss. Essa "ciência, seria reconhecida nas socie­dades tribais primitivas. Haveria dois modos distintos de pen­~aroento científico, representando dois níveis estratégicos nos quais a natureza é acessível à pesquisa _científica: o primeiro,

- adaptado à percepção e à imaginação; o segundo, afastado delas; o primeiro conesponde ao que Lévi-Strauss chama de "a ciência do concreto'.. por oposição ao segundo, que é o modo abstrato da pesquisa científica e que deu prosseguimento ao primeiro.

O erro dessas tentativas de resolver os problemas da ciên­cia graças a uma nova definição de seus termos de referência reside neste fato : elas supõem que seja possível identificar e separar a ciência como categoria autônoma relativamente ao enquadramento sócio-cultural, e que os problemas sejam sim­plesmente devidos à nlJtUreza dos vínculos entre ciência e- so­ciedade, e à forma de ciência que tais vínculos determinam. Essas idéias são utópicas, pois sua efetivação supõe um sis­tema de relações econômicas e sociais inteiramente diferentes entre os indivíduos e as instituições. No entanto, podem de­sempenhar importante papel. Ao mostrar a natureza relativa da ciência, tal como é praticada nos países capitalistas e so­cialistas, revelam o conteúdo ideológico daquilo que normal-

. mente é considerado como uma atividade neutra. · O próprio conceito de pesquisa cientffica, isento de toda

con-taminação valorativa, já é enganador. Qual a ciência que, em suas pesquisas, deixa de fazer apelo a certos valores e a certas normas éticas? Fazem apelo, pelo menos, à norma ética segundo a qual todo conhecimento d~e ser objetivo. Nas ciên­cias humanas, o uso de valores e de normas é bem mais acen­tuado. Não se trata de saber a que sistema de valores eles per-

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tencem. Alguns valores cognitivos são inerentes ao próprio método científico: o conhecimento científico deve ser claro preciso, objetivo, racional, capa:z; de explicar, de fornecer cO: nhecimentos exatos, de verificar e de aplicar as teorias, etc. Eviderrtemente, nem todos esses valores são compatíveis, e sua ordem de prioridade pode mudar segundo a ótica epistemotó. gica adotada. Assim, escolher entre o método analítico, o fe­nomenológico ou o dialético; preferir explicar ou compreen­der; tudo isso implica não somente a adoção de certa lingua. gem, de certo modo de pensamento, com um conjunto de pos­tulados epistemológicos, mas também que se conceda a certos valores uma prioridade sobre os demais.

Pelo menos no caso das ciências humanas, por mais "neu­tros" que possam parecer os valores cognitivos~ · os pressupos­tos teóricos e metodológicos presentes em suas demarcbes, de­vemos reconh.ecer que elas são portadoras, explícita ou impli-­citamente, de' valores não-cognitjvos. Se tomarmos, por exem­plo, o caso da sociologia funcionJJlista, podemos constatar que seus pesquisadores aceitam tranqüilamente a sociedade como um sistema estável, cujas partes são bt!m. i!fNgradas, cada · uma delas desempenhando uma funçao bem definida e contribuin­do, assim, para a conservaÇoo do sistema. O bom funciona­mento da sociedade depende de um consemo quanto a seus valores fundamentais: a ordem social 6 a condição .sine qua non para que o sistema funcione de -modo- eficaz e possa, ~s-­sirn, desenvolver-se e progredir. Tudo o que por ventura vier a afastar-se dessa "ordem'\ será considerado como disfunci~ nal e patol6gico. ·

Ora, ao conferir um primado "valorativo" à "estabilidá­de'', à "harmonia" e à .. ordem" da sociedade, não vemos co­mo o funcionalismo não termina por defendê-la e justificá-Ia: Em contrapartida, ao propor uma transformação estrutural e radical da sociedade, c ao postular uma atitude eminentemen­te crítica de suas contradições fundamentais, o objetivo da .. filosofia" marxista ~ o de destruir a pretensa legitimidade desse sistema de valores e o de mostrar que algumas de suas hip6tescs essenciais nlo têm caráter humano uniyersal, mas constituem expressão das necessidades e dos interesses de cer­tos grupos. B a defesa incondicional desses interesses é incom-

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pativel com a objetividade e com a universalidade do saber científico. Enquanto indivíduos, os cientistas pertencem a uma cultura e a um país determinados. No entanto, precisam ul­trapassar os ·horizontes espirituais "regionais", se querem com­preender que a ciência deve ser -encarada como um produto humano universal. O que não pode ser negado é que, nos dois conceitos que constituem a base do método científico, o de objetividade e o de racionalidade, estão contidos certos valo­res universais.

Os principais critérios (ou valores) - exigidos pelo concei­to de obietividade são os seguintes: honestidade fundamental na aplicação das nonnas da pesquisa científica, a eliminação dos interesses pessoais, superação das aderências ideológicas, descentração do ponto de vista do "sujeito" individual em di­reção ao sujeito "epistêmico", espírito de cooperação, desejo 'de conferir o primado à procura da verdade, ausência de into­ierãncia racionalista, social, religiosa, suficiência da _ penetra-ção e boa vontade individuais, superação dos preconceitos ar­raigados, das "opiniões" e dos argumentos de autoridade, etc. Numa palavra, a objetividade depende de certas condições so­ciais. Estas, por sua vez, dependem de outros valores: abertura da sociedade para o resto do mundo, tolerdncia cultural, livre circulação das informações, autonomia da ciência relativamen­te ao poder político, -clima favorável às atitudes antiautoritá­rias, respeito profundo ao saber e à competência, etc. Por outro lado, a õ6jetividade, entendida como esse tipo- de saber sobre o qual · a comunidade dos cientistas se pôs de acordo, será prejudicada todas as vezes que defrontar-se com obstá­culos à comunicação, com as hostilidades ideológicas e filosó­ficas relativamente às orientações metodológicas rivais, com a tentativa de monopolização do saber, etc.

Tanto o conceito de objetividade quanto o de racionali­dade não escapam a uma intervenção de valores ou normas éticas. No fundo, a racionalidade consiste na escolha dos meios mais aptos para atingir determinado fim. Freqüentemente, os fins são admitidos tacitamente, ·ou se preferinnos, meio "irracio­nalmente''. E é essa admissão não-crítica dos fins, não-raciona­lizada, que cria a ilusão de uma racionalidade instrumental e tecnológicã, que seria isenta de toda e qualquer referência a um

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sistema valorativo, e conseqüentemente, neutra. Na verdade, porém, é inteiramente discutível que a maioria dos produt01 concebidos e efetivados graças às técnicas de produção alta­mente racionalizadas traga uma contnõuição eficaz para a satis­fação das verdadeiras necessidtldes humanos. A análise crítica dos valores contidos no conceito de racionalidade leva-nos, de um modo ou de outro, ao exame da questão dos fins a que se propõem as pesquisas científicas. Só mesmo quem não quer ver, ou quem for portador de certa "miopia" intelectual, ainda se julga no direito de ignorar a má orientação de muitos resul. tados da ciência e da técnica, de não perceber que boa parte das necessidades essenciais do homem foi praticamente rele. gada, que uma boa dose de material, de conhecimentos e de energia humana, estão sendo desperdiçados para a satisfação de necessidades S«:undárias ou artificiais do homem e da s~ ciedade. Dond~, mais uma vez, a necessidade de os cientistas tomarem consCiência de sua responsabilidade social e de orien­tarem ou reorientarem a ciência· para o novo tipo de humanis-­mo. Talvez seja uma ilusão perigosa acreditar que a ciência possua _por si mesma o poder de resolver nossas dificuldades. a não ser que ela conseguisse, o que seria contraditório, fun •. dar essa .. ética objetiva do conhecimento" de que falamos aci­ma, o que está fora de suas cogitações e· de seu alcance.

Como já diss~mos~ uma coisa parece certa: o que todo_ mundo, hoje, entende pelo termo "ciência", é a cilncia reali­zada, correspondendo ao mesmo tempo aos procedimentos trans­formadores oriundos da ciência técnica, e aos seus resultados tecnológicos inscritos em nosso meio. No sentido estrito, é essa ciência que informa o mundo e que "fonna" as mentalidades. Ela é cúmplice do processo de industrialização, seja porque organiza ou racionaliza seu .funcionamento, seja porque esta­belece sua soberania e assegura sua eficácia. Do sistema indus­trial, a ciência recebeu uma dupla influência: a) em primeiro lugar, recebeu a materialidade de um poder, isto é, a garantia de um poder fazer,· b) em seguida, viu·se obrigada a ampliar suas próprias dimensões, a aperfeiçoar o poder de seus instrU· mentos, a alargar o campo de suas investigações, do microcos­mo (química do ser vivo) ao macrocosmo (exploração do

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espaço) . Assim, com a industrialização, a prallca científica como que mudou de natureza. Ela é hoje praticada em grandes laboratórios, onde inúmeros pesquisadores e técnicos servem a uma complexa aparelhagem de medida e de registro automa­tizado. O sábio de outrora é substituído pelo cientista. A pes­quisa solitária e inspirada foi substituída pela pesquisa progra­mada coletiva, onde o poder de decisão escapa ao indivíduo e passa para as mãos de instâncias burocráticas devidamente in­formadas por comissões especiais. Da universidade passou a pesquisa para o controle do poder público ou de outras insti­IUições.

A era da ''ciência acadêmica", autônoma e livre está che­gando a seu fim, pois está ·cada vez mais subordinada às polí­ticas nacionais da ciência. No dizer de Derek de . Solla Price ( Little science and big science), a little science do passado de­!>apareccu, esmmos "ª era da big science, cujos parâmetros (número de pesquisadores, volume dos ~réditos, massa dos resultados publicados) aumentam numa velocidade exponen­cial. Estamos dianté de uma vertigem do quantitativo, em que ficam dissimuladas as questões essenciais: quem paga? por quê? como? A pesquisa científica ingressou na espiral do cres­cimento. Por vezes se 'prostitui" para angariar fundos. Para subsistir, aceita os mais diversos contratos. Seu melhor cliente, nos países industrializados, são as tor.ças armadas, sempre à busca de ãperfei'çoamentos tecnológicos. Outrora, promessa de felicidade, a ciência tornou-se ãmeaça de morte. Cadã vez mais há uma simbiose entre ciência, indústria e estratégia, in­vadindo todos os espaços: econômico, cultural, psicológico, etc. A "corrida armamentista" é resultado da corrida científico­tecnológica. Na sucessão das guerras frias e quentes, a ciência desempenhou papel preponderante: a) porque as sociedades industrializadas se organizam em vista da produção cientifici­zada de um consumo acelerado de bens, donde a necessida­de de se assegurar uma fonte regular de inovações, etc.; b) porque grande parte desse potencial é diretamente colocado a serviço dos militares e determina as estimativas das forças em presença; c) porque-, mesmo nas sociedades "civis", a ciên-

. cía não pode furtar-se ao peso das relações internacionais.

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Diante dessa situação, os cientistas podem tomar três ati, tudes diferentes: a) tornam-se -os apologistas da ideologia ofi.. cial de determinada sociedade; b) tentam fazer suas pesquisas fundando-se unicamente sobre normas cognitivas, deixando dt lado todo princípio ético, toda aspiração econômica, política,

· cultural; c) empreendem um estudo crítico a partir de um pon­to de vista humanisra. Quanto à primeira atitude, devemos di­zer que, quaisquer que sejam suas motivações, os cientistas .que optam por subordinar seu trabalho às exigências ideol6gi­cas, violam as normas do' mérito científico, pois este se refere .à verdade e, por conseguinte, a um valor objetivo universal. Quanto àqueles que se escudam na neutralidade ética e ideo­lógica ou se refugiam na segurança protetora da "ciência pu­ra", rêm, nessa "consciência tranqüila", um álibi para seu des­compromisso social, pois pretendem isentar-se por completo de qualquer responsabilidade quanto à utilização de seus co­nhecimentos. ,

No entanto, os· cientistas não .podem fechar mais os olhos diante dessa responsabilidade. Não podem mais guardar sua "inocência" . . Já se foi o tempo em que o trabalho científico se fazia num ambiente fel iz e alegre! A correspondência de Einstein ainda faz menção a esses "tempos felizes" (Corres­por-dance 1916-1955, 1972, entre Einstein e Bom) . No iní­cio da últim!! granõe guerra, Oppenheimer declarava: "Quan­do virem algo que seja 'tecnicamente delicioso' (technically ­sweet), sigam ~m frente e realizem-no, e não se perguntem sobre aquilo que deve ser feito senão depois de terem obtido seu êxito técnico" ( cf. J . J . Salomon, Science et poli tique) . Portanto, estamos diante de uma tranqüila irresponsabilidade, conferindo à ciência um caráter lúdico. No dizer do pai da cibernética, Norbert Wiener, essa irresponsabilidade degrada o cientista~ •pois o converte num indivíduo amoral, dentro de uma "fábrica de ciência" (cf J .J . Salomon, op. cit.) .

Depois da catástrofe de Hiroscbjma, muitos cientistas co­meçaram a reagir contra as desumanidades cometidas pelo em­prego em massa dos conhecimentos científicos. ~ o inicio da formação de uma consciência crítica que, hoje em dia, tende a transcender as nações, as raças, as classes ou as religiões, para colocar-se de um ponto de vista humanista. Uma das ma-

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oifestações mais conhecidas desse "universalismo intelectual" ~ a de B. Russel e A Einstein (The atomic age, N. York e Londres, 1963) : .. Não nos exprimimos enquanto membros Jcste ou daquele país, deste continente ou desta crença, mas enquanto seres humanos, membros da espécie humana, cuja sobrevivência encontra-se ameaçada. A maioria de nós guarda ~cntimentos neutros. Todavia, enquanto seres humanos, deve­mos lembrar-nos de que, se os litígios que opõem o Leste ao Oeste devem ser :resolvidos de modo satisfatório por quem quer que seja, comunista ou anticomunista, asiático, europeu ou americano, branco ou negro, não devem absolutamente ser resolvidos pela guerra ( ... ) O apelo que lançamos é o de seres humanos a outros seres humanos. Lembrem-se de sua humanidade e esqueçam o resto".

Essas considerações já indicam que se processou um des­locamento da "imagem de marca'' do cientista. Parece con~ testável a afirm_ação do historiador e sociólogo da ciência Solla Price, segundo a qual, "com tudo o que se joga sobre seus ombros, o cientista detém agora as cordas da bolsa de todo o Estado". Talvez fosse mais correto dizer o contrário. Indis­pensável e misteriosa, a ciência invade a Terra. Toda socieda­de conta com seu peso e sua influência, na ordem do conhe­cimento. Ela é uma das instituições sociais mais influentes. Enquanto tal, parece sustentada por um mito. A amplitude de seüs sucessos, o esoterismo de seu saber, o fechamento- de Slia

linguagem, as leis severas de seu recrutamento, tudo isso pa­rece contribuir para que o pequeno mundo dos cientistas se converta numa espéde de "sacro colégio". Eles _c._onstituem uma hierarquia de classes sacerdotais, o mais influente dentre eles desempenhando a função de Sumo Sacerdote. B. Russel já se queixava pelo fato de ser consultado, como uma espécie de oráculo, sobre os assuntos mais estapafúrdios. Também Eins~ tein protestava por se ver envolvido numa imagem m1tológica, como se fosse o depositário de todos os segredos, ·esse "lugar sagrado.. ou "tabernáculo.. de onde deveria jorrar as águas do saber perdido. Mais recentemente, Jacques Monod recla~

ma, em nome da ciência, o direito de poder dizer aquilo que é bom e que é mau, pretendendo confiar à ciência a tarefa de fundar uma r:tova &ica, a "ética do saber objetivo ...

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. Assim, na ·ordem do saber, do dizer e do fazer, o que se

nota é um afastamento dos cientistas de sua contextuação sÓ­cio-cultural. O sa.ber especializado desperta a admiração teme­rosa por parte daqueles que o ignoram. Há todo um respeito admirativo em relação à linguagem dentífica, dotada de uma universalidade de direito, habilmente restringida aos iniciados. Seu esoterismo protege o segredo, sobretudo pela matematiza­ção e pela formalização. O poder de dominar a matéria e de fazer coisas, da ciência, acarreta, nos não-iniciados, uma ati­tude de submissão. I:. por isso que ela exerce sobre muitos um poder quase mágico, um "poder dogmático". E é por isso, igualmente, que muitos vêem nos cientistas os detentores do . "magistério da realidade": só eles estão habilitados a dizer 0 sentido, a propor a verdade para todos, como· se fossem tau­maturgos ou verdadeiros alquimistas. O que se pede a elesL através das vulgarizações, é muito menos um complemento de infor.mações do que a forma presente das questões últimas, pois as antigas respostas teológicas foram desprestigi_adas. Os cientistas são vistos como se fossem os proprietários exclusivos do saber, ·devendo fechar todas as "cicatrizes do oão-saber" e fornecer os bálsamos para as angústias individuais e sociais.

Essa imagem mítica do cientista ignora que ele faz parte e depende de uma estrutura bem real do-mundo que o cerca. O. mundo científico nãda: tem de ideal, não é uma terra de inocência, livre de todo conflito e submetida apenas à l~i da verdade universal, isto é, de uma verdade testável e verificável em toda parte, através do respeito aos procedimentos de rigor e aos protocolos da experiment~ção. Como se o cientista pu­desse ser o detentor de uma verdade una que, uma vez for­mulada em sua coerência, estaria isenta da discussão; e como se ele pudesse guardar para sempre a imagem de um indiví­duo· sempre íntegro e rigoroso, jamais sujeito à incoerência das paixões. A sociologia da ciência contribuiu enormemente para a fragmentação dessa imagem ideal. Uma das conse­qüências mais evidentes da crítica d~ sociologia da ciência con­siste em denunciar uma dupla ilusão: a) de um lado, a ilu­são da neutralidade objetiva que eximiria os cientistas, em no­me de seu projeto de objetividade racional, de tomar parte nos conflitos e nas incertezas do mundo sócio-cultural; b) do

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outro, a ilusão do magistério ético que lhes atribuiria a função de dizerem aquilo que é bom, pois somente eles sabem aqui­lo que é verdadeiro (é o caso da "política cientificizada", novo nome para o velho positivismo), como se detivessem um carisma político para governar a sociedade. Ao tornar-se o lugar de um saber fazer e, por conseguinte, de um poder a que ninguém parece escapar, talvez a ciência ainda não se tenha dado conta de que aquilo que se sabe, não é aquilo que se vê, mas aquilo que se pensa!

A ciência não se esgota no saber nem tampouco no poder, porque- se define, essencialmente, por ser um discurso de ver­tfade. Apesar disso, o "saber" e o "poder" caracterizam, na prática, a tarefa principal da ciência no mundo de hoje: pro­dução de objetes (de saber, de controle e de uso) que se cons­tituem em sistemas coerentes, ocupando praticamente todos os nossos espaços, tanto os de movimento quanto os de pensa­mento. Ademais, o peso e a influência da ciência sobre o mun­do da vida tornam-se tão mais fortes quanto mais vinculados estão ao sistema de .produção racional dos objetos e ao ideal univ~rsal da Razão. A partir do século XVII, o paradigma foi a física, a primeira das ciências empíricas a se matemati­zar. Em seguida, todas as disciplinas se puseram a imitar es­se modelo, condição para se tomarem acreditadas: injetam-se noções matemáticas num conjunto de dados, constrói-se um pseudomodelo, e tem-se assim üma ciência humana matemati­zada e formalizada, preenchendo as condições de credibilida­de exigidas pela imagem exemplar da física. Introduz-se desse modo nas ciências humanas o mito da cientificidade. Toda disciplina pretende .passar do lado vencedor. O que se pergun­ta é se, em tudo isso, não há boa parte de charlatanismo, pois se aceita, sem discussão, uma cientificidade que permanece no nível da "embalagem", descaracterizando aquilo que há de humano nas ciências humanas. H istoricamente, isso 6 com­preensível, pois as "epistemologias" insjstiam em tratar a ciên­cia e a tecnologia como atividades ideologicamente neutras, progredindo graças à sua própria lógica interna: o valor ideo­lógico da ciência e da tecnologia viria do uso que se fizesse delas.

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O que a ·epistemologia atual .mostra, pelo menos a cpis. temologia "crítica", é que as ciências atuais não são, do pooto de vista social, neutras. Desde Bacon, no século XVII, a ciên. cia se constituiu como poder, intimamente ligada à eficácia ao projeto de domínio e de manipulação das coisas. ~ abr; possibilidades e fornece meios de ação. Hoje, aquilo-tfue é téc. nica e cientificamente realizável, ·apresenta-se como devendo ser feito. A ciência está vinculada ao ativismo ocidental: do­minar, produzir, fazer cada vez mais e mais depressa. Por ou. tro lado, não se pode negar o culto à produtividade, às taxas de crescimento econômico e ao saber dos e.xperts. Como não haveria uma solidariedade entre ciência e sociedade de con­sumo, entre ciência e tecnologia? A opinião pública é muito sensível aos problemas de poluição física e sonora. Mas ainda não despertou para as .poluições cultural, ideológica, social ou. tecnocrática. ratvez por estar ainda deslumbrada de viver num murrdo domin~do pela idéia de máquina, -ª serviço de uma funçao, e não de um projeto humano.

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. - Objetivamente, .portanto, a "ideologia. acadêmica" da neu­tralidade científica desaparece cada vez mais, pois não se po-­de mais sepaJar a~ funções oficialmen_te "proclamadas da ciên­cia de suas práticas efetivas. Não é- por amor aos belos olhos da ciência que as instituições f~nanciam as pesquisas aparen­temente "inúteis". O difícil é saber quem engana e quem é enganado. Não deixa de ·ser curioso o surgimento de perso· nagens policéfalos, desempenhando vários papéis ao mesmo tempo: professor, pesquisador, administrador, membro de co­missão governamental, conselheiro político, acessar privado, homem de negócios vendendo uma patente, etc. Ora, se os cientistas fossem indivíduos "supraculturais", como se explica que, de fato, estejam quase sempre ditando ''normas" à SO·

ciedade que os envolve? E como se expli~a seu caráter cada vez mais intervencionista na orientação , e no planejamento sociais? Temos assim o seguinte paradoxo: a ciência influen­cia a .moral de modo não moral. Até poderfamos dizer que o

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cientista personifica uma fase do processo psico-históríco da cultura em que se toma impossível definir princípios éticos universalmente válidos. O que não deixa de ser compreensível, de vez que vivemos numa civilização ·bastante plástica, quer dizer, ~em objetivos claros. E é nessa civilização que os cien­tistas precisam tomar consciência do papel desempenhado por eles, ou que lhes fazem desempenhar, num contexto social, político, nacional e internacionaL Muitos não acreditam mais na imagem que defes se fazia na idade áurea. Naquele tem­po, eles procuravam a "verdade" no plano teórico e, no prá­tico, contribuíam para melhorar a sorte da humanidade. Ho­je, tiveram que render-se a esta evidência: é falso que o de­senvolvimento das ciências e das técnicas acarrete, necessaria­mente, conseqüências benéficas para a humanidade. H á cem anos a.ttás, eles podiam fazer ciência com a boa consciência de um filatelista. Há vinte e poucos anos atrás, igualmente, ainda podiam crer que os probtemas ''morais" da ciência se limitavam a casos isolados·. Atualmente, torna-se extremamen­te difícil negar que as pesquisas, tanto das ciências naturais, quanto das humanas, esteja!"" "substancialmente" integradas à sociedade: elas participam, direta ou indiretamente, de um con­junto sócio-político revestindo um sentido global que pode ser aceito ou recusado, jamais negado.

Donde a nec~ssigade de rever os princípios éticos que fundam a ciência atual. O primeiro passo talvez seja a toma­da de consciência de que- a produção científica se faz numa sociedade bem determinada, que d'etermina (ou condiciona) seus objetivos, seus agentes e s-eu modo de funcionamento. Em seguida, é preciso que os cientistas tomem consciência de que o humanismo não pode ser mais objeto de fé ou de espe­rança, tendo necessidade urgente da ciência para ultrapassar seu caráter utopista e arbitrário, isto é, para traduzir suas as .. pirações teóricas na prática. Nesse sentido, eles devem lutar para a eliminação dos a-spectos desumanos da tecnologia, pa­ra libertar o saber científico de suas utilizações abusivas, pa­ra ·sanar o caráter patológico das pesquisas (as que são reali­zadas para fins desumanos), para deixarem de ser cúmplices da preparação científica de crimes contra a humanidade, pa­ra resistirem ou "desobedecerem" às formas de a.buso quanto

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ao emprego do ·saber científico para fins não-humanos, etc. Ademais, compete ê\Índa aos cientistas definirem ou redefini~ rem os critérios (valores) de base, segundo os quais a ciência e a tecnologia devem ser concebidas e desenvolvidas tendo em vista a supressão da alienação (ou da desumanízação), o tér­mino da degradação do meio ambiente, o fim do esgotamento dos recursos naturais, etc. E como tudo isso está direta ou indiretamente ligado à natureza da tecnologia avançada, talvez fosse o caso de os cientistas continuarem a desenvolver o que já se chama de "tecnologias alternativas" cujo objetivo essen­cial consiste em. tentar descobrir em que medida se torna pos­sível selecionar os savoir-faire e as técnicas que poderiam for­necer a base de um estilo de vida capaz de evitar os nume­rosos problemas ligados a nosso atual modo de vida. Não se trata de recriar a visão romântica do passado. Trata-se de re­conhecer que, ao aceitar a ideologia da industrialização, e ao permitir-lhe que .I:Iomine todas as dimensões da atividade cultu­ral e da sensibilidade humana, perdemos o contato com o ver­dàdeiro sentido da identidade humana.

No campo da ciência propriamente dita, já podemos no- . tar a repercussão de uma reflexão de tipo crítico e étiéo no caso da ecologia. Essa ciência se apresenta, hoje, com uma significação sócio-histórica bem particular. Diferentemente das demais ciências, ela não é analítica, mas sintética, qu'er dizer, no interior das demais ciências ela instaüra certa visão. global, certa preocupação de equilíbrio, estando estreitamente ligada a uma filosofia social e , conseqüentemente, a uma ética. Em­bora não seja uma ciência no sentido estrito. devidõ a seu es­tatuto de concepção filosófica, a ecologia já nos permite rein­troduzir certos postulados éticos nessa discussão que se arras­ta há tempos sobre as relações da ciência com a sociedade. Evidentemente, se os cientistas se interessam por suas relações com a sociedade, terminarão por tomar consciência de sua responsabilidade social e, conseqüentemente, da dimensão ética de suas pesquisas. Por si mesmas, a ciência e a tecnologia não sairão do impasse e da crise presentes. Mesmo que a solução real não possa prescindir de uma ciência e de uma tecnologia, só se . tornará realmente humana quando estiver fundada sobre

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uma ética da responsabilidade social dos c ientistas, e não mai5 sobre a ética de sua neutralidade.

Um dos objetivos dessa ética seria o de proporcionar o surgimento de uma 'civilização científica" em que o homem pudesse realmente sentir-se como que em sua "casa~·, vivendo de um modo mais feliz ou menos infeliz. Evjdentemente, se­melhante projeto ainda não passa de um sonho. Mas é so­nhando que o homem realiza grandes coisas! Todavia, a ex­pressão "civilização científica" pode prestar-se a equív·ocos, na medida em que pode sugerir que a ciência deva ser considera­da como o "valor supremo" do homem ou como o ol/a e o ômega da nova civilização. Isso seria uma p osição cientificista injustificável. Construir uma civilização científica não significa necessariamente converter a ciência numa divindade à qual deveríamos subordinar-nos e prestar um cul to ideolátrico. Po-

. demos muito bem conceber um mundo onde o homem deve viver com a ciência, mas sem deixar-se alienar por ela. Bas­taria que ele soubesse e tivesse as condições de dominar o dinamismo incontrolado das forças científico-tecnológico-tecno­c ráticas.

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v

-0 PROBLEMA DA 'CIÊNCIA DA CIÊNCIA'

A tradição "positivista", apesar de suas distinções internas, apresenta-se hoje como uma tentativa de elaborar, de uma forma ou de outra, uma "ciência da ciência" ou - Vt riante tecnocrãtica - "uma ciência da or­ganização do trabalho científico". 'E: o caso dos especialistas anglo-saxões J. Bernal e Sol­la Price. Também o .projeto do "neopositi· visnio lógico" é o de tentar, baseando-se nos conceitos da lógica matemática, formar as ca­tegorias 'de uma "filosofia cientffica", a . .filo­sofia de nosS'o tempo, a filosofia da ~·era da ciência", que seria ao mesmo tempo "ciência da ciência" e crítica científica da filosofia.

D. LECOURT

Originariamente, o problema da "ciência da ciência" está estreitamente ligado à pretensão de alguns epistemólogos de conferirem um estatuto de cienJificidade à sua disciplina. -0 problema pode ·ser colocado da sêguinte maneira: não seria conveniente distinguirmos claramente duas epistemologias, uma filosófica, sem função cognitiva real, a outra científica, permi­tindo analisar a gênese, as estruturas e o funcionamento reais das ciências? Os autores que defendem a "cientificidade" da epistemologia, aceitam, quer queiram quer não, conscient~ -ou inconscientemente, a idéia segundo a qual deve ser instaurada uma çilnciã da _ciência. Porque, no fundo, essa epistemologia não seria outra coisa senão uma metaciência que se situaria num nível superior de conhecimento, relativamente à ciência sobre a qual ela reflete, mas impondo-se a si mesma as mes­mas condições de rigor e de objetividade que ela reconhece em seu objeto: a ciência.

Como se pode notar, essa concepção já contém dois pres­supostos filosóficos: o primeiro está na afirmação da "unida­de" do termo repetido, a ciência; o segundo está no círculo dessa repetição, isto é, na reflexividade do termo "ciência,. sobre si mesmo, ciência da ciência. A "ciência da ciência'• encontra sua justificação na concepção dualista que os neo­empiristas fazem da filosofia e das, ci~nc.ias. Para eles, o pa~ pel da filosofia consiste em sistematizar os enunciados cientí­ficos que, dt outra forma, permaneceriam na desordem _e, .ao

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mesmo tempo. em extrair progressivamente as ligações qUe unem as diversas ciências. Não admitem, porém, que possa contituir um saber supracientifico. Porque, fora dos enuncia­dos verdadeiros das ciências, não pode haver outros que sejam válidos. Por conseguinte, se são necessárias pesquisas para a descoberta das relações entre as ciências, é preciso que sejam realizadas no domínio científico. Quanto à tarefa que se atri~ bui à filosofia de elucidar os fundamentos das ciências, os neo. empiristas acham que os cientistas estão em condições de asse­gurá-la. Dizem que pertence à lógica resolver os problemas do fundamento das ciências, através da análise e da precisão de seus enunciados. Pode-se chamar de filosofia essa- teoria das ciências que consiste em aplicar a lógica às ciências parti­culares. Todavia, essa teoria não acede a um nível superior, porque não pode adquirir nenhum conhecimento mais '.-pro­fundo" do que . aquele obtido pelas ciêJlcias.

Portanto, h pret~nsãu de conferir um estatuto de pentifi­cidade à epistemologia e, consêqüentementre, de convertê-la numa "ciência da ciência", é defendida por aqueles autores que se filiam, de uma forma ou de outra, ao "positivismo" contemporâneo, q\Je continua a apresentar-~ como uma ten­tativa de elaboração de uma "ciência da organização dn tra­balho científu:o". Para uma primeira definiçãO::do que vem a ser à "ciência dct ciência", convém lembrar as. palavras do

·cnador dessa expréssão, Derek de Sol~ Priu: "As (ijscipli­nas que analisam a ciência, foram engendradas em ·desordem, mas revelam muitos sinltis de um começo de coerência em di­reção a um todo, maior ·do que a soma de suas partes. ESsa nova disciplina pode ser chamada de "história, ftlosofia, so­ciologia, psicologia, economia, ciência política e pesquisa o~­racional da ciência, da tecnologia, da medicina, etc.". Preferi­mos -batizá-la corn o nome de "ciência da ciência". porque assim o. termo repetido serve para lembrar constantemente que a ciência deve desenvolver toda a gama de seus se_ntidos nos dois contextos. Em todo caso, os neologismos cimtografia e cienlosofia são pouCÔ s6rios, e cientologia já é a descrição de um culto que oada tem a ver, em absoluto, com as pre­sentes considerações" ( The Science Õf Science, 1964).

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Atualmente, cada vez mais o problema da ''ciência dl ciência" passa a ser colocado a partir dos estudos sócio-epi.>­temológicos_ sobre o papel e a função da ciência nas socieda­des desenvolvidas. O que se constata é que as descobertas científicas se tórnam cada vez mais o ponto de partida de toda c qualquer modificação das idéias que dizem respeito tanto ao_ mundo que nos cerca e nos condiciona, quanto ao lugar que nele ocupa o homem, enquanto agente de sua transformação. o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento do po­derio econômico obedecem, em grande parte, à evolução da ciência, da técnica e· aos ritmos de seu desenvolvimento cres­cente. Tanto o -poder da ciência, sobretudo da ciência realiza­da (tecnologia), cuja utilização para fins desumanos e des-

- trutivos constitui um perigo real de aniquilamento da civiliza­çãd. e, mesmo, da vida humana. qÜanto o fato de o progresso vertiginoso das té::nicas estar na dependência de uma organi­zação das sociedades, estão levando vários cientistas a reDe­tirem sobre as funções sociais da ciência. Mais ainda, sobre a responsabilidade que deverão assumir perante a utilização,

·pela sociedade, de seus produtos intelectuais. E [entam respon­der a perguntas, tais como: qual o lugar que a ciência e a técnica ocupam ou devem ocupar na vida de nossas socieda­des? Quais as influências exercidas pelas condições econômi-

-Cas e sociais sobre os ritmos e a tendência desenvolvimentista das ciências e das técnicas? _ _

Diante do desafio de tais questões, muitos cientistas se sentiram na · obrigação de estudar as "leis do desenvolvimen­to da ciência". Sentiram-se como que impelidos à elaboração de um novo tipo de racionalidade científica, não somente dos meios, mas também dos próprios fim da ciência. Donde .a. ten­dência cada vez mais acentuada, entre muitos, de quererem organizar, planejar e administrar racionalmente a ciência. Co­meçam a perceber que os fins da ciência são extracientíficos. Donde a importância e a urgência de elucidar não somente as possibilidades, mas também os próprios métodos da ciência. O que eles pretendem, é encontrar critérios quantitativos de evolução do nível e dos ritmos do desenvolvimento técnico­científico, ·do potencial técnico-científico dos Estados, da efi­cácia econômica dos investimentos neste ou naquele setor de

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investigação .para fins práticos. Para tanto, tentam estudar a~ correlações existentes entre o volume das pesquisas científicas e a parte que desemboca diretamente na prática. Quando as necessidades objetivas da vida colocam problemas à sociedade é preciso que eles sejam resolvidos. Mas não podem ser re: solvidos sem as condições mínimas. Para os defensores da "ciência da ciência", essas condições poderiam ser: a) a ex­tensão e a diversidade · das ciências, permitindo o exame es­tatístico; b) o enorme material fornecido pela história das ciências, permitindo que se distinga os fenômenos essenciais do dêSenvolvimento das ciências e sua possível sistematização; c) a possibilidade de revelar e comparar os fatores que favo­recem o desenvolvimento das ciências, e os que-o .freiam; d~­a possibilidade de efetuar experiências em·· matérias de orga­nização, planificação, financiamento, etc., -da ciência.

Como se pode obs~rvar, a expressão "ciência da ciência .. ainda possuU contornos bem precisos ou definidos. No mo- · menta, ela surge como uma: espécie de investigação extensa e ativa num determinado domínio de estudos em que se encon­tram presentes e atuantes fatores de ordem filosófica, socio­lógica, econômica, histórica e psicológica do desenvolvimento das ciências e das técnicas. Em outras pala·vras, ela aparece como uma tentativa de estabelecer a síntese, num único siste­ma de conhecimento, do funcionamento da ciência, da lógiGa de seu desenvolvimento e do processt}- do conhecimento --cien­tífico. Foi em 1964, com o The Science of Science de Solla Price, publicado para comemorar o 25'? aniversário da obra de I. Bemal, The So_cial function of Scienç_e, que se criou uma fundação dedicada ao estudo da "ciência da ciência". No es­pírito de seus organizadores (Solla Price, J. Berna! o C. P. Snow), essa fundação deveria ser um organismo internacional independente, chamado a estimular as investigações que se apoiassem sobre o papel social da ciência, sobre o princípio de sua organização e de sua -planificação.

Esses autores não tiveram dificuldade alguma em identi­ficar o papel da "ciência da ciência" com o da epistemologia. Com efeito, em seu entender, o objeto próprio da epitemolo­gia deve ser o estudo das· estruturas gerais das ciências, das modalidades e das formas de seu funcionamento, bem como

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das relações existentes entre as orientações de seu desenvol­vimento e os demais fenômenos sociais. Quanto ao objetivo Ja epistemologia, deverá consistir na elaboração e na eluci­dação dos fundamentos teóricos susceptíveis de permitirem urna organização, uma planifiéação e uma reorientação das dncias. Em outras palavraS, o objetivo da epistemologia con­siste na elaboração de um conjunto de medidas capazes de se anciarem sobre a lógica objetiva do desenvolvimento das ciên­cias, de assegurarem os melhores ritmos possíveis desse desen­vol\·imento e de garantirem cada vez mais a eficácia dos co­nhecimentos científicos.

Portanto, segundo a linha de pensamento desses autores, pode-se dizer que assim como a cibernética estuda as "leis" gerais da direção e do controle, independentemente dos siste­mas em que elas atuam, da mesma forma a epistemologia de­\·c estudar as "leis" gerais de funcionamento e de. ~esenvol­v!mento das ciências e das técnicas. Donde ser possiYel con­cluir que: a) a epistemologia deve refletir os diversos aspec­tos da vida das ciências e das técnicas e,. conseqüentemente, apoiar-se sobre seus métodos de investigação; b) há uma es­treita · relação entre a epistemologia e a história -das ciências. A história das ciências constitui a base e o fundamento da epistemologia. Não é por acaso que muitos cientistas, todas as vezes que se defrontam com problemas de ordem epistemoló­gica, recorrem é-orno que espontaneamente à história das ciên­cias. O que vão buscar nela é o material indispensável para a resoluÇão de -problemas científicos atuais. Entre os mais co­nhecidos autores, ·podemos citar G. Bachelard, G. Canguilhem, J. Berna!, Th. Kuhn. Todos esses autores fizeram o oue se pode chamar de ·epistemologias hist6ricas. Bacbelard iesume o pensamento de todos os dizer:

Para expressar todo o meu pensamento, creio que a história das ciências não poderá ser uma história empíri­ca. Não poderá ser descrita no esmigalhamento dos fa­tos, pois é essencialmente, em suas formas elevadas, a história do progresso das ligações racionais do saber. Na história das ciências, além do elo de causa a efeito, ins­taura-se um çlo de razão a conseqüência. Portanto, de

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certa fm:ma, ela é duplamente ligada. Deve abrir-se ca. da vez m ais às organizações racionais. Quanto mais nos aproximamos de nosso século, mais sentimos que os va. !ores racionais conduzem a ciência. E se considerarmos as descobertas modernas, veremos que, no espaço de al­guns lustros, elas .passam do estádio empírico ao estádio da organização racionaL E é assim que, de modo acel~­rado, a história recente reproduz o mesmo aceder à ra. cionalidade que o processo de progresso que se desen­volve lentamente na história mais antiga ( L'Actualité de l'histoire des sciences, conferência no Palais de la Dé­couverte, 1951 ).

E é estudando as ciências dos pontos de vista lógico, so­ciológico, histórico, psicológico, etc., que poderemos construir os fundamentos teóricos de uma organização racional das in­vestigações científicas: de .planificação, de orientação, de fi_. nanciamento, etc. Daí podermos. dizer .que existe uma seme­lhança de fundo entre a epistemologia e a sociologia das ciên­cias. As fontes da epistemologia residem na história das ciên­cias; e é essa história que descobre as "leis" segundo as quais se desenrola o processo dos conhecimentos científicos. O que talvez possamos perguntar é se a "ciência da ciência" estã em condições de constituir-se como disciplina · autônoma, com es­tatuto 1'científico" próprio. Evidentemente, não se pode res­ponder de_ modo tranqüilo a essa questão. Sobretudo· porque não podemos esquecer que a filosofia sempre tentou examinar os problemas que constituiriam o "objeto" da "ciência da ciên­cia''. E la sempre se esforçou por descobrir e estabelecer as "leis" de desenvolvimento e de funcionamento do conhecimen­to humano, bem como as de sua forma superior, a ciência. Por ou tro lado, é preciso que reconheçamos a import~cia de dois fatos novos: o primeiro diz respeito ao crescimento espantoso das ciências; o segundo se refere à redução dos prazos que hoje separam a obtenção de um resultado, de suas aplicações práticas. Até o início do século XIX, as " leis" do desenvolvi­mento e do funcionamento das ciências constituíam temas ex­clusivos da reflexão filosófica; atualmente, porém, devido so­bretudo ao rápido desenvolvimento das ciências, são os pr~

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prios cientistas que cada vez mais se interessam pela análise Jcsses temas. Evidentemente, não é pretensão da "ciência da ;;iéncia" querer imiscuir-se nos domínios próprios da filosofia, 1,em tampouco querer substituir-se à reflexão filosófica. A fi­losofia jamais poderá renunciar a essa atividade de reflexão sobre a evolução dos conhecimentos. Aliás, são as ciências e seus êxitos que fornecerãÕ à filosofia novos conteúdos de re­flexão. Com isso, ela se enriquecerá cada vez mais, ampliará seus conceitos e suas categorias, generalizando os resulti!dos obtidos nos diversos campos particulares do saber científico.

Não obstante, a tendência atual, pelo menos a que está predominando, vai na linha de enfatizar cada vez mais o ca­ráter científico da epistemologia e, por conseguinte, da "ciên­cia da ciência!'. Essa disciplina, por vezes também chamada de metaciência, inclina-se a considerar _seu "objeto", a ciência, ao mesmo tempo como um sistema e como uma forma parti­cular da atividade humana. Trata~e, é claro, de um "sistema geral". As ciências representam, cada uma, um sistema parti­cutar fornecendo um novo conhecimento e possuindo um ca­ráter lógico bem definido. Cada disciplina científica representa uma forma definida da produção .intelectual · humana, e pos­sui formas definidas de organização que lhe permitem desem­penhar as funções que lhe são próprias. Em última análise, o objeto da "ciência da ciência" seria constituído por_ todos es­se~ aspectos do "ser" de cac:Ja -Ciência, por todos esses aspectos tomados em conjunto, em interação, porque eles... forneceriam a melhor imagem, não só do desenvolvimento, mas de seu funcionamento .. Ademais, forneceriam uma teoria geral das ciências.

ê nesse sentido que, em contraposição à crescente espe­cialização e compartimentalização das disciplinas científicas, começa . a despertar uma esperança de uma nova e possível integração e organização conceituais das diversas ciências. Em outras palavras, contra a multiplicação das especialidades e das linguagens particulares, isto é, contra o babelismo cientí­fico, parece estar surgindo não somente um novo conceito do mundo, concebido como "organismo ordenado", mas também um novo conceito de ciência, concebida como "sistema". Um sinal evidente dessa evolução está no surgimento de novas

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disciplinas: teoria geral dos sistemas, cibernética , informática, teoria das decisões, etc. Trata-se de disciplinas essencialmente interdisciplinares.

Seria da competência da "ciência da ciência", não somen­te propor conceitos e modelos jnterdisciplinares, mas também prever as descobertas científicas futuras, os novos princípios e­as mudanças inesperadas do desenvolvimento e do funciona­mento das ciências. E a condição para organizar o desenvol­vimento e o funcionamento das ciências consiste na elabora­ção de uma estratégia das pesquisas científicas. Em outras pa­lavras, para se organizar, em grande escala, a planificação das ciências, é imprescindível uma estratégia de ação. E é por is­so que hoje se empreendem cada vez mais tentativas de previ­são a longo prazo do desenvolvjmento das ciências, tendo em vista a descoberta de suas potencialidades e a avaliação de_ suas tendênciàSJtuais e futuras. O que se pretende, no fundo; é a descoberta de uma espécie de plataforma cientificamente válida para o progresso e a planificação das ciências, tendo em vista a "ordenação., e a ''otimização" de seu desenvolvi­mento.

Na prática, a tarefa da "ciência da ciência" está sendo a de fornecer os embasamentos e fundamentos teóricos às vá­rias disgplinas, bem corno a de ser o ponto focal dos vários problemas para cuja solução . são indispensáveis -certas "coor­denações interdisciplinares,.. Citemos alguns desses · problemas­que parecem exigir certa "concertação" sístêmica das ciências, e que seria desempenhada pela «ciência da ciência••:

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a) os impulsos internos e externos do desenvolvimento e do funcionamento das ciências;

b) a tipología das relações entre as ciências e as demais formas de atividade intelectual e prática~

c ) a evolução das estruturas das ciências e a unidade das disciplinas; -

d) a formação de novas disciplinas; e) a modificação das relações entre ciência fundamental

ou teórica e ciência aplicada; f) o problema da variação das relações entre o poten­

cial das ciências e sua utilização prática;

g) os parâmetros e critérios do progresso científico; h) a evolução das possibilidades de previsão das ciências; i ) a gênese e o desenvolvimento dos conceitos e teorias

científicos; j ) a evolução das formas organizadas das ciências co­

mo função da transformação de seu nívei e de seu alcance social;

k) as características quantitativas do crescimento das ciênôas, etc.

A ssim, parece claro que a característica fundamental da ' 'ciência da ciência" consiste no entrelaçamento ou na inte­ração dos diferentes modos àe enfocar o estudo da ciência: lógico, histórico, econômico, psicológico,. etc. Enquanto dis­ciplina autônoma, parece não ter ainda um estatuto p-róprio. Ela se situa na intersecção de preocupações e de disciplinas · bastante variadas por seus objetos e por seus métodos. No entanto, apresenta dois aspe~tos dominantes: a) o aspecto analitico, te-ndo por objetivo a descoberta e a análise de um sistema de " leis" capazes de regerem o desenvolvimento cien­tífico e seu modo de funcionamento; b) o aspeCto nori1Ultivo, tendo por objetivo elaborar uma sêrie de recomendações "ob­jetivas", quer dizer, baseadas em-conclusões científicas, para serem utilizadas no domínio da ação. Ambos os aspectos for­mam o sistema completo oa "ciência da ciêitcia";-tujas carac­terísticas fundamentais podem ser resumidas nas seguintes:

1 . tem por objeto o estudo das interações entr~ os vá­rios elementos que determinam o desenvolvimento das ciências, enquanto estas constituem um sistema completo e uma forma particular da atividade huma­na. Em outras palavras: o estudo das relações das ciências com os demais fenômenos sociais e com as instituições, bem como a avaliação da medida ou do grau de dependência das ciências relativamente aos fenômenos e instituições sócio-culturais;

2 . tem por objetivo o estudo dos fundamentos teóricos susceptíveis de fornecer_ os meios racionais para a or-

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. ganização, .planificação e administração da atividad · científica: finalidade extracientífica das ciências· e . ,

3 . engloba um _amplo conJunto de problemas que, para serem resolv1dos, torna~ necessárias a utilização dos dados e dos método~ empregados pelas diversas dis­ciplinas em condições de se interagirem: história, so~ ciologia, economia, psicologia, teoria geral dos siste­mas, tratamento estatístico, etc.;

4. exige que todas as disCiplinas enumeradas se articu~ lem: deve haver uma combinação da análise históri. ca, das técnicas e da lógica com os problemas so­ciológicos do desenvolvimento das ciências; se não se levar em conta a história, a sociologia, a psicolo­gia e a lógica do desenvolvimento das ciências, tor­nar-se-á inteiramente vão o estudo de uma teoria da orgapização e da "gestão" das diversas ciências,:.9.l>je-. tivo ;último da "ciência da ciência".

Ora, se a ciência não pode ser entendida -como um "pro­cesso intelectual comparável ao de um computador", mas co­mo· um ' 'ramo da vida" (S. Toulmin), toma-se e.vidente que uma "ciência da ciência" só poderá ter direito à existência na medida em que for capaz de solicitar a colaboração de diver­sas disciplinas. No_domínio das ci8ncias bumanãs qualquer disciplina pode ser tomada como fator polarizador para a in­tegração das Jlemais, porque todas se entrecruzarrr e podem. interpretar-se umas pelas outras. Ademais, suas fronteiras tor­nam-se cada vez menos rígidas, e assistimos ao surgimento de disciplinas intermediárias e mistas. Todavia, ressaltemos o papel da sociologia da ciência como um dos fatores importan­tes para a descoberta de uma possível unidade das ciências humanas. Assim, a partir do momento em que as ciências ca­da vez mais se afirmam e se impõem dentro de uma proble­mática político-id~ológica inegável, o sociólogo da ciência vem mostrar que os cientistas não têm mais o direito de pretender a uma " neutralidade" ética e.strita. Não é novidade para nin­guém que os cientistas humanos se vêem cada vez mais soli­citados a fornecerem suas contribuições científicas e técnicas para o "controle" c o .. aperfeiçoamento" dos sistemas de pes-

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quisa e dos mecanismos de ação, sem poderem contestá-los di­retamente. Ao fazerem isso, podem simplesmente converter-se em cientistas do "conformismo", a serviço do "poder" ou das "instituições" que os contratam e pagam; ou, então, podem converter-se, para satisfazerem a certas expectativas a seu res­peito, em profetas da "anticíência"T correndo o risco de serem reduzidos a simples vedetes na moda, "consumidos" pelas pla­téias intelectuais que os reduzirão a curto prazo, devido à sua ausência de rigor, ao estado de inofensividade. A história das ciências está repleta desses rigores abortados, quer pelo servi­lismo quer pela tentação do profetismo de certos cientistas. :E: por isso que, num domínio como o da "ciência da ciência", torna-se ainda mais imperiosa a atitude de "vigilância episte­mológica" de que fala Bachelard. Essa atitude deve começar pela avaliação crítica das disciplinas que se interagem e do modo como elas entram em interação.

Lembremos, aqui, de modo ex:tremamente sucinto, como surgiu a sociologia da ciência. Na realidade, a sociologia nun­ca se desinteressou pelo fato científico, muito embora sua ten­dência atual dependa muito mais do contexto histórico recen­te do que de qualquer filiação intelectual mais ou menos re­mota. Depois da última guerra mundial, graças sobretudo aos progressos espetaculares da física nuclear, da biologia mole­cular e da eletrônica, bem cómo à proliferação de vários tipos de vulgarização científica, pode ser constatada uma espécie de renascimento de uma onda de '()Sperança na ciência. Após um período de "latência", novamente a ciência surge como este saber capaz de abrir novas perspectivas de prosperidade para as nações e de felicidade para o .gênero humano. Retoma-se, assim, a tradição positivista dos cientistas da segunda metade do século XIX. O grande público volta a se intreessar pela ciência e por seus feitos, e a recolocar em suas realizações, esperanças de dias melhores para a humanidade. Esse fato tor­na-se um fenômeno social tão importante, que os próprios Es­tados se põem a elaborar suas "políticas" ou "filosofias" de governo baseadas nas "informações" coerentes e objetivas das pesquisas científicas. ê o início da instauração das "políticas cientfficas" de governo. Cada nação passa a querer fundar...re

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cientificamente. ·E todos os seus "projetos" passam a ser "cien~ tificamente justificadoi'.

Até então, a sociologia só se havia interessado por uma análise do conhecimento científico, tentando mostrar que éra tributário de um pano-de-fundo filosófico ou ideológico, eco­nômico ou sociológico, etc. A- sociologia do conhecimento vi~ sava, entre outras coisas, a estabelecer uma ruptura entre os .saberes comuns e o s·~ber científico, interrogando-se sobre as condições sócio-culturais que tornam inevitável essa ruptura com o conhecimento espontâneo e com as ideologias. Assim, tentava elucidar, no conhecimento científico, seus pressupostos inconscientes e suas tradições teóricas, a fim de ultrapassar as condições históricas e sociais nas quais se elaboravam as ciên­cias. Nas últimas décadas, porém, a sociologia começou a per- _ ceber no próprio fenômeno científico um objeto muito intere~ sante de estudo. A~im, a preocupação de rentabilização das pesquisas levou! a que se empreendessem, sobretudo nos E.U.A., estudos sobre a criatividade, sobre a rentabilidade dos laboratórios, sobre os perfis das carreiras científicas, sobre as relações entre pesquisa e indústria, sobre a utilidade das pes­quisas fundamentais ou teóricas, etc. Foi assim que se cons­tituiu uma sociologia funcionalista das ciências, transpondo _

- para o novo objeto "ciência" os métodos preestabelecidos_ ~­las várias ciências naturais, e rarame~te passando da "regula-­ção da conformidade .. social a uma crítica epistemolóJica ou sociológica da própria sociedade ou do sistema social.

Mais tarde, sobretudo -na Europa, a partir de uma refle­xão sobre os movilnentos de ''contracultura" americanos, re­fféxão mais aprofundada e mais crítica, surgiu uma "onda de antkiência". _ Passou-se a falar de urna "crise" da ciência. To­mou-se consciência ~ que a ciência constitui um problema reaL E ela começou a ser contestada, porque parecia conduzir o mundo a impasses. Nessa perspectiva, é ilusório buscar na ciência os remédios pau seus males. Também é ilusório crer que uma simples reorganização política poderá trazer a salva­ção: há algo de "podre" na civilização científica. A ciência não se mostrou capaz de produzir a felicidade. Contribuiu para a manutenção das desigualdades sociais e pa@ a explo­ração ·do Terceiro Mundo. Constitui uma ameaça para a pró-

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pría sobrevivência da humanidade. Por outro lado, fruto des-5a tomada de consciência , assistimos a uma politização cres­cente dos pesquisadores. Politização ligada à degradação de suas condições de trabalho (diminuição dos créditos) e de sua 1nsegurança relativamente às possibilidades de emprego (já se fala em "proletarização" dos pesquisadores). Conseqüência: a "imagem" do "sábio" começa a ser desfigurada. Imagem veiculada pela imaginação popular, embora alimentada pela representação que os cientistas faziam de si mesmos.

Evidentemente, essas representações populares não pode~ ser ratificadas enquanto tais. Uma das tarefas da sociolo~ia da dência é justamente a de romper com essas visões espontâneas que masçaram a realidade social com as representações sim­plistas que dela se faz. Em outras palavras, a- sociologia da ciência apresenta-se como um excelente meio de estudar a cri­se atual da sociedade. TaWcz sua maior missão consista em revelar que a ciência traiu a esperança que a humanidade nela depositou. Não teria chegado a hora do ajustamento de contas? Para tanto, o papel da sociologia da ciência é fundamental. Entre outras coisas, compete-lhe mo.suar que o surgimento de uma nova disciplina, que a chamemos de metaciência ou sim­plesmente de ciência da ciência, não se justifica apenas pelo aparecimento de um novo problema. São a.jnda necessários um método miginal, novas instituições e um corpo de pesqui­sadores especificado por um papel ao mesmo tempo intelec­tual e profissional. O problema está no nível da "ciência da ciência", e não somente no de seu componente sociológico. O setor ainda limitado, que é o da sociologia da ciência, passa atualmente por uma fase de institucionalização, ao passo que mal acabam de se congregar algumas questões, alguns postu­lados e métodos, provenientes de diferentes horizontes episte­mológicos, · tudo isso associando-se para constitu;r a carteira de identidade ou o "paradigma .. da nova disciplina.

De que maneira a sociologia da ciência poderá contribuir - para a elucidação do que vem a ser a "ciência da ciência''?

Antes de tudo, mostrando que se deve eliminar a falsa imagem que ainda se tem da ciência, .para que seja desvendada sua verdadeira significação, residindo muito mais no "poder" que o saber confere do que no saber enquanto sabe-r. Nesse sen~

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tido, a soci~Io8ia da ciência se distingue da sociologia do co. nhecimento: ela não dá tanta ênfase ao "discurso científico" • nem tampouco às articulações entre esse discurso e a ·socieda. de que o produz, quanto aos grupos produtores e consumido. res dos discursos científicos. E basta um pouco de atenção

_ para que se possa perceber que tais grupos não são regido~ por "leis" científicas. Talvez se possa dizer que foi o medo dos elementos não-cientüicos presentes nos discursos científi:. cos que reduziu o raciocínio científico a uma espécie de lógi. ca formal. Nesse domínio, entra em cena o sociólogo da ciência ao menos para revelar os componentes extracientíficos incrus. tados nos discursos científicos. Ele leva os pesquisadores a remontarem a um "aquém" da idealização de suas próprias práticas científicas. Segundo 1. J. Salornon, é preciso que nos interroguemos sobre "a irracionalidade da instituição que eJi. carna, com ml)ito brilho, a irracionalidade ocidental,. (SciefÜ:e­et Politique, 1970). Talvez tenha chegado o momento de se afirmar que a mística e o ideal científicos, a neutralidade ob. jetiva e o mito da cientifiddade, a rigorosa honestidade inteléc. tual dos pesquisadores e outros substratos ideológicos constitu­tivos da imagem que, em boa fé, os cientistas apresentavam de si mesmos, perderam muito de sua credibilidade e, simultanea­mente, destruíram um dos suportes da unidade e da universali­dade ''da" ciência. Evidentemente, o papel da sociologia da

. ciência é limitado. O que ela pode fazer é colaborar para a interação de vãrias teorias científicas 'obre a educação, a cul­tura, a ideologia, etc.

Qual a relação da sociologia da ci~nci~com a epistemolQ: gia? Até bem pouco tempo, a epistemologia estava presa à filosofia das ciências. Hoje, cada vez mais ela se apresenta como uma disciplina-encruzilhada, orientada sobretudo para a his­tória é a sociologia- das ciências. Todavia, o recurso meio apres­sado que se faz à epistemologia lógica ainda corre o risco de, por vezes, mascarar a realidade sociológica que se encontra por detrás de todo discurso cientifico. Portanto, para evitar as armadilhas das reduções à epistemologia, a sociologia da ciên­cia foi obrigada a afirmar-se numa certa independência. Exem­plificando: o problema das discipJinas científica·s pode ser abor­dado em função dos objetivos específicos e dos métodos de

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cada setor de pesquisa, mas a sociologia da cJencta prefere estudar o grupo através de seus componentes extracientíficos: luta dos pesquisadores pela "notoriedade", querelas de priori­dades, problema de mobilidade, de concorrência, de resis­tência à inovação, peso institucional, etc. Essa perspectiva so­ciológica permite urna melhor tomada de consciência da "crise da ciência", isto é, da distorção entre o papel real da ciência e sua vocação específica. Isso não quer dizer que, nesse assunto, a sociologia elimine a epistemologia: as relações entre as es­truturas sociais e a estrutura dos conhecimentos foram muitas vezes estudadas, sempre havendo uma relação dialética entre as sociedades e as estruturas dos conhecimentos que elas se dão.

Ao publicar, há urna década atrás, A Estrutura das Re­voluções Científicas, Thomas Kuhn liberou a história· das ciên­cias da hnagem de um progresso linear, de descobertas em descobertas_, obedecendo apenas às "leis" objetivas da lógica. Todo o trabalho epistemológico de Gaston Bachelard segue a mesma perspectiva. Ambos os autores fornecem à sociologia uma contribuição valiosa: o estudo do enraizamento histórico real exige que se faça apelo não somente às condições lógicas do exercício das ciências, mas também, e sobretudo, às "leis'? das comunidades científicas fechadas, ao peso das tradições, às co~Ç_ões econômicas e aos .co~ormismos de "escolas". Donde­a importância de se empreender uma tríplice tarefa: a) Jiistória do discurso científico, em- sua concatenação lógica, é claro, . mas também com presença dos erros, das fra·udes e das repe­tições; b) história dos panos-de-fundo filosófico, ideológico e cultural das ciências; c) história dos enquadramentos sociais e de suas mutações permitindo o progresso científico. A essa tríplice tarefa, ta·lvez fosse preciso acrescentar uma quarta : a história da história das ciências.

A sociologia e a história das ciências não são as únicas disciplinas a nos permitirem urna compreensão histórica do lugar do cientista na sociedade. Também a psicologia gené­tica, tal como praticada e aplicada por J. Piaget aos problemas da formação e estruturação da inteligência, premite-nos com­prender aquilo que, no nível individual, modela o saber cienti­fico. Com efeito, e!Sa disciplina revela que os saberes novos

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não se imprlmem sobre um domínio puramente receptivo, mas devem combinar-se com as estruturas internas já presentes no sujeito cognoscente. Assim, cada nova contribuição é interpre­tada com o auxílio de instrumentos cognitivos de que o sujeito já dispõe. Por outro lado, todo ensino científico, bem como tcda difusão de teorias novas, deverão contar com esquemas preexistentes irredutíveis à simples lógica da ciência. Assim, a resistência interna do sujeito cognoscente à "assimilação" de uma nova idéia (Piaget) pode ser comparada à resistência do -corpo científico ao surgimento de um novo paradigma (Kuhn). A diferença está no fato de Piaget insistir no caráter contínuo da adaptação, ao passo que Kuhn enfatiza o caráter evolutivo "'' por saltos", vale dizer, por descontinuidades ou por " revolu­ções". Bachelard diria : por " rupturas epistemológicas".

Algumas concl(lsões

I . A primeira conclusão a que podemos chegar, depois <iessa rápida situação do problema da "ciência da ciência", o que nos levou a indicar algumas contribuições de certas discipli­nas para a compreensão do lugar real da ciência na sociedade, diz respeito a um ponto que mereceria ser .aprofundado: o dos limites da "cientificidade" não somente das ciências, mas tam­bém dessa nova disciplina, de caráter epistemológico, apresen­tando-se, porém, com todas as caracterís ticas de uma verdadei­'ra ciência: a "ciência da ciência". Uma das características dessa disciplina consiste em ser fortemente ''redutora" relativamente às diversas ideologias da ciência, sobretudo graças à sua pre­tensão de rigor objetivo, de neutralidade ética, de universali­dade e de utilidade. Ora, uma das coisas que podemos observar é que o desaparecimento dos álibis ideológicos, provocando crises e conflitos no interior dos grupos científicos outrora unificados por sua ideologia, quase sempre remete a proble­mas políticos não resolvidos. O que se pode dizer é que, até bem pouco atrás, a atividade "política" dos cientistas Iimitava·se à defesa de uma ideologia humanista da ciência. Inclusive, não foram poucos os cientistas a negarem, em seus trabalhos, a intromissão de toda ideologia ou fator político. Em se~s deba-

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tcs com W. Reich, por exemplo, Freud declarava solenemente: ··Eu sou um homem de ciência, e nada tenho a ver com a politica". Ora, o ~rabalbo _crítico ~a ciência deveria hoje inter­ditar semelhante hpo de atitude, sliDplesmente porque não pode ser considerado correto. Ademais, para além das atitudes de conformismo ou de profetismo, podemos constatar que o desa­fio político da "ciência da ciência" passa por uma critica siste­mática e rigorosa das ideologias que já funcionam, nesse do­mínio, com as ideologjas que nascem cada vez que a ciência, ao invés de romper com elas, vêm ocupar o seu lugar. Sem dúvida, isso é feito de modo inconsciente, mas não menos eficaz. Aliás, quando a ciência se converte em ideologia, ela passa a adotar uma verdadeira "tirania pedagógica",. se não política.

2. Em segundo lugar, aos ·defensores de uma epistemo­logia que seria._uma demarche refl~xiva sobre a ciência, com pretensões a resultados controláveis e universalmente ~álidos, lalvez fosse oportuno objetar: conferir os caracteres de uma verdadeira ciência a uma disciplina cujo objeto de estudo é a própria ciência, é fazer uso de uma noção não científica, ~as ideológica. O que seria, por exemplo, uma "ciência das ciên­cias humanas"; visando a descobrir suas estruturas e mecanis­mos comuns, senão uma disciplina que tenta apreender a essên­cia comum dessas disciplinas? Se não se trata de uma "essência" das ciências, como se poderia-falar "da" ciência ou ' 'do" conhe­cimento científico, para que seja instaurada, depois, uma "teoria do conhecimento científico"? Portanto, já se encontram presen­tes, na própria J ese de uma "ciênci!l da ciência", certos pres­supostos filosóficos que freqüentemente dissimulam e revelam ao mesmo tempo a concepção segundo a qual a ciência poderia, por simples reflexão sobre si mesma, desvendar as "leis" de sua constituição, de seu desenvolvimento e de seu funciona­mento. Ora, para que tal disciplina seja possível, seria preciso que o discurso cientifico tivesse uma virtude de poder enun­ciar por si mesmo os princípios de sua própria teoria. Ademais, seria preciso que ete· fosse soberanamente autônomo, capaz de determinar por si mesmo o espaço de seu próprio desvelamento ou desenvolvimento. Ora, a ciência se impõe como uma com­ponente da _realidade e da organização humana e social. Ela

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tem uma fínaJi{iade extracientífica, vale dizer, não interna ao desenvolvimento da ciência.

3. Em terceiro lugar, falar de uma "ciência da ciência" significa admitir, como pressuposto, a existência de uma "ciên­cia" una, a cujo propósito se poderia formular teorias defini, tivas. Ora, "a" ciência não existe. O que existe, é um conjunto de ciências (no plural), cada uma com suas características próp_rias, mas não podendo constituir um todo coerente e susceP' tível de um estatuto unitário. Cada ciência fornece a explica­ção de um aspecto do real. Não há, porém, uma ciência do real integral. E é por isso que também não se pode falar de uma "filosofia da ciência". I! mais correto falar de filosofia dessa ciência . Não se pode conferir a uma ciência o privilégio de inteligibilidade total. A unidade da ciência não pass~ de um

. sonho. Por isso, conferir o privilégio de inteligibilidade a uma disciplina, é uma opção que traduz uma tomada de posição . prévia injustificável. Donde a ilusãOdaqueles que conferem "à" ciência uma importância perinitindo que se faça a economia de uma filosofia, porque seria sua própria filosofia, sob as deno­minações de "metaciência", de " lógica da ciência" ou de "ciên­cia da ciência".

4. Em quarto lugar, achamos muito arriscado, para não dizer pretensioso, falar de uma "ciência da· ciência". Pela mes­ma razão que acreditamos s er uma temeridade falar de uma filosofia "da" ciência. Ora, a filosofia "da" ciência é uma filosofia que imobiliza, no tempo, um . dos momentos da ciên­cia, aparecendo como um espelho deformador daquilo que pre· tende exprimir. Ela introduz no exame do real as convicções próprias do pensador, suas esperanças e seus pressentimentos. O inconveniente de fundar a filosofia sobre a ciência de uma ép~a pode ser ilustrado com o caso de Kant. Seu olhar estava adstrito à ciência · de seu tempo, a física de Newton que, para Kant, era "A Ciência". Essa ciência foi tomada como "o" conhecimento verdadeiro, objetivo, válido e, por conseguinte, como ponto de referência -para julgar todos os demai s conheci­mentos. Ora, essa ciência foi ultrapassada· pelas teorias einstei­nianas. A filosofia que se apoiava sobre ela também se viu ultrapassada.

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5 . Enfim, a pretensão de construir uma epistemologia científica, uma reflexão crítica sobre a ciência, mas repousando sobre um caráter científico, outra coisa não faz senão ressus­citar, em termos científicos, um velho projeto filosófico: enun­ciar os critérios não somente de toda cientificidade, mas também da própria verdade. O projeto de Hegel, por exemplo, visava a estabelecer as categorias da cientifícidade da ciência, bem como 0 fundamento e a justificação do conceito de ciência. Para ele, A Ciência da Lógica é a ciência filosófica. Em outras palavras, ele pretendeu fundar uma "ciência da ciência". Da mesma forma Kant, ao interogar como as ciências são possíveis, procurou desvendar os critérios da cientificidade do conheci­mento. Para ele, a filosofia das ciências se convertia na pró­pria filosofia. Esta pretendia ser a consciência da ciência e, para ser válida, devia justificar-se aos olhos da exigência cientí­fica. Nessas condições, postular uma epistemologia científica, tendo os caracteres de urna "ciência da ciência", é retomar um projeto filosófico que a própria filosofia já abandonou. Porque, por mais científica que possa parecer uma epistemolo· gia, ela dissimula sempre um pressuposto filosófico e oculta, pelo fato mesmo, a justificação de sua utilidade pedagógica e social, bem como da definição de seu estatuto científico. Donde ser des-provida de sentido a pretensão de substituir a filosofia por uma epistemologia científica. Essas duas disciplinas estão numa ·relação de um subconjunto (a epistemologia) ao con­junto de qúe ele faz parte (a filosofia). O ·papel da filosofia ­consiste em abrir o espaço mental epistemológico, criando um horizonte comum que se recusa a todo confinamento. Podería­mos dizer que ela é a epistemologia das demais epistemg!ogias .• isto, é o lugar em que as epistemologias se neutralizam naquilo que apresentam de excessivo, e em que elas se fecundam para que as ciências guardem o sentido da obediência ao humano.

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VI

PAPEL DO 'EDUCADOR DA INTELIGÊNCIA'

<Jostaria de render homenagem a um personagem meio ridículo : o professor. O lu­gar que lhe é reservado na sociedade atual é um dos mais inferiores. O status do profes­sor é inferior ao do proprietário de armazém de artigos baratos, está mais distanciado do status do médico em seu papel de bruxo moderno, d·o status de uma cantora de segunda categoria, de um manequim ou de um lutador de boxe. A única excessão é para o professor que ajuda a fabricar a superbomba ou que . descobre um procedimento eficaz para au­mentar as vendas de um produto desodorante. De pouco pode vangloriar-se o pobre profes­sor. . . No entanto, pode vingar-se sigilosa­mente. São as idéias que movem as coisas. Neste sentido, os professores manipulam, sem serem vistos, os cordões dos fantoches da his­tória, forjam as opiniões, os valores e desco­brem as soluções.

L. von BERTALANFFY

Todas as vezes que algúém faz ou diz algo de novo num determinado campo do saber, os entendidos _no assunto come­çam logo por dizer: não pode ser verdad~; em- seguida, acham que é contrário às opiniões estabelecidas, às tradições culturais implantadas ou às verdades adquiridas; finalmente, que todo· mundo já sabia isso há muitQ tempo. Vou, portanto, dizer algo que todo mundo já sabe. Muito embora nãQ esteja con­vencido de que, no plano da educacão., tódo··mlmdo· leve ·a éteito .. na _prá.tiCi uma pcdagp&ia da inteligência. Ao C{)ntrário, assusta-me constatar que as institui_ç_ões educati'!las Ae transfnr­~-~~m quase Pür comW.WJ.m .tslabe1eçjmell1.0.S apenas de

- ~ino. As universidades parecem transformar-se . cada vez mais em escolas profissionais destinadas a produzir funciopáóos ~écnicos de t~q_s os níveis, esquecendo-se de sua missãn de formár _a ·:;nieligincia, de promover, inventar 011 rejnventar a culttÍra no seia de Wl' mimdo que se desfaz ~ tda.z

Ora, se a. universidade pregsa $Ct entendida ~lllQ. .um lllgar de comllllidadt. e de ...comnnica,cãa, e não como um aglo­~erado de· saber:es_justapostos, ende seus "especialistas" se ignoram solenemente. formando uma espécie de círculo em que cada um dá as êostas ~- tOdos . os demais e, conseqüentemente, traindo a exigência que os congregou numa comunidade de saber qye se afinna na unidade das disciplinas e do processo ~ucativo~ _se a un.iversidade não consiste apenas num d~pósito central da cultura, tendo por funÇão distribuir seu estoque de

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saber em pequenas rações aos educandos, mas num lugar _ e.QJ que o ensino e a pesquisa não podem ser dissociadas para a promoção do conhecimento; se sua missão consiste em encãr­nar a teoria, quer dizer, a força e o poder do conhecimento e da reflexão, d'esvlnculados, o mais possívél, ·das ad~fa~.:R91í­_ticas, administrativas e ideológicas, então, o papel do educa­dor não será mais o de um transmissor de conhecimen~ feitos, mas o de alguém que seia capaz de manter desperto 1J.Q educando o priQCÜ?io da cultura <:O...Dtiauada, que jamais poderá ser confinada ao tempo escolar, pois a universidade_nãu._t_._ .Penitenciária central da.cul.tllr.a.a O educador não pode ser cúm­plice desse tipo de obscurantismo pedagógico que consiste em adequar não somente o conteúdo~ mas também a forma de seu ensino às palavras de ordem do mercado de trabalho, do ren­dimento, da produtividade, da eficácia no domínio da ação, da transformação. das necessidades em conhecimentos. _ Fazendo. isso, ele se to\'fla um verdadeiro saltimbanco de uma filosofia industrial que ·se acahinta com sonhos pueris . . Esse analfabe.tis­mo transcendente constitui uma das formas mais nocivas do niilismo contemporâneo, sem abertura de espírito e sem um sentido agudo da realidade humana. Na medida em que a universidade se contenta em fabricar em série diplomados de todos os tipos, não somente está traindo. sua missão próprja, comQ. _está pr~stan_do um enorme desserviço à sociedade, pois

_está impedindo·se de elaborar uma teoria geral da cultura, ca­paz de integrar todos os saberes em vista do fazer, dentro do · éonjunto da envergadura do espírito e do sentido da totálidade humana.

Considero um dos ôefeitos fundamentais do educador, em nossos dia~, o tato. .de. ele não dnyjdar de si ...m.esrno, de nà\. ·­questionar seu saber e de ancorar·se única e exclusivamente na seg;nran~;a de sua especjatJdade,. protegido que estâ pelo hermetismo de sua linguagem e pelos exercícios rituais de suas técnicas pedagógicas. Ao converter-se em "alquimista do verbo" ou ·em perlli> .em .táticas didáticas, o educador escapa ao con.: troTe, ao <:onfronto, ficando ocultada sua· fraqueza ou, o _gue ·é ainda· pior, não po~end_o _- ser ~velado que muitas vezes .. c.lç_ não sabe o ·que está fazendo, nem tampouco por que ou papt quê. Ora, a cducadar .não Lal&ném .'11le detém ciumentamente

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0 monopólio da verdade sobre determinado setor do conheci­mento. Muito ~enos ainda1 alguém que procura impor "sua" verdade ao~_O!ltrqs, pois não possui uma concepção da verdade como fórmula universal. A verdade do conhecimento é uma procura, e n~o uma posse. O espírito de proprietário pedagó­

_gico é 90 qtesmo tempo antieducativo e anti-humano. Creio que a terrível insipidez de muitos métodos e téc­

nicas· de pedagogia, bem como a ausência generalizada de in,te­resse por sua árida literatura especializada, encontra sua expli­cação no desconhecimento quase sistemático das relações educa­dor-educando, centro_ de todo processo educativo. Muitas vezes . a pedagogia dos pedagogos procede a partir de uma doutrina or~posta e, portanto, ·ignorada, veiculada por sofisticadas téc­nicaS de catequese intelectual. A . procura metódiça e sistemá­tica- de uma metodologia universal, ·bem como a tentação de refÜgiar-se na tecnicidãde dos meios de. "transmiss-ão" do saQer, supervalorizando a "educação" dá atenção, da memória, da ' 'aprenc;iizagem" P.O! re_Torço ou condicíonamento1 é um dos sintomas _desse _obscurantismo pedag2gko de q~e. falei, muito útil e eficaz, nos processos de adestramento e de "dociliza~o", nocivo, porém, no processo verdadeiramente educativo. Iaàez uma das causas- fundamentais· do desastre da edueação escolar esteja na tendência crescente em transformar as salas de aulà em oficinas onde se trabalha tendo ·em vista-:o rendimento, a operacionalidade -do conhecimento e sua "utilidade" .a curto prazo. Essa atitüde pçxl~. revelar a vo_!ltad'e co_pscient~ ou inco~s­ciente de dop:1esticar a inteligência do educando, de "endicipli­ná:la" (no s~ntido· de enquadrá-la) segundo as exigências do mitier ou atividade profissional a serem exercidos.

Sem dúvida alguma, a civilização técnico-científica. atual supõe certa harmonia entre o homem e . seu meio social. To:­davia, a . eiJncago não ·tem por objetiyo desprezar a subjeti­vidade do educando em proveito apenas das normas . econô-­micas ou profissionais . . Pelo contrário, ~Q.úunção é a de fazer. desabrochar e desenvolver tal suble,tividad.e para cu:ompreensãn, para_ o esptrito crítico (n.ão no sentido .de rejeitar, mas no de ex~ar e de passar ao crivo) e _para a Iibertacão. Original~

· mentê organizada em vista da educação e do ensino,' a univer­sidade atual parece uma instituiec,ão dev.astaga e .sem o~ivos.

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çla~:os, sem o domínioJie su~un.çã.e.Le. de s~u papel no dQ:... mínio do sabe{, 1imitando·se quase ~ -fw:m~ de mão-:d_e:.Qbra especiali4'!9a e a responder solicitamente às demandas do .met:· caóo de trabalho. O que a sociedade atual exig~ das universj. · dades? Que elas formem indivíduos que se assemelhem o maiS perfeitamente possível aos modelos e exigências de nossa civ}. liz.ação. Em lugar do termo formar, talvez fosse mais adequãdõ dizer conformar. P ~ ~ interessa à sociedade ... é q!le as universidades "ensinem" um conhecer que seja ao mesmo tem_po um saber-fªzer.

Ora, o educ_ador deveria estar atento para que a especiali­zação exagerada 'e prematura, reduzida aó saber-lazer e fundélda n_vma restrição meutal, se abrisse ao trabalho de formação e de cultivo da inteligência .do educando, comportasse uma aber­tura à pluralidade do saber, ao sentido das corresp~mdências, à imaginação e ao espírito de criatividade. O espírito de anã- . Iise, mdispensá-bel como exigência: metodológica, deveria ser completado e compensado peJa vontade de síntese, pelo desejo de evidenciar as perspectivas de conjunto e as articulações do conhecimento. Vejo no saber especializado, quando fechado e divorciado de uma teoria da cultura, uma das formas mais efi­cazes de alienação mental e moral. Parece·me uma função es­sencial da universidade ser ur_n centro .elabarador da _auturaJ c~ntro que qualifica e "com.petentiza" os ind.ivídli!>S. certamente. mas que seia capaz de situar .as competênc~ .dentro -de. .ma conjunto cultural mais vasto. ·

S.e .. admitimos _que "compreender" sei a "inventar'' ou "re­construir pQI jnyenc;ãq" .{Piaget), creio q~e não podemos acei­tar sem mais: qhe ·o educador se converta nesse personagem· tendo por função adaptar o educando ao meiQ social em que.. ele vive. O termo_ ·~a.d.aptação" é mágico..e.~fim; faz-nos pen· sar muito mais em máquina e em piologia do que em educação propriamente dita. Porque a .. adaptação" recebe suas normas e seus imperativos de uma situ.ação dada e de uma realidade que preexiste a ele: não leva em conta as diferenças, as antinomias ou os con!litos do educando (entre sua subjetividade e as estru­turas sociais preexistentes}. Num domínio diferente, no da chamada "educação permanente", deve-se dizer que esse tipo de aperfeiçoamento, quando não bem entendido, talvez con-

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sista, na prática. em favorecer uma adaptação constante às estruturas já existentes, em reforçá-las, permitindo-lhes certa perenidade. Assim entendida, a adapta~o é um ajustamento

.a um.J.mxk.LCLe~terior onde o educando encontrará as respostas já prontasl que lhe são "ensinadas" ou "transmi~idas" com _a .. pedagogia" do inculcamento. De _preferência. e~dãda numa éiência .PSicoped!ag_ógica. Ora, a meu ver, o papel do educador não pode consistir em fazer valer uma estratégia• para modelar o educando a fun de convertê-lo no "homem-modelo", erigido por uma "sociedade-modelo" e dentro de uma "cultura-modelo" onde tudo funcionaria às mil maravilhas e sem pane, isto é, sem reflexão e sem alegria.

Cada vez mais estou convencendo-me de que .o pa.Pel do educador não consiste tanto em ser um homem de ciência .L .um perito em sofisticadas técnicas de psicologia-experimental, um exímio malabarista em métodos pedagógicos, quanto em ser alguém realmente capaz,. antes de tudol de realizar uma obra humana cujo valor ou não-valor escapam à c.omp_etência do saber ana]ític9 e experimental~ muito embora este Jhe possa prestar relevantes serviços. Aliás, nesta matéria, seria tentado a dizer que a experiência ordinária e ·o bom senso, bem mais próximos da pedagogia do ensinar a "aprender a aprender' ', podem exercer um papel educativo muito maior do que certos conhecimentos meramente teóricos calcados num metodismu que violenta, como todo método, -o objelo sobre o qual ele se aplica. O objetiyo da _ pedagogia. parece-me, não _consis.t~. em-· tratar o educando como um . "caso' ' panicular . ou co~ .Ufll ''exemplar" de um conceito ger~ mas emJQrnecer-lhe. todas as possibilida4es. de um ~sabrochamento pessoal .lllUD.-Contexto determin.ado, Trata-se de um . ~mpreendimento que só pode ser realiz~do por um contato direto, e não pela mediação anô­nima e fria de análises e métodos experimentais no interior de um "laboratório" e~rimental da inteligência. Sem dúvida, to­dos os métodos e técnicas empregados pa.ra extrair informações concernentes às experiências sobre a atenção, a fadiga, a memó­ria, a aprendizagem, a inteligência, são importantes· e úteis ao educador. Todavia, o conjunto sistematizado ou orquestrado desses conhecimentos não basta para fazer dele um pedagogo.

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Por consegúinte, o educador que se limita a transmitir um programa de ensino ou que procura adaptar a inteligência do educando aos códigos ou modelos preestabelecidos do saber e não faz de seu "ensino" um meio de favorecer e de desen: volver a inventívidade ~ a reflexão do educando, só é educador por eufemismo. Na realidade, é muito mais um administrador ou um disciplinador da inteligência. Ora, se os métodos pedagó­gicos não forem capazes de introduzir no educando certa neces­sidade psicológica, certo \'desequilíbrio'; (Piaget): processo· de desequilibração-equilibrante ou- de equilibração-desequiltbrante; se não forem capazes de introduzir nele um fator de desencan­tamento e de desenfeitiçamento técnico, ele não poderá parti­cipar ativamente da cultura, permanecendo um mero consu­midor, de conhecimentos já elaborados, já construídos e assimi­lados por outros; será . essa "caixa negra" receptora passiva de todos os in puts externos, produtora inconsciente ou ingê­nua dos vários out puts éujo sentido e cuj~ razão de ser são . solenemente ignorados. Essa "pedagogia", calcada numa. psiço-: I~ia q~e .se if'!l.Eõe como fo~ça:-soçiiil •. mod~l!lndo_pa(a o homem sua próp.ria imagem ~ _di.rigí.od9 os_ .. proc.e.ssas...e_ducati.vos,. . te~ ~~a pór fazer do educando uma_. ~áqui.~~ que pode· ser pro­gramadaJ como se seu comportamento devesse enquadrar-se num tipo de operação comercial onde os ga~to~ devem ser mí­nimos, e m~imos os benefícios. N.ã.P vejo como os conceitos "estímulo-reação", "ingresso-saída", "produtor-consumidor", to­mados -de empréstimo à psicologia convencional, não estejam fun-dados num tipo de "filosofia pecuniária". Com efeito, a filosofia mercantilista do anunciante faz apelo a um "receptá­culo cerebral" (a caixa-negra dos psicólogos) onde são in­culcadas certas "idéias" com exclusão das demais. Na lógica pecuniária, a realidade e a verdade são substituídas pelos dese­jos sonhados e· pelos condicionamentos consegUidos -p~la "arte" do anunciante. Creio ser extremamente perjgoso transpor ~~ esquema .para o domínio da educação: esta seconverteria em técnica de manipulação, e o educando se tornaria· numa espé­cie de "autômato" infra-humano.

A meu ver, o primeiro dever do e..~.a..c.lor consiste em ' guardar um interesse '.fun<f»mental .pela pe34uis~m desper­

t~r...no._educando 0 .~frito ik busca, a sede da descoberta da

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imaginação qiadora _e _d_~ insatisfa_çã.Q_ fecunda no domínio do -~abex. O essencial é que o educando permaneça sempre em estado de apetite. Quando tudo lhe é explicado, não só a expli­cação é errônea, mas ele não deve ter entendido, porque, guem çompre_çJ!de,_ sempre tem dúvida~. está sempr~ insatisfeito e disposto a novamente interrogar. Se o educador tem algo a "ensinar" ao educando, creio_ que se trata de um "~nsi~amento" que. o leve a compreender que é ele mesm-o quem deve assumir. sua própria educação; cabe a ·ete fazer dela sua obra fundamental e original, única e intransferível. Ninguém se educa, como ningu~m c~a, co~ idéias "ensinadas". -Ensinar à aprender, a se .construir ou a se_f~Construir: eis o ppp_el._qo . edu.cador. Todo progresso na educação está na construção do espírito e não em sua domesticação. Parafraseando.-Sartre, atrevo-me a dizer que o educando não é aquilo que fazem dele, mas aquilo que ele faz daquilo que fizerani _dele. E Bachelard tem inteira razão quando se insurge contra um a educação confinada ao tempo-es­colar, e não prolongada no decorrer· de toda a vida: "Uma cultura que se limita ao tempo escolar, .é _a p_r9p_ria negação da culturã científica. Só há ciência por uma Escola permanente. :e essa e~_coJ.~ que . a ciência deve fundar. .Então os interesses so· ciais serão definitivamente invertidos: a Sociedade será feita .para a E~çola_. e n~o ~ Escol~. para a Sociedad~:·. Por isso, no domínio do saber e .da formação da inteligência e, conseqüen­temente, de nosso processo educativo permanente. deveríaQ10S fazer nossa a oração desse grande educador, sábio e filósofo: "Fome nossa de cada dia nos dai hoje".

Depois dessas colocaçõ~~. creio .que não podemos com~ preender o papel" ·do· "Educador da I nteligência" a não ser tentando descobrir, se não a filosofia, pelo menos uma "fHoso~ fia da educação, que o funde, que lhe dê sentido e o justifique. Vimos que não pode ser uma filosofia industrial, tampouco uma filosofia dirigista ·e manipuladora. Na verdade, interroga..r-. se sobre o papel e o estatuto do "filósofo da educação" sig­nifica, em grande parte, tomar consciência do processo de desprestígio social, de redução e de descrédito por que p assa, hoje em dia, a própria filosofia. Portanto, trata-se de inter-

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rogarmos, quer sobre a significação da filosofia, quer sobre os mecanismos de seu ensino e sobre seus agentes "transmissores". Só podemos entender a situação da filosofia atual meditando sobre sua própria história e sobre as condições daqueles que dela fazem uso ou um meio privitegiado para tomar cons. · ciência de seu tempo e de sua cultura. Infelizmente, nos dias de hoje, o ltt:Oie.ssái de. filas.ofiu .reduzido a ~se~.a.r o papel. de mero empreg_ado universitário. Mesmo desempe­nhando essa tarefa modesta, parece· que ele não escapa à sus-. peição de ser um traidor em potencial. E a razão parece ser a seguinte: filosofar, consiste em fazer apelo à reflexão pessoal. E toda sociedade teme a reflexão. Ora, do medo à cólera, a distância é pequena. Donde a fuga do pensar. Ademais, pensar por si mesmo, já é um perigo, não só social mas individual. Qual ._é. o .. homem .. que .. não e.stá _ dispQStQ a deciicar.. · ho(as. e horas. de tr~balho. "útil" para evltar alguns minutos de reflexãç? . Em todo gruPP.~, e em . cada um de nós. há uma oposiçlo J a,teJI.t~ ao .Mnsar .. e. .ao. re~pensar. Somente uma sociedade rea1-mente liberal ... P..ode permitir esse confrog,tQ, . ~ possib.Hi!~(_a seus membros .a OP.Ortuni4~e. .dt;. llllla .educaçã9, não somente em função de um grupo particular, mas da própria inteligência dos que pensam e do destino da humanidade. Uma sociedade que perde essa consciência que . a cultura tom~:. de si mesma, está fadad.il a perder a. c,onsciência de si. ~. com-isso,. a..igno"7 ' rar a dupla utilidade d~ um ensino filosoficamente f~ndado: a) permití.J:Jl.ue . os_cducandQs. ·J.P~dam .a. cxrtícar .. qui:r dize.[. examinar e passar ao crivo as opipiões ·rece.bidas ou impostas, as idéias e tradições transmitidas e os ensinamentos aparente-. mente inquestionáveis; b) tomar possível o ultrapassamento do .c.o.nf.o.rmismQ. .. e do inconformismo em vista de~. pçwiaQ.g sem~re maior entre o _pensamento e . l\ ~ção. Porque a "negati­vidade" não pode ser entendida como um momento .. demoli­dor", mas como um m6todo a serviço de uma positividade mais elevada. ~or isso, a educação, quando fundada filosoficamente, torna·se tanto mais n~essária quanto mais se desenvolvem as ci~ncias e mais impositivos se tornam seus produtos. Pelo .fato de não descobrit :veutad~s parciais . e objetivas-'J. sendo.J. por .isso mesmo,_$Acbada de sul?jetiva ou de nJcrsaber, nem por isso a filosofia da e<l~ado.....perde seu s~ntido. Pelo . <;Qotr.ário. ela

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possibilita ao educando apreender de outro modo a condição humana em sua universalidade. Sem dúvida, n~o co~pete ao filósofo da educação intervir nas verdades particulares das dências'~ mesmo psicopedagógicas. Contudo, ele não ·pode abdicar-se de seu papel de refletir sobre o fundamento de toda verdade, sobretudo das que dizem respeito mais direta­mente aos processos educativos. A nesse sentido que tal filo­so(ia não -pode ser obra do "entendimento'', mas da "razão". E é P-Or issQ .. _que.J:la . s~ .. Jorna imprescindível a todo ed~cador qqe. nã.9. q:ueira perder a Razão!

Nesse contexto, como . podem. ser encarados. o p_apel e o estatuto do fil9sofo da educação'? Seria ele um personagem qtre, no conjunto das produções ideológicas de seu tempo, fosse aapaz de propor sistemas educacionais reflexivos e coerentes de conceitos ou idéias nos quais a prâtica individual e coletiva encontrariam o ·lugar de sua reflexão e a determinação de seu sentido? ~ seria ele esse personagem meio ridículo, encar­regado de "transmitir" um saber no qual ~inguém parece acre­ditar, por .ser completamente inútil e não operacionalizável? Urrul coisa parece certa: o filósofo_da.educação não tem muito de que vangloriar-se. Todavia, o simples fato de sempre . existir a questão· Sóbre süa significação, deve ser para ele uma razão de humildade, e não um motivo de humilhação. ~ bem verdade que. ele encontra, como todos os que se dedicam . à filosofia, hostilidade e menosprezo, sobretudo porque não consegue pro­por um saber científico, objetivo, prático e útil. Qs · filósofos da educação, dizem seus detratores, pedem ser o que bem quise­rem~ nias de forma· àJguma poderão propor conhecimentos cien­tificamente válidos. Se por acaso tivessem tal pretensão, teriam que submeter sua filosofia a uma reforma geral dos pés à cabe­ça, o que s6 se tornaria possível se ela renunciasse à sua pre­tensão exagerada e irrealizável de querer situar os saberes dentro de um saber total e englobante, para entrar decidida e docil­mente na escola das ciências modernas.

Muitos foram os filósofos da educação que ouviram tais . . sermões com humildade e boa vc;mt~de. E converteram-se.~. assim, em '""cTenfístas" para se tornarem "resp.eitãY.eís''. O resultado, parece-me, foi meio· catastrófico: os cientistas de mltier dizem que eles mesmos estão mais ·bem qualificados para cuidar dos

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problemas, dos métodos e dos limites das ciências; os recém­convertidos às técnicas e métodos científicos vêm contar-lhes aquilo que, de há muito, eles já sabiam. Assim, o desprezo provocado por tal boa vontade produziu uma reação contrária: de fato, proclamam os profissionais do saber científico, a filo­sofja da educação nada tem a ver com a ciência; ela se situa num domínio bem mais elevado e vai muito mais ao fundo das coisas. Ela vai tão alto e penetra tão fundo, que seu papel consiste apenas em "pensar" a educação: pensar sem deixar-se influenciar pela Razão, sempre suspeita de cientificidade.

Se fizéssem~s _hoje uma análise "impressionista" do f~ló­sofo da educação, certamente teríamos . muita dificuldade em definir sua tarefa. _Mas creio que esse mal-estar é positivo, pOis resulta da própria crise da filosofja. Periodicamente, esta entra em crise. Mas isso é salutar, pois impõe-se a necessid-ade de um novo esforço reflexivo. Nos periq_dos de crise, nada é simples. T ampouco nada é claro. Seria muita audácia querermos dizer: aqui estão os bons, ali estão os rnaqs, . eis .o qu~ será a filosofia da -educàçãó dé ariiarihã. Se olhãrmós seriamente para a histó­ria dessa disciplina, não · poderemos cometer a imprudência de ·afirmar qual o tipo de pensamento que irá dominar no ano 2000. Precisamos abandonar as profecias fáceis ou as futuro­logias ingênuas. O que podemos fazer é detectar as questões essenciais que poderão surgir a partir dos problemas presentes.

Tornou-se moda falar "da" filosofia educad~>nal, sem pre­cisar qual delas. Não podemos utilizar a torto e a direito con­ceitos filosóficos ou simplesmente uma linguagem mais ou menos ornada de termos tomados de ~mpr~timo aos filósof~. Trata-se de um fato corriqueiro, inquietante, porém, pois já revela certa doença ideológica, uma febre ou um delírio do pensamento. Quem é que ainda se considera "filósofo da educação"? No entanto, apesar de todos os "já era" lançados para denegrir o pensamento não-utilitário, os métodos não-pragmáticos e efi­cazes, contra o pensamento não-operacíonalizável, talvez este­jamos diante de uma produção infladonária de filosofias da educa.ção, de resto péssimas, porque se · ignoram on se reco­brem com capas mais ou menos pseudocientíficas. Um pouco por toda parte, a linguagem filosófica é caricaturada. Os litera­tos e os críticos de arte não esçrevem vinte linhas sem fazer

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alus.ão à "transcendência·· (ou a qualquer outro termo equiva­lente) ou sem fazer referência a certos pensadores-filósofos, numa mistura mais ou menos eclética de filosofia de vida, de budismo zen ou outra "filosofia" qualquer ("oriental" ou "in­dustrial"). Qual o criador literário ou outro que, fora de seu trabalho específico, não representa dissimulad~ente o papel de um filósofo? Nesse sentido, há uma inflação de {ilosofias, embora a maioria delas seja simplesmente o resultado .de uma caricatura ou o produto de colagem e de empréstimo arti­ficiais.

S~m dúvida, essa dispersão da linguagem mo~qfica traduz uma crise cultural profunda. Vivemos numa _época bastante curioSa em que, em matéria de . filos<?fia, qualquer um pode dizer qualquer coisa, sem que isso . cause espanto a ningüerii. Sob · as formas mais diversificadas, com os conteúdos mais estranhos e com os mais variados modos de exposição { comu­nicação) e de pesquisa, toda cultura que se preze deve com­portar uma atividade reflexiva, que a fi1osofiã, como ·qualquer outra atividade intelectual, deve exigir daqueles -que a ela se dedicam. Atualmente, nesse dominio, - os trabalhos re.:.almente sérios misturam-se às mais sinistras pilhérias, havendo até .mes­mo os que fazem delas uma forma de "cultura". Ora, a recusa em discernir aquilo que tem sentido · daquilo que ê simples passatempo, também_. tem uma significação._ ~m efeito, se houvesse no público uma clara consciê~cia d_c~ssas __ diferenças, e se os eduçadores atuais tentassêm fornecer aos educandos os meios intelectuais da reflexão, ao iJ_1vé_s de contentareQ}:-se em inculcar-lhes unicamente os saberes técnicos e utilitários_(uma "çiência-reçeitüário" prátic;o) de que terão necessidade no exer­cício de suas profissões,_ é bem provável que tal discernimen~Q, ·nos faria tomar consciência de que a filosofia da . c~ducação, que sempre esteve vinculada a uma ética e a uma política, con- ·_ siste numa atividade intelectual que não pode ser compatível com a sujeição inteleciÚtll e históriCa dos ·educandos. Em todo caso, só podemos entender a crise da filosofia da educação, tomando ao mesmo tempo consciência de que a "destruição'• ou o .. amordac;amenton da filosofia só se tomam possíveis porque, intelectualmente, ela está em crise em sua própria evo­lução e relativamente aos outros domínios do saber. Num

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<;erto sentido, podemos dizer que foram os próprios êxitos da filosofia que desencadearam sua crise atual.

Uma coisa parece certa: não Eodemos . fazer__ap_elo . ~os conceito.~ ~e. _papel e estatuto para definir a tarefa do filósofo educacional, pois seria fazer ªpelo...a. uma. definição .uriívoca desses con'éeítos. Além disso, utilizá-los como "universais'', seria impedir-se de ver o "filosofar" como uma "atividade" ao mesmo tempo específica e mutável, em constante inte!ação com a situação sócio-histórica. Ao usarmos o conceito de "papel'; de modo unívoco, estaremos ·afirmando uma relação de iden­tificação do filósofo com.sua.situação. Tâl relação seria nabs­trata"' pois o filósofo não pode ser () simples reflexo da . so:. ciedade_ e,m _que vi~e. Por outro lado, · ao falarmos de "papel'' õo 'filósofo da educação, queremos apresentar como modelo .a razão da filosofia, em vez das razões dos. filósofos da educa­ção. Esquecemo-nos:--a~sun, de que essas demarches constitu­tivas desse ou paquele modelo poderão estar sup~radas. Donde o mal-estar em se poder definir a .tarefa do filósofo da educa­ção. Contudo, se fizermos questão de manter a noção de "pa­pel", para ul-trapassarmos esse embaraço fundamental, preci­samos estar conscientes de que, no fato de filosofar sobre a edu- · cação, estão presentes dois "papéis": um pessoal, o outro social. Por seu papel pessoal, o filósofo da eduçação determina sua posição relativamente às outras, e age em conformidade com um modelo de con;9uta próprio que ele erige em norma das relações intersubjetivas. Surge, assim, a razão do ato de filoso­far sobre a educação. Por seu papel social, ele está diante de um modelo de conduta definido pelo consenso dos membros da sociedade global, tendo, para ela, um valor funcional. Está presente, nesse caso, a causa de reflexão educacional. E é justa­mente a tensão entre esses dois "papéis" que nos possibilita de­finir a tarefa do ftl6sofo da educação. Enquanto desempenha sua tarefa, ele tem seu "estilo" próprio, determinado pelo "pa­pel" que lhe é reconhecido, sem que por isso este coincida com sua pessoa singular. Donde a noção de "estatuto".

Ao falarmos de "consenso", a propósito de um "papel", estamos referindo-nos ao mesmo tempo às expectativas dos outros e às prescrições que fundam esse papel. Numa hierar­quia social dos saberes, a posição da filosofia da educação já

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indica seu estatuto: corresponder às expectativas e às pres­crições. Quer dizer: o estatuto da filosofia da educação pode existir independentemente daqueles que a praticam e impor-lhes certos comportamentos. Em todo caso, sua posição é inteira­mente diversa da posição das ciências e das artes. As ciências se dão um objeto e métodos precisos para descrevê-lo e expli­cá-lo. As artes, por sua vez, tentam exprimir e revelar as signi­ficações. Eis suas tarefas. Quanto aos filósofos da educação, creio que devem ultrapassar os "papéis" e os "estatutos" que lhes foram impostos socia~mente, para assumir outros por sua própria conta. Assim, ao jnv~ de dizermgs .. 9.~_1; _o filós~(ç da educação ocupa . um estatuto e desempenha um papel social det rml~~?~. seria preferíve_l_ sustentarmos que ele precisa est:n·· em relação dialética com as posições das filosofias da educação de ontem e de hoje, tentando ultrapassar as "expectativas" e 'as ''prescrições ... Relacionando-se dialeticamente com seu passado, deverá construir outro modelo organizado de condutas filosófi­cas~ dando-se a si mesmo os papéis e os Btatutos no interior do meio social que o condiciona sem determiná-lo. Recusar semelhante perspectiva é arriscar-se, parece-me, a converter o filósofo da educação num personagem alien;1do, refletindo num "vazio" social. Donde a importância, para ele, de fazer uma reflexão critica sobre as ciências e sua linguagem, bem como de situar o processo educativo dentro de uma perspectiva em que seja de.svend1_140, pelo menos, o sentido da existência hu­mana. A pergunta que se coloc~ é a seguinte: como fazer filosofia da educação num meio ~omo o nosso? .A .. quem vai falar o filós-ofo da educação? · E com que finalidade?

Semelhante probtema não poderá ser escamoteado. Se por vezes lhe fechamos os olhos, talvez seja porque ainda não te~

nhamos conseguido ver, por detrás das mutações e dos trans~ tomos por que passa o processo educacional, um problema bem mais amplo: o da crise da cultura ocidental. De qualquer forma, .se considerarmos as possibilidades (a causa) da filo­sofia da educação em nossa cultura, poderemos constatar duas tendências: de um lado, há os que pensam ter algo a dizer (ou a fazer), na medida em que refletem sobre a educação dentro do contexto nacional, devendo os educandos participar social _e politicamente do processo de desenvolvimento sóçio-econô-

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mico-cultural; do outro, há os que encerraram a razão da filo... sofia educacional dentro de um papel unívoco, desvinculado do processo científico, artístico e cultural da nação. Ambas as tendências parecem acreditar que a filosofia da educação tenha

· um estatuto claro e definido, devendo ser um "valor funcional'' para a sociedade.

Portanto, a tarefa da filosofia da educação deverá ser procurada para além das soluções sociais e culturais ao pro.. blema do "papel" e do "estatuto" daquele que a pratica: trata~ se de uma tarefa concreta, temporal e pessoal. E isso, porque a filosofia da educação .tem por fundamento uma palavra pes~ soai, embora com pretensões à universalidade. A esse respeito, são ilustrativas as palavras de Paul Ricoeur (Histoire et V érité, 1955)_; "Tenho algo a descobrir de própriQ, algo de que nin­guém tem a tarefa de descobrir em meu lugar; se minha exis­tência tem um sentido,. se ela não é vã, tenho uma posição no ser que é um CG>nvite acolocar uma questão que ninguém pode colocar em meú lugar; a estreiteza de minha condição, de mi­nha informação, de meus encontros, de minhas leituras, já esboça a perspectiya finita de minha vocação de verdade. No entanto, por outro lado, procurar a verdade quer dizer que aspiro a dizer uma palavra válida para .todos, que se destaca sobre o fundo de minha situação como . um universal; não quero inventar, dizer o que me agrada, mas aquilo que é''-.

Todãvia, para estabelecer essa ligação entre o Eu. c:-o .Universal, não podemos dispor do ·mesmo itinerário em ·tÓdas as cultur~s. Caberá ao fil6sôío da educação perguntar: a partir de que, numa determinada sociedade, .terá ele condições de fazer semelhante ligação? Em outros termos: como fazer a filosofia da educação encontrar-se com esta ou aquela sacie~ dade, com esta ou aquela cultura? Em nosso país, todos acham que esta.mos acedendo a um tipo próprio de cultura. Não pode~ mos passar impunemente de uma cultura a outra. Todo trans­plante provoca rejeições. A passagem de uma relação com o mundo a outro tipo de relação não se faz automaticamente. Ao transplantarmos filosofias educacionais de outras culturas, cor­romoo o risco de olo ficarmos à vontade dentro de nossa pr6-

·pria cultura. Donde os sentimentos de artificialismo e de estra­nheza, se não de rejeição. Nesse domínio, os grandes problemas

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se colocam, entre nós, artificialmente. Eis um obstáculo qu~ não podemos ignorar. Mas que precisamos superar. E é por­que os grandes problemas se apresenta-m diferentemente em cada cultura, que a filosofia da educação sempre deveiá reco­meçar com eles. Donde se conclui que "nossa, filosofia da educação deve recomeçar ou sempre renascer com nossos pró­prios problemas. Com isso, não tenho a intenção de postular uma filosofia educacional brasileira. Aliás, não acredito que isso seja possível ou tenha sentido. O que postulo ~ que pre­cisa haver entre nós pessoas capazes de refletir sobre nosso sistema educacional a partir da situação peculiar de nossa cul­tura. Mas que também sejam capazes de exprimir algo de uni­versal a propósito daquilo que está no fundo de nossa situação particular. Que eu saiba, não são ·muitos os que se orientaram segundo tal perspectiva. O que ·não deixa de ser compreensível,_ de urna vez que nosso país parece ainda estar à procura de sua identidade própria, quer dizer, não de- um retrato ou de um modelo "pessoal" que o dispensaria de todo e qualquer confronto com os outros, mas de um "singular" capaz de con­duzi-lo ao "universal". E talvez não fosse muito ousado dizer que semelhante procura, pelo menos em boa parte, 6 o lugar atual de uma filosofia da educação entre_ nós. O fato é que sentimos a necessidade de embasamentos ..reais do Eu (pessoal e coletivo) para que se torne possfvel a expressão de uma

· Palavra univenal. Tais embasamentos, sem dúvida, constituem problema. O

cogito canesiano constitui, hoje em dia, um compromisso. Daí podermos perguntar: quem é que pensa, a consciência, a opi­nião pública ou o grupo social? Quem é qUê, em nossos dia!,. tem a certeza absoluta de falar em seu próprio nome para todos? E é por isso que a filosofia da educaç5o está imena em dificuldades. O que significa, pois, sua tarefa? Quais suas chances em nosso país? Deixamos essas questões em aberto. Contudo, a vida de nossa cultura segue o seu titmo. Cada um de nós dela parti<:ipa a seu modo. Ela pode ser constituída por seus vfnculos históricos fundamentais. Mas tamb&l por em· préstimos alienígenas e artificiais. Semelhante alternativa re-­mete-nos ao estatuto e ao papel que cada um de nós desem­penha e interpreta. Os filósofos da edu~aç~o mais abertos in-

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terpretam tal filosofia como objeto cultural, não as pessoas que a fazem, quer dizer, eles mesmos. Assim, o papel e o estatuto do filósofo da educação, numa sociedade determinada, .inter· pelam e contestam essa filosofia. Isso pqderá ser ilustrado e esclarecido, pelo menos em boa parte, pelo papel desempenha. do- · pelas ciências humanas. Essas ciências constituem proble~ ma para os filósofos da educação e lhes forne<:em sério mate· rial de reflexão. Um diálogo constante e fecundo com elas po. . derá levá·los ao cerne das razões filosóficas a serem ultrapas­sadas, para que seja descoberto ou redescoberto o ser que pen~ sa.

. O educador, na medida em que é ou deveria ser o ser que pensa, não -tem o direito de esquecer certas responsabiJidades que lhe incumbem enquanto produtor de saber e de conheci~ .me11tos técni~os. Mencionaremos apenas duas, a s.eguir~

· a) Compoo1-,lhe proceder a um exame crítica dos valores e dos -papéis que lhe fpram mais · ou menos "impostos" por seu próprio .processo educativo anterior. Fazendo isso, ele con· ferirá· à sua própria existencia..uma orientação nova1 coerent(. e fundamental. Se não fizer esse esforço de crítica e de ínte· gração pessoal, não somente o educador revelará certa fra­queza e insegurança, como. se mostrará sem convicções pro­fundas, assentadas numa CQosciência ético-profissio.nal_ esCla­reCida· por certos princípios unificadores e de fundamento ra­cional. Semelhante erosão da consciência ético-profissional l!va a um comportamento pragmático ou de evasão. Sem uma no­va "cosmovisão", aceita livremente, para conferir à ação pe­dagógica um sentido preciso, torna~se impossível, ao educador, chegar a um engajamento ético autônomo, com todos os riscos ~<Jue isso comporta.

. b) Compet~lhe, ainda, liberar os educandos · de todas as f-alsas neceSsidades intelectuais. Porque não somente elas le­vam a uma perda de tempo, mas também são geradoras de constantes inquietações, tomando os educandos dependentes e vulnerá~is_ A satisfação das necessida~s intelectuais artifi­ciais depende quase sempre do beneplácito dos poderes esta­belecidos e dos sistemas de ensino implantados. Reagir a ~ssas '"imposições,., implica em pagar certo preço, por vezes bastao-

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te elevado, como a renúncia à própria liberdade. Contudo, o educador não pode deixar de elevar cada vez mais o nível de sua atividade educativa e "científica", enquanto praxis. As necessidades artificiais são ersatz das verdadeiras necessidades. Servem para preencher uma vida intelectual e espiritualmente vazia. Na medida em que o educador revela aos educandos que sua própria educação deve ser concebida como um fim em si, está permitindo-lhes alcançar o máximo desabrochamento de suas aspirações criadoras e de suas atitudes, podendo orga­nizar sua vida dentro dessa postura de autodeterminação inte­lectual tão importante quanto a autonomia espiritual e moral.

Todavia, além dessas responsabilidades, o educador não pode esquecer que está formando aq·ueles qúe irão formar as gerações posteriores. Ora, dado o aprimoramento atual dos métodos e técnicas de ensinar, muitos educadores ficam des­lumbrados com sua eficácia no processo de aprendizagem. Per isso, renunciam à sua tarefa propriamente educativa, e limi­tam-se a transmitir as informações e os conhecimentos técni­cos---correntes, aceitos ou "impostos". Ao se converterem, po­rém, em "mediadores tecnológicos" das informações que lhes (oram comunicadas e das técnicas que lhes eram 41Veiculadas", os educadores correm o sério risco de s,e tornarem, num prazo de tempo bastante curto, perfeitamente dispensáveis: eles se tomarão inúteis, pois poderão·· ser substituídos, em seu con­junto, ou por máquinas de ensinar, ou por 41monitores" espe­cializados na "arte., de distribuição dos "conhecimentos prQ­gramados" e "enlatados", já elaborados numa matriz tecnoló­gica do saber qualquer. Ora, os educandos têm uma necessi­dade fundamental de um contato vivo com um educador ca­paz de "fazer coisas" que ,máquina alguma jamais terá condi­ções de fazer, pois tra-ta-se de tarefas que jamais poderão ·ser programadas. Podemos citar dois exemplos, como se segue.

'

a) Em primeiro lugar, compete exclusivamente ao educa­dor ressituar todas as informações fragmentárias recébiàas ~u "impostas", dentro de um contexto sóci<H:ultural mais amplo; compete-lhe, ainda, mostrar as relações, as mediaçõe~, o mo-

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ment<l da historia, as condições sociais e psicológicas que ex. plicam o aparecimento do saber, bem como os métodos . cien- · tíficos que tornaram possível sua descoberta e as incidências que de tudo isso decorrerão para as pesquisas_ futuras e para a prática social. Evidentemente, esse contexto mais amplo, qúe somente o educador poderá fornecer, não é pré·fabricado. Ele pode abrir-se em várias direções, surgir de uma relação dia­lógic_a entre !lS duas partes do processo educativo (educador e educandos) e depender não somente da extensão do saber e dá cultura do mestre, mas também dos reais interesses dos alunos.

b) Em s~gundo_\U;gar, compete unicamente ao educador, com a participação ativa dos-. ecjucan(los, · etabôrar.:uma .. iiater­·pretação criãtiva dos conhecimentos e · uma critica das infor~ mações. A simples transmissão do saber, mesmo que este -sejã · reproduzido em toda a sua complexidade, deve ser substituí~ da põr um eSforço vivo· e persistente, consistindo em ac~s­centar à.s formas simbólicas, nB;s quais o saber se expressa, uma significação nova; esclarecida por uma perspectiva filosõ. fica pessoal. Nesse particular, é tarefa do educador manter a inteligência dos educandos em constante despertar: despert·ar ~e sua curiosidade intelectual,_ ampliação de seu horizonte es­piritual e desenvolvimento de seu espiri~o crítico. Para for­mar um jovem de espírito aberto e criadQ!', dotado do sentido da história, O- bom...educador deve mostrar-lhe que, diante da realidade, não basta colocar as questões: "como?" e "'quats os melhores meios para fazer funcionar as coisas?"; o mais importante é que o educando seja capaz de perguntar: "por quê?"; ·"com que fina!iõade?", "quais os principais obstácu­los?", "como superá-los?". P9~nto, ~ . educador _pã() pode prescindir de_ c~rtas _qualidades: ter personalidade, e não· ape; nas possuir conhecimentos e cultura; ade~s ... ser um indiví-, duo íntegro e de ·earáter, ·· ativamente--devotado à ~alização, não digo de seu "ideaJ", mas de seu projeto intelectual. Os edu­candos lhe perdoarão facilmente o fato de ser demasiado ut~ pista ou demasiado realista. O que não .lhe per<f9.arão, é a contradiç.ão _ent~ _o pensamento, as palavras e os atos.

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CONCLUSÃO

Se quisermos exercer alguma influência no rumo empreendido pela ciência contem­porânea, é preciro que tomemos consciência da nece~idade de uma dupla ação: uma ação direta, tentando "dominar" os conhecimentos científicos e detectar suas ilusões; uma ação indireta, convertendo-nos--em "pedagogos,. capazes de formar aqueles que mudarão· o mundo. Para tanto, temos que nos transfor­m_?_! pc_>r dentro e, ao mesmo tempo. criar as condições exteriores, tornando possível uma transformação do mundo do saber. E sse tipo de atividade constitui uma ruptura no enca­deamento do determinismo histórico cego e merece a seguinte denominação: fazer a his­t6ria.

O obj~tivo dessa conclusão .. que nada tem de conclusivo ou ·tfe ac~bado, é simplesmente o de apontar aTguns funda- · me!ftos ·_epiifeiriológic'ós sobre ··os quais · s·e · a pó ta·-a· ""ulgar,iza-: _ ç~Ó cientifica".· Com efeito, a epistem.ol9gia se interessa não somente pela distribuiÇão das ciências em vários grupos, '?OJ sua dispersão crescente ou por seus agrupamentos em ai~ns grandes- conjuntQs; segund·o certa comunidade . d~ _objetos, de pontos de vista ou de métodos, mas também por sua difusão ou divulgação. Em Ol!_tras pala\lras, interessa-lhe .elucidar 9. modc coma....se partilha o· saber científico. Seu domínio de in­vestigação não se limita a um estudo da gênese, da formação, do desenvolvimento e da articulação dos conhecimentos, mas abrange também as formas de comunicação e de "consumo, desses produtos intelectuais. Epistemologícament~, ~ vulgari­zação ciemífica consiste numa transmissão ao saber aos não­cientistas. Trata-se de tarefa que consiste em tomar cultural­mente compreensíveis os conhecimentos produzidos pelas ciên­cias, vale dizer~ de uma transferência de conteúdos científicos a um público não iniciado cientificamente. Q_problema--qu~e-­

coJ~ é o de saber até que ponto e em que medida o grande públicÕ·. pOde apropriar-se culturalmente de um conte6do cien­tífiCõ ·sem conhecê-lo: c.ÇJmo .poderá "compreender" algo que não _"conhece"? Antês, porém, de tentarmos responder, reco­·loquemos ·Süéintamente a- situação presente da ciência.

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Considerada em seus mumeros prolongamentos técnicos, a ciência se situa, em nossos dias. como o fator mais decisivo de transformação do mundo e das mentalidades. Ela tende a constituir-se cada vez mais num instrumento eficaz de análise e de manipulação do real. Donde sua matematização crescen­te. O que ela pretende, é realizar o projeto ·de uma objetiva­ção adequada da pretensão de eficácia de sua tecné, tanto no domínio natural quanto no humano . . O caráter fundamental da ciência consiste em obedecer ao postulado da objetividade, pa­ra impor;.se- "tomo sistema de racionalidade. E é pelo modo como a ciência concerne ao homem, que deve interessar-nos e preocupar-nos. Assim, por estar contaminada com dimensões que lhe são estranhas, ela apresenta um caráter ambíguo: de um lado, permitiu à humanidade realizar grandes progressos, não por causa de seus feitos espetaculares, mas de sua signi­ficação humana; do outro, continua a reforçar certos antago­nismos, fazendo! plainar sobre os homens uma série de amea­ças: de guerra nuclear, de totalitarismo técnico apoderando-se da vida humana e modelando-a segundo a lógica das relações de força ou as exigências do Poder. Donde a importância de considerar a ciência em seu conteúdo concreto, e não confor­me a imagem que ela pretende fornecer de si mesma. Seu conteúdo real no-la revela vinculada a várias determinações que a tornam ao mesmo tempô "salutaJ"" e "temível... Sobre­tudo quando seu estado de espírito pretende cada vez mais que as pesquisas se tomem "úteis" e contribuam para a me­_lhoria das condições de vida do homem, tanto do ponto de vista de seu equilíbrio biológico, de sua saúde, quanto do pon­to de vista de seu modo de vida.

Portanto, o proj~;:to fundamental da ciência consiste numa objetivação radical da experiência. Essa objetivação se prolon­ga· naturatniente na busca da eficác~a. E é -o desejo da eficácia que converte a ciência-theoria em ciência-tecluié. Esse proces­sõ de objetivação ~rescente se apresenta como uma espécie de consenso imediato entre o homem e seu mundo. Trata-se de uma dualidade em cujo interior o sujeito se opõe ao objeto. Assim, o alcance profundo da ciência, consiste em manifestar um novo sentido. Trata-se de um sentido que não é proferido num sistema explicativo, mas que é vivido e exercido. numa

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multiplicidade de manifestações. E na medtda em que a cteu­cia tenta impor-se como a única perspectiva sobre o mundo e o homem, como o mais fundamental modo de experi~.ncia. torna-se patente que sua gênese, seu desenvolvimento e ~a estruturação passam a significar não apenas o surgimento de um novo sentido, mas também a própria alteração do sentido do sentido.

Ora, 'Se a (!.titude ci~n~ífica ~- a· única ... ra.cional. .a úrüça verdtrdeirameiiie humana, verdadeirâmente justificada e fecun­da, o sentido que ela projeta sobre o homem e o mundo s~ pode ser o único. possíveL Mesmo que explicitamente não pre­tenda impor-se como um .. empreendimento totalitário, a ciência já comporta em si mesma, implicitamente; a possibilidade de tal projeto. Seus êxitos retumbantes· levam-na, talvez incons­cientementte, a impor-se como a úõica dimensão possível do sentido. ·sua atitude fundamental diante do mundo neutraliza todas as outras atitudes. Donde o risco de tomar-se totalizante e totalitária. Ao abrir uma perspectiva sobre o conjunto da experjência e ao entregar-se à vertigem da objetivação, a ciên­cia se esquece dos pontos de vista que a tornaram possível, vale dizer, de suas decisões constitutivas. E, ao objetivar até mesmo esse ponl.o de vista, torna-se incapaz de passar dessa objetivação àqüílo que a funda e, por conseguinte, de sair de si mesma e de ultrapassar-se. . .

Surge, assim, a necessidade : de . .uma..reflexão. wbre-a-ciêA­cia enquanto fenômeno social ou. produto. da.$0Ciedade. Como todo fenômeno social • . .precisa- ser . compreendida- -a · partir· -de · um · ponto de vista histórico. Donqe a dificuldade de atingir, nesse domínio, o -nível da verdade objetiva, isenta de toda concepção valorativa ou ideológica. Por maior que seja o pa­pel da ciência no desenvolvimento da sociedade, 6 esta que "controla" suas funções. Convém distinguirmos, no entanto, entre o "conteúdo" da ciência (o conhecimento científico) e o modo como es.se eonhecimento ·é adquirido (homens, orga­nizações e instituições) . 2 _o conhecimento científico que for­nece a noção fundamentar de " realidade _objetiva": a repre­sentação de certos fenômenos permite-nos conceber proprie­dades jamais observadas e inventar experiências que possibili­tam evidenciá-las. Um exemplo típico é o do desvio dos raios

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luminosos pelo campo de gra,·itação do Sol, prc\·15to pc:la re­latividade de Einstein, e cada vez mais verificado com grande precisão.

Historit.'a,nent-:. a ciência sempre este v~ vinculada a situa­ções sociãts óem precisas. Por"· exer"ilplo, no momento de ·sua constituição, a física esbarrou com o obstáculo das idéias vl­gente:i, tentando impedi-la de formar os conceitos de que pre­cisava para a compreensão da realidade dos fenômenos. Há uma relação ·tão forte entre a concepção do mundo físico e as idéias sociais vigentes, no momento em que a física se impõe como ciência, qoe a elucidação da realidade física chega até mesmo a abalar os fundamentos da sociedade. constituindo, para ela. uma verdadeira ameaÇa. Não foi por acaso que o U vro das Revoluções de Copérnico só veio a ser publicado depois de s.ua morte(1543), que Galiteu teve que reconhecer e confessar seu~ "erros" (1 633), ou que o Tratado da Luz de Descartes também foi obra ~óstuma { !662) . Desde o im­cio, o espírito de independência dos cientistas torna-se objeto de um controle. E eles se vinculam, desáe cedo, ao __ poder _po­lítico. "E das ciências natur-ãis que se reclamam os Enciclope­distas (Diderot e · d' Ale"mbe·rt) ; · ~ delas · que se reclamam as analises psicológicas de Sade, os estudos sociais de Fourier e Proudbon. J;: nas ciências naturais que Kant, Marx, Hegel e -9utros depositam sua .s:;onfumça para enfrentar os problemas do homem e da sociedade.

Se considerarmos o domínlo das ciências humanasL pode-: mos ·constatar que ainda hoje ele se encontra na mesma situa~ ção em que se encontravam as ciências naturais no século xvn: a análise dos fatos é inseparável das ideologias vigen­~s. Ademais, a questão da teoria ou representação da expe­riência coloca-se de modo diferente nos dois domínios. No entanto, há uma tendência a tratar as questões humanas com os métodos comprovados no domínio das coisas. Considera-se, por exemplo. ·como científicos certos estudos econômicos, so­ciológicos ou psicológicos, simplesmente porque são submeti­dos ao tratamento dos computadores ou dos procedimentos estatísticos. Quantas decisões importantes não são tomadas em nome da ciência, quando, na realidade, os computadores não fazem senão aquilo que lbes é "ordenado'', ·só respondendo às

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questões que ·lhes· são fei ras.? · Quantas não são as chãmadas "pesquisas fundamentais" que, ·servindo-se dos computadores ou das análises estatísticas, recobrem com o manto da ciência várias decisões políticas?

Não se pode negar que a especialização foi uma etapa necessária ao surgimento e ao progresso das ciências. A mani­pulação de idéias abstratas e a elaboração dos conceitos eram incompatíveis com a servidão material do homem. Assim, a especialização tomou-se sinônimo dê competência e de poder. E o expert tornou-se esse personagem mítico, sobre cujos om­bros é depositado o peso das decisões políticas, tomadas para assegurar, consolidar ou ampliar o poder. O que se pergunta, hoje, é se o progresso da ciência-realizada ou tecnologia pode ainda ser tido como a condição necessária e suficiente à pros­peridade econômica e como a garantia de um melhor bem-es-· tar social. Ao nos interrogarmos não apenas sobre os m eios de que dispõe a ciência, mas sobre os fins que · os justificam. não podemos evitar certas questões: que objetivos a ciência propõe para a sociedade? Produção e consumo de bens mate­riais, ou desabrochamento dos indivíduos? Manipulação, con­trole e dominação, ou autonomia? Aceitação do isolamento, ou comunicações criadoras? Ademais. quais <>S objetivos da vulgariza~ão científica? Que imagem ela cria da ciênCia no grande público? E se a ciência, ao im·és de marchar para um domínio do homem, viesse a contnouir para sua emancipação? E se ela se colocasse o problema dos limites de seu crescimen­to? Deixemos essas questões em aberto. Tentaremos analisar apenas a que diz respeito à vulgarização. E. assim mesmo, de um ponto de vista bastante restrito.

Antes, . porém, lembremos que, para o grande público, a posição de destaque e a alta reputação da ciência, são devidas aos seus inegáveis feitos tecnológicos. Francis Bacon foi um dos primeiros pensadores a formular, numa frase, essa espécie de "pragmatismo popular". No Novum Organum (Livre ll, 4), diz: ' 'O que 6 mais útil na prática, é o mais correto na teoria". Atualmente, o que se pode constatar é ·que aJ~nola.; gia não· S:6 realiza suas pretensões, mas também impõe-:se .. co- . mo ·o critério de mtegndade 6tica do cientista-. ~ anl'Oriclad~ pode ser ~til~<la ·tanto para propósitos legítimos· quanto -para

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intençõ~~ espÓri-1:. 'Por exempl() : 25 dt>cla racõ;;: peudocientí. ficas dos porta-vozes totalitários ~ol}re a raça. a economia e a história, quando veiculadas a um público cientificamente in. culto, através dos mecanismos da \-"Uigarização científica, per­tenc·em à mesma ordem que as informações da impr:ensa escri­ta, falada ou televisada sobre o universo em expansão. Seme­lhantes declarações e informações não podem ser controladas ou testa<fas pelo grande público a que se destinam. Podem mui­to bem veicular mitos científicos. Os mitos apre.sentam a _van­tagem de serem mais facilmente admissíveis do que as teorias científicas, pois estão muito mais próximos da experiência vi­vida e da tendência cultural do homem. Donde a vulnerabiJi. dade do grande públlco aos novos misticismos, mormente quan­do se· apresentam recobertos com a capa do saber científico. Isso se torna mais grave quando se leva em conta que a fé do grande público na ciência é praticamente ilimitada, indiscutí-

- vel · e de ordém <rnase mística. Nesse sentido, a vulgarização pode ser um !veículo de contágio quase epidêmico dos mitos cientificistas. ·

A vulgarização científica1 enquanto concepção epistemoló­giça concernente à partilha do saber, exige uma estra-tégia dj­fuS:«?.r~ -~ _generalizadora de conhecimentos que. por uma ques­

. tão de método, só" sãó "conhecidos e co~preendidos por um pequeno grupo_ de pesquisadores. Por -putro lado, o objetivo explícito da _vulgarização não consiste em tTansmitir ao grande público informações simplificad~u escamoteadas ooncemen· tes às grandes descobertas científicas. Num recente colóquio organiZado pelo Conselho da Europa sobre "a apresentação da ciência ao público" (Strasbourg, 19 a 21 de abril de 1971 ) , os participantes chegaram à conclusão de que o objetivo da vulgarização científica consiste em "fornecer à comunidade na­cional os meios de participar de modo responsável (grifo nos ... so) do desenvolvimento científico. Nesse sentido, a atividade vulgarizadora exerce um papel social e político próprio" (c f. P. TIIUILLIER. Jeux et enjeu.-c de la science, 1972).

Como se po<fe notar, está bem explícito o fato de a inf()r­mação científica possuir um alcance político. Ademais, fica Dian.ifesto que ela deve ·exigir de sius agentes, QS vulgarizado-" res, uma participação ~vel nas atividades e nas "potf,

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tica~" de seu~ respectivos países de origem. Mas qual é o sen­tido dessa " responsabilidade" e dessa obrigação de "partici­par"? A resposta do Conselho da Europa não cria um con­senso comum. ~ por isso que a revista inglesa New Scientist (13 de maio de 1971 ) viu-se constrangida a reagir e a julgar "consternadora" a idéia de organizar e planificar um&~ campa­nha européia de informação científica, no caso específico, de "informação sobre a ecologia... Porque essa informação não pode estar subordinada à orientação dos experts, sobretudo quando se sabe que eles são nomeados por organismos oficiais. Qualquer que seja o conteúdo que constitua seu objeto, a in­formação científica deve ser livre e espontânea. Por essa ra­zão, os experts governamentais não têm o direito de exigir dos agentes da vulgarização que desempenhem o papel de simples propagandistas desta ou daquela "política" científica. Talvez fosse -melhor que os experts tentassem aprimorar a difusão das i nformações sobre a "política" da ciência, e deixassem aos vul­garizadores profissionais a tarefa de informarem ao público aquilo que se faz ou se deixa de fazer em matéria de pesqui­sãs científicas.

Por conseguinte, além do dever de evitar as simplifica­ções escamoteadoras, a vulgarização não pode ser reduzida a uma função de porta-voz oficial de uma ou outra "política" científica. Em suas opções, o vulgarizador não pode estar con-

- finado a essa alternativa: ou fornece más informações, ou di­vulga informações controladas e a serviço dos E stados. Nesse domínio, a responsabilidade precisa ser assumida pelos pró­prios agentes da informação. ~ possível que o "desenvolvimen­to científico" nacional não Lhes apareça como o único a ser atingido nem esteja sendo conduzido da melhor maneira pos­sível. N:em sempre as declarações oficiais sobre o que se faz em matéria de ciência correspondem à verdade dos fatos. 1! por isso que um dos papéis essenciais da vulgarização cientí­fica, livremente desempenhado por agentes especializados, con­siste em apresentar-se como anteparo às possíveis distorções de certas informações cômodas aos governos e à indústria, mas sonegadoras da verdade científica, de seu sentido e de seu al­cance sociais.

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Toda inforntação é portadora de um parti-pris consciente ou inconsciente. Não há vulgarização de um saber "puro", em seu estado de elaboração "teórica" ou "fundamental". Haja vistá que1 se não ')nforma", .ela.:.'deforma'.'. Portanto, em to­do esforço metódico ou sistemático de informação, há pressu­postos não apenas teóricos, filosóficos, mas também ideológi­cos, valorativos e políticos. Isso se torna patente a partir do momento em que se coloca as questões: quais os obietívos reais da iAformação? O que elá visa a informar? Qitem ela informa? Quais as necessidades do público que tenta satisfazer? Trata­se de necessidades reais ou simplesmente criadas? Revela a in­formação a verdadeira natureza da ciência e de suas funções sociais, ou limita-se a apresentar ao grande públiç9 sua "ima­gem de marca"? Fornece uma concepção idealista, realista ou simplesmente tecnocrática da ciência? Apresenta a ciência co­mo uma pesquis~ metódica do saber ou como um modo de interpre.tar o mundo?

As resposta~ a essas questões estão longe de criar um con­senso entre os cientistas. Assim, ao se tratar de uma informa­ção científica de caráter pluridisdplinar, freqüentemente ela é concebida çomo estando fundada na criação de uma "cultura universal" ou de uma "nova imagem do mundo", que não se­riam tributárias dos particularismos culturais, ideológicos, na­cionais e religiosos. Assim compreendida, essa cultura seria . uma construção suspeita, porque· muito· distanciada daquilo que realmente fazem os cientistas. E é essa concepção quê cor­re o risco de transformar-se em mitologia científica. Mesmo que seja rigorosamente elM>orada e transmitida numa lingua­·gem de alto nível técnico, nem por isso a informação científi­ca deixa de constituir e de apresentar-se como um g€n.ero li­terário •. isto é, como um discurso que, de uma forma ou de outra, com este ou aquele veículo transmissor, não pode pres­cindir de uma intenção, nem que seja implícita, de seduzir o público. Porque ela é um discurso que, de um modo ou de outro, deforma o discurso original das ciências: é da essência do discurso vulgarizador tentar espelhar a "atualidade", o "progresso'' e a "verdade" das ciencias, informªndo apenas a respeito dos aspectos que podem mais interessar no momento,

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quer ao público, quer aos elaboradores da "política" cientí­fica.

Em matéria de ciência, qual o interesse maior do públi­co? Quais os aspectos da ciência que mais lhe tocam? Sobre o que ele quer ser informado? Evidentemente, a resposta a essas questões depende ba·stante do nível cultural do público "espectador". Tudo parece indicar, no entanto, que o grande público está mais interessado em três categorias de assuntos científicos. Em outras palavras, ele se mostra mais sensível às informações concernentes: a) aos problemas dizendo respeito às origens do mundo e do homem (origem da vida, evolução do mundo, etc.); b) aos problemas que se referem ao meio ambiente natural e cultural (saúde, relações humanas, efeitos da tecnologia, etc.); c) aos problemas ligados aos fins últimos do ser humano (morte, fim do mundo, etc.).

Como observa P. Thuillier, esses três assuntos preferidos pelo público em geral apresentam notável coincidência com a clássica repartição definindo os campos de investigação teo­lógica: cosmologia, antf'opologia e escatoJogia. Donde poder­mos concluir que não há identidade entre informação cíentifi­ca e informação sobre a ciência. A primeira tem um alcance muito maior e desperta mais interesse do que a segunda. Essa situação é resumida por Thuillier: "assim como deve ser po­lítica e socialmente consciente, o vulgarizado.r deve reconhecer em si o teólogo que dormita. Caso contrário, ele se exporia a dar uzão ao expert que formulou, assim, sua hipótese de trabalho: 'a ciência torna-se mito através da vulgarizaç~o"'.

Portanto, do ponto de vista epistemológico, o problema da vulgarizaÇão só pode ·ser entendido quando situado · rio · ver-· dadeiro contexto da repartição ou não-repartição dos conheci~ rnentos científicos. Evidentemente, esse problema não pode ser tratado de um -ponto de visfa exclusívamente cüfturàf. .Âde­rriais, as diferentes especialidades dentfficas, exigidas pelo mé­todo e pelo progresso das ciências, já são de natureza a in­troduzirem, na própria cultura, uma "ruptura". E é justamen­te a existência dessa ·~quebra" cultural que leva as competên­cias a fazerem apelo a certos empreendimentos reconciliadores que podemos chamar de "vulgarizaçlo". Em certo sentido, es­ta- apresenta a vantagem de permitir às camadas mais "cultas"

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da população, "salvar" ou "reconstituir" a unidade cultural que a fragmentação das disciplinas.- havia dissociado. No en­tanto, é duvi-doso que tais empreendimentos "reunificadores" possam atingir de modo eficaz as camadas "incultas". Será que a vulgarização consegue realmente transmitir-lhes o saber? E sobre o que ela realmente informa?

A resposta a essas questões parece estar na dependência da qi.te se der ao problema do papel social e .objetivo do vul­garizador. Duas posições se defrontam: a) há os que pensam que o papel do vulgarizador consiste em toriUJr a ciência pre­sente aos meios de comunicação de massa, ao mesmo título que outros o fazem para a e-conomia, a política ou o esporte. Contudo, ninguém acredita que a transmissão de uma partida

_ de futebol pela TV tenha por finalidade ensinar esse esporte aos telespectadores. Da mesma forma, a informação científica não teria nenhum opjetivo pedagógico de ensinar ao público o que é e o que faz a} ciência~ b) há os que acreditam que a i nfor­mação científica não se vincula diretamente às dências, não "traduzindo" realmente aquilo que elas são ou fazem. Ela constituiria um gênero literário particular cujo es.paço seria ocupado pelas ciências e pela curiosidade daqueles que a sus­citam. Contudo, relativamente a esse espaço, as ciências cons­tituiriam apenas o décor da cena represent~da pelo vulgariza­dor. Este, sim, seri_a o homem encarregado de organizar o espetáculo das.. ciências. -

Na perspectiva desse segundo modo de ver Q papel do vulgarizador, estaríamos diante de uma teatralização das ciên­éiãs: _o papel da vulgarização se reduziria a mostrar suas mà-= dalidades culturais acessíveis ao mundo não-científico, · quer . diur, revelar os saberes vistos mas noo sabidos. Trata-se de · uma atitude ·meramente "inforriiacional" ou "espetacular". Nes­se sentido, os vulgarizadores desempenhariam o papel de pe­-dagogos: levariam o público a compreender e a aceitar, não o verdadeiro saber científico, mas seus resultados tangíveis, suas funções contemporâneas, sobretudo em seus aspectos de utilidade social. O risco de semelhante atitude consiste em di­fundir apenas os aspectos "fantásticos" ou "sensacionais" das ciências. Ou então, em só se informar sobre aquilo que mais imediatamente possa interessar ao pú~lico ou ser da convenien-

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cia de certa "política" científica. Fazendo isso, os vulgarizado­res tornam-se presos aOs-3fpectos sensacionalistas das ciências ou se convertem em propagandistas de uma ideologia ,cientí­fica. Em ambos os casos, trata-se de um papel mistificador.

Volta, aqui, a questão a que já fizemos alusão: como· po­de o grande público interessar-se por informações científicas, se não é portador de um mínimo de formação em matéria de ciências? Colocada de outra forma, a questão parece pertinen­te: será que o saber cientifico pode verdadeiramente ser trans­mitido a quem não foi iniciado, pelo menos na prática de uma <:iência? Sabemos que a ciência surgiu em oposição ao dogma­tismo filosófico e ao das crenças religiosas; que seu método leva o cientista a não- -apegar-se obstinadamente ao saber, nem tampouco aos meios consagrados para adquirir o conhecimen­to, mas a adotar uma atitude eminentemente investigadora, em contato sempre r~nova<lo com os fatos, jamais chegando a re­sultados definitivos. Ela se constitui\!. negando os saberes pré­científicos ou ideológicos. Mas permanece aberta como siste­ma, porque é falível e, por conseguinte, capaz de progredir. A dência é um discurso aproximativo, provisório e incessan­temente susceptível de retificações e de questionamentos, por­que seu próprio método se apresenta sempre como perfectivel. No entanto, o grande público recebe suas informações como se a ciência pudesse gozar do privilégio de exercer um magis­tério apodítico e incontrovertíyef; como se suas "verdâdes., ti­vessem o dom de poder silenciar ·todas as ignorâncias e traçar as fronteiras entre o normal e o patológico, entre o real e o falacioso. Muito embora os cientistas se oponham a todo dog­ma, nenhum deles pode estar seguro de ter evitado toda e qualquer atitude dogmática.

O problema que se coloca é o seguinte: como podem as informações ser recebidas dogmaticamente, se o próprio dis­curso científico tem um caráter provisório e aproximativo, uma vez que está fundado sobre um método cujo objetivo é veri-fi­cá-lo, quer dizer, torná-lo verdadeiro? Ora, o método científi­có, ao mesmo te·mpo veri-ficanre e relativizante, s6 é conhe­'éido e· pràticado por aqueles que fazem a ciência. Enquanto prática, não P,ti1ence à ordem do discurso, não podendo ser transmitido por simples informação teórica. E a vulgarização

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é uma informação que se situa no nível discursivo. Se o dis­curso científico é proposto ou difundido dissociado de sua prá­tica concreta, só pode fazê-lo ocultando parte de sua verdade. Quando vulgarizada, a informaç:-iío sobre as ciências vê-se ne­cessariamente reduzida a uma informação cientí&a. Os .. lei­gos, , ao aceitarem o discurso científico como sendo portador de "verdades", acolhem-no depositando sua confiança naque­les que realmente sabem. b nesse sentido que lhes outorgam um magistério cultural para ensinar-lhes aquilo que não sabem. Donde a informação científica impor~se como objeto de cren­ça. A verdade do discurso científico, quando dissociada da prática que o veri-fica, é recebida de modo inteiramente dis­tinto da maneira que o caracteriza enquanto tal. .E por isso que a informação não tem condições de: impedir que o público receba as verdades científicas sob a forma de crença, de ade­são a argumentçs de autoridade, pois não dispõe de meios para controlá-las ,' iff'tn tampouco refutá-las. E quando a con­fiança do públicó no prestígio e no poder da ciência chega a confundir-se com a fé em verdades reveladas, a vulgarização corre o risco de converter-se em terrorismo cultural.

Ãssim~. encontramo-n~s- -diante _de um paradqxo:_ . d~ _ ~!11 lado, há uma verdade "cultural". transmitida pela vulgariza­ção; do outro, u~a verdade ·propriamente "c.i~tífica", 1ntráns~ mtssí\·ef enquanto tal. Semelhante paradoxo parece condenar a Vtltgatíiação a ·uma ambigüidade: a intenção de tra!lsmitir o saber é legítima, pois corresponde a exigências culturais e sociais, embora seja preciso interrogar sobre a "operação" que realmente ela leva a efeito. Há um adágio escolástico que iliz: " tudo o que é recebido, é recebido segundo o modo daquele que o recebe,. Qual sua significação atual? No dizer de Philipe Roqueplo, o adágio pode ser traduzido: "a ciência recebida por não·cientistas, é recebida não-cientificamente.,. Nessas con­dições, a pergunta que se coloca ~ a seguinte: nã,.o~ seria uma mistificação cultural a pretensão de vulgarizar o saber científi­co a um público carente de formação cienúfica? Não se redu­ziria a vulgarização a um simples efeito de vitrine? Segundo o mesmo autor, ela mostra o saber científico ao mesmo tempo prórirno e inacessível: "ela o mostra como próximo, pela ne­cessidade em que se encontra de vincular seu discurso, tanto

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quanto possí\·el, à experiéncia cotidiana do público; mostra-o como inacessível, na medida em que legitima esse mesmo dis­curso, referindo-o à autoridade dos sábios, e na medida em que funda essa autorid~de, invocando sua própria prática si­tuada em laboratórios onde ninguém jamais tem verdadeiro acesso: constituem, de certa forma, os. lugares misteriosos on­de a verdade vem ao mundo para, em seguida, espalhar sua eficácia té::nica sobre a vida cotidiana do conjunto da socieda­de. O mundo da ciência se encontra, então, simultaneâmente mostrado e relegado · n·uma espécie de santüario em .que. se rea­liza o mistério gerador da transformação do mundo. E!Jquanto "vitrine da ciência", a vulgarização cõnhi}>ui .. ce.rta.mente para erigir ·culturalmente a ciência em mito". Aliás, a publicidade se encarrega de explorar esse mito.

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APÊNDICE

O projeto científico contemporâneo vem colocando ulti­mamente, àqueles que tentam compreendê-lo e analisá-lo mais criticamente, uma série de problemas inquietantes_ Problemas suscitados pela pesquisa no domínio humano e pelo progresso tecnológico propriamente dito_ O extraordinário desenvolvimen­to do saber científico e da técnica nos últimos decênios pode interpelar-~os de três maneiras, como se segue.

a) Na ordem da descoberta, na medida em que a solu­ção de determinado problema sempre faz surgir um outro. A luz projetada sobre um setor de conhecimento e aprofundan­do, por contraste, a região obscura que o cerne, faz apelo a uma nova e mais depurada pesquisa. O aprimoramento da metodologia, o aperfeiçoamento do poder de investigação, exi­gem pesquisas ulteriores e,Ogindo respostas sempre mais fun­damentais.

b) Para além dessa ordem da invenção e do conhecer, situa-se a ordem da praxis. Nesse domínio, as questões que se colocam advêm do fato de a tecnologia converter-se num po­der capaz de modificar de modo radical, por vezes prometeico, o curso das coisas e a natureza do próprio homem. As aqui­sições da ciência colocaram nas mãos do homem poderes de ação e de intervenção insuspeitados. As possibilidades imen­sas abertas pela tecnologia, ao mesmo tempo sedutoras e amea­çadoras, leva o homem atual a se perguntar por sua significa~

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ção e a tentar élaborar respostas lúcidas e responsáveis aos problemas por ela criados.

c) Para além, no enranto, das ordens do conhecimento e da praxis, com suas interrogações precisas e específicas, oriun­das da pesquisa e de sua aplicação, vem impondo-se recente­mente um questionamento mais fundamental, dizendo respeito ao próprio projeto científico -em si, a seu valor, a seu sentido c a sua justificaçãq. Assim, qual é o tipo de civilização que ele propõe, garante ou condiciona? Quais os valores que ele pro­move e o tipo de homem que constrói?

A essas diversas categorias de questões colocadas pela ciência contemporânea,_ sobre o tríplice registro do conhecer, do agir e da axwlogia, poderíamos acrescentar certas questões colocadas à ciênç.ia pelo homem atual, concernentes a suas grandes preocupações e a seus objetivos fundamentais. Limi-

- tar-nos-emos, neSte apêndice, a apresentar um rápido esboço do questionament'o mais ou menos radical que vem sendo feito, nos últimos anos, ao proieto científico tomado em si mesmo. Não se trata de um questionamento exigido simplesmente pe­lo desenvolvimento científico e tecnológico. T ambém não se trata da busca de uma compatibilidade interna visando a uma

- integração multidisciplinar entre os setores distintos da pesqui­sa. Por outro lado, não se trata de uma ]nterrogação ét~a concreta sobre os processos de urilização e de aplicação dos conhecimentos científicos. O _ _questionamento de qu~alamos vai mais longe. Diz respeito a uma suspeita, difusa e pouco e:tplicitada, por parte de · certos homens, inclusive cientistas, .:mais esclarecidos.-e ·responsáveis, em relação ao projeto cien­tífico. O otimismo, a boa consciência e a fé ou auto-suficiên­cia da década de 1960, cedem lugar a um clima de suspeita. Tanto no interior quanto no exterior do mundo da pesquisa científica, cristalizam-se focos de contestação, formando uma espécie de movimento "anticiência", sem qualquer caráter de esnÓbismo ou de infantilismo das reações epidérmicas ou afe­tivas . . Apesar de novo, irreverente e incômodo, o fenômeno é real: de contestar a ciência enquanto projeto científico.

. Evidentemente, entre os cientistas e esses grupos de rea­ção anticiêncía, há certa diferença. Os cientistas, em geral, não

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contestam a ciência enquanto atividade intelectual, mas apenas as condições reais de seu exercício. Os segundos, porém, opõem~se à ciência enquanto tal, sobretudo à sua instituciona­Iização c a seu caráter de isolacionismo. Questionamentos são

- feitos ao valor político e social da ciência e da pesquisa, bem como à significação soda! de seus resultados ou produtos in­telectuais. Coloca-se em dúvida a justificação de certos progra­

. mas cienúficos e à legendária "pureza" ou "neutralidade" dos pesquisadores: Essa "neutralidade" é simplesmente tachada de ingenuidade ou de hipocrisia. A esse respeito, têm surgido re­centemente inúmeras obras, preocupadas com os desafios da ciência ou com os problemas da responsabilidade social dos cientistas. Entre os autores, destacam-se: J. R. Ravetz, P. Thuillier, J . J. Salomon, B. Barnes, A. Jaubert, J. D. Berna!, E. Schatzman, J. Lévy-Leblond, W. Fuller.-

A questão é objeto de indagação de vários periódicos. Algumas revistas foramcriadas para esse fim: Science for the People (E.U.A.) · c Science for People (Inglaterra). Outras, de caráter mais técnico, também tratam do assunto: Nature, Science e-La Rech~che. Vários simpósios já foram realizados para discutir esse tema: em Estocolmo ( 1969), organizado pelo Instituto Nobel; em Londres e Bruxelas (1971), orga­nizados respectivamente pela Fundação CIBA e pelo Weiz­mann Iogitu~e of Science; em Saint-Pau!-de-Vence (França), organizado pela O. C. D. E., em 1972, re<'lizou-se um con­gresso sobre A Ciência e a Sociedade, onde os maiores cien­tistas europeus discutiram · e tentaram diagnosticar esse novo "mal do século" que atinge a humanidade em favor do desen­volvimento científico e tecnológico.

Vários grupos de cientistas se organizaram nos E . U. A., na I nglaterra, no Japão, na Alemanha e na França. Um dos primeiros foi o British Society for S<Xial Responsability in Science (1969). Ao ser criada, essa sociedade justificava sua existência:

existe porque há muitos cientistas que crêem que a ciên­cia poderia trabalhar para o bem-estar e para o benefício da humanidade ( ... ) Os cientistas não podem mais escapar às responsabilidades morais de seu trabalho. A educação cientí-

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fica deveria chamãr a atenção para as consequenctas soc1a1s da ciência em seus contextos histórico e contemporâneo ( ... ) Com muita freqüência o público é levado a crer que certos tipos de progresso são inevitáveis; a comunidade deve ser ca­paz de tomar decisões para obter da ciência e da tecnologia os melhores efeitos sociais, sem ser enganada ou ignorada pe­IÓ governo, pelos experts e pelos grupos de pressão. E os cien­tistas devem mobilizar-se para difundirem os dados a partir dos quais possa ser estabelecido um julgamento sólido. A BSSRS existe para fazer dessas declarações, não piedosas as~ pirações, mas bases para a ação.

Depois dessa apresentação de si mesma, a BSSRS se pro­punha corno objetivos:

1) estimular entre os cientistas uma tomada de consciên- -cia da significação social da ciência e de suas res­ponsabilidades ao mesmo tempo individuais e coleti­vas;

2) chamar a atenção sobre todas as pressões políticas, · sociais e econômicas que afetam o desenvolvimento da ciência;

3) chamar a atenção do público sobre. as implicações e as conseqüências do desenvolvimento científico e criar, assim, um público informado 'podendo exercer escolhas nesses domínios;

4) promover um intercâmbio internacional, sobre esses temas, com grupos idênticos em outros países.

Diversas associações de dentistas foram _ ..criadas com o objetivo de promover uma reflexão e de educar a sociedade no que diz respeito aos novos e graves problemas criados pela "era nuclear". As mais importantes são: nos E.U.A., a Fe­deration of Atomic Scientists; na Inglaterra, a Atomic Scien­tists Association. Depois do famoso manifesto de B. Russel e de A. Einstein e da reunião da Association Mondiále des Par­lamentaires pour un Gouvemement Mondial (Londres, 1955), surgiu o Movimento de Pugwash, que já realizou mais de vinte conferências internacionais. Transcendendo os nacionalismos, os particularismos filosóficos, culturais e religiosos, os cien­tista~ que compõem o Movimento de Pugwash-esforçam-se por

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precisar as implicações sociais do progresso científico e da evo­lução tecnológica do mundo contemporâneo. Os temas trata­dos são variados: energia nuclear, radiações atômicas, segu­rança, desarmamento, cooperação internacional no campo científico, ciência a serviço dos países menós desenvolvidos, problemas ecológicos. O objetivo explícito do movimento é exercer uma influência sobre os diversos governos e alertar a consciência dos cientistas sobre o conteúdo potencial, político e social de suas pesquisas, sobre as conseqüêndas de suas aplicações, tendo em vista dar uma contribuição. para a me­lhoria do destino humano. Pugwash é um movimento discre­to, porém sério e eficaz. Até o momento, conseguiu evitar todo tipo de politização ou de feudalização ideológica. Agru­pando apenas cientistas de renome internacional, o movimento recebe o apoio das mais renomadas associações científicas: da U .. S. National Academy of Sciences, da Academia das Ciên­cias da URSS e da Royal Society of Science da Inglaterra.

P oriãnto, a contestação à ciência, em nossos dias, não é. feita mais apenas por sociólogos, por filósofos ou certos jorna­listas. Ela se inscreve no cerne mesmo da consciência de nu­merosos cientistas. Há uns quarenta anos atrás, um cientista podia escrever: "Meu avô anunciava o Evangelho de Cristo; meu pai, o do socialismo; quanto a mim, prego o evangelho da ciência". Hoje em dia, essa pregação, não só é anacrônica, mas ãberrante. Porque os próprios cientistas já se iarerrogam .sobre o valor da ciência, sobre sua significação, sobre seus pressupostos, sobre 5UilS motivações, sobre sua aptidão en'i contribuir para a felicidade do homem e sobre o alcance social de seus resultados. O impacto do trabalho científico sobre a sociedade constitui objeto de estudos cada vez mais críticos. A contestação não é mais um fenômeno esporádico, oriundo de causas locais ou fortuitas, como se poderia pensar, mas o resultado de exigências de maior lucidez e responsabilidade. tentando conjugar ciência, moral e política.

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