fadipa · 2020. 3. 3. · destaque nas mais variadas situações. apontamos, na área desportiva, a...
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FADIPA
FACULDADE DE IPATINGA
(COORDENADORA)
DIREITO
EM EVOLUÇÃO
1ª Edição
IPATINGA, FADIPA (FACULDADE DE IPATINGA)
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
DIREITO EM EVOLUÇÃO
Faculdade de Ipatinga (coordenadora). Direito em Evolução. 1ª. edição.
Ipatinga: FADIPA, 2019. 183p.
ISBN: 978-65-80862-00-9
Diagramação para formato e-book: Magna Campos
1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. 2. Ensino Jurídico. 4. Direito:
contemporaneidade e ensino. 5. Interdisciplinaridade.
PREFÁCIO
Faz um quarto de século que a Faculdade de Direito de Ipatinga -
FADIPA, em ação pioneira, abriu vagas para alunos interessados no
curso de graduação em Direito, na região metropolitana do Vale do Aço.
Como corolário do desbravar de novos caminhos, um lustro se passou
até à formatura da primeira turma, cuja efeméride completa neste ano um
vicênio.
Não se apaga em minha memória o final de tarde de um dia de
fevereiro de 1994, quando me dirigi às instalações do Instituto
Educacional, Mayrink Vieira, no bairro Cariru, local onde provisoriamente
a Fadipa desenvolvia as suas atividades. Levava em mãos o meu
currículo com o intuito de pleitear uma vaga no corpo docente da IES.
Passados todos esses anos, aqui estou, na condição de professor da
cadeira de Direito Civil, honrado com o encargo de prefaciar a coletânea
de artigos acadêmicos que agora vem a lume, mas, ao mesmo tempo,
consciente da responsabilidade que essa tarefa me impõe.
Antes de se introduzir a obra, de modo a provocar no público alvo
o interesse pela leitura, é de praxe apresentar o autor e sua história. No
presente caso, há uma pluralidade de autores, fato que dificulta a
apresentação nos moldes tradicionais, mas isso não impedirá seja ela
feita sob uma ótica diferente. Desta feita, com o apoio integral de todos os
alunos e professores que elaboraram os textos que integram a coletânea,
vamos homenagear, ainda que de forma singela, aquele que lançou a
semente que agora germina com a publicação deste livro. Refiro-me ao
professor Jésus Nascimento da Silva, diretor geral da Fadipa.
O professor Jésus é uma pessoa que ostenta, como atributo
distintivo, uma personalidade marcante, dinâmica, voltada para idealizar e
concretizar projetos variados no meio social em que atua. Por essa
qualidade, escassa na maioria das pessoas, foi ele alçado a posições de
destaque nas mais variadas situações. Apontamos, na área desportiva, a
excelência na prática do futebol, onde se destacou como ponta esquerda.
Na esfera política, exerceu o mais alto cargo do poder executivo
municipal em Ipatinga. Na advocacia, depois de atuar em outras áreas,
granjeou fama de profissional conceituado, entre colegas de profissão,
magistrados, promotores de justiça e no meio social onde desenvolveu as
suas atividades. No âmbito da educação, foi professor de segundo e
terceiro graus, além de ter prestado relevantes serviços ao Município de
Ipatinga, no período em que exerceu o cargo de secretário municipal de
Educação. Em 1994, participou da fundação da Faculdade de Direito de
Ipatinga – Fadipa, tendo assumido a sua direção, situação inalterada até
aos dias de hoje. Teve também decisiva atuação na efetivação do curso
de mestrado em Direito e Cidadania, ministrado pela Universidade Gama
Filho, em convênio com a Fadipa, na primeira década deste século. É,
então, na tenacidade deste professor, com longos anos dedicados à
educação, que vamos encontrar a raiz deste livro, fincada no seu
constante incentivo a todos os professores e alunos que se
interessassem pela pesquisa e respectiva publicação dos resultados
alcançados.
A coletânea de artigos trata de temas jurídicos variados, o que
não é comum em um único livro. E essa abrangência torna a obra mais
interessante para público a que é dirigida, sem esquecer a qualidade da
pesquisa realizada e dos objetivos teóricos e jurídicos alcançados. Aqui,
vamos encontrar dez trabalhos acadêmicos, elaborados para formar a
edição comemorativa dos vinte e cinco anos de fundação da Fadipa. Os
artigos, que serão apresentados em breve síntese, obedecendo à forma
em como foram ordenados, estão aqui indicados por numeração romana,
e tratam do seguinte: i) hipóteses a respeito dos efeitos do pagamento
feito por terceiro não interessado que paga em nome e à conta do
devedor; ii) abordagem crítica da pouca utilização, por advogados, da
execução das decisões judiciais não transitadas em julgado ou que se
encontram na pendência de julgamento de recurso não dotado de efeito
suspensivo; iii) no cadente tema de cotas para negros e pardos em
concursos públicos, é feita uma análise do alcance da Lei 12.290/2014,
com vigência temporal de dez anos, destacando-se a cota como uma
ação afirmativa de inserção social; iv) com suporte na doutrina e
jurisprudência dos Tribunais Superiores, discute-se a hipótese de
pagamento de pensão alimentícia por pai biológico a favor de filho
adotado por outra família; v) digressão sobre os efeitos da mídia em
relação à cultura e política na sociedade moderna, com enfoque para a
facilidade de modificação da informação com fins voltados para os
interesses do emissor e manipulação dos receptores da mídia; vi) análise
das noções de imperativo categórico, liberdade e dever, criadas pelo
filósofo de Königsberg, para depois discorrer sobre a moral e suas
implicações no Direito brasileiro; vii) com arrimo nos princípios
constitucionais da privacidade, do direito de informação, de liberdade de
imprensa, interesse público e a dignidade da pessoa humana, analisa o
direito ao esquecimento, a partir da dicotomia entre a privacidade e a
liberdade de informação na rede mundial de computadores; viii)
discussão de natureza política, com análise do sistema democrático de
governo, partindo-se de noções históricas da democracia, sua evolução,
contornos atuais e o que dela pensam os brasileiros na atualidade; ix)
abordagem do conceito de licitação sustentável, tendo por base a nova
redação dada ao artigo 3º da Lei 8.666/93 pela Lei 12.349/2010, que
impõe à Administração Pública o dever de movimentar a máquina
econômica nacional de modo a causar o mínimo de reflexos ambientais
negativos; x) proliferação do discurso de ódio nas redes sociais é objeto
de estudo crítico, com destaque para as dificuldades que o legislador
encontra para regulamentar o convívio no ambiente virtual e, por
consequência, criar norma que permitam punir condutas ilícitas ali
praticadas.
A diversidade de temas abordados, afirmo-o com certeza, confere
ao livro um estilo inovador e singular. Por isso, cabe-me saudar a edição
desta coletânea, parabenizando os autores, pela seriedade na discussão
dos temas escolhidos e pelas teses apresentadas nas conclusões de
cada trabalho. Os beneficiados serão os leitores que poderão extrair
proveitoso aprendizado de tudo o que foi escrito. Desejo a todos uma boa
leitura.
Ipatinga, 8 de julho de 2019 Professor José Augusto Lourenço dos Santos
SUMÁRIO
HIPÓTESES E EFEITOS DE PAGAMENTO FEITO POR TERCEIRO NÃO INTERESSADO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PRESUNÇÃO DE LIBERDADE QUANDO SE TRATA DE PAGAMENTO EM NOME E À CONTA DO DEVEDOR ..... 8 FELLYPE JACOB GONÇALVES / DOS SANTOS JOSÉ AUGUSTO LOURENÇO
RESUMO .................................................................................................................. 8 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8 1 CONCEITO DO PAGAMENTO .............................................................................. 9 2 NATUREZA JURÍDICA DO PAGAMENTO .......................................................... 10 3 QUEM DEVE PAGAR .......................................................................................... 12 4 EFEITOS DO PAGAMENTO EFETUADO POR TERCEIRO .............................. 14 5 PAGAMENTO FEITO POR TERCEIRO INTERESSADO EM NOME E À CONTA DO DEVEDOR: LIBERALIDADE OU ONEROSIDADE? ........................................ 17 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 21 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 22
EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS PROVISÓRIAS NO PROCESSO CIVIL . 24 CAROLINA REIS AGNELO / MAURO SIMONASSI
RESUMO ................................................................................................................ 24 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 24 1 PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS PROVISÓRIOS E DEFINITIVOS ................. 25 2 EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS DEFINITIVAS ................................... 27 3 EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS PROVISÓRIAS ................................. 29 4 CUMPRIMENTO DAS DECISÕES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA ................ 33 5 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 38 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 39
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS EM CONCURSOS PÚBLICOS: UMA POLÍTICA DE INSERÇÃO SOCIAL ..................... 41 GILMAR FELISBERTO GABRIEL / JÔ DE CARVALHO
RESUMO ................................................................................................................ 41 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 41 2 ABORDAGEM HISTÓRICA DO NEGRO NO BRASIL ........................................ 43 3 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O PRINCÍPIO DE IGUALDADE ........................... 46 4 COTAS RACIAIS EM CONCURSOS PÚBLICOS ............................................... 49
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 54 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 55
PAGAMENTO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA DO PAI BIOLÓGICO PARA FILHO ADOTADO POR OUTRA FAMÍLIA; É POSSÍVEL? .................................................. 57 LAURA FERREIRA DA SILVA / MAYRA LORENA LEA / HÉLIO WILLIAN CIMINI
RESUMO ................................................................................................................ 57 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 57 2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA ................................. 59 3 INSTITUTO DA ADOÇÃO ................................................................................... 60 4 PODER FAMILIAR .............................................................................................. 60 5 PERDA DO PODER FAMILIAR E VÍNCULO EM CONSEQUÊNCIA DA ADOÇÃO ................................................................................................................................ 62 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 63 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 63
SÍNTESE FILOSÓFICA DA AÇÃO MIDIÁTICA NA CULTURA E POLÍTICA MODERNA .................................................................................................................. 66
JOÃO VICTOR SILVA REIS / MARIA JÚLIA OLIVEIRA DA ROCHA / CLAUDIANE
APARECIDA DE SOUSA
RESUMO ................................................................................................................ 66 1 MÍDIA ENQUANTO PUBLICIDADE E A CULTURA ............................................ 66 2 MÍDIA E POLÍTICA .............................................................................................. 79 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 85 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 86
A MORAL EM KANT E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO BRASILEIRO ............. 89 AMANDA ALEXANDRE GOMES / HÉLIO WILLIAN CIMINI
RESUMO ................................................................................................................ 89 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 89 1 A MORAL EM KANT POR DISPOSIÇÕES GERAIS ........................................... 91 2 O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A TEORIA DA DECISÃO .............................. 93 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 94
O DIREITO AO ESQUECIMENTO: A DICOTOMIA ENTRE A PRIVACIDADE E A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO NA INTERNET ...................................................... 96
JÚLIA SILVEIRA DIAS RAMOS / VINICIUS PAULO MESQUITA
RESUMO ................................................................................................................ 96 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 96 1 LIBERDADE DE IMPRENSA ............................................................................... 98 2 LIBERDADE DE INFORMAÇÃO ......................................................................... 98 3 DIREITO À PRIVACIDADE.................................................................................. 99 4 DIREITO AO ESQUECIMENTO ........................................................................ 100 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 106 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 107
DEMOCRACIA: UTOPIA OU REALIDADE DA ARTE DE GOVERNO PELA SOBERANIA POPULAR .......................................................................................... 108
JOSÉ GERALDO HEMÉTRIO
RESUMO .............................................................................................................. 108 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 108 1 TEORIAS E CONCEITOS ................................................................................. 109 2 A TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA DAS TRÊS FORMAS DE GOVERNO E O PENSAMENTO DE PLATÃO SOBRE A DEMOCRACIA ..................................... 111 3 OS CONFLITOS ENTRE DEMOCRACIA LIBERAL E DEMOCRACIA SOCIALISTA ......................................................................................................... 112 4 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL ............................ 115 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 120 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 123
ECOLICITAÇÃO: O COMPROMISSO SUSTENTÁVEL DAS LICITAÇÕES ........... 124 FERNANDA LAU DE PAULA / ADRIANA SPAGNOL DE FARIA
RESUMO .............................................................................................................. 124 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 124 2 SUSTENTABILIDADE – UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL .......................... 125 3 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ............................................................ 130 4 LICITAÇÃO ........................................................................................................ 133 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 141 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 142
A PROLIFERAÇÃO DO DISCURSO DE ÓDIO, UM PROBLEMA DE ETICIDADE COM REFLEXOS JURÍDICOS ................................................................................. 146
MARCILEI DO CARMO NOGUEIRA FAZOLLO / BRENO INÁCIO DA SILVA
RESUMO .............................................................................................................. 146 1 AMBIENTES VIRTUAIS PARA CONVÍVIOS REAIS, MUDANÇAS NO PARADIGMA RELACIONAL................................................................................. 146 2 A AMBIÊNCIA VIRTUAL COMO ESPAÇO PLURAL, LÓGICAS QUE DIFICULTAM A REGULAÇÃO ............................................................................. 149 3 A VIOLÊNCIA TAMBÉM EXPRESSA VALOR DE PODER SIMBÓLICO NAS REDES SOCIAIS .................................................................................................. 155 4 COMO TOLERAR O INTOLERANTE? UMA DISPUTA ENTRE A MORAL E A NORMATIVIDADE ................................................................................................ 159 5 REGULAÇÃO: UM IMPASSE ENTRE O CAMPO JURÍDICO E A “REALIDADE VIRTUAL” NO ESPAÇO INTERACIONAL ............................................................ 165 6 A BUSCA PELO EQUILÍBRIO, UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA ................. 173 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 177
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HIPÓTESES E EFEITOS DE PAGAMENTO FEITO POR TERCEIRO NÃO INTERESSADO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA PRESUNÇÃO DE LIBERDADE
QUANDO SE TRATA DE PAGAMENTO EM NOME E À CONTA DO DEVEDOR
Fellype Jacob Gonçalves1
José Augusto Lourenço dos Santos2
RESUMO
Este trabalho trata das hipóteses e efeitos do pagamento efetuado por terceiro não interessado em seu próprio nome ou em nome e à conta do devedor. De perquirir, após análise dos artigos 304 e 305 do Código Civil, se a presunção de liberalidade, comumente aceita quando o pagamento é feito em nome e à conta do devedor, se sustenta, ou, ao contrário, se é caso de fazer a sua verificação caso a caso. De apontar que a presunção de liberalidade não é absoluta e que o seu reconhecimento deve ser verificado em cada situação concreta, pois a liberalidade só se configura com a presença do animus donandi do terceiro que paga e a aceitação, ainda que tácita, do devedor.
INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho tem por objetivo uma abordagem a
respeito das hipóteses e efeitos do pagamento efetuado por terceiro,
satisfazendo o direito do credor, apesar de não ser a pessoa obrigada a
cumprir a prestação.
Após uma breve digressão sobre conceito, natureza e sujeitos
ativos do pagamento, discorremos a respeito dos efeitos do pagamento
feito por terceiro interessado e não interessado, com ênfase ao
pagamento efetuado por este último, isto é, aquele que não tem interesse
1 Graduando em Direito da Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Professor da cadeira de Direito Civil da Faculdade de Ipatinga – FADIPA. Graduado em
Direito. Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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jurídico na obrigação, mas mesmo assim paga em nome e à conta do
devedor.
Dentro dessa linha, partindo da conclusão de que o pagamento
tem a natureza “de ato jurídico, no sentido amplo, na categoria dos atos
lícitos, podendo ser ato jurídico strictyo senso ou negócio jurídico,
bilateral ou unilateral, conforme a natureza específica da prestação”
(GONÇALVES, 2017, p. 258), deparamo-nos com o seguinte problema: a
norma constante do Código Civil, no art. 304, parágrafo único, que
permite ao terceiro não interessado na relação obrigacional efetuar o
pagamento, desde que o faça em nome e à conta do devedor, implica,
em geral, em presunção de liberalidade?
Em que pese expressivo número de doutrinadores assim
entenderem, adotamos posição crítica em relação a esse entendimento.
Não negamos a possibilidade de que tal pagamento configure uma
liberalidade, mas afastamos a possibilidade de ser ela presumida, isto é,
liberalidade (doação) pode estar presente, mas deverá ser apurara caso a
caso. E assim deve ser porque em algumas situações o terceiro que paga
em nome e à conta do devedor, não o faz por liberalidade,
nomeadamente, se age como gestor, por exemplo.
O estudo está dividido em cinco itens: conceito de pagamento;
natureza jurídica do pagamento; quem deve pagar; efeitos do pagamento
efetuado por terceiro; pagamento feito por terceiro interessado em nome
e à conta do devedor: liberalidade ou onerosidade?
1 CONCEITO DO PAGAMENTO
A palavra pagamento, na linguagem comum, de forma geral,
significa a entrega de uma quantia em dinheiro para quitar uma dívida.
Todavia, do ponto de vista jurídico, especificamente no Código Civil, no
seu Título III, Livro I da Parte Geral das Obrigações, entende-se o termo
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pagamento como o cumprimento da prestação devida ao credor, no
tempo, lugar e forma ajustada no título constitutivo da obrigação.
Para Serpa Lopes (1995, p. 170) o termo pagamento comporta
“dois sentidos: “um, lato e o outro, restrito”. No primeiro caso, pagamento
significa a extinção da obrigação, seja através da entrega da prestação
que compõe o objeto da obrigação, como ainda por outros meios como a
remissão, novação e etc. Em outro giro, no sentido restrito, “pagamento
quer dizer um certo modo extintivo das obrigações, modo mais natural, o
que as partes tiveram em vista, quando contrataram: dar, fazer ou não
fazer”.
Podemos afirmar, dessa forma, acompanhando a moderna
doutrina, que o pagamento é uma “espécie do gênero adimplemento, ou
melhor, um meio direto e voluntário de extinguir a obrigação” (DINIZ,
2011, p. 238). Não discrepa desse entendimento Antunes Varela (1999,
p. 8) quando escreve “deve reservar-se o termo cumprimento, por uma
questão de terminologia, para a realização voluntária da prestação pelo
devedor”. Assim, a rigor, nas palavras de Celso Quintella Aleixo3, não
pode ser considerado pagamento a execução forçada, através da qual é
utilizada a via coativa estatal para compelir o devedor a satisfazer o
crédito, embora seja uma via de satisfação do credor (ALEIXO, 2005, p.
277).
2 NATUREZA JURÍDICA DO PAGAMENTO
No que tange à natureza jurídica4 do pagamento não há consenso
na doutrina nacional e estrangeira. A matéria é bastante controvertida
3 Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Coordenador. Gustavo Tepedino.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 4 Natureza. Na terminologia jurídica, assinala, notadamente, a essência, a substância ou a
compleição das coisas. Assim, a natureza se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com a própria coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de
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nomeadamente porque o pagamento pode ser feito de diversas formas,
pelo fato de consistir no modo de adimplemento de qualquer obrigação:
de dar, fazer ou não fazer. Assim, pode caracterizar-se com a “entrega de
um bem, na transferência de dinheiro, na elaboração de uma obra, na
prestação de serviços e, inclusive, numa abstenção” (GONÇALVES,
2017, p. 256).
Assim, alguns autores classificam o pagamento como um ato
jurídico em sentido amplo (fatos naturais, e fatos humanos, lícitos e
ilícitos); outros o classificam como ato jurídico em sentido estrito (ato
meramente lícito); há ainda os que sustentam que é negócio jurídico às
vezes unilateral outras vezes bilateral, esclarecendo que se a prestação é
um dar precisa da intervenção do credor, é negócio jurídico bilateral; mas
se não precisa dessa intervenção, por consistir numa abstenção, seria
negócio jurídico unilateral.
Diante de tanta diversidade de entendimento parece-nos
adequada a opinião de que às vezes o pagamento:
[...] tem todos os característicos de um negócio jurídico, quando o direito de crédito objetive uma prestação que tenha caráter negocial (exemplo: a emissão de uma declaração de vontade), mas outras vezes não passa de mero fato, quando o conteúdo da obrigação não tem tal sentido, ou objetive simples abstenções ou prestações de serviços (PEREIRA, 2017, p. 169).
Apesar de todas as divergências doutrinárias, é majoritária a
corrente onde se sustenta que o pagamento tem a “natureza um ato
jurídico em sentido amplo, na categoria dos atos lícitos, podendo ser ato
ser, seja do ato, do contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em evidência sua própria essência ou substância, que dela não se separa, sem que a modificação ou a mostre diferente ou sem os atributos, que são do seu caráter. É, portanto, a matéria de que se compõe a própria coisa, ou que lhe é inerente ou congênita. (Silva, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro, 2008).
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jurídico estrito senso ou negócio jurídico, bilateral ou unilateral, conforme
a natureza específica da prestação” (GONÇALVES, 2017, p. 258).
3 QUEM DEVE PAGAR
Os artigos 304 e 3055 do Código Civil tratam das pessoas que
devem efetuar o pagamento. O que se depreende da leitura dos referidos
dispositivos é que o pagamento pode ser efetuado por qualquer
interessado que tenha interesse jurídico na extinção da dívida, e, em
alguns casos, dentro de certos limites impostos por lei, por terceiro não
interessado.
É claro que entre as pessoas interessadas o principal interessado
em pagar é o devedor, que pode fazê-lo pessoalmente ou por intermédio
de representante, salvo as obrigações contraídas intuito personae, isto é,
em razão de alguma condição ou qualidade pessoal do devedor, quando
somente a este incumbe o adimplemento. E assim é porque, nos termos
do artigo 2476 do Código Civil, o credor não está obrigado a receber de
outrem a prestação imposta somente ao devedor (GONÇALVES, 2017, p.
259).
Todavia, além do devedor, existem outros que tem interesse
jurídico na extinção da dívida. São os denominados terceiros
interessados7, isto é, aqueles que juridicamente estiverem obrigados a
5 Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor
se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor. Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste. Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar, mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no
vencimento. 6 Art.247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recursar a
prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível. 7 Claudio Luiz Bueno de Godoy esclarece: “o conceito de terceiro juridicamente interessado
o próprio Código Civil fornece quando, no art.346, trata do pagamento com sub-rogação. Lá, no inciso III, explicita-se que a sub-rogação se dá, de pleno direito, em favor do
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efetuar o pagamento pelo fato de estarem vinculados ao contrato, como
no caso dos garantidores em geral (BDINE JR, 2016, p. 249)8. Os casos
mais comuns de terceiro interessado são do fiador, do condômino, do
sublocatário, do usufrutuário, do adquirente do imóvel hipotecado, dentre
outros.
O terceiro interessado tem o direito de pagar a dívida e não
apenas o poder de fazê-lo, fato que resulta em efeitos específicos que
abordaremos no item 4 (quarto) deste trabalho.
Permitido é, ainda, pela legislação em vigor, que o pagamento
seja efetuado por terceiro não interessado em nome e à conta do devedor
(parágrafo único do art. 304 do CC), ou, se isso for de seu interesse,
pagar em seu próprio nome (art. 305 do CC). Para a linguagem jurídica,
terceiro não interessado é todo aquele que não está vinculado à relação
obrigacional celebrada entre o credor e o devedor e que, portanto, nada
tem a temer no caso de o devedor se tornar inadimplente.
Não há impedimento para que terceiro não interessado faça o
pagamento, mesmo que exista oposição do devedor, se o credor desejar
receber a prestação que lhe é devida. Nesse caso, para evitar o
pagamento em nome e à conta do devedor, cabe a este antecipar-se ao
terceiro não interessado e efetuar o pagamento. No entanto, se o devedor
e o credor tiverem “estipulado a inadmissibilidade de pagamento por
terceiro não interessado, este não poderá satisfazer o débito com o intuito
de liberar o devedor” (DINIZ, 2011, p. 244-45).
Além de poder pagar em nome e à conta do devedor o terceiro
não interessado também pode pagar o débito em seu próprio nome. Se
terceiro que paga, mas que podia ser obrigado, no todo ou em parte, pela dívida que veio a pagar. Ou seja, o interesse jurídico se identifica pela potencialidade de afetação da esfera jurídica de terceiros, como resultado do inadimplemento do débito” (Obrigações: Renan Lotufo; Giovanni Ettore Nanni, coordenadores. São Paulo: Atlas 2011, p. 311).
8 Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador: César Peluso. 10 ed. rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2016.
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assim o fizer tem direito de reembolsar-se do que efetivamente
desembolsou, mas não se sub-roga nos direitos do credor, conforme se
infere do art. 305 do CC, só podendo receber o que pagou no
vencimento, caso tenha pago a dívida antes de vencida, nos termos do
parágrafo único do artigo mencionado.
4 EFEITOS DO PAGAMENTO EFETUADO POR TERCEIRO
A extinção da obrigação é o principal efeito do pagamento, mas
outros se fazem presentes, nomeadamente quando o pagamento é feito
por terceiro, seja ele interessado ou não. É o que veremos, em seguida.
Se o terceiro tem ligação com o vínculo obrigacional é
denominado terceiro interessado e a lei lhe assegura a sub-rogação nos
direitos do credor. Em outras palavras, “o pagamento feito pelo terceiro
interessado não extingue a dívida senão em face do credor, pois, em face
dos co-devedores ou do devedor principal, a dívida subsiste por força da
sub-rogação” (LOPES, 1995, p. 173), que transfere a quem pagou “todos
os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo credor”
(GONÇALVES, 2017, p. 259).
Pode ocorrer, no entanto, que o terceiro pretenda fazer o
pagamento, movido por outra espécie de interesses (p.ex., amizade ou
parentesco), que não o jurídico, isto é, efetua o pagamento apesar de não
ter vínculo com a obrigação. Nesse caso é chamado de terceiro não
interessado e pode fazer o pagamento em nome e à conta do devedor
(art.304, parágrafo único do CC), ou, então, em seu próprio nome (art.305
do CC). E é esta dicotomia do ato de pagar que gera importantes
diferenças quanto aos seus efeitos, como afirma Claudio Luiz Bueno de
Godoy (2011, p. 312).9
9 Obrigações. Renan Lotufo; Giovanni Ettore Nanni, coordenadores. São Paulo: Atlas, 2011.
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Vejamos! Se o terceiro não interessado paga em nome e à conta
do devedor essa condição o coloca em pé de igualdade com os
interessados mencionados no caput do artigo 304 do CC, isto é, paga
porque tem o direito de pagar, “possui direito à satisfação da obrigação,
como, afinal o tinha o próprio devedor em nome de quem ele paga”.
Assim, em caso de recusa do credor, tem ele direito a fazer uso “dos
mesmos meios conducentes à exoneração do devedor”. Em outros
termos, pode valer-se da ação de consignação em pagamento (GODOY,
2011, p. 312).
Outro efeito que desperta interesse, quando se trata de
pagamento efetuado por terceiro não interessado que paga em nome do
devedor, diz respeito à oposição deste, prevista na parte final do
parágrafo único do artigo 304 do CC.
A interpretação literal do parágrafo parece indicar que o credor
estaria impedido de receber o seu crédito em decorrência da oposição do
devedor à pretensão de cumprimento da prestação por terceiro não
interessado. Todavia, a melhor exegese não é essa. De fato, não é
razoável vedar o recebimento pelo credor da prestação que lhe é devida,
ainda que terceiro não interessado pretenda pagar, pois, tal solução
estaria em conflito com o tratamento jurídico dado à cessão de crédito.
Sobre esse tema Hamid Charaf Bdine Jr10
discorre:
Ora, a aceitação da quitação do débito por terceiro não interessado – ainda que contrariando a oposição do devedor – seria possível por sub-rogação convencional do crédito (art.347do CC). O negócio seria válido e bastaria que o devedor original fosse notificado para que a cessão fosse eficaz em relação a ele (arts. 290 e 348 do CC). (BDINE JR, 2016, p. 249-250).
10 Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Coordenador: César Peluso. 10 ed.
rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2016.
16
Se assim é, quais são então os efeitos da oposição do devedor se
o credor apesar dela pode receber o pagamento que lhe é devido? Dois
são os efeitos. O primeiro resulta diretamente da conjugação do caput
com o parágrafo único do artigo 304 do CC, e diz respeito à
impossibilidade do terceiro não interessado, caso o credor não queira
receber e o devedor apresente oposição, poder usar dos meios
conducentes à exoneração, mesmo que queira pagar em nome do
devedor. O segundo ocorre quando o credor apesar da oposição do
devedor aceita o pagamento feito pelo terceiro não interessado. Neste
caso, o pagamento é eficaz para liberar devedor, mas como este se opôs
ao pagamento, resta afastada a liberalidade que a doutrina, em regra, o
reconhece nesses casos (BDINE JR, 2016, p. 250), por falta da
necessária aceitação do devedor e que é exigida nas doações.
Em outra vertente se posiciona o terceiro não interessado que
paga, mas o faz em seu próprio nome. Para este não se faz presente o
“direito à satisfação da obrigação” e, via de consequência, não pode
manusear a ação de consignação, mesmo em caso de recusa do credor
que, por esse ato, não pode ser considerado em mora (GODOY, 2011, p.
213). No caso incide a norma do art. 305 do CC, e o terceiro não
interessado que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito apenas
ao reembolso do que pagou, sem se sub-rogar nos direitos do credor.
Em outro giro, nos exatos termos do parágrafo único do art. 305, o
terceiro não interessado que paga a dívida antes do vencimento, não
pode exigir do devedor o reembolso antes do termo de vencimento fixado
no título original. Tal determinação, está diretamente ligada ao princípio
da eticidade e tem por finalidade evitar que a cobrança antecipada agrave
ainda mais a situação do devedor (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 432).
A razão dessa determinação legal – ausência de sub-rogação - a
favor do terceiro não interessado que paga em seu nome, prende-se à
17
estranheza causada pelo fato de alguém assumir dívida de outrem. Por
isso, se justifica o cuidado do legislador em não lhe conferir o direito de
se sub-rogar nos direitos do credor, mas apenas o de se reembolsar.
Realmente, não se ignora que pessoas inescrupulosas, por simples
egoísmo ou com intuito especulativo, possam valer-se de tal pagamento
para agravar a situação econômica do devedor, “ou até mesmo de
colocá-lo numa posição moralmente vexatória” (VENOSA, 2011, p.
388).11
A título de exemplo aponta-se o terceiro mal-intencionado que
pretenda formular contra o devedor, seu concorrente ou desafeto,
exigências mais rigorosas que as do devedor primitivo ou recurse
qualquer proposta de acordo para parcelamento ou prorrogação da dívida
que venha a ser formulada pelo devedor em dificuldades financeiras
(GONÇALVES, 2017, p. 264).
Portanto, a esta altura, em relação ao pagamento feito por terceiro
não interessado temos duas posições: a) se paga em seu nome, o que se
tem é que apenas pode pleitear a quantia efetivamente despendida, nos
termos do art. 884 do CC12
, de modo a afastar o enriquecimento sem
causa do devedor, isto é, “a sua pretensão se exaure no exato valor que
desembolsou” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 432); b) se paga em
nome e à conta do devedor, resulta uma indagação: esse pagamento
gera liberalidade presumida ou onerosidade? Essa questão será
abordada e debatida a seguir.
5 PAGAMENTO FEITO POR TERCEIRO INTERESSADO EM NOME E À CONTA DO DEVEDOR: LIBERALIDADE OU ONEROSIDADE?
11 VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011 12 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a
restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
18
O Código Civil no art. 304, parágrafo único, permite ao terceiro
não interessado na relação obrigacional efetuar o pagamento, desde que
o faça em nome e à conta do devedor.
Pois bem! Nesta forma de pagamento surgem divergências que
merecem uma análise crítica detalhada. Com efeito, número considerável
de autores aborda o assunto superficialmente ou então lhe dedica poucas
linhas o que é insuficiente para esclarecer plenamente o tema. Para estes
doutrinadores, resumidamente, os efeitos produzidos são os de uma
doação ou liberalidade, nesse sentido: (GONÇALVES, 2017, p. 264;
LOPES, 1995, p.173; FARIAS e ROSENVALD, 2017, p. 431; STOLZE,
2017, p. 285), dentre outros13
.
Por essa razão, entendemos que o pagamento efetuado por
terceiro não interessado que paga em nome e à conta do devedor, carece
de uma melhor análise. É verdade que, em alguns casos, se configura a
alegada “liberalidade” e, por conta disso, o terceiro que efetuou o
pagamento, por tê-lo feito por motivos éticos, morais ou mesmo
amorosos, não tem direito de receber o que pagou. Todavia, outros casos
existem em que o reembolso é imposto pela legislação em vigor, como
medida de justiça, caso contrário restaria configurado o enriquecimento
sem causa do devedor.
Não se nega que o terceiro não interessado que paga em nome e
à conta do devedor possa tê-lo feito por liberalidade. Todavia, situações
outras existem em que esse terceiro faz o pagamento movido de outros
propósitos, por ex., quando age em razão de mandado, ou na condição
de gestor ou, ainda, em decorrência de assunção de dívida, situações
13 Por todos: Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do
direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 108-108. “Em regra, o terceiro não-interessado age por liberalidade. Nesta hipótese podem ser lembrados o filho que paga à mãe, pelo pai, alimento devidos, como já entendeu a jurisprudência, ou que quer ver preservados os direitos dos progenitores, locatários frente ao locador, etc.
19
essas que necessariamente implicam na ausência do animus donandi,
elemento imprescindível para caracterizar a liberalidade (GODOY, 2011,
p. 316). Nestes casos impõe-se, por óbvio, o reembolso do terceiro que
pagou, caso contrário estaria sendo prestigiado o enriquecimento
indevido.
Como se vê, em algumas situações o pagamento feito por terceiro
não interessado em nome e à conta do devedor não tem qualquer
conotação com o animus donandi. Resta-nos, então, com o intuito de
aclarar as dúvidas sobre o assunto, abordar outras situações em que a
intenção de liberalidade possa estar caracterizada, com a consequente
desnecessidade do reembolso do que foi pago.
Quando o pagamento é realizado com animus donandi o terceiro
não interessado que paga o faz “por simples liberalidade ou por mero
espírito de filantropia” (VENOSA, 2012, p.172), como ocorre p. ex.,
quando o noivo paga a dívida da sua futura consorte, razão pela qual
nada pode reaver.
O que se indaga no caso em comento é se o animus donandi se
presume ou se, ao contrário, deve ser provado em cada caso. E a
questão é importante, pois dessa definição é que se pode chegar à
conclusão de reembolso ou não da quantia paga.
Mas quais as razões porque parte da doutrina, conclui que o
parágrafo único do artigo 304 do CC, traz uma presunção de liberalidade?
Para Hamid Charaf Bdine Jr, são dois os fatos, a saber: a) a previsão
constante do artigo 305 do CC de somente autorizar o ressarcimento do
terceiro não interessado que paga no seu próprio nome, o que afasta se
aplique o mesmo direito a quem pagou em nome do próprio devedor; b)
as liberalidades, de acordo com o disposto nos artigos 38514
e 539 do
14 Art. 385. A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro.
20
CC15
, dependem de aceitação para produzir efeitos. Dessa forma, a
possibilidade de o devedor apresentar oposição ao pagamento que o
terceiro não interessado queira fazer em nome daquele, implica em
reconhecer de forma evidente o caráter de liberalidade nessa hipótese
(BDINE JR, 2016, p. 250).
Apesar de toda a argumentação temos entendimento diverso. De
fato, a liberalidade ou doação, como se sabe, traz vantagens apenas para
uma das partes intervenientes do negócio jurídico e, assim sendo, não se
pode presumir, conforme determina o artigo 114 do CC.16
Dessa forma, não havendo presunção absoluta da intenção de
liberalidade faz-se necessário perquirir, em cada caso, se quem pagou o
fez com o intuito de praticar uma liberalidade, portanto, uma doação ainda
que indireta. E se afirmativo, resta ainda verificar se o devedor a aceitou,
mesmo que de forma tácita, pois, se recusa houve por parte deste,
descaracterizada estaria a liberalidade, dando lugar ao reembolso.
Escrevendo sobre o tema, Cláudio Luiz Bueno de Godoy
esclarece que, feito o pagamento, não se
obvia o reembolso do terceiro, a pretexto de que presumidamente uma liberalidade que deve ser examinada caso a caso, pois de gestão pode ter se tratado, com devido ressarcimento, se útil, afora ser a solução que mais se coaduna com os princípios do novo Código e particularmente com o instituto do enriquecimento sem causa, agora explicitado (GODOY, 2011, p. 316).
Não por outra razão, atento ao fato de que as liberalidades não se
presumem, porque excepcionais, é que Renan Lotufo defende a
possibilidade de que quem pagou possa pleitear o que pagou em
15 Art. 539. O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a
liberalidade, desde que o donatário, ciente do prazo, não faça dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.
16 Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
21
benefício do devedor, mesmo que este tenha apresentado oposição ao
pagamento, pois
É evidente que houve uma vantagem econômica para o devedor, que não sofreu qualquer diminuição em seu patrimônio, o que ocorreria com o adimplemento por sua conta. Pelo contrário, o devedor originário teve um benefício patrimonial, um enriquecimento sem causa, à custa da atuação do terceiro. Nesse caso, portanto, o terceiro só poderá exercer pretensão em face do devedor, comprovando que este obteve vantagem patrimonial sem motivo determinante prestigiado pelo direito, isto é, enriquecimento sem causa (LOTUFO, 2003, p.189).
De tudo o que foi dito até agora, brota uma certeza: a presunção
que deve ser feita é a de que sempre será possível o reembolso, e não a
liberalidade, salvo devidamente comprovada a intenção de beneficiar o
devedor e este tenha concordado expressa ou tacitamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir, a esta altura, depois de toda a argumentação
feita ao longo deste trabalho, que o pagamento efetuado por terceiro não
interessado, quando o realiza em nome e à conta do devedor, não implica
sempre em presunção de liberalidade.
Uma das razões desse entendimento está diretamente ligada ao
fato de que, algumas vezes, o terceiro não interessado que paga em
nome e à conta do devedor o faz sem qualquer intenção de liberalidade, o
que ocorre, por exemplo: na gestão de negócios, no mandato ou na
assunção de dívida, casos em que o reembolso se impõe.
Em outras situações, a liberalidade pode até verificar-se, mas
para que isso ocorra faz-se necessário, em cada caso, perquirir se houve
por parte de quem pagou o animus donandi e, ainda, se a parte que foi
beneficiada com o pagamento deu a sua anuência, mesmo que tácita.
22
Faltando esta anuência ou havendo oposição ao pagamento pelo devedor
afastada estará a liberalidade, pena de enriquecimento sem causa do
devedor.
REFERÊNCIAS
ALEIXO, Celso Quintella. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. BDINE JR, Hamid Charaf. Do pagamento. In: PELUSO, César (Coord.). Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 10. ed. rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2016. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v.2: teoria geral das obrigações. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Coords.) Obrigações. Adimplemento e extinção das obrigações. Pagamento. Noção. Aspectos subjetivos. De quem deve pagar. Daqueles a quem se deve pagar. São Paulo: Atlas, 2011. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v.2: teoria geral das obrigações, 14. ed. São Paulo, 2017. LOPES, Miguel Maria Serpa. Curso de direito civil, v.2: obrigações em geral. 6. ed. rev. e atual. por José Serpa Santa Maria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995. LOTUFO, Renan. Código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, v. II. obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.2: teoria geral das obrigações. 29. ed. rev. e atual. por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2017. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro, 2008. VARELA, ANTUNES. Das obrigações em geral, v.2. Coimbra: Almedina, 1999.
23
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
24
EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS PROVISÓRIAS NO PROCESSO CIVIL
Carolina Reis Agnelo1
Mauro Simonassi2
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo proceder à análise da execução das decisões judiciais provisórias, a partir do Código de Processo Civil vigente, doutrinas e decisões jurisprudenciais. Diante da escassa usabilidade por parte dos advogados, desta forma de execução no âmbito das decisões judiciais não transitadas em julgado ou que se encontram na pendência de julgamento de recurso não dotados de efeito suspensivo, discute-se sua viabilidade, apresentando-se os riscos decorrentes de tal escolha, suas nuances e conclui-se indicando que tal forma de execução se trata de escolha plausível desde que seja feita com as cautelas discutidas no presente artigo.
INTRODUÇÃO
Todos os brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil têm
garantido o acesso à justiça, seja pela Constituição Federal de 1988, em
seu art. 5º, XXXV, e pelo contido no art. 8º da 1ª Convenção
Interamericana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica, da
qual o Brasil é signatário.
A prestação jurisdicional, inclusive a satisfativa, conforme
previsão expressa do CPC/15, no seu art. 4º, deve ser feita de forma
eficaz, com observância do devido processo legal, dentro de prazo
razoável. O Autor tem direito a exigir de outrem o cumprimento de uma
1 Graduanda em Direito da Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Professor da cadeira de Direito Processual Civil da Faculdade de Ipatinga – FADIPA.
Graduado em Direito. Mestre em Direito Público, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho, Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude, membro da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais da comarca de Ipatinga.
25
prestação (conduta) que pode ser de pagar quantia, de fazer, de não
fazer ou de entregar coisa. A decisão, assim que proferida pelo
magistrado, que reconheceu a exigibilidade de tais obrigações, de acordo
com o art. 515 do CPC/15 é reconhecida como um título executivo judicial
susceptível a execução.
A delimitação do objeto de estudo tem como núcleo a análise dos
tipos de títulos executivos judiciais, que podem ser provisórios ou
definitivos, influenciando na estabilidade da execução e suas
consequências. Posteriormente, trata-se das especialidades ante a
execução em face da Fazenda Pública. Ao final, propõe-se uma análise
quanto ao tempo processual mais vantajoso para se iniciar a execução
uma vez que a execução do título executivo judicial definitivo costuma ser
o mais usual.
A metodologia utilizada está voltada para pesquisa
teórico/doutrinaria e legislativa.
A finalidade não é a construção de um tratado exauriente das
questões relativas à execução provisória, mas apenas a indicação de
pontos importantes da mesma, de forma a dirigir o leitor a uma análise
reflexiva para que se sinta mais convencido a utilizar-se da execução da
decisão judicial provisória.
1 PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS PROVISÓRIOS E DEFINITIVOS
São espécies de pronunciamentos judiciais decisórios de mérito
as decisões interlocutórias, sentenças definitivas, decisões monocráticas
e acórdãos, conforme art. 203 §1º e §2º do CPC/15 e assim que
publicados são, em regra, dotados de eficácia, de acordo com o art. 995
do CPC/15.
Os pronunciamentos judiciais supracitados podem adquirir
diferentes classificações decorrentes de sua exequibilidade, dependendo
26
do momento processual optado, o que consequentemente interferirá na
sua estabilidade3, projetando-se em duas direções: provisórios e
definitivos.
O pronunciamento judicial definitivo, emanado de cognição
exauriente4 é aquele que resulta do trânsito em julgado, ainda que tenha
havido a interposição de recurso, seja ele conhecido e provido ou
improvido, ou não conhecido, mas no qual se esgotou a possibilidade de
interposição, ensejando a execução definitiva.
Por sua vez, o pronunciamento judicial provisório é emanado de
cognição sumária5, e são todos aqueles que proferidos, ainda não
transitaram em julgado. Isso pode decorrer do fato de ainda não terem
alcançado o momento necessário para a obtenção de estabilidade
definitiva, como no caso da sentença sujeita ao recurso de apelação
recebida no efeito não suspensivo, nas hipóteses do § 1º art. 1.012 do
CPC/15, ou mesmo, nos casos do art. 995 do CPC/15, permitindo a
execução provisória.
Insta ressaltar que, mesmo naquelas decisões sujeitas a recursos
que, em regra, possuem efeito suspensivo automático ope legis, como a
apelação art. 1.012 caput do CPC/15, existem exceções quanto a sua
suspensão automática, enumeradas no art. 1.012 §1º do CPC/15, quais
sejam, na decisão que: homologa divisão ou demarcação de terras;
condena a pagar alimentos; extingue sem resolução do mérito ou julga
improcedentes os embargos do executado; julga procedente o pedido de
instituição de arbitragem; confirma, concede ou revoga tutela provisória;
decreta a interdição e ainda na legislação extravagante (por exemplo,
3 DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria. Curso de direito processual civil, v.5: execução. 7. ed. Salvador, Bahia. 2017. p. 57.
4 SIMONASSI, Mauro. A parte incontroversa da demanda: para uma teoria de cisão do mérito e do processo. Revista de Processo. 2014. RePro. 236. p. 106.
5 SIMONASSI, Mauro. A parte incontroversa da demanda: para uma teoria de cisão do mérito e do processo. Revista de Processo. 2014. RePro. 236. p. 106.
27
art.14, §§ 1º e 3º da Lei 12.016/2009, art.14 da Lei 7.347/1985, art. 28 do
Decreto-Lei 3.365/1941, art. 58, V da Lei 8.245/1991)6.
Todavia, mesmo quando a sentença proferida comportar apelação
sem efeito suspensivo, o relator poderá, a requerimento do Recorrente,
atribuir efeito suspensivo ao recurso de apelação ope judicis, quando
demonstrar a probabilidade de provimento do recurso ou sendo relevante
a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação,
conforme art. 1.012 §4º do CPC/15, caso em que estará inviabilizada a
execução provisória, seja para iniciá-la ou, se já iniciada, paralisá-la.
2 EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS DEFINITIVAS
Os títulos executivos judiciais suscetíveis de execução definitiva
podem ser sentença, decisão monocrática, decisão interlocutória de
mérito7 ou acórdão, desde que transitados em julgado, mesmo que na
pendência de ação rescisória8, ressalvada a concessão de tutela
provisória, conforme art. 969 do CPC/15.
A eficácia da decisão judicial se traduz na exigibilidade conferida
às partes do processo de fazer sua prestação ser cumprida, através do
Poder Judiciário, uma vez que não é permitida a autotutela. Conforme
Didier Jr. (2017) “o titular desse direito, embora tenha a pretensão, não
tem como, por si, agir para efetivar o seu direito”9.
Essa exigibilidade do cumprimento da obrigação, no processo
civil, se dá na fase de execução, quando as partes, após terem seu direito
reconhecido no processo de conhecimento mediante sentença, acórdão
6 MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código
de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. p. 1087. 7 ASSIS, Araken. Manual da execução civil. São Paulo. 2016. p. 467. 8 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil. v.9. Rio de Janeiro.1959. p. 415. 9 DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael
Alexandria. Curso de direito processual civil, v.5: execução. 7. ed. Salvador, Bahia. 2017. p. 42-43.
28
ou decisão parcial de mérito, seja ela constitutiva, condenatória ou
declaratória10
, adquirirem título executivo judicial, muito embora a
sentença constitutiva, bem como a declaratória, não ensejem, em
princípio, execução. Assente o título, à requerimento do Exequente,
quando se tratar de execução de quantia, iniciar-se-á a fase de execução,
conforme art. 513 §1º do CPC/15.
O caminho “tradicional” - mais comum - para a satisfação da
obrigação constante no título executivo judicial é a execução do título
judicial definitivo, ou seja, a execução da decisão posteriormente ao
trânsito em julgado, dotada de estabilidade11
. Essa afirmação quanto ao
caminho mais usual ser a execução a partir do título judicial definitivo
decorre da visão de Barbosa Moreira (1998) e Marinoni (2017), os quais
argumentam que no direito brasileiro a regra é a não eficácia imediata da
sentença, em virtude de no direito processual a sentença ter, por regra,
sua eficácia suspensa pelo recurso de apelação. Eis o pensar de
Marinoni (2017):
ao mesmo tempo em que admite a eficácia imediata da tutela antecipatória, lastreada em cognição sumária (juízo de probabilidade), não permite, salvo em contadas exceções, a eficácia imediata da sentença de procedência, que tem esteio em cognição exauriente (juízo de verdade). (...). Note-se que a sentença de procedência tem a sua eficácia inibida pela contingência de encontrar-se sujeita ao recurso de apelação. Ao referir que a apelação tem "efeito suspensivo" (art. 1.012, caput, CPC/15), não permite o nosso legislador que a sentença, enquanto sujeita ao recurso de apelação - durante o prazo para sua interposição - e enquanto se aguarda o julgamento do tribunal, produza seus efeitos. Rigorosamente, pois, a apelação não suspende o efeito da sentença de procedência: não permite a sua produção.12
10 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo. 2016. p. 705. 11 DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA,
Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil, v.5: execução. 7. ed. Salvador, Bahia. 2017. p. 57.
12 MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. p. 1087.
29
3 EXECUÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS PROVISÓRIAS
A execução do título judicial provisório é aquela praticável em
função de título executivo judicial que ainda não atingiu caráter definitivo,
instável, por não ter transitado em julgado ou por não se encontrar
suspenso de execução, seja por não terem sido impugnados por recurso
ou pelo fato de o recurso impugnado ser desprovido do efeito suspensivo,
porque, mesmo sem o trânsito em julgado já tem certo grau de eficácia,
como pontua Marinoni (2017):
A eficácia da sentença não se confunde com a autoridade da coisa julgada – daí porque pode a sentença produzir efeitos ainda que não transitada em julgado. Embora a questão seja tormentosa na doutrina, nada obsta que a decisão declaratória ou constitutiva possa ser eficaz na pendência de recurso. O mesmo se diga da decisão condenatória, mandamental ou executiva. Sendo possível retirar alguma consequência prática de decisão submetida a recurso, nada obsta a produção de seus efeitos13.
Os títulos executivos judiciais suscetíveis de execução provisória
podem ser decisão interlocutória, sentença não transitada em julgado
(mesmo que na pendência de julgamento de embargos de declaração ou
apelação nos termos do art. 1012 §1º), decisões monocráticas do relator
e acórdãos que tenham sido impugnados por recurso especial ou
extraordinário, não dotados de efeito suspensivo, conforme a regra do art.
995 do CPC/15.
Contudo, convém assinalar que apesar do recebimento do
recurso com efeito suspensivo impedir a execução provisória da decisão
impugnada, não impede que essa decisão, caso ilíquida, possa ser
13 MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código
de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. p. 1072.
30
liquidada antes do julgamento do recurso14
. Sobre o tema já se
manifestaram Fernando Gajardoni15
, Nelson Neri, Ernane Santos, Luiz e
Teresa Wambier, Fabiano Carvalho e Araken de Assis16
.
Em regra, a execução provisória sujeita-se a mesma forma da
execução definitiva, consoante ao art. 520 do CPC/15. No entanto, possui
algumas peculiaridades, entre as quais, a responsabilidade do exequente
quanto a eventuais danos experimentados pelo executado, em caso de
reforma da decisão; restituição ao estado anterior e liquidação dos
prejuízos nos mesmos autos; a exigência de caução para levantamento
de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência
de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real.
No direito alienígena, como ocorre no ordenamento processual
civil espanhol, a exemplo da Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola, de
2000, adotou-se a execução imediata, e sem prestação de caução17
, na
pendência de recurso18
.
Cumprimento do título judicial provisório que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa
As modalidades de cumprimento de título judicial provisório
guardam diferenças em relação ao cumprimento definitivo, segundo se
constata das hipóteses elencadas nos arts. 520, 521 e 522 do CPC/15.
14 STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro. Comentários ao
código de processo civil. São Paulo. 2016. p. 752. 15 SANTOS, Ernane Fidelis; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JR., Nelson; WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim. Execução civil – estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior. 2007.
16 ASSIS, Araken. Manual da execução civil. São Paulo. 2016. 17 GUASP, Jaime; ARAGONESES, Pedro. Derecho procesal civil. v.2. Aranzadi. 2005. p. 702-704. 18 RAMOS, Manuel Ortells. Derecho procesal civil. Pamplona, Navarra. 2016. p 897-898.
31
Com efeito, o Exequente obriga-se a reparar os danos do
Executado, caso a sentença seja revertida ou anulada19
, prescindindo a
prova de culpa20
. Citando Medina, Teori Albino Zavascki observa que a
indenização inclui prejuízos emergentes dos atos executivos e, se tiver
sido o caso, da liquidação provisória, bem como o lucro cessante,
conforme art. 402 do CC21
. Os prejuízos serão liquidados e pleiteados
nos mesmos autos da execução22
.
O Exequente deve prestar caução suficiente e idônea para: o
levantamento da quantia depositada; a transferência de posse; alienação
de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave
dano ao Executado, consoante ao art. 5º, LIV da CRFB/88 e art. 520 do
CPC/15. A quantia deve ser adequada, de forma a suprir os eventuais
prejuízos que o Executado possa vir a sofrer no caso da injusta execução
da decisão provisória, e o importe será determinado por arbitramento pelo
juiz, não se dispensando o contraditório23
.
No entanto, a caução acima descrita pode não ser exigida, caso
não resulte em manifesto risco de grave dano de difícil ou incerta
reparação, nos eventos do art. 521 do CPC/15, quando:
a) “O crédito for de natureza alimentar”, abrangendo os
alimentos do direito de família, decorrentes do casamento, união estável ou parentesco; e de ato ilícito24. Sendo que de acordo com o art. 528 §8º do CPC/15, recaindo a penhora em dinheiro, a concessão de efeito suspensivo à impugnação não obsta a que o Exequente levante mensalmente a importância da prestação.
19 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões
e notas comparativas ao CPC/15/1973. 3. ed. São Paulo. 2015. p. 810. 20 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo. 2016. p. 710. 21 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões
e notas comparativas ao CPC/15/1973. 3. ed. São Paulo. 2015. p. 810. 22 STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro. Comentários ao
código de processo civil. São Paulo. 2016. p. 752. 23 ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. Rio de Janeiro. 2016. p. 289. 24 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo. 2016. p. 711.
32
b) “O credor demonstrar situação de necessidade”, neste caso pode haver situação em que o juiz, aplicando o princípio da proporcionalidade, apreciará o risco e dispensará a caução, se entender que a necessidade do credor exige o cumprimento da sentença, ainda que ele não tenha como prestar a caução25; c) “Pender o agravo do art. 1.042” do CPC/15, qual seja: “contra decisão do presidente ou do vice-presidente do tribunal recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou recurso especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos”; d) “A sentença a ser provisoriamente cumprida estiver
em consonância com súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou em conformidade com acórdão proferido no julgamento de casos repetitivos”.
Outra situação em que é dispensada a prestação de caução
encontra-se na jurisprudência, nos casos em que a execução é movida
por pessoa jurídicas de direito público contra particulares, pois não
surgem “os mesmos riscos e responsabilidades atribuídos aos demais
credores comuns”, de prestar caução26
.
É importante observar que, em concordância com Marinoni (2017)
e Streck (2016), a caução apenas é exigida à prévia pratica do ato de
alteração do patrimônio do Executado, mais precisamente da prática que
resulte em agressão ao patrimônio, e não simplesmente em razão do
início da fase postulatória da execução da decisão judicial provisória:
a exigência da caução suficiente e idônea concerne apenas à prática de ato que importe alteração do patrimônio do demandado e não simplesmente em razão do início do cumprimento da decisão provisória. A prestação de caução deve ser prévia à prática do ato suscetível de causar a alteração do patrimônio do demandado e não ao simples início do cumprimento da decisão provisória27.
25 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo. 2016. p. 711. 26 ASSIS, Araken. Manual da execução civil. São Paulo. 2016. p. 479. 27 MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código
de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. p. 640.
33
4 CUMPRIMENTO DAS DECISÕES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA
As particularidades no cumprimento das decisões contra a
fazenda pública serão tratadas a seguir, de modo que serão divididas em:
a) cumprimento das decisões definitivas e b) cumprimento das decisões
provisórias, esta última será analisada relativamente a obrigação de
pagar quantia certa e a de fazer.
4.1 Cumprimento das decisões definitivas contra a fazenda pública
Nas condenações por decisão judicial transitada em julgado a
pagar quantia em desfavor da Fazenda Pública, seja na esfera Federal,
Estadual, Distrital ou Municipal consoante ao art. 100 da CRFB/88, o
Exequente apresentará demonstrativo discriminado e atualizado do débito
nos termos do art. 524 do CPC/15 e o pagamento será feito sob um
regime especial chamado de “precatório” ou RPV – Requisição de
Pequeno Valor, ou seja, no cumprimento definitivo do título judicial prevê-
se que serão emitidas requisições de pagamento.
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).
4.2 Cumprimento das decisões provisórias contra a fazenda pública
Sob a perspectiva do cumprimento da decisão provisória, em face
da Fazenda Pública, a doutrina se divide projetando-se a divergência
basicamente em duas direções, relativas ao objeto da execução, quais
sejam: a) possibilidade e impossibilidade em relação a obrigação de
34
quantia certa; e b) possibilidade ou impossibilidade em relação as
obrigações de fazer e não fazer.
4.1.1 Cumprimento das decisões provisórias de pagar quantia certa em face da fazenda pública
Relativamente à decisão que condena a Fazenda Pública ao
pagamento de quantia certa, existem igualmente duas orientações: a)
uma restritiva orientada no sentido da impossibilidade de execução
provisória e b) outra admitindo a possibilidade da execução provisória.
A corrente restritiva é seguida pela maior parte da jurisprudência
do STJ28
e noções doutrinárias do professor Leonardo Carneiro da Cunha
(2014) que defende o não cabimento da execução da decisão provisória
que condena a Fazenda Pública a pagar quantia certa, por todos confira-
se:
Acontece, porém, que não se afigura possível, a partir da Emenda Constitucional nº 30/2000, a execução provisória contra Fazenda Pública. A razão dessa regra está na circunstância deque, uma vez inscrito o correlato precatório, o crédito passa a integrar o orçamento respectivo, devendo ter uma única destinação, qual seja, o efetivo pagamento à parte favorecida. Daí a referida Emenda Constitucional nº 30/2000 exigir o prévio trânsito em julgado, com vistas, inclusive, a resguardar o interesse público no pagamento de verbas orçamentárias, evitando-se o desvio despropositado
28 PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.
OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. INEXISTÊNCIA DE PARCELA INCONTROVERSA. APELAÇÃO RECEBIDA NO DUPLO EFEITO. DISCUSSÃO SOBRE A PRESCRIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A solução integral da divergência, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. 2. É possível a execução provisória contra a Fazenda Pública com o sistema de precatórios, desde que se trate de quantia incontestável. 3. O Tribunal de origem consignou que não há falar em valores incontroversos sobre os quais deva prosseguir a execução de sentença, visto que nos Embargos à Execução a União alega a prescrição da execução, matéria de defesa que, se procedente, fulminará toda a execução. 4. Agravo Regimental não provido. (STJ - AgRg no AREsp: 368378 PR 2013/0184555-6, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 01/10/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/10/2013).
35
de destinações mais úteis e vantajosas à consecução de finalidades igualmente públicas29.
O argumento fundamenta-se na análise do art. 100 da CRFB/88 e
o art. 2-B da Lei nº 9.494/97, que afirma que o precatório somente poderá
ser expedido após o trânsito em julgado da sentença que condenou a
Fazenda Pública ao pagamento da quantia certa.
Art. 2º-B. A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada após seu trânsito em julgado. (Incluído pela MP 2.180-35/2001).
Por seu turno o norte minoritário, que admite a execução
provisória, mais especificamente Didier Jr. (2017), alega que é possível o
cumprimento da decisão provisória contra a Fazenda Pública, ao
argumento, em síntese, de que somente não é possível a expedição do
precatório ou RPV, como se infere do seu pensar:
O que não se permite é a expedição do precatório ou da RPV antes do trânsito em julgado, mas nada impede que já se ajuíze o cumprimento da sentença e se adiante o procedimento, aguardando-se, para a expedição do precatório ou da RPV, o trânsito em julgado. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. Execução provisória. Possibilidade. As normas constitucionais e legais não impedem o início da execução provisória contra a Fazenda Pública, apenas condicionam a expedição do ofício requisitório ao trânsito em julgado da decisão proferida na fase de conhecimento. Recurso provido. (TJ-SP 22033992920178260000 SP 2203399-29.2017.8.26.0000, Relator: Coimbra Schmidt, Data de Julgamento: 12/12/2017, 7ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 12/12/2017).
Contudo, existe uma exceção à permissão da execução da
decisão provisória de pagar quantia contra a Fazenda Pública, que é no
29 CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 12. ed. São Paulo. 2014.p. 391.
36
caso de parcela incontroversa da dívida, em que será permitida tal
execução provisoriamente expedindo-se o precatório ou RPV, antes do
trânsito em julgado, consoante ao admitido pelo Superior Tribunal de
Justiça:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIO. INEXISTÊNCIA DE PARTE INCONTROVERSA. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. 1. O aresto regional não destoa da orientação jurisprudencial deste Superior Tribunal, firme no sentido de que é possível a execução provisória contra a Fazenda Pública com o sistema de precatórios, desde que se trate de quantia incontroversa (AgRg no REsp 1225274/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 04/04/2011). 2. O Tribunal a quo consignou expressamente não haver parte incontroversa a ensejar a execução provisória, de modo que a desconstituição de tal premissa demandaria o reexame de matéria fática, procedimento que, em sede especial, encontra óbice na Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1598706/RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 13/09/2016).
4.1.2 Cumprimento das decisões provisórias de obrigação de fazer em face da Fazenda Pública
Concernente a obrigação de fazer, tem-se admitido a execução
provisória em sede jurisprudencial sob a argumentação de que não se
encontra parâmetro constitucional ou legal que obste essa pretensão,
havendo, portanto, compatibilidade formal entre o art. 536 c/c 520 §5º do
CPC/15 e os arts. 100 da CRFB/88 e art. 2-B da Lei nº 9.494/97, haja
vista que os dois últimos se referem apenas as obrigações de pagar
quantia certa, devendo ser interpretados, restritivamente, tanto no
cumprimento da sentença/acordão provisório, quanto no cumprimento da
tutela provisória, segundo orientação do Tribunal de Justiça de São Paulo
e Superior Tribunal de Justiça colacionados:
37
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO – CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DE SENTENÇA – EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – ADMISSIBILIDADE. Cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública. Execução provisória. Obrigação de fazer consistente na implantação de pensão por morte e inclusão como beneficiário de assistência médica. Condenação pendente de recurso para os Tribunais Superiores. Admissibilidade. A vedação de execução provisória contra a Fazenda Pública se restringe às hipóteses expressamente previstas no art. 2º-B da Lei nº 9.494/97, as quais devem ser interpretadas restritivamente. Sentença exequenda que versa sobre benefício previdenciário. Decisão reformada. Recurso provido. (TJ-SP 20804778320178260000 SP 2080477-83.2017.8.26.0000, Relator: Décio Notarangeli, Data de Julgamento: 27/09/2017, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/09/2017) FAZENDA PÚBLICA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - TUTELA ANTECIPADA - ASTREINTES - CABIMENTO - ART. 461, § 5º, e DO ART. 461-A DO CPC - PRECEDENTES. (...) 2. A negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível, cuja ausência gera risco à vida ou grave risco à saúde, é ato que, per si, viola a Constituição Federal, pois a vida e a saúde são bens jurídicos constitucionalmente tutelados em primeiro plano. 3. A decisão que determina o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas de verdadeira observância da legalidade. (...) (STJ - REsp: 904204 RS 2006/0257484-5, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 15/02/2007, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 01/03/2007 p. 263).
E ainda, conforme aludem Luiz Guilherme Marinoni e Daniel
Mitidiero (2017), toda decisão não autossuficiente pode ser cumprida de
maneira imediata, na pendência de recursos não recebidos com efeito
suspensivo:
As decisões que impõem um fazer ou não fazer (art. 497,CPC/15), que reconhecem direito à coisa (art. 498, CPC/15), que reconhecem direito à prestação de declaração de vontade (art.501, CPC/15) e que condenam ao pagamento de quantia (art.139, IV e 523, CPC) podem ser
38
cumpridas imediatamente na pendência de recurso não recebido com efeito suspensivo.30
5 CONCLUSÃO
A efetivação da execução do título executivo provisório cível fora
olvidada por grande parte dos operadores do direito, no âmbito das
decisões judiciais não transitadas em julgado ou que se encontram na
pendência de julgamento de recurso não dotados de efeito suspensivo.
Isso ocorre por se tratar de execução lastreada em um título
precário e de grande instabilidade, que é assistida em alguns casos, de
peculiaridades que não existem na execução do título judicial definitivo,
como o prestamento de caução e obrigação de futuro pagamento de
indenização no caso da anulação ou reversão da decisão em que se
baseou a execução do título provisório.
Tendo em vista as consequências que a execução de um título
instável ocasionalmente pode causar não é de se exprobar que este não
seja usual.
Porém, em face da inquietação da ineficiência da tutela efetiva,
uma vez que tardia e morosa, uma economia volátil e uma cultura de
imediatismos, proporcionada pela facilidade de acesso a informações, o
comportamento dos operadores do direito tende a mudança.
De sorte que, o operador do direito auferirá maiores vantagens
frente ao novo comportamento de execução antecedente ao trânsito em
julgado e para isso deve observar com cautela, de forma a analisar a
plausibilidade de êxito da execução, sopesando a pressa ou a urgência
na satisfação do direito, e de outro lado, avaliar a possibilidade de
provimento do recurso interposto contra a decisão objeto de execução e
30 MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código
de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. p. 638.
39
lembrar que sua responsabilidade frente ao caso é objetiva, cabendo-lhe
indenizar por eventuais prejuízos.
REFERÊNCIAS
ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. Rio de Janeiro. 2016. ASSIS, Araken. Manual da execução civil. São Paulo. 2016. CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 12. ed. São Paulo. 2014. DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil, v.5: execução. 7. ed. Salvador, Bahia. 2017. GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo. 2016. GUASP, Jaime; ARAGONESES, Pedro. Derecho procesal civil. v.2. Aranzadi. 2005. p. 702-704. MARINONI, Luiz Guilherme; AREHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. 3. ed. São Paulo. 2017. MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/15/1973. 3. ed. São Paulo. 2015. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil. v.9. Rio de Janeiro.1959. MOREIRA, Jose Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro. 1998. RAMOS, Manuel Ortells. Derecho procesal civil. Pamplona, Navarra. 2016. p. 897-898. SANTOS, Ernane Fidelis; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa ARRUDA ALVIM. Execução civil – estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior. 2007.
40
SIMONASSI, Mauro. A parte incontroversa da demanda: para uma teoria de cisão do mérito e do processo. Revista de Processo – RePro. p. 236, 2014. STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro. Comentários ao código de processo civil. São Paulo. 2016.
41
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS EM CONCURSOS PÚBLICOS: UMA POLÍTICA DE
INSERÇÃO SOCIAL
Gilmar Felisberto Gabriel1
Jô de Carvalho2
RESUMO Este artigo teve como objetivo discutir de forma teórica e conceitual a Lei n°12.290, sancionada em 09 de julho de 2014, que propõe a reserva de vagas para negros e pardos em concurso públicos. Lei com a finalidade de vigorar por 10 anos, e tem como espécie a cota, uma ação afirmativa de inserção social. Com isso, o Brasil busca reparar as injustiças cometidas com a população negra sensibilizando a todos no enfrentamento ao racismo desde a escravidão até aos dias atuais. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, qualitativa e quantitativa, com estudo documental direto e indireto. Concluiu-se que, com o advento desta Lei, surgiu a oportunidade de reparação social, através de uma política pública que é a de cotas para negros em concursos públicos, considerados em sua maioria os menos escolarizados e desvalorizados no mercado de trabalho.
INTRODUÇÃO
1 Mestre em Ciências Naturais e da Saúde pelo Centro Universitário de Caratinga; Pós-
graduado em Metodologia do Ensino de Química pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá; Pós-graduado em Supervisão Escolar, Orientação Escolar, Inspeção Escolar e Gestão Escolar pelas Faculdades Promove; Pós-Graduado em Educação Empreendedora pela Universidade Federal de São João Del Rei. Graduado em Licenciatura Plena de Química pelo Centro Universitário de Caratinga; graduado em Pedagogia pela Universidade de Uberaba. Graduando em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA.
2 Doutora em Ciências Técnicas (Administração, Recursos Humanos e Gestão) pela Universidad de Matanzas, Cuba, Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Especialista em Psicopedagogia pelo Centro Universitário do Leste e graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Ipatinga, professora titular de Metodologia Científica da Faculdade de Ipatinga, coordenadora de mestrados e doutorados internacionais da Empresa Veritas.
42
As pesquisas sobre o sistema de cotas para negros em concursos
públicos, de acordo com o ordenamento jurídico, demonstram a
importância de se pensar e de se viabilizar a valorização da igualdade
racial, buscando amenizar a desigualdade social, econômica e
educacional entre raças, levando-se em consideração, no caso dos
negros e pardos, uma população que foi vítima por mais de trezentos
anos do sistema escravocrata no território brasileiro, e que, ainda vive
com os resquícios de preconceitos e de racismo, e de situações
vexatórias que podem fazer com que o negro se sinta numa situação
inferior após cento e trinta anos da abolição da escravatura. A abolição
não trouxe consigo políticas públicas para o negro, que saíam das
senzalas e passaram a viver mercê na sociedade.
A história do negro no Brasil é história de luta, de conflitos, de
martírios, de injustiças, pois desde a época da escravidão lutam para
conseguir a real liberdade.
A Constituição Federal de 1988, ao afirmar o princípio da
dignidade da pessoa humana, trouxe conceitos que levam a fundamentos
constitucionais sobre a política de inserção social e, a reserva de cotas
para negros em concursos públicos é uma das espécies de Ação
Afirmativa.
A Lei n° 12.290, sancionada em 09 de julho de 2014, tem a
finalidade de vigorar por um período de 10 anos e determina um
percentual de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos aos
negros que se encontram em uma situação de desigualdade de
oportunidade e de acesso, valorizando assim a sua inserção no mercado
de trabalho.
A cota para negros pode ser considerada uma política de inserção
social, pois visa a reparar as injustiças acometidas com a população
negra no Brasil, já que apenas 30% dos servidores são negros e pardos,
43
e que de acordo com a pesquisa do IBGE, formulada em 2010, a
população negra e parda corresponde a 50,74 dos brasileiros.
Não se pode negar a existência de racismo e de discriminação
racial e o Estatuto da Igualdade Racial nas suas disposições preliminares
no artigo 1º veem em defesa dos direitos étnicos, individuais, coletivos e
difusos da população negra e a efetivação de oportunidades de forma a
combater a discriminação e as demais formas de intolerância étnica.
Neste sentido, o objetivo deste artigo é discutir sobre a
constitucionalização do sistema de cotas para negros em concursos
públicos com base na legislação e no ordenamento jurídico pautados
pelos princípios da igualdade e de inclusão democrática. Justifica-se pela
necessidade urgente de uma democracia racial, que proporciona ao
negro a possibilidade de participação igualitária, uma vez que o Estado
democrático de Direito promove a proteção e a possibilidade de ação
afirmativa que permite a inclusão de todos.
O método de abordagem utilizado para a pesquisa será dedutivo,
por meio de pesquisa bibliográfica em livros, periódicos, trabalhos
científicos e documentos.
2 ABORDAGEM HISTÓRICA DO NEGRO NO BRASIL
O preconceito contra os negros ainda é bastante evidente na
sociedade contemporânea. Mesmo com o aumento das campanhas e das
lutas dos movimentos sociais, ainda é possível observar atitudes, gestos
e de exclusão em nossa sociedade.
A história da escravidão envolvendo negros é uma história de
lutas, de martírio, de injustiças e de conflitos, e, é possível perceber que
desde o período colonial o país ficou marcado pelo racismo e que a
escravidão dos negros se dava pelo tráfico, antes de 1831. A luta pela
liberdade dos escravos era algo já anunciada, iria acontecer, porém a
44
passos lentos. Muitos foram os fatores que interferiram na caminhada
história dessa pseudolibertação3 escravocrata. Seguem estes fatores:
Figura 1: Fatos que interferiram no processo da abolição da
escravatura no Brasil
7 de novembro de 1831 Promulgação a Lei Diogo Feijó
. Ato de caráter internacional.
. Tinha o objetivo de acabar com o tráfico no continente africano.
. A lei declarou livres todos os escravos vindos de fora do Império. Proibia a importação de escravos para o Brasil.
4 de setembro de 1850 Lei Eusébio de Queiróz, Lei n.º 581
. Proibia o tráfico de escravos para o Brasil. . Acabou definitivamente com o
tráfico negreiro intercontinental. . Caiu a oferta de escravos já que
eles não podiam mais ser trazidos da África para o Brasil.
1865 . O Brasil sofria pressões internacionais, já que era o único país americano a manter a escravidão.
28 de setembro de 1871 A Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco - Lei n.º 2.040
. Libertava todos os filhos de escravizadas nascidos a partir daquela data.
. A população escrava começa a envelhecer progressivamente, sem a possibilidade de renovação.
1872 Primeiro Recenseamento geral do Império
Neste primeiro censo demográfico do Brasil, foram recolhidos os seguintes dados:
. População brasileira – 9.930.478, sendo . 8.419.672 homens livres . 1.510.806 escravos (apenas 15%, já
que antes eram a maioria)
1880 Aumento do número de alforrias
Nos anos 80 houve sensível aumento do número de alforrias, de
3 Chamamos pseudolibertação por entendermos que não houve uma real libertação dos
negros e que, nos dias atuais, ainda há a necessidade explícita de luta diária por respeito, empregos, salários e credibilidade.
45
fugas em massa e de revoltas dos escravos. Houve assim um declínio da escravidão e uma desorganização nas fazendas.
28 de setembro de 1885 A Lei dos Sexagenários – ou Saraiva Cotegipe - Lei n.º 3.270
. Tornava livres os escravos com mais de 60 anos.
1885 a 1888 . O movimento abolicionista ganha grande impulso e se espalha pelas plantações de café, onde se concentravam a maior parte do trabalho escravo.
13 de maio de 1888 Promulgação da Lei Aurea
. Abolição da escravidão no Brasil.
Fonte: Elaborada pelos autores tendo como base os fatos históricos brasileiros
Segundo Silva (2009), o período pós abolição, foi marcado pela
liberdade. Muitos ex- escravos deixaram as fazendas onde eram
escravos, com a roupa do corpo, indo para as cidades onde,
marginalizados, e desempregados, pois estavam acostumados ao
trabalho do campo, passaram a viver em barracos. Outros permaneciam
no campo, praticando uma economia de subsistência. Outros ainda se
embrenharam no mato, constituindo novos quilombos. Calcula-se que ¼
permaneceram nas fazendas. Em qualquer dos casos, o fator comum
para eles foi a miséria.
Ainda de acordo com Silva (2009), após a abolição não houve
nenhuma política estatal a favor dos negros. Houve uma discussão no
parlamento se os proprietários deveriam ser indenizados ou não. Optou-
se por não pagar nada e o jurista Rui Barbosa, embora fosse da opinião
de que se alguém deveria ser indenizado que fossem os ex- escravos,
ordenou a queima dos arquivos referentes a escravidão no Brasil para
evitar reivindicações indenizatórias pelos ex- proprietários. O resultado
disso foi uma perda lastimável para a recuperação da memória nacional.
46
A partir daí várias são a lutas para que os negros consigam a
suma emancipação e o seus direitos na sociedade. A herança do
passado, e a grande discriminação racial que atinge os negros de todas
as formas. E algo para reparar esta dívida histórica do Brasil com a
população negra precisa ser feito. Surgem as ações afirmativas.
Segundo, Gomes (2011), várias pesquisas têm revelado a luta da
população negra pela superação do racismo ao longo da história do
nosso país. Uma trajetória que se inicia com os quilombos, os abortos, os
assassinatos de senhores nos tempos da escravidão, tem ativa
participação na luta abolicionista e adentra os tempos da república com
as organizações políticas, as associações, a imprensa negra, entre
outros. Também no período da ditadura militar, várias foram as ações
coletivas desencadeadas pelos negros em prol da liberdade e da
democracia.
E ainda, segundo Gomes (2011), é na década de 1980, durante o
processo de abertura política e redemocratização da sociedade, que
assistimos a uma nova forma de atuação política dos negros (e negras)
brasileiros. Esses passaram a atuar ativamente por meio dos novos
movimentos sociais, sobretudo os de caráter identitário, trazendo outro
conjunto de problematização e novas formas de atuação e reivindicação
política. O Movimento Negro indaga a exclusividade do enfoque sobre a
classe social presente nas denúncias da luta dos movimentos sociais da
época. As suas reivindicações assumem caráter muito mais profundo:
indagam o Estado, a esquerda brasileira e os movimentos sociais sobre o
seu posicionamento neutro e omisso diante da centralidade da raça na
formação do país.
3 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O PRINCÍPIO DE IGUALDADE
Os movimentos sociais, como já evidenciado anteriormente, são,
47
no Brasil, os fomentadores de uma discussão que desafia o denominado
“mito da democracia racial”, que se faz presente nos âmbitos
acadêmicos, intelectuais e institucionais do país.
Este diálogo é fundamental para que a democracia se fortaleça e
se aperfeiçoe. Por este motivo, desde 2003, o governo tem ampliado os
espaços e os canais de comunicaçãocom a sociedade civil.
A postura do governo brasileiro em relação à questão racial
mudou radicalmente entre a promulgação da Constituição Brasilerira em
1988 e a III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao
Racismo, Discriminação Racila, Xenofobia e Intolerância Correlata, em
Durban (AGIER, 2002).
Nessa conferência o governo brasileiro assumiu a existência de
graves assimetrias no acesso a direitos, no que diz respeito à raça e ao
gênero. Houve então a publicação do Decreto nº 4.228/2002, da Portaria
nº 1.156/2001, os quais estabelecem um Programa Nacional de Ações
Afirmativas no âmbito da Administração Pública Federal, além de oferecer
incentivos para o ingresso no Supremo Tribunal Federal e no Instituto Rio
Branco (BARBOSA, 2001). A implantação de ações afirmativas é uma
exigência legal, decorrente da Lei Federal nº 12.288 de 20 de julho de
2010, Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Congresso em 2010,
no último ano do segundo mandato do Governo Lula.
O Programa Nacional de Ações afirmativas consiste em medidas
que se divergem da noção de neutralidade estatal, que defende a não
intervenção em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera
íntima das pessoas. Baseia-se na ideia de que a reversão de alguns
quadros sociais só será viável se o Estado renunciar à sua histórica
neutralidade em questões sociais e começar a assumir uma postura
ativa. Em relação a essa neutralidade por parte do Estado, Joaquim
Barbosa (2001, p.36) explica que:
48
na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduziu na crença de que a mera introdução nas respectivas constituições de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos componentes da Nação seria suficiente para garantir a existência de sociedade harmônicas, onde seriam assegurados a todos, independentemente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo.
Portanto, as ações afirmativas têm por finalidade implementar
uma igualdade concreta (igualdade material), no plano fático, que a
isonomia (igualdade formal), por si só, não consegue proporcionar e são
adotadas em diversos países europeus, asiáticos e africanos, com as
peculiaridades pertinentes a cada país.
Também Joaquim Barbosa (2001) explica que as ações
afirmativas são
um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens como a educação e o emprego.
Além disso, Barbosa (2001) diz que estas ações constituem-se
meio de assegurar direitos fundamentais a todos; mecanismos de
inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos
dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização da
efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm
direito, o que, para o autor, é um objetivo constitucional universalmente
reconhecido.
Seguindo estes preceitos, em 2012, por unanimidade, o Superior
Tribunal Federal declarou constitucional a reserva de cotas para negros e
demais afrodescendentes em universidades públicas, ao concluir o
49
julgamento. Este fato, sem dúvidas, abriu caminhos para outra discussão,
as cotas raciais para concursos públicos.
4 COTAS RACIAIS EM CONCURSOS PÚBLICOS
Em 10 de junho de 2014 entrou em vigor a Lei 12.990, que
destina uma porcentagem das vagas de concursos públicos para negros
e pardos, trazendo consigo um modelo de implantação que busca
amenizar desigualdades sociais, econômicas e educacionais entre
raças. No Brasil, hoje, 53% da população se declara negra, porém nas
repartições federais, o índice cai para menos de 35%, cenário que vem
mudando com a vigência da lei (COÊLHO, 2017).
A lei 12.990/14 prevê 20% das vagas em concursos públicos
federais para pessoas que se declarem negros ou pardos e tem a sua
duração prevista de 10 anos. Essa reserva de vagas é válida para
concursos destinados à administração pública federal, a autarquias,
fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia
mista controladas pela União, como exemplo a Petrobrás, Correios,
Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil.
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a lei
12.990/2014 era constitucional e que poderia haver a utilização de
mecanismos, além da autodeclaração, para evitar fraudes pelos
candidatos. Na decisão, o STF citou a heteroidentificação, com a
presença perante a comissão do concurso, “desde que respeitada a
dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla
defesa”.
4.1 O que prevê a lei
50
Como já citado, o texto da lei faz reserva de um quarto das vagas
em concursos para a administração pública federal direta e indireta, para
autarquias, agências reguladoras, fundações públicas, empresas públicas
e sociedades de economia mista controladas pela União. Dessa forma,
esclarecemos que a lei somente é válida para concursos de âmbito
federal, excluindo, portanto, os municípios e os estados.
Viável salientar que as cotas raciais estão em vigor para cargos
ligados ao Poder Executivo, exclusivamente. É dizer que os concursos
relacionados aos poderes Legislativo e o Judiciário não estão incluídos
nessa nova regra. O Senado é a única exceção, tendo instituído a reserva
legal das vagas para negros e pardos em seus concursos e contratos de
terceirização.
Podem concorrer aos cargos, se valendo das cotas raciais, todos
que se autodeclararem negros ou pardos no ato da inscrição do
concurso, ao preencherem um formulário, porém, deve-se levar em conta
o quesito de cor e de raça do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) e, caso o candidato seja aprovado, deverá comprovar a sua
cor e raça. Dizendo de outra forma, o STF admitiu um critério misto de
autodeclaração e avaliação posterior. Na verdade, admitiu o sistema da
heterodeclaração (a pessoa se declara negra ou parda, mas depois será
avaliada por uma comissão através de um processo chamado
investigação social). Na hipótese de constatação de declaração falsa, a
lei, em seu art. 2º § único, esclarece que
O candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Outro aspecto importante a se destacar é que sempre que o
número de vagas no concurso público for igual ou superior a 3, haverá
cota racial. Se o percentual das vagas (20%) resultar em número
51
fracionado, será arredondado para cima, sempre que a fração for igual ou
maior que 0,5, e para baixo quando for menor que 0,5, de acordo com o
art. 1º, §§ 1 e 2 da Lei 12.990/2014.
Os candidatos negros e pardos concorrerão concomitantemente
às vagas que lhe são reservadas e às vagas destinadas à ampla
concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso. Ou seja,
concorrem com os candidatos de ampla concorrência e, se tiverem
pontuação para passar nessa lista, não será utilizada vaga restrita aos
negros, deixando mais uma vaga a esta categoria.
Estabelece, ainda, a lei que a nomeação dos candidatos
aprovados respeitará os critérios de alternância e proporcionalidade, que
consideram a relação entre o número de vagas total e o número de vagas
reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros.
Estipula-se o prazo de 10 anos para acompanhar a persistência e
efetividade da medida temporária no âmbito da administração pública
federal. Relevante notar que com essa lei, diversos estados aderiram à
iniciativa (ou já tinham antes dela), estipulando suas próprias
porcentagens de reservas de vagas a candidatos negros e ainda com
subcategorias de renda.
4.2 Resultado prático da implementação da Lei
Uma das grandes preocupações quando se implanta uma nova
lei é a comunicação, ou falta de comunicação em relação à
promulgação dessa lei4.
4 Sobre este assunto CARVALHO (2017) publicou um artigo a respeito da relativização do
conhecimento obrigatório da Lei e demonstrou o desconhecimento, por parte dos cidadãos, das leis publicadas no Brasil, dado o grande número de publicações e o não acesso ao diário oficial. Disponível em: <http://fadipa.educacao.ws/ojs-2.3.3-3/index.php/cjuridicas/article/view/222/pdf>.
52
Foram realizadas uma enquete com 57 pessoas negras e
entrevistas com 10 pessoas negras concursadas com o objetivo de
obter informações a respeito da Lei 12.990/2014 e da sua aplicabilidade.
Vejamos os dados.
Gráfico 1: As cotas e a integração do negro no mercado de trabalho
Fonte: Elaborado pelos autores A primeira pergunta da enquete foi “Você acredita que as cotas
raciais ajudam o negro a se integrar em um mercado de trabalho?”.
Todos os entrevistados responderam, 79% pensam que sim e 21%
pensam que não. Em entrevista com um dos concursados, a resposta
foi:
não acho que as cotas ajudem na inserção dos negros no mercado de trabalho, pelo contrário. Eu, pessoalmente, acho que essa invenção de ‘cotas’ nos rebaixa como pessoas. A sensação, não só minha, mas de vários negros, é que esses ‘inventores’ e seus adeptos, acham que não temos capacidade de alcançar uma posição na sociedade sem uma ‘mãozinha’.
Por outro lado, outro entrevistado, já concursado diz que,
mesmo a maioria
As cotas é uma tentativa de diminuir a distância entre as oportunidades que tiveram brancos, negros e pardos. As estatísticas mostram que negros e pardos tiveram menos oportunidades que os brancos. Em minha opinião a lei das cotas não é solução para a desigualdade, até porque7 a lei tem validade de 10 anos apenas. Contudo, ela ameniza, de certa forma, a desigualdade entre os concorrentes na medida em que a concorrência fica entre aqueles que
53
tiveram oportunidades iguais: quem teve mais oportunidades não concorre com quem teve menos.
Percebemos que, mesmo a maioria dos negros pensando que o
sistema de cotas ajuda na inserção no mercado de trabalho, também
eles pensam não ser a solução ideal.
Perguntados se são a favor ou contra o sistema de cotas raciais
em concursos públicos obtivemos os resultados que se seguem.
Gráfico 1: As cotas raciais em concursos públicos
Fonte: Elaborado pelos autores
A maioria dos participantes da enquete são a favor das cotas em
concursos públicos – 74%. Corroborando com os entrevistados citados
anteriormente, percebemos que 24% não estão a favor das cotas e 2%
não tem conhecimento. Nas entrevistas vimos que tanto as pessoas a
favor, quanto as contra, externam que o sistema de cotas não é a
solução para e que, mesmo que tenha sido pensada para reduzir a
discrepância de negros e pardos no serviço público federal, percebem
um ou dois negros concursados dentre os demais funcionários.
Porém, segundo o secretário de Igualdade, Juvenal Araújo
Júnior, o sistema de cotas tem funcionado bem. De acordo com a
Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que é
responsável pela avaliação anual Lei de Cotas - Lei 12.990, das 11.900
54
pessoas que se tornaram servidores federais desde 2015, 2.370 foram
admitidas por meio das cotas raciais, no Banco do Brasil, por exemplo, o
índice de funcionários negros passou de 20,8% em 2013 para 22,3% em
2017 (COÊLHO, 2017).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inúmeras foram as conquistas dos negros ao longo de uma
história marcada por lutas em busca de igualdade e de justiça social. O
desejo de serem reconhecidos os seus direitos e de exercerem a
cidadania de maneira igualitária sempre gerou discussões e frustrações.
Como reivindicação dos defensores da população negra, é
implementada a Lei nº 12.990 de 9 de junho de 2014, uma política pública
de cotas para negros em concursos públicos como inserção social.
Ao se manifestar pela constitucionalidade das cotas para os
negros em concursos públicos, o Supremo Tribunal Federal pretende
proporcionar oportunidades e condições de acesso para os negros no
mercado de trabalho. Esta espécie de ação afirmativa procura contribuir
para a democracia racial e promover a equidade racial como forma de
combate ao racismo e discriminação racial e parte do princípio da
igualdade e da reparação social, uma vez que
Nas enquetes e entrevistas realizadas percebemos que a maioria
dos participantes, 79%, acreditam que as cotas raciais ajudam o negro a
se integrar no mercado de trabalho e 21% acreditam que não. Também a
maioria é a favor das cotas raciais, 74%, 24% são contra e 2% não têm
conhecimento.
O que se vê, em números, é que as cotas aumentaram o número
de negros servidores públicos, porém, importante salientar, é que todos
os entrevistados julgaram ainda haver grande discriminação em seus
ambientes de trabalho.
55
Dessa forma, concluímos que as cotas raciais em concursos
públicos é sim uma forma de contribuir para a inserção do negro no
mercado de trabalho e de alcançar a igualdade, não apenas formal, mas
também material (concepção moderna do princípio de igualdade), mas as
ações afirmativas e os movimentos em prol dessa igualdade ainda tem
muito o que fazer para tentar igualar as raças no serviço público à mesma
proporção que as raças dos brasileiros.
REFERÊNCIAS AGIER, Michel. Dossier para uma edição temática de Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, 2002 (mimeo). BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumentos de transformação social; a experiência dos EUA. Brasília: Renovar, 2001. BRASIL. Estatuto da igualdade racial (2010). Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, e legislação correlata. 5. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2016. (Série legislação; n. 249). CARNEIRO, Sueli. Raça, gênero e ações afirmativas. In: BERNARDINO, Joaze & GALDINO, Daniela. Levando a raça a sério: ação afirmativa e universidade. p. 71 a 84. Rio de Janeiro: DPA&A, 2004. CARVALHO. José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. 2. ed. São Paulo: Altas, 2006. COÊLHO, Marília. Lei de cotas em concursos públicos é julgada constitucional, mas ainda motiva ações. 11/07/2017. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/ especial-cidadania/lei-de-cotas-em-concurso-e-julgada-constitucional-mas-ainda-motiva-acoes>. Acesso em: 20 set. 2018. DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social - a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40-41.
56
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa: renúncia à neutralidade estatal em matéria de oportunidade de educação e emprego. In: Ação afirmativa & o princípio constitucional da igualdade (o direito como instrumento de transformação social; a experiência dos EUA). São Paulo: Renovar, 2001. p. 35-90. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Renato Emerson dos; LOBATO, Fátima (Orgs.). Ações afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação – RBPAE, v.27, n.1, p. 109-121, jan./abr. 2011. HERINGER, Rosana. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.18, supl., p. 57-65, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/csp/v18s0/13793.pdf>. Acesso 30 abr. 2018. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍTICA. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br>. Acesso em: 27 maio 2018. NEEDELL, Jeffrey D. O chamado às armas: o abolicionismo radical de Nabuco em 1885-1886. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, n. 65, p. 291-312, 2013. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Informação Legislativa, v. 33, n. 131. Brasília. Jul. 1996, p. 4. SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e igualdade racial: a contribuição do direito na construção de um Brasil diverso. São Paulo, Edição Loyola, 2005. SILVA, Maria do Socorro. Ações afirmativas para a população negra: um instrumento para a justiça social no Brasil. 2009. 214f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação da área de concentração em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
57
PAGAMENTO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA DO PAI BIOLÓGICO PARA FILHO ADOTADO POR OUTRA FAMÍLIA; É POSSÍVEL?
Laura Ferreira da Silva1
Mayra Lorena Leal2
Hélio Willian Cimini3
RESUMO Este trabalho tem por objetivo a abordagem do pagamento de pensão alimentícia do pai biológico para o filho já adotado por outra família. Há diversos casos em que o pai não tem nenhum vínculo afetivo com a criança que fora adotada, por vezes nem mesmo chegando a conhecer o filho que passou por processo de adoção. Há casos, porém, de família cujo filho é adotado por outra e, antes deste processo de adoção, havia um vínculo afetivo entre pai e filho. Diante disso, este trabalho visa a discorrer sobre ambas as situações relatadas acima, bem como a conceituação de família, tratando sobre o pátrio poder e discorrendo sobre os princípios que rodeiam o instituto familiar. Além do princípio da solidariedade, o presente artigo discorrerá sobre as consequências da adoção, bem como a análise de afetividade por parte do genitor e do adotado, a natureza jurídica da obrigação alimentícia e julgados dos tribunais superiores. Palavras-chave: Adoção. Afetividade. Família.
INTRODUÇÃO
O presente artigo refere-se às questões de afetividade e não
afetividade do pai para com a criança a ser adotada, tema bastante
1 Bacharela em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Graduanda em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 3 Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce -
UNIVALE. Advogado. Professor da Pós-graduação da FADIVALE. Professor de Direito Civil e Direito Administrativo da Faculdade de Ipatinga- FADIPA.
58
complexo, inserido numa sociedade que vive em constante mudança de
pensamentos e evolução.
O pagamento de pensão é uma obrigação de natureza alimentar,
que o pai ou a mãe deve pagar ao filho para garantir o seu bem-estar e
sustento. A pensão será arbitrada pelo juiz, que deverá analisar a
necessidade de a criança receber e a possibilidade de o genitor ou
genitora pagar. O pagamento dos alimentos cessa a partir da maioridade
da criança ou quando ela finalizar cursos universitários.
O Código Civil, assim como a Constituição Federal, aduz que não
são apenas os pais que devem fazer o pagamento da pensão, mas
também os parentes mais próximos, como os avós, quando os pais não
possuírem condições de pagar.
No Código Civil de 1916 não era possível aos filhos havidos fora
do casamento pleitear alimentos, sendo eles considerados ilegítimos,
ficando totalmente desamparados, ato totalmente contrário à dignidade
da pessoa humana. Hoje, com a priorização dos Direitos Humanos, a
pensão alimentícia é considerada direito fundamental e pode ser
pleiteada por filho havido dentro ou fora do casamento.
Nota-se que, ainda no Código Civil de 1916, era conhecido o
“PÁTRIO PODER”, no qual a responsabilidade era apenas do pai. Hoje,
com a Lei n° 12.010/09, o termo pátrio poder foi substituído pela
expressão “Poder Familiar”, em que a obrigação é de ambas as partes,
tanto do pai quanto da mãe. Está consolidado na Constituição Federal no
art. 226.
Contudo, o desenvolvimento deste artigo será em torno da
relação de pais que já não possuem mais contato com o filho já adotado e
pais que ainda possuem o vínculo paterno, porém, não possuem mais a
obrigação de suportar o ônus alimentar para com o filho.
59
2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA
O direito de família está ligado a esse princípio, assim como aos
direitos humanos, visto que representa igualdade para todas as entidades
familiares, independentemente das formas de filiação ou da constituição
da família.
A família deve preservar o desenvolvimento das qualidades mais
relevantes entre os familiares, como o amor, o afeto, o respeito, a
solidariedade, permitindo o seu pleno desenvolvimento, tanto pessoal
como social.
Para manter as entidades familiares estruturadas, o direito busca
dar segurança jurídica para o desenvolvimento de cada indivíduo, não
sendo suficiente a proteção da família, pois é necessária uma
estruturação que vai além de ensino, educação de qualidade, valores
éticos e morais a serem passados entre cada membro familiar.
Segundo disposição da CF/88, o que o direito busca é que todas
as famílias tenham iguais condições de criar e educar seus filhos com
qualidade. Portanto a dignidade da pessoa humana, sendo um direito
fundamental, uma qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer
ser humano, deve ser preservada e garantida no direito de família.
Berenice Dias pontua que “o respeito e proteção à dignidade da
pessoa humana (de cada uma delas e de todas as pessoas) constituem
(ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanente da humanidade,
do Estado e do direito”. É isso que se busca hoje no direito de família,
que ele possa proteger o instituto da família e, também, que a família
tenha efetivamente sua dignidade no dia a dia garantida perante os
demais institutos da sociedade, buscando-se, assim, uma igualdade real
na construção de uma sociedade mais justa e solidária.
60
3 INSTITUTO DA ADOÇÃO
A adoção é caracterizada pela permanência de um indivíduo em
uma família que não era sua, sendo reconhecido como filho de um casal
ou de uma pessoa que não eram seus pais de sangue (biológico). A
adoção cria vínculos entre pessoas estranhas, tornando-as uma família.
Para Rubens Limongi França a adoção é “um instituto de proteção
à personalidade, em que essa proteção se leva a efeito através do
estabelecimento, entre duas pessoas – o adotante e o adotado – de um
vínculo civil de paternidade ou maternidade e de filiação”. O jurista, em
sua conceituação de adoção, mencionou que existe um vínculo, sendo
este de paternidade e filiação; assim, consegue-se enxergar que dessa
adoção vai gerar um Poder Familiar entre os envolvidos.
Ainda há para o adotado e seus descendentes todos os direitos
sucessórios, como se filho biológico fosse obedecendo assim ao princípio
da igualdade entre os filhos, o que alcança o filho adotado na matéria
sucessória.
Percebe-se, destarte, que as mudanças da sociedade ao longo
dos anos resultaram nas alterações no instituto da adoção, sendo
possível, por exemplo, a adoção por casais homossexuais, uma vez que
não necessita mais a união pelo casamento e nem união estável, para
conseguir adotar.
4 PODER FAMILIAR
O poder familiar é o poder exercido pelos pais para com seus
filhos, com intuito de impor direitos e deveres sobre a família. Segundo o
artigo 1.630 do Código Civil "Os filhos estão sujeitos ao poder familiar,
enquanto menores". Portanto, podemos dizer que a menoridade cessa
aos 18 (dezoito) anos completos, extinguindo nessa idade o poder
61
familiar, ou até antes, se ocorrer a emancipação em razão de alguma das
causas apontadas no parágrafo único, do artigo 5º, do Código Civil.
É mister saber que, quando na falta de um dos pais o outro
exercerá o poder familiar exclusivamente, assim preceitua o artigo 1631
do Código Civil, e, na falta dos dois, o poder familiar será atribuído a um
tutor.
A lei 13.053/14 traz em seu artigo 1634 algumas
responsabilidades desse exercício de competência dos pais:
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - Dirigir-lhes a criação e a educação; II - Exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - Conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - Conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI - Nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (BRASIL, 2014).
É valido ser lembrado também em que momento será extinto o
poder familiar e o artigo 1635 do código civil dispõe que as hipóteses de
extinção do poder familiar:
Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único; III - pela maioridade; IV - pela adoção;
62
V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638. (BRASIL, 2015).
Não perdem o exercício do poder familiar os pais que se
separarem e constituírem nova família. O poder familiar anterior
continuará intacto. Essa mesma regra vale para mães solteiras que
tiveram seus filhos em um poder familiar e logo mais estabelecem união
estável. O poder familiar que matinha com seus filhos antes da união
permanecerá, não podendo haver nenhuma interferência do novo cônjuge
ou companheiro.
5 PERDA DO PODER FAMILIAR E VÍNCULO EM CONSEQUÊNCIA DA ADOÇÃO
Para além do artigo 1618 a adoção tem as consequências do
artigo 1635.
Inicialmente é de suma importância ressaltar que o poder familiar
como aduz Maria Berenice Dias é poder exercido pelos genitores, mas
que serve ao interesse do filho.
No tocante ao poder familiar, este, como já dito acima, é exercido
exclusivamente pelos pais em função dos filhos; porém, se os pais
abandonam seu filho colocando-o em um abrigo ou dão o bebê gerado
para outra família (“barrigas de aluguel”), estes pais não poderão mais
exercer nenhum tipo de poder para com aquele que foi abandonado ou
dado a outra família.
Alguns doutrinadores discorrem que mesmo o filho sendo adotado
por outra família, ainda permanece intacto o poder familiar. Maria Paula
Gouvêa Galhardo sustenta que a perda ou a suspensão do poder familiar
não exonera os pais do dever de sustentar os filhos. De outro modo,
realmente a extinção deste poder não rompe a consanguinidade, mas
também não há que se dizer que ainda há algum dever entre pai e filho,
63
pois o filho possui outra família, já existindo, portanto, um novo poder
familiar.
CONCLUSÃO
Considerando que o Direito da Família é um ramo muito dinâmico
em virtude das próprias relações e sentimentos humanos, a questão
pagamento de pensão alimentícia do pai biológico para o filho adotado
por outra família é tema não pacificado, conforme já demonstrado neste
trabalho.
Todavia, o pagamento da pensão alimentícia se evidencia a partir
de duas possibilidades, a saber: primeiro, havendo vínculo afetivo, já se
decidiu inclusive por paternidade plúrima, que decerto autoriza o
posicionamento; segundo, inexistindo, porém, afetividade, aliada à
consequência “legal” da cessação de vínculo, não há que se falar em
obrigação alimentar.
Ressalta-se que no ano de 2007, a 3° turma do Superior Tribunal
de Justiça, reconheceu que uma jovem adotada pela viúva que
trabalhava no abrigo de crianças onde morava recebesse alimentos do
pai biológico, comprovado em exame de DNA. Tal decisão abalou todo o
ordenamento jurídico, pois o genitor e adotada não mantinham nenhum
tipo de afetividade que pudesse gerar uma obrigação alimentícia.
Contudo, entende-se que, por força de uma exigência moral, social, os
ministros acataram tal decisão.
Desta forma, se todas as análises de obrigação alimentícia não
forem pautadas nas duas possibilidades acima descritas, mas sim
colocando uma exigência moral e social acima da lei, onde estará a
segurança jurídica de tal sistema?
REFERÊNCIAS
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SÍNTESE FILOSÓFICA DA AÇÃO MIDIÁTICA NA CULTURA E POLÍTICA MODERNA
João Victor Silva Reis1
Maria Júlia Oliveira da Rocha2
Claudiane Aparecida de Sousa3
RESUMO Criada para a disseminação de informações, as mídias informativas por diversos meios de comunicação – tinha como missão a entrega de informações coesas com a realidade, para cientificar os ouvintes dos acontecimentos que atingiam a sociedade. Mas com o passar do tempo, tornou-se alvo de corrupção pelo seu grande potencial de poder, que passava despercebido pela sociedade. Este artigo teve como objetivo fazer uma análise sobre esta mídia, como ela atua e produz grandes modificações em todos os alicerces da sociedade. Ficou demonstrado que as informações passadas por estes meios de comunicação podem ser facilmente modificadas para fins objetivos do emissor e manipulação dos receptores. Palavras-chave: Mídia. Comunicação. Poder.
1 MÍDIA ENQUANTO PUBLICIDADE E A CULTURA
O poder que a mídia exerce na sociedade pode ser equiparado
com os do legislativo, executivo e judiciário, sendo considerado por
muitos, um quarto poder, influenciando todo um coletivo a um rumo em
uma única direção, onde não seria possível sem a incrível capacidade de
1 Graduando em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Graduando em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 3 Mestre em Gestão Integrada do Território pela UNIVALE. Doutoranda pela UNISINOS. Advogada. Professora Titular das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito e Prática Forense na Faculdade de Ipatinga – FADIPA.
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influenciar, persuadir e a capacidade de alcance em massa da população.
(LOBO, online, sem paginação).
Nem a cultura erudita, nem o projeto de esclarecimento das
classes populares, nem a ideia de serviço público preparam as
sociedades e as mentalidades do velho mundo para captar as naturezas
destas novas formas de organização do lazer, provenientes do novo
mundo, como fenômeno de massas. Pelo contrário, uma acumulação
histórica de mal-entendidos impede de perceber estas novas
modalidades de uso do tempo livre como portadoras não apenas de uma
forma de divertimento, mas de um novo modelo de sociedade.
Assim, a publicidade constitui uma parte integrante do processo
de marketing, o que é o mesmo que dizer, no entender dos seus
primeiros profissionais que adotam as fórmulas compiladas, que não há
maneira de desenvolver a mensagem adequada se não se responder ao
quadrado-alvo (Que vendemos? Onde? Quando? A quem? Como?),
identificar o mercado, conhecê-lo pragmaticamente e dividi-lo, segmentá-
lo para melhor o agarrar é o objetivo do marketing, nascido na esteira da
empresa moderna e das suas técnicas de contabilidade analítica.
O processo no decurso do qual se planificam e executam a
concepção, a avaliação, a promoção e a distribuição de ideias, bens e
serviços, tendo em vista criar as trocas que satisfaçam os objetivos do
indivíduo ou da organização. Convencer e persuadir são as palavras
cruciais. Qualquer coisa utilizada para influenciar favoravelmente o
público constitui publicidade. A sua missão é persuadir os homens e as
mulheres a agirem numa via que será vantajosa para o anunciante. É
assim que um manual destinado a estudantes define em 1921 as
finalidades do ato publicitário. A partir da primeira década do século, os
cursos de publicidade entram em diversas universidades americanas.
68
Cerca da década de 1930, mais de 30 centros de ensino superior teriam
inscritos no seu programa esta matéria. (MATTELART, 1994)
Enquanto e cultura é uma palavra muito utilizada nas mídias como
as televisões, jornais, rádios e no próprio linguajar cotidiano, onde a
maioria das pessoas já têm a breve associação à palavra como algo
“novo, melhor, exemplo de algo a ser seguido”, onde está diretamente
ligado a engajar as pessoas a uma percepção da busca por algo melhor
do que elas têm na momentaneidade. Do latim cultura, que significa a
“ação de cultivar a mente e os conhecimentos”, exercer a função de
seguir um modelo de aperfeiçoamento das condições de vida. Esta
palavra é atirada em qualquer frase onde possa se encaixar como uma
maneira de chamar a atenção dos ouvintes e os focando em algo que
possa ser desejado, comprado ou adquirido, dando a satisfação aos
consumidores de estarem sempre com os seus desejos supridos pelas
coisas de mais alta tecnologia e funcionalidade, que por sua vez, significa
cumprir os modos de vida local num modelo de cultura nacional comum a
todos. (BAUMAN, 2013).
A cultura da modernidade se tornou um mar de opções e
indecisões, com tantas propostas de “felicidade” nos comerciais que fica
até difícil escolher a melhor opção para a satisfação do momento, em que
todos almejam as casas de luxo, um carro esportivo, o celular de última
geração, as roupas da moda da marca x. Mas quais as vantagens e
consequências de tanta liberdade de escolha? Não se pode negar que a
grande variedade de opções em grandes escalas de busca pela
prosperidade seja profissional, amorosa ou material é tratada como luxo.
De mais a mais, com tantas opções de escolhas, deve levar em
consideração as escolhas que encaixam ao momento correspondente a
necessidade da “coisa”, sendo que em longo prazo pode haver
divergências com a necessidade do agora e o do futuro, que geralmente
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ocorre na maioria das decisões precipitadas. Com tantas opções a serem
analisadas no mundo contemporâneo, um grande mal que assombra a
sociedade é a nova doença social nomeada de ansiedade que afeta
grande parte de população mundial, onde os índices de suicídios entre os
jovens nunca foram tão altos em toda a história da humanidade.
Qual o valor de cada desejo momentâneo satisfeito? Parece que
ninguém pensou na maior questão abstrata na modernidade
contemporânea, o valor das coisas. Tudo contém um valor pela pré-
suposição do tempo em que será extinto. O salário de um empregado,
proporcionando seu adequamento de subsistência em sua condição de
vida, até que possa trabalhar novamente outro mês e receber novamente
sua recompensa pelo serviço, assim sucessivamente, sempre pré-
estabelecido o quanto irá receber e o quanto de tempo irá utilizar para
cumprir tais tarefas no mês seguinte. O valor agregado a um novo celular
de luxo que a bateria durará cerca de horas a mais, por um preço que
custa duas vezes mais do que um que tem o tempo de utilização de
serviços advindo do produto por um período de tempo menor, ou até
mesmo o valor de uma vida, onde pessoas pagariam todo o seu
patrimônio por apenas alguns minutos com seu ente querido que já se foi.
A questão não é dizer que é errado tais decisões, e sim mostrar
que o valor tem sua base já determinada pelo tempo de duração, pois se
o tempo fosse eterno, não haveria valor em qualquer substância, como o
tempo seria eterno, não se precisaria recorrer a uma faculdade em busca
de uma vida melhor hoje, nem amanhã, nem daqui a vários anos, pois
você sempre teria o tempo em suas mãos, não precisaria preocupar com
a extinção da vida ou no decorrer do tempo, não precisaria aproveitar
cada segundo com seus pais, filhos ou qualquer ente que lhe seja
importante, pois o tempo não estaria esvaindo-se a cada segundo que
70
passa. E assim, é o poder da mídia em relação aos seus consumidores,
principalmente no que tange a publicidade.
A realidade é que com o incrível avanço de tecnologia e no
consumo desenfreado, impulsionado pelo grande motor do capitalismo, a
mídia é o guia, onde direciona toda a atenção de uma população para o
curso que ela deseja, sempre condicionando um poder ainda maior em
suas mãos, não pela extinção da democracia, pois na modernidade atual,
existe a internet, sendo um dos maiores meios democráticos já existentes
na terra, mas o acúmulo de poder da mídia vem da sua capacidade de
influência e persuasão de massas, condicionando-as sempre em uma
visão unilateral de fatos, sempre em meias-verdades e meias-mentiras,
não podendo sequer questionar a fonte de onde se origina as notícias,
como se o “Mito da Caverna” do filosofo Platão nunca estivesse tão nítido
em nossa frente.
Ora, limpa ou não, intoxicante ou não, a publicidade já se anuncia
como uma maneira de justificar a ordem da mercadoria e a ordem do
espetáculo, de produzir a mercadoria como espetáculo e o espetáculo
como mercadoria. Laboratório para a produção de cultura e do imaginário
social, a publicidade converte-se pouco a pouco em uma base de lógica
comercial que, ao longo do tempo e dos progressos tecnológicos, se
tornará cada vez mais decisiva não tanto no plano de incitamento a
comprar, mas na própria configuração do sistema de desvalorização
subjetiva da matéria e do preenchimento do vazio existencial, que tem
agregado a relação de consumo desnecessário ao de satisfação do seu
“eu” interior.
A servidão voluntária é um efeito colateral visível que passa
despercebida por grande parte das pessoas. Na contemporaneidade, é
fácil notar que todos os produtos são gerados para que satisfaça o ego
71
dos adquirentes, que faça os produtos para as pessoas, ou faça as
pessoas desejarem o produto a ser adquirido.
É nítido que toda a existência humana é baseada na busca pelo
prazer. A busca por satisfazer a vontade de um objetivo existencial,
associado então, a ação de fazer, logo existir. Desde a concepção de
racionalidade humana, o objetivo a ser alcançado então e associado à de
uma recompensa por um feito, como a riqueza gerada por decisões
econômicas individuais, que o levaram a uma posição de prestígio ou a
de receber um emprego após passar em uma prova de eliminação de
concorrentes. Os prazeres podem vir de qualquer fonte de onde gera uma
recompensa, como o sexo, a comida, uma droga ou dinheiro que venha
de um serviço prestado, mas, como o valor das recompensas no mundo
de imediatismos tem se esvaído, a busca pelo prazer imediato se tornou
um vício obsessivo alarmante em toda a sociedade moderna, em que a
mídia tem o maior monopólio de poder na área de controle social, onde a
substância do poder de influência da mídia vem da fraqueza incondicional
da população pela busca do individualismo, com o intuito de
pertencimento a uma classe ou um grupo que lhe dê o preenchimento do
vazio existencial.
Claramente, acarreta-se um amor involuntário aos gurus das
gerações, os grandes filósofos, os guias, políticos e qualquer pessoa que
lhe diga o que fazer, como fazer e o por que fazer. Qualquer pessoa que
lhe proporcione a capacidade de sentir que pode alcançar qualquer
objetivo merece todo o seu afeto, respeito e fidelidade, não é à toa que o
mercado de palestras e livros de autoajuda nunca foi tão grande como no
século XXI. Em qualquer rede social ou qualquer propaganda comercial,
é notória a indústria de venda de remédios para qualquer indisposição.
Para a indisposição para cozinhar, pode ser vendida comida que
é necessário somente abrir um pacote e comer, para a indisposição de ler
72
um livro, pode-se ter um documentário explicando o conteúdo, e para a
indisposição de pensar, o pior de todos os problemas que atinge toda a
era globalizada, a solução é sempre ter alguém lhe dizendo o que fazer
que alcançará X resultado que você deseja.
A sociedade é educada para que sigam os poderosos. Isso é
simples, pois não é necessário pensar, não é preciso arcar com as
consequências dos atos exercidos pelo indivíduo. Caso uma empresa
venha a falir, que seja estatal é muito simples culpar o Estado como o
dono da causalidade do problema, mas arcar com as consequências de
um filho usuário de drogas pelo fato de mau gerenciamento de educação
na própria família é completamente fora de questão. Mesmo que não se
resolva o problema, o livrar-se da culpa como resultado de um problema,
já é o suficiente para que as pessoas se tornem acomodadas, pois sem
responsabilidades não há com o que se preocupar para resolver a fonte
de que emana o problema.
É fácil pensar como a questão de se deixar levar pela corrente de
“sem culpa, sem dor” pode ser aprofundada e ser levada a diversos
campos sociais, como a economia que é um dos pilares centrais de uma
sociedade em desenvolvimento. Logo, se a mentalidade de que quem
recebe a culpa pode ser sempre quem é o adquirente do poder, o Estado
é sempre o “culpado” por qualquer fato que gera uma preocupação social,
ninguém é o culpado por tudo que é problema na modernidade! Como o
Estado é majoritariamente responsável por todos os serviços que está ao
alcance da população, qualquer problema em qualquer área, será de total
responsabilidade estatal.
Como já asseverado pelo filosofo Zygmunt Bauman, os seres
humanos ao adquirirem o poder da liberdade, perde parte da segurança,
e, como sabemos, uma opõe-se à outra, e como o poder midiático sabe
muito bem deste conceito, abusam-se excessivamente deste princípio
73
contra a grande massa de manobra que se curva diante do poder de
persuasão que ela possui.
Segurança e liberdade são mutuamente dependentes, mas, ao mesmo tempo, mutuamente excludentes. Atraem-se e repelem-se em medida desigual; as proporções relativas desses sentimentos contraditórios mudam pari passu com os desvios frequentes (frequentes o bastante para serem considerados rotineiros) em relação ao “caminho dourado” pelo qual são assumidos (não por muito tempo) os compromissos entre as duas. (BAUMAN, 2001, p.17).
Estamos aprisionados em um sistema onde a mídia convence
toda sua plateia que a economia no país está crescendo, que o governo
está fazendo reformas legislativas fundamentadas em melhorias e que a
justiça está caindo sobre aqueles que se utilizam do poder governamental
com fins corruptos, mas a mídia nunca mostra a sua verdadeira face,
aonde os níveis educacionais do Brasil chegam a ser ridiculamente
baixos, a economia recentemente foi destruída por medidas sociais com
aparência de vantagens para a classe menos favorecida, acarretando um
grande buraco no fundo governamental que foi insustentável, e que
diversos infratores da lei, estão saindo impunes de crimes políticos feitos
contra toda uma população.
Vivemos em uma Matrix, um conto de fadas para crianças dormir,
um grande espetáculo para a cúpula do poder estatal onde o nexo de
causalidade é a ação midiática. Um conjunto de regras e normas rege a
sociedade, onde ser normal, é o cumprir das normas impostas pela
sociedade, não se pode ser normal sem um conjunto de normas, isto é
fato, mas o que acontece com os que não cumprem as normas impostas
pela sociedade? Os que não consomem, os que não compram, os que
não produzem e não dependem de um rumo direcionado da ação
midiática? São ignorados, esquecidos e jogados a margem da sociedade,
e tudo por não participarem do ciclo intermitente de busca pelo objeto de
74
contentamento, que é satisfeito, e logo é preciso de outro objeto de
satisfação. Mas é tudo pensado, se você não é útil para o sistema, você é
descartado, e se você se opõe contra ele, você rapidamente tem sua
personalidade destruída por diversos meios de deturpação da imagem,
pelo simples fato de representar um perigo ao poder que ela possui.
Hoje, ao ligar a televisão ou o rádio, ou ler os jornais, são
basicamente dois temas que aparecem no Brasil: de um lado, escândalos
de corrupção governamental e de outro, crimes. O problema é quando
esses escândalos substituem a discussão política, e é isso que está
acontecendo no Brasil. Em vez deterem um conjunto de informações, de
opiniões sobre o que o governo faz, para o bem ou para o mal, e o
cidadão poder, a partir desse conjunto de informações e opiniões, criar
suas próprias convicções acerca do Brasil contemporâneo, o que nós
temos hoje é uma destruição de todas as informações e opiniões.
Se a ética é o conjunto de valores, e dominação e o roubo de
poder, o que a mídia, por seus critérios de seleção de informação está
tentando nos roubar? O poder. O poder de pensar, de tomar decisões
com base na síntese das melhores opções que nos são propostas, o
poder da autocrítica. Existem basicamente dois tipos de forma de
alienação que a mídia utiliza contra uma população, o poder da
desinformação, de omitir mentiras e verdades, e nos mostrar o lado da
moeda mais favorável a seu favor, fazendo-nos acreditar e desacreditar
em informações incompletas. O segundo método de manipulação é o
afogamento de informações que se mostrou muito eficaz nos últimos
anos, com tantas informações disponíveis, por todos os lados, esquece-
se das informações fundamentais que são necessárias em toda a
sociedade, e é amplamente esquecida por estar sendo ocupada com
informações desnecessárias cotidianamente.
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Comenta-se, com frequência, a respeito de liberdades individuais
que a mídia tanto proclama. A liberdade é dada como um princípio geral
de uma sociedade, onde há um erro imensurável que passa despercebido
pela razão de que um princípio tem o poder de ser utilizado em qualquer
situação e a qualquer tempo, sem que em um momento, a própria
extensão do princípio possa contradizer seu argumento inicial. Se a
liberdade individual for um princípio estrutural da sociedade, é o mesmo
que dizer que a liberdade é ilimitada sem que nenhuma norma possa dar-
se um limite a seu poder. É lógico que o princípio da liberdade individual
jamais poderá ser um princípio para uma sociedade, pois nenhuma
liberdade individual pode ter efeitos colaterais ao direito do outro, poderá
ser somente um fragmento estrutural da norma que a regula, dando um
limite a sua extensão, que é o mais adequado, obviamente, em qualquer
meio de convívio social.
Outra preocupação constante é a com os rumos que a sociedade
vai indo em direção de contrárias opiniões majoritárias sociais, que a
mídia passa por cima da democracia, implementando sistemas de
hierarquias de minorias como maiorias, e a maioria como minorias.
Mencionando exemplos desses atropelos midiáticos antidemocráticos,
podemos citar a prevalência de leis como a maioridade penal, que cerca
de 80% da população é contra indivíduos de 17 anos serem tratados
como crianças, mesmo com completa capacidade de discernimento
mental do certo e errado, principalmente quando é expressamente dito
nas leis brasileiras, que nenhuma pessoa pode eximir-se de uma
sentença, alegando que não conhece as normas legislativas.
Pode-se notar também, com base na Constituição da República
Federativa Brasileira, Art. 5°, Inciso IX, onde é livre a expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença, onde é notório que a mídia
76
não cumpre com seu papel de “não censurar”, pois apenas um lado
argumentativo dos fatos é expresso de acordo com os interesses
midiáticos.
Ora, o direito é fundamentado em uma ação de dever por parte de
um indivíduo e o de um direito pertencente a outro, pois se uma criança
tem o dever de ser alimentado, mas nenhum indivíduo tem o dever de
alimentá-lo, o seu direito está sendo violado em sua essência primordial.
Se o direito a democracia é fundamentado na discussão diplomática entre
todos os lados divergentes, mas a mídia que está no centro informacional
entre as ações governamentais e a população, não tem o dever de
fornecer o conteúdo substancial para formação de opinião em escala
nacional, a democracia que nos é assegurada, está fundamentada em um
vazio de obrigação com os portadores do direito.
Além do mais, a mídia não afeta apenas o Brasil, e sim estende
suas garras de manipulação de informações nos mais variados países e
isso não é de agora. Inclusive nos Estados Unidos da América, no dia 01
de novembro de 1955, iniciava-se a guerra entre o Vietnã e os Estados
Unidos, onde tal guerra pode ser enquadrada no contexto histórico da
guerra fria por divergências ideológicas entre comunismo e capitalismo,
nos quais a mídia teve um papel de extrema relevância pela função de
fornecer informações dos acontecimentos de guerra a população.
Mas a mídia mostrou sua verdadeira face, quando em 1971, o
governo dos EUA deixou vazar informações de nível ultrassecreto sobre a
guerra, em que o jornal New York Times publicou em seus jornais, que
consequentemente gerou grandes protestos por parte da população,
onde o governo escondia da grande massa, que estavam perdendo
milhões de vidas de seus soldados, pois estavam em grande
desvantagem, mas continuava estendendo a guerra por motivos de
egocentrismo patriótico.
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Mas o que realmente foi notório a este acontecimento, foi que o
governo entrou em ações judiciais contra o jornal, por vazar informações
confidenciais, que o governo não queria que a população soubesse da
verdade que estava acontecendo, mas por sua infelicidade, diversos
jornais divulgaram as mesmas informações, que gerou uma expansão da
informação a um nível em massa, que se tornou impossível o governo
ganhar a causa na suprema corte contra os jornais que publicaram as
informações de extremo valor para a população, assim resultando em
favorecimento dos jornais na sentença. Nesta ocasião, percebeu-se
claramente que o governo tentou impor suas vontades contra toda uma
população de forma autoritária, ignorando totalmente a primeira emenda
da constituição dos Estados Unidos, onde é expressamente proibido
limitar a liberdade de imprensa.
Os pontos de vista sobre determinado aspecto, só pode variar na
hipótese de diferentes percepções abstratas ou se os pontos de vista
divergirem. É como olhar para um dado, mas em cada face do cubo
mostra um número respectivo e o ponto de vista que origina sua
percepção sobre o fato presente.
Não é necessário haver uma distorção de conteúdo para que
torne o problema mais evidente do que já é, a própria sistematização
corrupta do problema já é em si um caso de calamidade na sociedade
contemporânea. É notório também, como a mídia pode utilizar-se do
poder incomparável que lhe é proporcionado, para manipular fatos e
uniformizar os pensamentos coletivos em uma direção que é baseada em
uma mentira ideológica.
É comum ver pautas de liberação do aborto hoje em dia,
principalmente promovida por ações midiáticas, onde os principais
argumentos que fundamentam esta tese é a liberdade individual da
mulher de fazer o que bem entender com o seu próprio corpo e que há
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uma preocupação de saúde pública com as mortes maternas de mulheres
por conta de abortos clandestinos. É comum uma pessoa normal, que
tenha apenas uma fonte de conhecimento, evidenciar que há um
problema de saúde pública que acarreta diversas mortes maternas no
Brasil, além de concordar que o Estado não deve interferir em uma
decisão individual de uma pessoa, de fazer ou não fazer o que quiser
com seu corpo.
A princípio, são comoventes os argumentos levantados em
questão, mas a realidade é outra totalmente contrária a proposta. Dados
oficiais do ministério da saúde, retirados no dia 14/03/2017, mostram que
entre o período de 1996 e 2014, houve 1627 mortes maternas por conta
de abortos em clínicas clandestinas e outro dado oficial do Ministério da
Saúde confirma que cerca de 92% das mortes maternas, são por
consequências, que poderiam ser evitadas com tratamento, como
hemorragia e hipertensão, além de toda essa questão, como é o direito
de um pessoa, negar a vida de outra, como a de uma mãe negar a
existência de uma vida que está em seu ventre, proporcionando-lhe o
direito de privar a existência de uma outra pessoa, ofendendo
diretamente a liberdade individual, quando acarreta penalidades a outro
ser que não seja a si mesmo. Mas ao analisar as raízes das falácias
proporcionadas por estas ideologias, que são argumentos superficiais
que não condizem com a realidade, pode-se chegar à conclusão de
tamanha perversidade que acompanha o esquema de manipulação das
massas, a mídia em geral.
A mídia interfere em todas as questões sociais, inclusive na
economia de um país, interferindo na privação de informações de que o
monopólio econômico está completamente centralizado no establishment
governamental gerando índices extremamente nocivos à economia do
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país, ou seja, a mídia tem o papel crucial de gerar a aparência do
progresso social. (BRAGANÇA, 2017).
É notório que o progresso é um fator natural, principalmente na
economia, mas o papel do Estado está interferindo de forma
excessivamente contrária a esse fato social, devido a sua imensidão de
poder e ineficiência de atos para o ordenamento econômico, por estar
afogando toda a liberdade econômica em burocracia exagerada, e
impostos absurdamente altos, sendo totalmente merecedor do lugar de
153° país com menor liberdade econômica mundial, servindo apenas
para interesses individuais da cúpula do poder estatal e mascarado pela
mídia antidemocrática. A ambição por melhora de vida, entretanto,
persiste.4
2 MÍDIA E POLÍTICA
No Brasil, mídia tece sua origem no termo inglês media, sendo
uma designação dos meios, veículos e canais comunicativos, tais como o
jornal, a rádio e a televisão; enquanto política, dentre outros significados,
é a arte e ciência de bem governar e cuidar dos negócios públicos, ou
seja, práticas relativas ao Estado ou a uma sociedade.
A política é um sistema de circuitos de afetos, o que se vê,
percebe e sente, determina o que causa a ação, e em maioria dos casos,
é fácil a manipulação das reações do receptor pelo emissor com diversas
técnicas de manipulação, como o discurso de autoridade de uma pessoa
“expert” no assunto, escassez de determinado objeto, tornando-o mais
valioso ou a necessidade humana de pertencimento de um grupo social
desejado. É quase impercebível como as informações são modificadas o
4 Disponível em: <https://especiais.gazetadopovo.com.br/economia/ranking-de-liberdade-
economica-2018/>. Acesso em 10 ago. 2018.
80
tempo inteiro para se levar a um desejo já pré-estabelecido pelo emissor
da mensagem. E, foi justamente assim, que diversos governos
autoritários conseguiram influenciar populações em massas a fazer ações
absurdas, como Hitler na Alemanha Nazista, Vladimir Lenin na Revolução
Russa ou Mao Tsé-Tung na Revolução Chinesa. (SOMIN, 2017, sem
paginação).
É nítido que a mídia não fica de fora ao utilizar-se de técnicas de
persuasão com um fundamento primordial em tudo que se faz através
dela, como a manipulação dos fatos na política.
Contudo, tal fato nem sempre foi assim. No início do século
passado, como visto em livros de história, se um candidato queria ser
conhecido pelo seu povo, deveria ter contato direto com ele. Uma
campanha eleitoral só obtinha sucesso graças aos comícios, visitas de
casa em casa, cartazes etc. Hoje, a população conhece seus candidatos
através das redes sociais, através das propagandas eleitorais ou dos
telejornais.
Atualmente, discute-se muito sobre as influências midiáticas em
questões um tanto quanto banais, tal como a interferência na escolha de
um par de sapatos, mas também em questões que implicam na vida em
sociedade, tendo como foco a política.
Então, é possível afirmar que a mídia possui papel essencial na
escolha dos governantes do país, levando em consideração as esferas
estaduais e municipais também? É contraditório. Discorrendo
primeiramente sobre a negação, está no art. 2º da lei nº 4.737, de 15 de
julho de 1965, que o poder emana do povo e será exercido em seu nome,
ou seja, cada cidadão apto a votar, segue suas próprias convicções nas
urnas, sendo o voto secreto e direto, sendo assim, a escolha dos
governantes é feita através da consciência e convicções individuais. Ao
mesmo tempo, como já discorrido é visível como a mídia consegue
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controlar todos aqueles que estão ao seu redor, levando às escolhas a
serem tomadas de acordo com seus interesses próprios, geralmente
egoístas.
2.1 Exemplos da manipulação midiática na história brasileira
Getúlio Vargas5
Getúlio Vargas, que governou o país pelo maior período dentre
todos os presidentes até então, e em meio a um cenário mundialmente
conturbado, insere-se totalmente no assunto retratado, levando em
consideração a sua relação com a mídia da época.
Durante a fase conhecida como Estado Novo, em 1939, foi criado
o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que tinha como função
divulgar o governo varguista, além de controlar e censurar conteúdos
relativos à mídia quando visto alguma crítica à ditadura. Dentro de suas
complexas funções, o Departamento de Imprensa e Propaganda era
responsável, como o próprio nome diz, por toda a “imagem” do país,
sendo assim, o próprio governo dispunha da mídia para popularizar o
presidente, controlar o que não condizia com o patriotismo pregado por
Vargas, fora promover festas populares, estimular a criação de filmes de
cunho educativo, música popular, entre outros assuntos, mas o
patriotismo era sempre exaltado.
O DIP também foi responsável pela criação do programa
obrigatório “Hora do Brasil” em 1938, sendo intitulado “A voz do Brasil”
atualmente. Além de contar com discursos feitos pelo próprio presidente,
Hora do Brasil também promovia a imagem do mesmo, exaltava a
nacionalidade, tinha discursos semanais dirigido aos trabalhadores,
5 Para exemplificar a manipulação midiática a partir do governo de Getúlio Vargas valeu-se
das aulas de história ocorridas na trajetória do ensino fundamental e ensino médio.
82
tocavam músicas populares e falavam sobre os pontos turísticos
brasileiros.
A Era Vargas tinha o jornal e a rádio como as maiores fontes de
informações à sociedade, dando importância ao fato de que informações
que comprometessem o governo ditatorial seriam barradas pelo DIP. Vale
à pena ressaltar que pessoas que assistissem peças teatrais ou filmes
censurados poderiam ser punidas, ou seja, não havia liberdade de
expressão.
Já em seu governo democrático, Getúlio teve a mídia como forte
opositora, até o seu, então, trágico e memorável fim. Carlos Lacerda, que
talvez fosse seu maior inimigo na época, escrevia abertamente contra o
mandato de Vargas no jornal “Tribuna da Imprensa”.
Após diversos episódios, envolvendo Vargas e Lacerda, Getúlio
perdeu todo o apoio, sendo criticado massivamente nas ruas, mídias, até
mesmo por aqueles que antes estavam ao seu lado. Essa bola de neve
resultou no suicídio de Vargas, 19 dias após o atentado de Toneleros, no
Palácio do Catete, deixando uma carta-testamento como último ato.
Aquele que antes era criticado por todos, conseguiu reverter à situação
com um tiro no peito, se transformando em um herói nacional para a
população instantaneamente quando acabavam de ler sua carta. O
suicídio teve forte comoção, o que levou a protestos, ataques aos jornais
que resultou em bagunça e destruição a opositores do “pai dos pobres”,
tal como Carlos Lacerda. Antes tendo apoio geral, a mídia transformou-se
na assassina de um grande governante, deixando o país em estado de
choque, como escreveu Getúlio pouco antes de sua morte “Eu vos dei a
minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou
o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na
história.” (VARGAS, Getúlio. Rio de Janeiro, 23 ago. 1954)
83
Fernando Collor de Melo6
Conhecido como “o caçador de marajás”, Collor de Mello arrastou
multidões na sua campanha em 1989, ao mesmo tempo em que ganhava
vários rivais políticos. Em menos de três anos, Collor foi de “esperança
nacional” a alguém que levara o país ao abismo. É inevitável enxergar
que tanto sua vitória como a sua derrota posteriormente, tiveram forte
atuação midiática.
Sendo de uma família proprietária de um veículo midiático, a
Gazeta de Alagoas, Collor era jornalista e também formado em economia,
foi considerado o prefeito, governador e então presidente mais jovem,
também sendo eleito deputado federal. Fundou o PRN, elegendo-se nele
em 1989, no segundo turno da campanha presidencial disputada com
Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT).
Um grande exemplo da jogada midiática para colocar Fernando
Collor no poder foi o último debate presidencial de 1989 na Rede Globo
de Televisão, em que a emissora deixou o candidato informal e popular.
Utilizaram ainda imagens de pastas carregadas por Collor, em que diziam
conter assuntos incriminavam o adversário Luiz Inácio Lula da Silva,
apesar de depois confirmarem que não havia nada naqueles papéis.
O governo Collor foi breve e cheio de polêmicas que levaram a
sua queda, uma delas anunciada no primeiro dia de seu mandato, além
de substituir o cruzado novo pelo cruzeiro, fora criado o plano econômico
de combate à inflação que determinava que as quantias superiores a 50
mil cruzados (aproximadamente 6 mil reais) depositadas em contas de
poupança seriam bloqueadas e remetidas ao Banco Central. Em 1991, foi
criado o Plano Collor II, nele houve o congelamento dos preços das
mercadorias e salarial, também houve aumento das tarifas públicas, além
6 A exemplificação do governo do Ex-presidente Collor foi erigida a partir de leituras em
jornais, vídeos e livros de história.
84
da abertura para o mercado externo, houve o incentivo às exportações
que por sua vez causou choque na indústria nacional, crescia o
neoliberalismo. Ao final daquele ano, a inflação atingiu a marca de 472%.
Promoveu-se um tarifaço nos preços administrados pelo
governo. A energia elétrica subiu 59,5%; gasolina e álcool,
46%; telefone, 56,6%; e o gás de cozinhas, 50%. O governo
coletou dados para o cálculo da inflação até o dia 28 de
janeiro e, dessa forma, expurgou do índice o tarifaço imposto
três dias antes depois, que, segundo cálculos, representaria
aproximadamente mais 5% na taxa oficial. A intenção, assim,
acabou ficando em 20,21%. (VILLA. Online).
Conhecido por ser contra a corrupção, no ano seguinte, Fernando
Collor teve seu governo denunciado pelo seu próprio irmão Pedro Collor,
por um esquema de corrupção comandado pelo seu ex-tesoureiro Paulo
César Cavalcante Farias. No esquema houve um grande número de
dinheiro público desviado (estimasse cerca de 6 milhões de reais), fato
esse que levou Fernando Collor de Mello a se tornar o primeiro
presidente latino a sofrer impeachment.
Após investigações, o impeachment teve apoio da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira da Imprensa (ABI),
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Central Única dos
Trabalhadores, partidos da oposição e também foi aprovado pela Câmara
dos Deputados, sendo votado em 29 de setembro de 1992 e aprovado
pelo Senado. Não há como falar do impeachment de Collor sem citar os
estudantes mais conhecidos como Caras Pintadas, eles pintavam o rosto
com as cores da bandeira e iam as ruas em um movimento chamado
Fora Collor para protestar contra o governo. (IMPEACHMENT DE
COLLOR, 2011)
Vista tamanha oposição, Collor fez um apelo em rede nacional a
população, solicitando que vestissem as cores da bandeira nas ruas e o
85
apoiassem. Entretanto, a população se vestiu de preto, o que deixava
claro o descontentamento que apenas aumentava em relação ao
presidente, episódio que ficou conhecido como Domingo Negro.
Dito isso, a mídia foi o ator principal nas questões políticas, pois
Pedro Collor na época utilizou-a para denunciar o governo, e, logo após o
mesmo irmão do presidente concedeu uma entrevista à revista Veja que
naquela feita vendeu incontáveis cópias, gerando uma enorme
repercussão em todo o país, em diversos meios de comunicação.
Posteriormente, foi a vez das mídias estamparem o depoimento do ex-
motorista de Collor, o cerco se fechava. A mídia não tinha mais motivos
para apoiar um governo que se auto sabotava contrariando aqueles a
quem parecia apoiar durante suas promessas presidenciais, tornando-a
cada vez mais investigativa e noticiando, dia e noite, críticas contra
aquele poder, era tudo visível para o povo.
Após todo o rebuliço, no dia 29 de dezembro do mesmo ano,
Collor renunciou à presidência, tendo o mandato cassado no dia posterior
com seus direitos políticos suspensos por oito anos, além de ser
“esquecido” pela mídia. Ele apenas voltou aos holofotes quando eleito
senador pelo estado de Alagoas, no ano de 2007. (PLANO COLLOR,
ABERTURA DE MERCADOS E IMPEACHMENT MARCARAM
PRIMEIRO GOVERNO ELEITO APÓS O REGIME MILITAR, 2007)
CONCLUSÃO
Concluiu-se, após evidências anteriores do poder midiático sobre
a cultura e a política que, no Brasil, uma forma de superar esse
monopólio de informações seria a extinção ou diminuição do
intervencionismo estatal sobre toda a mídia. Tanto culturalmente quanto
politicamente, percebeu-se que o povo sofre pela homogeneidade vinda
da televisão, do jornal e de tantas outras mídias. Não deveria haver
86
privilégios nesta questão do fazer jornalismo, a população deveria
receber as informações tais quais como são, de forma transparente. Um
exemplo a ser seguido é dado pela maior economia mundial, os Estados
Unidos da América, onde há diversidade de informações e visões de
diversos pontos de vista de únicos assuntos sem intervenção estatal,
seguindo rigidamente a 5° emenda da Constituição Americana, sendo
assim mais favorável a democracia em um contexto geral e não em
determinado grupo ideológico como se faz hoje no Brasil.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA Senado. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/03/15/ plano-collor-abertura-de-mercados-e-impeachment-marcaram-primeiro-governo-eleito-apos-o-regime-militar>. Acesso em: 20 de jul. 2018. A MÍDIA e o quarto poder. Disponível em: <http://www.webhumanas.net/a-mdia-e-o-quarto-poder>. Acesso em: 10 maio 2018. ARAGÃO, Lucia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
BARBOSA, Caroline Vargas et al. Fernando Collor sofreu impeachment, em 1992, e foi cassado pelo Senado. Disponível em:
<http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/fernando-collor-sofreu-impeachment-em-1992-foi-cassado-pelo-senado-9239073>. Acesso em: 20 jul. 2018. BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo liquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. BRAGANÇA, Luiz Philippe de Orleans e. Por que o Brasil é um país atrasado? São Paulo: Novo Conceito Editora, 2017. BRASIL Paralelo. Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/uckdjjeebmdaiicey2nimisw >. Acesso em: 10 jun. 2018.
87
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88
WEINSHCHENK, Susan. Como convencer as pessoas a fazer o que você quer: 140 estratégias simples para dominar a arte da persuasão. Rio de Janeiro: Sextante, 2015.
89
A MORAL EM KANT E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO BRASILEIRO
Amanda Alexandre Gomes1
Hélio Willian Cimini2
RESUMO A esfera da moral se mantém objeto de incessantes debates e estudos, porquanto inserida no âmbito do direito. O presente artigo visa a articular a relação entre moral e direito, o que se torna mais cristalino se realizado sob a luz do pensamento de Immanuel Kant. Através da ideia de imperativo categórico, bem como da liberdade e do dever, busca-se delimitar conceitos e estabelecer a (in)existência de separação entre moral e direito, de modo a avaliar sua influência no direito brasileiro.
Palavras-chave: Moral. Direito. Kant. Imperativo categórico.
INTRODUÇÃO
A relação entre moral e direito consiste em um grande
questionamento enfrentado pela filosofia do direito, resultado da
constante busca de respostas acerca das ações humanas e sua
consequente integração no campo jurídico.
Ora, trata-se de uma discussão existente desde o período
socrático e que ganha completude quando analisada sob a égide dos
estudos do jusfilósofo Immanuel Kant, principalmente no que tange à obra
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, na qual ele expõe a teoria
da moral do dever.
1 Graduada em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Mestre em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce -
UNIVALE. Advogado. Professor da Pós-graduação da FADIVALE. Professor de Direito Civil e Direito Administrativo da Faculdade de Ipatinga- FADIPA.
90
Antes de adentrar no pensamento kantiano e em se tratando de
um debate tão controverso, faz-se necessário contextualizar as diferentes
concepções construídas quanto ao tema durante a história.
Thomasius, importante representante da escola jusnaturalista e
do iluminismo alemão, abarcou a questão em 1705. Em sua obra
Fundamenta Juris Naturae et Gentium, entende pela separação das duas
esferas, classificando a moral como norteadora da esfera íntima do ser
humano, sendo o direito apenas um conjunto de regras com a função de
regulá-la.
Estabelecendo visão contrária a de Thomasius, escreve Kelsen
que: “E também a concepção, frequentemente seguida, de que o direito
prescreve uma conduta externa e a moral uma conduta interna não é
acertada. As normas das duas ordens determinam ambas as espécies de
conduta”.3
Ou seja, para ele não há óbice de que o direito regule condutas
internas e vice-versa. Ainda, utiliza a coercibilidade como elemento
diferenciador da moral e do direito.
Ademais, cabe ressaltar que a perspectiva kantiana de moral, que
será exposta no decorrer deste artigo, tem grande influência no
pensamento de Kelsen, visto que interpretam a existência da moral e do
direito em planos diferentes.
Nesse sentido, quanto à problemática exposta, interessante
apresentar a teoria do Mínimo Ético formulada por Bentham e lapidada
pelo jurista alemão, Georg Jellinek.
A tese se sustenta na ideia de que o direito reflete um mínimo de
moral considerado indispensável, com o propósito de que a sociedade
consiga viver harmoniosamente.
3 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. [tradução João Baptista Machado]. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. (Ensino Superior).
91
Tal conjectura pode ser representada através do desenho de dois
círculos concêntricos, em que o menor se equivale ao direito e o maior à
moral. Contudo, não aparenta ser coerente a conclusão de que tudo que
é jurídico é moral.
Através da breve análise do contexto de formação do pensamento
jurídico, entende-se que a moral não é absoluta.
Com o surgimento do neoconstitucionalismo, a questão se torna
ainda mais aguda, ocorrendo a transposição da moral à esfera do direito.
Tal premissa pode ser refletida através dos chamados princípios
constitucionais e direitos fundamentais, os quais Alexy entende serem
disposições que possibilitam uma exegese de cunho moral.
Outrossim, Dworkin defende a percepção de direito como
integridade, uma vez que ele não estaria limitado apenas às leis e aos
precedentes judiciais, devendo-se incluir os princípios de moralidade
política.
Deste modo, cabe retornar às premissas filosóficas de Immanuel
Kant (1724-1804), que, na genialidade que lhe era peculiar, estabeleceu
critérios que culminam em uma melhor interpretação do que é moral, bem
como da in(existência) de vínculo desta com o direito.
Nessa perspectiva, será possível a análise da influência da moral
no direito brasileiro, no que tange à decisão judicial, viabilizando o
questionamento acerca da utilização de preceitos morais em
sobreposição à aplicação da letra fria da lei.
1 A MORAL EM KANT POR DISPOSIÇÕES GERAIS
Prima facie, tendo em vista que o estudo da moral abarca
discussões dos mais variados matizes, cabe expor as premissas
desenvolvidas por Kant para melhor entendimento do tema. A partir daí,
92
tornar-se-á possível, portanto, debruçar-se sobre o conteúdo central do
presente trabalho.
Consoante a filosofia crítica de Immanuel Kant, a fonte da moral
transcende ao que é empírico, posto que se encontra firmada no
‘’conhecimento a priori ou de entendimento puro e de razão pura’’.4
Na esteira deste raciocínio, Kant busca evidenciar o homem como
ser inteligível, dotado de autonomia em face das suas faculdades
racionais, característica esta que o difere dos animais e ratifica a sua
liberdade, conduzindo-o, portanto, para o alcance de sua dignidade.
Vê-se, pois, que não há que se falar em moralidade sem antes
adentrar no mérito da liberdade, visto que esta reflete a autonomia da
vontade e se faz conhecer pela própria Lei Moral.
A liberdade evidencia-se em Kant como a possibilidade de o ser
humano agir conforme os pressupostos de sua autoconsciência. Para a
ação ser considerada livre, não há que se falar em coação.
Entretanto, esta liberdade encontra limites em uma lei que se faça
cumprir simplesmente pelo respeito à máxima que a determina,
destacando o juízo da consciência de cada ser. É a chamada Lei do
Dever Moral, que a filosofia kantiana denomina como Imperativo
Categórico.
Assevera BOBBIO que o Imperativo Categórico prescreve ‘’uma
ação boa por si mesmo’’.
Daí surge o critério base de distinção entre moralidade e
legalidade elaborado por Kant, o qual tem relação com a forma da
obrigação decorrente da lei moral e da lei jurídica.
Segundo Kant, para uma vontade ser considerada boa, ela não
deve estar firmada em inclinações ou interesses exteriores, devendo
basear-se em puro respeito ao dever.
4 KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda a metafísica futura: que queira apresentar-se
como ciência. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2003.
93
Não é possível pensar nada no mundo e, em geral também, nada
fora dele, que possa ser considerado como bom sem restrição, a não ser
somente uma boa vontade.5
Quando uma ação obedece a tais pressupostos, diz-se que ela é
autônoma, considerando autonomia como sinônimo de liberdade. Isto vai
em contramão à heteronomia jurídica, visto que o respeito a esta lei dar-
se-á por motivos alheios ao foro íntimo do ser.
Em outras palavras, entende-se que o filósofo identifica que o
valor moral de uma ação se situa na intenção. Uma boa intenção decorre
de uma boa vontade.
É ela a grande norteadora de uma ação considerada moral, visto
que o direito afeta o que tange ao arbítrio, deixando clara a antinomia
existente entre liberdade e coatividade.
Portanto, seria o direito a ferramenta capaz de gerenciar o conflito
de liberdades, através de uma legislação externa, estabelecendo nítida
separação entre moral e direito.
2 O IMPERATIVO CATEGÓRICO E A TEORIA DA DECISÃO
Valendo-se da ideia de que Imperativos Categóricos determinam
uma ação decorrente de uma vontade totalmente livre e
consequentemente moral, necessário destacar a influência de tal
moralidade no ordenamento jurídico brasileiro.
Tendo em vista os diferentes problemas enfrentados diante da
temática abordada, necessário o questionamento acerca da possibilidade
de o direito contemporâneo se reger por princípios morais.
5 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.
94
É sabido que o processo de uma decisão é complexo, envolvendo
elementos de natureza objetiva e subjetiva do indivíduo tomador da
decisão, como por exemplo seus valores morais.
Ora, entende-se que uma decisão judicial deve submeter-se à
letra fria da lei, mas sem deixar de lado alguns valores moralmente
aceitos pela sociedade. Entretanto, a decisão judicial há de ser racional,
não solipsista. O princípio moral não deve se sobrepor à legislação
positivada.
Servem os princípios da ponderação de Dworkin, mas não para
suplantar o arcabouço legislativo, sob pena de crise do direito, que seria a
revolta do código sobre os fatos e a crise de legitimidade.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Universidade de Brasília, 1969. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2007 DWORKIN, Ronald. “Levando os direitos a sério”. Trad. Luís Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes (a doutrina do direito e a doutrina da virtude). São Paulo: Edições Profissionais. 2003. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda a metafísica futura: que queira
apresentar-se como ciência. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2003. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução
Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.
95
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1978.
96
O DIREITO AO ESQUECIMENTO: A DICOTOMIA ENTRE A PRIVACIDADE E A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO NA INTERNET
Júlia Silveira Dias Ramos1
Vinicius Paulo Mesquita2
RESUMO
O presente artigo visa ao estudo sobre o direito ao esquecimento. O tema trata do equilíbrio entre o direito à privacidade, o direito de informação, a liberdade de imprensa, o interesse público e a dignidade da pessoa humana, que são princípios constitucionais de similar importância, devendo encontrar o ponto de harmonia entre eles, considerando as peculiaridades do caso concreto. Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Direito de informação. Direito à privacidade. Liberdade de imprensa. Interesse público.
INTRODUÇÃO
O direito ao esquecimento não é um tema novo. Nos últimos anos
vem sendo bastante discutido em virtude do crescimento do acesso à
internet e da facilidade que as pessoas têm de fazer publicações e
também de ter acesso a elas, fazendo com que as informações, sejam
elas verdadeiras ou falsas, circulem rapidamente. A internet é, portanto, a
principal problemática do tema.
A internet permite que a própria pessoa publique informações
sobre ela e também permite que terceiros façam o mesmo. Na primeira
situação, a pessoa que publicou tem titularidade em relação às
informações podendo, portanto, pedir a remoção delas, mas quando a
informação é publicada por ato de terceiro, para a sua retirada, deve-se
1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Defensor Público. especialização em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera.
Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Ipatinga - FADIPA.
97
observar se ela é prejudicial à pessoa a quem a informação se refere.
Contudo, para que a remoção das informações seja levada a efeito, não
basta o mero prejuízo à pessoa, devendo-se também examinar a
existência ou não do interesse público, fato que depende da análise do
caso concreto.
O interesse público é de suma importância pois, para que se
tenha uma resposta em relação à retirada da informação da rede, é
essencial que, na análise do caso específico, o interesse público
prevaleça. Não há positivação no direito brasileiro do que se considera
interesse público, tornando-se espinhosa a análise deste, devendo, caso
o fato venha a ser judicializado, o juiz fazer tal análise com base nos seus
critérios.
Assim sendo, para se invocar o direito ao esquecimento, é
necessário analisar se o interesse público continua existindo mesmo com
o decorrer do tempo. Nas palavras de Viviane Nóbrega Maldonado (2017,
p. 33), o direito ao esquecimento é “em definição essencial, a perda do
interesse público quanto a uma determinada informação em razão do
mero transcurso do tempo”.
É relevante frisar que só se fala em direito ao esquecimento
quando se está diante de fatos verídicos pretéritos, dado que fatos falsos
devem ser apagados de imediato sem necessidade de discussão sobre
isso, podendo, inclusive, constituir crime, como, por exemplo, crime de
calúnia, injúria ou difamação.
Por fim, tem-se certo debate em relação às decisões judiciais que
julgam casos envolvendo o direito ao esquecimento no tocante à
possibilidade dessas medidas alcançarem outras jurisdições, pois como a
internet é internacional uma informação existente em um site pode ser
vista pelo mundo todo; porém a problemática esbarra na soberania
jurisdicional de casa país, ponto que ainda não se resolveu.
98
1 LIBERDADE DE IMPRENSA
A imprensa é um dos mais importantes meios de comunicação da
atualidade, levando informações para milhares de pessoas, sendo ainda
mais efetiva com a ajuda da internet. A informação é de extremo valor
para que se tenha uma sociedade mais inclusiva, perspicaz, com mais
sede de conhecimento, etc., contribuindo efetivamente para o processo
de desenvolvimento e crescimento social e econômico do país, quiçá, do
mundo.
A Constituição Federal – CF – de 1988 assegura a liberdade de
imprensa, mais especificadamente no seu artigo 220 que diz que a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto na Constituição e ainda proíbe qualquer lei de
constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em
qualquer veículo de informação social e também qualquer censura de
natureza política, ideológica e artística. O artigo quinto da CF prevê, do
mesmo modo, a livre manifestação do pensamento, mas não permite o
anonimato.
Portanto, no Brasil existe a liberdade de imprensa, ou seja, não se
tem a intervenção ou limitação do Estado, podendo os órgãos de
imprensa publicar todo e qualquer tipo de informação, desde que
verdadeiras e assinadas, mantendo, assim, a sociedade informada.
2 LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
É garantida a toda a sociedade a liberdade de informação, sendo
que está se desdobra em direito de informar e direito de ser informado,
isto é, enquanto a imprensa tem o dever de informar, a coletividade
possui o direito de ter acesso à informação. Lembrando que o cidadão
99
também tem o direito de informar, desde que observe as situações nas
quais o sigilo é indispensável. Outro ponto que deve ser observado é que
não pode ostentar caráter de informação aquilo que desperta mera
curiosidade.
No Brasil, a lei 12.527/11, chamada de lei de acesso à
informação, dispõe sobre gestões transparentes no âmbito Federal,
Estadual e Municipal, assegurando o direito de acesso à informação que
deve ser executado em conformidade com os princípios básicos da
administração pública e determinadas diretrizes, como a observância da
publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção.
A liberdade de informação é tema que deve ser observado e
discutido quando se trata do direito ao esquecimento, pois de um lado
tem-se o direito das pessoas de serem informadas, mas do outro tem o
direito do particular de ser esquecido e de ter seu direito à privacidade
preservado, considerando, sempre, que é necessária também a
discussão sobre a prevalência do interesse público e o decurso do tempo.
3 DIREITO À PRIVACIDADE
O direito à privacidade é o direito que as pessoas têm de viverem
suas vidas sem serem expostas, englobando o direito à intimidade, à
honra, à imagem, à inviolabilidade do domicílio, ao sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas de dados da
comunicação eletrônica, sabendo que as duas últimas podem ser
violadas por ordem judicial, no último caso, para fins de investigação
criminal e de instrução processual penal, como dispõe o inciso XII do
artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
A CF em seu artigo 5º, inciso X diz que são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado
o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
100
violação, sendo assim um direito constitucional que deve ser
precisamente observado.
Todavia, como já exposto, o direito à informação também é um
direito constitucional, tendo então um confronto de direitos equivalentes
que só pode ser resolvido diante do caso concreto. Até porque o direito à
privacidade não é absoluto, como todos os outros direitos, inclusive as
chamadas pessoas públicas têm o direito à privacidade mais restrito em
relação às outras, pois se considera que existe uma diminuição
espontânea dos limites da privacidade.
4 DIREITO AO ESQUECIMENTO
A principal característica do direito ao esquecimento é fazer a
ponderação entre os direitos já citados acima, sempre observando o caso
concreto, visto que não é possível dizer qual direito prevalece sobre o
outro sem esta análise, até porque o interesse público deverá ser
apurado precisamente. Então se, por exemplo, constatar que em
determinado caso concreto não há interesse público na informação, deve-
se ceder ao direito à privacidade sendo este o que prevalecerá.
O decurso do tempo influencia muito no que tange ao interesse
público. Uma informação que é de extrema relevância hoje pode não o
ser daqui a 20 anos, deixando de ter interesse público e,
consequentemente, prevalecendo o direito à privacidade, o que pode não
ocorrer em determinados casos em razão de haver informações que,
mesmo antigas, não deixaram de ter interesse público, seja por causa da
notoriedade do fato histórico, da importância da pessoa envolvida ou da
relevância de determinado fato.
A já citada Viviane Nóbrega Maldonado afirma que:
101
O Direto ao Esquecimento, assim entendido como a possibilidade de alijar-se do conhecimento de terceiros uma específica informação que, muito embora seja verdadeira e que, preteritamente, fosse considerada relevante, não mais ostenta interesse público em razão de anacronismo. (MALDONADO, 2017, p. 97).
Portanto, é permitido revelar informações particulares quando
forem presentes e ao mesmo tempo forem de interesse público, caso
contrário, estará ferindo o direito à privacidade do particular. Até mesmo
para que o contexto no qual a informação estiver inserida permaneça
igual, não havendo a possibilidade de ocorrer uma interpretação
descontextualizada possibilitando à informação tornar-se mais ou menos
relevante.
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos pilares do
direito ao esquecimento porque busca a preservação e a valorização do
ser humano, não permitindo que o indivíduo tenha seus direitos
fundamentais feridos se não houver o interesse público.
Vale lembrar que no Brasil não há, ainda, direito ao esquecimento
positivado. Tudo que se tem são decisões judiciais e debates acadêmicos
acerca do tema.
Um ponto relevante no direito ao esquecimento é referente a
informações sobre registros criminais em relação à reabilitação. No Brasil,
o artigo 93 do código penal diz que a reabilitação alcança quaisquer
penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o
sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação. Sendo assim,
para facilitar a reabilitação do indivíduo, é vedado que, após o
cumprimento integral da pena, permaneçam registradas informações
sobre a infração penal cometida por ele.
Logo, deve-se ressaltar que a mencionada vedação só predomina
quando a pessoa já cumpriu de maneira integral a sanção penal; quando
102
se tratar de indivíduo que está em mero livramento condicional, essa
regra não se aplica justamente porque até então não cumpriu toda a
pena, estando, ainda, em débito com a sociedade.
Essa vedação é completamente correta, pois se os registros dos
crimes praticados ficassem para sempre vinculados ao nome do
indivíduo, ele sofreria uma sanção perpétua, algo que não é admitido no
direito penal brasileiro. Se não houvesse tal vedação, atrapalhariam as
oportunidades de emprego, um ponto crucial para a ressocialização da
pessoa.
Existem alguns julgados recentes do STJ na esfera penal que
mencionam expressamente o direito ao esquecimento, veja:
RECURSO ESPECIAL. AMEAÇA NO ÂMBITO DA LEI MARIA DA PENHA. PENAEXCLUSIVA DE MULTA. IMPOSSIBILIDADE. ART. 17 DA LEI N. 11.340/2006.ANOTAÇÃO NA FAC DO RECORRENTE COM TRÂNSITO EM JULGADO HÁ MAIS DE 20 ANOS. DIREITO AO ESQUECIMENTO. AFASTAMENTO DOS MAUS ANTECEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO EM PARTE. 1. Conforme previsão do art. 17 da Lei Maria da Penha, não é cabível, em hipóteses de violência ou grave ameaça contra a mulher no âmbito doméstico, a aplicação somente da pena de multa, ainda que o crime pelo qual o réu foi condenado tenha previsão alternativa dessa espécie de sanção. Precedentes. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos podem ser consideradas como maus antecedentes para efeito de fixação da pena-base. Entretanto, quando os registros da folha de antecedentes do réu são muito antigos, como no presente caso, admite-se o afastamento de sua análise desfavorável, em aplicação à teoria do direito ao esquecimento. 3. Não se pode tornar perpétua a valoração negativa dos antecedentes, nem perenizar o estigma de criminoso para fins de aplicação da reprimenda, pois a transitoriedade é consectário natural da ordem das coisas. Se o transcurso do tempo impede que condenações anteriores configurem reincidência, esse mesmo fundamento - o lapso temporal - deve ser sopesado na análise das condenações geradoras, em tese, de maus antecedentes. 4. Recurso especial provido em parte a fim de afastar a aplicação exclusiva da pena de multa. Determinado o envio de cópia dos autos ao Juízo da condenação para imediata execução da pena imposta. (RESP 1707948/RJ, 2017/0282003-2, RELATOR
103
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ, STJ – SEXTA TURMA, DJE - DATA: 16/04/2018) AGRAVO REGIMENTAL O AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO MAJORADO. PENA-BASE. ANTECEDENTES. DIREITO AO ESQUECIMENTO. NÃO APLICAÇÃO. EXECUÇÃO IMEDIATA DA PENA. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem o entendimento de que "à luz do art. 64, inciso I, do Código Penal, ultrapassado o lapso temporal superior a5 anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior, as condenações penais anteriores não prevalecem para fins de reincidência. Podem, contudo, ser consideradas como maus antecedentes, nos termos do art. 59 do Código Penal."(HC n. 292.810/RJ, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., DJE 19/11/2014). 2. No caso dos autos, a extinção das condenações consideradas não se distancia em demasia da data do novo delito praticado, motivo pelo qual não incide o direito ao esquecimento. (...). (AGRG no ARESP 98374 /RJ, 2016/0243890-9, RELATOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ, STJ - SEXTA TURMA, DJE – DATA: 01/08/2017).
Houve um fato no Brasil, no ano de 2006, em que um programa
da Rede Globo exibiu um episódio criminoso que ocorreu em 1993, no
qual oito jovens, seis menores e dois maiores de idade, foram mortos
pela polícia, expondo o nome do autor do crime e informando que ele
tinha sido absolvido. Apesar de a emissora ter dito apenas a verdade em
relação aos fatos, a pessoa a quem a reportagem se referiu se sentiu
incomodada e judicializou a situação. O STJ entendeu que o evento
realmente violou os direitos da personalidade do autor da demanda,
inclusive o direito à privacidade, argumentando que a recordação dos
fatos foi danosa ao agente, afastando, assim, a possibilidade de
prevalecer o interesse público. O STJ condenou a emissora a pagar
indenização no valor de cinquenta mil reais ao agente para fins de danos
morais.
O Ministro Luís Felipe Salomão afirmou em seu voto:
Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse
104
jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, que, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado.
E, ainda, reforçou:
Não se pode, pois, nestes casos, permitir a eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último.
Dessa forma, concluiu:
O interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas.
Pode-se perceber que o fato, na época em que ocorreu, tinha
interesse público e com o decorrer do tempo continuou tendo tal interesse
em razão da relevância e notoriedade do acontecimento, mas o interesse
público prevaleceu apenas em relação ao fato em si, inexistindo interesse
público na citação do nome do autor. Então, o argumento da emissora
quando menciona a veracidade do fato, não se mantém, já que poderia
ter narrado o ocorrido sem fazer menção ao autor.
Existem, também, julgados recentes do STJ na esfera civil, veja
exemplos:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DEFAZER. PROVEDOR DE PESQUISA. DIREITO AO ESQUECIMENTO. FILTRAGEM PRÉVIA DAS BUSCAS. BLOQUEIO DE PALAVRAS-CHAVES. IMPOSSIBILIDADE. Direito ao esquecimento como "o direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado". Precedentes. Os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar
105
do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação da página onde este estiver inserido. Ausência de fundamento normativo para imputar aos provedores de aplicação de buscas na internet a obrigação de implementar o direito ao esquecimento e, assim, exercer função de censor digital. Recurso especial provido. (AGINT no RESP 1593873/SP, 2016/0079618-1, RELATORA MINISTRA NANCY ANDRIGHI, STJ – TERCEIRA TURMA, DJE – DATA: 17/11/2016). RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. 1. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. AUSÊNCIA. 2. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO CONFIGURADO. 3. PROVEDOR DE APLICAÇÃO DE PESQUISA NA INTERNET. PROTEÇÃO A DADOS PESSOAIS. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. DESVINCULAÇÃO ENTRE NOME E RESULTADO DE PESQUISA. PECULIARIDADES FÁTICAS. CONCILIAÇÃO ENTRE O DIREITO INDIVIDUAL E O DIREITO COLETIVO À INFORMAÇÃO. 4. MULTA DIÁRIA APLICADA. VALOR INICIAL EXORBITANTE. REVISÃO EXCEPCIONAL. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Debate-se a possibilidade de se determinar o rompimento do vínculo estabelecido por provedores de aplicação de busca na internet entre o nomeado prejudicado, utilizado como critério exclusivo de busca, e a notícia apontada nos resultados. 2. O Tribunal de origem enfrentou todas as questões postas pelas partes, decidindo nos estritos limites da demanda e declinando, de forma expressa e coerente, todos os fundamentos que formaram o livre convencimento do Juízo. 3. A jurisprudência desta Corte Superior tem entendimento reiterado no sentido de afastar a responsabilidade de buscadores da internet pelos resultados de busca apresentados, reconhecendo a impossibilidade de lhe atribuir a função de censor e impondo ao prejudicado o direcionamento de sua pretensão contra os provedores de conteúdo responsáveis pela disponibilização do conteúdo indevido na internet. Precedentes. 4. Há, todavia, circunstâncias excepcionalíssimas em que é necessária a intervenção pontual do Poder Judiciário para fazer cessar o vínculo criado, nos bancos de dados dos provedores de busca, entre dados pessoais e resultados da busca, que não guardam relevância para interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo. 5. Nessas situações excepcionais, o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais deverá preponderar, a fim de permitir que as pessoas envolvidas sigam suas vidas com razoável anonimato, não sendo o fato desabonador corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca. 6. O rompimento do referido vínculo sem a exclusão da notícia compatibiliza também os interesses individual do titular dos dados pessoais e coletivo de acesso à informação,
106
na medida em que viabiliza a localização das notícias àqueles que direcionem sua pesquisa fornecendo argumentos de pesquisa relacionados ao fato noticiado, mas não àqueles que buscam exclusivamente pelos dados pessoais do indivíduo protegido. 7. No caso concreto, passado mais de uma década desde o fato noticiado, ao se informar como critério de busca exclusivo o nome da parte recorrente, o primeiro resultado apresentado permanecia apontando link de notícia de seu possível envolvimento em fato desabonador, não comprovado, a despeito da existência de outras tantas informações posteriores a seu respeito disponíveis na rede mundial. 8. O arbitramento de multa diária deve ser revisto sempre que seu valor inicial configure manifesta desproporção, por ser irrisório ou excessivo, como é o caso dos autos. 9. Recursos especiais parcialmente providos. (RESP 1660168 / RJ, 2014/0291777-1, RELATORA MINISTRA NANCY ANDRIGHI, STJ - TERCEIRA TURMA, DJE - 05/06/2018).
Expressando-se sobre o tema, o Ministro Gilmar Mendes diz que
se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isto é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p.374).
O direito ao esquecimento vem ganhando espaço na
jurisprudência e doutrina brasileira, mas ainda é um tema pouco discutido
e conhecido; entretanto, há muitos julgados que analisam a fundo seus
parâmetros sem que o julgador faça menção expressa a essa doutrina.
Apesar do tema, expressamente, ser pouco discutido, ele está
entranhado nas discussões de nível constitucional.
CONCLUSÃO
O direito ao esquecimento, portanto, deve ser sempre analisado
no caso concreto e jamais deve-se esquecer de observar o interesso
público e a dignidade da pessoa humana, como também todos os direitos
107
supramencionados. O assunto, até então, está em fase de
amadurecimento, tendo ainda alguns pontos a serem decididos, como,
por exemplo, a questão da aplicação e abrangência de decisões judicias
em outras jurisdições que deve ser resolvido por acordos internacionais.
A matéria é muito interessante e instigante, fazendo com que se tenha
mais estudos e pesquisas referentes a ela, levando ao amadurecimento
do tema.
REFERÊNCIAS BRASIL, STJ. Consulta à jurisprudência. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 12 ago. 2018. MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. São Paulo: Novo Século.2017. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
108
DEMOCRACIA: UTOPIA OU REALIDADE DA ARTE DE GOVERNO PELA SOBERANIA POPULAR
José Geraldo Hemétrio1
RESUMO
Em que consiste hoje a democracia? Qual é a natureza concreta da ação democrática, qual é o conteúdo "positivo" da democracia? São esses alguns dos questionamentos propostos nesta despretensiosa pesquisa. Nela são lançadas as noções históricas da democracia, seu conteúdo original que teria partido dos gregos, principalmente de Aristóteles, sua evolução histórica certamente não linear, seus contornos atuais e do que dela pensam os brasileiros de hoje. Sempre conflituoso se mostrou o conceito de democracia, seus embates contra o elitismo e sua suposta aderência a outras ideologias. Enfoca também o presente trabalho a questão de ser a democracia de hoje formal ou substancial e qual o alcance de cada uma destas facetas, tentando-se, ao final, equalizar sua existência com os vários percalços por que passa o comportamento humano, principalmente do ponto de vista da política, chegando-se ao ponto de pensar ser uma utopia o pensar sobre a existência da verdadeira democracia.
Palavras-chave: Democracia. Evolução histórica. Ideologias. Democracia formal e democracia substancial. Comportamento humano. Plítica.
INTRODUÇÃO
O problema da Democracia, do seu conceito, das suas
características, de sua importância ou desimportância, transcende os
séculos. É algo tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas da política,
tendo sido reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira
isto é verdade, que um exame do debate contemporâneo em torno do
1 Juiz de Direito aposentado. Advogado. Professor de Direito Tributário da FADIPA.
109
conceito e do valor da Democracia não pode prescindir de uma
referência, ainda que rápida, à tradição.
Muitos já escreveram sobre a democracia, expondo seus
conceitos, seus defeitos e ambiguidades, chegando Churchil a dizer se
tratar do pior dos regimes políticos, mas que não há nenhum sistema
melhor do que a democracia.
O propósito do presente estudo é igualmente um debate sobre
esse regime ou sistema de governo, principalmente debruçando-se sobre
as distorções modernas do que seja a verdadeira democracia, mormente
em face das mudanças de paradigmas da vida neste planeta, lembrando
que houve até um estudioso brasileiro que propôs o uso do termo
“dremocracia” para tentar expressar a atual transformação da vida
humana.
Dividiu-se o trabalho em .4. itens, expondo-se uma conclusão
mais atinente ao momento brasileiro em que se vive tão delicado sistema
político.
No item 1 serão abordadas as teorias e os conceitos do assunto,
destacando-se as teorias aristotélica, medieval e moderna. Já no item 2,
comparam-se as teorias de Aristóteles e de Platão, mostrando os pontos
dissonantes entre elas. No item 3, estudam-se suscintamente os conflitos
sempre existentes entre as teorias democrático-liberal e democrático-
socialista; no item 4, destacam-se as divisões teóricas da democracia,
compreendidas na visão formal e substancial, mostrando-se as distorções
existentes entre ambas em face das peculiaridades da mudança de
paradigmas nos tempos atuais. E finalmente, faz-se uma conclusão
sucinta do que se procurou pesquisar, juntando-se a ela as referências
bibliográficas em que se apoia tal pesquisa.
1 TEORIAS E CONCEITOS
110
Na teoria contemporânea da Democracia, nas palavras de
Norberto Bobbio, confluem três grandes tradições do pensamento
político:
a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, que diz
haver três formas de Governo, segundo a qual a Democracia,
como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de
todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se
distinguindo da monarquia, como Governo de um só, e da
aristocracia, como Governo de poucos;
b) a teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania
popular, na base da qual há a contraposição de uma
concepção ascendente a uma concepção descendente da
soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se
torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por
delegação do superior para o inferior;
c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel,
nascida com o Estado moderno na forma das grandes
monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo
são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a
antiga.
Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a
aristocracia), onde se origina o intercâmbio característico do período pré-
revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o
Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de
república (a outra é a aristocracia), da qual se origina o intercâmbio
característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e
ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em
vez de Democracia, de república.
111
2 A TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA DAS TRÊS FORMAS DE GOVERNO E O PENSAMENTO DE PLATÃO SOBRE A DEMOCRACIA
Segundo Bobbio, uma das primeiras disputas de que se tem
notícia em torno das três formas de Governo é aquela narrada por
Heródoto, segundo a qual Otane, Megabizo e Dario discutem sobre a
futura forma de Governo da Pérsia, quando Otane toma a dianteira e
proclama a forma do governo popular, desfazendo os interesses dos dois
primeiros, que entendiam que esta não poderia ser preferível à
aristocracia ou à monarquia. “Como poderia a monarquia ser coisa
perfeita se lhe é lícito fazer tudo o que deseja sem o dever de prestar
contas? ´foi o argumento maior a favor da ideia do governo popular
propugnado por Otane.
Na tipologia aristotélica, que distingue três formas puras e três
formas corruptas, conforme o detentor do poder governa no interesse
geral ou no interesse próprio, sendo o “Governo da maioria” ou “da
multidão” distinto do Governo de um só ou do de poucos, o chamado
Governo “política”, enquanto o nome de Democracia é atribuído à forma
corrupta, sendo a mesma definida como o “Governo de vantagem para o
pobre” e contraposta ao “Governo de vantagem para o monarca, a saber,
a tirania, ou mesmo o “Governo de vantagem para os ricos”, ou seja, da
oligarquia.
Já em Platão, das cinco formas de governo descritas por ele, na
República, aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia e tirania, para
Platão, só uma delas, a aristocracia, é boa. Da Democracia, se diz que
“nasce quando os pobres, após haverem conquistado a vitória, matam
alguns adversários, mandam outros pra o exílio e dividem com os
remanescentes, em condições paritárias, o Governo e os cargos públicos,
sendo estes determinados, na maioria das vezes, pelo sorteio”. O mesmo
Platão, além disso, reproduz na sua obra Político a tradicional tripartição
112
das formas puras e das formas degeneradas e a Democracia é aí definida
como o “Governo do número”, “Governo de muitos” ou “Governo da
multidão”. Para Platão, a Democracia é considerada a menos boa das
formas boas e a menos má das formas más de Governo.” E acrescenta:
“Sob todo o aspecto é fraca e não traz nem muito benefício e nem muito
dano, se a compararmos com outras formas, porque nela estão
pulverizados os poderes em pequenas frações, entre muitos. Por isso, de
todas as formas legais, é esta, no dizer de Platão, a mais infeliz,
enquanto entre todas as que são contra a lei, é a melhor.
O que se mostra de concreto entre os pensamentos platônico e
aristotélico, sobre as formas de governo, é que, a tripartição aristotélica,
salvo poucas exceções ou variações, foi acolhida em toda a tradição do
pensamento ocidental, destacando-se entre seus defensores nada menos
que Marsílio de Pádua, São Tomás de Aquino, Bodin, Hobbes, Rousseau,
Kant e Hegel.
3 OS CONFLITOS ENTRE DEMOCRACIA LIBERAL E DEMOCRACIA SOCIALISTA
Ao longo de todo o século XIX, e porque não dizer, arrastando-se
para os séculos que se seguiram (XX e XXI) a discussão em torno da
Democracia se foi desenvolvendo principalmente através de um confronto
com as doutrinas políticas dominantes no tempo, o liberalismo de um lado
e o socialismo do outro.
No que se refere à relação de concepção liberal do Estado, o
ponto de partida foi o célebre discurso de Benjamim Constant, pensador e
político francês de origem suíça, que, escrevendo sobre A liberdade dos
antigos comparada com a dos modernos, afirmou que “a liberdade dos
modernos é a liberdade individual em sua relação com o Estado, ou seja,
aquela liberdade de que são manifestações concretas as liberdades civis
113
e a liberdade política. Já a liberdade dos antigos, que a expansão das
relações tornou impraticável e até danosa, é a liberdade entendida como
participação direta na formação das leis através do corpo político cuja
máxima expressão está na assembleia dos cidadãos. Identificada a
Democracia propriamente dita sem outra especificação, com a
Democracia direta, que era o ideal do próprio Roussseau, foi-se
afirmando, através dos escritores liberais, de Constant e Tocqueville e
John Stuart Mill, a ideia de que a única forma de Democracia compatível
com o Estado liberal, isto é, com o Estado que reconhece e garante
alguns direitos fundamentais, entre os quais o da liberdade (de
pensamento, de religião, de imprensa, de reunião, etc) fosse a
Democracia representativa ou parlamentar, em que o dever de fazer leis
diz respeito, não a todo o povo reunido em assembleia, mas a de um
corpo de representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são
reconhecidos direitos políticos.
Em geral, a linha de desenvolvimento da Democracia nos regimes
representativos pode figurar-se basicamente em duas direções, a saber:
a) no alargamento gradual do direito do voto, que inicialmente era restrito a uma exígua parte dos cidadãos com base em critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo e que depois se foi estendendo para todos os cidadãos de ambos os sexos que atingiram um certo limite de idade, no chamado sufrágio universal; b) na multiplicação dos órgãos representativos, que, num primeiro tempo se limitaram a uma das duas assembleias legislativas e, depois se estenderam, aos poucos, à outra assembleia, compostas dos poderes locais. Em uma e em outra direção, o processo de democratização, que consiste no cumprimento cada vez mais pleno do princípio-limite da soberania popular, se insere na estrutura do Estado liberal, que prevê garantias.
Em suma, o que se percebe ao longo de todo o curso de um
desenvolvimento que chega até nossos dias, é que o processo da
democratização, tal como se desenvolveu nos Estados hoje chamados de
114
democratas-liberais, consiste numa transformação mais quantitativa do
que qualitativa do regime representativo. Neste contexto histórico, a
Democracia não se apresenta mais como alternativa ao regime
representativo, mas é o seu complemento, o que exige dizer que se
existe uma Democracia, esta só poderá ser representação e não na
forma direta, como queria Rousseau.
3.1 Democracia e Elitismo
A crítica que de um lado o liberalismo faz à Democracia direta e a
crítica que, de outro lado, o socialismo move à Democracia
representativa, são conscientemente inspiradas em certos pressupostos
ideológicos relacionados com diversas orientações ligadas aos valores
últimos.
Uma crítica não ideológica mas científica, pelo menos na
temática, da parte dos teóricos das minorias governamentais, ou como
seriam chamados mais tarde os personagens das elites pelos seus
ideólogos mais contundentes , entre estes Mosca e Pareto, seria que,
segundo tais escritores, “no regime representativo a classe política seria
aquela de uma minoria de pessoas que deteria o poder político, mas que
em assim acontecendo, só poderia ser tal classe política formada por
membros da oligarquia. Assim foi criada a chamada teoria das elites, cuja
propagação é atribuída a Pareto, segundo a qual em toda a sociedade há
uma classe “superior” que detém geralmente o poder político e o poder
econômico, à qual se deu o nome de “aristocracia” ou Elite, que deveria
ser o poder governante, em frente aos demais que seriam os governados.
3.2 Características Positivas e Negativas da Teoria Elitista
115
Não obstante as divergências que dividem os defensores da
teoria das Elites, pode-se indicar a título de conclusão, alguns traços
comuns que servem para distinguir esta teoria que há dezenas de anos
representa uma tendência constante na ciência política: São as seguintes
as características apontadas por Bobbio:
1) em toda sociedade organizada, as relações entre indivíduos ou grupos que a caracterizam são relações de desigualdade; 2) A causa principal da desigualdade está na distribuição desigual do poder, ou seja, no fato de que o poder tende a ficar concentrado nas mãos de um grupo restrito de pessoas.
O que se pode acrescentar, de resto, sobre tal questão histórica,
vem das palavras de Karl Mannheim, numa análise feita nos anos 1930,
quando afirmou que: “A Democracia não implica que não haja Elites:
implica sim um certo princípio específico de formação das elites.” E
afirmava ainda que “este princípio, juntamente com o princípio de
igualdade de todos os homens é o da autonomia dos indivíduos, uma das
características fundamentais da democracia moderna.
Sempre sábias são as palavras de Norberto Bobbio a respeito do
tema, ao dizer que: “como tema realista da política, ela (teoria das Elites)
mantém firme a tese segundo a qual o poder pertence sempre a uma
minoria e a única diferença entre um regime e outro está na presença de
minorias em competição entre si. Ideologicamente nascida como reação
contra o advento da sociedade de massas e, portanto, não só contra a
democracia formal, a sua principal função histórica, mais do que
esgotada, foi a de denunciar, de vez em quando, as sempre renascentes
ilusões de uma democracia integral, que não tem como subsistir”
4 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL
116
Analisando a polissemia que existe em torno do nome
“Democracia”, Norberto Bobbio assevera que na teoria política
contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição
democrático-liberal, as definições de Democracia tendem a resolver-se e
a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo de regras de jogo, ou,
como também se diz, de procedimentos universais. Este seriam os
procedimentos considerados universais para um regime democrático, os
quais poderiam ser considerados elementos formais de uma Democracia:
1) O órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro e de segundo grau; 2) junto ao supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto igual; 5) todos os eleitores devem ser livres para votar segundo a próprio opinião, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter mais alternativas; 7) tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições; 9) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo.
Certamente nenhum regime histórico jamais observou
inteiramente o ditado de todas estas regras; e, por isso é lícito falar de
regimes mais ou menos democráticos. Pode afirmar-se somente que um
regime que não observa nenhuma delas não é certamente um regime
117
democrático, pelo menos até que se tenha definido o significado
comportamental de Democracia.
Já para a Democracia do tipo substancial, Bobbio discerne ser
aquele regime
que se refere aos resultados do processo, aos fins a serem alcançados.
Aqui se destaca, em primeiro lugar, a existência efetiva - e não somente
em tese - da igualdade jurídica e política dos cidadãos. Ao mesmo tempo,
deve-se levar em conta também as desigualdades econômicas, que
deveriam ser as menores possíveis.
4.1 Distorções modernas a respeito da vida democrática em face das
mudanças de paradigmas da existência humana
No seu uso descritivo, por democracia os antigos entendiam a
democracia direta, os modernos, a democracia representativa. Quando
falamos de democracia, a primeira imagem que nos vem à mente é o dia
das eleições, longas filas de cidadãos que esperam a sua vez para
colocar o voto na urna.
Para os antigos a imagem da democracia era completamente
diferente; falando de democracia eles pensavam em uma praça ou então
em uma assembleia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles
mesmos as decisões que lhes diziam respeito. “Democracia” significava o
que a palavra designa literalmente: poder do Demos e não como hoje,
poder dos representantes dos demos.
Um dos maiores teóricos da democracia moderna, - Hans Kelsen
-, considera elemento essencial da democracia real (não da democracia
ideal que não existe em lugar algum), o método da seleção dos líderes,
ou seja, a eleição. Exemplar a esse respeito as palavras de um membro
da Corte Suprema dos Estados Unidos por ocasião da eleição de 1902:
118
“A cabine eleitoral é o templo das instituições americanas, onde cada um
de nós é um sacerdote, ao qual é confiada a guarda da arca da aliança e
cada um é oficial do seu próprio altar.”
Montesquieu não faz ideia do que seriam as democracias dos
nossos dias. Hoje, “democracia” é um termo que tem uma conotação
fortemente positiva. Não há regime, mesmo o mais autocrático, que não
goste de ser chamado de democrático. Se as ditaduras existem, existem
apenas, como dizem os autocratas, com o objetivo de restaurar o mais
rápido possível a “verdadeira” democracia, que deverá ser, naturalmente,
melhor do que a democracia suprimida pela violência. Ao contrário, no
tradicional debate sobre a melhor forma de governo, a democracia foi
quase sempre colocada em último lugar, exatamente em razão da sua
natureza de poder dirigido pelo povo ou pela massa, ao qual foram
habitualmente os autocratas que atribuíam os piores vícios da
licenciosidade, do desregramento, da ignorância, da incompetência, da
insensatez, da agressividade, da intolerância. A democracia nasce,
segundo clássica passagem, da violência e não pode conservar-se senão
através da violência.
A respeito desta concepção, basta recordar a descrição feita por
Platão no oitavo livro da República, quando afirma que é da
desagregação social da qual é responsável o governo popular; um
modelo para tirarmos de todos os tempos, cuja tarefa é restabelecer a
ordem, ainda que a ferro e fogo. Aristóteles não fica atrás: na distinção
entre formas de governo, afirma que existem as formas de governo boas
e formas de governo más e o termo “democracia” servia para designar o
mau governo popular.
Nos tempos de hoje, a democracia se distanciou da forma como
dela pensavam os escritores antigos.
119
Falando sobre tais aspectos de se classificar a Democracia e do
avançar de seu significado, afirma Bolivar Lamounier, “A maioria dos
cidadãos parece sonhar com o bônus de viver na sociedade, mas sem o
ônus de sujar as mãos na desagradável malha de que a atividade política
por toda parte se reveste. Na versão popularmente mais difundida,
democrático seria o país em que só coisas boas acontecessem. Onde a
pobreza extrema não existisse, as desigualdades de renda fossem
toleráveis e a riqueza nacional produzida a cada ano fosse suficiente para
assegurar o bem-estar de todos. Tal sociedade seria quase isenta de
conflitos, possibilitando um consenso básico a respeito da maioria das
questões; a política não distaria muito de se transformar na mera
administração dos sonhos roussseaunianos.
Nesse país ideal, o propalado divórcio entre o Estado e a
sociedade ou entre representantes e representados, não ocuparia
diariamente as manchetes dos jornais; ao contrário, entre esses dois
polos prevaleceria quase sempre uma estreita comunhão de
entendimentos e sentimentos. Uma pena tal democracia ter, quando
muito, a duração de um sonho, como na ilha denominada Utopia, por
Tomas Morus. De fato, existe atualmente no debate latino-americano uma
tendência a imaginar a vida democrática como um marco zero da teoria
de Rousseau ou da teoria de John Rawls, os quais enxergam na vida
democrática um contrato igualitário instantâneo e simultâneo de todos
com todos.”
Ora, a democracia não pressupõe a igualdade social; ela nasce
em sociedades desiguais, se fortalece e ganha raízes à medida que
trabalha ou corrói essa estratificação preexistente. Nunca existiu uma
democracia que tenha se iniciado numa sociedade marcadamente
igualitária. Todas tiveram início num combate renhido com a íngreme
estratificação das sociedades preexistentes. Visto de outra forma, a
120
democracia não se configura depois da solução dos conflitos, mas à
medida que os grupos contendores aquiescem em tentar equacioná-los
de maneira pacífica, submetendo-os a um jogo eleitoral periódico, com
regras claras e previamente estipuladas.
“Não chego ao extremo”, afirma Lamounier,
de afirmar que a política inexista em regimes totalitários – comunismo ou fascismo – mas nesses casos o conceito deve ser aplicado com extrema cautela. Neles, a política não se apresenta na configuração aberta e pública típica das democracias; e muito menos como uma atividade limitada quanto a fins e meios, dada a inexistência de garantias institucionais capazes de impedir irrupções de violência e terror, quase sempre patrocinadas pelo próprio Estado. (...)
Carecendo de autonomia e diferenciação, o conjunto de
interações que denominamos política, existe apenas como uma atividade
descontínua ou intermitente, ao contrário dos regimes liberal-
democráticos, nos quais ela adquire efetivamente a densidade e a
estabilidade de um subsistema.
CONCLUSÃO
Perto de completar um quarto de século depois de ter sido
restabelecida no Brasil, a democracia é o regime político preferido por
mais de 2/3 dos cidadãos brasileiros. O significado desse fato para a
história política contemporânea do país não pode, no entanto, ser bem
compreendido se não se levar em conta que, em mais de um século de
regime republicano, os brasileiros experimentaram as virtudes do regime
democrático em apenas dois períodos de duas décadas cada, ou seja,
entre 1946 e 1964 e, mais recentemente, entre 1988 até o presente. Fora
desses curtos períodos de tempo, predominaram no país, durante a maior
parte do século XX, sistemas políticos oligárquicos, autoritários ou
semiliberais que, por definição, não asseguravam as liberdades
121
fundamentais, a competição política, a participação popular ou os direitos
de cidadania.
A experiência de pesquisas de opinião e de atitudes políticas
mostra que, ao serem interrogadas sobre o que pensam do conceito de
democracia, as pessoas comuns podem mostrar-se com frequência
hesitantes ou mesmo perplexas diante de um estímulo que não é usual
em sua vida cotidiana. Em tal situação, não é incomum os entrevistadores
obterem como primeira reação afirmações como "Eu não sei bem, preciso
pensar mais...", para depois ouvirem um comentário complementar como
"Eu acho que é uma coisa importante..." ou "Acho que precisamos
dela...", recebendo respostas tópicas ou incompletas. Em sentido
semelhante, Dalton, Shin e Jou (2007) lembraram, recentemente, em um
texto dedicado ao exame do "entendimento da democracia em lugares
improváveis", que em 1989 um estudante chinês que participava das
famosas manifestações antiautoritárias na praça de Tiananmen portava
um cartaz com a mensagem: "Eu não sei o que significa democracia, mas
sei que precisamos dela".
Firmando o pensamento no significado da expressão dada pelo
estudante chinês, o que se pode concluir é que os resultados relatados
até aqui mostram que, ao contrário das expectativas pessimistas, a maior
parte dos brasileiros tem ideias definidas sobre a democracia como o
regime ideal.
O estudo e os dados mostram que, diferente do que pensam os
céticos, a maior parte dos brasileiros é capaz de definir a democracia em
termos que envolvem duas das mais importantes dimensões do conceito,
isto é, por um lado, o princípio de liberdade e, por outro, os
procedimentos e estruturas institucionais. Pesquisas diversas já
mostraram que as respostas majoritárias sobre a democracia, envolvendo
as liberdades e os procedimentos do regime, são influenciadas pela
122
atenção dos entrevistados às notícias políticas na TV, mas ao mesmo
tempo, por valores políticos, como a rejeição de alternativas autoritárias,
o reconhecimento do papel das instituições de representação, o interesse
pela vida pública e a participação política. Pessoas comuns, mesmo em
ambientes não inteiramente favoráveis, sabem definir a democracia e
essa definição está associada, por uma parte, com o seu apoio normativo
ao regime, isto é, aos ideais que ele envolve e, por outra, com as
expectativas que ele suscita a respeito do desempenho prático de suas
instituições.
A percepção razoavelmente sofisticada dos cidadãos brasileiros
sobre a democracia pode servir de base para iniciativas de pressão sobre
o sistema político no sentido da reforma das instituições de
representação. Por último, a preocupação com a corrupção também
mostra que existe uma demanda sobre o desempenho das instituições
encarregadas da responsabilização de políticos e governos. Para um país
cuja experiência democrática é relativamente recente, esses sinais não
são de pouca importância. Quando se ouvem ou se leem as críticas
contra estes ou aqueles membros da classe política ou de algum outro
órgão que detém poder de decisão, nada mais se está a fazer senão o de
exercer o direito de um cidadão livre, que pode manifestar o seu direito de
opinião. O que, contudo, não é lícito fazer é agredir, no mais agudo
significado de tal expressão, visto que agredir não é só por ato físico, mas
também com o uso da palavra. É nisso que reside o direito de liberdade
de expressão, expressão que, por meio verbal, somente pode ser usada
de forma a não agredir, e agredir, todos sabemos, seja de forma física ou
de forma verbal, é sempre um ato ilícito,(calúnia, injúria, difamação) bem
distante do princípio de tolerância às diferenças preconizadas pelo mais
legítimo regime democrático.
123
REFERÊNCIAS BOBBIO, Noberto. MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 2.ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1989. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Campus, 2000. BOLÍVAR, Lamounier. Liberais e antiliberais, a luta ideológica do nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 144. MOISES, José Álvaro. Os significados da democracia segundo os brasileiros. Opin. Publica, Campinas, v. 16, n. 2, p. 269-309, nov. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0104-62762010000200001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 03 jul. 2019.
124
ECOLICITAÇÃO: O COMPROMISSO SUSTENTÁVEL DAS LICITAÇÕES
Fernanda Lau de Paula1
Adriana Spagnol de Faria2
RESUMO As preocupações com o meio ambiente não podem orbitar somente no plano contemplativo. A tomada de medidas sustentáveis é imperiosa e urgente. Sustentabilidade é princípio constitucional e, assim, tem eficácia imediata, sendo cogente o dever de todos, Estado e coletividade, de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. É nesta concepção que insurge o conceito de licitação sustentável, indicando rumo a uma Administração mais consciente. A licitação, a partir da nova redação dada ao artigo 3º da Lei nº 8.666/93 pela Lei nº 12.349/2010, ganha novo objetivo a ser obrigatoriamente cumprido simultaneamente com isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. A licitação assume, pois, vestes de ferramenta de política pública, chamando para a Administração o dever de, através daquela movimentar a máquina econômica nacional com os menores reflexos ambientais negativos possíveis, com o escopo de garantir o bem-estar de todos, presentes e futuros. Palavras-chave: Sustentabilidade. Desenvolvimento sustentável. Licitação. Licitação sustentável. Ecolicitação.
INTRODUÇÃO
A imprescindibilidade de uma postura racional e protecionista ao
meio ambiente perante as ações antrópicas é incontestável. Somos todos
inexoráveis integrantes de um grande sistema, com o qual estamos
1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Mestre em Direito Internacional pela PUC/MG, Advogada e Professora de Direito
Ambiental da Faculdade de Ipatinga - FADIPA.
125
integralmente conectados, o maior e mais antigo que qualquer outro
complexo havido no planeta: o ecossistema.
Para o bem de sua própria existência, não pode o homem
descompensar o sistema do qual ele depende de forma direta e no qual
ele mesmo está inserido, provocando perdas irreparáveis a este, como
uma doença autoimune. É imperiosa a conscientização ética, jurídica,
social e ambiental, para que se possa pôr em prática condutas que visem
ao equilíbrio do ecossistema, garantindo a ele saúde e vida digna às
gerações futuras. As preocupações com o meio ambiente não podem
orbitar somente no plano contemplativo.
Assim é que a sustentabilidade se evidencia urgente necessidade
mundial. “Trata-se de vetor que tem o condão de recalibrar o modo de
pensar e gerir o destino comum”, nos clarividentes termos de Juarez
Freitas (2016, p. 15). A Constituição Federal de 1988 não se descuidou
disso: a sustentabilidade é princípio axiológico de nosso ordenamento
jurídico. E como tal, ela vincula, impondo a todos o dever de proteger e
assegurar às gerações presentes e futuras o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Frise-se: dever de todos, coletividade e Estado. Assim, todos nos
vinculamos à sustentabilidade, sendo, ainda, o desenvolvimento nacional
sustentável obrigação da qual a Administração não pode fugir.
E qual seria, então, a relevância das licitações neste cenário?
A resposta a esta pergunta revela-se no desenvolver deste
estudo. O presente artigo se destina – como o próprio nome indica – a
enfatizar o compromisso sustentável das licitações, elucidando a relação
que o procedimento administrativo guarda com o dever constitucional da
sustentabilidade.
2 SUSTENTABILIDADE – UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
126
Sustentabilidade é um princípio constitucional, cogente e com
caráter multidimensional – com dimensões social, ética, jurídico política,
econômica e ambiental – que impõe ao Estado e à sociedade, com
eficácia direta e imediata, a responsabilidade pela concretização solidária
do desenvolvimento em seus diversos níveis, socialmente inclusivo,
durável e equânime, com vistas à garantia do bem-estar a gerações
presentes e futuras (FREITAS, Juarez, 2016, p. 43).
Assim, o Legislador Constituinte, com brilhantismo, ao elaborar a
CF/88, não desprezou o conceito de sustentabilidade e a emergente
necessidade de sua aplicação.
Neste sentido, preleciona Pedro Lenza que a CF/88:
(...) foi o primeiro texto a trazer, de modo específico e global, inclusive em capítulo próprio, regras sobre o meio ambiente, além de outras garantias previstas de modo esparso na Constituição, destacando-se os seguintes artigos: 5º, LXXIII (instrumento de tutela ambiental); 20, II a XI, e § 1º.(bens da União); 23, I, II, III, IV, VI, VII, IX e XI (competência administrativa, comum, cumulativa ou paralela, atribuída em relação aos quatro entes federativos: União, Estados, DF, e Municípios); 24, VI, VII, VIII e XII (competência legislativa concorrente); 26, I,II e III (bens dos Estados); 30, VIIIe IX (competência privativa enumerada); 91, § 1º., III (atribuição do Conselho Nacional de Defesa); 129, III (função institucional do MP para a promoção do inquérito civil e o ajuizamento da ACP); 170, VI (princípio da ordem econômica); 174, § 3º. (organização da atividade garimpeira e cooperativas); 176, § 1º. (recursos minerais e potenciais de energia hidráulica); 186, II (função social da propriedade rural); 200, VIII (meio ambiente do trabalho); 216, V (patrimônio cultural brasileiro); 220, § 3º., II (comunicação social e proteção ambiental); 225 (proteção, de modo específico e global, do meio ambiente); 231, §§ 1º. e 3º. (índios) etc. (LENZA, 2013, pp. 1292/1293)
Arrazoa Bernardo Gonçalves Fernandes (2014, p. 602) que não
obstante o meio ambiente ecologicamente equilibrado seja definido
constitucionalmente como direito da ordem social, pode-se afirmar que é,
também, um direito difuso por excelência, uma vez pertencente às
gerações do presente e às futuras, mostrando cunho transindividual.
127
O estudioso acrescenta, em referência às sábias palavras de José
Afonso da Silva, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado:
(...) de princípio conformador da ordem econômica, tem seu conteúdo ampliado, quando se reconhece que, além de um fator da produção, é a proteção do meio ambiente uma condição essencial para o livre desenvolvimento das potencialidades do indivíduo e para a melhoria da convivência social. Assim, inobstante não inserido no título II da Constituição Federal, deve-se considerar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado no art. 225, é, sem sombra de dúvida, um direito fundamental, porque é uma prerrogativa individual, cuja realização envolve uma série de atividades públicas e privadas, produzindo não só a sua consolidação no mundo da vida como trazendo, em decorrência disto, uma melhoria das condições de desenvolvimento das potencialidades individuais, bem como uma ordem social livre. (SILVA, 2005, p. 314, apud FERNANDES, 2014, p. 602-603)3
Por sua vez, Paulo de Bessa Antunes (2015, p. 65) pondera
sabiamente que o sistema de proteção ao Meio Ambiente ultrapassa as
meras disposições esparsas do texto constitucional. Segundo o
entendimento do renomado doutrinador, foi somente na Carta vigente que
se buscou sistematizar a sustentabilidade nos diferentes dispositivos
constitucionais, inserindo norma constitucional ambiental num complexo
amplo, onde ela intercepta normas de natureza econômica e de direitos
individuais.
Estendendo ainda mais o horizonte da sustentabilidade para além
do aspecto tridimensional, Freitas (2016, p. 67) assevera que o
desenvolvimento constitucionalmente pretendido e repetido em todo o
texto da CF/88, inclusive no preâmbulo e no artigo 3º, como objetivo
fundamental – é sistêmico e multidimensional, envolvendo não só os
crescimentos social, econômico e ambiental, como também os
desenvolvimentos ético e jurídico-político.
3 SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 314.
128
Conforme discorre Sueli Padilha (2011, p. 753), a inauguração da
sistemática proteção ao equilíbrio ambiental imposta pela CF/88, ao
apontar um novo panorama ético-jurídico e político-econômico, serviu de
esteio para o desenvolvimento do ramo Direito Ambiental, com objetos e
princípios próprios.
Esta área do Direito, em que pese não explicite detalhadamente
na lei o conceito de “sustentabilidade” e “desenvolvimento sustentável”
nem mesmo estabeleça requisitos para a sua aplicação, pontua Milaré
(2014, p.72-73), consagra ambas as expressões, porquanto a Carta
Magna e todo o conjunto de legislação infraconstitucional e decretos
regulamentadores sobre o meio ambiente evidenciam o emprenho do
legislador e do administrador público com a preservação ambiental.
Assim, como sopesa o aludido doutrinador de Direito do Ambiente, a
questão é de hermenêutica, na medida em que todo o ordenamento
jurídico brasileiro visa à conservação do meio ambiente.
O artigo 225, da CF/88, institui importante regra no campo
obrigacional entre o poder público e a sociedade, fazendo-os compartilhar
o direito e o dever de defender e preservar o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, erigido como um direito fundamental, para
que possa ser usufruído pelas futuras gerações. Nesta baila, a
sustentabilidade é traduzida como direito fundamental que gera
obrigações, inclusive a salvaguarda do direito ao futuro das próximas
gerações (CARVALHO, 2014).
Nesta senda, sensata a afirmação de que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, na qualidade de direito fundamental, possui
aplicabilidade imediata, por força do artigo 5º, § 1º, vinculando de forma
imediata as entidades públicas e privadas. Não se olvida, ainda, que tais
direitos figuram no topo do ordenamento jurídico constitucional,
denotando cláusulas pétreas, uma vez inseridas no rol do artigo 60, § 4º,
129
o que inviabiliza a supressão pelo Poder Constituinte e as coloca no topo
do ordenamento jurídico constitucional (PADILHA, 2011).
Ademais, a sustentabilidade, como um instrumento principiológico
constitucional, destina-se a assegurar o desenvolvimento intra e
intergeracional. Aliás, impossível se falar em sustentabilidade sem fazer
alusões a outros princípios, posto que se mostra um conceito sinérgico e,
nas palavras de Freitas, “é entendido em consórcio indissolúvel” com
demais princípios, tais como a precaução e a prevenção, que, por sua
vez, guardam relação com o princípio do poluidor-pagador, sempre tendo
em vista resguardar o meio ambiente ecologicamente equilibrado às
futuras gerações.
Nota-se, com este raciocínio, que a sustentabilidade guarda
desvelo com o princípio da solidariedade intergeracional, revelando-se
transcendental, na medida em que visa a garantir no presente a
perenidade de um direito para o futuro, o que realça uma ideia de
continuidade. E esta continuidade implica ainda, necessariamente, na
ininterrupção de obrigações impostas pelo princípio da sustentabilidade,
limitando o uso irracional dos recursos ambientais e o descaso com o
meio ambiente, numa flagrante aplicação prática do corriqueiro ditado
popular de que “o direito de um termina onde nasce o do outro”.
Ressalta José Salvador P. Araújo (2013, p. 302) que a postura
enfática da Constituição Federal na defesa dos direitos fundamentais
impõe o zelo pelas temáticas ambientais, afinal de contas, “parece
inócuo, ou contraditório, defender direitos básicos e, ao mesmo tempo,
aceitar o desrespeito ao habitat humano”. Daí a prima relevância do
princípio da sustentabilidade.
Uma vez que o meio afeta a sociedade, a sustentabilidade está
também intimamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana
130
e da igualdade. Wilkinson e Pickett (2009), citados por Freitas4 (2012, p.
3), observam: “iniquidade causa danos à sociedade inteira. Comparam
pessoas de mesma renda, educação ou classe, entre vários países, e
constatam, não por acaso, que apresentam melhor saúde (inclusive
mental) aquelas que vivem em sociedade menos desiguais.”
Forçoso afirmar que a sustentabilidade se atrela, também, ao
princípio ambiental do desenvolvimento sustentável, haja vista que aquela
impõe a necessidade de repensar e reorganizar os processos
econômicos. Neste contexto, Lenza (2013, p. 1290) levanta como
problemática o aparente embate na inter-relação entre o direito ao meio
ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e o direito ao
desenvolvimento.
Preleciona o ilustre constitucionalista que é justamente a
sustentabilidade a resposta a este aparente conflito de valores,
observando-se a garantia do direito ao desenvolvimento, mas sem que se
deixe de privilegiar a preservação dos direitos fundamentais.
A partir de então emerge o princípio universal, voltado a toda a
sociedade e ao Poder Público e notoriamente consagrado pela vigente
Constituição Federal: o princípio do desenvolvimento sustentável.
3 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O conceito de desenvolvimento sustentável não é antigo.
Publicado em 1987, o Relatório Brundtland (também chamado Nosso
Futuro Comum) e elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento da ONU, conceituou desenvolvimento
sustentável como “aquele que atende às necessidades do presente sem
4 WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. The Spirit Level: why greater equality makes
societies stronger. New York: Bloomsbury Press. 2009.
131
comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas
próprias necessidades” (1991, p. 46). O documento diz mais:
Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas. (1991, p. 49).
Hodiernamente, fala-se perseverantemente na ideia de
desenvolvimento sustentável. Para Édis Milaré, citado por Lenza (2013, p.
1290)5, a causa dos holofotes voltados para o consagrado
desenvolvimento sustentável é a relação que este conceito guarda com o
de desenvolvimento econômico, que, como observa o constitucionalista,
se revelam aparentemente controversos.
Contudo, conforme aduz o ilustre doutrinador de Direito Ambiental
citado na obra de Lenza, ambos os conceitos harmonizam-se e
complementam-se, podendo-se afirmar que a união destes consiste em
processo contínuo de planejamento que se atenta às questões
ambientais e atende às exigências legais de ambos os valores,
considerando-se, ainda, todo o contexto sócio-cultural, político,
econômico e ecológico.
Afinal, a política ambiental não significa objeção ao
desenvolvimento. É possível, portanto, conciliar a ideia de
desenvolvimento sustentável e crescimento econômico, entendendo-se
que a sustentabilidade é uma necessidade, mais do que mera escolha
(ARAÚJO, 2013, p. 312).
Neste diapasão, a Constituição Federal de 1988 determina, em
seu artigo 170, caput e inciso VI, que a ordem econômica, além de ser
fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem
5 MILARÉ, Édis. Tutela jurisdicional do meio ambiente, RT 676/49-50.
132
como finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observada, além de outros princípios, a defesa do meio
ambiente.
Também a Lei nº 6.938/81, que concebe a Política Nacional do
Meio Ambiente, prevê, em seu artigo 4º, inciso I, que visará “à
compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a
preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.
Portanto, parece coerente dizer que o princípio do
desenvolvimento sustentável não limita o desenvolvimento econômico,
mas restringe, tão somente, a utilização irracional e desenfreada de
recursos naturais na atividade econômica, ao passo que impõe,
reciprocamente, o respeito tanto ao progresso econômico quanto ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, revelando uma justa medida entre
os aspectos econômicos e ambientais, sem perder de vista os contextos
sociais, posto que inseridos no meio ambiente e, assim, afetados por
ambos os aspectos.
As sanções premiais ofertadas pelo Estado a empreendimentos
que cumpram requisitos impostos a fim de controlar a utilização de
insumos e a emissão de poluentes em troca de incentivos fiscais, reforça
o entendimento acima estampado. A título de exemplo, a regulamentação
do mercado de carbono, como bem lembram Vasconcellos e Garcia
(2008, p. 42), é um meio pelo qual os governos têm tentado propor um
desenvolvimento econômico com proteção ao meio ambiente.
Afinal, como pondera Meneguin, Consultor Legislativo do Senado,
em feliz comentário acerca do tema: “É essa a lógica dos pressupostos
da economia verde: proporcionar os corretos incentivos aos agentes
econômicos para garantir o desenvolvimento sustentável”. Ou seja, o
desenvolvimento sustentável relaciona-se com o princípio do protetor-
recebedor, que, como ensina Milaré (2014, p. 272-273), “mira premiar as
133
condutas ambientais virtuosas para reverter os processos de destruição e
utilização desenfreados dos bens da natureza”.
Como assevera Torres (2017, p. 29), o princípio do
desenvolvimento sustentável foi homenageado, ainda, pela Lei nº
12.349/2010 - que alterou a redação da Lei nº 8.666/93 -, ao incluir a
“promoção do desenvolvimento nacional sustentável” como finalidade da
licitação pública.
Neste sentido, a Lei nº 12.349/2010 impôs à administração
pública o dever de observar o princípio da sustentabilidade nos atos de
compra de produtos e serviços, inserindo na Lei nº 8.666/93 o
desenvolvimento nacional sustentável como um dos objetivos da licitação.
Afinal, não é difícil imaginar que o Governo é um potencial
consumidor de produtos e serviços. Desta forma, para a estudiosa, o
Gestor Público, ao exigir maior comprometimento com a sustentabilidade
em suas ações licitatórias, instiga o cuidado por parte dos fornecedores
com os efeitos ambientais que seus produtos e serviços poderiam refletir.
Destarte, não se pode negar aos processos de licitação o
relevante e fundamental papel de garantir a efetivação do princípio
ambiental do desenvolvimento sustentável, lançando-se mão do princípio
da sustentabilidade. Neste contexto, nasce o conceito de licitação
sustentável.
4 LICITAÇÃO 4.1 Breves considerações
Ab initio, insta tecer algumas considerações. Primeiramente, não
se pode perder de vista que o Direito Administrativo acolheu, do Direito
Ambiental, os princípios da precaução e prevenção. Neste sentido, são
sapientes as palavras de José dos Santos Carvalho Filho (2014, p. 40-
41):
134
Atualmente, o axioma tem sido invocado também para a tutela do interesse público, em ordem a considerar que, se determinada ação acarreta risco para a coletividade, deve a Administração adotar postura de precaução para evitar que eventuais danos também acabem por concretizar-se. Semelhante cautela é de todo conveniente na medida em que se sabe que alguns tipos de dano, por sua gravidade e extensão, são irreversíveis ou, no mínimo, de dificílima reparação.
Portanto, a compreensão de que o ordenamento jurídico brasileiro
consagra à sustentabilidade, notadamente na Carta Magna, como já
sopesado neste estudo, é determinante para concluir que o Direito
Administrativo não poderia ser negligente com tal raciocínio, de forma a
considerar, também, os princípios sustentabilidade, desenvolvimento
sustentável, meio ambiente ecologicamente equilibrado, prevenção e
precaução nas tomadas de decisões e posturas da Administração.
Isso porque, afinal de contas, o artigo 225 da Constituição Federal
impõe não só à coletividade, mas também ao Poder Público, a defesa e
preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito de
todos, seja as presentes ou futuras gerações.
Nesta senda, entendendo como uma obrigação com o fim de
contribuir na perduração do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a
sustentabilidade, o desenvolvimento sustentável, a prevenção e
precaução devem ser considerados pela Administração Pública em todas
as suas ações, como bem assinala Juarez Freitas (2013, p. 340), num
horizonte intertemporal, vinculando-se, obrigatoriamente, a estes
princípios na atividade de gerenciamento público.
A segunda consideração a ser traçada é a de que não se precisa
de muito esforço para imaginar que a Gestão Pública, com as compras e
contratações públicas, tipifica grande consumidor de bens e serviços.
A respeito, Laura Silvia Valente de Macedo, diretora do
Departamento de Produção e Consumo Sustentáveis (DPCS), que
135
integra a Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental
(SAIC) do Ministério do Meio Ambiente, descreveu, no 6º Fórum da A3P,
o Governo como um dos consumidores de grande escala.
E qual a correlação que este fato guarda com a licitação e a
sustentabilidade? Esta correlação é o que se apreciará nos subtópicos
seguintes, passando, em primeira análise, pelo conceito e princípios da
licitação e, na sequência, ao estudo individualizado da licitação
sustentável.
4.2 Conceitos e princípios
Da necessidade de se criarem mecanismos com vistas a evitar
que o administrador, por motivos egoísticos e de forma arbitrária,
imponha suas próprias escolhas na gestão pública, o que prejudicaria o
interesse coletivo, surgiu a licitação (CARVALHO FILHO, 2014, p. 237).
Nesta acepção, dispõe supracitado autor que a licitação, “sendo
um procedimento anterior ao próprio contrato, permite que várias pessoas
ofereçam suas propostas, e, em consequência, permite também que seja
escolhida a mais vantajosa para a Administração”.
A Lei Federal nº 8.666/1993, que, conforme pontua Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (2015, p. 410), já passou por copiosas alterações6,
“institui as normas para licitações e contratos da Administração Pública e
dá outras providências”, regulamentando o artigo 37, inciso XXI, da
Constituição Federal.
A licitação se descreve, assim, como procedimento administrativo
formal e obrigatório, destinado – e, portanto, prévio – à seleção da melhor
proposta apresentada à administração pública, objetivando efetivar o
6 Di Pietro apresenta as Leis que alteraram a redação da Lei 8.666/1993. São elas: Leis nº
8.883/1994, 9.648/1998, 9.854/1999, 10.438/2002, 10.973/2004, 11.079/2004, 11.107/2005, 11.196/2005, 11.445/2007, 11.481/2007, 11.484/2007, 12.349/2010, 12.440/2011, 12.715/2012 e Lei Complementar nº 147/2014.
136
princípio constitucional da isonomia, a proposta mais vantajosa para a
administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Nas palavras de Di Pietro (2015, p. 408), aproveitando
indiretamente o ensinamento de José Roberto Dromi (1975, p. 92)7, a
licitação pode ser definida como:
(...) procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato.
Carvalho Filho (2014, p. 238) conceitua licitação como
“procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes da
Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor
proposta entre as oferecidas pelos vários interessados”, cuja natureza
jurídica é de “procedimento administrativo com fim seletivo”. Vinculado
porque, explica o doutrinador, trata-se de sequência ordenada de
atividades; “fixadas suas regras, ao administrador cabe observá-las
rigorosamente” (2014, p. 239).
Como alicerces da licitação, Di Pietro (2015, pp. 413-429)
enumera uma série de princípios. São eles: igualdade, legalidade,
impessoalidade, moralidade e probidade, publicação, vinculação ao
instrumento convocatório, julgamento objetivo, adjudicação compulsória,
ampla defesa e licitação sustentável.
Este último, como muito bem asseverado por Juarez Freitas
(2016, p. 244), surge como “elemento-chave do novo Direito
Administrativo (norteado, concomitantemente, pelo direito fundamental à
boa administração e pelo princípio constitucional da sustentabilidade)”.
7 DROMI, José Roberto. La Licitación pública. Buenos Aires: Astrea, 1975.
137
4.2 Licitações sustentáveis
Se ainda restavam dúvidas sobre a vinculação da Administração
Pública ao princípio da sustentabilidade, ceticismo este inadmissível, haja
vista a consagração incansavelmente demonstrada no presente estudo,
inclusive em sede constitucional do referido princípio, em especial
quantos às aquisições públicas, a Lei nº 12.349/2010 pôs fim à celeuma,
impondo novo objetivo das licitações, a ser obrigatoriamente alcançado
concomitantemente com a observância do princípio da isonomia e a
seleção da proposta mais vantajosa: a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável.
De modo consciente, a Lei Federal em comento, advinda da
Medida Provisória 945/2010, alterando o artigo 3º da Lei nº 8.666/1993,
traçou o novo objetivo das licitações, a ser obrigatoriamente alcançado
concomitantemente com os demais, com o escopo de atender aos
anseios sociais, econômicos e ambientais, prosperando a economia, sem
perder de vista a minoração dos danos ao ecossistema, para que este
seja garantido também às gerações futuras. A Lei 12.349/2010
estabeleceu, pois, um novo paradigma para as compras públicas: a
ecolicitação ou licitação sustentável.
Assim, a concepção de proposta mais vantajosa para a
Administração Pública passou por imperiosa ressignificação, deixando de
ser aquela de menor preço ou a de predileção do administrador,
passando pelo indispensável filtro da sustentabilidade, de forma a impor a
busca pelo progresso econômico nacional que atenda da melhor forma
possível ao bem-estar social e ambiental, evitando-se desperdícios nos
empreendimentos, para assegurar também às futuras gerações a fruição
de um ambiente ecologicamente equilibrado, que lhes proporcione
condições de se desenvolverem em todos os aspectos.
138
Em outras palavras, citando Freitas (2016, p. 246), “o melhor
preço é aquele que implica os menores impactos e externalidades
negativas e os maiores benefícios globais”.
Neste sentido, para a apuração daquelas propostas mais
interessantes à administração pública, ressalta Hamilton Antônio Coelho
(2013, p. 92), que os participantes do concurso público de aquisições de
bens e serviços para a Administração ficam sujeitos, a qualquer tempo, à
observância de boas práticas ambientais, ainda que tenham cumprido as
especificações técnicas e que os requisitos não tenham sido detalhados
no instrumento convocatório, haja vista que sua efetivação decorre do
dever legal, com base na obrigação de promover a defesa e a proteção
do meio ambiente, a todos imposta, nos termos do art. 225, caput, da
CF/88.
Evidente que, para tanto, consoante destaca o supracitado
estudioso, os critérios socioambientais devem relacionar-se diretamente
ao interesse público, seja no âmbito social, econômico ou ambiental, com
a ressalva de que devem ser passíveis de cumprimento pelo fornecedor
médio, considerando-se o atual estágio da arte nas técnicas envolvidas,
pelo princípio da razoabilidade.
Todavia, isto não significa dizer que a Administração deve ser
complacente com o descomprometimento dos fornecedores em buscar
novas tecnologias e novos métodos de exercer as suas atividades, eis
que a promoção do desenvolvimento nacional sustentável deve ser
buscada pela Administração pautando-se no princípio da eficiência.
Ora, a sustentabilidade, como princípio constitucional, vincula. E,
após expressamente determinada como distinta finalidade das licitações,
evidencia-se, nas palavras de Freitas (2016, p. 250), “incontornável
obrigação legal e constitucional”.
139
Dessa forma, a Administração não pode se evadir de analisar,
durante todo o processo licitatório, inclusive na execução do serviço, qual
produto ou serviço dentre os oferecidos geram menores impactos
ambientais, ou seja, como assinala Coelho (2013), que geram menos
resíduos sólidos, têm maior durabilidade e ensejem consumo mínimo de
água e energia na fabricação e no consumo final e, ainda, que detêm a
possibilidade de reciclagem ou de reutilização e descarte de materiais.
A atuação da Gestão Pública nas instaurações de procedimentos
licitatórios vai além. Tereza Villac, Advogada da União, no “Manual
Implementando Licitações Sustentáveis na Administração Pública
Federal” (2013, p. 19/20), pontifica que a licitação, a partir do momento
em que passa a ser sustentável, torna-se instrumento para viabilização
das políticas públicas, porquanto a adoção de medidas sustentáveis
devem se destinar, não somente às contratações, como, também, à
gestão ambiental como um todo, em seus diversos setores,
implementando-se mecanismos de educação e conscientização
ambiental dos servidores públicos. Isto permitiria, aos olhos de Villac, que
os servidores públicos que atuam nos setores de licitações concebessem,
com mais naturalidade, a licitação como aparelho jurídico para a
promoção do desenvolvimento sustentável.
Trata-se de gestão pública socioambiental, conforme elucida no
referido manual, citando como exemplo o programa de adesão voluntária
da Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P), que integra a
licitação sustentável como uma de suas linhas de ação, lançando mão de
temáticas como o uso racional de recursos, a gestão adequada dos
resíduos, qualidade de vida no trabalho, sensibilização e capacitação dos
servidores.
Deveras, conforme pondera Villac com brilhantismo, ao se criar
maior familiaridade e contextualização da sustentabilidade das licitações,
140
por permitir “visão sistêmica e integrada das problemáticas
socioambientais no setor público”, acarretam-se resultados mais efetivos.
Ademais, a postura exigida à Gestão Pública é crucial não só à
eficiência ambiental, mas, também, à axiomática função indutora aos
interessados em serem fornecedores de produtos e serviços à
Administração.
É que, ao se estabelecerem critérios sustentáveis a serem
alcançados pelos fornecedores de produtos e serviços destinados à
Administração, o mercado acaba por ser induzido a se adaptar às
condutas sócio e ambientalmente adequadas. De forma voluntária, os
empreendedores vão assumindo posturas sócio e ambientalmente mais
desejáveis, contextualizando-se num sistema mais sustentável e, de
modo gradativo, tornando o mercado também mais consciente.
Como sabiamente coloca Freitas (2016, p. 242-243), “a postura
constitucionalmente apropriada consiste em incentivar a sociedade a
assumir maior protagonismo, estimulando-a a construir padronizações
voluntárias de sustentabilidade”.
A licitação sustentável é, portanto, inegavelmente um instrumento
jurídico de efetivação do desenvolvimento sustentável, na medida em
que, além de contratar com fornecedores mais alertas a cuidados
ambientais, estimula uma gama de outros empreendedores que
eventualmente se interessem em contratar com a Administração Pública,
minorando-se em consequência os efeitos ambientais indesejáveis.
Ainda, a naturalização de uma postura sócio e ecologicamente mais
consciente poderia criar um ambiente social mais intolerante com o
descompromisso daqueles que eventualmente permanecerem irracionais.
Isto nos leva a crer, por fim, que o Direito Administrativo vem, aos
poucos, dialogando mais intensivamente com os princípios
constitucionais ambientais, voltando-se, ainda que timidamente, como
141
pondera Freitas (2016, p. 273-274), a uma “gestão pública participativa,
transparente, redutoras de assimetrias e eficaz densificadora do princípio
da sustentabilidade, que assim haverá de imantar, no Século XXI, as
relações de administração em sua totalidade”.
CONCLUSÃO
O que se pode extrair como suma conclusiva do exposto é que,
na progressiva contextualização do princípio da sustentabilidade no
ordenamento jurídico e na consciência coletiva, o Direito Administrativo
não fica de fora, abraçando também os princípios originários do Direito
Ambiental.
Porquanto o Estado se reconhece na figura de ostensivo aquisitor
de produtos e serviços e compreende os efeitos socioambientais da sua
postura no maquinário econômico, assumindo para si a responsabilidade
de repensar e reestruturar os seus padrões de consumo.
Destarte, melhor maneira não há para a Administração Pública
aplicar, nas próprias relações consumeristas, suas concepções
sustentáveis do que através das licitações, haja vista que é este o meio
constitucional e legal para aquisições públicas.
Neste sentido, forçoso dizer que a inclusão da promoção do
desenvolvimento nacional sustentável vincula a Administração, exigindo a
prima releitura da “proposta mais vantajosa”, devendo os fornecedores
seguir rigorosamente critérios ambientalmente sustentáveis, caso se
interessem em contratar com a Gestão Pública.
Verifica-se que tal finalidade das licitações infunde em todo o
sistema administrativo a assimilação da sustentabilidade como parâmetro
a ser incansavelmente adotado, ante a concepção de que sua
inaplicabilidade resulta infortúnios de esfera ética, ambiental, econômica,
jurídica e social.
142
Sustentabilidade e desenvolvimento não envolvem conceitos
conflitantes. Ao contrário, regulam-se. E o desenvolvimento sustentável
confirma esta premissa. Assim é que a defesa do meio ambiente constitui
princípio também da ordem econômica (artigo 170, VI, da CF/88).
Conclui-se, desta forma, que a sustentabilidade não é afronta ao
desenvolvimento. Longe disso. Somente limita os meios de produção e
execução na atividade econômica, a fim de que sejam minorados os
danos ambientais, garantindo a possibilidade de desenvolvimento
também das gerações futuras.
Constata-se, ademais, que o esforço sustentável administrativo
perante as licitações revela forma indutora de adequação do mercado a
especificações ambientais, na medida em que estimula cada
empreendedor, eventualmente interessado na contratação com a
Administração Pública, a desenvolver suas tecnologias e melhorar seus
serviços com vistas à redução dos impactos negativos de suas
atividades.
E, assim, gradativamente, a cultura sustentável vem se inserindo
na consciência individual e coletiva, limitando o egoísmo voraz da
economia desmedida, tornando intrínseco o senso de que quando se
degrada o ecossistema, macula-se a própria fonte da vida.
A licitação se traduz, pois, em essencial instrumento de efetivação
de políticas públicas destinadas ao inadiável compromisso de contribuir
para sustentar a economia, o ecossistema e o bem-estar das presentes e
futuras gerações.
REFERÊNCIAS
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143
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145
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146
A PROLIFERAÇÃO DO DISCURSO DE ÓDIO, UM PROBLEMA DE ETICIDADE COM REFLEXOS JURÍDICOS
Marcilei do Carmo Nogueira Fazollo1
Breno Inácio da Silva2
RESUMO O presente trabalho discute um problema recorrente e preocupante na atualidade brasileira que é a proliferação de discursos de ódio nas redes sociais, que se configura não só como espaço de disputa de poder como também como espaço de exacerbação da violência. O Espaço virtual não se consagra como democrático, ao contrário, é extremamente excludente e seletivo, onde a convergência é uma exigência para a convivência na forma de “amigos” que é a denominação das relações ali desenvolvidas. O Direito encontra grande dificuldade para regular o convívio no ambiente virtual e com isso apresenta dificuldade em alcançar o estabelecimento de punições a muitas condutas ilícitas ali verificadas. A questão é que nem sempre o que ocorre no ambiente virtual, embora pareça inadequado, nem sempre encontra tipificação penal. Vemos nestes modelos de interações (virtuais), uma disputa por regulação entre a moral e o Direito. Palavras-chave: Ambiência virtual. Moral. Direito. Discurso de ódio.
1 AMBIENTES VIRTUAIS PARA CONVÍVIOS REAIS, MUDANÇAS NO PARADIGMA RELACIONAL
Estamos experimentando há alguns anos uma nova forma de
convívio social que se desenvolve pela via virtual, por meio de
dispositivos tecnológicos, especialmente smartphones, portanto sem
necessariamente contatos físicos ou pessoais, que difere muito do
formato historicamente utilizado pela humanidade.
1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Ipatinga – FADIPA. 2 Especialista em processo pela PUC-MINAS. Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela
UGF-Rio. Doutorando pela Unisinos. Advogado. Professor da Pós-graduação da FADIVALE. Professor de Direito Processual Penal e Ciência Política na Faculdade de Ipatinga - FADIPA.
147
Esta nova forma de “convívio” é intensa, mas não enseja a
presença dos seus interlocutores, passando então a haver um processo
interacional em uma ambiência remota, em grande parte fictícia. Afirma-
se fictícia porque já se constatou que nem sempre as pessoas se
apresentam na ambiência virtual como elas são de fato, em seu cotidiano.
Logicamente, ao longo do desenvolvimento humano temos
relacionamentos desenvolvidos com convivências remotas, com
distâncias físicas consideráveis, e de certo modo também virtual, por
exemplo, por cartas, que em dadas situações levavam meses para
alcançar seu destino. Mas neste modelo ainda predominavam as relações
interacionais presenciais.
Porém, a marca do modelo de convívio atual é a intensidade do
contato, que é diário, próximo em sentido e expressões, constante,
mesmo que à distâncias físicas extraordinárias, e curiosamente, a
intensidade impressa a estas interações sociais não significa
necessariamente que as pessoas sejam íntimas umas das outras, pois
muitas vezes elas sequer se conhecem presencialmente.
Assim, de certo modo, se verificam muitas vezes serem contatos
com maior grau de intimidade justamente porque a distância física, o
contato virtual permite um mascaramento das atitudes, dos valores, da
própria imagem das pessoas. Neste universo virtual, se pode ser outro,
escondendo o eu concreto.
Esta ambiência virtual se materializa no uso das redes
comunicacionais da internet, que tem nas redes sociais, o chamado
campo dos amadores. É nesse campo que se situa a análise deste texto,
um circuito interacional em que as pessoas podem tanto ser elas mesmas
como o são na intimidade, ou serem outras pessoas assumindo papéis
sociais diversos, e por vezes antagônicos ou ambíguos. No espaço das
148
redes sociais, os indivíduos são ao mesmo tempo produtores e
receptores de sentidos e de informação com os mais diversos conteúdos.
Neste circuito de comunicações interpessoais temos uma intensa
circulação de valores, de sentidos, de afetos que uma vez lançados neste
espaço virtual, vão gerar o que Fausto Neto (2010) chama de feedbacks
complexos, já que seus desdobramentos e retornos são imprevisíveis e
não controláveis, podendo assumir qualquer direção, mesmo uma
diametralmente oposta à proposição original da ideia posta em circulação.
Isto quer dizer que ao se colocar em pauta um tema qualquer, não
se sabe o percurso a ser feito pela circulação dos comentários nas redes
sociais e a partir deles outras construções também podem surgir e que
nada tem a ver com a ideia primeira.
Um exemplo concreto disso é ver um assunto ser levado à
ambiência do facebook e as pessoas começarem a comenta-lo. É
frequente se perceber que no percurso da discussão a temática se perde,
se transforma, se submete a um processo de constante ressignificação,
porém, uma realidade tem perpassado com constância esta forma de
convivência, a violência!
Na ambiência virtual, tem-se um cenário em que a prática de
ilícitos civis e criminais se torna facilitada não só porque as pessoas
podem expressar-se sem revelar para o mundo como ela juridicamente é
reconhecida, se escondendo em perfis falsos, também sentindo-se
protegida por perceber-se fisicamente distante dos seus interlocutores, ou
ainda pela dificuldade natural e lógica que o Direito tem de regular estas
operações e convívios no ambiente virtual, estando sempre vários passos
atrás da evolução tecnológica.
Um aspecto destas práticas, entretanto, ganha destaque na
presente análise, que é o uso destes circuitos midiatizados para proliferar
a intolerância, o ódio tornando as redes sociais um espaço de
149
amplificação de violências simbólicas e concretas. Das de práticas de
disseminação de discursos de ódio emergem práticas de ilícitos penais
contra a honra das pessoas como a difamação, a injúria e a calúnia,
outras vezes crimes contra a liberdade individual, como a ameaça, dentre
outros tantos.
Ao ingressarmos em qualquer perfil de rede social é possível
visualizar em grande parte deles que se tornou uma rotina a prática de
infrações penais, o que não significa dizer que as pessoas ali ingressam
com esse propósito. A impressão que revela, ante a naturalidade dos
discursos permeados de violência, é de que ocorre em certa medida uma
banalização da conduta agressiva, uma naturalização das ações delitivas.
Evidentemente essa naturalização não afasta o caráter ilícito das
ações praticadas pelos indivíduos, mas esclarece que nestas interações o
que ressalta é a intenção de ofender, de criticar, de se colocar em
oposição a um discurso tal ou qual, ainda que não se compreenda a
substância de tais discursos. Trata-se, portanto, de uma disputa por
poder e não de uma enxurrada de práticas delituosas pura e
simplesmente.
2 A AMBIÊNCIA VIRTUAL COMO ESPAÇO PLURAL, LÓGICAS QUE DIFICULTAM A REGULAÇÃO
A ambiência virtual conta com circuitos comunicacionais diversos
como o facebook, o instagram, e o twitter, para citar apenas os mais
conhecidos. Este universo é conhecido como o mundo dos amadores,
como no texto de Flychi (2016), pelo fato de que lá, os indivíduos se
tornam especialistas nos mais variados temas, com condição de se
manifestarem em condição de igualdade, e aqui igualdade não significa
uma avaliação de substancia, tratando-se apenas de igualdade pelo
acesso, uma vez que os amadores podem ou não ser especialistas em
150
algo sobre o que falam, e podem ou não pertencer aos mesmos nichos
sociais, intelectuais ou círculos de amizades, mas dispõem do mesmo
acesso aos dispositivos que lhes colocam nas ambiências virtuais.
O ambiente virtual tornou-se um importante fragmento da esfera
pública, onde podemos ser vistos, interagir, atuar, sermos ativos ou não,
enfim, podemos ser parte de uma realidade maior.
O que se está fazendo na conduta de postar mensagens na
ambiência do facebook, ou do twitter, por exemplo, é trazer para a esfera
pública elementos da intimidade, ou daquilo que pertencem em primeiro
plano ao indivíduo. Mas isto é também uma necessidade das pessoas
diante da importância dos feedbacks da esfera pública. Na obra de
Hannah Arendt, a condição humana, ao tratar da diferenciação entre
espera pública e privada, informa a filósofa que “a presença de outros
que veem o que vemos, e ouvem o que ouvimos, garante-nos a realidade
do mundo e de nós mesmos. (p.59)”
A utilização destes espaços públicos, e desta nova realidade no
Brasil está impactando as noções de democracia, de política, de
interações, ensejando um novo olhar sobre o comportamento social.
O Brasil é formalmente um Estado de modelo Democrático, e se
diz formalmente porque no campo da concretude, a democracia demanda
comportamentos muito distantes dos que são praticados na vivência
diária, como por exemplo, exige um exercício constante de tolerância e
cessão de espaço para a pluralidade, para a divergência e nem mesmo
os cidadãos ainda compreenderam ao certo a extensão do sentido da
democracia no Brasil.
Ao se consagrar como a “Constituição Cidadã” em 1988, nossa lei
fundamental abriu espaço para a proteção também da livre e igual
participação na vida coletiva, a Ágora (espaço público) deve receber a
todos para o debate. Tanto assim que previu em seu artigo 5º, inciso IV,
151
como sendo um direito fundamental de todo cidadão a liberdade de
manifestação do pensamento, sendo apenas vedado que se fique
anônimo ao expressar-se. Desta forma, opinar é relevante e divergir é
natural e necessário às interações sociais.
Viver em um modelo em que se exige convergência estrita, é
optar pelos modelos ditatoriais, restritivos da liberdade individual em favor
da onipotência do Estado. Moraes (2009, pág. 120), analisa a liberdade
de expressão em face da noção de democracia, afirmando que
a liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais da sociedade democrática e compreende não só as informações consideradas inofensivas, indiferentes, como aquelas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo.
Este propósito Constitucional se fia, sem dúvida, na elaboração
contida no pacto de San José da Costa Rica, a Convenção
Interamericana dos Direitos Humanos, de 1969, que em seu artigo 13
apresenta orientações importantes acerca do exercício do
direito/liberdade de expressão, conforme de pode extrair de sua leitura:
Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na
152
difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
Este fato social, expressar-se, ganha status de direito pelo fato de
que opinar é importante pelo senso de pertença ao grupo, promove a
localização dos indivíduos no mundo, lhe dá visibilidade e
reconhecimento perante o outro e isso nos importa como seres sociais
que somos.
Além disso, participar dos debates, diálogos dos diversos campos
sociais (a escola, a Igreja, a política, o bar, a família e todos os outros) faz
também parte de um interessante, tanto quanto sedutor jogo de disputa
por poder, aqui entendido como poder simbólico.
As leituras do sociólogo Pierre Bourdieu, fazem vislumbrar no
Campo Social um espaço interacional dos indivíduos que se constitui por
uma constante disputa por poder que se baseia em uma luta por
reconhecimento. Os atores sociais a todo o tempo buscam consagração
nos seus meios, perante os seus.
Como o ambiente virtual das redes sociais é conduzido pelos
“likes”, pelas “curtidas” como mecanismos de regulação e mediação das
relações que impulsionam a participação dos amadores nos mais
variados debates, é muito evidente o comportamento não democrático
destes participantes. As explicações de Bourdieu sobre as disputas por
poder simbólico nos campos esclarece esta lógica comportamental.
Como?
Veja-se que, o indivíduo consagrar a si mesmo não expressa
qualquer valor. Então, ao se lançar uma postagem no campo virtual, a
exposição tem o sentido de aguardar a consagração externa, ou seja, dos
outros, dos participantes do debate. Independente de que eles explicitem
textualmente ou de forma justificada seu apoio, bastando assinalar a
153
curtida pela pressão ao botão do ícone da “curtida, pouco interessando
que ele tenha lido o conteúdo que se publicou.
Então, se a consagração no ponto em que Bourdieu chama de
distância social zero (você mesmo se avaliar) não tem valor, a curtida, por
outro lado, é positiva e necessária como instância de reconhecimento e
consagração. Se houver comentário que complemente a postagem feita,
tanto melhor. Só não terá serventia e cabimento, o comentário divergente,
não havendo, inclusive, muita tolerância com esta prática.
É neste ponto da participação que o rumo das coisas ganha um
contorno preocupante e seu viés antidemocrático sobressai.
Fácil localizar no facebook, tanto quanto no twitter ou instagram, a
postagem de alguém sobre qualquer tema polêmico, vez que esses
circuitos têm sido utilizados também, e em grande medida para esta
finalidade. Pensemos no assunto do momento, a questão política, que
desperta como poucos assuntos, sentimentos muito intensos.
Observando um perfil no facebook, identificou-se o caso de uma
pessoa que publicou um comentário em que apoia determinado ponto de
vista, ou ação de um político, ou qualquer outra questão pouco mais
polêmica, e instantaneamente se inicia o processo de participação. A
pessoa titular do referido perfil, a certa altura dos comentários
repercutidos a partir de sua postagem emitiu a seguinte resposta a uma
pessoa: “não sou obrigada a tolerar suas ideias retrogradas. preciso
excluir pessoas assim. Obrigada de nada”3.
Esta resposta proferida pela pessoa que deu origem ao debate foi
dada à pessoa que aparece na décima quinta posição comentando sua
3 Esta expressão foi retirada de um perfil do facebook de uma mulher que postou seu apoio
ao comentário de determinado político, no mês de agosto deste ano e que por não ter dado permissão para sua publicação neste texto, a cópia do post não aparecerá. Ocorreram 31 manifestações de concordância à sua postagem, e 7 em sentido contrário, com críticas, sendo que duas delas, mais agressivas, com ofensas pessoais desconectadas do conteúdo da conversa. A autora afirmou ter excluído 5 das sete pessoas, e in box, admitiu que as outras duas não excluiria porque eram familiares.
154
fala. Até aquele ponto, como havia manifestações concordantes, a autora
permaneceu sem alterações em sua fala e sem se contrapor a ninguém,
entretanto, ao receber a fala dissonante, o diálogo se complexificou
cedendo espaço a agressões e ofensas mútuas, culminando com a
exclusão de tal pessoa, pela autora da postagem.
Observa-se então, que a prerrogativa de excluir pessoas do perfil
de “amigos” funciona como um dispositivo de regulação das interações
sociais neste circuito de comunicação da ambiência virtual, porque pela
exclusão se pode impor limite à participação dos outros, assim como
funciona também como um dispositivo de mediação dos comportamentos
porque pode impactar nas condutas e participações dos demais atores
daquele ponto em diante.
No centro destas relações sociais turbulentas, como se disse logo
acima, está a atratividade pela participação, seja como for, ainda que de
forma agressiva, porque estar em público lança luzes sobre a própria
existência. Novamente recorrendo à filósofa Hannah Arendt, na discussão
sobre a esfera pública, forçoso recortar um fragmento de sua explicação:
Uma vez que a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência, e, portanto, da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir da treva da existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública. (ARENDT, 2004, p. 60)
E prossegue a autora, o que a esfera pública considera
irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e contagiante que todo
um povo pode adota-lo como modo de vida, sem com isso lhe alterar o
caráter essencialmente privado. (ARENDT, 2004, p. 61)
Mas estas realidades também revelam que vemos nas relações
virtuais um espaço claro de constituição de relações homofílicas, em que
são feitas escolhas por ideologias, gostos, empatias e outros sentimentos
de convergência, criando uma espécie de bolha, ilhas de isolamentos
155
grupais. Por mais que pareça controverso o uso da expressão, é
exatamente isso. Formam-se grupos por interesses comuns, que se
isolam entre si e só admitem a participação dos convergentes, ou seja,
fica evidenciado que não se trata de um espaço de consagração da
participação democrática, e nem mesmo da tolerância à divergência. O
convívio possível neste circuito é aquele que se predispõe à
convergência.
O discurso imoderado nas redes socias é recorrente. A
intolerância tornou-se a tônica dos diálogos. Igualmente comum, é que a
partir desses diálogos surjam também crimes como calúnias, difamações,
ameaças, causa-se dano à moralidade dos outros, e isso também se dá
porque temos uma disposição facilitada ao julgamento das condutas
alheias.
Como se perceberá em leitura adiante (item 5), este campo
tecnológico, por suas lógicas e formas de operação, estabelece graves
dificuldades para que o campo jurídico estabeleça formas claras de
regulação.
3 A VIOLÊNCIA TAMBÉM EXPRESSA VALOR DE PODER SIMBÓLICO NAS REDES SOCIAIS
De um modo geral se percebe um interesse do público por
notícias, temas e discussões polêmicas, controversas, violentas, a
constatar por exemplo pelos elevados índices de audiência televisiva de
programas cujo jornalismo privilegia o sensacionalismo, a
espetacularização da violência e dos dramas humanos, das mazelas
individuais e coletivas.
Há uma troca muito clara na relação entre a atividade midiática e
as repercussões nas redes sociais, onde o senso comum se expressa. O
que a grande mídia faz na verdade, não é lançar temas para provocar a
156
construção de sentidos, no senso comum, na verdade, o que ela faz é
reforçar as compreensões já existentes no senso comum. Daí o porquê
de se reportar aquilo que interessa ao público, ou seja, o que já se sabe
antecipadamente o que lhes interessa.
Não se pretende afirmar que a mídia não seja capaz de formar
opinião e atribuir sentidos às coisas e aos fatos. Claro que a atividade
midiática gera afetações no contexto social e também mobiliza sentidos.
O que a atividade midiática não consegue estabelecer é, segundo
Luhmann (2011), o suporte ético da sociedade, ou mudar a moral dos
indivíduos para uma direção ou outra, tratando-se apenas de reproduzir
aquilo que já está estabelecido socialmente.
A mídia social é uma realidade da contemporaneidade e também
tem potencialidade de afetar formação de opiniões e ao final se percebe
que a busca é pelo julgamento moral dos participantes, sem aliar-se as
técnicas hermenêuticas conhecidas pelos estudiosos do direito, até
porque, este espaço de avaliação e julgamento não obedece à
legalidade, não se restringe, ao contrário, emerge desta ambiência
vácuos normativos que favorecem o comportamento anômico.
Diversas são as situações constantemente postadas em redes
sociais, em que informações/acusações, verdadeiras ou falsas, acabam
por denegrir e, em muitas vezes, condenar moralmente alguém,
independente de que se tenha instaurado qualquer processo judicial, com
a devida análise probatória para a aplicação das regras jurídicas,
assegurando a ampla defesa e o contraditório à pessoa de quem se fala.
Estas exigências constitucionais regulam a participação dos cidadãos,
mas apenas tem vigência no espaço do processo judicial, no campo
jurídico, enquanto neste espaço de interações virtuais, as relações não
encontram legislação capaz de regular com clareza e objetividade seus
desdobramentos.
157
Nesse diapasão, quando se cogita das decisões judiciais julgando
ilícitos criminais oriundos das redes sociais, as decisões dos magistrados
devem ser dotadas de autonomia e liberdade, alinhando-se a técnica
hermenêutica, recomendando-se imparcialidade objetivando maximizar o
alcance do resultado do trabalho desenvolvido, conduzindo-se com isso a
busca da “acepção de justiça” que é traduzida na “palavra direito”.
Até por isso, pela obediência à lei, é que a classe jurídica não
pode ser coagida a aplicar as normas de direito em favor da comoção
social, do acirramento dos debates, devendo postar-se de forma
imparcial, buscando coerência nas decisões judiciais. Os juízes,
promotores e advogados não podem ser intimidados por aplicar
corretamente técnicas hermenêuticas e interpretativas do direito.
Nessa troca entre a atividade midiática e as manifestações das
redes sociais, acentua Niklas Luhmann (2011, p. 58) que:
Eles são capazes de prender a atenção, uma vez que deixam no ar uma incerteza. Não se sabe quem vai ganhar ou perder. Pode-se tentar adivinhar – palpites são possíveis e bem-vindos. Esse é o objetivo: fazer o espectador participar, interessar-se. Contudo, o resultado do conflito fica em espera. E “isso provoca tensão”. Quanto mais tempo for possível manter essa tensão, tanto melhor – mais tempo o espectador ficará ligado.
Ora, isso pode justificar por exemplo a profusão de notícias e
postagens falsas nas redes sociais, que claramente tem o interesse de
efetivar as provocações acima descritas.
É nestas interações que se verifica então uma disputa por poder
simbólico, dominação sobre o pensar, sobre as ações, promovendo
dirigismo e limitação à liberdade ao agir humano no que toca à sua
liberdade de expressão do pensamento.
As pessoas também se satisfazem em se sentirem juízes das
questões e angústias expostas no tecido social. É relevante aparecer nas
158
redes qualificando algo como imoral, e principalmente, ser apoiado nesta
afirmação e obter a consagração de seu campo.
Tem relevo nos embates sociais os julgamentos morais, e poder
dizer que A ou B agiram certo, errado, foram bons ou maus, realiza o
desejo pela crítica, pela avaliação.
Emerge então uma noção de que quanto mais “curtido” foi o meu
post, mais relevo eu tenho porque o curtir expressa o reconhecimento,
mesmo que para isso, caiba na prática insultar, agredir ou cometer
qualquer sorte de abusos contra o direito do outro.
Assim, o que o campo comunicacional oferta ao estudo no campo
jurídico, são os caminhos para a compreensão sobre a circulação dos
sentidos nos meios sociais e toma-se esse conceito de circulação como
expresso em Rosa (2017), ao prescrever que a circulação, constitui-se
em um espaço interacional que expressa valor, uma vez que, entrando o
real (aqui representando apenas a ideia de fato social) em circulação,
ocorre uma atribuição de valores, justamente porque tal fato social é
visivelmente tido pelos participantes das interações, como algo relevante.
Diz a autora:
a circulação se constitui como um espaço de atribuição de valor. Obviamente não se trata de um espaço físico, isolado e autônomo, mas de um processo de reconhecimento de um valor, pois as imagens só seguem novos circuitos se forem percebidas como significativas e relevantes. (p. 13)
Logo, constituindo-se a violência nas redes virtuais como um
mecanismo de geração de valores, a prática de discursos odiosos,
violentos, racistas, sexistas ou de qualquer conteúdo agressivo é
permeada por uma lógica de reconhecimento que legitima o uso da
violência neste espaço. O sentido desta afirmação não é, evidentemente,
buscar a possibilidade de validação ou legitimação do uso da violência no
espaço virtual, mas apenas que se está tratando das lógicas intrínsecas
159
ao uso das redes virtuais, viabilizador das ocorrências das disputas
odiosas vistas por lá.
Para ilustrar, se uma pessoa é contra a prática do aborto em uma
gestação e faz uma postagem a respeito, e dela decorre um expressivo
número de comentários de apoio a esta postagem, mesmo que o
conteúdo desses comentários expresse enorme grau de violência contra
quem é a favor do aborto, eles acabam por legitimar, no campo do
reconhecimento, a posição de quem fez a postagem. Neste ponto,
estabelece-se uma relação estreita, tanto quanto nociva entre a violência
e o uso da liberdade de expressão.
Esse espaço de legitimação, porém, compromete visivelmente as
interações sociais, além de constituírem em diversos casos, senão na
maioria deles, como práticas criminosas que necessitam se melhor
reguladas.
4 COMO TOLERAR O INTOLERANTE? UMA DISPUTA ENTRE A MORAL E A NORMATIVIDADE
Neste contexto virtual de conflitos reais, é razoável que uma
pessoa ou grupos intolerantes reclamem em seu favor ou sua defesa, a
tolerância de outrem? Este tema conduz à leitura de John Rawls, em sua
obra Uma teoria da justiça em que no tópico 35, o autor discute o tema
lembrando que a tolerância encontra em sua oposição, a intolerância, um
dos principais motivos de divisão de pessoas, classes e países em todo o
mundo, como se conheceram na história oposições binárias e redutoras
como nazismo/facismo e católicos/protestantes, atraindo o discurso para
o radicalismo e para os pontos extremos.
Destaque-se que ao tratar da intolerância, Rawls (2002) se refere
especificamente à intolerância/tolerância religiosa, mas as lógicas de seu
160
conteúdo podem ser claramente aplicadas à outras formas e fatos
sociais.
Um problema com o qual, seguramente nos deparamos é que no
modelo de sociedade em que estamos inseridos neste momento da
história, torna-se improvável que consigamos em algum tempo, mesmo
que longo, implementar uma sociedade efetivamente justa e tolerante.
Para Rawls não pode um intolerante, reclamar da intolerância de
outrem para consigo, especialmente se ele percebe que na posição do
outro, atuaria de igual forma. Mas trata-se de situação de resolução difícil.
Porém, em se tratando da ocorrência de uma prática criminosa
que atente contra o direito de quem quer que seja, ainda que seja de um
intolerante, ele não poderá ser desamparado pelo Direito, ficando à
mercê da própria sorte, isso porque o erro por ele cometido pode explicar
as motivações do cometimento do erro pelo outro mas não o justificam
em todos os casos de forma irrestrita, mas apenas excepcionalmente.
Assim, sendo um intolerante vítima de outra pessoa igualmente
intolerante, terá ele direito à proteção estatal, porque o crime, mesmo que
nas ações penais privadas interessam sobretudo ao Estado, posto que é
ele o detentor não só do direito de punir, mas do dever da estabilidade
coletiva pela imposição da regra.
Uma possibilidade para o intolerante que teve contra si a prática
de outro intolerante, na esteira da Teoria da Justiça de Rawls seria, em
situações específicas promover contra ele moderada medida de restrição.
Neste ponto, ter-se-ia então justificada a postura de excluir do perfil
aquele que se manifesta contra minhas opiniões. Será uma medida
razoável, neste sentido, embora não pareça democrática, já que ao
colocar em acesso público o pensamento, estamos sujeitos às
contradições. Fato é que as ideias de justo e democrático não
necessariamente se compatibilizam neste caso.
161
Mas seguramente será mais fácil recepcionar e aceitar a postura
antidemocrática da exclusão do divergente, quando essa divergência
contiver risco à segurança daquele contra quem se divergiu, ou que o
tenha ofendido de forma criminosa, até porque, a exclusão em si é menos
grave do que a prática criminosa perpetrada.
É possível vencer a intolerância, mas isso precisa se dar pela
persuasão argumentativa, jamais pela intolerância, pela violência, mas
isso demanda como se disse acima, uma reconstrução da eticidade
social.
Esta postura de tolerar deveria ser estimulada e implementada a
bem da estabilidade social e é provável que se apresente com isso uma
tendência que pode contribuir para que um grupo ou indivíduo intolerante
abandone a postura de desrespeito à liberdade igual, pertencente ao
outro, vindo a respeitar, conviver e aceitar as diferenças dos seus pares e
aqui talvez se compreenda mais corretamente o sentido maior do ser
democrático.
Na ambiência virtual temos um conflito que causa efeitos
representativos à moralidade. Impõe-se a busca pela reconstrução da
sociedade, da equilibração, para usar a expressão da Epistemologia
Genética de Jean Piaget, se referindo ao resgate do equilíbrio ante
situações de disrupção social.
É preciso a busca de uma sociedade como espaço de expressão
da Sittlichkeit (eticidade) como apontado em Hegel, em sua teoria sobre a
ética, em seus estudos sobre Filosofia do Direito.
Ocorre que esta reconstrução, por razões óbvias não se faz pelo
Direito, pela via da imposição normativa que serve essencialmente a
reprimir as más posturas, mas antes pelo próprio convívio, pelas
experiências que devem, por meio do interacionismo, e fundadas em
cooperações, solidariedade e afetos positivos, contribuir positivamente
162
para uma nova Eticidade coletiva. Isto não irá possibilitar eliminar os
conflitos, eis que as divergências são inerentes ao convívio social, mas
poderá em certa medida abranda-las e torna-las suportável para uma
sociedade minimamente civilizada.
Nestas disputas no campo da virtualidade, em que sobressaem o
discurso da violência, da intolerância e falta de solidariedade, percebe-se
com clareza e a todo tempo um combate moral que não deixa, entretanto,
de gerar efeitos para o mundo jurídico, vez que quase invariavelmente, a
intolerância gera danos a outrem, ainda que exclusivamente moral.
Embora exista a lei a coibir a prática de ofensas, de ameaças e
outros crimes que se podem cometer também pela via virtual, os
problemas que percorrem esta ambiência virtual, são na realidade
grandes dilemas morais de uma coletividade que tem se prendido à
anomia, ou seja, à não observância estrita e necessária à norma
legitimada coletivamente(MERTON, 1967), mas sim, à descrença na
possibilidade do convívio plural e harmonioso.
De todo modo, é interessante observar que mesmo a ocorrência
de um estado de anomia, não quer dizer necessariamente e sempre, uma
situação de encaminhamento para a destruição da própria sociedade,
podendo também representar a anomia, um desvio produtivo para a
inovação, como decorre da Teoria Sociológica de Merton, da escola de
Chicago, que visualiza a anomia como potencialmente destrutiva e ao
mesmo tempo potencialmente construtiva, a depender do aspecto que se
observa acerca dela (anomia) e no contexto em que esteja ocorrendo.
No presente caso, se está tomando a anomia no sentido de sua
potencialidade desorganizadora.
Há atualmente uma demanda por uma nova eticidade. Este
conflito entre a moral e a norma se constata em diversas perspectivas,
como a que se tratou na tragédia grega de Sófocles, Antígona.
163
Nesta peça se vê um embate de difícil solução entre a moral e a
norma do Estado, configurando-se quase como que um problema
aporético.
Antígona, Ismênia, Etéocles e Polinice são filhos do Rei Édipo,
todos quatro frutos de uma relação incestuosa, já que Édito se apaixonou
por uma mulher sem saber que se tratava de sua própria mãe e ao
descobrir tal fato, cega-se propositalmente e segue errante pela terra
como forma de castigar-se. Este é o fechamento da tragédia de Édipo.
Em Antígona, a peça retrata o dilema das irmãs Ismênia e Antígona, que
sofriam pela morte de seus dois irmãos, que brigaram entre si, e se
mataram a golpes de espada.
Ocorre que um deles, Etéocles como era soldado, fora enterrado
com as honras e o funeral devido, enquanto que Polinice fora posto em
cova rasa e sem os rituais religiosos e honrarias.
O Rei Creonte, que era tio dos quatro, e irmão de Édipo Previu a
pena de morte para quem sepultasse seu morto com os rituais sem que
lhe fossem devidos.
Antígona, sobrinha de Creonte se viu em um conflito moral entre
dar um sepultamento digno a seu irmão ou deixa-lo para ser comido por
aves de rapina e outros animais, e então pede ajuda a Ismênia para
sepulta-lo, que não aceita ajudar por medo de ser morta pelo Rei.
Desenrola-se um embate retórico extraordinário no Palácio de
Creonte, envolvendo também outras personagens, culminando com a
prisão de Antigona pela desobediência à norma do Rei, mas que na hora
derradeira se vê absolvida pela mudança de pensamento de Creonte,
porque seu filho, que era noivo de Antigona suicidou ao saber que a
mesma seria morta.
164
Não resolveu, entretanto, porque Antigona ao se deparar com a
condenação pelo seu comportamento que embora fosse ilegal era o
moralmente exigível, também tirou a própria vida.
Nesta tragédia grega, desenvolve-se um drama espetacular que
coloca em pauta as zonas de irritações de contato sistêmico entre a
moralidade e a lei, e que é exatamente o impasse que se vai verificar
nestes conflitos de intolerância nas ambiências virtuais e cuja regulação
não será atuação simples para o estado.
De outro lado, não se pode imaginar que os amadores, usuários
da ambiência virtual, desconheçam o fato de que muito do que produzem
discursivamente constitui, ao menos em tese, algum tipo de crime, ou que
seja flagrantemente violador do direito de outrem. As pessoas sabem que
seus discursos contêm expressões de violência, porém optam por fazê-lo
e como se discutiu anteriormente, pois a participação da “vida nas redes”,
nas suas interações geram muito interesse e também expressam o
sentido de pertencimento, de reconhecimento para os indivíduos.
No espaço interacional destes circuitos midiatizados (Fausto Neto,
2007) como o facebook, o instagram e o twitter, se vê com clareza que as
ações individuais se sobrepõem à norma, e esta prevalência pode ter
relação também com a sensação de impunidade, ante a flagrante
diferença entre o número de casos de violências nas redes e o número de
processos judiciais que efetivamente ocorrem para coibi-las.
Esclareça-se que esta prevalência do agir em face da norma, não
tem o sentido de afirmar que a ação dos atores sociais são mais
importantes que a lei, mas apenas que nesta prática analisada, o agir
coletivo ignora a existência da norma, e pratica toda sorte de ilícitos como
se nada lhes fosse ocorrer em consequência.
Nesta ambiência virtual emerge o julgamento moral, no qual se dá
espaço para as mais variadas arbitrariedades, ante o subjetivismo do
165
campo moral. Assim, ao não conseguir perceber, ou regular as nuances
desta realidade interacional, o campo jurídico tem a cada dia, um
processo de fragilização de sua normatividade, sobretudo na percepção
do senso comum, em decorrência, principalmente, da ausência de
punições.
Esta demanda individual por reconhecimento e pertença pode
fortalecer o uso controvertido da palavra e das imagens nas redes, e o
distanciamento aparente dos usuários, dando-lhes a sensação de
estarem fora do alcance da norma. Isso pode lhes trazer uma falsa
impressão de que a impunidade é certa, de que não poderão ser
alcançados, o que não é de todo verdade, eis que alguma punição é
possível, a despeito da dificuldade do Direito em face das operações no
campo virtual, como se discutirá a seguir.
5 REGULAÇÃO: UM IMPASSE ENTRE O CAMPO JURÍDICO E A “REALIDADE VIRTUAL” NO ESPAÇO INTERACIONAL
Como afirmado no encerramento do item anterior, a
normatividade por si não tem capacidade de modificar o agir humano, que
é dotado de complexidades e por isso seu controle enseja análises a
aplicações para além da lei. Primeiro pelo fato simples de que a conduta
precede a norma, portanto pode por ela ser coibida e não moldada.
De outro lado, a coerção normativa pode não afetar as
subjetividades do indivíduo a ponto de transforma-lo, ainda que a lei o
queira. Esse nível de transformação se dá em âmbito interno, podendo a
Lei, no máximo, ofertar uma sugestão, ainda que pela coerção, de uma
possibilidade de conduta de forma diversa.
Quando se observa Piaget (1973), em sua teoria da
Epistemologia Genética, vemos que ao estudar os fatos mentais
(pensamentos) nas crianças, detectou que o fato de elas terem a
166
consciência das obrigações advém das interações entre elas e outros
indivíduos, e que esta consciência surge por dois vieses interacionais, ou
seja, de uma relação com outro que o domina e o impõe as obrigações
por instruções ou ordens, tudo aquilo a que a criança é obrigada, o que
normalmente se dá na relação pai e filho (aqui, entenda-se não
necessariamente pais biológicos, mas o responsável pela criação
preliminar da criança), e de outro lado, uma interação de paridade, na
qual se verifica a respeitabilidade mútua, e como fruto desta interação de
reciprocidade, ocorre a construção da noção das obrigações, nas
operações mentais.
Também percebeu que o indivíduo pode desenvolver a noção de
obrigação pela transferência geracional, e assim ele impõe a si próprio as
regras, ou seja, pelo seu conhecimento anterior, trazido pela herança
social.
Esta noção de internalização do sentido de obrigação, pela via
impositiva da Lei, pode gerar a obediência pela sanção e não
necessariamente pela transformação interna da moral do indivíduo, que
demanda outros elementos mobilizadores que não Lei.
Temos poucas possibilidades normativas a regular as condutas
realizadas no espaço virtual no Brasil.
No ano de 2012 entrou em vigor uma alteração legislativa ao
Código Penal, que ficou conhecida como lei “Carolina Dieckmann”, que é
a Lei 12.737/2012, surgida em um contexto de invasão ao computador da
atriz, subtraindo imagens da mesma e dando publicidade geral. A
alteração criou os artigos 154-A e 154-B, que tratam do crime de invasão
de dispositivo informático. Tem-se também a Lei 12.735/2012, que
apenas para “para tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema
eletrônico, digital ou similares, que sejam praticadas contra sistemas
167
informatizados e similares”, sem tocar especificamente ao tema em
discussão.
Outro exemplo legislativo frágil é a Lei 9.296/96 que regula a
tipificação das interceptações telefônicas, ambientais e em dispositivos
informáticos, mas que não faz referência aos problemas aqui levantados.
Assim como temos a Lei 9.609/98 que protege a propriedade intelectual
de programa de computador e a sua comercialização no Brasil.
Não temos no Brasil legislações especificamente estabelecidas
para práticas criminosas que se desenvolvam na ambiência virtual, de
modo a reconhecer, compreender e atuar sobre as lógicas discursivas e
as operações destes lócus.
Em decorrência desta ausência normativa, na prática, se faz a
aplicação dos dispositivos penalizadores existentes no código penal e leis
extravagantes, que foi pensado para crimes praticados no “mundo real,
físico”, aos crimes da mesma natureza cometidos no ambiente virtual.
Aqui usa-se a expressão “real” não no sentido de afirmar que os
acontecimentos do ambiente virtual sejam irreais, mas apenas para
coloca-los em oposição aos acontecimentos que ordinariamente se dão
pelas relações presenciais, concretas.
De outro ângulo, muito embora tenhamos na Constituição Federal
como se viu no item 2, a garantia no rol dos direitos fundamentais, da
liberdade de manifestação do pensamento, ou seja, a liberdade de
expressão, esta liberdade não pode ser tomada em aspecto absoluto,
comportando punições pelo seu desvio das práticas lícitas. Cabe sem
dúvida a apuração de eventual prática criminosa.
O problema é que as lógicas de atuação no ambiente virtual
divergem em muitos aspectos das lógicas das infrações no mundo das
relações fisicamente presenciais. Destaca-se algumas destas lógicas
como a) o fato de que as interações são diretas, porém não presenciais e
168
b) o potencial de ofensividade de uma prática criminosa no ambiente
virtual das redes sociais, como uma difamação, é flagrantemente
potencializado em razão do alcance conferido à circulação da informação,
que pode alcançar milhares de indivíduos instantaneamente.
Além disso, há outras práticas na ambiência virtual não previstas
pela lei penal vigente, como é o caso por exemplo de se fortalecer a ideia
de grupos virtuais que se isolam em um modelo de pensamento ou
convicção, com atuações excludentes para com os divergentes, que pode
causar impactos graves nas relações interpessoais, por acirrar
preconceitos, discriminações. Note-se que se pode punir eventuais
práticas criminosas uma vez detectadas, mas a formação destas bolhas
ideológicas em si, não.
Um exemplo interessante a se analisar é uma comunidade criada
no facebook, denominada assassinos Guilherme de Pádua e Paula
Thomaz. Guilherme de Pádua e Paula Thomaz foram condenados pelo
homicídio da atriz Daniella Perez em 1992, quando a internet sequer era
de uso doméstico tão regular e amplo como hoje.
Esta comunidade é declaradamente contra as pessoas dos
assassinos e sua publicação inicial estabelece regras sobre a
participação no grupo, afirmando que o objetivo do perfil é posicionar-se
contra ambos os condenados e que pessoas que desejem defende-los
não são admitidas, como se pode ver pelo recorte abaixo.
169
Figura 1 – Perfil da comunidade no facebook
Uma vez identificadas condutas criminosas como difamações ou
ameaças, por exemplo, é possível puni-las pela regra já existente, mas
não se consegue impedir, do ponto de vista legal, a existência desta
comunidade que existe claramente para disseminar um discurso de ódio
e reforçar a violência simbólica contra estas pessoas. Nos comentários
que seguem às publicações desta comunidade se verifica um grande
número de participações que propagam mensagens negativas, ofensivas
e algumas que são muitíssimo graves, mas que não teriam como ser
punidas, por exemplo, quando dois dos participantes comentam
Fotos e nomes retirados
170
O terceiro comentário é de um homem e o quarto de uma mulher,
e ambos manifestam desejo pela morte da pessoa. Esta postura é por
demais grave para o convívio, porque tanto pode ser uma pulsão que não
traga consequências, como pode haver ali, um indivíduo que em algum
momento queira dar vazão a esse desejo e, de fato, tente contra a vida
de alguém.
Se adotar essa conduta e torna-la factível, será punido por um
crime de homicídio, mas manifestar esse desejo no formato ali descrito
não constitui crime, sequer de ameaça tamanha a subjetividade da
manifestação. Um indivíduo pode perfeitamente dizer que deseja que
alguém morra por ter ódio dela, mas nunca ter coragem de tirar-lhe a
vida.
171
O problema está em não se conseguir limitar ou punir o
agrupamento para tais manifestações, pois a liberdade de associação e
de manifestação são direitos constitucionalmente assegurados aos
cidadãos no Brasil, pelo artigo 5º, respectivamente nos incisos IV e XVII.
Não há dúvida acerca da agressividade que estes manifestos
contêm em significação, tampouco se duvida do potencial que tem esta
afirmação de exortar outras pessoas a se postarem de igual forma,
alimentando ainda mais o ódio neste circuito comunicacional.
O conteúdo dos comentários pressupõe a irrecuperabilidade de
um criminoso ignorando o próprio interesse defendido pelo Estado de
recuperar as pessoas a partir de seu encarceramento, após a prática
criminosa. Percebe-se um movimento de re-condenação do indivíduo de
modo permanente, eis que a página se presta a isso em relação a um
crime ocorrido em 1992, sobressaindo claramente intenções vingativas.
Não se propõe aqui que se ignore as consequências gravosas e
hediondas de um crime como o homicídio, especialmente este, ante sua
crueldade. O que se pretende é apenas tensionar esta realidade
percebida com a facilidade e a legalidade da circulação dos discursos de
ódio como no observável acima colacionado, com a fragilidade da
atuação do Estado, e isso se faz na busca de compreender esta
dificuldade, e vislumbrar alguma alternativa.
Alguns poderão questionar o fato de que na convivência concreta
e presencial, não virtual, também há a formação de grupos excludentes,
bolhas ideológicas, e mesmo assim o Direito não consegue inibi-las, mas
apenas punir se delas resultar um crime já previsto. Sim, de fato, mas há
uma diferença relevante entre os dois universos, o concreto e o virtual,
que é o potencial de amplificação que esta formação das bolhas
consegue no ambiente virtual, e que apresenta o poder de se propagar
instantaneamente para todo o mundo, o que igualmente potencializa em
172
muito as possibilidades de práticas ilícitas, ofertando assim um risco
muito maior da recorrência concreta de atos de violência, ainda que
simbólicas.
Não haverá necessariamente a mesma precisão de apuração de
casos em uma ambiência virtual, como no ambiente presencial.
O que se quer perceber, é justamente a imensa dificuldade de se
alcançar marcos regulatórios claros para o espaço virtual, e pode ser que
por muito tempo ainda, permaneçamos com esta questão aporética.
No que se refere ao marco civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23
de Abril de 2014 que Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da Internet no Brasil, as imposições de limites se referem
sobretudo aos provedores, de serviços de internet, especialmente quanto
a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a
aplicações de internet, tratando-se de uma norma essencialmente
protetiva dos usuários da internet.
No tocante à liberdade dos usuários, a referida norma reforça o
entendimento Constitucional de preservação da livre manifestação, como
se extrai da leitura do Art. 3º., cuja transcrição é a seguinte: “A disciplina
do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: Garantia da
liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento,
nos termos da Constituição Federal”.
Repete-se essa ideia na redação do Artigo 8º que informa ser a
“garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas
comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à
internet”, ou seja. Evidente que se faz indispensável preservar na norma
infraconstitucional as diretrizes e princípios da Carta Magna, mas perdeu
o Legislador brasileiro a oportunidade de no estabelecimento desta lei
tentar fazer previsões que viabilizassem de forma mais clara uma
persecução penal em caso de crimes no ambiente virtual, eis que nela
173
assumem dinâmicas distintas das praticadas nas relações reais,
presenciais, tornando mais complexa tanto a apuração quanto a punição.
No campo da virtualidade, ante as características de suas lógicas
operacionais e de convivência, que nem sempre coincidem com o
convívio presencial entre as pessoas, no que se refere à questão da
regulação, percebe-se com clareza uma disputa entre a moral e o Direito,
cujas normatividades se inscrevem de modos distintos na percepção das
pessoas. A norma moral, cujas sanções dependem da ação interna do
próprio sujeito para surtir efeito repressivo é mais passível de
transgressão que a norma jurídica, cujas sanções são exteriores ao
indivíduo e cuja aplicação não está sob seu controle, vindo do Estado
para ele de forma impositiva.
6 A BUSCA PELO EQUILÍBRIO, UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA
A todo instante no convívio social estamos sujeitos à rupturas em
nossas relações, exatamente porque a divergência de pensamentos, de
valores morais, de maturidade, as diferenças de classes, de gênero, entre
tantas outras causas são inerentes ao convívio e se apresentam como
elementos que promovem disrupções no tecido social, quebrando o
estado e equilíbrio, o que vai ensejar um processo de adaptação dos
indivíduos à uma nova realidade, para que ele acomode novos
elementos, estruturas, e informações, para então poder encontrar um
estado de equilibração4.
Este processo de equilibração tanto pode se dar por esta via
consagrada na epistemologia genética de Piaget, como também se
4 Aqui se faz referência à Epistemologia genética de Jean Piaget, para a qual no processo
de desenvolvimento das operações mentais (pensamento), há processos específicos que são a assimilação, adaptação e acomodação e que tais processos vão possibilitar adiante, a equilibração, o resgate do equilíbrio do indivíduo que tenha passado por qualquer experiência disruptiva.
174
busca, no campo jurídico, pela imposição do Direito como instrumento de
mediação e regulação tendente ao equilíbrio.
Do que se tem visto na intensa proliferação dos discursos de ódio,
especialmente no ambiente virtual, se extrai uma intensa preocupação
com o destino das interações humanas, porque vivermos isolados não é
uma opção. Então, torna-se mais que urgente levantar este problema e
buscar uma alternativa eis que de um lado a moralidade não tem
apresentado força para resistir ao conflito no nível aqui discutido e de
outro, o Direito não conseguiu até o momento regular com precisão os
fatos sociais conflitantes da ambiência virtual.
Um problema ainda por se resolver, já que a jurisprudência não é
pacificada, refere-se ao compartilhamento de mensagens pelo aplicativo
WhatsApp, ou pelo Facebook, que parcela do Judiciário brasileiro,
inclusive turma do STJ tem se manifestado no sentido de analisar de
forma restrita a aplicação da lei penal, fazendo incidir penalidade apenas
para o autor da mensagem e não para os que a propagam.
Veja-se, o argumento dos que defendem tem razoabilidade do
ponto de vista estritamente dogmático, como é o caso do artigo da lavra
de Moraes da Rosa (2017), em que vislumbra a impossibilidade de que
se faça um deslocamento do dolo, da vontade dirigida à prática do crime,
daquele que originou a mensagem difamatória para aquele que a
compartilhou. Diz o Prof. Moraes da Rosa (2017):
Isso porque o desígnio deve ser autônomo em face do bem jurídico tutelado, não sendo possível transferir o dolo. Segundo, exige-se o animus de caluniar, injuriar ou difamar que, em tempos de redes sociais, deve ser interpretado de modo a excluir do âmbito de incidência da norma incriminalizadora as condutas dela decorrentes que não guardem autonomia.
O Entendimento de alguns segmentos do Poder Judiciário se
dirige para este ponto, como é o caso da decisão no (Habeas Corpus
175
75.125, do STJ. Min. Rel. Rogério Schietti Cruz), em que se decidiu
contrariamente à imputação de penalidade a quem “apenas compartilha”
ou “curte”. Segue um trecho no qual se localiza tal posição,
É possível inferir que, ao compartilhar a manifestação de outra pessoa em rede social, o texto passa a ser exibido na página pessoal daquele que compartilhou, tornando-a visível a seus amigos e, por vezes, a terceiros, o que claramente propaga a publicação inicial. Não é suficiente, no entanto, para fins de responsabilização penal, o mero ato de compartilhar dada notícia, sem que se aduza qualquer circunstância que possa identificar, no ato de compartilhar, o animus dirigido a reproduzir uma crítica ao "ato de seu superior ou ao assunto atinente à disciplinar militar (CPM, art. 166).
Exatamente aqui é que a análise mais detida das implicações dos
compartilhamentos e curtidas se faz necessário.
As lógicas que se operam na ambiência virtual não podem ser
comparadas às do mundo real (aqui, mais uma vez, referindo aos
relacionamentos pessoais presenciais), sendo evidente que a dinâmica
de transmissão de uma informação que tenha conteúdo difamatório por
exemplo, não se estabelece com a mesma força destrutiva como ocorre
numa transmissão boca-a-boca.
Como se analisou no item 2, o campo virtual, usando a
perspectiva de Bourdieu, é um espaço de combate de disputas por poder
e isso por uma demanda de reconhecimento, logo, a ambiência virtual
consolida-se também como um espaço de consagração social, em que a
relevância do comentário de alguém é expresso pelo número de curtidas,
pelo número de visualizações e de compartilhamentos. Esta operação
revela-se uma instância de consagração social que faz ter valor a
informação repassada, e mais ainda, o seu produtor.
Isto é tão real que basta observar que o interesse das pessoas
em publicar em seus perfis, e transmitir mensagens por dispositivos
176
tecnológicos diversos é justamente ver sua divulgação ser vista e ser
replicada, pois esta é a lógica do comportamento que a tudo quer
publicizar. Não há sentido em se pensar que quem se utiliza das
ambiências virtuais aqui apresentadas o faça apenas para si próprio, sem
interesse de ver reconhecimento na sua publicação. É uma questão de
mera lógica funcional do dispositivo que foi desenvolvido justamente para
conferir publicidade. Basta inferir qual é a função do botão de curtida
representado de forma icônica por uma mão azul com o polegar para
cima e que recentemente, a administração do Facebook disponibilizou a
mesma figura com o dedo apontado para baixo, para simbolizar a
desaprovação de quem o clica.
Ora, as lógicas operativas dos dispositivos tecnológicos em
questão revelam pelos seus propósitos que é temerário não se buscar
responsabilizar também a quem compartilha ou curte.
A pergunta é simples, o que deseja uma pessoa que repercute
através de compartilhamento uma mensagem que difama a honra de
outrem, senão propagar essa difamação, dando de forma implícita em
seu ato a declaração de que concorda com aquela informação, que a
aceita como verdadeira, e que entende justa a sua divulgação, mesmo
que isso signifique o prejuízo à vida das pessoas?
Estas operações de transmissão de conteúdo, se não forem
pensadas como condutas autônomas ainda vão permitir e contribuir para
que as pessoas se sintam protegidas para cometerem crimes contra a
honra já que não se vislumbra em sua conduta o dolo.
Observe um grave problema que potencializa esta prática
criminosa disfarçada. Se uma pessoa tiver interesse em praticar uma
difamação gravíssima contra outrem, e ficar isenta de responsabilidade,
basta que ela crie um perfil falso, uma conta falsa em um destes
dispositivos midiatizados, o que é absolutamente simples e muitos
177
adolescentes fazem, inclusive com pouca chance de serem descobertos,
e a partir daí propagar toda sorte de crime, enquanto em seu perfil real,
ele apenas curte e compartilha a informação.
É passada a hora de o campo jurídico repensar estes
posicionamentos e visualizar nestas práticas virtuais os vácuos de
impunidade que a interpretação jurisdicional está proporcionando.
Cabe ao Poder Legislativo se debruçar sobre o tema e em análise
muito detalhada, com a busca do conhecimento das lógicas e estruturas
dos dispositivos tecnológicos midiatizados usados nas ambiências
virtuais, para tentar por em concreto uma legislação que minimamente
consiga coibir estas práticas aqui elencadas e que sem dúvida,
expressam intenções criminosas.
Pela natureza do problema posto em discussão, vê-se que a
melhor solução ainda não se localiza no campo da regulação jurídica. O
Direito deve sim colocar-se em movimento ante a prática de ilícitos,
especialmente criminais, mas a correção deste modelo de convívio para
torna-lo algo mais suportável, menos violento e impactante, não passa
apenas pela norma jurídica, mas sim e antes pela norma moral, o que
demanda então movimentos de reestruturação do próprio indivíduo, de
modo especial pela construção de um novo paradigma de eticidade para
a coletividade.
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