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EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR COM A CAPOEIRA NA EDUCAÇÃO FÍSICA INFANTIL: MOVIMENTO DIALÓGICO PARA A DIVERSIDADE ETNICORRACIAL Eliton Clayton Rufino Seára 1 Resumo: Este escrito 2 , que mais pode ser chamado de um diálogo com o leitor, tem o objetivo de desenvolver considerações acerca de um trabalho realizado com a capoeira nas aulas de educação física na educação infantil. Buscou-se o aprendizado desta manifestação a partir de um olhar crítico- reflexivo e emancipatório. O trato das questões históricas, sociais e antropológicas que possibilitassem um olhar para a diversidade etnicorracial foi ressaltado. A partir disso, serão apresentadas descrições de seis intervenções realizadas com as turmas de Jardim I e Pré-escola em um CEI (Centro de educação infantil) localizada na cidade de Itajaí (SC)-Brasil. Ao embasar-se na concepção crítico- emancipatória explora-se também o caráter interdisciplinar que, por sua vez, é não fragmentário. Ao fim deste trabalho foi possível concluir que o conteúdo Capoeira nas aulas de Educação Física na educação infantil possibilita trabalhar desde os aspectos históricos da escravidão, os elementos musicais que a rodeiam, o jogo, a dança e luta e, isso tudo, através de brincadeiras, mostrando neste ensejo que a diversidade etnicorracial pode ser abordada desde a infância. Palavras chave: Capoeira- educação infantil- diversidade etnicorracial Introdução É impensável iniciar um relato de experiência como este, sem partir pelo viés critico do contexto da diversidade no âmbito educacional infantil. Está-se aqui, mencionando-se a relação, forma e até mesmo os processos didáticos com que se tratam diversos conhecimentos relacionados à diversidade etnorracial no Brasil: ou seja, na forma de ‘’datismos’’ 3 . Com isso, direcionar um trabalho que possibilite quebrar este paradigma, é revelar a importância dessas discussões (Diversidade etnicorracial) em um âmbito social, ou seja, na construção social do individuo, também englobando questões políticas e de pluralidade social, em que os educandos devem compreender e respeitar as diferentes culturas, etnias, entre outras características particulares. 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciado em Educação Física (Univali). Professor de Ed. Física da secretária municipal de educação de Itajaí-SC e professor universitário da disciplina de lutas e artes marciais da faculdade Avantis 2 Este projeto foi contemplado com 3º lugar no prêmio mérito educacional na categoria diversidade etnicorracial promovido pela prefeitura de Itajaí-Secretaria de Educação 3 Ao trazer esta primeira reflexão, tem-se bastante claro que, trabalhar apenas no dia do índio, no dia da consciência negra, no dia disto, ou daquilo, é uma forma de simplificar, tornar raso e não causar impacto efetivo de transformação cultural nos indivíduos por meio da intervenção pedagógica.

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EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR COM A CAPOEIRA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

INFANTIL: MOVIMENTO DIALÓGICO PARA A DIVERSIDADE

ETNICORRACIAL Eliton Clayton Rufino Seára1

Resumo: Este escrito2, que mais pode ser chamado de um diálogo com o leitor, tem o objetivo de

desenvolver considerações acerca de um trabalho realizado com a capoeira nas aulas de educação

física na educação infantil. Buscou-se o aprendizado desta manifestação a partir de um olhar crítico-

reflexivo e emancipatório. O trato das questões históricas, sociais e antropológicas que possibilitassem

um olhar para a diversidade etnicorracial foi ressaltado. A partir disso, serão apresentadas descrições

de seis intervenções realizadas com as turmas de Jardim I e Pré-escola em um CEI (Centro de

educação infantil) localizada na cidade de Itajaí (SC)-Brasil. Ao embasar-se na concepção crítico-

emancipatória explora-se também o caráter interdisciplinar que, por sua vez, é não fragmentário. Ao

fim deste trabalho foi possível concluir que o conteúdo Capoeira nas aulas de Educação Física na

educação infantil possibilita trabalhar desde os aspectos históricos da escravidão, os elementos

musicais que a rodeiam, o jogo, a dança e luta e, isso tudo, através de brincadeiras, mostrando neste

ensejo que a diversidade etnicorracial pode ser abordada desde a infância.

Palavras chave: Capoeira- educação infantil- diversidade etnicorracial

Introdução

É impensável iniciar um relato de experiência como este, sem partir pelo viés critico

do contexto da diversidade no âmbito educacional infantil. Está-se aqui, mencionando-se a

relação, forma e até mesmo os processos didáticos com que se tratam diversos conhecimentos

relacionados à diversidade etnorracial no Brasil: ou seja, na forma de ‘’datismos’’3.

Com isso, direcionar um trabalho que possibilite quebrar este paradigma, é revelar a

importância dessas discussões (Diversidade etnicorracial) em um âmbito social, ou seja, na

construção social do individuo, também englobando questões políticas e de pluralidade social,

em que os educandos devem compreender e respeitar as diferentes culturas, etnias, entre

outras características particulares.

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciado em Educação Física

(Univali). Professor de Ed. Física da secretária municipal de educação de Itajaí-SC e professor universitário da

disciplina de lutas e artes marciais da faculdade Avantis 2 Este projeto foi contemplado com 3º lugar no prêmio mérito educacional na categoria diversidade etnicorracial

promovido pela prefeitura de Itajaí-Secretaria de Educação 3 Ao trazer esta primeira reflexão, tem-se bastante claro que, trabalhar apenas no dia do índio, no dia da

consciência negra, no dia disto, ou daquilo, é uma forma de simplificar, tornar raso e não causar impacto efetivo

de transformação cultural nos indivíduos por meio da intervenção pedagógica.

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A partir dessas considerações, e no que diz respeito a esta ótica voltada em especifico a

Educação Fisica na educação infantil e, que propicie o refletir sobre a diversidade, é que este

projeto foi pensado. O interesse pelo tema Capoeira nas aulas de educação física com as

turmas de Jardim I e pré, além de corroborar com os preceitos da lei 10.6394 de 2003, que

obriga a tematização de conteúdos que se vinculem as questões afrodescendentes, vem da

busca de novas possibilidades de mudança, e de um olhar crítico sobre a realidade, com uma

nova forma de intervenção que busque refletir sobre a diversidade da cultura brasileira em

seus movimentos, que deram origem à Capoeira.

Acompanhando este raciocínio busquei introduzir a capoeira através de uma

concepção critico-emacipatória5 com a intenção de promover através do diálogo que se dá

corporalmente, discussões e experiências sobre esta manifestação corporal, ao qual menciono

este processo segundo (Seára, 2014, p.1) como um diálogo em movimento.

É importante salientar, que o tema foi uma apropriação trazida também pelos

educandos, pois em uma avaliação diagnóstica realizada através de desenhos sobre o que mais

gostavam de brincar, apareceram brincadeiras de luta(s) e jogos de oposição, sendo assim,

uma temática que não partiu apenas da ‘‘vontade’’ do professor, mas de necessidades latentes

de alguns educandos.

Partindo desses pressupostos, é cabível justificar a importância de abordar a capoeira

como uma temática que trata dos processos escravocratas, do preconceito racial de europeus

(brancos) sobre africanos (negros) e, que desde a educação infantil não pode e não deve ser

negado, pois, expressa uma manifestação de grande representação da cultura afro-brasileira,

imprimindo relações histórico-culturais de lutas da opressão, estas que por sua vez tratam de

ações que se direcionam na busca de valores da construção do cidadão, juntamente buscando

o poder de reflexão e criticidade da realidade do passado e também do presente.

4 Art. 1

o A Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e

79-B:"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se

obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.§ 1o O conteúdo programático a que se refere

o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura

negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.(Fonte:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm). 5 Esta concepção tem origem no pensamento trazido por Elenor Kunz (1992). Seu prisma vem de encontro com o

entendimento que não há movimento pelo movimento, mas sim que o este movimento faz parte da história e da

transformação do sujeito e, tudo isso não é possível sem a premissa do diálogo.

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Acredito veemente, que através da Capoeira de forma lúdica, pôde-se despertar o

interesse dos educandos e fazer com que os mesmos tivessem um olhar crítico e reflexivo

sobre a própria prática corporal.

Concluindo este processo justificatório, o trabalho em questão tende a observar três

dimensões: Conceituais procedimentais e atitudinais. Ainda neste ponto, é preciso deixar

claro que a educação física deve expressar-se a partir destas três dimensões, não sobrepondo

nenhuma em detrimento a outra.

Construção teórica: concepção crítico-emancipatória e capoeira

Na abordagem crítico-emancipatória são vistas três competências nas quais se deve

trabalhar com o educando: a objetiva, social e comunicativa. A competência objetiva diz

respeito ao que o educando deverá construir entre conhecimentos, habilidades e, também esta

competência mostra que o educando precisa lidar com diferentes destrezas e diferentes

técnicas1 que sejam racionais e eficientes.

Já na competência social diz que deverá compreender as diferentes relações que o

homem tem em uma sociedade, como relações histórias, culturais, sociais, também deve

entender os problemas que o norteiam e as contradições das relações que habitam ao seu

redor. Por fim esta competência trata de estabelecer conhecimentos que o educando ira

utilizar em sua vida em comunidade.

Enquanto a competência comunicativa é importante salientar que o ser humano utiliza

a linguagem verbal, porém ela é apenas umas das linguagens que podem ser usadas. O

movimento se exprime em forma de linguagem, a criança, por exemplo, se manifesta e se

comunica através de seus movimentos, pois sabemos que sua capacidade de se expressar

corporalmente é indiscutível.

A competência comunicativa na abordagem crítico-emancipatória se faz

importantíssima, pois para esta abordagem saber se comunicar e entender o que o outro quer

dizer é um processo de reflexão que desencadeia ação de um pensamento critico.

Para a competência comunicativa a linguagem verbal é muito importante, assim como

a linguagem corporal, no entanto nesta abordagem a verbal é vista como um processo que ira

auxiliar o educando a sair apenas da fala dos problemas, fatos que o rodeiam e ira tornar em

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nível de discurso, ou seja, o educando saber refletir e discutir as questões sobre o que se esta

trabalhando.

Esta abordagem é completamente visada em uma ótica crítica, já que Kunz (1994),

defende o ensino crítico, pois é a partir dele que os educandos passam a compreender a

estrutura autoritária dos processos institucionalizados da sociedade e que formam as falsas

convicções, interesses e desejos. Desta forma, a missão da Educação crítica é promover

condições para que estas estruturas autoritárias sejam suspensas, e o ensino encaminha no

sentido de uma emancipação, possibilitado pelo uso da linguagem.

Quando falamos em visão crítica de ensino podemos introduzir a Capoeira como

conteúdo desta magnitude A capoeira no contexto escolar, vista como cultura de movimento

deve ter um olhar de movimento critico social, na idéia de Falcão (2003).

A capoeira é uma manifestação da cultura afro-brasileira, a mesma constitui-se numa

atividade em que o jogo, a luta e a dança2 se interpenetram (Falcão, 2003, p.16). Mesmo

sendo ao mesmo tempo luta, dança e jogo, o seu praticante é visto como jogador e não lutador

ou dançarino. Com·isso, fica evidenciado que a capoeira se diferencia de outros tipos de lutas,

visto que o elemento jogo redimensiona o conceito dessa cultura de movimento. Segundo a

ótica de Huizinga (1990), o jogo é uma atividade em que predomina a alegria, não precisa ser

justificado e nem precisa de um objetivo para ocorrer. Sendo analisado pela visão·de jogo, ela

consegue atender a necessidade de fantasia, utopia, justiça e estética e, ainda, desperta o gosto

pelo inesperado, pelo imprevisível.

A dança na capoeira se expressa no gingado centrado nos quadris. No embalo do toque

do berimbau, os capoeiras descrevem círculos no espaço da roda, fazendo com que '' o corpo

lute dançando e dance lutando'', remetendo a capoeira '' a uma zona imaginaria e ambígua,

situada entre o lúdico e o combativo'', conforme Letícia Reis (1977, p. 215).

Já enquanto luta a capoeira restaura suas origens. É importante observar que o jogo e a

dança contribuem para a dissimulação do componente luta na pratica da capoeira. ''Através do

jogo de capoeira, os corpos negociam, e a ginga significa a possibilidade de barganha (troca),

atuando no sentido de impedir o conflito'' (Reis, 1977, p. 225).

No que se refere ao nome capoeira, sabe-se que escravos oriundos de quilombos

(geralmente situados em florestas), preferiam lutar, quando necessário, em locais onde as

condições ambientais pudessem lhes ser favoráveis; essa região escolhida costumava ser a

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"capoeira", denominação dada a terra recentemente queimada, quando começam a brotar as

primeiras Poaceae (atual denominação das gramíneas).

Com o passar dos tempos foram ocorrendo diversas transformações nesta

manifestação cultural, segundo NORONHA e NUNES PINTO (2004), a Capoeira como

manifestação cultural, ao longo da história do nosso país, sofreu modificações na sua

constituição, na maneira de se interpretá-la, praticá-la e difundi-la, acompanhando mudanças

políticas, econômicas e sociais. Foi considerada de contravenção penal a símbolo da

identidade nacional, devido suas origens africanas e por sua maioria ser praticada pela raça

negra.

A capoeira na escola além de trabalhar questões culturais, também engloba diferentes

componentes curriculares como história, geografia, arte, música e principalmente a Educação

Física, que pode unir os conhecimentos destas disciplinas a própria prática. Nesta ótica inseri-

la no contexto escolar, mais especificamente na Educação Física se faz necessário, já que esta

manifestação cultural faz parte dos conteúdos propostos no próprio (PCN) e pelas diretrizes

curriculares do município de Itajaí3.

Com relação à temática Capoeira (SEÁRA, 2009) retrata a importância da mesma no

que diz respeito aos valores que podem ser construídos:

A Capoeira se expressa em uma manifestação de grande representação da

cultura brasileira, imprimi relações histórico-culturais, estas por sua vez

tratam de ações que se direcionam na busca de valores da construção do

cidadão, juntamente buscando o poder de reflexão e criticidade da realidade

que se habita (SEÁRA, 2009, p. 4).

Neste sentido, em que se evidenciam as dimensões reflexivas n trato deste conteúdo,

observam-se neste contexto de trabalho com a capoeira os campo conceituais, procedimentais

e atitudinais, sendo assim visa-se com os alunos desenvolver os conceitos, porém é necessário

que estes observem suas práticas, entendendo os procedimentos, bem como participando

colaborativamente e ainda ressaltando as questões atitudinais, no qual englobam os valores

sociais, éticos e morais a serem pensados.

Objetivo Geral: Desenvolver a capoeira nas aulas de educação física propiciando o

aprendizado desta manifestação a partir de um olhar histórico-crítico-reflexivo para a

diversidade etnicorracial.

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Objetivos específicos:

- Contextualizar a história da capoeira através de vivências corporais e vídeos;

- Vivenciar a ginga e os golpes de defesa e ataque a partir brincadeiras em grupo;

- Conhecer, utilizar e aprender os toques básicos da capoeira a partir da utilização de instrumentos;

- Realizar rodas de capoeira com luta, dança jogo e música;

-Confeccionar pandeiros adaptados;

-Desenhar na areia e no papel instrumentos e movimentos de capoeira;

-Realizar rodas de diálogo sobre os assuntos abordados;

Relato da experiência

A própria opção pela concepção crítico emancipatória evidencia a proposta

metodológica em que o docente não é visto como centro, mas sim como aquele que propicia

debates, diálogos e direcionamentos.

Os conteúdos que foram desenvolvidos foram: História da capoeira, processo

escravocrata, movimentos básicos, ginga, cocorinha, esquiva, role, brincando de golpes,

formação de roda, iniciação ao jogo na roda e ritmo e musicalização. Além disso, foram

criadas inúmeras brincadeiras tais como: Senzala e Quilombo; corrida das senzalas; anjo

capoeirista; acompanhamentos rítmicos entre outros

As aulas foram realizadas utilizando como recurso o plano de ensino de um projeto

sobre Capoeira. Este projeto intitulado: CAPOEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:

MOVIMENTO DIALÓGICO PARA A DIVERSIDADE ETNICORRACIAL foi aos

poucos sendo construído por planos de intervenção/planos de aula. As intervenções

realizaram-se no espaço do parque, do pátio, da sala, do gramado e até mesmo refeitório.

Para o inicio do trabalho, na 1ª intervenção, utilizei o que chamamos (professor e

educandos) de LIVRO DOS CONCEITOS6, no qual o objetivo era ser utilizado como forma

de avaliação inicial ou diagnóstica acerca do que os educandos pensavam sobre dois

conceitos: Lutas e Brigas. Uma folha divida ao meio onde os educandos desenharam o que

eles achavam ser luta e briga. Nesse sentido, o objetivo era observar e trabalhar questões

conceituais para poder avançar com o tema capoeira deixando bem claro quais questões

deveriam ser observadas, tais como: respeito, cooperação e amizade. Os desenhos

6 O foco com esse livro era possibilitar vivências conceituais através da linguagem artística.

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demonstraram em suma que alguns educandos conseguiram distinguir que briga havia

desrespeito e total falta de regras e lutas tinham valores, respeito e história. Mesmo com

alguns deles tendo uma mesma visão de ambos os conceitos, pôde-se fazer uma discussão

com eles acerca da distinção.

Já na 2ª intervenção realizei o que chamo de HISTÓRIA EM MOVIMENTO7, essa

perspectiva abordou questões históricas como a escravatura, os senhores do café, os capitães

do mato, a construção de músicas relativas a este contexto pelos escravos e todos os percalços

enfrentados pelos escravos. Os educandos puderam experenciar como viviam os escravos,

seu trabalho, e as ordens que deveriam seguir. Alguns eram escravos, outros ficavam na

chibata (local onde eram chicoteados os escravos apenas), outros eram os capitães do mato e

outros senhores do café. Dentro desta dinâmica foi elaborada a brincadeira a fuga dos

escravos. Dentro desta atividade um educando era o senhor do café (hierarquia maior dos

cafezais) outros eram os capitães do mato (que pegavam os escravos) e os demais escravos.

Nessa atividade, os escravos iriam fugir ao verem os capitães do mato e estes eram mandados

pelos senhores do café. Ainda foi realizada a brincadeira Senzala e Quilombo8. Nesta, os

educandos tinham que pular para dentro do circulo quando se falava senzala e para fora do

circulo quando se mencionava quilombo. Com isso, se buscou observar a dinâmica de estar

livre e preso, oq eu acontecia constantemente com os escravos.

Pode-se notar claramente, que vários conceitos foram absorvidos, tais como os

‘’personagens’’ da história da escravidão e o que eles passavam isso como ressaltado no

inicio desse relato não pode e não deve ficar de fora das reflexões, sendo fulcral estabelecer

esses conceitos também através de brincadeiras.

A ginga foi elaborada com os educandos na 3ª intervenção. Seu processo de ensino e

aprendizagem não foi de forma metódica e linear. Construímos uma atividade no qual

chamamos de ANDANDO, DANÇADO, CORRENDO E PARRANDO. Ao fazerem que os

educandos andassem ao bater no atabaque (tambor usado na capoeira) de maneira mais

cadenciada, que corressem de maneira mais acelerada e dançassem quando a música mudasse

de ritmo e consequentemente parassem quando a secasse o som, pode-se fazer uma reflexão

7 Utilizo-me de tal dinâmica num entendimento de que existe uma memória corporal, na qual envolve a auditiva,

olfativa, visual e que uma vivência corpórea pode atrelar muitos significados que não poderiam ser construídos a

partir de uma lição no quadro. 8 Foi explicado aos educandos que senzala era o lugar que os escravos ficavam alojados/presos e que quilombo

era o local em que os escravos que conseguiam fugir do pesadelo da escravidão construíam para viver uma nova

vida. Ainda foi mencionado que quilombo ainda pode ser encontrado atualmente, lugar esse que vivem os

quilombolas.

1008

que ginga9 nada mais é que a maneira de andar dentro de uma roda, no entanto com outras

características, inclusive acompanhando a música. Além disso, foi desenhado no chão um

triangulo e mostrado que o movimento da ginga (que é considerado uma dança) é realizado

em forma de triangulo, assim pode-se usar o próprio chão que era de areia para desenhar com

o dedo a forma geométrica no chão.

‘’QUE LEGAL, ESTAMOS DANÇANDO EM CIMA DO TRIANGULO’’: fala de

um educando.

Na 4ª intervenção foram apresentados todos os instrumentos utilizados para

realização do jogo da capoeira em roda. Essa experiência, chamamos de: CONHECENDO E

TOCANDO. Foram trazidos: Berimbau, atabaque, pandeiro, caxixi, agogô, e afoxé. Após

cada educando pegar um instrumento e tocar do jeito que imaginavam ser, eles trocavam de

instrumentos com os colegas, sendo assim, todos puderam conhecer, pegar, sentir e tocar

(musicalmente) os mesmos. Uma ação muito utilizada foi o desenhar no chão de areia. Nesse

contexto, todos desenharam os instrumentos que acharam mais interessantes no chão.

Utilizaram pedras e pequenos pedaços de madeira trazidos pelo professor em um cesto. Esta

forma expressiva de lidar com os conteúdos parece ter sido muito bem aproveitada por todos,

já que desenhar é algo que os fascina.

Na mesma intervenção foram inseridos trabalhados alguns dos movimentos e golpes

básicos10

da capoeira. Estes golpes foram trabalhados com uma brincadeira que chamamos de

ANJO CAPOEIRISTA. Nesta atividade existe um pegador, e todos os outros serão anjos de

capoeira e, que para salvarem outros anjos pegos usaram seus saberes de capoeira, ou seja, os

golpes mencionados em nota de rodapé. Dessa forma, trabalharam-se os golpes e defesas,

bem como um jogo cooperativo, no qual todos necessitam de todos para participarem.

Na 5ª intervenção realizamos a TARDE DE CANTORIA. O Professor cantou

algumas músicas e os educandos dançaram sem nenhuma coreografia pré-determinada. Uma

das músicas mais cantadas foi:

‘’A maré da cheia ioiô, a maré esta cheia Iaiá 2X A maré subiu (Coro responde:) Sobe maré.

E a maré desceu: (coro responde) desce maré. O Maré com maré, maré de maré’’ 2x

9 Além desta atividade também foi trabalhada com a utilização da forma geométrica do Triângulo, esta forma

que representa a movimentação das pernas. Dessa forma os educandos faziam seus próprios triângulos e se

movimentavam nas suas extremidades 10

Meia lua de frente, benção, esquiva, esquiva lateral, cocorinha e au.

1009

Essa música faz alusão as ondas do mar e conta a história de uma menino que jogava

capoeira tão bonito quanto as ondas do mar que subiam e desciam. Nesse contexto, foi

possível explicitar uma dimensão estética de apreciação a natureza dentro do contexto da

capoeira. Além disso, quando a maré subia foi requisitado um golpe (meia lua) e quando ela

descia uma cocorinha ou esquiva11

.

Posterior a esta música fizemos um canto para relembrar a ginga:

‘’Uma perna na frente, outra perna atrás e um braço no rosto é a ginga o rapaz’’

Esse canto permite uma interpretação do movimento sem predeterminações ditados

pelo professor, fomentando assim o potencial criativo e indagador na construção de novas

referencias corporais.

No fim da experiência daquele dia fizemos como sempre realizamos nas outras uma

RODA DE CONVERSA. A partir dos comentários tecidos acerca daquelas músicas, pode-se

trazer átona a importância da música na capoeira. Assim, com base nas discussões trazidas

pelos educandos, pode-se citar aqui o que para a abordagem crítico-emancipatória está

atrelada a questão social e comunicativa, ou seja, interação e dialogicidade devem sempre

estar presentes.

Na última ação, a 6ª intervenção, realizamos todos juntos uma construção coletiva de

um cartaz de capoeira e um pandeiro adaptado de prato de flor com tampinhas de cerveja. O

trabalho de construção por ser mais complexo (envolver arame e pregos) foi feito pelo

professor com auxilio dos educandos que amassaram as tampinhas. No fim, fizemos 4

pandeiros de pratos de flores e deixamos para a turma brincar.

O cartaz evidenciou alguns desenhos das brincadeiras e pinturas de instrumentos

musicais. Várias fotos foram tiradas para arquivar o que foi feito, mas sabemos que o que fica

na memória corporal dos educandos é muito mais intenso.

Após essas intervenções e, com a finalização dessas aulas, combinamos de fazer uma

RODA DE CAPOEIRA para algumas turmas, culminando assim o trabalho de conhecimento,

experimentação e apresentação para o CEI.

11

Como o foco deste projeto não foi desenvolver habilidades motoras estabelecidas, alguns apontamentos

aparecem de forma intrínseca no relato. Mas, entendendo que Educação ‘’Física’’ não trata apenas do corpo

físico, mas sim dentro de um contexto holístico, essas habilidades estão diluídas e interpenetram-se no trabalho

corporal.

1010

Esta atividade novamente veio a ressaltar a questão de comunicação e interação entre

os educandos. E, neste sentido, fazendo valer a reflexão de Kunz (2003) ao dizer que,

descontando algumas necessidades básicas como a fome e a sede, as outras necessidades e os

outros interesses são adquiridos comunicativamente e dependem da cultura na qual o

individuo vive e que ele aprende.

Considerações finais: processo avaliativo

As intervenções realizadas procuraram a implantação de uma proposta inovadora de

conteúdo, ainda pouco vinculada no contexto escolar infantil.

As vivências dos educandos nos trabalhos em grupo, o conhecimento de uma

manifestação de grande amplitude cultural, possibilitaram a apropriação de muitos educandos

de uma nova pratica corporal, através do trabalho envolvendo relações sócio-culturais.

Pode-se dizer que a avaliação passou por três etapas: uma inicial, outra formativa e

outra final. Na verdade, não se pretende fragmentar estes processos para facetar etapas, mas

sim observar como essas etapas contribuem para alcançar objetivos propostos.

Nesse sentido, em relação aos objetivos: o geral e específicos, analisa-se que foram

alcançados principalmente ao observar as reflexões acerca da diversidade etnicorracial. Vários

conceitos (Conceituais) foram trabalhados, discutidos e refletidos. Várias atividades práticas

(Procedimentais) foram executadas com êxito e com potência criativa. E, por fim, várias

atitudes (Atitudinais), valores e questões sociais foram postas em questão ao lidar com o tema

capoeira.

A comunidade escolar participou ao ser informada que seus filhos estavam

trabalhando este tema. Foi-lhes requisitada uma pesquisa sobre a capoeira em casa. Foi

solicitado que enviassem pratos de flores e tampinhas de cerveja para confecção dos

pandeiros e, sempre que possível havia conversas com alguns pais sobre o que estava

acontecendo.

A avaliação Inicial como já dito, tratou de saber o que os educandos conheciam o que

poderiam contribuir e qual conceito/ideia tinham sobre luta e briga. Essa distinção foi crucial

para o desenrolar do trabalho, haja vista, que Paulo Freire já nos diz: Ensinar exige respeito

aos saberes dos educandos’’

1011

Já a avaliação Formativa acaba sendo a análise do processo enquanto este acontece.

Tendo a certeza de que não esperamos na avaliação um produto final, mas sim que o

importante de todo o trabalho é como ele decorre nas suas mais diversas esferas. Com esta

avaliação foi possível observar o que eles estavam pensando, como estavam agindo, o que

podia ser melhor, entre outros fatores. Sendo que tudo isso era possível como as rodas de

diálogos exercidas ao fim de cada intervenção.

A avaliação final, que foi a confecção dos cartazes e também uma conversa sobre o

que eles acharam de tudo foi muito importante. Foi nesta que decidiu-se realizar a roda para

outras salas e também explicitar os pontos positivos e negativos das atividades.

Muitos educandos disseram que gostaram da ginga, da brincadeira da fuga dos

escravos e principalmente dos instrumentos. E, no que concernem estas questões, podemos

avaliar que: O projeto propiciou a inserção dos educandos com múltiplas linguagens. O

projeto permitiu que pudéssemos dar a devida importância para a temática da diversidade

etnicorracial a partir do trabalho com a capoeira. O projeto evidenciou e quebrou uma relação

dicotômica entre físico e intelectual, ao abordar através de brincadeiras e reflexões

interpenetradas grandes problemáticas. O trabalho com música, poesia, movimentos, histórias,

linguagem midiática, entre muitos outros contextos expressa a uma relação polissêmica que a

capoeira pode exercer.

Na verdade, podemos trabalhar muitos conteúdos de maneira critica. Mas na Educação

Física, em muitas oportunidades se é priorizado os procedimentos em detrimento ao

conceitual e atitudinal. Mas, com esse relato de projeto, é possível mostrar que discutir

relação etnicorraciais de forma lúdica e ainda com crianças é sim algo possível de se trabalhar

e com certeza deve ser trabalhado.

Observando as intervenções e analisando as mesmas, posso compreender que a

utilização de uma abordagem, e especificamente a que utilizei é muito interessante, já que

podemos abrir um leque maior em nossas ações, logo que a abordagem em questão se resume

em três competências para os educandos: objetiva, social e comunicativa. Estas por sua vez

têm por finalidade a articulação da cultura do movimento com os pontos que envolvem a

comunicação e interação com os demais.

Para concluir, dentre as inúmeras possibilidades, o trabalho apontou para um olhar

diferenciado para com a Ed. Física na educação infantil e, acima de tudo ressaltou o corpo

1012

como produtor de cultura através da cultura de movimento e não somente a partir de uma

visão biológica.

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