´´etica para um jovem - faz o que quiseres
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Capítulo 3TRANSCRIPT
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SAVATER, Fernando, 1947-
Ética para um jovem / Fernando Savater ; trad. Miguel Serras Pereira. - 14ª ed.. -
Lisboa : Dom Quixote, 2007. - 158 p. 24 cm
ISBN 972-20-2839-1
Filosofia / Ética--liberdade--responsabilidade--amizade--amor--poder--respeito
17 SAV (EBMAF) - 7932
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Dizíamos antes que fazemos a maior parte das coisas porque
assim nos é mandado fazer (pelos pais, quando somos jovens;
pelos superiores ou pelas leis, quando somos adultos), porque
é costume fazê-las dessa maneira (às vezes a rotina é-nos
imposta pelos demais com o seu exemplo e através da
pressão — medo do ridículo, censura, o que os outros vão
dizer, desejo de aceitação pelo grupo... — e outras vezes
somos nós próprios a criá-la), porque são um meio de
conseguir o que queremos (como apanhar o autocarro para se
ir para o colégio) ou simplesmente porque nos dá na veneta
ou o capricho de as fazer como fazemos, sem mais razões.
Mas sucede que, em ocasiões importantes ou quando
levamos verdadeiramente a sério o que temos a fazer, todas
estas motivações correntes se revelam insatisfatórias: parece-
nos que sabem a pouco, como costuma dizer-se.
Quando temos de sair para arriscar a pele diante das
muralhas de Troia, desafiando a arremetida de Aquiles, como
fez Heitor; ou quando temos de decidir entre lançar a carga
ao mar para salvar a tripulação ou atirar borda fora uns
poucos tripulantes para salvar a mercadoria; ou... noutros
casos semelhantes, ainda que menos dramáticos (um
exemplo simples: devo votar no político que considero melhor
para maioria do país, ainda que ele, subindo os impostos,
prejudique os meus interesses pessoais, ou apoiar aquele que
me permitirá arranjar-me melhor e os demais que se
danem?), nem ordens nem costumes bastam e a questão
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também não se resolve com caprichos. O comandante nazi do
campo de concentração, que é acusado de uma matança de
judeus, tenta desculpar-se dizendo que «cumpriu ordens»,
mas a mim, em todo o caso, essa justificação não me
convence; em certos países é costume não arrendar um andar
a negros por causa da sua cor de pele ou a homossexuais por
causa das suas preferências amorosas, mas por muito habitual
que seja essa discriminação ela continua a não me parecer
aceitável; o capricho de passar uns dias na praia é
extremamente compreensível, mas, se alguém tiver um bebé
entregue aos seus cuidados e, devido a esse capricho, o deixar
sem assistência durante um fim-de-semana, esse capricho
deixa de parecer simpático, se é que não se torna criminoso.
Não és da mesma opinião que eu sobre estes casos?
Tudo isto tem a ver com a questão da liberdade, que é o
assunto de que propriamente se ocupa a ética, segundo creio
haver-te dito já. Liberdade é poder dizer «sim» ou «não»;
faço-o ou não faço, digam o que disserem os meus chefes ou
os demais; isto convém-me e eu quero-o, aquilo não me
convém e, portanto, não o quero. Liberdade é decidir, mas
também, não te esqueças, dares-te conta do que estás a dizer.
Precisamente o contrário de te deixares levar, como poderás
compreender. E para não te deixares levar não tens outro
remédio senão tentar pensar pelo menos duas vezes no que
te dispões a fazer; sim, duas vezes, sinto muito, mesmo que te
doa a cabeça... Da primeira vez em que pensas no motivo da
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tua ação, a resposta à pergunta «porque faço isto?» é do tipo
das que há pouco estudámos: faço-o porque mo mandam
fazer, porque é costume fazê-lo, porque me apetece. Mas se
pensares uma segunda vez, a coisa já muda de figura. Faço
isto porque mo mandaram fazer, mas... porque obedeço eu
ao que me mandam? Por medo do castigo? Por esperar uma
recompensa? Não estarei então como que escravizado por
quem manda em mim? Se obedeço porque aqueles que dão
as ordens sabem mais do que eu, não será aconselhável que
procure informar-me o suficiente para decidir por mim
próprio? E se me mandarem fazer coisas que não me parecem
convenientes, como quando ordenaram ao comandante nazi
que eliminasse os judeus do campo de concentração? Não
poderá uma coisa ser «má» — quer dizer, não me convir por
muito que me mandem fazê-la, ou «boa» e conveniente
mesmo que ninguém me ordene que a faça?
O mesmo se passa com os costumes. Se não pensar mais do
que uma vez no que faço, talvez me chegue a resposta de que
ajo assim «por ser costume». Mas porque diabo tenho de
fazer sempre o que é costume fazer-se (o que eu costumo
fazer)? Como se fosse escravo dos que me rodeiam, por muito
meus amigos que sejam, ou daquilo que fiz ontem, ou
anteontem, e é o meu passado! Se viver rodeado de gente
que tem o costume de discriminar os negros e isso de maneira
nenhuma me parecer bem, porque terei de imitar essa gente?
Se contraí o costume de pedir dinheiro emprestado e de
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nunca o devolver, mas cada vez me dá mais vergonha fazê-lo,
porque não poderei mudar de atitude e começar a partir de
hoje mesmo a ser mais certo com as minhas contas? Não
pode por acaso um costume ser-me pouco conveniente, por
muito acostumado que eu lhe esteja? E quando me interrogo
pela segunda vez sobre os meus caprichos, o resultado é
semelhante. Muitas vezes apetecem-me coisas que a seguir se
voltam contra mim e de que logo me arrependo. Em assuntos
sem importância, o capricho pode ser aceitável, mas, quando
estão em jogo coisas sérias, deixar-me levar por ele, sem
refletir sobre se se trata de um capricho conveniente ou
inconveniente, pode tornar-se muito pouco aconselhável, e
até perigoso: o capricho de atravessar sempre a rua quando
os semáforos estão no vermelho poderá uma ou duas vezes
ser divertido, mas chegarei a velho se continuar a fazê-lo
todos os dias?
Em resumo: podem existir ordens, costumes e caprichos que
são motivos adequados para agir, mas nem sempre é esse o
caso. Seria um tanto idiota querer contrariar todas as ordens
e todos os costumes, como igualmente todos os caprichos,
porque às vezes eles se revelam convenientes ou agradáveis.
Mas nunca uma ação é boa só por ser uma ordem, um
costume, ou um capricho. Para saber se alguma coisa é
deveras conveniente ou não para mim, tenho de examinar
mais a fundo o que faço, raciocinando pela minha própria
cabeça. Ninguém pode ser livre em meu lugar, quer dizer:
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ninguém pode dispensar-me de escolher e procurar por mim
próprio. Quando se é uma criança pequena, imatura, com
pouco conhecimento da vida e da realidade, a obediência, a
rotina ou o pequeno capricho são suficientes. Mas isso
acontece porque a criança depende ainda de alguém, está nas
mãos de uma outra pessoa que cuida dela. Depois, é preciso
tornarmo-nos adultos, ou seja, tornarmo-nos capazes de
inventar de certa maneira a própria vida em vez de
simplesmente viver a que outros inventaram para nós.
Naturalmente, não podemos inventar-nos por completo
porque não vivemos sozinhos e muitas coisas se nos impõem,
queiramo-lo ou não (lembra-te de que o pobre capitão não
escolheu sofrer uma tormenta no alto mar nem Aquiles pediu
licença a Heitor para atacar Troia...). Mas entre as ordens que
nos são dadas, entre os costumes que nos rodeiam ou que
nós criamos, entre os caprichos que nos assaltam, teremos de
aprender a escolher por nós próprios. Não podemos evitar,
para sermos homens e não carneiros (peço desculpa aos
carneiros), pensar duas vezes no que fazemos. E se insistires
comigo, até três ou quatro vezes em grandes ocasiões.
A palavra «moral» tem que ver etimologicamente com os
costumes, pois é precisamente «costumes» o que significa a
palavra latina mores, e também com as ordens, pois a maior
parte dos preceitos morais dizem qualquer coisa como «deves
fazer isto» ou «não te lembres sequer de fazer aquilo».
Todavia, há costumes e ordens — como já vimos — que
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podem ser maus, ou seja, «imorais», por muito ordenados e
costumeiros que se nos apresentem. Se quisermos aprofundar
deveras a moral, se quisermos aprender a sério como
empregar bem a liberdade que temos (e nessa aprendizagem
consiste justamente a «moral» ou «ética» de que estamos
aqui a falar), o melhor será deixarmo-nos de ordens,
costumes e caprichos. O primeiro aspeto que devemos deixar
claro é que a ética de um homem livre nada tem a ver com os
castigos ou os prémios distribuídos por qualquer autoridade
que seja — autoridade humana ou divina, para o caso tanto
faz. Aquele que se limita fugir do castigo e a procurar a
recompensa que outros dispensam, segundo normas por eles
estabelecidas, não goza de condição melhor do que a de um
pobre escravo. Talvez a uma criança pequena bastem o pau e
a cenoura como guias de conduta, mas para alguém já mais
crescidote torna-se muito triste continuar com essa
mentalidade. A pessoa deve orientar-se de modo diferente.
Mas é aqui necessário um certo esclarecimento dos termos.
Embora eu use as palavras «moral» e «ética» como
equivalentes, de um ponto de vista técnico (e desculpa-me
este tom mais doutoral do que o costume) elas não significam
o mesmo. «Moral» é o conjunto de condutas normas que tu,
eu e alguns dos que nos rodeiam costumamos aceitar como
válidas; «ética» é a reflexão sobre o porquê de as
considerarmos válidas, bem como a sua comparação com as
outras «morais», assumidas por pessoas diferentes. Mas,
enfim, por agora continuarei a empregar uma ou outra
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palavra sem distinção, sempre como arte de viver. Do que
peço desculpa às academias...
Recordo-te que as palavras «bom» e «mau» não se aplicam só
a comportamentos morais, e nem sequer a pessoas somente.
Diz-se, por exemplo, que Ronaldo e Raúl são futebolistas
muito bons, sem que este qualificativo tenha alguma coisa a
ver com a sua tendência para ajudar o próximo fora do
estádio ou a sua propensão no sentido de falarem sempre
verdade. São bons enquanto futebolistas e como futebolistas,
sem que tenhamos que entrar em averiguações a respeito da
sua vida privada. Também pode dizer-se que uma moto é
muito boa sem que isso implique que a consideremos a Santa
Teresa das motos: referimo-nos ao seu excelente
funcionamento e à sua exibição de todas as vantagens que
podem pedir-se a uma moto. No caso dos futebolistas e das
motos, «bom» — quer dizer, o conveniente — é algo bastante
próximo da evidência. Sem dúvida que se eu to perguntasse
tu me explicarias perfeitamente quais os requisitos
necessários para que isto ou aquilo mereça um lugar de
destaque no campo de futebol ou na estrada. E então eu
pergunto: porque não tentamos definir do mesmo modo
aquilo que é necessário para se ser um homem bom? Não nos
resolveria isso todos os problemas que nos estamos a pôr
desde há já tantas páginas?
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Não é lá muito fácil, em todo o caso. A respeito dos bons
futebolistas, das boas motos, dos bons cavalos de corrida,
etc., a maior parte das pessoas costuma estar de acordo, mas
quando se trata de determinar se alguém é bom ou mau em
geral, como ser humano, as opiniões variam muito. Vê, por
exem- p1o, o caso da Purita: a mãe lá em casa considera-a o
suprassumo da bondade, porque é obediente e educada, mas
na escola toda a gente a detesta por ser intriguista e
quezilenta. Por certo que para os seus superiores o oficial nazi
que gaseava os judeus de Auschwitz era bom e «como deve
ser», mas os judeus deviam ter sobre ele uma opinião algo
diferente. Às vezes chamar «bom» a alguém não quer dizer
nada de bom: a tal ponto que costuma dizer-se coisas como
esta — «O Fulano, coitado, é muito bom». O poeta espanhol
Antonio Machado estava consciente desta ambiguidade e na
sua autobiografia poética escreveu: «Sou bom no bom sentido
da palavra...» Sabia que, com frequência, o facto de se
chamar a um indivíduo «bom» se refere apenas à sua
docilidade, à sua tendência para não contrariar os outros e
para não causar problemas, para ser ele sempre a virar os
discos enquanto os outros dançam, e assim por diante.
Para alguns ser bom significará ser resignado e paciente,
outros chamarão boa à pessoa empreendedora, original, não
se encolhe quando chega a hora de dizer o que pensa ainda
que isso possa ferir alguém. Em países como a África do Sul,
por exemplo, alguns considerarão bom o negro que não causa
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problemas e se conforma com o apartheid, ao passo que
outros só chamarão bons aos apaniguados de Nelson
Mandela. E sabes porque é que não é simples dizer quando é
que um ser humano é «bom» e quando é que não o é?
Porque não sabemos para que servem os seres humanos. Um
futebolista serve para jogar futebol de uma maneira que
ajude a sua equipa ganhar e meta golos ao adversário; uma
moto serve para nos deslocarmos com velocidade,
estabilidade, resistência... Sabemos quando é que um
especialista nalguma coisa ou um instrumento funcionam
como deve ser porque temos uma ideia do serviço que eles
devem prestar, uma ideia do que se espera deles. Mas, se
considerarmos o ser humano em geral, a coisa complica-se:
dos seres humanos exige-se umas vezes resignação e outras
vezes rebeldia, umas vezes iniciativa e outras vezes
obediência, umas vezes generosidade e outras vezes previsão
do futuro, etc. Não é fácil determinar sequer uma qualquer
virtude: o facto de um futebolista meter um golo na baliza
contrária sem cometer falta é sempre uma coisa boa, mas
dizer a verdade poderá não o ser. Chamarias «bom» a quem
por crueldade diz ao moribundo que vai morrer ou àquele que
denuncia ao assassino o lugar onde se esconde a vítima que
ele pretende matar? As profissões e os instrumentos
correspondem a certas normas de utilidade bastante claras,
estabelecidas de fora: se forem cumpridas, está bem; se não o
forem, mal — e é tudo. Não se lhes pede mais. Ninguém exige
a um futebolista — para ser bom futebolista, não para ser um
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bom ser humano — que seja caridoso ou verdadeiro; ninguém
pede a moto que, para ser uma boa moto, sirva para martelar
pregos. Mas, quando consideramos os seres humanos em
termos gerais, as coisas deixam de ser tão claras, porque não
há nenhum regulamento que fixe o que é um bom ser
humano, nem o homem é instrumento para se conseguir seja
o que for.
Pode ser-se bom (e boa, claro) de muitas maneiras, e as
opiniões que julgam os comportamentos costumam variar
segundo as circunstâncias. Por isso dizemos às vezes que
Fulano ou Beltrana são bons «à sua maneira». Admitimos
assim que há muitos modos de o ser e que a questão depende
do âmbito em que se mova cada um de nós. Portanto, estás já
a ver que de fora não é fácil determinar quem é bom e quem
é mau, quem faz o conveniente e quem não faz. Seria preciso
estudar não só todas as circunstâncias de cada caso mas
também as intenções que movem cada pessoa. Porque
poderia acontecer que alguém tivesse pretendido fazer
alguma coisa má e o resultado, por ricochete, tivesse acabado
por sair aparentemente bom. E não vamos chamar «bom» a
quem faz o que é bom só por sorte, pois não? O contrário
também é possível: com a maior boa vontade deste mundo
uma pessoa poderia provocar um desastre e ser considerada
um monstro, embora sem ter sombra de culpa. Lamento, mas
parece-me que por este caminho pouco mais que se veja
conseguiremos.
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Mas, se já dissemos que nem ordens, nem costumes, nem
caprichos bastam para nos guiar no caso da ética e agora
concluímos que não existe um regulamento claro que ensine
o homem a ser bom e a funcionar sempre como tal, como nos
vamos arranjar? Vou responder-te de uma maneira que com
certeza te surpreenderá e talvez até te escandalize. Um
divertidíssimo escritor francês do século XVI, François
Rabelais, contou num dos primeiros romances europeus as
aventuras do gigante Gargântua e do seu filho Pantagruel.
Poderia dizer-te muitas coisas a propósito desse livro, mas
prefiro que mais cedo ou mais tarde te decidas a lê-lo por tua
conta. Dir-te-ei apenas que, em certa ocasião, Gargântua
decide fundar uma ordem mais ou menos religiosa e instalá-la
numa abadia, a abadia de Thélème, por cima de cuja entrada
se encontra escrito este único preceito: «Faz o que quiseres.»
E todos os habitantes da santa casa não fazem justamente
mais do que isso, apenas o que querem. Que te parecerá
agora se eu te disser que à porta da ética, entendida como
deve ser, está gravada apenas essa mesma instrução: faz o
que quiseres? No melhor dos casos, ficarás indignado comigo:
ora, é muito moral a linda conclusão a que chegámos! Que
não seria se toda a gente fizesse nem mais nem menos só o
que quisesse? Foi para isso que perdemos tanto tempo e
esprememos tanto os miolos? Espera, espera, não te zangues.
Dá-me uma nova oportunidade: faz-me o favor de passares ao
capítulo seguinte...