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JOAQUINA DE BRITO MARTINS ÉTICA E EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DE KANT Licenciatura em Ensino de Filosofia ISE/2006

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Page 1: ÉTICA E EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DE KANT · Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant 3 Agradecimentos

JOAQUINA DE BRITO MARTINS

ÉTICA E EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DE KANT

Licenciatura em Ensino de Filosofia

ISE/2006

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

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JOAQUINA DE BRITO MARTINS

Instituto Superior de Educação

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA

Trabalho Cientifico apresentado ao ISE para obtenção do grau de Licenciatura em

Ensino de História.

Elaborado por Joaquina de Brito Martins, aprovado pelos membros do júri, foi

homologado pelo Conselho Científico-Pedagógico, como requisito parcial à

obtenção do grau de Licenciatura em Ensino de História.

O júri:

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

Praia, ______/______/______.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

3

Agradecimentos

A agradece a todos quantos, de uma forma ou de outra, deram o seu

contributo para a concretização deste trabalho:

- Aos familiares;

- Aos colegas de curso;

- Aos colegas de trabalho, de modo especial, aos professores de Filosofia

e Português, que se prontificaram sempre em colaborar onde puderam;

- Aos amigos que sempre estiveram por perto nos momentos que mais

precisou.

- Agradece profundamente o Professor José Manuel Delgado, que de

forma sábia, dedicada e rigorosa, assumiu as orientações do presente

trabalho, apesar das suas fortes ocupações. Aproveita ainda para agradecer

o Professor Fernando Jorge, que disponibilizou sempre a contribuir, lendo e

dando sugestões em prol da realização do trabalho que aqui se apresenta.

Dedicatória

Este trabalho, como sendo produto de muito sacrifício é dedicado ao meu

companheiro e à minha filha.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 5

I CAPÍTULO ASPECTOS DA EDUCAÇÃO EM KANT ........................................... 7

1.1.Os cuidados Educacionais e os valores ............................................................................... 10

1.2.Educação Física ................................................................................................................... 13

1.3. A Liberdade e a Educação .................................................................................................. 17

1.3.1.Deveres para com os tamentos ..................................................................................... 20

1.4.Como e quem faz a educação .......................................................................................... 21

1.5.A actuação da educação e as suas variações........................................................................ 23

II Capítulo ............................................................................................... 26

SOBRE AS LEIS MORAIS .................................................................. 26

2.1. Acções conforme o dever.................................................................. 28 2.2.Características de acções morais ......................................................................................... 29

2.3. O Imperativo Categórico .................................................................................................... 33

2. 4.Condições necessárias à prática de acções moralmente válidas ......................................... 36

2.4.1. A Liberdade ................................................................................................................. 36

2.4.2. A boa Vontade ............................................................................................................. 38

2.4.3. O Bom senso ................................................................................................................ 40

2.5.A Ética kantiana e Sociedade actual .................................................................................... 41

2.6. Ética kantiana para quem? .................................................................................................. 43

III CAPÍTULO ....................................................................................... 45

ÉTICA KANTIANA NA EDUCAÇÃO ............................................... 45 3.1.O projecto kantiano é urgente para educação ...................................................................... 45

3.2. A aprendizagem do bem ..................................................................................................... 47

3.3.Uma educação por dever ..................................................................................................... 48

3.4.A contribuição da educação para uma formação moral ...................................................... 52

3.5.Educação para o esclarecimento .......................................................................................... 55

CONCLUSÃO ........................................................................................ 59

BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 61

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INTRODUÇÃO

Ética, uma questão actual que preocupa todos de uma forma geral, especialmente os

filósofos tanto os antigos como os actuais. A ideia é mesmo levar a ética para todo o campo da

acção humana, pelo facto das nossas acções não serem sempre controladas pela lei positiva. Além

disso, há situações em que a lei não define de forma clara os nossos deveres. O ideal seria agir

segundo normas morais. Desta forma, a educação, que é nas palavras de Kant, o que diferencia o

homem dos outros seres vivos, não pode ser ignorado quando o assunto a ser tratado for o ser

homem.

Actualmente fala-se muito em mudanças e se se quiser isso, há que apostar no casamento entre

a ética e a educação. Foi por esta razão e estando já nesta área as causas da escolha deste tema – “

Ética e Educação.” Demos preferência a Kant como forma de tornar o trabalho mais

aprofundado. Daí, o tema efectivo ser “ Ética e Educação na Perspectiva de Kant”, cujo o

objectivo fundamental é evidenciar as contribuições teóricas de Kant a nível da educação e ética,

inferindo a estreita ligação entre os dois domínios, mostrando a possibilidade da ética Kantiana

ser posta em prática a nível educativo.

Pretende-se com essa humilde investigação comprovar as seguintes hipóteses: a teoria

Kantiana tanto a nível da educação como a nível da ética são contribuições altamente valiosas e

pertinentes para a humanidade; A praticidade da moralidade Kantiana depende da educação; É

imprescindível termos uma perspectiva moral, a ética é necessária na educação e se isso

acontecer as consequências saltam á vista pela sua positividade – não seremos perfeitos, mas

afastar-nos-íamos da imperfeição.

Este trabalho é composto por três capítulos, sendo o primeiro – “Aspectos da educação em

Kant”, onde se vai tratar questões relativos aos cuidados educacionais, dos quais fazem parte

todas as acções que são levadas a cabo com o objectivo, não só de proteger as crianças contra

todo tipo de perigo, como também, para ajudar na sua formação moral. Nisso também se

enquadra a educação física. No entanto, essa protecção dura até um certo período de tempo, daí

que tanto a educação física como a educação moral visam em última instância a formação de

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indivíduos livres, responsáveis, capazes de agir no mínimo, conforme o dever, isto é, cumprindo

os seus deveres. Isso porque, é só assim que se justifica a moralidade.

No segundo capítulo, teremos como assunto principal: “A ética kantiana.” Nessa parte, serão

traçados vários assuntos que nos ajudarão a compreender a filosofia moral de Kant e a partir daí,

ver a possibilidade da sua aplicação ao campo da educação. Nesta lógica, a avaliação das acções

na óptica de Kant, isto é, acção por dever e em conformidade com o dever como também as

condições para que se possa praticar acções moralmente válidas serão de entre outros assuntos

objectos de estudo dessa parte. Para a terceira parte teremos um cruzamento entre o primeiro

capítulo e o segundo, isto é, a aplicação da ética Kantiana na educação e da contribuição da

filosofia da educação de Kant no campo moral.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

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I CAPÍTULO

ASPECTOS DA EDUCAÇÃO EM KANT

A necessidade de mudança é uma ideia partilhada por todos. Esta ideia foi anunciada como

uma das prioridades anunciadas pelas Nações Unidas, pelo facto de se constatar sérias dúvidas

em relação ao futuro. É neste sentido que Federico Mayor, antigo Director Geral da UNESCO

escreveu no prefácio da obra «Os Sete Saberes para a Educação do Futuro» o seguinte: «Quando

olhamos para o futuro, vemos numerosas incertezas sobre o que será o mundo dos nossos filhos,

dos nossos netos e dos filhos dos nossos netos. Mas pelo menos de uma coisa podemos estar

seguros: se queremos que a Terra possa satisfazer as necessidades dos seres humanos que a

habitam, então a sociedade humana deverá transformar-se».1 E para que essa mudança se

efectue, todos estão convictos de que a principal arma será a educação. Esta, que apesar de ser

um tema antigo não deixa de ser actual, isso porque é pela educação e através dela que o homem

torna-se aquilo que lhe difere dos outros animais: a racionalidade: «O homem só se pode tornar

homem através da educação. Nada mais é do que aquilo em que a educação o torna».2

1 MAYOR, F. Prefácio. In. MORIN, E. Os Sete Saberes Para a Educação do futuro. Lisboa. Edição Piaget.

UNESCO. 1999. Pag11. 2 KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa, Alexandria Editores. 2003.pag12

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Depois de analisar a situação humana deixada pelo progresso técnico e industrial – um

homem máquina despido de sentimentos, emoções, valores e ética, a organização mundial

responsável pela educação convidou E. Morin a escrever um artigo, dando a sua visão sobre a

educação tendo em conta o futuro. «Os sete saberes para a educação do futuro» é o resultado

desse convite; dedicado a pais, professores e todos aqueles que quiserem dar a sua contribuição

para a educação do século XXI.

Neste sentido podemos observar que há necessidade de se mudar de paradigma educacional,

tendo em conta o contexto sócio-cultural, os ideais políticos e educativos, a economia e em

particular a própria escola. Vejamos: «Em Atenas procurava-se formar espíritos delicados,

prudentes, subtis, embebidos da graça e harmonia capazes de gozar o belo e os prazeres da pura

especulação; Em Roma desejava-se especialmente que as crianças se tornassem homens de acção,

apaixonadas pela glória militar, indiferentes no que tocasse às letras e às artes. Na Idade Média a

educação era cristã, antes de tudo na renascença toma carácter mais leigo e mais literário; nos

dias de hoje a ciência tende a ocupar o lugar que a arte outrora preenchia».3 E mais do que isso,

na palavras de E. Morin: «…esboçam-se as duas grandes finalidades ético-políticas do novo

milénio: «…estabelecer uma relação de controlo mútuo entre a sociedade e os indivíduos por

meio da democracia e conceber a humanidade como comunidade planetária. O ensino deve não

só contribuir para uma tomada de consciência da nossa terra pátria, mas também permitir que esta

consciência se traduza numa vontade de realizar a cidadania terrena»,4 tendo a arte de enfrentar

as incertezas surgidas nas ciências, com uma ética do género humano, que deve completar a

humanidade como comunidade planetária. Nas palavras de Kant homens que já desenvolveram

em si a humanidade.

Como se referiu à pouco, na educação há variações dependendo de inúmeros factores.

Mesmo a educação actual varia a nível da cultura, da religião, de ideologia política e educativa,

de grupos sociais e do próprio grupo etário – a maneira como se educa uma criança não é a

mesma utilizada para a educação de um adolescente.

Mas a educação também tem algo em comum. Todos os seres que são educados são homens

e os educadores pretendem inculcar nas novas gerações os ideais, sentimentos e práticas que

3 PILLETI, N. Sociologia da Educação. S. Paulo Editora ática. 1999, p. 112. Apud Durkheim.

4 MORIN, E. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa. Ed. Piaget. UNESCO. 1999.P.21

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segundo a sociedade ou segundo o grupo dominante dentro da sociedade, são capazes de fazer

delas adultas.

Falando da educação moral, importa-se realçar que ela deve começar desde muito cedo “...

as crianças são enviadas à escola de início não com o propósito de aprenderem algo aí, mas para

que se possam habituar a estar sentadas em silêncio e a observarem pontualmente o que lhes é

prescrito, para que no futuro não possam também pôr em prática, real e imediatamente o que lhes

passa pela cabeça”.5 Tal como reza o ditado: “de pequenino é que se torce o pepino”. Isso é

necessário porque nós somos ao memo tempo seres individuais e sociais.

Os cuidados referidos por Kant (algo que será desenvolvido a seguir), andam intimamente

ligados à educação e à própria moralidade. É como diz Pilette “não nascemos com este ser social,

nem ele se desenvolve espontaneamente, não se submeteria à autoridade, não respeitaria a

disciplina não se sacrificaria por objectivos comuns. É a educação como socialização que o leva a

tais condutas sociais. Ao nascer, o ser humano é associal. A cada geração a sociedade deve

começar da estaca zero, pois, a socialização não é hereditária e deve processar-se sempre de

novo, com cada uma geração, embora fique o conhecimento da socialização com os mais velhos

adquiridos a partir da experiência. A educação cria um ser novo, transforma cada ser associal que

nasce em um ser social”.6Neste sentido, os psicólogos têm histórias bastante engraçadas, por

exemplo a do Tarzan, cujo objectivo é mostrar o quanto o homem é um ser social. Na sociedade

de homens ele é homem, na dos animais ele é animal. Segundo os estudiosos dessa área a

natureza humana é como uma bola de plasticina, pode dar a forma que se quiser graças à

educação. Porque o homem é um ser de experiência, ele é aberto ao mundo, ele é o único ser que

consegue se adaptar aos diferentes contextos e realidades, designadamente ao nível da

alimentação, temperatura, linguagem, etc. A título de comparação, uma galinha morre de fome no

meio de frutas, mas não experimenta. É neste sentido que Kant diz que o homem é o único

animal que pode ser educado, os outros podem ser disciplinados. Jerome, talvez para mostrar que

a educação é um processo descontínuo na introdução da obra «O processo da Educação»

escreve: «Cada geração dá nova forma às aspirações que modelam a educação em seu tempo. O

que talvez esteja surgindo, como marca da nossa, é um amplo renovar da preocupação com a

5 KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag10

6 PILETTE, N. Sociologia da Educação. S. Paulo Editora ática. 1999, p. 112. Apud Durkheim

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qualidade e os objectivos intelectuais da educação – sem que abandonemos, porém o ideal de que

ela deve ser um meio de preparar homens, bem equilibrados para uma democracia»7.

1.1.Os cuidados Educacionais e os valores

A educação não é a mesma em todos os tempos e em todas as partes, ela depende dos ideais

políticos e educativos, da economia dum país, de cada escola em particular e do próprio tempo.

O homem ao contrário de outros animais, que agem puramente por instinto, na óptica de

Kant, ele tem precisão de uma razão própria e por isso tem de se dotar dum ao seu

comportamento. Mas porque não está desde logo em condições de o fazer, antes vem ao mundo

em estado rude, assim outrem tem de o fazer por ele. Isso tem que acontecer desde muito cedo e

depende de um esforço não só do educando mas também do educador.

Por isso, ele tem de se acostumar desde logo a submeter-se às leis da razão e quando isso

não acontece ele torna-se rude. Em relação a isso, ele dá exemplo de integrantes de nações como

os africanos, do seu tempo, dizendo: “pode-se também observar isto nas nações selvagens que,

ainda que prestem serviços aos europeus durante um longo período de tempo, nunca se habituam

ao seu modo de vida. Mas, nelas isso não é um nobre pendor para a liberdade como o pretendiam

Rosseau e outros, mas um certo estado rude na medida em que o animal como que ainda não

desenvolveu em si a humanidade”.8

Pode-se perguntar: porque considerar uma cultura superior à outra? Se considerarmos a ideia

Kantiana como sendo correcta, isto é, a ideia de que existe de facto uma cultura superior à outra,

estaríamos a racionalizar as culturas. Neste nosso mundo globalizado, não seria o ideal: «… a

7 BRUNER, J. O Processo da Educação. S. Paulo. 1968.Pag1.

8 KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag11.

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racionalidade não é uma qualidade da qual disporia em monopólio a civilização ocidental.

Durante muito tempo, o Ocidente europeu julgou-se dono da racionalidade, apenas via erros,

ilusões e atrasos em outras culturas se julgava qualquer cultura pela medida dos seus resultados

tecnológicos…A verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com uma realidade que

lhe resiste»9. Desta forma as culturas não devem ser racionais, à maneira da Europa no tempo de

Kant. Mas, racionais à maneira de Hessen. Esta racionalidade a nível de culturas, é denominada

por este pensador de nacionalização. Neste sentido, refere nacionalização de culturas, onde

poderá haver diálogo – interculturalidade, e não sobreposição de uma delas. Assim haverá

chances de incorporar aspectos positivos de várias culturas, de modo a formar uma «única

cultura», uma cultura globalizada. Segundo este autor uma teoria ou uma ideia não deverá ser

pura e simplesmente instrumentalizada, nem impor os seus veredictos de maneira autoritária, mas

é ela quem deveria domesticar-se e relativizar-se.

Tanto a cultura como os valores são diferentes e dependem de país para país e até mesmo de

continente para continente. Isso faz com que as culturas sejam cada vez mais ricas, cumprindo

cada vez melhor os seus desígnios. Talvez, foi por essa razão que os europeus conseguiram ir tão

longe. Eles conseguiram desde muito cedo conhecer uma diversidade de culturas, o que só trazia

vantagens para eles próprios. No entanto, alguns pensadores actualmente sublinham a

necessidade de conceber uma unidade que assegure e favoreça a diversidade, uma diversidade

que se inscreva numa unidade, porque aqueles que veêm a diversidade das culturas tendem a

minimizar ou ocultar a unidade humana, aqueles que veêm a unidade humana tendem a

considerar como secundária a diversidade das culturas, esta ideia é defendida por E. Morin, entre

outros.

A filosofia kantiana neste sentido parece ser bastante contraditória, defendendo a liberdade

de cada um e dos povos por um lado, e por outro a necessidade de um povo se incorporar os

hábitos dos outros, porque são superiores e ainda num terceiro aspecto em que ele defende a

existência de um único valor para todos. Também Hessen, que baseia essencialmente em Kant,

para defender a sua teoria, defende a existência de um valor universal. “Não se pode pensar que

no domínio dos valores possa ser o sujeito, isto é, o indivíduo valorante, a decidir pura e

simplesmente do que é valioso. O sujeito não é a medida dos valores. Não se deve pensar que os

9 HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Coimbra. 2001. Pag50.

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valores e os juízos de valor só valham para este ou aquele sujeito ou indivíduo, que tenham a

percepção deles, e não para outros. Isso sim, seria subjectivismo. E este subjectivismo seria tão

erróneo como o subjectivismo teorético ou lógico».10

- Duas ideias diferentes em relação ao valor.

Mas se perguntarmos de onde vêm os valores, certamente alguém responderia: do meio

familiar, da sociedade, da pessoa. Resumindo, eles provêm da nossa experiência. Hoje defende-se

que a pessoa deve ser livre quanto aos valores, aliás, é o que Kolberg defende, dizendo que, de

entre várias alternativas, a pessoa faz a ponderação entre os prós e os contras e faz uma escolha.

A partir disso é necessário fazer uma afirmação sobre ela (sentimo-nos felizes com elas e

fazemos a sua proclamação) e por último há a actuação e esta deve ser sempre de acordo com o

valor escolhido e defendido. Portanto, vendo todos esses passos é de se concluir que quanto aos

valores, não deve haver imposição. O que vale a pena para uma pessoa, para um povo pode não

valer para outros. O valor de um empresário não é igual ao dos empregados. O de um país

capitalista é diferente do de um país socialista. O homem é um ser de valores.

Mas alguém podia ter perguntado: o que é ser homem de valor? Optamos para responder à

maneira das irmãs Missionárias S. Pedro Claver – Ser homem de valores, significa passar o

mundo a fazer o Bem: sendo generoso, justo, acolhedor, verdadeiro, espiritualmente livre,

defensor do Amor universal e (como já tinha dito), “um homem sem valores não se pode

considerar a si próprio como pessoa para quem a espiritualidade contasse. Neste sentido pode-se

ver que apesar de poder haver pluralidade de valores, existe algo em comum em todos esses

valores que fazem com que esses sejam valores – o bem, daí como sendo todos eles valores não

se deve exigir a incorporação dos de um povo sobre outros.

Entretanto, se pedirmos a qualquer pessoa que escolha entre mentira ou verdade, egoísmo ou

solidariedade e coisas do género, independentemente de cultura, a resposta seria algo que se

relacionaria com o bem e nunca o contrário, nesses casos escolheriam a verdade, a solidariedade,

etc.

Tendo os indivíduos incorporados valores de seu povo ele adquire valor público: “aprende

então tanto a dirigir a sociedade civil para as suas intenções como a adaptar-se à sociedade

civil”.11

10

Idem 11

KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003.

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13

O que acabamos de ver sobre os valores, depende inteiramente da educação, porque temos

(os que são educadores) que educar de tal forma que “fazemos” do ser que ao nascer apresenta

um estado rude, em homem dotado de princípios e valores. Isso começa a partir do momento em

que a criança vem ao mundo. O homem só o é através da educação e a educação é uma tarefa que

só pode ser confiado aos educados, porque se houver erros na educação não se pode corrigir

nunca. Se esses não forem bem instruídos e disciplinados tornam-se maus educadores. E porque o

homem tem certas aptidões naturais e a educação umas vezes ensina, outras esclarece, nós não

sabemos até onde vai essa disposição natural, o que poderíamos saber se “os grandes”

participassem nesse processo. Se isso acontecesse, segundo o pensador alemão estaríamos a dar

passos para a perfeição, o que constitui em última instância um dos objectivos da educação. Mas,

esses só pensam em si mesmos (nas suas economias, no triunfar...).

No entanto, ser educado deve abarcar duas vertentes, a vertente física e a vertente moral.

1.2.Educação Física

O ser humano é um todo. Pensou-se várias vezes em fragmentá-lo, mas actualmente vê-se a

necessidade de apostar na própria humanidade, isto é, no todo do género humano. É neste sentido

que aparecem vários filósofos como Kant, E. Morin, Schiller e outros, defendendo a união de

tudo o que constituía motivos para dualidade, pelo menos em relação à espécie humana

(corpo/mente), destruindo a sobreposição da razão sobre a sensibilidade. Nesta lógica, Schiller

escreve: «Toda iluminação o entendimento (AufKlarungdes verstands) só merece respeito na

medida em que se reflecte no carácter em certa medida ela surge também desse mesmo carácter,

pois o caminho para cabeça tem de ser aberto pelo coração (…). A educação da faculdade de

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14

sentir é pois a mais premente necessidade da época (…), não apenas porque é um meio de tornar

efectiva na vida uma inteligência aperfeiçoada …».12

Essa educação dos sentidos envolve os cuidados que se deve ter com as crianças, mesmo

antes do nascimento (a preparação da mãe), até à fase da adolescência. De entre os cuidados

apontados por Kant, é de se aproveitar alguns que sejam talvez importantes para a moralidade,

pelo facto de o objectivo ser preparar o físico, para o metafísico, isto é, disciplina-se o corpo para

ajudar na formação moral.

Nesses aspectos ele falou da alimentação da mãe, as fraldas (sua desvantagem), a

temperatura favorável às crianças (devendo estas estar nos lugares frescos e rigorosos.), a

protecção das crianças às bebidas alcoólicas, as andadeiras, o embalar, que tem por objectivo,

fazer com que as crianças fiquem caladas: «O embalar porém para nada serve. Pois o ir e o vir do

balanço é prejudicial... o objectivo é entontecer as crianças para que elas não gritem».13

Kant nesse grupo de cuidados, que parecem regras ou preceitos de como educar ou melhor como

disciplinar, aconselha que devemos aproveitar o máximo daquilo que é natural. Por exemplo: «As

crianças não aprendem assim a andar tão seguramente com esses meios como se aprendessem por

si próprios. O melhor é deixá-las gatinhar no chão, até que comecem a pouco e pouco a andar por

si».14

Porque assim tornaria a criança mais capaz, menos dependente e consequentemente mais

livre.

Da mesma forma, não se deve atender sempre aos choros das crianças, porque essas

adquirem o hábito de gritar e se satisfizermos na primeira infância todos os caprichos,

estragamos-lhes o coração e os costumes. Nas palavras de Kant: «Pois as pessoas comuns

brincam com elas como com macacos. Cantam para elas, acariciam-nas, beijam-nas, dançam com

elas. Pensam fazer algo de bom à criança, quando, logo que ela chora, acorrem a brincar com ela,

etc. Mas assim choram mais frequentemente. Se, pelo contrário, não nos voltarmos ao choro,

acabam por parar de chorar. Pois nenhuma criatura se dá a trabalhos vãos».15

Só que mais tarde

sentirão esse peso, quando não for possível satisfazer-lhes todas as suas vontades. Neste sentido,

o pensador escreve que não é preciso quebrar-lhes a vontade, se não se tiver estragado

12

SANTOS, Leonel Ribeiro (coord). Educação Estética e Utopia Política. Lisboa. Edições Calibri.1996. P.

204 apud. F, SCHILLER. 13

KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003.

14

Idem. Ibidem.Pag36.

15

Idem. Ibidem

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15

anteriormente, dando exemplo de pessoas que durante muito tempo conservam grandes poderes,

esses não aceitam a sua retirada com facilidade: «Pois até a grandes homens que tenham detido

um poder, durante algum tempo, lhes custa sempre muito desabituarem-se rapidamente dele».16

Kant dá exemplo de pessoas que durante muito tempo conservam grandes poderes esses não

aceitam com facilidade a retirada desse poder.

Além disso, deve-se impedir a moleza nas crianças e ajudar a garantir o fortalecimento;

evitar de habituar as crianças a tudo, porque isso acaba por tornar uma necessidade. Portanto,

temos de habituar as crianças desde muito cedo às regras; por exemplo, comer à hora certa, e não

sempre que lhes apetecem: «Assim querem por exemplo que as crianças durmam e se levantem a

qualquer hora do dia ou que devem comer quando eles lho exigem. Mas para aguentar isso,

requer um modo de vida peculiar, um modo de vida que robustece o corpo e que restaura o que

aquilo deteriorou».17

Kant continua ainda dizendo: «Muitos pais querem que os seus filhos se

acostumam a tudo. Isto, porém, de nada serve. Pois a natureza humana em geral, e em parte a

própria natureza do sujeito individual, não lhe permite habituar-se a tudo, …».18

. Deste modo, ela

conseguirá adaptar-se com mais facilidade às regras da Sociedade.

Kant realçou que a educação das crianças deve ser dura, sem muito conforto, apesar de

deverem sentir-se livres. Na educação a liberdade do educando é muito importante “...a criança

tenha sempre que sentir a sua liberdade só que de tal modo que não perturbe a liberdade dos

demais, daí que tenha de encontrar resistência”19

.

Na obra Sobre a Pedagogia, Kant mostra como ensinar as crianças a serem sinceras sem

serem impertinentes; neste caso, devemos conceder-lhes apenas aqueles pedidos que foram feitos

de uma forma amável e se forem préstimos nos seus pedidos. Da mesma forma também que:

«…deve-se evitar que um súbdito impeça outros por meios violentos de trabalhar de acordo com

toda sua capacidade na determinação e na determinação de si».20

Não se deve também exigir que as crianças tenham vergonha, caso isso acontecer, nascerá

nelas uma reserva e uma dissimulação prejudicial, escondendo de todos, não pedindo nada por

16

KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003.Pag34.

17

Idem. Ibidem.Pag38.

18

Idem. Ibidem.Pag38.

19

Idem. Ibidem.Pag39. 20

KANT, I. Resposta à pergunta o que é “Esclarecimento? .1783. In Kant, I. Pag110-111.

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16

causa de censuras como: “ que porcaria! não tem vergonha! que feio! etc.”21

. Isso só pode

acontecer segundo o nosso pensador quando se trata de mentira, porque assim ficam sempre com

vergonha de dizer uma mentira: «Deve-se educar de tal forma que as crianças não consigam nada

com os seus gritos, e assim elas tornam-se livres sem impertinência e modestas, sem serem

acanhadas».22

Daí que deve-se ter cuidado com a educação porque ela pode ser negativa quando incutimos

impressões falsas nas nossas crianças. É mesmo o que Kant diz – o homem no seu estado natural

não é nem bom e nem mau, pode-se tornar bom ou mau dependendo da sua educação: «Tudo isso

ainda se pode contar somente na formação negativa. Pois muitas fraquezas do homem não

provem frequentemente do facto de não se lhes ter ensinado nada, mas do facto de si lhes ter

ensinado impressões falsas».23

Neste grupo de cuidados, pode-se ver a contribuição bastante práticas de Kant no processo

educativo.

Todos esses cuidados têm como objectivo preparar os indivíduos para viver numa sociedade

democrática, onde se exige que a pessoa seja livre, forte, com competências sociais, a ponto de

conseguir adaptar-se bem tendo em conta as regras que norteiam a relação interpessoal. Além

disso, poderá ser um guião para os educadores (embora não se pretende passar receitas), tendo em

conta que de uma forma geral as pessoas querem educar bem os seus filhos, mas na verdade não

sabem o que fazer, e acabam por reproduzir as mesmas práticas daqueles que foram seus

educadores. Portanto, a metodologia da educação acaba por ser uma reprodução daquilo que os

mais velhos fizeram. Reparemos na frase de Kant: «Os primeiros pais dão logo aos filhos um

exemplo que os filhos imitam, e assim desenvolvem-se…».24

Na medida em que não há receitas, a forma de educar acaba por ser um hábito e não se

importa se é o mais correcto ou não. Importa é que “os meus pais fizeram assim e sinto-me na

obrigação de fazer o mesmo”.

21

Ibidem. Pag40. 22

Ibidem. Pag.41 23

Idem

24

KANT, I. Sobre a Pedagogia, Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag14.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

17

Na educação de hoje, há necessidade de um emparcelamento de todo o conhecimento,

integrando as contribuições das diferentes áreas, desde as ciências exactas, passando pela

Filosofia, História, literatura, artes, poesias, etc. Doutro modo se calhar não teria sentido: «a

sensibilidade, aliás não é educada para si mesma, mas para nela se manifeste já na forma

espontânea da aparência e do jogo, aquilo que caracteriza o homem moral: a liberdade».25

Daí a

importância dos cuidados de que fala Kant a nível da educação – trabalhar a sensibilidade (os

cuidados educacionais), para que nela se manifeste a moralidade.

Segundo o autor da “Educação Estética e Utopia Política” cabe à educação estética

construir a beleza a partir de coisas belas. Todavia, a liberdade torna-se um factor de peso na

construção dessa beleza.

1.3. A Liberdade e a Educação

Kant, foi um dos filósofos mais exigentes, que a humanidade conheceu, mas se formos ver a sua

história veremos que houve dias em que ele quebrou a sua formalidade (se calhar é muito mais do

que isso), um deles foi o dia da Revolução Francesa.

Isso é tudo, de onde podemos deduzir que ele é um defensor da liberdade e procura transferir

essa ideia para vários campos. Um desses foi a educação, porque segundo ele a liberdade é

própria do homem, há necessidade de opôr resistência (encontrada na educação), para que não

haja conservação de certas disposições rudes; e se isso acontecer é simplesmente um erro de

quem é responsável pela educação, porque o homem tem pendor para a liberdade nesta forma de

pensar.

25

Idem.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

18

Mas a educação deve ser boa e para que isso seja possível é preciso que a pedagogia se torne

uma ciência independente, para que possa haver nexo naquilo que se faz e para que não haja

retrocesso, porque pode acontecer que uma geração arrase toda a construção já feita e teria a

necessidade de começar tudo de novo, o que constitui um crime, “uma época não pode se aliar e

conjugar para colocar a seguinte em um estado que se torne impossível para esta ampliar seus

conhecimentos (...) purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento

“Aufklarung”. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste

precisamente neste avanço”.26

O objectivo é estar cada vez mais perto da perfeição, o que de uma

forma ou outra exige esclarecimento.

Uma pessoa se não é livre é submissa, e isso segundo Kant pode ser positivo ou negativo. É

positiva quando a pessoa não está em condições de fazer o uso da sua razão e persiste nela a mera

capacidade de imitação. E negativa quando há a capacidade de fazer o uso correcto da razão não

o faz e pretende submeter à razão alheia não usufruindo assim da sua liberdade.

No entanto, a liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer, ela é condicionada por

vários factores: sociedade, Direito, cultura, etc., que têm como objectivo pôr limites, podendo

exercer coacção se se ultrapassar esses limites, isto é, se não se respeitar a liberdade dos outros:

«Devo habituar o meu educando a tolerar uma coação da sua liberdade e devo levá-lo

simultaneamente e fazer um bom uso da sua liberdade. Sem isto tudo é mero mecanismo, e

aquele que completou a sua educação não se sabe servir da sua liberdade».27

A respeito disso o

pensador alemão sublinha três pontos:

1- Deixar a criança em liberdade desde a mais tenra idade excepto quando ela corre riscos;

2- Mostrar às crianças que elas não podem alcançar seus objectivos, sem fazer com que outros

alcancem os deles;

3- As pessoas normais não devem estar sob cuidado de outros.

A liberdade é necessária, porque só assim as crianças deixam de ser crianças e passam a ser

homens; sobre isso diz “...pois nela aprende-se a medir as suas forças, aprende-se as suas

limitações através do direito dos outros”.28

26

KANT, I. Resposta à pergunta o que é “Esclarecimento. 1783.

27

KANT, I. Sobre a Pedagogia. 2003. Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag25.

28Idem.Ibidem KANT, I. Sobre a Pedagogia. 2003. Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag Pag26.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

19

A liberdade sempre pressupõe uma responsabilidade e é aqui mesmo que reside o seu limite.

Daí que Kant atribui a cada um a responsabilidade em relação à sua própria educação. Neste

sentido o pensador em estudo escreveu: «...Seria melhor que se usasse, de início poucos

instrumentos e se deixassem as crianças a aprenderem mais por si, poderiam então poucas coisas,

mas por si, poderiam então poucas coisas, mas muito mais fundamentadamente. Assim seria bem

possível que a criança aprendesse por si a escrever».29

Para isso ele parte daquilo que a didáctica defende e chama de pré-requisito: «...por

exemplo, quando a criança que quer pão, dizer, consegues desenhá-lo? A criança desenharia

então uma figura oval...».30

Seguindo esses passos, estaríamos a aproveitar a própria motivação

das crianças, o que elas aprendem serão para todo sempre.

Da mesma forma, um público pode esclarecer a si mesmo se lhe for dado a liberdade. Isso

segundo Kant é tão importante que só aquele que conhece o peso da sua privação ou seja o jugo

da sua necessidade, pode espalhar em seu redor o espírito de uma avaliação racional, do valor e

da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. Essa liberdade de que fala Kant é muito

mais simples quando se trata da liberdade individual. Seria simples se isso fosse possível através

da revolução, mas não é porque temos conjuntos de preconceitos sobre os quais, a própria

Sociedade se assenta. Daí que “uma revolução..., porém nunca produzirá a verdadeira reforma do

modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para

conduzir a grande massa destituída de pensamento”.31

Neste sentido, diz o nosso pensador que estamos na época do esclarecimento, embora não

pertençamos à época esclarecida, porque estima-se que as pessoas não estejam ainda

suficientemente preparadas para dirigirem a sua vida sem auxílio de outros, no entanto, abriu-se o

caminho para isso. E “...somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido, não tem medo

de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir

a tranquilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinai tudo

quanto quiserdes; apenas obedecei!”32

Mais uma vez estamos na liberdade, uma liberdade

limitada pelos condicionalismos sociais e económicas, de entre outras, ou seja, livres para pensar

29

Ibidem, pag37. 30

Ibidem, pag37 31

KANT, I. Resposta à pergunta o que é “Esclarecimento. 1783. Pag104. 32

KANT, I. Resposta à pergunta o que é “Esclarecimento. 1783. Pag114.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

20

(sem limites) “ não livres para agir,”pelo facto de termos os nossos deveres que devem ser

levados em pé de igualdade com aquilo que exigimos na nossa liberdade. Daí a necessidade de

reconhecermos como um dever nosso concentrar esforços em direcção ao esclarecimento tanto

em relação a nós, como em relação ao outro, porque o indivíduo esclarecido reconhece a sua

liberdade que é a condição do esclarecimento.

1.3.1.Deveres para com os talentos

Defendendo a liberdade humana, mas também impondo limites à essa mesma liberdade, já

que o homem é um ser social, tem que conviver com os outros, partilhar tudo o que há na vida e

por isso não lhe é permitido fazer tudo.

Partindo desses princípios, Kant mostra que temos deveres ou seja, responsabilidades para

connosco e para com os outros.

Cuidar das nossas disposições naturais faz parte de deveres para connosco, que podem nos

tornar homens habilitados em diversos aspectos da vida humana.

Neste sentido, sublinhou o autor do pensamento em estudo, que não se deve preferir o

prazer em detrimento do cultivo das nossas habilidades, pois que isso faz parte dos nossos

deveres, mesmo se alguém o faz, nunca quer que isso seja uma lei universal, que irá reger a nossa

própria sociedade, em que todos preferem o prazer em vez de cuidar dos seus talentos. Embora

possa subsistir uma sociedade tal, em que todos deixassem enferrujar os seus dons naturais.

É como a ética cristã “não faças ao outro aquilo que não queres que te façam a ti”, então

pode-se ver que isso é mesmo muito rigoroso: “temos que poder querer que uma máxima da

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

21

nossa acção se transforme em lei universal”.33

Portanto se não queremos que uma determinada

acção se transforme em lei universal, não devemos praticá-la, porque o nosso praticar já tem

incluído a sua generalização.

O criador podia ter dito, “equipei-te com todas as disposições para o bem. Cabe-te

desenvolvê-las, e por isso a tua felicidade ou infelicidade depende de ti próprio”.34

Desta forma, todos nós temos o dever de dar a nossa contribuição no sentido de tornar

social aquele que ainda não adquiriu esse título, apesar de ter a predisposição para ser social, a

sua aquisição só é possível através da educação, que é um árduo trabalho que todos julgam ser

capazes de o fazer, mas se formos ver, ela exige muito cuidado, boa vontade e principalmente

formação, «…Daí que a educação seja o maior e mais difícil problema que pode ser confiado ao

homem».35

1.4.Como e quem faz a educação

Para a felicidade humana, Kant aposta na educação, dizendo que atrás dela estão os segredos

que podem tornar-lhe cada vez melhor, orientando a humanidade em direcção à perfeição.

Embora não se possa crer que um homem se torne perfeito com a educação, mas de uma coisa

devemos estar certos, com uma educação boa não seremos perfeitos, mas afastaríamos mais da

imperfeição. Esta é uma ideia que ele considera verdadeira e possível de se realizar. A única

coisa a fazer é trabalhar no sentido de criar as condições de pôr na prática aquilo que se tem na

ideia e a ideia é sempre boa. Nas palavras de Kant: «ideia é um conceito da perfeição que ainda

33

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa. Edições 70.pag61. 34

Ibidem. Pag15.

35

KANT, I. Sobre a Pedagogia. 2003. Lisboa. Alexandria Editores. 2003. Pag36

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

22

não se encontra no sensível… Por isso, não se pode difamar as ideias, como sendo quiméricas e

belos sonhos para não se encontrarem espaços à sua realização primeiro a nossa ideia tem de ser

correcta e então, pôr mais obstáculos que possam estar no seu caminho, não é no seu todo

impossível».36

Kant propõe numa educação experimental e relacionado com isso diz: “em primeiro lugar

tem de se institucionalizar escolas experimentais, antes de poder instituir escolas normais. A

educação e a instrução não podem ser meramente mecânicas, elas têm que assentar em

princípios”37

ou seja em ideias. Mas como é possível ter escolas experimentais? O que ele estaria

querer dizer com isso?

O plano tanto a longo prazo como a curto prazo têm essa função, o professor e/ou os

planificadores partindo de experiência que têm (essas vindas na maior parte das vezes das

gerações antecedentes), traçam o caminho a prosseguir: «Imagine-se comummente que não seria

preciso experimentos da educação e que se poderia ajuizar directamente a partir da razão se algo

será bom ou mau. Mas aqui há muitos enganos e a experiência ensina que se mostra com

frequência, nos nossos ensaios, efeitos diametralmente opostos aos que se esperava»38

.

É neste sentido, que Jerome pergunta: «estaremos nós produzindo pensadores, cientistas,

poetas legisladores, em número suficiente para satisfazer as solicitações dos nossos tempos?

Além disso, as escolas devem, também, contribuir para o desenvolvimento social e emocional da

criança, se quiserem preencher sua função de educar para vida numa comunidade democrática e

para uma fecunda vida familiar».39

Kant mostra a necessidade dos professores utilizarem as suas experiências, de modo a

poderem fazer novas descobertas e para isso é necessário que eles sejam livres, utilizando uma

metodologia própria e planos próprios, partilhando experiências coordenando entre si.

Em relação aos educadores, este filósofo distingue professor de preceptor. Quanto ao

primeiro é aquele que educa para a escola. E preceptor educa para a vida, guia.

36

Ibidem.pag13. 37

Ibidem pag22.

38

Idem. Bidempag22-23.

39

BRUNER, Jerome. O Processo da Educação.S.Paulo.Ed.1968.

39

Ibidem, pag24

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

23

Para além de professores e preceptores há também os pais, “da educação privada cuidam ou

os próprios pais ou, se estes às vezes não tiverem tempo, capacidade ou também se não

encontrem prazer nisso, outras pessoas que são auxiliares assalariados”.40

Vejamos por exemplo, um casal que teve filhos, mas que o fim último da relação não seja

isso, ou uma jovem que foi vítima de uma violação e dessa violação a consequência foi um filho.

Tanto num caso como noutro, pode não haver prazer na educação dessas crianças. Segundo Kant

o indivíduo pode nesses casos não ser boa educadora e causar impressões negativas no educando.

Por isso, é necessário ter pessoas que eduquem por amor ou por prazer. Só assim podem ser bons

preceptores.

1.5. A actuação da Educação e as suas Variações

O ser humano é um todo e sua educação deve ser pensada como um todo. Pensou-se várias

vezes nisso fragmentadamente, mas actualmente vê-se a necessidade de apostar na própria

humanidade, isto é, no todo do género humano. É neste sentido que aparecem vários filósofos

como Kant, E. Morin, Schiller e outros, defendendo a união de tudo o que constituía motivos para

dualidade, pelo menos em relação à espécie humana (corpo/mente), destruindo a sobreposição da

razão sobre a sensibilidade. Nesta lógica, Schiller escreve: «Toda iluminação o entendimento

(AufKlarungdes verstands) só merece respeito na medida em que se reflecte no carácter em certa

medida ela surge também desse mesmo carácter, pois o caminho para cabeça tem de ser aberto

pelo coração (…). A educação da faculdade de sentir é pois a mais premente necessidade da

época (…), não apenas porque é um meio de tornar efectiva na vida uma inteligência

40

KANT, I. Sobre a Pedagogia. Lisboa. 2003.Pag

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

24

aperfeiçoada …».41

A mesma coisa tinha defendido os filósofos da época patrística (I. Média),

onde essa união do coração ao intelecto teve o seu início abandonada a partir do renascimento (é

que na I. Moderna, podendo-se tomar como expoente máximo Descartes, que condenava os

sentidos, justificando que eles podem nos enganar, devendo por isso serem submetidos à razão).

A unidade entre as faculdades será retomada na contemporaneidade

Por sua vez, Kant define a educação como sendo disciplina e instrução juntamente com

formação. Para ele, a educação é uma arte porque isso não pode acontecer sozinha (uns têm que

fazer por outros). A sua origem ou a sua continuação ou é mecânica ou é judiciosa.

- Mecânica, quando experimentamos se algo é útil ou prejudicial para o homem. Como se trata de

uma experiência, incorpora muitos erros e lacunas. Por isso, propõe uma educação judicial para

que se possa alcançar a missão para a qual o ser humano foi posto cá na Terra. É nesta lógica que

a pedagogia deve ser uma ciência independente, de modo que qualquer pessoa possa usá-la para a

educação de seus filhos: “Os pais já educados são exemplos segundo os quais os filhos se

formam para se guiarem”42

e seguindo esta lógica uma pessoa já estragada na educação educa

outros em vão.

Vários aspectos devem ser levados em conta para que haja uma educação desejável. Kant

sublinha quatro desses aspectos:

1-Disciplina,cujo objectivo é evitar que a animalidade prejudique a humanidade (tanto na própria

pessoa como na pessoa do outro);

2-Cultura, esta abarca ensino e instrução. É a posse de capacidades, que basta a todos e quaisquer

finalidades. A cultura não determina o fim a alcançar. O objectivo encontra-se a cargo das

circunstâncias posteriores;

3-Prudência: consiste em ajustar à sociedade, tornar cívico. Para isso requer a amabilidade e

saber que todos os homens devem ser usados sempre como fins terminais;

4-Moral, onde ele aprende a usar a sua razão, não para qualquer fim, mas para bons fins (fim que

pode ser válido para qualquer um).

Em relação aos tipos de educação Kant distingue dois tipos de educação, de acordo com o

objectivo traçado:

41

SANTOS, Leonel Ribeiro (coord.). Educação Estética e Utopia Política. Lisboa.Ed.Calibri.1996.P204 apud.

SCHILLER. F. 42

KANT, I. Sobre a pedagogia. Lisboa. 2003.Pag

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

25

1ºPrivado – exercita os preceitos;

2ºPúblico – relaciona-se com a informação e é completa quando reúne instrução e formação

moral. Esta, tem a função de proporcionar uma boa educação privada. Daí que o seu objectivo é o

aperfeiçoamento da educação doméstica. A educação pública seria menos dispendioso

economicamente se os pais ou os substitutos desses fossem bem-educados.

Esse processo, por sua vez, não pode durar todo o tempo. Segundo Kant, deve permanecer

até à época em que o educando mostrar ser capaz de conduzir-se a si próprio: “Até que o instinto

para o sexo se desenvolva nele, até que ele possa ser pai e deve ele próprio educar.

Aproximadamente até aos 16 anos. Depois desta idade, bem se pode utilizar meios auxiliares de

cultura, exercer uma disciplina oculta, mas já não uma educação na devida ordem”.43

Essa doutrina é dividida segundo duas vertentes:

- Física: o que o homem tem em comum com os outros seres vivos, próprio de todos os animais;

- Moral ou prática: o que faz com que o homem seja diferente dos outros animais, nisso é que o

homem deve ser formado, para que ele possa agir livre e racionalmente e para que ele saiba fazer

o bom uso da sua liberdade. Aqui o homem aprende a viver na Sociedade e a formar a sua

personalidade, tendo em conta a própria Sociedade. “Esta é a educação para a personalidade,

educação de um ser que age livremente, que se pode sustentar a si próprio e constitui um membro

da sociedade, mas que pode ter um valor interior por si próprio”.44

43

Ibidem, pag25. 44

Ibidem, pag27.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

26

II Capítulo

SOBRE AS LEIS MORAIS

Segundo Kant a lei resume-se naquilo que é princípio universal, de validade geral, para

todos os seres racionais. Por outras palavras é o imperativo categórico ou mandamento da

moralidade.

Por outro lado, a moralidade segundo Kant é o acordo interior com a lei do dever, que

comporta a intenção de agir por respeito a essa lei; por isso é a “ ciência que nos ensina como

devemos, não tornar-nos felizes, mas dignos de felicidade;” é a relação das acções com a

autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das máximas. Essas

máximas, que se tornem necessárias pelo facto de ser somente a razão capaz de nos dizer como

agir moralmente. Segundo o autor da Crítica da Razão Prática, tudo no universo natural age

segundo leis naturais. Até mesmo o próprio homem age segundo um plano natural: «Seja qual for

o conceito que, também com um desígnio metafísico, se possa ter da liberdade da vontade as suas

manifestações, as acções humanas, são determinadas, bem como todos os outros eventos naturais,

segundo as leis gerais da natureza».45

Pode-se ver que à espécie humana o criador planeou que

fosse ser racional, e como tal agir segundo representação de leis, segundo princípios, porque ele

45

KANT, I. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Ed.70. Lisboa. 1995.P.21

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

27

tem vontade, apesar de ser prevista pela natureza. Daí que quando seguem os seus intentos de

uma forma geral, isto é, como espécie seguem a intenção da natureza.46

Deste modo, leis morais segundo Kant, teriam que ser aqueles preceitos que concordem com

as normas da moralidade. Daí que se poderia perguntar: o que seria necessário fazer para que haja

uma unanimidade quando se fala da moralidade? Tendo em consideração a razão de ser desta

pergunta, Kant defende uma moral puramente racional, desligada de todo o empírico e que por

essa razão, possa valer para todo o ser racional. Isso é necessário, para que não haja lugar a

excepções. A lei moral deve ter um carácter absoluto e necessário. Afinal, como seres racionais

somos todos iguais, daí ela deve ser universal.

Vejamos que se isso fosse com base na experiência teríamos que ter exigências diferentes a

seres igualmente racionais, pelo facto do contexto influenciar na prática das nossas acções.

Neste sentido, não se pode dar exemplos, nem partir deles quando se trata de acções morais

e “Não se pode também prestar pior apoio à moralidade do que querer extraí-lo de exemplos”.

Pois, segundo Kant, os exemplos apresentados devem ser julgados segundo a moralidade para se

poder ver se vale a pena ou não. Além disso, nas acções morais não se dá ênfase, ou melhor não

contam as consequências das acções, mas apenas a intenção, que está fora da experiência sensível

e por isso esse «ideal de perfeição moral antes de o reconhecermos como tal; e é ele que diz de si

mesmo: “ Porquê é que vós me chamais bom a mim que vós estais vendo? Ninguém é bom (o

protótipo do bem) senão o só Deus (que vós não vedes)”, mas de onde é que nós tiramos o

conceito de Deus como bem supremo? Somente da ideia que a razão traça a priori na perfeição

moral e que une indissoluvelmente ao conceito de vontade livre»47

.

É nesta sequência que o autor acima citado fala da vontade santa, que nas suas palavras é:

«A vontade, cujas máximas concordem necessariamente com as leis da autonomia é uma vontade

santa. Absolutamente boa».48

Na pessoa que cumpre os seus deveres há uma certa sublimidade, dignidade; embora

estando sujeito à lei, porque ela além de ser submissa à lei, é também legisladora. E, quando se

fala de prática de acções torna-se necessário ver que uma acção só tem valor moral quando for

46

KANT, I. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Ed.70. Lisboa. 1995.P.22

47

Idem

48

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa. Edições 70.pag84.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

28

praticada não por medo, nem por inclinação, mas, tão somente por respeito à lei, respeito esse

que existe porque nós somos livres, temos vontades que fazem com que determinemos as nossas

máximas, que podem ser transformadas em leis universais. Para Kant, o homem apesar de ser

bastante apegado às coisas sensíveis concebe a ideia de uma razão pura prática, mas ele não é tão

forte a ponto de torná-la concreto no seu comportamento.

Apesar disso, não pode realizar esse desejo por causa das suas inclinações e impulsos;

desejando todavia ao mesmo tempo libertar-se de tais tendências que a ele mesmo o oprimem. É

o que Cristo tinha dito para os seus discípulos – “O espírito é forte, mas a carne é fraca”. Por isso,

não consegue praticar acções tão boas como as que ele tem nas suas ideias. E quando se fala da

prática de acções em Kant, há que analisar a avaliação que ele faz em relação a essas práticas. As

acções são, ou conformes ao dever, ou moralmente válidas ou contrárias à moralidade.

2.1. Acções conforme o dever

Quando se fala de acções em conformidade com o dever importa realçar o exemplo de Kant

– Um benevolente, que o faz por vaidade ou interesse em honrarias e não pelo simples

cumprimento da lei moral, é uma acção conforme ao dever, pelo facto de faltar-lhe o conteúdo

moral, que manda que essas acções sejam praticadas por dever e não por inclinação. Mesmo

assim, essa qualidade merece louvor, honra e estímulo, mas não estima.

Assim, também, uma pessoa que pratica bons actos como ajudar os que precisam, dar uma

boleia e coisas afins, não por dever, mas por inclinação, ou seja com segundas intenções, por

fazer coisas boas é de se louvar, mas não se trata de uma acção moralmente válida.

Vejamos como seria uma acção por dever: «Admitindo pois que o ânimo desse filantropo

estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele

continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não

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29

tocava porque estava bastante ocupado com a própria; se agora, que nenhuma inclinação o

estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a acção sem nenhuma

inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral»49

. O que

importa para este autor é aquilo que nos faz agir, as motivações, não as consequências, ou seja o

resultado das nossas acções. As acções conforme ao dever podem ser prescritas pela

Antropologia, Direito, etc, mas não pela ciência moral.

No entanto, as acções morais possuem certas características ou seja têm que reunir

determinados requisitos para o poderem ser. Características essas que iremos falar já a seguir

tendo em conta o pensamento Kantiano, porque segundo outros autores como E. Morin, por

exemplo, «O mesmo acto pode ter diferentes formas e graus de valor em diferentes

circunstâncias. Ao mesmo tempo, é essencial que possamos chegar a um consenso em relação ao

que constitui um comportamento positivo e ao que constitui um comportamento negativo…».50

Neste sentido, O autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes saiu a ganhar, ele não se

confrontou com esse problema, pelo facto de a sua teoria em relação à moral não ser amparada

em princípios empiricos.

2.2.Características de acções morais

Em primeiro lugar, segundo Kant uma acção só tem conteúdo moral se estiver para além de

todas as sensibilidades, de toda a compaixão, além de todo ódio e de toda vingança “…é amor

prático e não patológico”, o amor tal como prescreve a escritura sagrada: «É sem dúvida também

assim que se devem entender os passos da escritura sagrada em que se ordena que amemos o

49

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa. Edições 70.pag28 50

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa. Ed. Piaget. UNESCO. 1999.P.10

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

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próximo, mesmo o nosso inimigo. Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado,

mas o bem-fazer, por dever…».51

Os princípios práticos materiais são no seu conjunto de uma única espécie, geralmente é o

do amor-próprio. Ainda Kant, desta vez na Crítica de Razão Prática diz que a dignidade do dever

e a satisfação de viver são coisas que andam totalmente separadas e que mesmo se se quiser

agita-las em conjunto, servindo de remédio à alma doente, separar-se-iam espontaneamente, pelo

facto de a satisfação de viver tem a sua lei específica e o seu tribunal particular. Da mesma forma

também a lei moral tem a sua especificidade. Mesmo assim, segundo este filósofo, o fim último

da natureza não é nem a felicidade nem a moralidade, mas o “supremo bem”, que se encontra

entre os dois. Esta é a ideia que Kant defende depois de estudar algumas críticas feitas ao seu

texto. Só que quando se trata de moral a felicidade (pelo menos pessoal), terá de ficar.

Contrariamente a este pensamento muitos filósofos parecem misturar ou melhor conciliar as duas

coisas, o que ficaria bastante difícil pelo facto da existência do “querido eu,” que sempre vem à

frente.

Quer dizer que a prática deve seguir a teoria: «… a razão pura prática deve necessariamente

começar por princípios que devem estabelecer-se como fundamento de toda a ciência enquanto

dados primeiros morais …, porque todo elemento empírico que poderia ensinar-se nas nossas

máximas como princípio determinante da vontade, se faz conhecer imediatamente pelo

sentimento de prazer ou da dor que a ela se apega necessariamente enquanto excita desejos,

resistindo porém aquela razão pura prática a admiti-lo como condição do seu princípio».52

Portanto, não se pode pôr nenhuma intuição como fundamento. Daí a necessidade de pôr de

lado ordens e costumes, prémios e castigos, numa palavra, tudo o que visa dirigir-te de fora, e que

se deve levantar todas essas questões a partir de si próprio: «Pode-se acreditar na possibilidade de

eliminar o risco de erro recusando toda a afectividade. Efectivamente, os sentimentos, o ódio, o

amor, a amizade podem cegar-nos. Mas é necessário dizer que já no mundo mamífero, e

sobretudo no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do da

afectividade, … Existe uma relação estreita entre inteligência e a afectividade: A faculdade de

51

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.30. 52

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Lisboa Ed. 70. 1998P.107.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

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raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, por um défice de emoção; o desenvolvimento

da capacidade de reagir emocionalmente pode ser a causa de comportamentos irracionais».53

Apesar disso, Kant é consciente da dificuldade ou mesmo impossibilidade de encontrar na

experiência com perfeita certeza um único caso em que a acção se tenha baseado puramente em

motivos morais. «Por isso é que houve todos os tempos filósofos que negaram pura e

simplesmente a realidade desta intenção … deploravam profundamente a fraqueza e a corrupção

de natureza humana que, se por um lado era nobre bastante para fazer de uma ideia tão

respeitável a sua regra de conduta, por outro era fraca demais para lhe obedecer…».54

Isso é algo

que podemos ver na própria racionalidade técnica, inventando a máquina para equiparar a

eficiência da racionalidade humana, foi tão longe que nem mesmo o próprio criador consegue

submeter-lhe a ele ou então parar o impacto de tal criação. Aparece aqui mais uma vez a

dualidade humana, o lado “forte” (a razão) e o lado “fraco” (a sensibilidade), mas talvez a

felicidade humana tenha centrado entre esses dois extremos, aquilo que Schiller chama “fase

estética” e que Aristóteles dá o nome de “excelência moral” nas palavras de Kant “soberano

bem.”

Tendo em conta aquilo que se falou a pouco – a impossibilidade ou a dificuldade de ver na

experiência sensível práticas de acções morais, encontramos em Edgar Morin o seguinte: «A

importância da fantasia e do imaginário no ser humano é inimaginável, dado que as vias de

entrada e de saída do sistema neuro-cerebral que conectam o organismo com o mundo exterior

representam só 2 por cento de todo conjunto enquanto 98 por cento diz respeito ao

funcionamento interior, constituindo um mundo psíquico relativamente independente onde

fermentam necessidades, etc»55

. A acção moral não se relaciona com a prática, segundo o

pensador em estudo. Importa-se aquilo que não se vê e muitas vezes nem se tem a consciência e

“em realidade, mesmo pelo exame mais esforçado, nunca podemos penetrar completamente até

aos móbiles secretos dos nossos actos, porque quando se fala de valor moral, não é das acções

visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que se não vêem”.56

Neste sentido,

pensando com Kant, quando se preocupa com a natureza das acções, está-se a misturar a filosofia

53

SAVATAR, F. Ética para meu Filho. Lisboa. Editorial presença. Ed. XI. 2003.P.23. 54

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.40. 55

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa. Ed. Piaget. UNESCO. 1999.P.25. 56

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.40.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

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moral com outros ramos de saber. Kant, em relação à prática de acções, defende que deve ficar à

responsabilidade de ciências como a Antropologia, Direito, a moral por sua vez tem a ver com

aquilo que faz o indivíduo agir, isto é, a intenção.

A única coisa que se importa é o “princípio do querer ou princípio da vontade” que é uma

outra característica de acções morais57

.

Um terceiro ponto será consequência das duas primeiras e consiste em dar o conceito do

dever. Segundo o autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes «Dever é a necessidade

de uma acção por respeito à lei … só pode ser objecto de respeito e portanto mandamento aquilo

que está ligado à minha vontade somente como princípio e nunca como efeito, não aquilo que

serve à minha inclinação, mas o que domina ou que pelo menos, a exclui do cálculo na escolha,

quer dizer a simples lei por si mesma».58

Daí que o sábio alemão conclui que tudo o que existe

pode ser utilizado simplesmente como meio, só o homem e toda criatura racional é fim em si

mesmo, ele é sujeito da lei santa, em virtude da autonomia e da liberdade. A lei moral torna

sublime a existência humana daí o carácter santo – a santidade (inviolabilidade). O homem

embora não seja santo suficientemente a humanidade deve ser santa para ele e por isso não ser

utilizado simplesmente como meio

Kant fala de uma paz interior que nega tudo o que é agradável à vida: “É o impedimento do

perigo de diminuir em valor pessoal depois de já se ter totalmente renunciado o valor do seu

estado”. Portanto, tendo em conta a moralidade, o castigo se efectue sem intervenção de terceiros.

É basta pensar o quanto fica atormentado uma pessoa que por uma razão qualquer cometeu um

homicídio; tem aquilo que se chama de “peso de consciência” até o ponto de um dia chegar a

contar o que fez, mostrando estar disponível a assumir as consequências.

57

Este assunto irá ser desenvolvido mais adiante. 58

Ibidem Pag.28.

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33

2.3. O Imperativo Categórico

Aquele que nos representasse a acção como absolutamente necessária por si mesma – este é

o conceito que Kant dá de imperativo categórico. O imperativo categórico «sem se basear como

condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comportamento … Não se relaciona

com a matéria da acção e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela

mesma deriva; e o essencialmente bom na acção reside na disposição (Gesinnung), seja qual for o

resultado».59

A moralidade kantiana vai para além do cumprimento do dever (em que o seu móbil

relaciona-se mais com a ideia do sacrifício). Mas também se fosse o caso, ele não seria filósofo

tendo em consideração o seu próprio ponto de vista, mas antes talvez um antropólogo ou um

jurista. «Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à lei, caso

contrário aquela conformidade será muito contingente e incerta, porque o princípio imoral

produzirá na verdade de vez em quando acções conformes à lei moral».60

Apesar de a prática de

acções moralmente válidas seja coisa fora do comum este pensador não descarta a possibilidade

de haver dentro do próprio homem um valor muito mais elevado do que o seu temperamento bom

– o carácter, que tem valor mais elevado em relação à moralidade; consistindo em fazer o bem,

não por inclinação, mas por dever.

A lei do dever existe independentemente de toda a mudança e de toda a particularidade.

Portanto, não importa o que acontece, mas o que deveria acontecer, mesmo que nunca aconteça.

Aliás, para Kant, como já tinha dito, o homem faz parte de uma única natureza, daí que a lei

moral deverá ser uma só, lei para toda a vontade racional. Além disso, a própria lei positiva

necessita de um princípio da sua determinação que a sustenta, que a legitima. Este princípio está

contido na própria máxima (que são regras de carácter subjectivo), que deixará de ter esse

carácter subjectivo e passará a ser universal nas fórmulas do imperativo categórico.

59 Ibidem Pag52. 60

Ibidem Pag.28.

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No entanto, embora possam não querer agir moralmente, isso em nada afecta o valor da lei,

ou a obrigação para com ela: «nada esperar da inclinação dos homens, e tudo do poder supremo

da lei e do respeito que lhe é devido, ou então, em caso contrário o homem ao desprezo de si

mesmo e à execração íntima»61

. Ele estava preocupado mais em ter fundamentos para a

moralidade, do que mostrar como agir moralmente. Vejamos: «Se eu fosse um mero membro do

mundo inteligível, todas as minhas acções seriam perfeitamente conforme ao princípio da

autonomia da vontade pura…». 62

No entanto, se se levar em consideração apenas o mundo

sensível as acções humanas seriam todas de acordo com as leis naturais, dos apetites e

inclinações. As primeiras (leis do mundo inteligível) fazem parte dos princípios da moralidade, e

as segundas, as da felicidade. Não há uma contradição entre os dois princípios (os da felicidade e

os da moralidade).

Como já tínhamos referido, a razão pura prática não quer que se renuncie forçosamente à

pretensão à felicidade, mas que quando se fale de moralidade não se leve em conta os princípios

da felicidade. Para Kant: «… porque o mundo inteligível contem o fundamento do mundo

sensível, e portanto também das suas leis, … tarei de considerar as leis do mundo inteligível

como imperativos para mim e as acções conformes a este princípio como deveres».63

Segundo

Kant, apesar de na maior parte das vezes as nossas acções são conforme ao dever, há a

necessidade de ver que nada nos poderá salvar da queda completa das ideias do dever a não ser

convicção de que, mesmo que nunca tenha havido acções que tivessem saído de tais fontes puras,

a questão não é agora de saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razão por si mesma

independentemente de todos os fenómenos ordena o que deve acontecer. Mas, em última análise,

o objectivo das teorias que não provém da experiência é torná-los apto na experiência: «Por mais

alto que elevemos os nossos conceitos e, além disso, por mais que abstraíamos da sensibilidade,

estão-lhes, no entanto, sempre ligadas às representações da imaginação, cuja determinação

peculiar é torná-los …aptos para o uso na experiência».64

Esse dever, a que Kant chama de imperativo categórico expressa-se segundo três máximas

interligadas. Mas, apesar de ele ter mencionado três, chegou à conclusão de que se resume em

61

Ibidem Pag65. 62

KANT, I. Fundamentação da Metafísica.P.103.

63

Idem.Ibidempag104. 64

KANT, I. A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Ed.70. Lisboa. 1995. P.39.

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uma só (na primeira), tendo uma única forma, a mesma matéria e uma determinação complexa. O

próprio Kant aconselha ser melhor no juízo moral, proceder sempre segundo o método rigoroso e

basear-se na fórmula universal do imperativo categórico, isto é, na primeira máxima.

Começaremos então pela primeira e a mais importante das máximas, de seguida passaremos

para a segunda e terceira consequentemente.

1- «Devo proceder sempre de maneira que eu posso querer também que a minha máxima se torne

uma lei universal».65

Esta fórmula também pode ser expressa assim: “ age apenas segundo uma

máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” ou ainda: “ Age

como que a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da

natureza.”

Disso, ele conclui através de exemplos de falsa promessa e outros, que embora possamos

fazer coisas erradas, estando em determinadas situações, mas basta fazer um exercício usando a

máxima (princípio subjectivo da acção) citada para ver que não queríamos nunca que outros as

fazem. De modo que leis como “ todos podem fazer uma promessa mentirosa quando se acha

numa dificuldade de que não pode sair de outra maneira”destruir-se-ia necessariamente. Podia

então perguntar a si mesma: «Podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei

universal? Se não podes, então deves rejeita-la, e não por causa de qualquer prejuízo que dela

pudesse resultar para ti ou para os outros, mas porque ela não pode caber como princípio numa

possível legislação universal».66

A segunda fórmula é expressa por Kant de seguinte modo:

2- «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer

outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio». Para dizer

que a pessoa humana nunca pode ser utilizado como meio para atingir fins, mas ela deve ser

sempre um fim, em si mesma.

3- «Age segundo máximas de um membro universal legislador em ordem a um reino dos

fins…».67

- Esta seria a terceira expressão do imperativo categórico de Kant.

65

KANT, I. Fundamentação da Metafísica.P.103. P.59. 66

Ibidem P.35.

67

Idem. Ibidem.

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Para mostrar a possibilidade do imperativo categórico, diz o seguinte: «E assim são

possíveis o imperativo categórico, porque a ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo

inteligível, pelo que, se eu fosse só isto, todas as minhas acções seriam conformes a autonomia da

vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas

acções devem ser conformes essa minha autonomia».68

Neste sentido, podemos ver que para que as acções sejam morais há que cumprir alguns

requisitos, que falaremos de seguida.

2. 4.Condições necessárias à prática de acções moralmente válidas

Várias poderão ser as condições para se praticar acções moralmente válidas, dependendo de

autores. Neste trabalho vai se simplesmente analisar algumas delas, (tendo em conta a filosofia

kantiana), designadamente: a liberdade, a boa vontade, o bom senso, e a compreensão.

2.4.1. A Liberdade

Falou-se da valorização que Kant atribui à liberdade no primeiro capítulo, aquando do

assunto “liberdade e educação”. Por agora, vamos falar desse mesmo assunto tendo em conta

outro objectivo, que é ver como é que a liberdade faz parte da moralidade ou também como é que

a moralidade se relaciona com a liberdade.

68

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.104.

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Kant, falando do princípio da autonomia da vontade, diz que é o princípio segundo o qual o

ser racional sujeito a cumprir leis morais é autónomo, nunca sujeito a outrem. «A liberdade é a

condição da lei moral que conhecemos... é a ratio essendi da lei moral e a lei moral constitui a

ratio cognoscende da liberdade».69

Querendo vincar que, sem a liberdade não há moralidade, ou

seja só se pode avaliar acções em termos de moralidade se ela for praticada por uma pessoa livre,

nunca sujeito a outrem.

A liberdade segundo este pensador pressupõe um dever, isto é, uma responsabilidade, que

não assenta em sentimentos, impulsos ou inclinações, mas apenas na relação entre os seres

racionais, tendo em conta uma vontade que se considera sempre como legisladora, porque de

outra forma não podia pensar como fim em si mesma. Isso não em virtude de qualquer móbil

prático, mas da ideia da dignidade (aquilo que constitui a condição só graças a qual, qualquer

coisa pode ser um fim em si mesmo, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas

um valor íntimo) de um ser racional que não obedece a outra lei, mas aquela que

simultaneamente dá. No entanto, a verdade é que quando beneficiamos os outros é a nós que

beneficiamos. Apesar de muitos não despertarem a consciência desse facto. Mas, é basta ver o

quanto se pode sentir bem quando se pratica boa acção, é aquilo que se diz – “O bom sente-se

bem em fazer coisas boas”.

No entanto, podemos não ser livres para escolher o que nos acontece, isso fica a cargo do

plano natural, mas somos livres de responder desta maneira ou daquela ao que nos acontece

(obedecer ou revoltar-mo-nos, ser prudentes ou temerários, vingativos ou resignados. Porque a

liberdade é algo que nos coloca acima de nós mesmos fazendo parte de coisas que só o

entendimento pode pensar, ele não pode ser inferior. É graças a essa liberdade, nas palavras de

Kant, independência à matéria, à sensibilidade, que se justifica a nossa submissão às leis puras

práticas, dado que fazendo parte desses dois mundos devemos considerar o nosso próprio ser em

relação à segunda, com mais elevada determinação, com veneração e respeito às suas leis.

Graças à liberdade somos capazes de moralidade e segundo Kant duas coisas apenas são

dignas, a humanidade e a moralidade. Esta dignidade de que fala Kant tem como fundamento a

autonomia. Aliás «… pela simples análise, dos conceitos da moralidade pode-se, porém, mostrar

muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira

69

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Lisboa Ed. 70. 1998P.12.

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se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este princípio não

manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia».70

Daí que a falta de

liberdade, a submissão, a heteronomia segundo Kant só pode tornar possível o imperativo

categórico. Portanto, como já se tinha referido, a liberdade para Kant é uma necessidade. Daí que

segundo o pensador em estudo, muitos poderiam ter dito: «É tão cómodo ser menor. Se eu tiver

um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez

consciência moral, um médico que por mim decide a dieta, etc. então não preciso de eu próprio

me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão

por mim essa tarefa aborrecida. É pois difícil a cada homem desprender-se da menoridade que

para ele se tornou quase uma natureza».71

Isso pensando que sem liberdade também não pode ser

responsabilizado.

2.4.2. A boa Vontade

Na óptica de Kant, vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão

independentemente da inclinação, reconhece como prática necessária, quer dizer como bom: «A

razão numa lei prática, determina imediatamente a vontade, não mediante um sentimento de

prazer e desprazer, mesmo se ele está agregado a esta lei; e só porque ela pode ser prática

enquanto razão pura, é que lhe torna possível ser legisladora».72

E para a noção de bom, segundo

o pensador acima mencionado, seria aquilo que determinasse a vontade por meio de

representação da razão, por princípios que são válidos para todo o ser racional. Como tal, é

diferente do agradável.

70

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.80. 71

KANT, I. A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Lisboa. 1995. Ed.70Pag.11-12. 72

KANT, I. Crítica da Razão Prática. Lisboa Ed. 70. 1998. P.36.

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Joaquina B. Martins Ética e Educação na perspectiva de Kant

39

Ainda para além da vontade boa, Kant refere à vontade pura que é a vontade determinada

unicamente por princípios a priori e sem quaisquer móbiles empíricos. Nesse sentido, as nossas

acções boas como a coragem, a moderação e afins, deixam de ser boas e tornam-se más e

prejudiciais se a vontade que nos faz agir não for boa.

Apesar de ser um dever de qualquer ser racional procurar ser feliz na óptica de Kant, a

dignidade só é possível graças à boa vontade. Muitas coisas são boas segundo Kant, mas apenas a

vontade boa, é boa sem reserva. A boa vontade é boa em si mesma independentemente daquilo

que se faz, ela é em si boa, pelo simples querer, daí a sua superioridade em relação a tudo que

incorpora inclinação: «A vontade boa não é boa por aquilo que promove ou realiza … mas tão-

somente pelo querer…».73

E «Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, …faltasse

totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse

alcançar …, e só afinal restasse a boa vontade (…), ela ficaria brilhando por si mesma como uma

jóia, como uma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor»74

.

Todos são livres para agir, aliás, é essa liberdade que justifica a moralidade, tomando

carácter de dever. De acordo com Kant, a natureza nos dotou de razão, como sendo uma

faculdade prática. Por isso, devemos usá-la da melhor forma possível, exercendo influência sobre

a vontade, fazendo com que a vontade faça escolhas não só boas, mas boas em si mesmas. Apesar

de poucos serem aqueles que se deixem guiar pela voz da boa vontade, Kant considera ser

virtuoso aquele que age conforme o dever, isto é, cumprindo a lei positiva, embora isso não baste,

porque parafraseando Kant, a boa vontade parece ser a condição indispensável do próprio facto

de sermos dignos de felicidade. Como já tínhamos referido, essa boa vontade é boa sem reserva,

incontestável segundo este pensador, por ser comandada pela razão.

Em relação às nossas acções, é de se sublinhar que o seu propósito, não tem a ver com a

consequência da acção, mas única e exclusivamente na máxima que a determina: «não pode

residir em mais parte alguma senão no princípio da vontade, não importa portanto o número de

beneficiados ou prejudicados, importa sim o cumprimento do dever, indo justamente contra o

provérbio: “ de boas intenções o inferno está cheio.” Para ele esta vontade não será na verdade o

73

KANT, I. Fundamentação da Metafísica P.23.

74

Idem.

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40

único bem, nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais

mesmo de toda a aspiração da felicidade.

No entanto esse querer não é ensinado, é esclarecido, pelo facto de se relacionar com o bom

senso natural e encontra-se incluída no querer. Esse esclarecimento que exige que a pessoa seja

livre.

2.4.3. A questão do Bom senso

Não é necessário ser bastante inteligente para perceber as máximas que Kant propõe. A

moral kantiana é entendida também pela razão vulgar. É basta pôr na posição do outro e de toda a

humanidade, para ver se se deve praticar uma determinada acção ou não. Kant refere a Sócrates,

para afirmar tal como ele que em matéria de moral deve-se ficar pelo juízo da razão vulgar e só

recorrer a filosofia para completar o sistema dos costumes ou expor as regras de maneira mais

compreensíveis e cómodas, pondo-as por meio da filosofia num novo caminho da investigação e

ensino: «Este facto de descer até aos conceitos populares é sem dúvida muito louvável, contando

que se tenha começado por subir até aos princípios da razão pura e se tenha alcançado plena

satisfação neste ponto; isto significa primeiro o fundamento da doutrina dos costumes na

metafísica, para depois, uma vez ela firmada solidamente, a tornar acessível pela popularidade».75

Lembremos que Sócrates não se preocupava com questões que estavam para além dele

mesmo. Fazia parte de seus ensinamentos coisas simples e práticas do dia-a-dia das pessoas o que

pode ser visto na sua máxima “ Conhece-te a ti mesmo”.

Apesar de Kant ter a consciência de que todas as pessoas possuem a capacidade de distinguir

acções boas e más, morais e imorais, ele mostrou a necessidade de fazer uma passagem e sair do

75 Idem.Ibidempag43.

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seu círculo e entrar no campo da filosofia prática porque aí se encontram as informações e

instruções necessárias sobre a fonte do princípio da moralidade, contrapondo as acções por

inclinação. Portanto, a necessidade de ir para além do físico. Essa responsabilidade é do próprio

indivíduo, porque faz parte do esclarecimento. Daí que afirma o filósofo que, a humildade se

calhar se liga à ideia de inocência que é admirável, mas com um lado de tristeza por se preservar

tão mal e se deixar tão facilmente seduzir. Neste sentido, Kant conclui que a própria sageza, que

consiste mais em fazer ou não fazer do que em saber, precisa também da ciência, não para

aprender dela, mas para assegurar as suas prescrições e para lhes dar estabilidade.

Além do espírito altruísta, sublinha-se a necessidade de pensar bem. Portanto, a moralidade

faz parte de algo imaterial, incontextualizável. Neste sentido, não se pode exigir mais do que o

simples pensar para a prática de acções morais. Aliás, este bem pensar é apontado por vários

pensadores e mesmo pelo próprio cristianismo como algo de fundamental importância à prática

de boas acções, para Kant de acções moralmente válidas.

Na moralidade Kantiana, os interesses do outro devem ser levados em conta e exige-se que

sejam vistos da mesma forma como vemos para os nossos, ou tido em primeiro plano, reservando

assim os nossos para depois, isto é, satisfazer as nossas necessidades só depois de ter satisfeito as

do próximo.

2.5.A Ética kantiana e Sociedade actual

Há a necessidade de reconstituir o homem. Neste sentido os filósofos, que de uma certa

forma receberam uma educação cristã, destruíram a totalidade da espécie humana. Nisso também

se enquadra Kant, que recebeu uma educação pietista. Este, por exemplo, fala tão bem da

humanidade, quando queria referir-se somente à razão. Vejamos: «Tudo portanto o que é

empírico é, como acrescento ao princípio da moralidade, não só inútil mas também altamente

prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o valor particular de uma vontade

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absolutamente boa …. É que o princípio da acção seja livre de todas as influências de motivos

contingente que só a experiência pode fornecer».76

Neste momento é importante pensar que aquilo que fazemos tem carácter universal e pode

mudar alguma coisa e deixar de lado o provérbio cabo-verdiano: «mi so ‘n ca ta compu mundo»,

quer dizer não pensar que uma só pessoa não pode tirar o mundo do mal. Felizmente, ao invés

dos desastres naturais pelos quais pouco ou nada podemos fazer, os problemas humanos, por

serem essencialmente problemas morais, podem ser erradicados: «Afinal de contas, todos

habitamos um pequeno, e cada vez mais pequeno, planeta, que pode ser visto como uma

comunidade de riscos compartilhados, na qual, como numa teia de aranha, falhas em um dos seus

componentes são inapelavelmente sentidas em todos os outros».77

No entanto, o progresso moral fica a dever ao progresso institucional, pois que só com uma

estrutura político-jurídica internacional seria possível materializar uma moral universal: «Kant

continua a acreditar no progresso da humanidade não em virtude da moral, mas pelo papel das

leis e das instituições»78

– essa é a ideia de José Manuel Pina Delgado de acordo com as

interpretações feitas aos estudiosos de Kant. Vê-se isso mesmo quando ele disse que o

cumprimento do dever é a predisposição para acção por dever, concluindo que agir moralmente

não é mais do que cumprir os deveres, só que esses deveres não vem da sensibilidade, mas da

razão pura. Kant defende que todos, não escapando indivíduos, países, união de países, enfim

todos, têm o dever de contribuir para o melhoramento do mundo. Isso não é mais do que um

alargamento daquilo que ele defende em relação à liberdade. Todos devem ser livres, mas para

que isso aconteça há que limitar as nossas acções de modo a não prejudicarmos a liberdade dos

outros, ou seja, para não fazer com que outros se tornem menos livres: «o homem é um animal

que, quando vive entre os outros congéneres, precisa de um senhor. Com efeito, abusa certamente

da sua liberdade em relação aos seus semelhantes; e embora como criatura racional, deseje uma

lei que ponha limites à liberdade de todos, a sua animal tendência egoísta desencaminha-o, no

entanto onde ele tem que renunciar a si mesmo. Necessita pois de um senhor que lhe quebrante a

vontade, o force a obedecer uma vontade universalmente válida, e possa no entanto ser

76

IbidemP.65. 77

Cosmopolitismo e os dilemas do humanismo: As Relações Internacionais em Al-Farabi e Kant.in: AAVV.

Separata. Configuração dos Humanistas e Relações internacionais. Ensaios. Ijuí.Editora da Inijuí.2006.pag234. 78

Idem.Ibidem.

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43

livre».79

Da mesma forma, também a liberdade das nações é limitada, têm portanto que respeitar a

liberdade de outras nações, porque assim como acontece com os indivíduos, isto é, acima dos

indivíduos está o Estado, também acima do Estado “as relações do Estado” e acima o

cosmopolitismo, que seria uma espécie de Estado Maior, acima de todos os Estados que teria o

mesmo objectivo com o Estado em relação aos indivíduos – controlar o limite das liberdades

individuais de cada um, no sentido de não pôr em causa as outras liberdades de forma que todos

sejam livres. Isso porque o homem tem aquele pendor para libertinagem. Daí que se fala de uma

responsabilidade generalizada, pelo facto da globalização, que faz com que as coisas funcionem

como um sistema, cuja parte só tem valor em função do todo.

2.6. Ética kantiana para quem?

Muitas vezes faz-se a interpretação de que Kant foi mesmo consciente da impossibilidade de

viver uma vida conforme às regras que ele teorizou para o ser humano na sua moral. Daí a origem

dessa pergunta “Ética Kantiana para quem”?

Importa-se realçar que Kant, apesar de ser consciente da dificuldade de praticar acções

moralmente válidas, não descartou a validade dessa mesma moral, tendo em conta o objectivo

para o qual a escreveu – fundamentação. Foi mesmo neste sentido que falou da dificuldade ou

mesmo da impossibilidade de encontrar na experiência um só caso, porque também isso não faz

parte da prática. Daí que não se pode procurar casos na existência prática. Isso seria o mesmo que

procurar nesse mundo de matéria realidades como Deus, alma e outras realidades imateriais.

Tendo tudo isso em conta pode-se dizer que como fundamentação isso foi criado para homens,

que queiram de uma forma ou de outra viver, mas uma vida humanamente boa. Daí que podemos

79

KANT, I. A Paz Perpétua e outros Opúsculos. Lisboa. 1995. Ed.70P. P.28.

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ver que Kant foi mesmo um génio neste sentido, sabendo separar as realidades físicas e

metafísicas, que levam muitos filósofos a defenderem teorias bastante práticas o que poderá

eventualmente não servir para o universo todo, devido a existência de condicionalismos que

interferem na prática das acções. Daí que se exige ao género humano um desdobramento de todas

as disposições naturais da humanidade, gradualmente a partir de si, tendo em conta o seu próprio

esforço.

É nesse desdobramento que a ética kantiana nas suas diversas máximas torna prática e

praticável aos seres racionais, onde se encontra também o homem. Por sua vez, essa moral não

servirá ao homem como ser sensível, mas apenas como ser racional, que como tal ultrapassa o

simples presente, consegue viver outras realidades, sem que nelas estejam de facto, graças à

razão.

Passaremos de seguida ao casamento da ética e educação, uma união em que todos deverão

tomar parte, pelo facto de ser apenas através dessa via que teremos motivos para nos afastar da

imperfeição.

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45

III CAPÍTULO

ÉTICA KANTIANA NA EDUCAÇÃO

3.1.O projecto kantiano é urgente para educação

O projecto Kantiano apesar de não ser prático, mas puramente teórico, poderá dar

contributos altamente valiosos para a humanidade, contando que se comece desde a mais tenra

idade, sem deixar de trabalhar a educação de educadores, que tiveram défice na educação

privada, naquilo que Kant denomina de educação pública80

, isto é, os pais e encarregados de

educação, passando de seguida pelos professores, amas e todo o resto do pessoal que de uma

forma ou de outro contribuem para a educação dos mais novos.

Isso torna-se muito mais urgente nesta altura de uma certa permissividade por parte daqueles

que são responsáveis pela educação. O rigor já não faz parte desse jogo, pelo menos desde cedo,

começa-se a exigir tudo de uma só vez, o que fica bastante difícil pelo facto de ser a primeira vez

80

A educação pública segundo Kant teria o objectivo de promover a boa educação privada. O lugar onde se

ministra uma educação desse género seria os institutos com um número não muito elevado de alunos por ser

uma educação bastante dispendiosa. Os preceptores seriam os pais ou então os auxiliares assalariados, que

devem ter toda a liberdade em relação ao seu trabalho. Esse tipo de educação tem muitas vantagens em

relação à educação privada, de entre elas a sociabilidade, ausência de propagação dos erros de família,

aquisição de habilidades, cidadania, etc.

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e por querer que uma pessoa ao qual nunca foi exigido algo, seja capaz de fazer tudo de uma

forma perfeito logo, da primeira vez. Portanto o que deverá acontecer é o que Kant defende:

começar a exigir das crianças desde cedo. Isso podemos ver na frase já citada no primeiro

capítulo onde dizia que a educação deve ser dura sem muito conforto, porque “quando é entregue

à sua vontade na juventude e nada lhe opõe resistência, conservará então uma certa disposição

selvagem ao longo de toda a sua vida. E também não ajuda a ser poupada na juventude, pela

excessiva ternura materna, pois, desse modo sentirá ainda mais resistências de todos os lados e

por toda parte receberá revezes, assim que entrar nos negócios do mundo”.81

Como diz o nosso

ditado: “ fidju ki pai ka kria mundu ki ta krial”, nas palavras de Kant: «Não existe ninguém que,

desprovido de cuidados na sua juventude, não veja por si, na idade madura, onde foi

negligenciado, seja na disciplina, seja na cultura (…)»82

.

Quando o rigor (que tem o objectivo de limar o estado rude) é implantado desde cedo, as

crianças adquirem o hábito de cumprir as regras, o que seria bom para elas mesmas, já que as

coisas na vida nem sempre são fáceis e elas não saberão o destino que a natureza reservou para si.

É neste sentido, que podemos ver a importância de ensinar as crianças a serem consequentes, o

que actualmente já não se dá o mesmo valor que outrora: «Ser consequente é a maior obrigação

de um filósofo e a que mais raramente se encontra. As antigas escolas gregas fornecem-nos disso

mais exemplos do que aqueles com que deparamos na nossa época sincretista em que se fabrica

um certo sistema de coligação de princípios contraditórios, repleto de desonestidade e de

ligeireza, porque convém mais a um público que se contenta com saber de tudo alguma coisa,

sem nada saber em suma…».83

Isso quanto à prática do bem que segundo Kant não se ensina, mas pode-se esclarecer. O que

seria um trabalho conjunto de todos sem excepção, porque nós somos limitados e como se diz

juntos seremos mais fortes e assim diminuiremos a imperfeição. Em relação a esta questão eis a

ideia do autor: «Seria certamente mais satisfatório para a nossa razão especulativa resolver por si

esses problemas sem tal digressão, e reservá-los com elucidação para o uso prático; mas a nossa

faculdade de especulação não se encontra em condições tão favoráveis. Os que se gabam de tais

81

KANT, I. Sobre a Pedagogia. Pag11. 82

Idem.Ibidempag12. 83 KANT, I. Crítica da Razão Prática. Lisboa Ed. 70. 1998Pag35.

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sublimes conhecimentos não deviam guardá-los para si, mas apresentá-los publicamente a exame

e ao respeito …»84

3.2. A aprendizagem do bem

Kant levanta a hipótese de haver um primeiro princípio educativo – um estado, que pode ser

rude.85

Mas pode-se pressupor que o primeiro princípio, essa rudez tenha alguma coisa de bom.

Pode ser que ele não seja bom por natureza, mas, pressupõe-se que tenha ideia de bondade em

potência, que tenha a ideia da perfeição. Porque se não fosse não seria possível a educação para o

bem, ou seja, ensinar o bem. E o criador poderia ter dito: «Equipei-te com todas as disposições

para o bem. Cabe-te desenvolvê-las e, por isso, a tua felicidade ou infelicidade depende de ti

próprio».86

O simples cumprimento das normas faz parte de um dos pré-requisitos da moralidade.

Parece que a natureza se comprazeu aqui na sua máxima parcimónia e que mediu com tanta

concisão o seu equipamento animal e de modo tão ajustado à máxima necessidade de uma

existência… de passar da maior rudez à máxima destreza, à perfeição interna do seu pensar e,

assim (tanto quanto possível na Terra), à felicidade, fosse o único e disse ter o mérito e apenas a

si estar agradecido; …87

84

Idem. IbidemPag.13. 85

O estado rude no pensamento de Kant não é a mesma coisa que um estado selvagem, pois o selvagem

conservará sempre esse ser tal como é logo no nascimento. Enquanto que o estado rude é como um material

bruto que o artista tem para com ele trabalhar e dar a forma de uma obra de arte. Dessa mesma forma o ser

humano é um ser em permanente mudança, dependendo de múltiplos factores que interferem na sua educação,

daí o termo – o ser humano é “bebé educando” 86

IbidemP. 15 87

KANT, I. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa Ed.70.1995.Pag.24-25.

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Apesar disso, como se houvesse uma maldição e o homem perdesse aquela perfeição, e

apenas ficasse uma vaga ideia, em que ele aspira alcançá-lo de novo e pelo facto de ele já o

tivera, deposita todo esforço para o alcançar e quando não consegue nesta vida terrena, projecta-o

para o além-terra. Kant é de opinião que até uma determinada altura a criança tem que ser

conduzida e ensinada, muitas vezes sob pressões, a respeito das experiências de vida, pelo facto

de ainda não poder compreender certas realidades (as abstractas).

A partir do momento em que as concepções de pessoas, são vistas como sistemas de atitudes

relativamente consistentes e não como uma série de estados, alteráveis ao acaso., a criança liberta

o egocentrismo e toma a perspectiva de uma terceira pessoa. Aparecerá a coordenação da

perspectiva própria e do outro com o sistema ou interacção em que ela ocorre e as relações são

vistas como sistemas onde se partilha pensamentos e experiências mútuas.

É a partir desse estádio, onde o indivíduo é capaz de tudo isso que se torna necessário, que

ele seja livre nas suas acções. Ele já é capaz de libertar a menoridade e adquirir a capacidade de

fazer uso do seu entendimento sem a direcção de outro indivíduo – esclarecimento.

Disso tudo podemos dizer que se ensina o bem, quando ainda não se adquire a consciência

total do outro enquanto pessoa, enquanto outro e enquanto sistema. A partir daí cabe ao próprio

educando esclarecer-se, utilizando a sua própria liberdade, podendo usufruir mesmo assim do

apoio de outros.

3.3. “Uma educação por dever”

A educação como já se tinha falado no primeiro capítulo pode ser física ou moral,

dependendo do desenvolvimento do próprio educando.

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49

O que nos importa por agora é a educação moral. Para isso é necessário levar sempre em

conta as máximas do imperativo categórico (cujo o desenvolvimento já tinha sido feito no

segundo capítulo), quer se trata do educando ou do educador.

Em relação a essas máximas, podemos citar a primeira a título de exemplo: “Age apenas

segundo uma máxima tal que possas querer que ela se torne lei universal”.88

Portanto, todas as

acções no âmbito educativo devem ser pensados a tal ponto que ela poderá ser transformada em

lei para todos quantos querem ou precisam agir no campo da educação. Portanto se praticares

uma determinada acção deves querer que todos façam o mesmo. No mesmo sentido vão as duas

outras fórmulas do imperativo categórico.

Facilmente se apercebe que isso é difícil ou mesmo impossível de conseguir nas crianças

pequenas, e que por isso a formação moral requer a maioria dos conhecimentos dos pais e dos

professores, para que possam ensinar e exigir das crianças apenas o adequado ao seu nível. Daí o

primeiro esforço na educação moral, é fundar um carácter, que consiste na prontidão de agir

segundo máximas. De início são as máximas escolares, em seguida máximas da humanidade. É

que no início as crianças obedecem às leis, e as máximas também são leis, só que subjectivas,

nascem do próprio entendimento humano. “Mas nenhuma infracção da lei escolar pode passar

impune, apesar de o acordo ter de ser sempre adequado à infracção”.89

Devemos desde cedo habituar as crianças à lei (horas de se deitar e de se levantar, de comer,

de folgas, etc.), mesmo que não concordem, porque também não vão concordar com todas as leis

cívicas, assim tendo em conta o pensador alemão, adquirirão o hábito de aceitar as normas,

mesmo que não concordarem.

Apesar disso, o ideal seria agir por dever em todas as circunstâncias. Ainda que muitas vezes

as pessoas que agem segundo o dever são censuradas “...mas essa censura é amiúde injusta, e esta

exactidão, ainda que pareça penosa, é uma disposição para o carácter”.90

Esse carácter quanto aos alunos, abarca a obediência em duas vertentes: 1ª, à vontade

absoluta – resulta de coacção; 2ª, à vontade reconhecida como racional e boa de um guia. Esta

vontade por ser voluntária é muito importante, mas a primeira é necessária na medida em que

prepara a criança para viver na Sociedade. Daí a necessidade das crianças estarem sob uma certa

88

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70, Lisboa, p. 59. 89

KANT, I. Sobre a pedagogia. Pag61.

Idem.

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lei da necessidade, e esta ser geral ou universal. Por isso, “ …numa sala de aula o professor,

porém, não deve preferir nenhuma criança por causa dos seus talentos, mas somente por causa do

seu carácter, pois senão, gera-se a inveja que é contrária à amizade. As crianças têm de ser

francas e tão alegres no seu olhar como o sol. Só o coração alegre é capaz de sentir o

comprazimento do bem”,91

porque assim seria uma excepção e quebraria o carácter da lei –

universalidade.

Quando não há obediência em relação à lei, isto é, quando não se age em conformidade com

o dever, aparece o castigo, que pode ser:

1- Físico (consiste na denegação do desejado ou aplicação de pena);

2- Moral ou prática – consiste em prejudicar a inclinação do ser honrado ou amado; esses que são

os meios auxiliares da moralidade: «Os castigos físicos têm de ser meros complementos da

insuficiência dos castigos morais. Quando os castigos morais já não ajudam em nada, avança-se

para os castigos físicos».92

O primeiro género é aparentado com o castigo moral e é negativo.

A educação moral é algo bastante importante, porque segundo Kant o ideal seria ter uma

sociedade maximamente ampla onde é criado as condições de maximização da autonomia e da

liberdade humana, agindo por dever. Mas tendo em conta que dificilmente ou quase nunca as

pessoas agem por dever, Kant fala da existência do Direito onde “os castigos físicos tem de ser

meros complementos da insuficiência dos castigos morais”.

Em relação às exigências, deve ficar claro que na educação moral não deve haver castigos

(pelo menos a nível físico), se a criança fizer algo de errado, por exemplo contra uma mentira,

apenas um olhar de desprezo basta, ou então dizer que não acreditamos mais nela. Caso os

castigos interferirem no campo da educação moral, a criança habituará a prémios e castigos de tal

forma que só fará aquilo que lhe for conveniente. E a moralidade seguindo esta linha de

pensamento é algo bastante nobre para ser colocado no plano do físico, isto é, para ser posta no

mesmo patamar que a disciplina.

No entanto, “ Quando os castigos morais já não ajudam em nada, avançam-se para os

castigos físicos, mas através disso já não se forma um carácter bom”.93

91

Idem. Ibidem, pag65.

92

Idem.Ibidempag63. 93

Ibidem.pag63.

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Então podia-se perguntar: qual é o objectivo de castigo? Corrigir o que está errado. Daí que,

se deve ter bastante cuidado para não acontecer o não desejado “...para que vejam que o fim

terminal dos mesmos é somente o seu melhoramento...se os castigos forem com frequência,

formam um teimoso., e se os pais castigam os seus filhos por causa da sua obstinação. Assim

apenas os tornam ainda mais obstinados”.94

Para podermos ter homens que agem segundo a razão, temos que formar carácter nas

crianças; nisso temos resumidamente três aspectos a considerar, segundo o filósofo alemão, para

além da eliminação das paixões:

As crianças devem ser guiadas através dos instintos, mas já na fase de adolescência

deve-se começar a exigir-lhes a sujeição às regras do dever. Já se pode usar a vergonha;

A veracidade: “um homem que mente não tem carácter, e, se algo de bom tem em si,

isso promana simplesmente do temperamento. Algumas crianças têm pendor para a

mentira... A tarefa do pai é velar para que a criança se desabitue disso”;95

E por último, a sociabilidade que é por esta razão que as crianças vão para o Jardim

infantil – para travar amizades com outras e saberem estar na Sociedade de crianças

“...devem preparar-se para o mais doce gozo da vida” – saber viver de acordo com os

preceitos da Sociedade. Quanto a isso é de se notar que aquilo que Kant utiliza como

condição para o desenvolvimento humano é a sociabilidade insociável: «Graças pois, à

natureza pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emulada, pela ânsia

insaciável de posses ou também de mandar! Sem elas, todas as excelentes disposições

naturais da humanidade dormitariam eternamente sem desabrochar. O homem quer

concórdia, mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer discórdia…

Os motivos naturais, as fontes da insociabilidade e da resistência geral de que brotam

tantos males, mas que impelem tanto, …a novos desenvolvimentos das disposições

naturais revelam de igual modo o ordenamento de um sábio criador».96

94

Ibidem. Pag64. 95

Ibidem. 96

96

KANT, I. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa Ed.70. 1995.P.26-27.

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3.4. A contribuição da educação para uma formação moral

A finalidade da natureza segundo Kant é agirem todos de uma só forma, segundo os mesmos

princípios. Princípios esses, que irão dar ao homem uma outra natureza. Isso poderá acontecer,

porque todos os indivíduos possuem uma única natureza.

A aquisição desse segundo estado, só é possível graças ao esforço do próprio educando: «A

aproximação gradual da natureza humana à sua finalidade é possível somente através do esforço

de pessoas de inclinações mais amplas que tomam a sua parte na perfeição do mundo e são

capazes da ideia de um estado futuro melhor».97

Aqui não se refere aos indivíduos, pois, que para

ele isso não é possível. Trata-se da espécie humana, «onde podemos trabalhar no plano de uma

educação mais adequada e entregar os preceitos para tal aos vindouros que a podem realizar a

pouco e pouco e contribuírem para o seu aperfeiçoamento.98

Vê-se nas orelhas-de-urso, por exemplo, quando as plantamos por estaca, que são de uma e

mesma cor; quando pelo contrário, as semeamos, são de cores totalmente diferentes e variadas. A

natureza colocou nelas, portanto, os germes e tudo depende de serem devidamente semeadas ou

plantadas, para se desenvolverem em si. O mesmo se passa com os homens».99

Isso para mostrar

que os seus fundamentos morais apesar das críticas recebidas (impossível de pôr na prática), é

possível à espécie humana pelo menos ao nível de aproximação. E parecerá bem mais fácil se as

pessoas forem educadas neste sentido. O ser humano já possui em potência a capacidade de ser

perfeito ou então de aproximar-se da ideia da perfeição, quando age pelo menos conforme o

dever (já que é difícil encontrar no mundo sensível acções por dever, apesar de nada nos garanta

que não haja neste mundo acções desse género, só que isso se existisse estaria para além das

nossas faculdades sensitivas e logo não teríamos como prova-lo), o contrário também poderá

acontecer, apesar de não existir no ser humano disposições naturais para o mal, essa disposição

poderá aparecer se não se submeter a sua natureza a regras.

97

Kant, I. Sobre a Pedagogia Pag19.

98

Idem. Ibidem. 99

Idem. Ibidem. Pag14.

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Tudo depende das ideologias traçadas e metodologias que facilitam a prática desses ideais.

Mas, para que a espécie se desenvolva sempre em direcção à perfeição, não se deve poupar

esforços de ninguém. Tratando-se do género humano, os planos educativos teriam que ser

cosmopolitas e se isso acontecer as consequências não seriam nada mais, nada menos do que

magníficas. Nas palavras de Kant: «… que magníficas consequências as acompanham então!

Uma boa educação é justamente aquilo donde brota todo o bem no mundo! É necessário somente

desenvolver cada vez mais os germes que residem no homem».100

Neste sentido, a educação deve

velar para a moralização, e deve orientar o educando de tal modo que não se disponibiliza para

perseguir qualquer fim, mas bons fins, isto é, aqueles fins válidos universalmente. É neste sentido

que se torna necessário segundo Kant aprender a pensar, diria mais que as crianças aprendam a

pensar bem (porque com essa habilidade existiria maior probabilidade de se conduzirem para

boas acções): «…, o importante é principalmente que as crianças aprendam a pensar. Isso leva-

nos aos princípios donde brotam todas as acções. Vê-se portanto, que há muito a fazer numa

educação genuína. Habitualmente, porém, na educação privada exercita-se ainda pouca a quarta

parte, a mais importante, pois educa-se os filhos essencialmente de tal modo que a moralização é

deixada por conta dos clérigos».101

Isso seria nesta perspectiva, uma acção pouco digna, já que

como referiu-se a pouco faz parte do dever todos contribuírem para a condução gradual da

espécie humana em direcção à perfeição. Para que haja acções por dever, torna-se necessário a

formação de carácter que depende da eliminação das paixões. È necessário sustine, cuja tradução

é: “ suporta e habitua-te a aguentar”, o que requer força de ânimo e vocação.

O mais importante para a educação moral é a formação do carácter: «Este consiste na firma

intenção de querer fazer algo e também no seu exercício real. Vir propositi tenax, dizia Horácio, e

é isso um bom carácter! Por exemplo, se prometo algo a alguém, tenho de o cumprir,

independentemente de me vir assim a prejudicar. Pois um homem que se propõe algo, mas não o

faz, já não se pode confiar em si próprio; …).102

Kant parece defender que a formação do carácter acontece a partir da apresentação dos

deveres e nunca através de castigos. A criança tem de cumprir os seus deveres, que devem ser

deveres habituais tanto em relação a si próprio como em relação aos outros.

100

Idem. IbidemPag.18. 101

Idem. IbidemPag21. 102

Idem. IbidemPag71.

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Quanto aos deveres em relação a si próprios resumem-se em: estar sempre limpo; não

satisfazer os apetites e inclinações, mas sim ser moderado e sóbrio; agir sempre de acordo com a

dignidade da humanidade na sua própria pessoa, tal como reza a fórmula da dignidade humana.

Em relação aos deveres para com os outros, Kant aponta: o respeito pelo direito dos outros

(outras crianças), caso acontecer a violação pagar com a mesma moeda e nunca levar em conta a

generosidade: “Que ele não seja repleto de sentimentos, mas sim com a ideia do dever”103

, já que

a criança não tem esse conceito em seu poder. No entanto, para que haja o respeito para com o

direito dos outros torna-se necessário aquilo que se está a pensar na sua institucionalização hoje

nas escolas em Cabo Verde (Direitos Humanos) – e que Kant designa de catecismo de direito,

que fomentaria uma formação íntegra do indivíduo.

Esse catecismo deve conter segundo Kant, situações do quotidiano e as crianças apenas

emitissem os seus juízos quanto à justiça em relação às situações identificadas.

Para que a educação tenha efeitos no campo da moral, Kant na obra Sobre a Pedagogia, diz que a

educação deve assentar por toda a parte de alicerces correctos, e torná-los compreensíveis e

aceitáveis às crianças. Devem aprender, portanto, a repudiar o aborrecimento e odiar o disparate,

o aborrecimento interno em vez das penas exteriores, o valor interno da acção e do acto em vez

da palavra e movimento da alma, entendimento em vez de sentimento, alegria e piedade com bom

humor em vez de devoção rabugenta, tímida e lúgubre.

Da mesma forma, também a formação moral fornece grandes apoios à educação, embora

seja mais fácil ver o contributo da educação para a formação moral.

Tudo depende da educação e por outro lado tudo depende da moral. Afinal, como se diz, é a

educação que molda o carácter. Seguindo essa ideia, as pessoas adquiririam o hábito de cumprir

os seus deveres, e quando os que por uma razão ou outra, não cumprissem, sentem-se

contagiados por aquelas que cumpriam, iriam esforçar para fazer o mesmo, porque sabem que o

diferente é, na maioria das vezes, posto de lado, rejeitado, o que não é agradável para ninguém.

103

Idem.IbidemP.75

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3.5.Educação para o esclarecimento

Por contraditório que pareça, os escravos segundo Kant são criaturas livres. Graças à

educação que receberam dos seus donos, recusam peremptoriamente a liberdade com medo de

não poderem viver “ tão bem” como sob os cuidados dos seus senhores: «Depois de terem

embrutecido primeiramente seu gado doméstico e preservado cuidadosamente essas tranquilas

criaturas afim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as

encerraram, mostrando-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas...

Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo atemorizá-lo em geral para não fazer

outras tentativas no futuro…».104

A submissão nesses casos, na óptica desse pensador, torna-se quase que uma natureza e cria-

se um amor a ela, porque nunca o deixaram fazer uso do seu entendimento e experimentar o

mundo exterior. Como diz o provérbio educativo muito em voga actualmente: “ aprende-se a

fazer, fazendo”, e como essas criaturas não tiveram oportunidades de experimentar, ficaram sem

saber. No entanto, alguns deles aprendem sem ter experimentado, apenas usando o entendimento,

o que Kant considera ser algo bastante comum. Eis aqui as palavras do autor: «Ouço, agora,

porém, exclamar de todos os lados: não raciocinis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-

vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis,

mas crede! (Um único senhor do mundo diz: Raciocinai, tanto quanto quiserdes, mas obedecei!).

Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade … que impede o esclarecimento».105

comportamentos por parte daqueles que são responsáveis pela educação, que prejudicam o

esclarecimento. Esta é a grande verdade! Isso acontece por tudo quanto é lado, com todo quanto é

gente!

Daí se falou, pôr tudo ao alcance das crianças e essas aprenderiam e fariam tudo por

inclinação.

104

KANT, I. Resposta à pergunta o que é “Esclarecimento. 1783. Pag103. 105

KANT, I. Resposta à Pergunta o quê o esclarecimento. Pag104.

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Dessa ideia, Kant contraria dizendo que há casos em que só o dever pode conduzir-nos e

nunca a inclinação. É o caso de compromissos que temos com as instituições públicas, onde

ninguém poderá controlar-nos, a não ser a voz da razão.

Como a pedagogia actual defende, pôr as crianças em condições tais que lhes favoreçam a

acção, porque é só “fazendo que a gente se aprende.” Portanto, a criança deve fazer, fazer e fazer.

O pensamento não vem ao caso.

No entanto, chegará um momento da escolaridade ou da vida que já não se consegue fazer

tudo mecanicamente e complica a sua vida, o insucesso aparece e procura-se o erro, que se pensa

mais fácil de encontrar, mas nunca ou quase nunca a solução. Tudo seria fácil se se acrescentasse

ao provérbio anteriormente citado algo relacionado com o pensamento, porque a criança necessita

mais do que fazer, ela precisa ou precisará de agir. E mesmo que se necessitasse apenas de fazer,

chegará a uma altura em que já não se consegue se não se usar o raciocínio e isso não faz parte do

seu hábito. Isso não aconteceria se se tivesse ensinado a criança a pensar a partir do momento que

se ensina a fazer. Pensaria tão bem quanto saberia fazer.

Apesar disso, começou-se a constatar esse erro e as primeiras acções começaram a aparecer

no sentido de colmatar a situação. Isso só podia servir de remédio à alma doente – trabalhou-se

muito as habilidades depois do aparecimento de situações que exigiam tomadas de decisões que

se fossem mal pensadas podiam pôr em causa a própria vida não só do indivíduo, mas também do

universo todo (como é o caso do vírus HIV, drogas, de armas nucleares, entre outras). É que

como dizem não há tempo para pensar, é tempo de agir.

Essa forma de pensar e ministrar a educação reproduz ainda mais a falta de liberdade e

consequentemente o obscurantismo aparece no lugar do esclarecimento. Os que conseguiram

pensar bem, graças talvez à educação privada, são os que dominam. Com isso não queremos

menosprezar o mecanicismo, apenas mostrar o valor da razão e do despertar da consciência e

pensar talvez a incompletude do mecanicismo e que como incompleto que é poderá causar danos.

O que se propõe é pensar numa forma de reverter a situação, ensinando a criança também a

pensar. A educação faria um só trabalho: à medida que se ensina a fazer, ensinar a pensar. Podia

ser talvez mais dispendioso em termos de tempo e não só, mas valeria a pena. È necessário

portanto ter coragem e ensinar a usar o entendimento.

Em relação ao esclarecimento, isto é, ao uso do nosso entendimento, Kant é de opinião que

nós somos culpados pela nossa própria menoridade, porque muitas vezes por indecisão, preguiça,

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comodismo ou falta de coragem, o homem não faz o uso do seu entendimento. Daí que o lema do

esclarecimento é “sapere ande! Tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento”.106

A única coisa que se exige para que haja esclarecimento é a liberdade, para que se possa

fazer uso público da sua razão, que por sua vez exige boa vontade e coragem. O uso público da

razão “...deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento (“ Aufklarung”) entre os

homens... Entendo contudo sob o nome do uso público da sua razão, aquele que qualquer homem

enquanto sábio pode fazer da sua razão em certo cargo público ou função a ele confiada”.107

No entanto, esse uso público da nossa razão não pode (tal como Sócrates dizia), ir no sentido

de desrespeitar a pátria, ela deve ser a tal ponto de não ameaçar a paz e a autoridade do Estado.

Nas palavras de Kant, nem todas as profissões exigem esse uso público, há casos em que os

profissionais devem agir como máquinas: “ora, para muitas profissões que se exercem no

interesse da Comunidade, é necessário um certo mecanismo em virtude do qual, alguns membros

da Comunidade devem comportar-se exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo

governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas... Em casos tais não é

sem dúvida permitido raciocinar mas deve-se obedecer”. 108

Nessa citação pode-se ver também o limite da liberdade, de facto por “capricho” de uma

pessoa não se pode permitir que ameace a paz, que essa tem a ver com uma pessoa mas com a

vida de uma nação ou até de nações. É para isso que serve a educação – ver que vivemos num

mundo de todos nós, onde todos tem o dever de contribuir, às vezes sacrificando as nossas

próprias vontades, para poder haver paz e tranquilidade social.

No entanto, como professores pouco temos mais a fazer além disso, pelo facto de termos

dirigentes o que faz parte do nosso dever prestar-lhes obediência. Mas, Kant pensou assim, talvez

porque nas condições em que ele viveu se fosse tão claro podia correr sérios riscos. Não pensaria

assim se vivesse nesta altura. Então interpretando à luz da actualidade ele poderia ter dito aos

sábios: Vocês, que conseguiram pela vossa coragem o esclarecimento, que já são capazes de

analisar os assuntos da vida com um olhar sábio, tem a obrigação de como sábios fazer o uso da

vossa razão tanto privada como publicamente, onde devem tornar claros os vossos pensamentos

em relação às teorias, contribuindo assim para o melhoria das ideologias defendidas pelo sistema

106

Idem. Ibidem. 107

Idem. Ibidem. 108

Ibidem, pag.105-106

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educativo e não só. Então (contrariamente àquilo que Kant tinha defendido que a verdade deve

subentender às nossas opiniões), parece que ele teria dito que devemos tornar claras as nossas

ideias de forma a poderem ser entendidas. E caberá aos dirigentes analisar o ponto de vista

apresentado pelo sábio e se entender conveniente incorporá-lo. Essa conveniência deverá ser vista

seguindo o seguinte processo: fazendo um exercício com as fórmulas do imperativo categórico,

pondo no lugar do povo e de cada um (porque o poder deve ser exercido tendo em conta a

vontade do povo), ele saberá se vale a pena ou não incorporar a ideia publicada pelo sábio.

Porque a nossa intenção deve ser apenas de como sábios, dar o nosso contributo ao

melhoramento das instituições educativas.109

Podemos abster-nos dessas problemáticas, mas é necessário estar cientes de que estamos a

contribuir para a perpetuação de absurdos, afinal, tendo em consideração o autor em estudo, o

desígnio de estarmos cá na Terra consiste precisamente no avanço em relação ao esclarecimento.

Daí que alertamos a todos os sábios da necessidade de repensar a educação, no sentido de mudar

não só as estratégias como analisar os recursos postos à disponibilidade, no sentido de

alcançarmos os objectivos que pensamos estar traçados – formar cidadãos conscientes, que agem

livremente. Porque só assim seremos capazes de melhorar o mundo e tornar a face da Terra mais

habitável. Isso que faz parte do dever de todos os que passaram por aqui e de todos os que aqui

estão. Que levemos a nossa consciência tranquila, de dever cumprido, fazendo pelo menos um

pouco daquilo que está ao nosso alcance ao aperfeiçoamento da espécie humana. Afinal, a

natureza dotou o homem de tal modo que ele como espécie poderá desenvolver sempre,

aperfeiçoando cada vez mais o seu potencial, só que isso leva muito tempo que a natureza podia

disponibilizar a cada indivíduo, mas como não se trata do indivíduo mas da espécie, essa lacuna

poderá ser colmatada através dos contributos que as diferentes gerações deixam às outras,

avançando assim sempre em direcção à perfeição.

Paramos aqui esta caminhada em direcção à perfeição. Caminhada, essa que pretendemos

poder ter oportunidade de continuar mais adiante.

109

Esta é uma leitura que se pode fazer a partir das P. 107-108 do texto «Resposta à Pergunta: O quê o

esclarecimento?»

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CONCLUSÃO

Actualmente, todos estão de acordo que há a necessidade de mudarmos a forma de nos

relacionar, tanto com a natureza como com os nossos semelhantes. No entanto, parece existir

alguma coisa que impede ou dificulta essa mudança. Quem sabe aquela força interior, de que

Jesus falara, que Kant também falou. Aquela energia que só podemos encontrar naquilo que nos é

mais íntimo – a razão. É somente graças à educação, à uma educação boa, que pode preparar para

se ter acesso a essa energia, que trabalha com princípios e que deve ser feita de tal forma que o

indivíduo possa incorporar princípios individuais e sociais, já que ele tem duas faces, uma face

individual e outra social. É essa segunda face que nos exige o conhecimento das normas sociais

de modo a podermos modelar a nós próprios (quando se trata de esclarecimento e aos outros,

quando se trata de educação). Por isso a educação deve abranger disciplina, prudência, cultura e

essencialmente formação moral.

Todos esses factores, que fazem parte de uma educação completa, fazem com que ela se

torne algo difícil exigindo muito do ser humano. É nesta lógica que Kant afirma que a educação é

a mais difícil tarefa que a natureza confiou ao homem. Daí a necessidade de todos contribuírem

onde poderem, no sentido de aperfeiçoar cada vez mais o campo educativo. Por que

aperfeiçoando a educação e aplicando a ética kantiana no campo educativo, o ser humano se

aperfeiçoa, deixando cada vez mais de lado aquela animalidade. Não diríamos que ele torne

perfeito, mas apostamos no afastamento em relação à imperfeição.

Estamos firmes e convictos de que isso poderá ser uma realidade. É que o ser humano não

vive só daquilo que faz, daquilo que vê, que experimenta, mas também daquilo que deve fazer.

Nesta segunda parte é que ele alimenta o seu espírito. É que muitas vezes é necessário ter fé para

se poder viver seguro, porque o ser humano é composto por duas partes: um corpo que sente e

uma outra realidade que se situa para lá do corpo (o intelecto), que assim como o corpo pode ser

alimentado, disciplinado, etc. Ela também tem as suas necessidades; precisa de alimento, paz,

segurança, etc. Daí a necessidade de investigar não só a educação tal como acontece, mas

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principalmente a educação como deve acontecer, pois a educação tal como é depende de certa

forma daquilo que é projectado.

É neste sentido que esperamos ter contribuído com essa humilde investigação tanto a nível

de projectos educativos, como a nível de práticas pedagógicas. Apesar de Kant ter vivido no seu

devido contexto, influenciado pelas ideologias da época, marcado pelo racismo, mas pode-se ver

que as suas teorias são contributos altamente valiosos nos domínios da ética, como também da

educação, que poderão servir para toda a espécie humana independentemente das

particularidades.

Essas contribuições, apesar de serem teóricas são possíveis de serem postas na prática em

diversos campos de acção humana, e no campo educativo. Podemos ver isso aquando da

apresentação dos principais aspectos da educação neste pensamento – aspectos bastante práticos

tanto a nível de escolas como a nível da educação privada. Mesmo se não for para a prática,

servirá pelo menos para que nos façam pensar a nossa forma de agir e ministrar a educação. No

entanto, espera-se dar continuidade a esta pesquisa, no sentido de esclarecer mais, alguns

assuntos que ficaram talvez não muito claros devido à dificuldade da descodificação dos

pensamentos de Kant.

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