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8/3/2019 fapespRelatorio_parcial-entregar http://slidepdf.com/reader/full/fapesprelatorioparcial-entregar 1/33 Relatório parcial – bolsa FAPESP de iniciação científica – 2009 PROJETO Fundamentos lingüísticos do conceito de símbolo e alegoria em Goethe Elis Piera Rosa Orientadora: Prof a Dr a Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas Departamento de Letras Modernas Faculdade de Ciências e Letras Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Araraquara 2009

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Relatório parcial – bolsa FAPESP de iniciação

científica – 2009

PROJETO

Fundamentos lingüísticos do conceito de símbolo ealegoria em Goethe

Elis Piera Rosa

Orientadora: Prof a Dr a Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas

Departamento de Letras Modernas

Faculdade de Ciências e Letras

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)

Araraquara

2009

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ÍndiceResumo do projeto inicial..................................................................................................3

Resumo da pesquisa realizada no período.........................................................................3

Pesquisa realizada no período............................................................................................3

1. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe...............................................3 1.1. Sentimento como conhecimento.................................................................................4

1.2. Parte e todo: o universal no particular......................................................................10

1.3. Caráter religioso.......................................................................................................17

1.4. Gênio........................................................................................................................21

1.5. Alegoria e arbitrariedade..........................................................................................25

2. Bibliografia..................................................................................................................306. Apresentações de trabalho e publicações....................................................................30

7. Cronograma de atividade para o próximo período......................................................32

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Resumo do projeto inicial

O projeto dedica-se a uma sistematização da oposição símbolo/alegoria em

Goethe, bem como a identificar os fundamentos lingüísticos e filosóficos dessa

oposição, através da leitura e discussão de textos de autores que trataram do mesmotema. A essa investigação teórica sucederá a análise da própria produção ficcional de

Goethe em que o símbolo e a alegoria (no sentido goethiano) tenham papéis

determinantes.

Resumo da pesquisa realizada no período

A pesquisa realizada no período analisou a parte inicial do romance Os anos

de aprendizado de Wilhelm Meister  (do Livro I ao V), assinalando trechos que tratamsobre as definições de símbolo e alegoria, ou que buscaram construir um destes tipos de

representação. Para basear as definições destes conceitos, utilizamos o material

  previamente estudado, principalmente as opiniões emitidas por Goethe sobre

representação artística em Memórias e reflexões (2003) e Escritos sobre arte (2005).

A divulgação dos resultados da pesquisa aconteceu parcialmente durante a

comunicação oral “A motivação do símbolo goethiano como recuperação da força

mitológica em linguagem” (atividade que também possibilitou uma publicação nosanais do evento) realizada durante o I Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”

da UNESP/FCL-Araraquara. A apresentação dos demais resultados decorrentes do

  presente relatório se dará nos congressos de iniciação científica que acontecerão no

segundo semestre de 2009, como o da UNESP e o da UFSCar.

O período de pesquisa referente a este relatório compreendeu a participação em

dois eventos e três cursos extra-curriculares de língua alemã (que contribuirão para

habilidade de leitura no idioma e, consequentemente, para a pesquisa e ampliação da  bibliografia de nosso trabalho), além do cumprimento dos créditos da graduação em

Letras (vide histórico escolar em anexo).

Pesquisa realizada no período

1. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe

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Publicado em 1795, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  é o

  paradigma do Bildungsroman, gênero literário de cunho realista que trata do processo

de formação e amadurecimento de sua personagem principal. Obra da maturidade de

Goethe – influenciada por sua viagem à Itália, bem como por sua iniciativa de pesquisar 

as raízes da antiguidade clássica e forjar um classicismo para seu país –, o livro traz

várias linhas de desenvolvimento; assim, é tido como romance de aventuras, social,

enciclopédico e de tese estético-filosófica. Deste modo, é possível observar as idéias

goethianas sobre símbolo e alegoria figuradas nas discussões entre personagens

(segundo a linha de um romance de tese estético-filosófica) e também nos atos destes

 personagens (sob a perspectiva de um romance de aventuras).

Seguindo o ponto de vista acima descrito, analisaremos trechos do romance

utilizando os tópicos que definem o símbolo goethiano (caráter religioso, o universal no

  particular, o sentimento como conhecimento, o gênio artista/criador). A presença da

alegoria no romance será observada nos episódios de diálogo sobre arte realizado pelos

 personagens, já que grande parte da história dos três primeiros livros é envolvida pela

trupe de teatro, seus feitos e discussões artísticas.

1.1. Sentimento como conhecimento

  No presente romance, a representação do sentimento como conhecimento

acontece nas cenas em que personagens descrevem sua experiência estética diante das

obras de arte, ou em que questionam a predominância de um olhar racional para

compreender o mundo. Por ser um texto da maturidade, Goethe não expõe uma crença

total na predominância da emoção, ironizando por vezes as personagens que se deixam

dominar pelo que sentem.

O desejo de Wilhelm erguera-se nas asas da imaginação rumo àquelaencantadora jovem; depois de breves encontros, ele conquistou seu apego ese viu dono de uma criatura a quem, mais que amar, venerava, pois ela

lhe havia surgido pela primeira vez sob a favorável luz de umarepresentação teatral, e sua paixão pelos palcos une-se a seu primeiroamor por uma mulher. Sua juventude permitia-lhe gozar prazeresabundantes, realçados e assegurados por uma viva aptidão poética. Até asituação de sua amada imprimia ao comportamento dela uma disposição quelhe favorecia os sentimentos; o temor de que seu amante pudesse descobrir antes do tempo sua outra relação dava-lhe uma delicada aparência de preocupação e pudor; era viva sua paixão por ele, e mesmo sua inquietude

  parecia aumentar sua ternura; nos braços dele era a mais amorosa dascriaturas (GOETHE, 2006, p. 32, grifos nossos).

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O trecho acima descreve a paixão de Meister por Mariane, equiparando-a a

experiência estética do protagonista com o teatro. Tal sentimento une e cria uma

harmonia entre idéias contrárias: a veneração idealista e distante que platéia possui pela

atriz, e o amor sensorial/carnal/empírico pela mulher – características desejadas por 

Goethe para a constituição de um todo orgânico na obra artística, como podemos

visualizar nesta máxima: “966. Deixai-nos ser multifacetados! Nabos do mercado são

gostosos principalmente quando misturados com castanhas; e estes dois frutos nobres

crescem longe um do outro” (2003, p. 149). O trecho acima, retirado do romance,

também traz o lado irônico do sentimentalismo: Mariane, dominada pelo medo de que

Meister descobrisse seu outro amante, se tornava mais dócil, e o protagonista,

cegamente apaixonado, não percebia – a predominância do sentimento não garante a

 predominância da sinceridade (o que contraria um “dogma” do romantismo).

Que bonecos não falavam por si próprios, já dissera a mim mesmo na  primeira vez; que tampouco se moviam sozinhos, também já suspeitava;mas, porque tudo aquilo era tão lindo, por que pareciam falar e mover-

se por si mesmos e onde poderiam estar as luzes e as pessoas? Eis osenigmas que me inquietavam tanto mais quanto mais desejava estar aomesmo tempo entre os encantadores e os encantados, tomar parte emsegredo naquilo e, como espectador, desfrutar o prazer da ilusão. (2006, p.36, grifos nossos)

Acima, Meister descreve seu contato com o teatro de bonecos, pensando a arte

ali presente como manifestação misteriosa, mágica, encantadora, ao ponto de dar vida a

seres inanimados. O sentimento despertado como espectador alçou Meister a desejar ser 

ator, e também produzir arte. Em seus textos teóricos, Goethe também pensa a arte

como envolta por mistério: “Arte: uma outra natureza, também misteriosa, mas mais

inteligível; pois ela emerge do entendimento” (2003, p. 112). O entendimento, do qual

fala o autor, não está em solucionar o mistério, mas em experimentar/vivenciar o que ali

se apresenta, assim ele o diz em “Resenhas sobre As belas-artes de Sulzer”, texto de sua

fase Sturm und Drang : “Quem não tem experiência sensível com as artes, de

 preferência as abandone. (…) Que reflita sobre o fato de que, por meio da teoria, ele

emperra o caminho do verdadeiro prazer” (2005, p. 48) – o anseio de Meister por se

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tornar ator traduz a busca por uma experiência e conseqüente entendimento mais

completos sobre a arte.

 – Que ator, que escritor, ou que homem mesmo, não se consideraria no augede seus desejos, se com alguma frase nobre ou uma boa ação qualquer  produzisse impressão tão unânime? Que sensação deliciosa deve ser a de poder, tão rápido quanto uma descarga elétrica, através de sentimentos bonse nobres, dignos da humanidade, excitar o povo, difundir-lhe umentusiasmo semelhante, tal como fizeram essas pessoas com o auxílio desuas habilidades corporais; se fosse possível transmitir à multidão a

simpatia por tudo o que é humano; se fosse possível inflamar, agitar eimprimir um movimento livre, vivo e puro a seu ser interior paralisado,através da representação da ventura e da desventura, da sabedoria e daestultice, e mesmo do disparate e da estupidez!Assim falava nosso amigo, e como nem Philine nem Laertes pareciam

dispostos a acompanhar um discurso daquele, entretinha-se ele sozinho comessas considerações prediletas, enquanto passeava, tarde da noite, pelacidade, perseguindo mais uma vez, com toda a vivacidade e liberdade deuma imaginação desenfreada, seu antigo desejo de materializar através doespetáculo aquilo que há de bom, nobre e grandioso. (2006, p. 114, grifosnossos)

Acima, Meister segue explicitando sua intenção de produzir uma obra de arte

comovente, que religasse o espectador ao todo da humanidade, um particular que

remetesse ao universal – tal objetivo também é o ideal artístico de Goethe: “A obra de

arte deve falar o todo do homem” (2005, p. 11).

Contudo, Meister se expressa num tom idealizado, que destoa dos seus colegas

de grupo de teatro (“nem Philine nem Laertes pareciam dispostos a acompanhar um

discurso daquele”). Como justificativa a esse comportamento, Maas, em O cânone

mínimo: o Bildungsroman na história da literatura (2000), assinala o romantismo da

 personagem: “A figura de Meister permanece ‘romântica’, no sentido mais ingênuo do

termo, mesmo nas passagens finais em que se espera efetivamente a conclusão daformação de sua personalidade” (p. 151).

O protagonista, em seu discurso, anseia por uma obra que una forças díspares

(“ventura e desventura, sabedoria e estultice, disparate e estupidez”) para formar um

todo “bom, nobre e grandioso”. Este tom demasiadamente romântico se faz presente nas

idéias teóricas de Goethe sobre arte, e está visível em um de seus textos de juventude,

onde ele se posicionou contra noções presentes em As belas artes de Sulzer:

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O senhor Sulzer (…) pretende concluir de modo tradicional partindo danatureza para a arte: “Em toda a criação tudo concorda de tal maneira que osolhos e os outros sentidos são comovidos por todos os lados por meio deimpressões agradáveis”. Mas, por acaso aquilo que provoca em nósimpressões desagradáveis não pertence ao plano da natureza da mesmamaneira que aquilo que possui o maior encanto? (…) O que o senhor Sulzer 

diria à amorosa mãe natureza se ela engolisse em seu estômago umametrópole (…)? [Goethe relembra aqui o terremoto que arrasou Lisboa nosanos 1770](…) Ele [Sulzer] fala muito da essência das artes, de sua finalidade e louvasua elevada utilidade como meio para o fomento da felicidade humana.Quem conhece em alguma medida o homem, as artes e a felicidade, teráaqui pouca esperança. Ele se lembrará dos muitos reis que no centro doesplendor de sua glória foram carcomidos pelo enojo de morrer. (GOETHE,2005, p.48, 49, 50 e 51).

Goethe critica a idéia de Sulzer de que arte deve proporcionar “impressões

agradáveis” – tal compromisso exclui o ruim, a fealdade, que também são parte da vida

e matéria para arte; além de demonstrar, por parte de quem declara essa sentença, falta

de experiência empírica.

Meister anseia por construir uma obra que conciliasse contrários, contudo, o

autor apresenta esse ideal numa situação onde ele aparenta ser irrealizável, não

condizente com seu meio. É como se Meister figurasse a fase literária romântica pela

qual Goethe passou e, tendo o romance sido escrito na maturidade do autor, acreditamosque possa ser sua intenção demonstrar vários posicionamentos sobre uma mesma idéia;

ou mesmo ressaltar o caráter inexperiente de Meister para demonstrar sua necessidade

de aprendizado. Deste modo, a postura do protagonista não é exposta somente para ser 

criticada, mas sim para constituir uma das forças que compõe o todo multifacetado desta

obra.

Os cavaleiros armados, os velhos burgos, a lealdade, retidão, probidade, mas principalmente a independência das personagens em ação, foram recebidoscom muitos aplausos. O leitor dava o melhor de si e os ouvintes quedavamentusiasmados. Entre o segundo e o terceiro ato trouxeram o ponche numgrande vaso, e como na própria história as personagens bebiam ebrindavam com freqüência, nada mais natural que todo grupo, a cadacaso semelhante, se pusesse com animação no lugar dos heróis e

erguesse também brindes, dando vivas às suas personagens favoritas.Estavam todos inflamados pelo fogo do mais nobre espírito nacionalcom seu caráter, deleitar-se com a poesia em seu próprio solo! Sobretudoaquelas abóbadas e caves, os castelos em ruínas, o musgo e as árvores ocas,

além das cenas noturnas de ciganos e dos tribunais secretos, produziamneles um efeito absolutamente incrível. Os atores já se viam com elmo earnês, e as atrizes com golas altas e firmes, testemunhando diante do público

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seu germanismo. Todos queriam apropriar-se sem demora de um nometomado à obra ou à história alemã, e madame Melina garantia que o filho oua filha que esperava não teria outro nome de batismo que não Adalbert ouMechthilde.(…) Nesse meio tempo, a tropa de guarda havia chegado e ameaçava entrar na estalagem. Wilhelm, excitado demais pela leitura, embora não tivesse

  bebido muito, teve bastante trabalho para, com a ajuda do estalajadeiro,acalmar os guardas mediante algum dinheiro e boas palavras, e conduzir   para a casa os membros da companhia no estado deplorável em que seencontravam. Ao regressar, dominado pelo sono, atirou-se contrariado e semse despir à cama, e nada poderia comparar-se à desagradável sensação queexperimentou na manhã seguinte ao abrir os olhos e contemplar com umolhar sombrio os estragos do dia anterior, a sujeira e os péssimos resultadosobtidos por uma engenhosa, animada e bem intencionada obra poética.(2006, p. 131 e 132, grifos nossos)

O episódio demonstra a força que atua nos personagens quando estes sedeixam levar pela grandiloqüência da novela lida em voz alta. Esta narra de um modo

nobre a comemoração com bebidas que fizeram os heróis; e as personagens, imitando a

cena de um modo literal e quixotesco, se embriagam, e demonstram os piores resultados

que mesmo uma “engenhosa, animada e bem intencionada obra poética” pode causar.

Há possibilidade deste trecho indicar uma crítica às interpretações literais ou ao tom

demasiado irreal e elevado dos romances de cavalaria, continuando a contribuir para

uma visão multifacetada sobre a noção de experiência estética.

  – Posso imaginar – prosseguiu ele – como as pessoas distintas e seletasdevem estimar um poeta que descreve tão bem e com tanta exatidão ascircunstâncias de suas mais altas condições. Corneille, se me permite dizer,tem apresentado grandes homens, e Racine, personagens distintas. Quandoleio suas peças, posso sempre idear o poeta vivendo numa corte brilhante,

tendo ante seus olhos um grande rei, relacionando-se com as melhores

pessoas e penetrando nos segredos da humanidade que se ocultam portrás de preciosas tapeçarias. Quando estudo seu Britannicus, sua Berenice,

tenho realmente a impressão de estar na corte, de ser admitido no que háde grande e pequeno nas habitações desses deuses terrestres, e vejo, atravésdos olhos de um sensível francês, em seu tamanho natural, com todos seusdefeitos e sofrimentos, reis que toda uma nação adora, e cortesãos invejados  por milhares de pessoas. A anedota segundo a qual Racine morreu de

tristeza por haver perdido a estima de Luís XIV, ao fazê-lo sentir seu

descontentamento, é para mim a chave de todas as suas obras, e éimpossível que um poeta de tão grande talento, cuja vida e mortedependem do olhar de um rei, não tenha escrito peças dignas do aplausode um rei e de um príncipe.(…) – Então o senhor nunca assistiu – perguntou Jarno, chamando-o à parte – a uma peça de Shakespeare? – Não – respondeu Wilhelm – (…) Entretanto, tudo que ouvi dizer dessas

  peças não me despertou a curiosidade de conhecer mais a fundo essesmonstros estranhos, que parecem ultrapassar qualquer verossimilhança,quaisquer conveniências.

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 – Pois eu o aconselharia – replicou o outro – a fazer uma tentativa; nenhumdano pode causar, mesmo quando se vê o insólito com os próprios olhos.Vou emprestar-lhe alguns exemplares e em nada poderá empregar melhor seu tempo do que, ao se livrar imediatamente de tudo, ver na solidão de seuvelho quarto a lanterna mágica desse mundo desconhecido. (2006, p. 182 e183)

O primeiro parágrafo da citação acima traz as impressões de Meister sobre o

teatro francês, que são comparadas ao teatro shakespeariano, lembrado por Jarno. O

drama do classicismo francês foi uma das principais referências artísticas da qual

Goethe desejou se afastar e, assim como na visão do autor, o protagonista atribui a este

teatro valores que remetem à nobreza, e não à arte em si. A primeira parte que grifamos

traz a idéia de um poeta que constrói sua obra para o olhar da sociedade e do rei, e que afaz para que a observação do espectador não se concentre no objeto em si, mas numa

verdade (“segredos da humanidade”) que o baseia e deve ser encontrada através da

razão – estas são as características atribuídas por Goethe à alegoria.

Entretanto, também existem obras de arte que brilham por meio doentendimento, do espírito [Witz ], da galanteria, onde também situamos todasas obras alegóricas; dessas podemos (…) esperar [pouco], porque destroem

igualmente o interesse na representação mesma e impelem, por assimdizer, o espírito de volta a si mesmo e retiram de seu olhar o que é defato representado. O alegórico se distingue do simbólico, no sentido de queeste designa diretamente, aquele indiretamente (2005, p.81 e 82, grifosnossos).

Acima, em nosso segundo grifo na citação do romance, é possível observar o

caráter particular da comoção que o teatro francês instiga em Meister: “Quando estudo

seu Britannicus, sua  Berenice, tenho realmente a impressão de estar na corte”. A peçateatral não levou o protagonista a uma impressão de estar inserido num todo universal,

num conjunto, mas sim a de estar em um universo fechado – à guisa do que Goethe

também atribui à alegoria:

É uma grande diferença se o poeta busca o particular em relação aouniversal ou visualiza no particular o universal. No primeiro caso surge aalegoria onde o particular vige apenas como paradigma, como exemplodo universal ou aponta para ele. (2003, p.116, grifos nossos)

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A impressão particular da obra de arte (como no exemplo que Meister dá sobre

a peça de Racine: ele sentia-se como transportado à corte real) surge como paradigma,

como interpretação obrigatória; já o símbolo goethiano deseja criar a sensação do todo

sem necessariamente fixar/limitar a visão do espectador.

 Na terceira parte grifada do trecho do romance, acima, Meister coloca a chave

da interpretação da obra de Racine em sua morte, ocasionada pela perda da estima do

rei; ou seja, o protagonista qualifica a obra do autor por um valor externo aos objetos

artísticos em si, também como a alegoria goethiana.

Por fim, no quarto trecho grifado da citação do romance, acima, Jarno ressalta

as distinções do teatro shakespeariano diante do classicismo francês: a visão do insólito,

o mundo desconhecido. Tais características se aproximam da impressão de todo que

Goethe deseja dar ao seu símbolo, sem o caráter fechado e obrigatório da interpretação

da alegoria: “Quem apreende o particular de maneira vital mantém ao mesmo tempo o

universal, sem se dar conta dele, ou só se dando conta posteriormente” (2006, p. 116) – 

Goethe enfatizava as impressões “inconscientes” que a obra de arte tem o potencial de

 provocar, em face do espírito racional presente no drama clássico francês.

O fato de Meister apreciar o teatro francês e não se interessar por Shakespeare

 – característica esta que se modifica ao longo do enredo – demonstra sua inexperiência e

sua possibilidade de aprendizado e evolução.

  Na fala abaixo, Serlo defende a experiência estética como atividade que

enriquece e educa o homem.

 – Tão propenso anda o homem a dedicar-se ao que há de mais vulgar, comtanta facilidade se lhe embotam o espírito e os sentidos para as impressões

do belo e do perfeito, que por todos os meios deveríamos conservar em nósessa faculdade de sentir. Pois não há quem possa passar completamente semum prazer como esse, e só a falta de costume de desfrutar algo de bom é acausa de muitos homens encontrarem prazer no frívolo e no insulso,contanto que seja novo. Deveríamos – dizia ele – diariamente ouvir aomenos uma pequena canção, ler um belo poema, admirar um quadromagnífico, e, se possível, pronunciar algumas palavras sensatas. (2006, p.278 e 279)

Serlo destaca a experiência estética como “faculdade de sentir”, “prazer”, de

modo que as impressões que as obras de arte causam nos seus espectadores – ainda que

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sejam abstratas e inconscientes – são vistas como um modo de conhecimento que influi

fortemente no espírito humano, o deixando propenso à beleza ou à vulgaridade.

1.2. Parte e todo: o universal no particular Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister   possui grande quantidade de

cenas em que a relação parte-todo se faz presente: sejam descrições plásticas que

utilizam esse recurso, ou a discussão entre personagens, que ressalta a importância da

intrincada relação entre esses elementos.

 Não tinha mais dúvida alguma de que fora destinado para o teatro; parecia-

lhe mais próximo o nobre objetivo a que se propusera, contanto que  procurasse alcançá-lo ao lado de Mariane, e com pretensiosa modéstia percebia nele o excelente ator, o criador de um futuro teatro nacional, peloque tanto ouvira as pessoas suspirarem, tudo o que até então estavaadormecido no recôndito mais íntimo de sua alma passou a ganhar ânimo. Ede suas múltiplas idéias ele construía, com as cores do amor, um painelsobre fundo nebuloso, cujas figuras se fundiam naturalmente umas nasoutras; mas, em compensação, era muito mais atraente o efeito produzido pelo conjunto (2006, p. 50 e 51).

O trecho acima ironiza a crença de Meister em sua vocação teatral,apresentando seus sonhos/pretensões como elementos confusos. Goethe sempre

tenciona tornar o abstrato visível, e, ironicamente, os propósitos de Meister não podem

se materializar numa imagem, pois não possuem fundamento. A intenção recorrente do

autor de tornar concreto o que é aparentemente insólito é observada por Bahktin, em

 Estética da criação verbal (2000):

Para Goethe, as noções e as idéias mais complexas e elaboradas sempre podem ser representadas de uma forma visível , por meio de um esboço, deum desenho esquemático ou simbólico. Todas as idéias propriamentecientíficas e as construções do espírito estão expressas em Goethe em formade esquemas, de esboços e de desenhos precisos. As idéias dos outros,Goethe as assimila depois de revesti-las de uma forma visível.(…) Não há fundamentos de uma visão filosófica do mundo que não possamexpressar-se na forma de uma imagem visual, simples e clara.(…) Assim, portanto, Goethe queria – e sabia – perceber tudo com os olhos.O invisível não existe para ele. (p.246, grifo do autor)

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Goethe é objetivo e transpõe com facilidade uma idéia a diferentes tipos de

linguagem, sua abstração é concreta – este mesmo tom direto deseja ele a seu símbolo.

E tal precisão é obtida graças à busca por uma ordenação na combinação dos elementos

componentes da obra de arte, que trabalham conjuntamente para figurar um todo.

  No exemplo acima, retirado do romance, o narrador mostra que esta

materialização do abstrato não é possível, contudo, episódios que ilustram essa

realização aparecem ao longo do romance.

 – Visita primeiro algumas grandes cidades mercantis, alguns portos e, nãoduvides, serás arrebatado. Quando vires o número de homens que alitrabalham, quando souberes de onde vêm e para onde vão tantas coisas, sem

dúvida haverás de querer vê-las passando também por tuas mãos. Aliencontrarás a mais pequena mercadoria em relação com todo o comércio

e, justamente por isso, nada te parecerá insignificante, porque tudoaumenta a circulação, da qual tua vida tira o sustento. (GOETHE, 2006, p. 54)

Werner é o amigo de Meister, burguês como ele, que, contudo, decidiu-se por 

encaixar-se socialmente com uma vida ativa de trabalho, em vez de buscar a formação

abrangente que deseja o protagonista. A fala acima pertence a Werner, que igualmente

se vale do recurso de figurar, em meio a uma multidão confusa, um todo que, na

verdade, possui uma ordem. O conjunto descrito por Werner une num todo universal a

menor mercadoria à vida de seu interlocutor, Meister, num esforço para demonstrar 

motivação de uma cena aparentemente arbitrária – tal ação é uma das características do

símbolo goethiano e uma das razões que o une à noção de motivação na linguagem.

A citação abaixo, em nossa opinião, se configura como tentativa de expressão

do símbolo goethiano, em que partes e todo estabelecessem uma profunda ligação.

Ela ergueu sua cabecinha e o fitou, levando as mãos ao coração, como numgesto que refreasse a dor. Ergueu-a, e ela tombou em seu peito; estreitou-afortemente e a beijou. Não respondeu ela com nenhuma pressão da mão,com nenhum movimento. Ela comprimia o coração e de repente soltou umgrito, acompanhado de movimentos convulsivos do corpo. Endireitou-se,mas logo voltou a se prostrar, como se quebradas estivessem todas as suasarticulações. Que horrível visão!  – Minha filha! – exclamou ele, levantando-a e abraçando-a firmemente. – Que tens, minha filha? Não cessavam, porém, os frêmitos que do coração se espalhavam por todosos membros tremulantes; e ela ali, suspensa nos braços de Wilhelm.

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Estreitou-a no peito e esparziu-a com suas lágrimas. Subitamente, pareceude novo crispar-se, como quem suporta a mais aguda dor física, e emseguida, com uma nova impetuosidade, reanimaram-se todos os seusmembros; enrodilhou-se no pescoço de Wilhelm, como um elástico que sesolta, enquanto em seu interior sobrevinha um dilaceramento profundo, e,nesse momento, de seus olhos cerrados uma torrente de lágrimas fluiu pelo

 peito de Wilhelm. Ele a estreitava fortemente. Ela chorava, e não há línguahumana capaz de expressar o poder daquelas lágrimas. Seus longos cabeloshaviam-se soltado, e todo seu ser parecia desfazer-se irremediavelmentenum riacho de lágrimas. Distenderam-se seus membros rígidos, irrompeu-seseu interior e no desvario daquele momento Wilhelm temia que ela pudessefundir-se em seus braços e não lhe restasse nada dela. Cerrou-a então commais e mais firmeza. (2006, p. 149)

A citação acima, em nossa opinião, se configura como tentativa de expressão

do símbolo goethiano, em que partes e todo estabelecessem uma profunda ligação. Na

  passagem, a personagem Mignon expressa desespero e tristeza, mas estes sentimentos

não são citados diretamente, percorrem cada parte do seu corpo, apresentam uma

reação, e constroem gradativamente a impressão principal do trecho.

A descrição acima possui um caráter circular, em que cada elemento se volta a

representar o sentimento central, presente em Mignon. Moritz, conselheiro de grande

influência sobre Goethe, assinala a necessidade dos componentes da obra de arte

 possuírem a utilidade de formar um todo, pois tal impressão de totalidade é a expressão

do Belo:

Devo encontrar nas partes isoladas desse objeto tanta finalidade que meesqueço de perguntar: mas para que o todo? Em outras palavras, diante deum tal objeto, a ausência de finalidade externa deve ser compensada por uma finalidade interna; o objeto deve ser algo completo em si mesmo. (apudTODOROV, 1996, p. 204)

Os elementos da descrição acima, retirada do romance – por sua construção

circular, em função de criar um todo – traduzem a proposição de Moritz: a finalidade

interna anula a imposição de uma finalidade externa à obra, tal característica também é

atribuída por Goethe a seu símbolo.

O narrador (no trecho do romance, acima) consegue ultrapassar o caráter linear 

da linguagem escrita (qualidade que é uma das principais justificativas de Saussure para

seu argumento de que a essência do signo é arbitrária, cf. SAUSSURE, 2003, p. 84) ecria uma descrição em que todos os elementos estão inter-relacionados e motivados por 

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um único tema. Jakobson, revisando a postulação da arbitrariedade do signo feita por 

Saussure, assinala a diagramatização e a verticalidade possíveis na linguagem, fatores

que também ultrapassam a noção de linearidade (cf. JAKOBSON, 1969, p. 115).

 No trecho abaixo, continuando as ilustrações sobre a importância da harmonia

entre parte e todo, Meister faz uma analogia entre uma orquestra e um grupo de teatro.

  – Não há como deixar de ver – exclamou nosso amigo – quão longe

poderemos chegar, se persistirmos assim em nossos exercícios, e não noslimitarmos simplesmente a decorar, ensaiar e representar de um modomecânico, por dever de ofício. Tanto mais elogios merecem os músicos,tanto mais se regozijam e acertam, quando praticam em conjunto seusexercícios! Como se empenham em harmonizar seus instrumentos, com que precisão mantêm o compasso, com que delicadeza sabem expressar a força ea debilidade de um som! A nenhum deles ocorre vangloriar-se de umacompanhamento mais forte durante o solo de um outro músico. Todos procuram tocar seguindo o espírito e o sentido do compositor e expressar

da melhor maneira a parte que está a seus cuidados, seja ela breve oulonga. Não deveríamos nós também proceder com a mesma precisão e omesmo espírito, já que nos dedicamos a uma arte muito mais delicada quequalquer gênero de música, já que somos chamados a representar de ummodo repleto de bom gosto e deleite as manifestações mais comuns e maisraras da humanidade? Pode haver algo mais horrível que macular os ensaiose fiar-se no capricho e na sorte durante a representação? Deveríamos aplicar nossa felicidade e satisfação maiores em conciliar-nos uns com os outros,

para deleite mútuos, e só apreciar o sucesso do público depois de já ohavermos garantido de certo modo a nós mesmos. Por que o mestre-de-capela se sente mais seguro com sua orquestra que o diretor com seuespetáculo? Porque ali todos haverão de se envergonhar de seus desacertos,que ofendem o ouvido exterior; mas raramente tenho visto um ator reconhecer e envergonhar-se de seus desacertos, perdoáveis ou não, queofendem de maneira tão indigna o ouvido interior. Não desejaria eu outracoisa senão que o teatro fosse tão estreito quanto a maroma de umfunâmbulo, para que nenhum inepto ousasse nela subir, ao contrário do queocorre agora, quando qualquer um se sente apto o bastante para se exibir em público. (2006, p. 216, grifos nossos)

 No primeiro grifo, o protagonista expõe sua intenção de não tornar o trabalho

da trupe mecânico – esta qualidade é atribuída por Goethe à alegoria e também à

 primeira fase de uma obra de arte, em que o homem começa a modificar o natural, mas

seu objeto ainda não porta suficiente dignidade:

O segundo gênero [de representação] é o ideal mesmo [o primeiro é onatural]; não se apreende o objeto tal como aparece na natureza, e sim naaltura onde está despido de tudo o que é ordinário e individual, onde ainda

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não se tornou uma obra de arte por meio da elaboração, mas já se dirige àelaboração como um objeto perfeitamente configurado. Aquele é gerado  pela natureza, este pelo espírito do homem na ligação mais íntima com anatureza; aquele eleva o artista, por meio da elaboração mecânica, a umacerta dignidade, neste todo o tratamento mecânico quase não é capaz deexpressar a sua dignidade. (2005, p. 79 e 80)

O símbolo goethiano esforça-se para ser orgânico, em contraposição ao

mecânico. Tal organicidade se faz presente na descrição acima citada de Meister, onde

cada membro de uma orquestra se doa inteiramente pelo todo, reconhece seus erros;

enquanto o teatro é palco para exibição pessoal, entre outras atividades que não

valorizam a arte em si ou o conjunto. Meister assinala a necessidade dos membros do

grupo teatral aprenderem a serem prazerosos uns aos outros, antes de pensar em atingir o público – trazendo novamente a idéia de que os elementos devem estar profundamente

unidos para fazerem sentido como um todo.

Entraram várias pessoas e interromperam a conversa. Eram virtuoses quecostumavam reunir-se na casa de Serlo uma vez por semana, para um pequeno concerto. Ele amava a música e afirmava que, sem esse amor, umator não poderia jamais formar uma idéia e um sentimento preciso de sua  própria arte. Da mesma forma como se age com mais facilidade e maisdistintamente quando os gestos vêm acompanhados e dirigidos por umamelodia, assim também devia o ator compor em espírito, de certo modo, seu prosaico papel, para que a monotonia não o atabalhoasse, segundo seu estiloe maneiras individuais, mas sim tratando-o com as devidas modulações demedida e tom. (2006, p. 245)

O trecho acima, retirado do Livro IV, igualmente realiza uma analogia entre o

ator e o músico, descrevendo o potencial do trabalho de ambos quando se deixam guiar 

  por algo maior do que somente sua individualidade: o último se guia pela melodia, o primeiro também deve criar tom e medida para adequar sua personalidade ao papel e se

guiar por esta combinação. O amor de Serlo o ligava à arte de modo mais eficaz – 

repetindo a idéia de sentimento como modo de conhecimento, e colocando a

individualidade de Serlo como parte de algo maior, a emoção estética.

  Novamente, abaixo, podemos observar um exemplo de construção plástica,

com os elementos componentes unidos para formar o todo.

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Ao despertar certa manhã, Wilhelm se viu numa insólita proximidade comela. Na agitação do sono, ele havia tombado para a parte inferior de sua largacama; Philine estava atravessada na parte superior, como se tivesseadormecido enquanto lia, sentada sobre a cama. Um livro tombara-lhe damão, e ela havia caído para trás, com a cabeça perto do peito de Wilhelm,sobre o qual se espalhavam em ondas seus louros e soltos cabelos. A

desordem do sono realçava seus encantos mais que a arte e a premeditação;  pairava em seu rosto uma pueril e risonha tranqüilidade. Contemplo-a por um instante, parecendo reprovar-se a si mesmo o prazer com que acontemplava, e não sabemos se abençoava ou condenava aquele seu estadoque lhe impunha como um dever calma e moderação. E ali estava ele,fitando-a atentamente já há algum tempo, quando ela começou a se mexer.Ele fechou cuidadosamente os olhos, mas não pode evitar um olhar desoslaio, assim que ela tratou de pôr em ordem suas roupas e saiu para perguntar pelo desjejum. (2006, p. 236)

As mulheres com quem Meister se envolve geralmente são descritas comoobjetos de arte (pinturas/esculturas) a serem admirados, contudo, esse idealismo

convive com a possibilidade de realização sexual, o que ultrapassa as características

românticas. O tema central ao qual se agrupam os elementos neste trecho não nos

 parece exatamente claro, há um tom de desejo sexual, infantilidade – essa imprecisão é

 propositalmente construída, o sentido imediato a ser provocado é somente sensorial;

racionalmente, o texto é opaco. Goethe se expressa neste sentido nas seguintes

máximas:

53. Não é sempre necessário que o verdadeiro se corporifique; já ésuficiente que ele paire à nossa volta espiritualmente e provoque oaparecimento da concórdia, que ele flutue séria e amistosamente pelos arescomo o som de um sino. (2003, p. 5 e 9)

Acima, o autor reveste a verdade (que interpretamos também como o tema

 principal de um texto) de uma aura religiosa e misteriosa, que atingirá o espectador pelo

sentimento e não pela razão.

  Na citação seguinte, a personagem Aurelie também apresenta sua impressão

diante do todo: ela pode se conciliar com o público alemão apenas quando conseguiu

ver a nação, a coletividade, ao invés de cada indivíduo.

“Que insensatez”, costumava dizer a mim mesma, “censurar toda umanação, precisamente por ser uma nação! Mas, afinal, os homens

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separadamente devem e podem ser tão interessantes? De jeito nenhum!A questão é saber se entre a grande massa acha-se repartida uma quantidadede disposições, forças e capacidades, que podem ser desenvolvidas mediantecircunstâncias favoráveis e dirigidas por homens superiores para umafinalidade comum.” (2006, p. 261, grifo nosso)

Aurelie não acha significado nas individualidades, elas existem somente

enquanto partes de um todo bem dirigido – neste ponto, em nossa opinião, Goethe

demonstra mais um tópico em que se afastou do romantismo: este está centrado somente

em uma individualidade, nos sentimentos de uma figura principal, enquanto Goethe

enfatiza a força variada, entretanto una de um conjunto.

Abaixo, o exemplo traz um problema de desunião de conjunto, vivido pelos

membros do grupo teatral. Todos discordavam quanto à preferência pelo teatro francês

ou inglês, e instigado por este problema, o narrador descreve outras dificuldades pelas

quais a trupe passava.

A maior parte dos atores estava bem em seu posto; todos tinham muito afazer e de bom grado todos faziam o que era para se fazer. Suas relações  pessoais eram satisfatórias, e todos pareciam prometer muito em sua arte, porque todos davam os primeiros passos com ardor e animação. Mas logo sedescobriu que uma parte deles não passava de autômatos, que sóconseguem alcançar o que é possível atingir sem sentimento, e em poucotempo neles se imiscuíram as paixões, que de hábito atravancam o caminhode toda boa instituição e desfazem facilmente tudo o que homens razoáveis ede bom julgamento desejam manter unido (2006, p. 333 e 334, grifo nosso).

As principais residem no fato de cada membro não estar envolvido em algo

além do que sua individualidade, como um sentimento por algo maior, seja pelo grupo

ou pela arte – agiam de forma automática, sem sentimento (características da alegoriagoethiana) e apaixonavam-se entre si, o que é eficaz para desunir um conjunto de

  pessoas. A paixão, neste trecho, se configura como particularização, interesse,

condicionamento, e se opõe às noções de ideal e universalidade.

Serlo iria representar um cortesão não caricatural, Marinelli, de “Emília

Galotti”, e passou a dissertar sobre o assunto, proporcionando um momento de

aprendizado sobre harmonia entre parte e todo a Meister.

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O homem nobre pode descuidar-se em alguns momentos; o distinto, jamais.Este é como um homem muito bem vestido, que não se apóia em nenhuma  parte e a quem todos evitarão tocar; distingue-se dos demais e no entantonunca pode estar sozinho, pois afinal, como em toda arte, também nesta háque se realizar com desenvoltura o mais difícil; o mesmo ocorre com ohomem distinto que, a despeito de todo seu isolamento, deve sempre

parecer unido aos demais, nunca se mostrar inflexível, mas atencioso emqualquer lugar, aparecer sempre como o primeiro e jamais se impor como tal(2006, p. 342, grifo nosso).

Serlo descreve o homem distinto, não necessariamente nobre: ele se destaca

entre os demais, mas não se isola deles, sua distinção é natural e perceptível somente em

face de um conjunto, que merece sua reverência, pois é o motivo de seu destaque.

Moritz também se manifesta para complementar esta idéia: “o todo existe em virtude de

cada indivíduo, exatamente como cada indivíduo existe em virtude do todo” (apud

TODOROV, 1996, p. 203).

1.3. Caráter religioso

Utilizando a ordenação das partes em função de um todo e a força da

comoção, Goethe cria representações que tangem uma aura religiosa, de sensibilidade

concreta, mas de razão velada.

Qualquer um que já tenha assistido a uma assembléia de homens piedosos,desses que, longe da igreja, crêem edificar de modo mais puro, cordial einteligente, poderá fazer uma idéia da presente cena; recordará como oliturgista sabe adaptar a suas palavras o verso de um cântico que eleva aalma até onde deseja o orador, de modo que ela possa retomar prontamenteseu vôo, tão logo um outro membro da comunidade acrescente, com umaoutra melodia, o verso de um outro canto, ao qual um terceiro, por sua vez,agregará um terceiro verso, com o que se inspiram na verdade as idéiasanálogas dos cantos, de onde provêm os versos, tornando entretanto nova eindividual cada passagem, em virtude da nova combinação, como se tivessesido criada naquele instante mesmo; pois, de um círculo conhecido deconhecidas idéias, cânticos e sentenças, nasce, para aquela comunidade particular, para aquele momento, um todo completo e distinto, cuja fruiçãoa anima, fortalece e revigora. E assim edificava o ancião seu hóspede,disseminando nele, com canções e passagens conhecidas e desconhecidas,sentimentos próximos e distantes, emoções atentas e adormecidas,agradáveis e dolorosas, que, no estado atual de nosso amigo, era o que se podia esperar de melhor. (2006, p. 144 e 145, grifos nossos)

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Meister admira a canção melancólica do harpista e inicia uma conversa com

ele; este lhe respondia com acordes que estavam em perfeita consonância com as idéias

do protagonista. O narrador descreve essa complementaridade tornando-a análoga à

realização de um canto litúrgico. Tal comparação é um modo eficiente para que o leitor 

visualize a cena, uma vez que a experiência religiosa é acessível a todos, e geralmente

se apresenta como um dos primeiros contatos do indivíduo com um todo maior, com a

comoção em grupo. O narrador descreve o canto litúrgico como um todo orgânico,

formado por vários elementos diferentes que se completam, e provocam sensações

diversas. Meister frui dessa obra de arte, e tal experiência estética é um momento de

aprendizado.

Abaixo há um exemplo de construção plástica que se aparenta da

representação religiosa.

Mas logo Wilhelm perdeu a visão da luz e a consciência do que se passava.Atordoado por um tiro que o ferira entre o peito e o braço esquerdo, e por uma pancada que lhe partiu o chapéu e quase lhe atravessou o crânio,tombou por terra, e só mais tarde, através de relatos, tomou conhecimento decomo havia terminado o desventurado ataque.Ao reabrir os olhos, encontrou-se na mais estranha situação. A primeiracoisa que viu, através da névoa que ainda nublava seus olhos, foi o rosto de

Philine, inclinado sobre o seu. Sentia-se fraco e, ao fazer um movimento natentativa de se levantar, descobriu-se no regaço de Philine, onde se deixounovamente cair. Sentada na grama, ela estreitava delicadamente a seuencontro a cabeça do jovem ali deitado, preparando-lhe entre seus braços,tanto quanto possível, um leito macio. A seus pés, com os cabelos soltos e

cobertos de sangue, estava ajoelhada Mignon, que o abraçava em meio amuitas lágrimas. (2006, p. 225, grifo nosso)

 No trecho acima, Meister ganha o ar de um mártir, e Mignon chorando sobre

seu sangue confere dramaticidade ao episódio, que relembra as cenas religiosas da paixão de Cristo – Goethe demonstra que é possível utilizar a religiosidade como forma

sem uma intenção moralista, conforme ele também expressa na máxima abaixo.

728. A arte repousa sobre uma espécie de sentido religioso, sobre umaseriedade profunda e inabalável; é por isso que ela tende tão facilmente a seunificar com a religião. A religião não carece de nenhum sentido artístico,ela repousa sobre sua própria seriedade; mas ela também não empresta

nenhuma seriedade, tampouco quanto ela concede gosto. (2003, p.113)

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Goethe ambiciona trazer a seriedade religiosa a seus objetos artísticos, mas

sabe que a religião em si não possui gosto, pois seu propósito é doutrinário, enquanto a

função da arte, conforme prevê o autor, não deve ser externa.

Pierre Guiraud, lingüista autor de   A semântica (1972), classifica os signos

naturais e convencionais da linguagem (cf. p. 20). Dentre estas últimas categorias, estão

os signos convencionais provenientes da linguagem articulada, que representam objetos

do mundo; e, também, signos convencionais ícono-simbólicos (ritos, códigos sociais,

moda). Acreditamos que Goethe desejava a força icono-simbólica à sua representação

artística, retirando a primeira de sua inacessibilidade, observando a presença do sagrado

nas ações corriqueiras, ao mesmo tempo que desejou preservar o poder de atuação deste

signo.

Depois de ser ferido, Meister vislumbra a entrada de Natalie, descrita de modo

notável.

Wilhelm, que até ali estivera preso à lenitiva visão de seus olhos, ficousurpreso com a bela silhueta da jovem ao retirar o capote. Ela se aproximoue posou-o delicadamente sobre ele. No instante em que tentava abrir a boca

e balbuciar algumas palavras de agradecimento, foi tão viva a impressão desua presença em seus sentidos já alterados, que de súbito lhe pareceu ter elaa cabeça aureolada por raios de luz e que uma luz brilhante seespalhava pouco a pouco por toda sua figura. Naquele preciso momento,o cirurgião tocou-lhe bruscamente, preparando-se para extrair a bala alojadana ferida. A santa desapareceu aos olhos do prostrado; ele perdeu ossentidos e, ao voltar a si, haviam desaparecido os cavalheiros e os coches, juntamente com a bela e seus acompanhantes.(…)A lembrança da amável condessa era-lhe infinitamente doce. Com que prazer evocava sua imagem! Mas lhe sobrevinha também agora a figura danobre amazona, mesclando-se as duas numa única aparição, sem ter elecondições de reter precisamente esta ou aquela (2006, p. 228 e 239, grifos

nossos).

Afetado pela emoção do acidente e envolvido pela presença da amazona, ela

se constitui em sua visão como figura divina e salvadora. Ambos os trechos acima são

formados por aparições (o tom religioso lhes é ressaltado) e mistura de acontecimentos,

a compreensão racional das passagens por parte do leitor não é priorizada, elas

tencionam causar impressões, provocar sensações. Goethe expressa esta intenção com a

máxima: “541. Toda idéia sempre vem à luz como um hóspede estrangeiro, e, se

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tomarmos o modo como ela começa a se realizar, quase não se consegue diferenciá-la

da fantasia e do delírio” (2003, p. 83) – arte que é idéia, fantasia e delírio se torna mais

eficaz para se tornar experiência real na vida de seu espectador em vez da representação

indireta, a ser compreendida racionalmente: as primeiras características estão no

horizonte de expectativas do símbolo goethiano, as últimas compõem sua alegoria.

Discorreram a respeito do estado do corpo e do espírito da jovem, e o novoamigo contou muitas histórias de pessoas que, a despeito de um estado patológico semelhante, haviam alcançado uma idade avançada, mas que nãohavia nada mais nocivo em tais casos que reanimar intencionalmentesentimentos passionais. E, principalmente, não ocultou que consideravamuito venturosas aquelas pessoas que, dotadas de um temperamento

patológico não inteiramente recuperável, estariam dispostas a nutrir em simesmas sentimentos verdadeiramente religiosos (2006, p. 339, grifosnossos).

O trecho acima descreve a opinião do médico sobre o estado de Aurelie, que

enlouquecera e estava próxima à morte. O doutor observa os danos que causam a

  presença de sentimentos passionais nos pacientes, apesar de sua boa capacidade de

nutrir sentimentos religiosos. Paixão e fé são ambas emoções, contudo, o trecho ressalta

a oposição entre elas. É possível que essa afirmação se justifique, no contexto do

romance, pelo caráter demasiado individualista e prejudicial das paixões (argumento

que também se presentifica nas páginas 333 e 334 do livro) em face do tom sublime,

ideal, que agrupa as pessoas num todo, presente na religião – este último priorizado

como busca nas ações e idéias das personagens de Os anos de aprendizado de Wilhelm

Meister .

1.4. Gênio

O romance apresenta noções sobre o gênio criador de obras de arte, que pela

força de sua inspiração motiva seu objeto.

  – Como te enganas, caro amigo, ao crer que uma obra, cuja primeiraconcepção deve abarcar toda a alma, pode ser criada em horas intermitentese parcimoniosas! Não, o poeta deve pertencer totalmente a si mesmo,

viver totalmente em seus assuntos que ama. Ele, a quem o céu dotouinternamente do mais precioso dom, que guarda em seu peito um tesouroque está sempre a se propagar, deve viver também com seus tesouros, sem

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ser incomodado pelo exterior, na felicidade serena que uma pessoa rica tentaem vão criar a sua volta com seus bens acumulados. Repara como oshomens correm atrás da sorte e do prazer! Seus desejos, seus esforços, seudinheiro, a isso perseguem sem descanso, e em nome de quê? Em nomedaquilo que a natureza concede ao poeta, do gozo do mundo, docompartilhar de seus próprios sentimentos com os outros, da comunhão

harmoniosa com muitas coisas frequentemente inconciliáveis. O queinquieta os homens, senão a impossibilidade de unirem suas idéias às coisas,o prazer que se lhes escapa das mãos, e o que se deseja chega tarde demais, etudo que conseguem e obtêm o efeito que o desejo nos faz pressentir àdistância. Como um deus, por assim dizer, o destino tem colocado o

poeta acima de todas essas coisas. Ele vê a desordem das paixões, dasfamílias e dos reinos agitar-se sem razão; ele vê os enigmas insolúveisdas incompreensões que às vezes um único monossílabo bastaria paradecifrar e que causam perturbações inefavelmente desastrosas. Elesimpatiza com a tristeza e a alegria de cada destino humano. Enquanto ohomem do mundo arrasta seus dias, consumido pela melancolia de umagrande perda, ou vai ao encontro de seu destino com desenfreada alegria, aalma sensível e facilmente impressionável do poeta avança como o sol que

caminha da noite para o dia, e com ligeiras transições afina sua harpa com aalegria e a dor. Nascida no fundo de seu coração, cresce a bela flor dasabedoria e, enquanto os outros sonham acordados, atormentados por

monstruosas representações de todos os seus sentidos, ele vive despertoo sonho da vida, e o que ocorre de mais insólito é ao mesmo tempo paraele passado e futuro. E assim o poeta é ao mesmo tempo mestre, profeta,amigo dos deuses e dos homens. Como queres então que ele se rebaixe a ummiserável ofício? Ele que, à semelhança das aves, foi feito para pairaracima do mundo, aninhar-se nos picos elevados e nutrir-se de brotos efrutos, pulando ligeiro de galho em galho, haveria de, como um boi, puxar oarado, como um cão, acostumar-se a farejar um rastro ou talvez, preso a umacorrente, guardar com seus latidos uma granja? (2006, p. 92 e 93, grifosnossos)

Meister decide não mais ser poeta, queimando seus escritos. Werner não

concorda com a postura do amigo, e deixa transparecer que não levaria poesia tão à

sério, que é possível dedicar-se a ela nas horas livres. Em resposta, o protagonista

manifesta seu ideal de artista. O poeta se distingue do homem comum por viver a arte

em sua realidade cotidiana, por conseguir encontrar um sentido para os elementos que o

rodeiam, por enxergar um todo coerente abarcando um aparente caos. O artista não ésomente um ser inspirado, que segue seus caprichos, mas que se inspira pelo seu

ambiente e está em sintonia com ele. Em suma, o poeta vê no mundo motivação,

enquanto o homem comum vive arbitrariamente – a passagem também reproduz a

oposição goethiana entre símbolo e alegoria.

  No trecho abaixo, Meister destaca novamente a necessidade do artista de

  buscar a motivação em meio à arbitrariedade, envolvendo-se com a arte como numa

relação amorosa.

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 – Descontado que nisso pode haver de ironia e malícia – replicou Wilhelm – , penso que se dá com a arte o mesmo que se dá com o amor . Como podeo homem do mundo conservar, em meio à vida dispersa que leva, o fervor em que deve viver um artista, se pensa produzir algo perfeito, e que não há

de ser alheio nem sequer àquele que pretenda mostrar um interesse tal pelaobra, assim como o deseja e espera o artista? Creiam-me, meus amigos,ocorre com os talentos o mesmo que com a virtude: deve-se amá-los porsi mesmos ou renunciar inteiramente a eles. E, no entanto, só haveremosde reconhecer e recompensar tanto um como o outro quando, à maneira deum mistério perigoso, pudermos exercê-los em segredo. (2006, p. 214 e215, grifos nossos).

Mais uma vez o sentimento aparece como modo de criar o pertencimento de uma

  parte com um todo maior. Este todo é velado, é “um mistério perigoso”, do qual o

artista faz parte, mas nunca conhece a totalidade. Goethe define o absoluto em relação

ao artista com esta máxima: “307. Nós não descreveríamos nosso saber como uma obra

incompleta, se não tivéssemos um conceito de totalidade” (2003, p. 48). Nesta sentença,

assinala-se o trabalho do artista como algo interminável e ao mesmo tempo pertencente

a um todo.

1.5. Alegoria e arbitrariedade

O romance de Goethe traz várias observações sobre procedimentos alegóricos

e a arbitrariedade, além de situações em que os personagens praticam a alegoria – como

na representação de suas peças, por exemplo.

 – Acaba de me cair nas mãos O jovem na encruzilhada – replicou Wilhelm,tirando um caderno dentre os demais papéis. – Este, bem ou mal, ao menosestá terminado.

 – Põe-no de lado, atira-o ao fogo! – respondeu Werner. – O argumento nãotem nenhum mérito; já na época essa tua composição literária me causoumuito dissabor, além de atrair a irritação de teu pai. É possível que contenha  bons versos, mas a idéia é falsa por natureza. Ainda me lembro de tuapersonificação do Comércio, de tua encarquilhada e deplorável sibila.Deves ter apanhado essa imagem de um empório miserável qualquer. Docomércio não fazias então a menor idéia; quanto a mim, não saberia dizer que espírito de um verdadeiro comerciante que panorama nos oferece aordem com que conduzimos nossos negócios! Permite-nos abarcar a todomomento o conjunto, sem que tenhamos de nos embaraçar com asminúcias. Que de vantagens não proporcionam ao comerciante as partidasdobradas! É uma das mais belas invenções do espírito humano, e todo bomgestor deveria introduzi-las em seus negócios. (2006, p. 53, grifos nossos)

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Acima, Werner critica a composição literária de Meister e, principalmente, sua

idéia do comércio, uma vez que o amigo do protagonista trabalhava nele e possuía uma

visão interna sobre o assunto, como elemento constituinte deste todo. Werner tem olhar 

amplo e variado da experiência sobre o comércio, enquanto o protagonista porta uma

visão somente convencional sobre o tema, utilizando uma imitação retirada de “um

empório miserável qualquer”. O valor da experiência como formadora de conceitos

humanos é sempre ressaltado nos textos teóricos de Goethe: “306. Saber: o que é

significante na experiência e o que sempre aponta para o universal. (…) 537. Conceito é

 soma, idéia, resultado da experiência; é tarefa do entendimento tirar aquela soma e da

razão compreendê-la” (2003, p. 48 e 82, grifos do autor). Para Goethe, ideal e

experiência devem conviver em igual medida para a construção de um conceito; no

entanto, o autor, por vezes, enfatiza mais o empirismo em resposta à filosofia de sua

época, pois esta se apresentava partidária do idealismo e cartesianismo.

Ainda no trecho acima do romance, Werner destaca o fato de ser “falsa por 

natureza” a idéia de Meister, propondo o natural (presente na noção citada pelo

 personagem de todo orgânico, conjunto, ordem entre vários elementos diferentes) como

forma artística a ser priorizada – tal proposição foi feita nos textos teóricos de Goethe:

1021. Não é a linguagem em si e por si que é correta, efetiva e graciosa, massim o espírito que se corporifica nela. Assim, não depende de cada um se elequer ou não emprestar aos seus cálculos, discursos ou poemas as  propriedades desejáveis: a questão é muito mais se a natureza lheemprestou as propriedades espirituais e éticas para tanto. As  propriedades espirituais: a faculdade de intuir e perceber; as propriedadeséticas: que ele rejeite os maus demônios que poderiam impedi-lo de daro lugar de honra ao que é verdadeiro (2003, p. 157, grifos nossos).

O belo é um fenômeno originário que, na verdade, nunca vem ele mesmo àaparição, mas cujo reflexo torna-se visível em milhares de exteriorizações

distintas do espírito criador e é tão variado e distinto como a naturezamesma (2005, p. 25, grifos nossos).

  Na primeira parte da citação acima, a natureza é concebida como força

intrínseca à obra de arte, e fator que lhe confere verdade. O segundo trecho trata da

 presença de vários elementos distintos formando o todo da mente artística e criadora, e

este todo orgânico concede à arte naturalidade. Propor arte e natureza como organismos

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análogos é uma característica do ideal goethiano de representação artística (o símbolo),

enquanto à sua alegoria ele atribui artificialidade.

Abaixo, Meister recebe conselhos de um estranho (que depois saberemos ser 

membro da Sociedade da Torre, interventora e direcionadora secreta da formação do

 protagonista) sobre o tema destino.

 – Infelizmente, mais uma vez ouço a palavra destino? Num poder que nosgoverne e tudo conduza para nosso bem? – Não se trata aqui do que creio, nem este é o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebíveis coisas que fogem àcompreensão de todos nós; a questão aqui é saber qual o melhor modo derepresentação para nós. A trama deste mundo é tecida pela necessidade e

pelo acaso; a razão do homem se situa entre os dois e sabe dominá-los;ela trata o necessário como a base de sua existência; sabe desviar, conduzir e aproveitar o acaso, e só enquanto se mantém firme e inquebrantável é queo homem merece ser chamado um deus na Terra. Infeliz aquele que, desde

sua juventude, habitua-se a querer encontrar no necessário algumacoisa de arbitrário, a querer atribuir ao acaso uma espécie de razão,tornando-se mesmo uma religião segui-lo! Que seria isto senão renunciar à  própria razão e dar ampla margem a suas inclinações? Imaginamo-nos  piedosos, enquanto avançamos, vagando sem refletir, deixando-nosdeterminar por contingentes agradáveis, e acabamos por dar ao resultado deuma tal vida vacilante o nome de uma direção divina. (…) Só me anima ohomem que sabe o que é útil a ele e aos outros, e trabalha para limitar oarbitrário. Cada um tem a felicidade em suas mãos, assim como o artistatem a matéria bruta, com a qual ele há de modelar uma figura. Mas ocorrecom essa arte como com todas: só a capacidade nos é inata; faz-senecessário, pois, aprendê-la e exercitá-la cuidadosamente.(2006, p. 82 e 83)

Reproduzindo a idéia que baseia a ação da Sociedade da Torre – direcionar a

vida de Meister (cf. MAAS, 2000, p. 165) –, o estranho se posiciona contra o destino, o

acaso, a arbitrariedade. Ele os concebe como uma das bases da vida, ao lado da

necessidade, contudo quem vê como acaso o necessário também vive em ilusão.Acreditamos que esta idéia acima exposta encontre par com a noção goethiana de todo

orgânico (presente também na fala de Werner da p. 54), que observa no conjunto de

todas as coisas um sentido, uma motivação, de modo que o acaso é apenas aparência de

um mundo que, na verdade, é ordenado.

Abaixo, Meister está desmotivado pelo término do relacionamento com

Mariane, fato que ecoa no restante de suas atividades.

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Habituado a se atormentar dessa maneira, passou a atacar também de todosos lados, com uma crítica vingativa, todo o resto que, depois do amor e como amor, lhe havia proporcionado as maiores alegrias e esperanças: seutalento de poeta e de ator. Não via em seus trabalhos nada além de uma

imitação insípida de algumas formas tradicionais, sem qualquer valorintrínseco; identificava neles rígidos exercícios escolares, aos quais

faltavam aquela centelha de naturalidade, verdade e inspiração. Sóencontrava em seus poemas uma cadência monótona em que se arrastavam,ligados por uma rima pobre, idéias e sentimentos vulgares, e assim se privava de toda perspectiva, todo prazer que, por esse ângulo, teria podidoainda em todo caso reanimá-lo. (2006, p. 89, grifos nossos)

Seus trabalhos de poeta estavam tomados pelas qualidades que Goethe criticou

em seus escritos e desejou afastar-se com sua arte: imitação de formas tradicionais,

sentimentos vulgares, falta de valor intrínseco, de naturalidade, de verdade e inspiração.

A passagem também reforça o romantismo da personagem, que se afeta profundamente

 pelas relações amorosas.

  Na cena abaixo, o ator que interpreta o eclesiástico, no grupo teatral de

Meister, dialoga com o protagonista sobre seu ideal de representação dramática.

  – Tem toda razão – disse o desconhecido –, e, precisamente no tocante à

representação, uma peça assim teria um ganho extraordinário, casoestivessem os atores em condições de encená-la. Não a representação por

meio de palavras, que com elas o escritor reflexivo ornamenta seutrabalho, mas a representação por meio de gestos e mímicas, deexclamações e artifícios outros; enfim, a interpretação muda ou à meiavoz, que entre nós parece haver-se perdido por completo. Claro que hána Alemanha atores cujos corpos exprimem o que pensam e sentem;atores que, através de seus silêncios, suas hesitações, seus sinais, através dosmovimentos graciosos e delicados do corpo sabem preparar sua fala e ligar ao conjunto as pausas do diálogo mediante uma agradável pantomima; masum exercício como esse, que viesse em socorro de uma feliz disposiçãonatural e ensinasse a rivalizar com o escritor, não está hoje tão em vogaquanto seria desejável para consolo daqueles que freqüentam o teatro. (2006,

 p. 126 e 127, grifos nossos)

A encenação por meio de palavras é indireta, há a possibilidade do emprego

excessivo de ornamentações por parte do escritor, e a necessidade de interpretação

racional também predomina. A dramatização que contém maior quantidade de

elementos diferentes, que utiliza os recursos físicos do ator, que combina falas, gestos e

 pausas num todo, é direta, e seu exercício propõe maiores desafios aos autores teatrais.

Estes dois modos de representar também podem ilustrar a oposição entre símbolo e

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alegoria conforme Goethe a discute: “O alegórico se distingue do simbólico, no sentido

de que este designa diretamente, aquele indiretamente” (2005, p. 82).

A mescla dos sentimentos de dissabor e gratidão estragou-lhe o resto do dia,até que por volta do anoitecer descobriu uma nova ocupação, quando Melinalhe revelou que o conde havia falado de uma loa que deveria ser

representada em honra do príncipe no dia de sua chegada. Queria verpersonificadas nela as qualidades daquele grande herói e filantropo.Essas virtudes deveriam entrar em cena juntas, proclamar seu elogio e, aofinal, coroar seu busto com guirlandas de flores e laurel, quando então  brilhariam em transparência as iniciais do nome e a coroa do príncipe. Oconde o havia encarregado de cuidar da versificação e dos demais arranjosdessa peça, e ele esperava que Wilhelm, para quem aquilo era coisa fácil,viesse de bom grado em sua ajuda. – Como! – exclamou, [Wilhelm] descontente. – Não temos senão retratos,

iniciais de nome e figuras alegóricas para honrar um príncipe que, na minhaopinião, merece louvores de outra natureza? Como é possível sentir-se

lisonjeado um homem sensato vendo-se representado em efígie, com seunome brilhando num papel lustroso? Temo muitíssimo, principalmente selevarmos em consideração o estado de nosso guarda-roupa, que taisalegorias dêem ensejo a muitos equívocos e chistes. Se pretende fazer oudeixar que alguém faça tal peça, não tenho nada contra; só peço que medispense dessa tarefa. (2006, p. 170 e 171, grifos nossos)

Acima, Meister posiciona-se com veemência contra os procedimentos

alegóricos de representação, marcados pelo uso de objetos convencionados a ocasiões

especiais de honra à nobreza: efígie do homenageado, flores, iniciais de seu nome. Uma

das principais qualidades da alegoria é personificar conceitos, característica a qual

Goethe desejou que seu símbolo estivesse oposto, dando a ele a tarefa de somente aludir 

a definições.

As senhoras ficaram muito satisfeitas com o plano, mas asseguraram que a  peça deveria necessariamente ter algo de alegórico, para agradar ao

senhor conde. O barão propôs que apresentassem o comandante dossoldados como o gênio da discórdia e da violência e pusessem em cenaMinerva, que o acorrentaria e anunciaria a chegada do herói, cantando-lheloas. A baronesa aceitou a missão de convencer o conde de que seu projetoinicial fora apresentado com algumas alterações; mas, para isto, exigiaexpressamente que ao final da peça aparecessem o busto, as iniciais do nomedo príncipe e a coroa, porque sem eles sua tarefa seria inútil.Wilhelm, que já havia imaginado com que brio elogiaria seu herói pela bocade Minerva, só cedeu nesse ponto depois de muita resistência, mas sentia-seagradavelmente constrangido. Os belos olhos da condessa e o modo amávelcomo o tratou haveriam facilmente de levá-lo a renunciar também ao mais

  belo e grato achado, à tão almejada unidade da composição e a todos osdetalhes oportunos, e a agir contra sua consciência poética. Ainda assim,

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esteve a ponto de travar um duro combate com sua consciência burguesa,  pois, ao decidir a distribuição dos papéis, as senhoras insistiramexpressamente em que ele também participasse da peça. (2006, p. 173,grifos nossos)

  No trecho acima, os personagens continuam discutindo sobre a peça que, a

 princípio, Meister se recusou a realizar. O protagonista concorda em utilizar uma figura

mitológica, Minerva, pela força intrínseca que esta manifestação já possui. Por fim,

ironicamente, Meister vai se tornando mais flexível graças a argumentos não artísticos,

como o ar sedutor da condessa – situação que reforça a crítica ao caráter danoso das

 paixões no âmbito artístico (cf. p. 334 e 339). O grifo no trecho acima ressalta o quão

convencional é o uso de procedimentos alegóricos para entreter a nobreza – o que

assinala uma diferença de “público alvo” com o símbolo goethiano, que procurava criar 

uma forma de comoção/experiência estética acessível à burguesia.

 – De novo o encontro às voltas com o seu Hamlet ? Muito bem! Porque metêm ocorrido muitas dúvidas que parecem reduzir singularmente o aspectocanônico que o senhor gostaria de dar a essa obra. Os ingleses mesmosreconhecem que o interesse principal se encerra no terceiro ato, que os doisúltimos atos só a duras penas mantêm sua relação com o conjunto, e é certoque, até o final, a peça nem avança nem retrocede. – É bem possível – disse Wilhelm – que alguns membros de uma nação, quetantas obras-primas pode apresentar, sejam induzidos a um falso juízo por conta de prejuízos e tacanhez; mas isso não deve nos impedir de ver ascoisas com nossos próprios olhos e ser justos. Estou muito longe de

censurar o plano dessa peça, e antes creio que nenhuma outra maiortem sido concebida; melhor dizendo, não é algo concebido: é assim.(2006, p. 251 e 252, grifos nossos)

 Nesta citação, Serlo discute a forma da peça Hamlet com Meister. O primeiro

critica a obra, encontrando-lhe partes que não se encaixam com o todo (idéia recorrente

no romance). Já o protagonista apresenta uma opinião diferente da do início da

narrativa, em que declarou não desejar conhecer os escritos de Shakespeare (cf. p. 183),

e crê ver em Hamlet uma obra com a força de um ser vivo, não a reprodução/imitação

de algo. Goethe igualmente quis tal força para as suas criações, e se expressou neste

sentido nos seguintes trechos de seus textos teóricos:

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488. O mais elevado seria compreender que tudo o que é fático já é teoria. Oazul do céu revela-nos a lei fundamental da cromática. Não se deve buscar nada por detrás dos fenômenos: eles mesmos são a doutrina. (2003, p.75)

O conceito vivo da imitação formadora do belo somente pode encontrar lugar, no primeiro instante de nascimento, no sentimento da força ativa, que

 produz a obra.O supremo gozo do belo apenas pode ser sentido em seu devir a partir daforça própria. (2005, p.58 e 59)

  Na máxima 488, Goethe explicita que o fato já é sua própria teoria e

explicação – a obra que é um fato, um ser, possui força suficiente por si mesma. Segue-

se o mesmo tema no segundo trecho: a obra de arte nasce segundo o poder do

sentimento que a inspira, e só é possível descobrir nela o que há de belo quando essa

força própria se mantém – tal força torna a manifestação artística motivada e autônoma.

[Aurelie diz:] – Agrada-nos muito, afaga-nos deveras ver um herói que age por si mesmo, que ama e odeia quando seu coração assim lhe ordena, queempreende e executa, afasta todos os obstáculos e atinge um grande  propósito. Historiadores e poetas bem que gostariam de nos convencer deque uma sina tão soberba quanto essa poderia ocorrer a um homem. Masesta obra nos ensina uma outra lição: o herói não tem nenhum plano, é a peça que está repleta deles. Aqui, não se pune nenhum malfeitor por haver 

executado uma vingança, obedecendo a uma idéia fixa e voluntária, não; temlugar, isto sim, um ato monstruoso, que se prolonga em suas conseqüências,arrastando consigo inocentes; o criminoso parece querer esquivar-se doabismo que lhe está destinado e se precipita nele, justamente no instante emque pensava poder seguir afortunadamente seu caminho, porque esta é a  particularidade de um ação cruel: fazer com que se lastre o mal tambémsobre inocentes, do mesmo modo como uma boa ação redunda em muitos benefícios a quem tampouco os merece, sem que o autor de uma ou de outraseja frequentemente punido ou recompensado. É admirável como isto se dáaqui em nossa peça! O purgatório envia seu espírito e reclama vingança, masem vão! Todas as circunstâncias se juntam e impelem à vingança, em vão!  Nenhum elemento terrestre, nenhum elemento sobrenatural pode levar acabo aquilo que só ao destino está reservado. Aproxima-se a hora do

  julgamento. O mal sucumbe junto com o bem. Destrói-se uma geração, euma outra começa a brotar. (2006, p. 252)

Acima, Aurelie observa a discrepância entre o mundo real e o ficcional,

enfatizando a arbitrariedade predominante no primeiro. O assunto ainda é  Hamlet , e

 podemos observar Aurelie descrevendo, ao início, um herói épico, de ações motivadas,

inspiradas e coerentes – herói este inexistente na peça, já que os planos desta é que são

detentores de maior ordenação. Apesar do herói conflituoso, não triunfalista,

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questionador e descrente da motivação, a peça  Hamlet  mantém sua força graças à

organização dos episódios num todo que não se deixa tomar pela arbitrariedade.

Era bastante esperto para compreender que as cabeças coroadas nãoadvertiriam muito bem sua insolente intervenção e nem mesmo respeitariamsua privilegiada ocupação de acusador e esbirro; e, antes que começasse oreinado milenário, tratou de partir dali, com toda a discrição, tendo sidoacolhido de braços abertos numa cidade vizinha pelos membros de umasociedade chamada então “Os Filhos da Alegria”. Eram homens sensatos,espirituosos e cheios de vida, que compreendiam muito bem que a soma de

nossa existência, dividida pela razão, nunca é exata, restando sempreuma estranha fração. Dessa embaraçosa e, quando repartida entre toda amassa, perigosa fração, eles procuravam deliberadamente livrar-se emdeterminadas épocas do ano. Uma vez por semana, comportavam-se comoverdadeiros loucos, castigando-se reciprocamente mediante representações

alegóricas daquilo que, durante os outros dias, haviam observado deinsensato neles próprios e nos outros. Se esse procedimento parecia mais  brutal que uma série de atos de cultura, em que o homem moral trata deobservar-se, admoestar-se e castigar-se dia a dia, vinha a ser também maisdivertido e mais seguro, pois, ao não desmentirem um certo louco favorito,como tal o tratavam, enquanto por um outro caminho, graças à auto-ilusão,ele alcançava muitas vezes o domínio na casa e impunha ao juízo umasecreta servidão, que aquele imagina ter depois de muito tempo afugentado.A máscara de louco circulava pela companhia, e a todos era permitidoadorná-la em seu dia com atributos próprios ou alheios, de formacaracterística. Na época do Carnaval tomavam-se grandes liberdades erivalizavam com o clero no empenho de atrair e entreter o povo. Os solenese alegóricos cortejos de virtudes e vícios, artes e ciências, continentes e

estações materializavam junto ao povo uma profusão de conceitos, dando-lhe a idéias de objetos remotos, de sorte que brincadeiras como aquelasnão careciam de utilidade, enquanto por outro lado as mascaradas clericaissó serviam para reforçar ainda mais uma superstição despropositada.(2006, p. 266 e 267, grifos nossos)

O trecho acima descreve a história da vida de Serlo, personagem distinta

graças a seu variado conhecimento empírico. O rapaz fugira de sua cidade por causa da

implicância da nobreza com sua figura, e encontrou a sociedade “Os Filhos da Alegria”,formada por homens conscientes da limitação da razão. Contudo, para escapar da

opressão do que é racional, eles se “castigavam” com comemorações carnavalescas, que

sempre são expressas por procedimentos alegóricos. A crítica presente no trecho reside

no fato do prazer e da diversão estarem completamente dissociados do racional e dos

elementos componentes do todo da vida humana – contrariando a idéia de organicidade,

sempre defendida por Goethe. A citação acima também observa o efeito das alegorias

sobre seus observadores: as pessoas só tinham contato com conceitos, enquanto o que é

concreto, como a força dos objetos artísticos em si, ficava remota; os procedimentos

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alegóricos não possuem utilidade, nem a mínima contribuição de apurar a visão de

mundo de quem é tocado por eles, mas fecham esta visão, provocando crenças

despropositadas. Goethe se expressa de modo similar sobre o assunto em seus textos

teóricos.

314. O verdadeiro simbolismo ocorre quando o particular representa o que émais universal, mas não como sonho e sombras, como revelação viva einstantânea do que é imperscrutável.(…) 1112. A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito emimagem, mas de tal modo que o conceito continua ainda necessariamentetomado e contido pela imagem, de maneira limitada e completa e sendoexpresso por ela (2003, p. 261 e 274).

  Na primeira máxima, “sonhos e sombras” podem se referir à característica

alegórica de personificar conceitos em objetos disformes, o que gera uma impressão

igualmente disforme em que os observa, e não “viva e instantânea” como Goethe deseja

a seu símbolo (o homem vivendo em meio às sombras arbitrárias da alegoria também é

citada no romance, na p. 92 e 93). Na segunda máxima, o autor assinala o caráter 

limitador da imagem na alegoria, que obriga o observador a uma única interpretação.

Apresente-se sozinho, como aliás já o fazia; procure atrair pessoasmedíocres, diria até mesmo ruins, por ínfima remuneração, agrade o povocom tudo o que é mecânico, como tão bem o senhor sabe fazer, empreguetodo o resto para a ópera e verá como, com o mesmo esforço e os mesmoscustos, obterá maior satisfação e ganhará muito mais dinheiro que até agora.(2006, p. 340, grifos nossos)

Acima, Melina aconselha Serlo a respeito da gestão do grupo de teatro,

 propondo que sejam menos idealistas, gastem menos, economizem mais, ou desistam da

trupe. Como idéia para fomentar esse menor esforço, a personagem propõe que o grupo

“agrade o povo com tudo o que é mecânico”, ou seja, com procedimentos alegóricos,

visto as ações mecânicas serem uma das principais qualidades da alegoria, na concepção

de Goethe.

Por fim, observamos no romance a presença da oposição símbolo e alegoria,

 bem como a discussão sobre os pontos que os caracterizam. Contudo, Goethe trabalha

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  para demonstrar as várias faces da questão, ironiza as personagens com opiniões

extremistas, e também busca não impor de modo doutrinário suas preferências pessoais,

mostrando argumentos que constroem os motivos que o fizeram optar por determinado

ideal artístico.

2. Bibliografia

GOETHE, Johann Wolfgang von. Escritos sobre arte. Introdução, tradução e notas de

Marco Aurélio Werle. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, Imprensa Oficial do

Estado de São Paulo, 2005.

 _____. Máximas e Reflexões. Tradução de Marco Antônio Casanova; apresentação de

Márcia Cristina Gonçalves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

 ____. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: 34, 2006.

GUIRAUD, Pierre. A semântica. Tradução de Maria Elisa Mascarenhas. São Paulo:

DIFEL, 1972. (Coleção Saber atual)

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e

José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1969.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 25. ed. Organizado por Charles

Bally e Albert Sechehaye. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro

Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003.

3. Apresentação de trabalhos e publicações

Trabalhos publicados em anais de eventos

1. ROSA, E. P.

A motivação do símbolo goethiano como recuperação da força mitológica em

linguagem In: I Colóquio Vertentes do fantástico na literatura, 2009, Araraquara - SP.

  Caderno de resumos do I Colóquio Vertentes do fantástico na literatura.

Araraquara - SP: , 2009.

 Referências adicionais : Brasil/Português. Meio de divulgação: Meio digital 

Apresentações de trabalho

1. ROSA, E. P.

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