a estrela (de)cadente - uma breve história da opinião pública

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A Estrela (De)Cadente: uma breve história da opinião pública Samuel Mateus Mestre em Ciências da Comunicação E-mail: [email protected] A centralidade da opinião pública no pensamento social e político faz dela um valor simbólico fundamental das sociedades. Com efeito, ela serviu para fundamentar revoluções, movimentos democráticos ou apoiar regimes totalitários. Napoleão, por exemplo, considerava-a “um poder invisível e mis- terioso ao qual nada resiste; nada é mais mutável, mais vago ou mais forte; e mesmo que caprichosa ela, porém, é justa bastante mais frequentemente do que pensamos” (Napoleão apud Le Bon, 1918: 163). A opinião pública emergiu encarnando os ideais mais genuínos de uma publicidade crítica exercida por um público no contexto de uma economia liberal e de uma sociedade dominada pela burguesia. O revestimento ético- moral da opinião pública advém do papel político que a esfera pública assumiu e da forma como é desempenhada essa tarefa. A função política revela-se na exigência não só de legitimidade colocada ao poder político, como também de participação nesse exercício. A opinião pública é filha da razão e expressa- se enquanto vontade colectiva através dos debates de ideias, da liberdade de expressão do pensamento, liberdade de associação e, sobretudo, da liberdade de imprensa. É, portanto, o seu carácter racional e a sua forma comunicacional que formam os pilares do sentido moral e ético da opinião pública (Pissarra Esteves, 2003: 198-202). Com este artigo pretendemos percorrer não apenas o caminho da consa- gração mas, também, o trajecto da descaracterização da opinião pública de- monstrando a sua mutação. Introduzimos a discussão sobre o declínio de uma publicidade crítica, mas sobretudo perspectivamos as transformações ocorri- das nas sociedades ocidentais nalguns dos seus mais basilares mecanismos e que dão origem a entendimentos paralelos da publicidade. Comecemos pela teorização substantivista da opinião pública respeitante à relação entre público e Estado. Estudos em Comunicação n o 4, 59-80 Novembro de 2008

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Uma breve história da opinião pública

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    A Estrela (De)Cadente: uma breve histria da opiniopblica

    Samuel MateusMestre em Cincias da Comunicao

    E-mail:[email protected]

    A centralidade da opinio pblica no pensamento social e poltico faz delaum valor simblico fundamental das sociedades. Com efeito, ela serviupara fundamentar revolues, movimentos democrticos ou apoiar regimestotalitrios. Napoleo, por exemplo, considerava-a um poder invisvel e mis-terioso ao qual nada resiste; nada mais mutvel, mais vago ou mais forte;e mesmo que caprichosa ela, porm, justa bastante mais frequentemente doque pensamos (Napoleo apud Le Bon, 1918: 163).

    A opinio pblica emergiu encarnando os ideais mais genunos de umapublicidade crtica exercida por um pblico no contexto de uma economialiberal e de uma sociedade dominada pela burguesia. O revestimento tico-moral da opinio pblica advm do papel poltico que a esfera pblica assumiue da forma como desempenhada essa tarefa. A funo poltica revela-se naexigncia no s de legitimidade colocada ao poder poltico, como tambmde participao nesse exerccio. A opinio pblica filha da razo e expressa-se enquanto vontade colectiva atravs dos debates de ideias, da liberdade deexpresso do pensamento, liberdade de associao e, sobretudo, da liberdadede imprensa. , portanto, o seu carcter racional e a sua forma comunicacionalque formam os pilares do sentido moral e tico da opinio pblica (PissarraEsteves, 2003: 198-202).

    Com este artigo pretendemos percorrer no apenas o caminho da consa-grao mas, tambm, o trajecto da descaracterizao da opinio pblica de-monstrando a sua mutao. Introduzimos a discusso sobre o declnio de umapublicidade crtica, mas sobretudo perspectivamos as transformaes ocorri-das nas sociedades ocidentais nalguns dos seus mais basilares mecanismos eque do origem a entendimentos paralelos da publicidade.

    Comecemos pela teorizao substantivista da opinio pblica respeitante relao entre pblico e Estado.

    Estudos em Comunicao no4, 59-80 Novembro de 2008

    ClaudimiroNotahttp://www.ec.ubi.pt/ec/04/pdf/05-Samuel_Mateus-A_estrela__de__cadente.pdf
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    60 Samuel Mateus

    Concepo Substantivista da Opinio Pblica

    Ainda que apenas no Sc. XVIII se tenha utilizado a expresso opiniopblica no mbito da discusso filosfica de democracia parlamentar, mui-tas outras expresses foram usadas com objectivos afins aos cristalizados noconceito1. Os seus atributos parecem poder ser extrapolados para perodostemporais e contextos sociais outros que no os da esfera pblica burguesa,possibilitando a universalizao do conceito de opinio pblica. MargaretMead (1965), por exemplo, descreve mecanismos antropolgicos de interac-o colectiva nos quais se podem reconhecer os princpios gerais do processode opinio pblica2. Isso significa que a operacionalizao burguesa do con-ceito apenas uma de entre as possveis. Naturalmente esta ideia susceptvel crtica na medida em que isso significaria uma transformao substancial dosignificado da esfera pblica (Habermas, 1992, 462-463).

    No obstante a hiptese de uma universalizao conceptual e temporalda opinio pblica, esta foi invocada com persistncia de maneira muito pre-cisa, no contexto da esfera pblica burguesa e de sociedades liberais de pen-

    1 Nomeadamente vox populi, opinio comum, ou opinio popular. Protgoras, por exem-plo, refere crena da maioria, Herdoto menciona opinio popular, Demstenes fala emvoz pblica da ptria e Ccero em apoio do povo (Arribas, 1990: 15). Ferno Lopes foium dos que na Idade Media descreveram no apenas o comportamento catico, fervoroso edescontrolado das multides como tambm d conta, no captulo XI Do alvoroo que houvena cidade cuidando que matavam o mestre e como l foi lvaro Pais e muitas gentes com eleda Crnica de D. Joo I, da vox populi que surge como uma forma primitiva da opiniopblica e que est na origem do levantamento popular que matou a rainha D. Leonor e o CondeAndeiro. Nesta crnica est patente a capacidade de mobilizao e importncia social que avox populi possua na poca medieval. Ela acabou mesmo por produzir uma opinio, nestecaso, de discordncia da actuao da regncia da Rainha e do Conde Andeiro que est na ori-gem da deciso de D. Joo I chefiar o movimento revoltoso. Note-se que o Mestre de Avis foiproclamado regedor e defensor do reino no apenas por mesteirais, como pelo povo-mido ehomens-bons, primeiro de Lisboa e depois por todo o Portugal.

    2 A antroploga identificou em diferentes comunidades tribais respectivamente os Ara-pesh, os Iatmul ambos na Nova-Guin, e uma tribo do Bali - trs processos de opinio pblicaque se realizavam aquando da violao das leis das sociedades primitivas, na ambiguidadequanto interpretao da aplicao dessas leis e na forma de apaziguar um conflito entre doismembros. Em qualquer destes casos, o que estava em jogo era uma forma de atingir o consensopelo que foram desenvolvidos mecanismos anlogos aos da opinio pblica que permitiammanter coesa a comunidade ao mesmo tempo que mantinham aberta a possibilidade de encetaruma aco conjunta, pilar da organizao e do funcionamento tribais.

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    dor democrtico. O modelo liberal constitui o primeiro grande entendimentode opinio pblica concebida de forma substantivada: uma Opinio Pblicamaiscula, instncia entre a sociedade civil e o Estado. A tradio liberal3

    defender e articular o regime da opinio face ao regime da autoridade dodespotismo ilustrado. A opinio pblica liberal assenta em duas dimenses: apoltica e a econmica.

    O liberalismo poltico sintetiza-se no artigo 1o da Declarao dos Direitosdo Homem e do Cidado, de 1789: Os homens nascem e permanecem livrese iguais em direitos e inclui o princpio da igualdade, das liberdades civis4

    (inviolabilidade do domiclio, direito a uma educao, entre muitas outras)e das liberdades pblicas (liberdade de imprensa, liberdade de expresso eassociao). Ele distingue-se pela insistncia na vigilncia das actividadesgovernamentais pelas instituies por intermdio da doutrina de separao dospoderes, de Montesquieu (poder executivo, legislativo e judical). Essencialpara a concepo liberal de opinio pblica, o pluralismo poltico defendea existncia de uma arena pblica onde diferentes correntes de opinio sepossam defrontar atravs da criao de associaes.

    O liberalismo econmico condensa-se na mxima laissez faire, laissezpasser, le monde va de lui mme que no significa mais do que a liberdadede comrcio e de produo. Estas liberdades apoiam-se no apenas na propri-edade privada, como na liberdade de empresa e na lei de mercado, em que a oferta e a procura a regular o mercado, e onde o Estado no deve intervir.Na formulao liberal encontra-se reduzido a garantir o cumprimento destesprincpios e a assegurar a ordem pblica.

    Esta breve caracterizao das teses liberais relevante para perceber quea opinio pblica liberal (burguesa) se constitui como fora moral e crticasobre a sociedade e o Estado ou qualquer outro poder em geral. A opiniopblica poltica fundamenta-se na esfera privada, mais propriamente na soci-edade civil, e constituda pelos indivduos particulares reunidos em pblicoque fazem ouvir a sua voz atravs de uma comunicao poltica expressa como

    3 Foi convencionado que o Liberalismo se inicia com a publicao, em 1776, da Riqueza dasNaes de Adam Smith e termina em 1848 com a oferta estampa de Princpios de EconomiaPoltica de John Stuart Mill (Arribas, 1990: 27).

    4 As liberdades civis referem-se s actividades privadas e resultam do nascimento da ins-tncia do pblico, como a entidade que medeia o Estado e a sociedade civil. Tratam-se, porisso, de liberdades nas quais a esfera pblica burguesa influiu determinantemente.

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    opinio pblica, tida esta como produto do raciocnio pblico sobre os assun-tos pblicos. Dado que cada um possui a sua aspirao privada, na defesados interesses de cada um que publicamente se pode atingir a harmonia e obem-estar social. O seu pressuposto que somente do dilogo e do debatepblicos pode a verdade assomar aos homens e guiar os cidados na identi-ficao e no solucionamento dos problemas da sociedade. A opinio pblicasurge de uma reabilitao pblica da doxa na medida em que, erigida em fun-damento de legitimidade da aco governamental, requer que a opinio decada subjectividade seja considerada igual perante todas as restantes. A teorialiberal da opinio pblica uma teoria do pblico e da sua liberdade consti-tutiva em expressar os seus pontos de vista, em discutir os temas e em avaliarcriticamente os actos do poder poltico.

    A principal metfora liberal sobre a opinio pblica a do tribunal. A opi-nio pblica constitui-se em tribunal de razo cuja tarefa consiste em vigiar eapreciar o poder poltico com o objectivo de obstar a sua disfuncionalizaoe impedir uma governao alheia aos seus interesses. Para Jeremy Bentham,o pblico compe um tribunal que mais poderoso do que todos os outros, incorruptvel e tende a iluminar os homens. A publicidade governamentalcontribuir, ento, para a melhoria da razo e do discurso pblicos e preve-nir a corrupo. O tribunal que a opinio pblica constitui permitir, tam-bm, aos eleitores agirem com competncia na escolha dos seus representan-tes (Cutler, 1999: 325). A sua consecuo depende, por isso, de uma imprensacrtica que torne pblicas as decises governamentais de modo a facilitar o de-bate pblico, j que o segredo nos assuntos supe a tirania dos governantes(Bentham, 1821). Com efeito, o editor do jornal actua como uma espcie dejuiz e to fundamental o seu papel que considerado como a figura maisimportante da vida poltica a seguir ao primeiro-ministro. Como nota Tocque-ville, a imprensa o olhar que traz luz os segredos da poltica e fora oshomens pblicos a comparecer perante o tribunal da opinio (Tocqueville,1981: 271). O tribunal da opinio pblica constitui, no s o mais segurodispositivo contra a ameaa da corrupo pblica, como igualmente assumea realizao da tica utilitarista. O tribunal para o exerccio perniciosodo poder governamental a nica medida (check); para o exerccio benfico,um suplemento indispensvel. Os governantes competentes seguem-no; osnscios ignoram-no. No presente estdio da civilizao, os seus ditames coin-cidem, na maior parte dos casos, com o princpio da maior felicidade (gre-

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    atest happiness principle) (Bentham, 1983: 36). Bentham defendia, assim,numa enunciao progressista, uma opinio pblica de acordo com o impera-tivo tico utilitarista: a maior felicidade para o maior nmero de pessoas.Quatro funes so incumbidas ao Tribunal da Opinio Pblica: uma funode esclarecimento oferecendo informao ao pblico, uma funo censora emque avalia os assuntos pblicos, uma funo executiva em que recompensa oupune as aces pblicas, e, por fim, uma funo teraputica propondo direc-trizes na definio dos projectos (idem: 37-39). A funo censora a maispregnante das dimenses de que a opinio pblica se revestiu entendida comotribunal. Jean-Jacques Rosseau descreve um censor com o propsito de for-talecer a opinio pblica como a guardi da moralidade pblica. Do mesmomodo que a declarao da vontade geral se processa na lei, a declarao dojulgamento pblico realiza-se na censura; a opinio pblica o espao da leicujo censor o ministro (. . . ) (Rosseau, 1966: 168). A censura preservaos costumes e a moral prevenindo as opinies de se corromperem atravs deintervenes razoveis, algumas vezes mesmo, fixando-as quando ainda noesto definidas (idem: 169). A opinio pblica possui, no fundo, o dever deimpelir os governantes a desempenharem os seus cargos com responsabilidadefazendo-lhes chegar os desejos dos cidados. Assim, ela assegura a confianados governados bem como o seu assentimento e anuncia s medidas legisla-tivas. Nesta medida, a opinio pblica de Bentham, mais do que uma fora depresso, erige-se como elemento do aparelho poltico de governao.

    Verificamos que o tribunal que Bentham descreve inverte o princpio dasua priso panptica: se o olhar do guarda pode ver os seus prisioneiros, agora, o pblico que pode observar - e verificar os membros da governao. aacessibilidade e a visibilidade do governo, enquanto dispositivos de controloda sua actividade, que permitem uma publicidade que assegura a confiana dopblico nas decises polticas. Como claro, a metfora da opinio pblicacomo tribunal vai beber inspirao, nos seus traos gerais, ao princpio de pu-blicidade kantiano que faz do esclarecimento e da visibilidade dos assuntospblicos a condio incontornvel da justia. Contudo, e ao contrio de Kant,se o entendimento benthamniano da publicidade faz da visibilidade e acessibi-lidade as condies de um eficiente controlo sobre as elites do poder, o debateracional possui uma importncia marginal e o carcter crtico da publicidade secundrio.

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    Se quisssemos aplicar uma distino entre teorias da opinio pblica,poderamos afirmar que o entendimento liberal se posta do lado das teoriassubstantivistas da opinio pblica (Splichal, 1999: 2), isto , uma formulaopoltico-normativa de contornos tico-morais que faz da opinio pblica uminstrumento do pblico na conduo dos assuntos polticos. Ela assume-seespecificamente logomquica, isto , como uma justa de opinies sustentadasque pelo seu carcter polmico configuram a positividade e a negatividade daopinio pblica. Neste caso a opinio pblica a opinio do pblico.

    Concepo Adjectivista da Opinio Pblica

    Abordemos a opinio pblica a partir da sua constituio adjectivista, aqual consagra, na primeira metade do sc. XX, a passagem do pblico comorgo substantivo para designar, antes, a qualidade da opinio, isto , umaopinio que publicada mas que no (necessariamente) pblica.

    A teorizao de Ferdinand Tnnies relevante no que concerne a estabe-lecer um compromisso entre a concepo substantivista e adjectivista, pois,ainda que no ignore a dimenso tica da opinio pblica, sensvel distin-o entre opinio pblica e opinio publicada o que faz dele um precursor dateorizao da opinio pblica na sua relao com os dispositivos tecnolgicosde mediao simblica.

    A teoria crtica da opinio pblica de Tnnies exposta, em 1922, na Kritikder ffentlichen Meinung, uma das mais significantes contribuies para a te-oria social clssica e configura-se num esforo sistemtico de fazer da opiniopblica uma componente essencial dos processos sociais e culturais. Rejei-tando a tradio psico-social que se desenvolveu a partir dos anos 30 do sc.XX, Tnnies abandona uma concepo restrita e espacial da opinio pblica.Tal como para Tarde (1991: 11), o pblico uma forma de reunio intelectualna qual os seus membros partilham ideias sem que interajam directamente. Aespacialidade no , aqui, o factor determinante.

    O autor de Kritik der ffentlichen Meinung integra na sua teorizao asideias de racionalidade e moralidade tal como postuladas pela abordagemfilosfico-normativa. A moralidade manifesta-se no comportamento do p-blico e providencia a base sobre a qual as relaes sociais podem ser cons-trudas. A racionalidade advm do facto do seu pensamento se basear numa

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    abstraco intelectual da opinio pblica que no existe em concreto, masque funciona como uma ferramenta no inqurito das manifestaes histrico-culturais das sociedades. Ela resulta, em especial, do facto da opinio pblicano ser compelida por aspectos externos (como por exemplo, o dinheiro) massomente norteada pelo esclarecimento e pela ilustrao, algo que a faz deterum elevado grau de validade normativa e de juzo moral (Splichal e Hardt,2000: 50). A opinio pblica , ento, concebida como uma forma de vontadesocial de produo de conhecimento por intermdio de uma vontade unnimeque existe na Gesellshaft (Sociedade) em associao como outras duas formasde vontade social complexa, a conveno e a legislao, e opera um papel se-melhante ao da religio no seio da Gemeinshaft (Comunidade).

    Demitimo-nos de proceder a aprofundamentos da obra de Tnnies para sa-lientar, antes, os aspectos mais relevantes das subtilezas que a opinio pblicapode aparentar e que denunciam j o germe de transformao que ela viria asofrer nos finais do sc. XIX, e nos princpios do sc. XX. Na sua obra de1922, Tnnies estabelece trs diferentes sentidos para a opinio pblica: dieffentliche Meinung, eine ffentliche Meinung, e ffentliche Meinung, respec-tivamente, opinio do pblico, opinio pblica e opinio publicada.

    A opinio do pblico (die ffentliche Meinung) a opinio pblica crtico-racional, efeito da discusso do pblico. Trata-se de um acordo unnime daopinio dos cidados desenvolvido pelo razoamento independente de cada umque culmina num acordo universal atingido atravs do consenso de razoabili-dade da maioria. Apenas os cidados eruditos so susceptveis de participarnesse processo de formao da opinio. O sujeito da opinio do pblico confi-gura um pblico essencial e politicamente harmonioso que concordou opinare ajuizar de um modo particular e que, portanto, pertence naturalmente vidapblica. . . A opinio do pblico essencialmente uma vontade expressa numjuzo e pela avaliao - como um acto coeso e, por isso, uma conscientee manifesta forma da vontade no sentido de uma deliberao ou avaliao ju-dicial por qualquer outro rgo decisional (Tnnies apud Splichal e Hardt,2000: 75).

    Estamos perante uma Opinio Pblica em maisculas, smbolo maior daracionalidade e do uso pblico da razo, fora unitria e expresso da vontadecomum, na qual as afinidades electivas, ou seja, a conexo espiritual ao nveldas ideias, so preferidas a desfavor de uma conexo espacial.

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    A Opinio Pblica (eine ffentliche Meinung) nomeia um conglomeradode perspectivas, desejos, intenes e opinies contrrias e controversas) emconfronto na esfera pblica, degladiando-se por atrarem a ateno do pblicode modo a que se transforme na opinio do pblico (die ffentliche Meinung).Contudo, sem a fora centrpeta do pblico que une e torna coesas as opiniestransformando-as numa unidade de vontade, a Opinio Pblica, no sentido deTnnies, no passa de um estdio intermdio entre a opinio do pblico e aopinio publicada.

    A opinio publicada (ffentliche Meinung) consiste, por seu turno, na di-vulgao social de uma opinio que por essa circunstncia se torna a opiniode muitos, espcie de ideia estandardizada que se oferece partilha sem quede desenvolva um ajuzamento e uma forma transversal de formao de opi-nio. Concerne uma opinio individual expressa publicamente, destinada anenhum receptor particular e diferencia-se de uma opinio privada porque asua concepo dirigida publicidade.

    Estas acepes revelam os processos de formao modernos da opiniopblica e desenham-no como uma aco fluida e dinmica iniciada individu-almente mas concluda colectivamente em que de uma opinio vulgar, tran-sitria e indefinida se atinge a unificao da vontade de uma sociedade emtorno de fins consensuais. O contraditrio que se gera, num estdio interm-dio, contribui, assim, para a consolidao e solidificao da opinio que diver-samente alimentada se constitui no apenas com um nvel elevado de acordo,como tambm, com um agudo sentido de pluralidade. Na dependncia dessafluidez processual surgem diversos estados de agregao da opinio pblicaidentificados com uma analogia termo-dinmica da Fsica. Tnnies toma deemprstimo uma metfora da Fsica para afirmar que o momentum da opi-nio do pblico determinado pela massa e velocidade - o poder da opiniodo pblico depende do grau de solidez e energia que coloca em movimentouma opinio, no grau proporcional ao grau de unanimidade e intensidade davontade (idem: 89). A opinio pblica pode, pois, viajar de uma convicoslida, a uma proposta lquida, at a uma ideia gasosa, onde a instabilidade a sua caracterstica principal5.

    5 curioso constatar que um estadista, quarenta e trs anos passados da proposta de Tn-nies, defina a dinmica da opinio pblica em termos mutacionais em moldes muito seme-lhantes. Marcello Caetano fala em correntes profundas, intermdias e superficiais da opiniopblica, indo desde os valores fundamentais de uma sociedade at aos rumores e boatos como

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    A Estrela (De)Cadente: uma breve histria da opinio pblica 67

    A solidez da opinio pblica explcita no acordo geral acerca de valoresinalienveis, como a liberdade. A fluidez patente em assuntos controversose com interesses repartidos em que a opinio pblica se demonstra imparcial.O estado gasoso da opinio pblica ilustra a sua dinmica mutacional e a suavitalidade na convocao de assuntos e temas problemticos que carecem deuma resposta, ou pelo menos, de uma tomada de posio da sociedade. H,pois, uma circulao muito viva nos trs estdios em que a opinio pblica semovimenta: desde uma eroso da convico at a uma construo inabalveldessa crena. A intensidade desta efervescncia revela a capacidade proble-matizadora da sociedade e a existncia de um pblico activo e vigilante queexercendo a sua razo se agita nas certezas fundamentais. A espontaneidadeda formao da opinio pblica descoberta nestes trs estdios asserta que aexperincia pblica se mantm atento s inquietaes sociais.

    A opinio publicada a pr-categoria da opinio pblica que se nos afi-gura mais frtil em interrogar, j que permite comear a pensar numa opiniopblica sem maisculas, e sem a unidade normativa, como exemplo a opi-nio do pblico. Na medida em que as opinies comeam a aflorar na publici-dade e se desenvolvem os dispositivos tecnolgicos de mediao simblica, aopinio pblica, no seu sentido crtico-racional, viu-se ameaada, ao longo dosc. XX, por uma profuso de perspectivas que, dada a sua quantidade, fize-ram perigar a sua qualidade. Para isso contribui decididamente os processosdinmicos de formao dessa opinio pblica esclarecida.

    O Declnio da Opinio Pblica

    Os supra-referidos estdios atestam a falncia de um certo entendimentoliberal da opinio pblica e que nos cabe aqui expor em sntese.

    Os liberais defendiam uma opinio esttica e imutvel que apoiaria os mo-dos de pensar dos cidados. Na verdade, a opinio pblica o domnio, porexcelncia, de avanos e retrocessos, em que a verdade no somente um ob-jecto velado que nos cabe aclarar e desocultar publicamente. Ao contrrio doracionalismo optimista liberal, a verdade apenas o pretexto que a opiniopblica encontra para tecer o seu pensamento e delinear um projecto. Em-

    factores influentes na transformao dos diversos estados da opinio pblica (Caetano, 1965:19-36).

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    68 Samuel Mateus

    bora a procura da verdade atravs da discusso racional livre seja um assuntopblico, no a opinio pblica (seja o que isso for) que o seu desiderato.Ainda que a opinio pblica possa ser influenciada pela cincia e possa julgara cincia, no o produto de uma discusso cientfica (Popper, 1968: 352).

    As trs derivas de opinio pblica de Tnnies permitem-nos perceberclaramente que existe nela duas existncias: uma institucionalizada, comopor exemplo, a opinio do pblico (die ffentliche Meinung), e uma no-institucionalizada, a opinio publicada (ffentliche Meinung), e a opinio p-blica (eine ffentliche Meinung). Para alm das arenas convencionadas, hmuitas outras, informais, triviais e quotidianas, onde cada indivduo expressaa sua opinio. Este conjunto de opinies podero, eventualmente, formar umaopinio pblica do pblico mas, em si, formam opinies pblicas em potncia(sem por isso serem menos relevantes no domnio da publicidade). O pensa-mento dialgico do eu creio que ele cr em. . . uma das formas fundamen-tais de criar opinio pblica ainda que carea desse valor normativo da opiniopblica do pblico. Este carcter dialgico repele o mito liberal de uma opi-nio monoltica (Rosenbaum, 1975: 131), expresso de uma vontade geralrosseauniana. A pressuposio de um consenso na opinio do pblico (dieffentliche Meinung) no elimina o facto de que a formao de opinio passapor vrios estgios, antitticos e contraditrios entre si, em que a opinio no homogeneamente vinculativa, e onde se concorre com vrios pontos de vistaque originaro graus variveis de adeso (cf. Bourdieu, 1972: 222). Devemos,pois, ver uma opinio caleidoscpica, prisma que refracta e simultaneamentereflecte os raios de luz de cada subjectividade. O pensamento de Tnniesacerca da opinio pblica , deste modo, ambivalente: ao mesmo tempo quea concebe em moldes normativos, possui a argcia de esprito para identificaralguns aspectos que permitem pensar, no apenas nas fragilidades do modeloliberal, como numa eroso normativa da opinio pblica que se exacerbar aolongo do sc. XX.

    A Opinio Pblica Contempornea

    As Contradies Interna e Externa

    Ora na confluncia do passado e do presente que encontramos a opiniopblica hodiernamente reinante. Ela debate-se, como tantas outras formula-

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    A Estrela (De)Cadente: uma breve histria da opinio pblica 69

    es das cincias sociais e humanas, entre o ser e o dever ser, entre a ideologiae a utopia, entre a quantificao e a qualificao. A opinio pblica submete-se a criticismos e , na actualidade, um conceito de contornos difusos e fluidos,hidra de mil-cabeas capaz de apresentar diversas formas. A tal ponto, dir-se-ia, que apenas pela conjugao das diversas acepes numa famlia semnticase poderia, a bom rigor, aproximarmo-nos da sua definio.

    A controvrsia na sua clarificao advm, sobretudo, das contradies quea expresso opinio pblica tenta redimir.

    Ao nvel de uma contradio interna, a opinio pblica depara-se comuma dissenso semntica porque valoriza ao mesmo tempo dois plos anta-gnicos entre si, a opinio e o pblico. A opinio (opinio) aponta para umaunidade de conhecimento individual, enquanto o pblico denota uma unidadesinttica de mltiplas opinies individuais. A contradio interna da expres-so opinio pblica mascara, assim, a tenso primordial entre o singular eo plural, entre aquilo que prprio (idion) e aquilo que comum (koinon),se quisermos, entre um princpio individual e um princpio colectivo. A opi-nio (doxa) , desde o pensamento grego clssico, o eco da subjectividade dosseres humanos. O termo opinio no idioma alemo (Meinung) no escondeque um facto meu (meine), isto , que pertence, em exclusivo, a cada um.Ferdinand Tnnies identifica mesmo a actividade de opinar (Meinen) com opensar (Denken) (Tnnies, 2000: 117). J o pblico compreendido comoo oposto da opinio: ele implica a presena de um conjunto de pessoas quese renem entre si e em que os traos idiossincrticos permanecem elididosa favor de aspectos essenciais que preenchem a identidade comum. Existe,portanto, no ncleo da opinio pblica, um confronto de tendncias conflitu-antes que provocam, desde o sc. XVIII, uma oscilao de enunciaes emtorno dos aspectos holsticos (colocando a nfase na esfera colectiva6), e dosaspectos particularistas (atribuindo destaque componente individual) (Price,1992: 2).

    Mas encontramos igualmente uma contradio externa que se realiza en-tre os sujeitos da opinio pblica e os sujeitos a quem ela dirigida, entre aexpresso e a realizao da opinio pblica. Com o advento dos dispositivostecnolgicos de mediao simblica essa contradio agudizou-se. Ainda

    6 Por exemplo, James Bryce define a opinio pblica como um agregado de tudo aquilo que pensado e dito acerca de um assunto (Bryce, 1981: 3). Nesta definio, a opinio pblica desprovida, portanto, de um carcter tico-moral.

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    que o pblico fosse compreendido como o fundamento normativo da demo-cracia, na medida em que o forum pblico foi moldado atravs da discussocrtica sobre os assuntos pblicos pela educao e pelo cultivo individual, osmodernos mass media criaram um novo tipo de pblico despolitizado e inde-pendente da participao no processo de tomada de deciso (Splichal, 1999:51).

    Com efeito, a opinio pblica contempornea resulta no s da falncia domodelo liberal como tambm de circunstncias e factores caractersticos dodesenvolvimento das nossas sociedades, de que destacamos, a democracia demassa, e o incremento dos fluxos comunicacionais sofrido com o desenvolvi-mento medialgico dos dispositivos tecnolgicos de mediao simblica. Aoperder os atributos prprios da publicidade crtica, e pelo facto de que a ex-presso de opinio foi substituda pela apresentao da opinio, fala-se hojena sua dissoluo.

    A Opinio Pblica Estatstica da Sociedade de Massa

    O crescimento demogrfico e o sufrgio universal, com a concomitanteexpanso das liberdades e direitos individuais entrecruzam-se intimamentecom a opinio pblica ao ponto de se afirmar que se trata de uma opiniode massa, constituda j no verdadeiramente por pblicos, como em po-cas anteriores, mas sim por esta nova sociabilidade a que damos o nome demassa, formas de agregao social dos indivduos que tem por base relaessociais frgeis, superficiais e burocratizadas (Pissarra Esteves, S/D). Os p-blicos no se extinguem; no entanto, perdem a sua eficcia simblica o quecorresponde a uma profunda alterao dos padres de participao, os quaislimitam as subjectividades e impedem a discursivizao argumentativa ago-nstica levando o indivduo e o cidado indiferena, ao amorfismo e in-terpretao dos assuntos apoiada em aspectos apolticos e acrticos. Se noh verdadeiros sujeitos na massa, ento no h tambm lugar para falarmosem direitos, em obrigaes, ou responsabilidades; tudo o que conferia umaespessura tico-moral opinio pblica se desvanece na massa surgindo emseu lugar um territrio politicamente pantanoso mas muito propcio para amanobra de certos (e poderosos) interesses particulares organizados (idem).O pblico perde, por isso, a sua perfomatividade caracterstica como espaocomunicacional e a opinio pblica pauperiza-se. Os dispositivos tecnolgi-

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    cos de mediao simblica apropriam-se do enfraquecimento dos pblicos etomam para si certas prerrogativas, entre as quais o papel de discusso poltica- que, em conjunto com a emergncia do Estado-Providncia, faz da opiniopblica um acondicionamento funcional com vista a processar a legitimi-dade das decises polticas. A opinio pblica foi anexada ao funcionamentoestatal7 e, sob a forma de sondagens e inquritos de opinio (particularmenteatractiva ao funcionamento dos dispositivos tecnolgicos de mediao sim-blica), funciona como instrumento da aco poltica cuja funo passa porconstruir a ideia de que existe uma opinio pblica unnime, e [quer] impora iluso de que existe uma opinio pblica como somatrio puramente aditivodas opinies individuais, [quer a iluso] de que existe algo como a mdia dasopinies ou a opinio mdia (Bourdieu, 1972: 224). Porm, como massa, oindivduo incapaz de se colocar criticamente no papel de agente enunciadorde opinio8. A opinio pblica no passa disso mesmo; de uma opinio. Umaopinio de maioria formulada por uma maioria e para uma massa. Tocquevillehavia j percebido os efeitos perniciosos da massa cuja opinio no nasce dapersuaso mas da imposio, quando falava da comutao do reino da crticapelo da opinio (Tocqueville, 1981: 17). Mill sentia a mesma inquietao que

    7 Esta ideia estava j presente em Hegel cujo entendimento da esfera pblica est subordi-nado funo de integrar as opinies subjectivas dos indivduos na objectividade que carac-teriza o Estado. A opinio pblica v-se por isso privada de ser o garante ltimo do debatepoltico. Ela s existe em afinidade com o Estado que se assume como a realidade da liberdadeconcreta e a conciliao dos interesses particulares com os interesses universais (Bavaresco,1998: 119). A reside a crtica de Hegel ao sufrgio universal: este repousa sobre a aparnciaatomstica da opinio pblica e corresponde a uma concepo abstracta da vida poltica por-que ignora que o Estado a universalidade concreta que exprime (dialecticamente) o interesseuniversal e o interesse particular. Constata-se que esta uma posio completamente oposta liberal que identifica o Estado, no com a liberdade mas com a autoridade. Para Hegel, aliberdade no constitui uma esfera apartada do Estado (Hegel, 1973: 187-229).

    8 Embora fosse pertinente mencionar outros autores, refiramos que os pensamentos de Sig-mund Freud e de Vilfredo Pareto incluem uma crtica racionalidade do sujeito que podemosestender incapacidade crtico-racional de formao de opinio pblica. Freud f-lo ao su-blinhar outras dimenses da mente humana, nomeadamente, a dos instintos, desejos e pulsesque fazem do homem um sujeito j no pleno (como a Ilustrao defendia) mas determinadopelo conflito entre o consciente e o inconsciente. Por seu turno, Pareto ao partir da separaoentre aces lgicas (adequao entre meios e fins) e aces no-lgicas, reduz o comporta-mento humano a resduos e derivaes, isto respectivamente, a sentimentos no-lgicos e ajustificaes pstumas para esse comportamento. As opinies, so para ele, simples tentativasde racionalizao de resduos bsicos.

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    Tocqueville quando criticava a esfera pblica de, dominada pela multido, serincapaz de dar racionalidade s suas deliberaes. Os indivduos esto, nopresente, perdidos na multido. Em poltica quase uma trivialidade dizerque a opinio pblica rege o mundo. O nico poder merecedor esse nome odas massas, e dos governos quando se fazem o rgo das tendncias instintosdas massas. Isto verdade tanto nas relaes morais e sociais da vida privadacomo nos negcios pblicos (Mill, 1909: 41).

    A opinio pblica imposta por outros. Porque ao indivduo mancam ascondies que lhe permitem constituir como polticas as questes e de lhesaplicar as categorias polticas. O mundo da poltica est fora de alcance,longe da vista e fora da mente. Tem de ser explorado, anunciado e imagi-nado (. . . ) Aquelas imagens, pelas quais grupos de pessoas ou indivduosagindo em nome dos grupos, constituem a Opinio Pblica em letras mais-culas (Lippman, 2004: 16). A produo tcnica de opinio pblica em queconsistem as sondagens de opinio culmina na inverso da relao Estado eopinio pblica: j no a opinio pblica a nortear a aco estatal, o Es-tado a controlar a produo de opinio pblica que deixa de ser uma produocrtico-racional9 para ser uma produo tcnica alicerada estatisticamente,confundindo-se os planos quantitativo e qualitativo. Uma opinio pblica in-dustrialmente produzida baseada numa fico estatstica (idem) j no tempoder vinculativo porque os indivduos valem apenas enquanto nmero, en-tidade aritmtica e abstracta, sem identidade. As sondagens colocam entreparnteses o estatuto dos indivduos; mais, retiram-lhes a sua subjectividade esimplificando o raciocnio poltico em dicotomias estreis. A opinio torna-se,assim, um recurso de mercado, e a lgica econmica capitalista de sobrepora quantidade qualidade, estende-se at ao domnio da publicidade e da po-ltica. Com efeito, a forma abstracta da mercadoria destinada a converter-seem valor puro de troca acaba por subordinar todas as restantes dimenses soci-ais (. . . ). neste contexto que o espao pblico se autonomiza e se transformade modo a garantir a circulao generalizada, como campo generalizado dapublicidade dos produtos. Deste modo, a imprensa, de veculo da opinio

    9 Apesar de (tendencialmente) despida da sua racionalidade crtica, a opinio pblica nose torna irracional. Pelo contrrio, ela assume-se segundo a hiperracionalidade, designada-mente na forma como concretiza a lgica instrumental e um racionalismo utilitarista (PissarraEsteves, S/D). Portanto, uma racionalidade efectivada s despesas das outras dimenses darazo.

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    publicamente produzida nos espaos de debate e convvio, torna-se pouco apouco produo de opinio, substituindo-se, assim, ao trabalho de produocolectiva que orientava o projecto iluminista (. . . ) (Rodrigues 1990: 41). Opblico transmuta-se em objecto de discurso.

    Desse modo, os meios da comunicao pblica so insuficientes para ocomprometimento poltico (Dewey, 1927: 181). A opinio publica , antes demais, uma construo e uma mise en reprsentation que se interpe entre oscidados e os aparelhos poltico-informacionais. A opinio apenas um cortetcnico-estatistico desenhado com laivos de uma anlise psico-sociolgicapresa observao de atitudes tomadas como unidades mnimas de signifi-cao. A opinio pblica torna-se o rtulo de uma anlise scio-psicolgicade processos grupais (. . . ); o pblico compara-se massa, depois ao grupo,como o substrato scio-psicolgico de um processo comunicativo e interac-tivo entre dois ou mais indivduos (Habermas, 1991: 241). A psicoligizaodo pblico levada a cabo pelas sondagens de opinio transforma a opinio p-blica numa mera aluso a um processo de comunicao colectiva, e restringe-aa um agregado de respostas annimas de indivduos isolados a um conjuntode questes arbitrariamente definidas. Neste modelo behaviouristico, todosos atributos da opinio pblica do sc. XVIII so excludos, nomeadamente esobretudo, a formao de um consenso da cidadania pela discusso pblica. Oproblema coloca-se agora ao nvel das funes especficas da comunicao pblica e poltica e o papel do Estado e instituies na realizao da opiniopblica.

    As sondagens que esto na origem moderna da opinio pblica podemser sintetizadas como instrumentos polticos de obnubilao e sentenciado-res de posies, mais do que produes discursivas do pblico. Atravsda multiplicidade de lugares que pode ocupar no discurso e da flutuao dassuas figuras narrativas e dos seus efeitos de sentido, a opinio pblica maisuma entidade inserida numa estratgia de legitimao e contralegitimao,uma arma de mobilizao poltica do que um conceito cientfico ou um instru-mento de anlise da realidade social (Rodrigues, 1988: 39). O pblico, en-quanto categoria de juzo crtico no produz uma opinio avalizada. Por issoBourdieu (1972) acredita que a opinio no existe e denuncia, mesmo, algunspressupostos frgeis do modelo liberal de opinio pblica. Trs postulados

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    sofismticos so denunciados10: a opinio pblica tecnicamente produzidatem implcito que todos podem ter uma opinio e que esta est ao alcance detodos; pressupe uma paridade opinativa, como se todas as opinies de equi-valessem; e supe que existe um consenso sobre as questes que devem sercolocadas sob inqurito.

    Nas actuais condies de funcionamento da sociedade, a igualdade deacesso informao e ao conhecimento no se encontra equitativamente dis-tribuda, nem os enunciadores so desprovidos de estatutos simblicos. Naverdade, cada vez mais se procuram autoridades que asseverem certas po-sies dominantes e que comentem os tpicos dos dispositivos tecnolgicosde mediao simblica. Este comentrio feito pelos fazedores de opinio mais a inculcao de uma viso literalmente ortodoxa e aceite sem dissenses,do que uma oportunidade individual de re-interpretao dos acontecimentos.Ora s existe acordo nas questes a serem objecto das sondagens se virmos aquesto unilateralmente: pelo lado dos detentores de poder poltico e econ-mico.

    Mas se a opinio pblica se viu desprovida dos atributos tico-morais,significar isso que no haver opinio pblica, como afirma Bourdieu?

    A Opinio Pblica Sistmica

    Efectivamente a opinio pblica de uma publicidade crtica deu lugar aum outro tipo de opinio pblica, fruto das condies polticas, econmicase sociais da modernidade tardia. A opinio pblica contempornea deve serobservada luz da teoria dos sistemas, na crescente complexidade funcionaldas sociedades ps-industriais - que j no se baseiam no conceito de opiniopblica liberal - e ao mesmo tempo salientar o papel dos dispositivos tecno-lgicos de mediao tecnolgica nesse processo. Pela necessidade de analisaros mecanismos que subjazem formao de opinio pblica actual, Luhmann(1978) cunhou o conceito de tematizao como o dispositivo de construo daopinio pblica das sociedades ps-industriais consentneo com a complexi-dade estrutural que as sociedades apresentam e com a transformao inerentedo sistema poltico. As sociedades complexas caracterizam-se pela diferenci-ao funcional e diviso em subsistemas ou sistemas parciais, pela diviso do

    10 Bourdieu foi, na sua anlise da opinio pblica, muito influenciado por Herbert Blumer,nomeadamente na formulao dos seus trs postulados. Vide Blumer, 2000: 147-160.

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    trabalho e especializao do conhecimento, e pelo aparecimento de proces-sos de institucionalizao que reduzem a complexidade do meio. Os sistemastendem para a sua auto-manuteno atravs de mecanismos retroactivos queregulam a relao do sistema com o meio encontrando-se este em permanentemutao.

    No contexto de sociedades funcionalmente diferenciadas, a opinio p-blica entendida como mecanismo de reduo da crescente complexidadedos sistemas sociais que estabelece e delimita, por intermdio da tematizao,um conjunto de assuntos sobre os quais se deve pensar. Ela corresponde snecessidades do sistema poltico de responder s expectativas dos outros sub-sistemas. A tematizao consiste no processo de definio, estabelecimentoe reconhecimento pblico dos grandes temas, dos grandes problemas polticosque constituem a opinio pblica, atravs da aco determinante dos meios decomunicao de massas (Saperas, 2000: 89).

    Neste entendimento, a opinio pblica no tem por objecto a generaliza-o do contedo das opinies individuais atravs de frmulas gerais, aceit-veis por todo aquele que faa uso da razo, mas sim a adaptao da estruturados temas do processo de comunicao poltica s necessidades de deciso dasociedade e do seu sistema poltico (Luhmann, 1978: 98).

    A opinio pblica no s deixa de ser o redundamento da discusso raci-onal e livre dos temas de interesse pblico, como tambm j no assenta nadiversidade de opinies expressas, nem regulada pelo objectivo do consenso.A contrario, a opinio pblica agora uma estrutura temtica da comunica-o pblica (idem: 97), instrumento de seleco da relevncia por parte dosdispositivos tecnolgicos de mediao simblica em funo das necessidadesdo sistema poltico, reduzindo, dessa forma, a complexidade dos sistemas esubsistemas sociais ao apontar para um nmero circunscrito de temas, e re-clamando possveis opinies que esses temas podem gerar. O sistema polticoorienta-se pela opinio pblica que limita e selecciona as suas possibilidadesde movimento. A opinio pblica forma uma espcie de espelho da sociedade,no qual o sistema poltico observa e se observa. Assim, o espelho da opiniopblica, tal como o sistema dos preos de mercado, torna possvel uma ob-servao dos observadores. Como sistema social, o sistema poltico usa aopinio pblica para se tornar capaz de se observar e desenvolver estruturasde expectativas correspondentes. A opinio pblica no serve para estabele-cer contactos externos. Serve a clausura auto-referencial do sistema poltico,

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    o crculo fechado da poltica (Luhmann, 2001: 87). Essa relao entre opi-nio poltica e sistema poltico imbricada mas no uma de causa/efeito.Afirma-se, antes, enquanto estrutura e processo (Bckelmann, 1983: 56).

    Este mecanismo de reduo da complexidade dos sistemas sociais e dacomunicao sistmica apresenta claros efeitos cognitivos, ao constituir, pelaseleco temtica, os limites do pensvel. A tematizao indica no comopensar mas, pelo menos, indica o que pensar. De certa forma, a tematizaodesempenha uma funo semelhante ao do esteretipo enquanto mecanismode formao de hbitos de apreenso e de criao de sentido estvel e con-sistente, que provoca uma sensao de segurana e ordem ao criar padresdefinidos de expectativas (cf. Lippman, 2004: 44). Por outro lado, o con-ceito de tematizao, em estreita articulao com o de opinio pblica, revelao facto dos dispositivos tecnolgicos de mediao simblica, na sua rotinado exerccio da sua actividade, contriburem, influenciarem e determinaremo funcionamento dos sistemas sociais, designadamente o sistema poltico. Aformulao luhmanniana tem a virtude de ser sensvel relao entre umacomunicao institucionalizada e uma comunicao informal e individual aosalientar a associao entre formao de opinio pblica e os dispositivos tec-nolgicos de mediao simblica.

    Segundo a systemstheorie de Luhmann, o conceito de opinio pblica re-nuncia s expectativas de racionalidade e a uma revitalizao da vida civil.A opinio pblica nas sociedades ps-industriais , sobretudo, um rgo-guiae uma estrutura comum de sentido que permite o melhor funcionamento so-cial. Ela no determina o exerccio do poder poltico, nem a formao deopinio, mas configura os contornos desse mesmo exerccio ou formao. Ocorolrio desta concepo de opinio pblica extremamente relevante: aopinio pblica tem o mesmo papel que a tradio nas sociedades antigas11:oferecer algo a que se possa aderir e ser salvo de recriminao (Luhmann,op.cit: 85).

    11 Tnnies e Luhmann partilham a viso da opinio pblica como adaptao estrutural ssociedades (modernas, no caso do primeiro, ou da modernidade tardia no caso de Luhmann).Tal como Tnnies, Luhmann coloca a opinio pblica como substituto da religio.

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    Concluso

    A opinio pblica das sociedades industriais j no pode possuir a eufo-ria ou as veleidades liberais de uma publicidade crtica. Apenas disforica-mente se pode actualmente consider-la, embora comporte ainda potenciaisde emancipao. Quanto muito a opinio pblica contempornea uma opi-nio quasi-pblica (Habermas, 1991: 247) que, embora seja endereada a umavasta audincia, no preenche os requisitos de um processo pblico de debatecrtico-racional, tal como proposto no sc. XVIII. A opinio quasi-pblicatraduz um comrcio da opinio; j no instncia de formao mas de impo-sio. J no reflecte as subjectividades, molda-as. A razo cedeu perante aemoo. J no acontece em dilogos intersubjectivos e presenciais, media-tizada tecnologicamente. J no afervel discursivamente, apenas medianteum corte tcnico da realidade. A opinio pblica j no se realiza num homempblico, mas sim num homem abstracto, quantificvel e estandardizado.

    O priplo sinttico que empreendemos em torno da histria do conceito deopinio pblica salienta que, no obstante o vigor apresentado na aurora doliberalismo, a opinio pblica hoje marcada por uma profunda desconfiana.Embora continue a ser uma referncia fundamental da teoria poltica demo-crtica, v-se denunciada. Consequncia da sua progressiva tecnicizao, aopinio pblica assiste eroso da sua legitimidade.

    De estrela cadente, a opinio pblica, primeiro substantivada, depois ad-jectivada, por fim tecnicizada, transformou-se numa estrela enfraquecida; numaestrela decadente.

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