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LI'IBRATURA & ARTE / A CAPITAL Quarta..:feira, 28 de Ma.io de 1969 5. ETICA E AFlSICA «0 DELF .. t] JOSE CUDOSO PIRES (3) s por que motivo ou 'OS deseja afinal o En- iro fazer a campa na , como os pei xes sagra- os •notaveis defuntos»? em poderia acrescen- e porque se suicida a das Merces no pan - da Urdiceira? A primei- 'p6te se, que de riva de interpretac;ao m a is iata de toda a conduta · r, digamos, do Enge- leva-nos a conclusao ue, para alem da sua rronice machista e da filo sofia antic ultural, da . sua arrogancia de senhor feudal e de marido patriar- cal, nele se processa uma fundissima angustia, uma desorienta<;ao e urn enorme desgosto ou tedio pela vida, que o leva, perante si prO- prio, as aparencias de urn remors o ou arrependimento e ao desejo de auto-aniqu i- lament o. Manuel e urn ad ulto em processo de introversao, porque de libi- do regressiva. Alias, ainda que fa ltas sem as pilh6rias maliciosas, e maldosas tam- bern, do terrivel velho de um so dente, lli esta o os sfmbol os para no-lo darem · freudulentamente a enten- der. 0 criado- maneta e o coto do seu brac;o sao signi- ficativos de castragao, pois uma muti lar;ao, seg undo Jung, cmTespon de a uma castrac;ao; significado fcllico assume ale a propria p ers o- nagem do cria do. Este cria- do, especic de duplo ou de sombra do Engenheiro, po- de inlerpretar-se como a transposic;ao da i deia do d e- sempenho de fungoes instin- tivas, gera lm ente considera- llllllll llllllllllllllltltiiiiiiiiiii!IJttnllltiiiiiiiiiiU tmtnttllttflttmnttiHIIIttmtmnttHJitmtlltlltiiiiiiiHttiiiiHIIIIttlll d as como inferiores. E por isso Domingos, o criado- ·ma neta, e «O remorso do I nfante». Ja agora, diga-se ai nda que esse nome de Do- mingos pode conter t ambem a reminiscencia dos momen- tos em que o dlto, ainda sem o minimo remorso, se entregaria a celebra<;oes do- mingueiras, isto e, festivas, alegres, ap raziveis, na com- panhia do En genheiro, quan- do es te ainda nao tinha o «complexo do brac;o ou Ja o que 0 desejo regress ive de tornar ao seio materno, que faz parte desse processo de ang ti stia, dessa << histo ria · de amor e de cast.igo » - expri· me-se igualmente na fanta- sia dos «peixes sagrados», que se enterram no lodo. E11terrar-se no lodo .o mes- mo sera que encobrir-se, ve- lar-se, envqlver-se num man- to, ser enlac;ado, por'tanto ser protegido, acalentado. Jmig revela-nos a estreita .relac;ao existente entre a pa- Iavra delfim, e qutra , mui, to semelh ante a esta, tam- bern g rega, e que -significa litera. Por isso o narrador nos dis. se logo no inicio do livro que ess<j palavra, del- tim, «seria uma dediCatori a e urn epitafio is to e, da mulher, da tei-ra, 0 . hom em nasce , e nela e. por ela homem mor:re. A- ideia de urn regac;o acolhedo·r -_ esta igualmente representada na pe:rsonagem da gorda dona da pensao, tipo evidente de mulher mater nal, madre-llu- tritiva . Ale a forma dendi- trica, de palma, que o nar- ra dor at ribui a lagoa , e significativa: por esse feitio a la goa e 1/WlriX pulposa, com o formato ten tacular de urn polvo, c p ortanto um ser envolve nte e captante, si multaneamente a tractivo e rcpelent e, imagem da mae a nwrosa mas tambem da miie terrivel, da Mortc, do Inconscien te. Nao ha d(tvitla de . qu e pe- sam culpas e d esgoslos na a lma do Engenheiro e da sua somb ra, o criado-mane- ta: elc nao pode esquecer as «noitada s de Lis boa » em que ambos regressavam a casa «infes tados de vicio». Porque o Engenheiro, ao chegar a meia- ida de - e essa a idade com que o nar- rador no-lo apresenta-n um «Outono que nasceu compro- metido, irm;io do Inverno», can·ega ao Iongo dos se us dias «a sombra morta de urn cr iado » e faz «a aprendi- zagem dos es tropiados ». Toda esta angttstia e vi- sivel desde o inicio do ro- mance. Mas, antes de en un- ciar os passos em que tal proc esso comec;a a colocar- ·Se em evidencia, reverto a distin<;:iio atras estabelecida entre o plano da narra<;ao e o da ac tuac;ao, distin<;ao que, como dissc, s6 pela destrin<;a formal dos pianos profundos da rea liza<;ao se pode efectuar, visto que na contextura aparente do r o- mance esses dois pianos se in terpenetram. No Capitulo I - no plano da - aparece-nos o Engenheiro acompanhado de dois caes, caes estes que tomam papel muito impor - tante e constituem elemen- to de gran de vigor image- inflige a os dois lobos-d'a l- tico, carregado de intensa sacia, e que c uma das mais energia poetica, pois sao terrlvelmentc belas do ro- eles, entre toda a <<Cor te ani- mance, corn:sponclc ao mo- mal», no meio do « bestiario» mento em que e simbo liza-· deste livro, seres que se agi- da uma inten<;ao profunda: tam electdzantement e por o aniquilamento tragico, a fora e por d entro da acc;ao expia<;ao realizada naqu cles romanesca e na «a lma an- que encarnam a projc c<;ao topoide » (1) do narra dor. do . remorso, os dies. 0 vc- Cs caes sao tradiciona l- lho «vendedor de sorles», mente o simbolo do remor- simult aneamente fi guracao so. Di z-se e repe te-se no ro- da consciencia moral e ' da mance: «Os caes sao o re· · cens ura social, e o carrasco morso do s donos»; Domin- que executa a tortura , ma- gos, que personifica a vida tando os animais em copula inslintiva, e o «cao do In- carnal. Assim se c hega a fante>> . Po rtanto, os caes re- urn momento de antecioa- pre sentam a 1 g um a coisa culminanl e eta tragcdi<1: como aquilo a que se cha- antes de precipilar na Jagoa mav a «a voz da conscien- os heroi s do · drama, ja 0 cia» a traves de uma projec- autor os castigou nes ta 'ce na c;a o dual do conflito: eles . violenta em que o velho, sa o simultaneamente o re- · . com uma crue ldade . in or so e a propria materia - nica» vai arr anc a ndo 1 iras do remorso, neste caso a ··de carne sanguino lenta ao vida erotica, r:nais definida- corpo do s doi s mastins, nu- men te, a vida sexual. rna condu la em que ha s i- Coincidindo de modo mui- vin gan<;a, in- 1o . feliz a exposic;ao cons- . remurso e autopuni- c ien te cia tecnica construti- - c;ao. E talvez que essas «en- va empregada, por par te do guias» arrancadas . ao corpo Autor , com a s ua pr opria dos dies sejmn tamb em a creatividad e po etica, no -pia-· memoria de ca cl a tima no pu r amente p siquico, que meramente ear- .envolve, assim, os clevaneios nais, torturadamente con- oniricos e a «imagina<;ao na alma do Enge- material» (') do «roman- nheu'o. Mais: quando o ve- cista-rom:Cu:ceado», como lhe lho se clidge it multi.clao dos c ham a Osc ar Lopes, os cues, espectadore s, que no lal"'O islo e, os remors os, come- assist e ao suplic io dos <;am por a parecer logo no dies, lhes diz: «i\ vossa en- inicio eta ac<;ao, mas ainda guin, mens sen!wres. Tircm atados ao «Jagua r>>. O-ra" o a vossa enguia », parece-nos «Ja guar», o potente, ferino ouvir a voz intima do nar- a utomovel, e sem dttvlda - rador, caminh: :ll1do ao en- um simbolo hllico, como ja c ontro do s Jcitores, mun noto u Mario Sacra mento; apelo doloro so a no ssa re- assim, logo desde o infcio, flexao, para que meditemos o remorso nos s urge ao lado tambem sob1:e a nossa vida VIlES da vi da in stinliva. In icia da a ac<;ao - . cmbora se mpre atraves de um a transla<;ao e imb r ica<;ao dos flash-back e d as prenuncia<;oes futu- ra nles - Domin gos solta os animais «que estavam de sentine la ao pod eroso auto- move]>, e vai prencle-los as argolas do paredao do lar- go, numa « ta refa de puni- cao» . • Aludi ja ao [acto de esse parediio, como si mbolo qua- d ra ngula r que e, pocler as- s umir o significa do de re- pres enta c;ao de urn conflito psiquico, de urn desajuste qualqu er qLt e se processa na a lm a incl i. vidual. Conflitos que nao sao apenas de or- dem in dividual e se repor- tam tambem a rela c;ao indi- viduo- sociedade . Por isso, se- gun do as proprias pal avras do narrador, esse paredao « figura mais como vulto, fantasma fa miliar, do que pr opriamente como muro »; c a « lapide de uma vasta e de stroc; ada campa, com vin- te secu los de abanclono», em que ha << cara c teres Iusi- tanos gravados» . Logo, ler «0 Delfim » sera tambc!Jn «solc lrar a murnlha peca- do ra», ou scja, esboc;ar uma dialeclica do s conflitos bi- blicos entre o Eu e a socie- dade. Mais para dia nte ouvem- ·Se os caes a «latir no quin- tal das traseiras, fechados no patio da pensao, cada vez mais inquietoS>>, quer di- zer, o remors o, o conflito continua a latejar mas nao explodiu ainda . A cena da tortura sadica que o velho de urn s6 dente e, ao , mesmo tempo, para que nos, os represcntantes da rcpressio socia l. .. colabo- re mos no scu castigo ... Os c- aes acabam, finalmen- l'e, por entra 1 · na « barallla- do s espectros », j{t traJ .s- J:ormados em caes rant ;.s- mas que naclam ao de cir"a cia l agoa ondc sc afoo.,u Maria da s Mcrccs c Ia andam, «as d e n tad as ag ua ». Neste momcnto us caes ja nao sa o apenas o simbolo do remor so m: 1s ta1:nbem os psicopornpos, os gmas que conduzcm as ;d- mas p ara o Outro Mundo ... Ap roximemo-nos mais (1o momento final, t!aquilo que, para alguns, sera a meta fi. · nal da concluta neoativa e auto destr utint do ro: o son ho das ca mpas sub- mersas no fundo cia h1o·o ·1 fantasia mitologica e, po:.: tanto, compc.nsadora. Ele de seja clormir o sono etcrno ai, t a! ccrtos «pcixes esoeci.aJS», «que cwnpren1 por Sl mesmos as suas (tl- timas vontad es», en terran- do- se nos lodo s abissa is para «a miu c;a lha clos pci- xes nao lhes tocar». , Como a maior parte clos elabora clos pela pstque humana sao amhi"a- lentes, ocor re pergun 1 :.t r se estes peixes miticos , esl e . de sejo de se escond er e de dormir no fundo das i1Q t1as corresponde, de fact (·· cx- clusivamente a um de aniquilamento, de ;;-1orie, a uma conduta n egat il'fl. E q_ue se, o peixe, animal tico, e s1mbolo de disso/u- {:iio, tambem 0 e de . r, il(!l'a- fa? .e regene.r_agiio . No cnstiamsmo o pe1xe wrn a- -se sil!lbolo de espe rw zga; o g_elfun, embora nao sej a p_eiXe ,mas aqua- tico, e o ammal alegorico da salvagao. Na simbolica universal, 0 peixe e 0 -equi- valente do emb.riao, ou seja, do germinal, do pot encia l, ( Continua na p.>g. 6)

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Page 1: ETICA E AFlSICA «0 DELF .. JOSE CUDOSO PIRES (3)hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...LI'IBRATURA & ARTE / A CAPITAL Quarta..:feira, 28 de Ma.io de 1969 5.ETICA E AFlSICA «0

LI'IBRATURA & ARTE / A CAPITAL Quarta..:feira, 28 de Ma.io de 1969 5.

ETICA E AFlSICA «0 DELF .. t] JOSE CUDOSO PIRES (3)

s por que motivo ou 'OS deseja afinal o En­iro fazer a campa na , como os peixes sagra­

os •notaveis defuntos»? em poderia acrescen­e porque se suicida a

das Merces no pan­da Urdiceira? A primei­'p6tese, que deriva de interpretac;ao m a is

iata de toda a conduta · r, digamos, do Enge­

leva-nos a conclusao ue, para alem da sua rronice machista e da

filosofia anticultural, da

. sua arrogancia de senhor feudal e de marido patriar­cal, nele se processa uma fundissima angustia, uma desorienta<;ao e urn enorme desgosto ou tedio pela vida, que o leva, perante si prO­prio, as aparencias de urn remorso ou arrependimento e ao desejo de auto-aniqui­lamento. Toma~ Manuel e urn adulto em processo de introversao, porque de libi­do regressiva. Alias, ainda que faltassem as pilh6rias maliciosas, e maldosas tam­bern, do terrivel velho de

um so dente, lli estao os sfmbolos para no-lo darem

· freudulentamente a enten­der. 0 criado- maneta e o coto do seu brac;o sao signi­ficativos de castragao, pois uma mutilar;ao, seg undo Jung, cmTesponde a uma castrac;ao; significado fcllico assume ale a propria perso­nagem do criado . Este cria­do, especic de duplo ou de sombra do Engenheiro, po­de inlerpretar-se como a transposic;ao da ideia do de­sempenho de fungoes instin­tivas, geralmente considera-

llllllll llllllllllllllltltiiiiiiiiiii!IJttnllltiiiiiiiiiiUtmtnttllttflttmnttiHIIIttmtmnttHJitmtlltlltiiiiiiiHttiiiiHIIIIttlll

das como inferiores. E por isso Domingos, o criado­·maneta, e «O remorso do Infante». J a agora, diga-se ainda que esse nome de Do­mingos pode conter tambem a reminiscencia dos momen­tos em que o dlto, ainda sem o minimo remorso, se entregaria a celebra<;oes do­mingueiras, isto e, festivas, alegres, ap raziveis, na com­panhia do Engenheiro, quan­do es te ainda nao tinha o «complexo do brac;o ou Ja o que ~"·

0 desejo regressive de tornar ao seio materno, que faz parte desse processo de angtistia, dessa << hi s toria · de amor e de cast.igo» - expri· me-se igualmente na fanta­sia dos «peixes sagrados», que se enterram no lodo. E11terrar-se no lodo .o mes­mo sera que encobrir-se, ve­lar-se, envqlver-se num man­to, ser enlac;ado, por'tanto ser protegido, acalentado.

Jmig revela-nos a estreita .relac;ao existente entre a pa­Iavra delfim, e qutra, mui, to semelhante a esta, tam­bern grega, e que - significa litera. Por isso o narrador nos dis.se logo no inicio do livro que ess<j palavra, del­tim, «seria uma dediCatoria e urn epitafio tambem~: is to e, da mulher, da tei-ra, 0

. hom em nasce, e nela e . por ela ~o homem mor:re. A-ideia de urn regac;o acolhedo·r -_esta igualmente representada na pe:rsonagem da gorda dona da pensao, tipo evidente de mulher mater nal, madre-llu­tritiva. Ale a forma dendi­trica, de palma, que o nar­rador a tribui a lagoa, e

significativa: por esse feitio a lagoa e 1/WlriX pulposa, com o formato tentacular de urn polvo, c portanto um ser envolvente e captante, simultaneamente a tractivo e rcpelente, imagem da mae anwrosa mas tambem da miie terrivel, da Mortc, do Inconscien te.

Nao ha d(tvitla de .que pe­sam culpas e desgoslos na alma do Engenheiro e da sua sombra, o criado-mane­ta: elc nao pode esquecer as «noitadas de Lisboa» em que ambos regressavam a casa «infes tados de vicio». Porque o Engenheiro, ao chegar a meia- ida de - e essa a idade com que o nar­rador no-lo apresenta-num «Outono que nasceu compro­metido, irm;io do Inverno», can·ega ao Iongo dos seus dias «a sombra morta de urn criado» e faz «a aprendi­zagem dos es tropiados».

Toda esta angttstia e vi­sivel desde o inicio do ro­mance. Mas, antes de enun­ciar os passos em que tal processo comec;a a colocar­·Se em evidencia, reverto a distin<;:iio atras estabelecida entre o plano da narra<;ao e o da ac tuac;ao, distin<;ao que, como dissc, s6 pela destrin<;a formal dos pianos profundos da realiza<;ao se pode efectuar, visto que na contextura aparente do ro­mance esses dois pianos se in terpenetram.

No Capitulo I - no plano da narra~ao - aparece-nos o Engenheiro acompanhado de dois caes, caes estes que tomam papel muito impor­tante e constituem elemen-

to de grande vigor image- inflige aos dois lobos-d 'a l­tico, carregado de intensa sacia, e que c uma das m ais energia poetica, pois sao terrlvelmentc belas do ro­eles, entre toda a <<Cor te ani- mance, corn:sponclc ao mo­mal», no meio do «bestiario» mento em que e simbo liza-· deste li vro, seres que se agi- da uma inten<;ao profunda: tam electdzantemente por o aniquilamento tragico, a fora e por dentro da acc;ao expia<;ao realizada naqucles romanesca e na «alma an- que encarnam a projcc<;ao topoide» (1) do narrador. do. remorso, os dies. 0 vc-

Cs caes sao tradicional- lho «vendedor de sorles», mente o simbolo do remor- simultaneamente f iguracao so. Diz-se e repe te-se no ro- da consciencia moral e ' da mance: «Os caes sao o re· ·censura social, e o carrasco morso dos donos»; Domin- que executa a tortura , ma­gos, que personifica a vida tando os animais em copula inslintiva, e o «cao do In- carnal. Assim se chega a fante>> . Portanto, os caes re- urn momento de antecioa­presentam a 1 g um a coisa ~ao culminanl e eta tragcdi<1: como aquilo a que se cha- antes de precipilar na Jagoa mava «a voz da conscien- os herois do · drama, ja 0 c ia » a traves de uma projec- autor os castigou nes ta 'cena c;ao dual do conflito: eles. violenta em que o velho, sao simultaneamente o re- · .com uma crueldade ~sarcl6-

. inorso e a propria materia - nica» vai arrancando 1 iras do remorso, neste caso a ··de carne san guino lenta ao vida erotica, r:nais definida- corpo dos doi s mastins, nu­men te, a vida sexual. rna condula em que ha si-

Coincidindo de modo mui- mt!Itaneam~nic vingan<;a, in-1o . feliz a exposic;ao cons- ·-v~Ja, . remurso e autopuni­c ien te cia tecnica construti- - c;ao. E talvez que essas «en­va empregada, por par te do guias» arrancadas . ao corpo Autor, com a sua propria dos dies sejmn tambem a creatividade poetica, no -pia- · memoria de cacla tima d :-~ s no pu ramente psiquico, que av~nluras meramente ear­

.envolve, assim, os clevaneios nais, torturadamente con­oniricos e a «imagina<;ao ser~adas na alma do Enge­material» ( ') do «roman- nheu'o. Mais: quando o ve- ~ cista-rom:Cu:ceado», como lhe lho se clidge it multi.clao dos chama Oscar Lopes, os cues, espectadores, que no lal"'O islo e, os remorsos, come- assiste ao suplic io dos cl~s <;am por a parecer logo no dies, lhes d iz : «i\ vossa en­inicio eta ac<;ao, mas ainda guin, mens sen!wres. Tircm atados ao «Jaguar>>. O-ra" o a vossa enguia », parece-nos «Jaguar», o potente, ferino ouvir a voz intima do nar­a utomovel, e sem dttvlda -rador, caminh::ll1do ao en­um simbolo hllico, como ja contro dos Jcitores, mun notou Mario Sacramento; apelo doloroso a nossa re­assim, logo desde o infcio , flexao, para que meditemos o remorso nos surge ao lado tambem sob1:e a nossa vida

VIlES

da vi da ins tinliva. Iniciada a ac<;ao - .cmbora sempre atraves de uma transla<;ao e imbr ica<;ao dos flash-back e das prenuncia<;oes futu­ranles - Domingos solta os animais «que estavam de sentinela ao poderoso auto­move]>, e vai prencle-los as argolas do paredao do lar­go, numa « tarefa de puni­cao». • Aludi ja ao [acto de esse parediio, como simbolo qua­drangula r que e, pocler as­sumir o significado de re­presentac;ao de urn conflito psiquico, de urn desajuste qualquer qLte se processa na alma incl i.vidual. Conflitos que nao sao apenas de or­dem individual e se repor­tam tambem a relac;ao indi­viduo-sociedade. Por isso, se­gundo as proprias palavras do narrador, esse paredao «figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro»; c a «lapide de uma vasta e destroc;ada campa, com vin­te secu los de abanclono», em que ha << caracteres Iusi­tanos gravados». Logo, ler «0 Delfim » sera tambc!Jn «solc lrar a murnlha peca­dora», ou scja, esboc;ar uma dialeclica dos conflitos bi­blicos entre o Eu e a socie­dade.

Mais para diante ouvem­·Se os caes a «latir no quin­tal das traseiras, fechados no patio da pensao, cada vez mais inquietoS>>, quer di­zer, o remorso, o conflito continua a latejar mas nao explodiu ainda.

A cena da tortura sadica que o velho de urn s6 dente

e, ao ,mesmo tempo, para que nos, os represcntantes da rcpressio socia l. .. colabo-remos no scu castigo ...

Os c-aes acabam, finalmen­l'e, por entra 1· na «barallla­~la dos espectros », j{t traJ .s­J:ormados em caes rant;.s-mas que naclam ao de cir" a cia lagoa ondc sc afoo .,u Maria das Mcrccs c po~ Ia andam, «as d e n tad as ~t agua ». Neste momcnto us caes ja nao sao apenas o simbolo do remorso m:1s ta1:nbem os p sicopornpos, os gmas que conduzcm as ;d­mas para o Outro Mundo ...

Aproximemo-nos mais (1o momento final, t!aquilo que, para alguns, sera a meta fi. · nal da concluta neoativa e autodestrutint do E~genhei­ro: o sonho das campas sub­mersas no fundo cia h1o·o·1 fantasia mitologi ca e, po:.: tanto, compc.nsadora. Ele deseja clormir o sono etcrno ai, ta! ~omo ccrtos «pcixes esoeci.aJS», «que cwnpren1 por Sl mesmos as s uas (tl­timas vontades», en terran­do- se nos lodos abissa is para «a miuc;alha clos pci­xes nao lhes tocar».

, Como a maior parte clos s11~bolos elaboraclos pela pstque humana sao amhi"a­lentes, ocor re pergun1 :.t r se estes peixes miticos, esl e . desejo de se esconder e de dormir no fundo das i1Qt1as corresponde, de fact (·· cx­clusivamente a um ( ;~scj o de aniquilamento, de ;;-1orie, a uma conduta negat il'fl. E q_ue se, o peixe, animal ~lqua­tico, e s1mbolo de disso/u­{:iio, tambem 0 e de. r , il(!l'a­fa? .e ~e regene.r_agiio . No cnstiamsmo o pe1xe wrna­-se sil!lbolo de esperw zga; o g_elfun, embora nao seja p_eiXe ,mas n~amifero aqua­tico, e o ammal alegorico da salvagao. Na simbolica universal, 0 peixe e 0 -equi­valente do emb.riao, ou seja, do germinal, do potencial,

(Continua na p.>g. 6)

Page 2: ETICA E AFlSICA «0 DELF .. JOSE CUDOSO PIRES (3)hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/...LI'IBRATURA & ARTE / A CAPITAL Quarta..:feira, 28 de Ma.io de 1969 5.ETICA E AFlSICA «0

DELI'IM» (Continuasao da pag. 5)

da energia vital; e e tam­hem o sol-poslo, que mer­. crulha no fun do das aguas ~cefmicas para empreender a sua <<viagem nocturna por mar», finda a qual emergira do sono letargico e se esca­para do monstro que o en­goliu, se movedt e erguera como o sol nasccnte acnna do horizonte. E aqui recor­do novamente a forma de

_palma da lagoa: o lirso era o emblema do deus grego Dionisos, o deus orgiastico dos grandes aniquilamentos para as grandes ressurrei­<;:6es, o emblema classico cla fecundidade, cla vit6ria e, enfim, cla espir itualiclacle.

Ao falar em espi ritualida­de, poderia pensar-se que, afinal, da analise dos con­teudos e clos sirnbolos que se foram au ton om izanclo do

tconscientc, sc acaba por aportar a uma posilividade, visto que se fala em ressur­reigao e que o espirilual en­tra no sistema comurnmen­te aceite clas posi1iviclacles. Mas, para ser rigorosa, nao posso dizer que se aporta clefinitivamente a uma es­piritualidade; o que se cle­duz e, tao-s6, clefiniclamen­te, o anseio de u 111Cl qual­quer transcendencia.

Ao sonhar coin o repou­so no funclo da lagoa, sera talvez ou tambem um pe­riodo de soliclao e tranqui­lidade regencraclora e cria­dora que o escritor deseja para a sua personagem ou para todos os que a ela se assemelham, em vez cla morte e do aniquilamento definitivos. A coroa de 11U­

vens, de vapores e exala-

<;:6es que sobem penn~nen­temente da Jagoa e pau·am sobre ela, assim como a fu­marada que se ergue do assar das enguias, sao ma­teria vol<ltil, unia zona de transi<;:ao entre o elemento liquido, que e inform.e, e . 0 ar, que e 0 «clemento da elevayao e libertayaO» ('). E as aves que sobre ela voam e aclc.i'am sao como peixes ressuscit-ados, « al­mas» en1 «ascensao» para DS altos ni veis c6smicos. .Visto que as aves sempre foram simbolos do animico e do espiritual ...

A sua mancira, o Enge­nheiro la tem os scus so­nhos de transccnclencia e de poesia. Poi s o Infante, afinal, quem 6 senao urn Principe, o irmao clos <<pei­xes orgulhosos» que, chega­da a hora do abatimento, sonha relirar-se para a so· !idao, « onde a miuc;alha dos outros peixes nao lbe toque»?

Arrependimento profunda da sua vida? Critica social? Hist6ria exemplar? Conde­nac;ao dos seus actos? Meta­fisica, em fase de m.itologia, humana preocupa<;:ao com a morte? E porque nao tam­bern, a formar todo um com­plexo, a lucida angt1stia de ter nascido no pais das la­gartixas, onde a sombra dos paredo.es nao tolera condu­tas «ad usum delphini», a dor de urn libertino .~usita· no fatalmente condenado a passar por e ate a proce­der como urn marialva?

NATALIA NUNES

(1) Caston Bachelard: •L'eau et les reves ».