estou na reta final -...

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Tiragem: 27481 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 46 Cores: Cor Área: 25,50 x 30,00 cm² Corte: 1 de 6 ID: 62158147 05-12-2015 Da Natureza dos Deuses António Lobo Antunes Editora D. Quixote 576 pdginos PVP: 21,90 curas ANTÓNIO LOBO ANTUNES "ESTOU NA RETA FINAL" Esta é uma entrevista de quem nada tem a perder. Do maior escritor de língua portuguesa vivo, que gosta de Putin mas despreza tanto os políticos saloios como'a opinião da crítica portuguesa, e recusa ser vaidade o que sente pela própria obra. Que detesta quem lhe tenta morder as canelas por causa de uma entrevista ao El Pais, onde deitava abaixo Fernando Pessoa. E que não encontra concorrência entre os autores que têm aparecido na nossa literatura Por João Céu e Silva e mais recente romance de António Lobo Antu- nes marca o regresso a um dos pontos mais , altos da narrativa que iniciou, em 1979, com o romance Memória de Elefante. Quase que se poderia ca- racterizar o registo deste livro como um romance policial- com a devida distância, claro -, tal é o modo como o argumento e as per- sonagens se desenvolvem num ce- nário em que cada capítulo acres- centa mais uns pós à história, obri- gando o leitor a avançar para saber o que se está a passar. E de que trata o romance? Uma pergunta nem sempre fácil de res- ponder, apesar deo autor achar que a sua narrativa é transparente e, ao mesmo tempo, garanta: "Nunca penso na história do livro." É sabido queAntónio Lobo Antunes não acei- ta que se inscrevam os seus roman- ces no formato típico da literatura -um protagonista e uma ação com contornos definidos. Mas, queim ou não, este é um romance em que o leitor antuniano que se tomou pre- guiçoso - o que diz "eu gosto é das crónicas dele" -volta a sentir-se de- safiado na leitura de quase 600 pá- ginas. Uma coisa é certa, há neste livro um paralelo com a dimensão monumental de Fado Alexandrino, de 1983. Da Natureza dos Deuses é tam- bém diferente porque introduz e aprofunda algumas das técnicas de escrita que Lobo Antunes tem vindo a apresentar nos últimos trabalhos. Ao ser questionado, foge desse tema dizendo: "Para mim, o livro está aca- bado há dois anos. Depois disso já fiz mais um, A Última,Portaantes da Noite e agora estou a escrever outro." Prefere divergir e conversar sobre a má época que a literatura atravessa "É um momento muito complica- do, em que ninguém compra livros. Pelo menos no estrangeiro as edito- ras queixam-se." Curiosamente, a tradução holandesa de Caminho como Uma Casa em Chamas já está na quinta edição. Contrapõe a si- tuação nacional: "Cá em Portugal as livrarias estão varias, porquê?" Ensaia a resposta "Mesmo aquelas pessoas que escrevem livros e que vendem muito estão com vendas muito me- nores. Até parece que é o princípio do fim e que chega a hora de novos nomes neste tipo de livros. Não cito nomes portugueses, mas o leitor acaba por ter razão quando dá uma vida curta a certos livros. Quem lê o Dan Brown ou a Profecia Celestina agora?" A conversa que se segue está reproduzida no tom em que acon- teceu. Sem grandes alterações no re- gisto. Este seu novo romance vai vender? Não pensei nisso, tanto assim que ainda não dei nenhuma entrevista e por mim nem falava mais. Este não é um livro habitual-. O que é que urna pessoa pode dizer de um livro? O que podia dizer está escrito no livro. Esperava que ne- nhum romance fosse habitual, gos- tava que fosse uma surpresa para mim e para os leitores. Enquanto o lia lembrei-me do seu pai reclamar sobre os seus livros e achar que só tinha feito um, o Fado Alexandrino. Antes do FadoAlexandrino ele dizia isso... Este é mais ou menos um livro do mesmo tamanho, que no plano inicial tinha 40 capítulos e acabou com 37.11rei três da última parte.Te- nho sempre um plano muito vago e depois não seio que vou escrever. Não faço a menor ideia do que vai acontecer neste que estou a escrever. Se o seu pai lesse este livro dhia que era= escritor? Acho que a resposta dele era afetiva. Ficou muito surpreendido com Me- mória de Elefante, que lhe ofereci, tendo-me dito: "Isto é um livro de principiante." Pensei nunca mais lhe oferecer nenhum porque fiquei muito ofendido. Tinha 36 anos. Creio que já não lhe dei os outros, mas sei que os leu porque o disse aos meus irmãos. Sobre o Fado Alexan- drino também não foi a mim que disse alguma coisa. Ele queria que eu fizesse um romance com a am- plidão que estava na cabeça dele en- quanto leitor. Ele tinha uma segun- da edição de Mortà Crédit, de Louis- -Ferdinand Céline, e passou-me aquilo para as mãos. E os livros do Celine eram grosso& Foi uma reve- lação ler aquilo. Memória de Eiefanteaindavende! Vai em 30 e tal edições. Todos eles têm muitas edições. No outro dia vi uma edição de um deles que estava na 17.a. São longsellers. Mas era um livro de principiante? É, na medida em que foi o primeiro livro que publiquei Que já tinha um registo próprio. Nunca tinha publicado e um dia

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Tiragem: 27481

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 46

Cores: Cor

Área: 25,50 x 30,00 cm²

Corte: 1 de 6ID: 62158147 05-12-2015

Da Natureza dos Deuses António Lobo Antunes Editora D. Quixote 576 pdginos PVP: 21,90 curas

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

"ESTOU NA RETA FINAL"

Esta é uma entrevista de quem nada tem a perder. Do maior escritor de língua portuguesa vivo, que gosta de Putin mas despreza tanto os políticos saloios como'a opinião da crítica portuguesa, e recusa ser vaidade o que sente pela própria obra.

Que detesta quem lhe tenta morder as canelas por causa de uma entrevista ao El Pais, onde deitava abaixo Fernando Pessoa. E que não encontra concorrência entre os autores que têm aparecido na nossa literatura Por João Céu e Silva

emais recente romance de António Lobo Antu-nes marca o regresso a um dos pontos mais

, altos da narrativa que iniciou, em 1979, com o romance Memória de

Elefante. Quase que se poderia ca-racterizar o registo deste livro como um romance policial- com a devida distância, claro -, tal é o modo como o argumento e as per-sonagens se desenvolvem num ce-nário em que cada capítulo acres-centa mais uns pós à história, obri-gando o leitor a avançar para saber o que se está a passar.

E de que trata o romance? Uma pergunta nem sempre fácil de res-ponder, apesar deo autor achar que a sua narrativa é transparente e, ao mesmo tempo, garanta: "Nunca penso na história do livro." É sabido queAntónio Lobo Antunes não acei-ta que se inscrevam os seus roman-ces no formato típico da literatura -um protagonista e uma ação com contornos definidos. Mas, queim ou não, este é um romance em que o leitor antuniano que se tomou pre-guiçoso - o que diz "eu gosto é das crónicas dele" -volta a sentir-se de-

safiado na leitura de quase 600 pá-ginas. Uma coisa é certa, há neste livro um paralelo com a dimensão monumental de Fado Alexandrino, de 1983.

Da Natureza dos Deuses é tam-bém diferente porque introduz e aprofunda algumas das técnicas de escrita que Lobo Antunes tem vindo a apresentar nos últimos trabalhos. Ao ser questionado, foge desse tema dizendo: "Para mim, o livro está aca-bado há dois anos. Depois disso já fiz mais um, A Última,Portaantes da Noite e agora estou a escrever outro." Prefere divergir e conversar sobre a má época que a literatura atravessa "É um momento muito complica-do, em que ninguém compra livros. Pelo menos no estrangeiro as edito-ras queixam-se." Curiosamente, a tradução holandesa de Caminho como Uma Casa em Chamas já está na quinta edição. Contrapõe a si-tuação nacional: "Cá em Portugal as livrarias estão varias, porquê?" Ensaia a resposta "Mesmo aquelas pessoas que escrevem livros e que vendem muito estão com vendas muito me-nores. Até parece que é o princípio do fim e que chega a hora de novos nomes neste tipo de livros. Não cito

nomes portugueses, mas o leitor acaba por ter razão quando dá uma vida curta a certos livros. Quem lê o Dan Brown ou a Profecia Celestina agora?" A conversa que se segue está reproduzida no tom em que acon-teceu. Sem grandes alterações no re-gisto. Este seu novo romance vai vender? Não pensei nisso, tanto assim que ainda não dei nenhuma entrevista e por mim nem falava mais. Este não é um livro habitual-. O que é que urna pessoa pode dizer de um livro? O que podia dizer está escrito no livro. Esperava que ne-nhum romance fosse habitual, gos-tava que fosse uma surpresa para mim e para os leitores. Enquanto o lia lembrei-me do seu pai reclamar sobre os seus livros e achar que só tinha feito um, o Fado Alexandrino. Antes do FadoAlexandrino ele dizia isso... Este é mais ou menos um livro do mesmo tamanho, que no plano inicial tinha 40 capítulos e acabou com 37.11rei três da última parte.Te-nho sempre um plano muito vago e depois não seio que vou escrever. Não faço a menor ideia do que vai acontecer neste que estou a escrever.

Se o seu pai lesse este livro dhia que era= escritor? Acho que a resposta dele era afetiva. Ficou muito surpreendido com Me-mória de Elefante, que lhe ofereci, tendo-me dito: "Isto é um livro de principiante." Pensei nunca mais lhe oferecer nenhum porque fiquei muito ofendido. Tinha 36 anos. Creio que já não lhe dei os outros, mas sei que os leu porque o disse aos meus irmãos. Sobre o Fado Alexan-drino também não foi a mim que disse alguma coisa. Ele queria que eu fizesse um romance com a am-plidão que estava na cabeça dele en-quanto leitor. Ele tinha uma segun-da edição de Mortà Crédit, de Louis--Ferdinand Céline, e passou-me aquilo para as mãos. E os livros do Celine eram grosso& Foi uma reve-lação ler aquilo. Memória de Eiefanteaindavende! Vai em 30 e tal edições. Todos eles têm muitas edições. No outro dia vi uma edição de um deles que estava na 17.a. São longsellers. Mas era um livro de principiante? É, na medida em que foi o primeiro livro que publiquei Que já tinha um registo próprio. Nunca tinha publicado e um dia

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Tiragem: 27481

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 47

Cores: Cor

Área: 25,50 x 30,00 cm²

Corte: 2 de 6ID: 62158147 05-12-2015

ferir, mas quem é que lê o Vergílio Ferreira e esses escritores todos, que são tantos? Não se sente um pouco abandona-do e só na sua geração? Ainda há muitos. A Lídia Jorge, João de Melo, Mário de Carvalho, a Teo-linda Gersão... O problema é que um bom escritor é uma coisa muito rara

EitZP Z rápido Entende-se a classe social das personagens femininas através dos decotes. Mais ou menos abertos.

Qual é a palavra mais repetida deste romance? "Puta". Expressa o domínio dos homens ricos.

"Este é um livro sobre os senhores do mundo em Portugal» ma oligarquia que mui na sombra", diz.

aquilo veio. Nunca li um livro meu, há ;insanos saiu tuna edição de bol-so e, como tinha de almoçar sozi-nho, levei-a e pus-me a folhear aqui-lo. E fiquei pasmado! Claro que já não escrevo assim nem deveria ter escrito assim, mas fiquei espantado com a força que aquilo tinha. E pen-sei: se fosse editor publicava isto? Sim, porque tenho a certeza dogue este gajo pode vira fazer. O rapaz que escreveu isto. Não pelo livro em si, mas porque está cheio de força, mesmo que ainda mal dominada. Tem um punch do caraças. O livro andou por aí a passear e ninguém queria aquilo; depois saiu e foi o que se sabe. E natural a surpresa porque as pessoas a seguir ao 25 de Abril es-tavam à espera das obras-primas guardadas nas gavetas por causada ditadura e não apareceu nada.Apri-meira pedrada é em 1977 como Di-nis Machado e O Que Diz Molero. Que é um belíssimo livro. Os de an-tes continuaram aescrevercomo até então- ser escritor nessa altura de-via ser terrível-e não foram capazes de se libertar. O leitor não aderia, não se vendiam muitos livros. Talvez o Fernando Namora, e olhe como ele desapareceu. Não sei se é injusto re-

e agora não os há. Três ou quatro no máximo no mundo inteiro. Não es-tava a pensar em Portugal, onde nas gerações mais recentes não há ne-nhum que entusiasme especial-mente. Até porque estão muito abandonados e os editores não fa-zem o seu trabalho. Aceita opiniões da sua editora? Isso nunca se passou. Aceito as opi-niões todas, mas depois faço o que me apetece. Muitas vezes até pode ser que as pessoas tenham razão. Não se tem dado mal com isso? Não, só sei que nunca foi dessa ma-neira. Julgo ter consciência do que valho e do que estou a fazer. Posso estar enganado. Faço uma primeira versão à mão, depois corrijo para ou-tras folhas com dez correções em cima, dou para datilografar e volto novamente às revisões. Portanto, o livro é muito trabalhado. Este será o préodmo (uma pilha de folhas pró)dmal? Será, se valer a pena. Era capaz de pôr de lado um livro depois de estar pronto? Claro. O problema é sempre o rees-crever e corrigir. É como dizia aque-le meu amigo de quem tenho mui-tassaudades, o Eugénio deAndrade.

Tem um livro que se chama Oficio de Paciência... Ele era muito lento a es-crever e a poesia dele era muito tra-balhada. Não interessa se era bom ou mau, o homem suava sangue para fazer uma linha. Nem o imagi-no de outra maneira. Basta ver os manuscritos deTolstói, em que não há uma página sem ter correções. Estive com um manuscrito doCor-tázar na mão e está cheio de corre-ções. Aquilo parece que é feito como quem mija. Neste livro usa novas técnicas. Há palavras cortadas a meio... Isso já havia nos outros... Mas neste é mais intenso. Sim, há uns cogitus interruptus... Es-tava a tentar experimentar uma nova técnica, a ver se dava ou não, porque juntei a isto das palavras cor-tadas a outras coisas. A técnica da es-crita interessa-me cada vLn-I. mais. Na altura, quando entreguei o livro, pa-receu-me que estava bem, mas como nunca o li não sei. Nunca leio um livro meu da primeira à última li-nha, tenho medo, mesmo que ago-ra comece a sentir curiosidade. Por-que; é claro, estou na reta final e é neste momento que temos de dar tudo.

Na reta final porquê. Não tem mais livros para escrever? Não faço a menor ideia. Talvez por-que nestes últimos dois anos a mi-nha família tenha sido muito fusti-gada e morreram-me muitas pes-soas. Da família, amigos muito grandes, como um meu camarada na guerra e o homem mais corajoso que conheci. As últimas palavras que lhe ouvi foram: 'Amo-te, meu querido." A morte dele custou-me horrivelmente. E morreu também um soldado, a quem lhe aconteceu esta história quando estávamos em Marimba, na Baixa do Cassange: a população vinha até ao arame far-pado pedir comida em latas velhas e enferrujadas e havia um miúdo de 5 anos que também aparecia. O José Mendes tinha pena do menino e metia-lhe comida na lata. Há relati-vamente pouco tempo, o menino apareceu-lhe em Lisboa, agora um homem muito rico que vive entre Angola e Portugal. É extraordinário como aquela criança andou 40 anos à procura de um rapaz de 20 anos que lhe dava de comer. Nunca o es-queceu. No seu caso, está de boa saúde? O Tolstói, a certa altura, escreve:

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Tiragem: 27481

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 48

Cores: Cor

Área: 25,50 x 30,00 cm²

Corte: 3 de 6ID: 62158147 05-12-2015

O escritor mundial

Nasce em Lisboa, em 1942, e é o primeiro de seis irmãos. O seu mais recente romance, Da Natureza dos Deuses, trata de temas atuais da sociedade portuguesa, como já tinha acontecido anteriormente ao posicionar-se como um dos mais importantes escritores sobre a Guerra Colonial. É um dos autores da língua portuguesa mais traduzido em todo o mundo e com uma obra objeto de estudo nas universidades

"SOU VIRAL, COMO DIZEM OS PARVOS" Neste livro nota-se muita crueza... Em que sentido? O de ser um livro cruel.. Cruel implicam desejo de fazer so-frer as outras pessoas e não queria fazer sofrer ninguém. Há personagens que o fazezn... Ficamos melhor quando passamos pela provação do sofrimento. Mais tolerantes. É evidente que este livro tinha uma ideia de partida que não pude concretizar. Porquê? Por razões que não têm que ver com literattua.Adoravapoder agarrarem certas pessoas que existiram e exis-tem e escrever sobre elas uma coisa absolutamente demolidora, mas não o posso fazer porque iria ma-goar pessoas-sobretudo uma que me é muito próxima. Não o posso fa-zer, mas aquele material daria um romance extraordinário. Tenho muita pena, mas não quem magoar pessoas de quem gosto. Não quer ser cruel? Não quero magoar. É claro que me agradaria escrever um livro com es-tas pessoas... E não me seria difícil. Ou, por exemplo, um livro sobre po-líticos.lambémnãoseriadificil, mas são tão reles que me enojam. Tinha de tomar banho após escrever. Não consigo conceber uma pessoa que toma decisões irrevogáveis e que não as cumpre. Isto é um exemplo. Podia multiplicá-los. Agora tem um novo governo... Claro que estou mais contente, já es-tava farto de mentiras e de medio-cridade de quem nem português sabe falar. Isto é um grande pecado. Os meus avôs eram os dois de direi-ta feroz, salazaristas emonárquicos, no entanto eram as pessoas mais doces, democratas e tolerantes que encontrei. Quando estava com o George Steiner em Cambridge, lem-bro-me de ele dizer. "Nenhum dos bons alunos daqui vai para a políti-ca" Realmente, quem está agora na política é medíocre. Todos, não im-porta se são de direita, centro ou es-querda. Compare-se este François Hoilande ou Mariano Rajoy com Olof Palme,Willy Brandt, De Gaulle ou Churchill... No meio disto, a se-nhora Merkel é um génio. E nós le-vamos lá uns saloios, no sentido an-tigo da palavra porque saloio sou eu que venho de Benfica. Não é no sen- tido social mas mental. O que de Queirós diria desta gente, ou o Her-culano?Discursos, ideias e persona-lidades miseráveis. Sente-se mais um escritor do mundo do que de Portugal? Eu sou português, épara eles que es-crevo. Nunca imaginei que me iriam alguma vez traduzir. E com estes prémios todos, até na China. Agora foram cinco livros para os Estados Unidos. Está por todo o lado. Na Suécia, há duas editoras a publi-car-me. É muito estra~sto que se passa comigo! Foi imito, depois

"Lutei comigo para ser melhor do que o Shakespeare. E depois? Ser melhor do que o Moliére. E depois? Eu sei que esta obra vai ficar, Os Cus deJudas vão existir por milhares de anos. A obra fica e eu não serei nada. Por que carga de água a obra vai sobreviver e eu vou morrer? Ninguém está preparado para morrer, mesmo sabendo que está próximo. Nunca vi ninguém pre-parado para morrer, é uma surpre-sa e uma injustiça. Então, de que serve? Já reparou que cada vez me veem menos, que não apareço nos jornais e nada digo. Porque não te-nho importância, mas os livros po-derão ter independentemente do autor. Sabemos lá quem ele era!

"SAIU-ME DA BOCA: QUERO A MINHA MÃE" Não é por mau feitio ou impacién-da que não quer aparecer? Não tenho muita coisa para dizer. Nos livros nem digo nada. Acho que escrevemos livros porque se sofre. E os intervalos entre os livros é um sofrimento ainda maior. Mas à me-dida que o tempo passa existem muitas coisas que começam a ser claras e a pessoa despe-se da vaida-de. Não tenho dúvida em dizer que ninguém escreve como eu, mas não sou eu é o António Lobo Antunes, que é uma pessoa que ninguém sabe quem é. Porque o eu é um me-nino assustado, muitas vezes com medo e por vezes perdido. A medi-cina ensinou-me que em qualquer idade que o homem esteja, quando está doente ou não, quer a mãe. A mãe vai salvá-lo, só a mãe. A minha mãe morreu há pouco mais de um ano e, no outro dia, estava a escrever sozinho e de repente saiu-me da boca alto e em voz forte "Quero a minha mãe". É extraordinário como depois da morte as pessoas que cri-ticávamos tanto e de quem acháva-mos que gostávamos pouco ficam diferentes. Temos saudades. Às ve-zes parece que sinto o cheiro dela. A sua presença. Mas não está cá, como tive a impressão de que ela nunca estivera a vida toda comigo. E vem o remorso, porque somos muito injustos e ingratos com pes-soas que nos deram muita coisa. Só o compreendemos quando é tarde de mais. Há uma frase do Joseph Conrad, no Coração das Trevas, em que deveríamos pensar mais: "'Rido o que a vida nos pode dar é um cer-to conhecimento dela, que chega sempre tarde de mais." Agora podia dizer"tenho muitas saudades de si, mãe, amo-a". Coisa que nunca fui capaz de lhe dizer antes. Vejo agora o que devo aos meus pais. A criarem aqueles filhos todos, a preocupa-rem-se que lessem e comessem. Havia pouco dinheiro. Era a minha mãe quem nos fazia a roupa, adap-tava as dos meus tios. O meu pai ga-nhava pouco, estava sempre com o olho no microscópio e não era ca-paz de cobrar dinheiro aos doentes.

Na altura eu não reparava Fui egoís-ta, vaidoso nunca fui. O que é que deixo?Papel e palavras, é o que vai fi-car de mim A sua mãe preocupava-se que aca-basseavender Bordasd'Água e pensos rápidos nas esplanadas... Sim, queria que eu tivesse uma pro-fissão em vez de inventar histórias e escrever versos. Não sei se ela co-nhecia escritores... Conheceu o pro-fessor Bento de Jesus Caraça em miúda e ficou maravilhada. Infeliz-mente, não tive na infância pessoas miraculosas-só mais tarde. Sentia--me sozinho, como o meu pai se sentia, sempre só. E os filhos herda-ram um pouco disso. lilmbémnão forçaasua solidão? Quando estou a escrever não tenho tempo. Isto come tudo. A sensação que sempre tive é que me tinham dado uma coisa que não me per-tencia, esta coisa de escrever, e ti-nha a obrigação de a devolver em forma de livros. Era emprestada e a qualquer momento podiam tirá-la. Tenho de forçar quando não apa-rece nada e esperar que as coisas venham. Acabam sempre por vir. Ao mesmo tempo tive muita sorte porque quando toda a gente me atacava aqui em Portugal - o que não me interessa nada- os livros eram um sucesso. Logo que o pri-meiro livro saiu, um senhor que não conheço chamadoVasco Puli-do Valente escreveu assim: "Um li-vro de um desconhecido publica-do por uma editora desconhecida" ou "O herói romântico dos anos 70." Contra o Memória de Elefante foi logo pancadaria e bofetada de meia-noite. Era só uma história e essa animosidade levou vários li-vros. Percebo porquê: inveja Nin-guém sofre tanto como um invejo-so com os sucessos do objeto da in-veja. Eu era mais bonito, tinha mais talento, as mulheres andavam atrás de mim em quantidade que não acabava - sempre as tive, para que é que havemos de esconder isto?-, e três meses depois daquele sucesso louco sai Os Cus defurias• e aumentou ainda mais. Por mais que tentemos esconder no mais fundo de nós, a sensação de derro-ta dos outros é a nossa vitória. Também sentiu isso em relação aos seus colegas escritores? Não senti, porque sabia desde o princípio que era o melhor. Isto era evidente: eu era o melhor. E se não o era então, iria ser se medes • m mais livros e espaço. Não tinha motivo para ter ciúmes de ninguém, pois se escrevesse faria melhor. Isto dito as-sim parece um exercício de vaidade mas não é, até porque vou morrer. Não sei quando, mesmo que já ti-vesse tido a morte muito perto e continuasse a querer escrever. A se-guir à primeira operação, garanto, a vaidade foi-se toda Depois, há dois anos e tal, tive um cancro em cada pulmão e um tinha um prognóstico fodido, mas estou aqui e bem.'llve muita sorte. A quimio é um coice enorme, mas as pessoas com quem me encontrava lá ainda ficavam mais bonitas quando tiravam a ca-beleira postiça

"A obra Na e eu não serei nada. Por que carga de água a obra vai sobreviver e eu vou morrer?"

"Logo que o primeiro livro saiu, um senhor que não conheço chamado Vasco Pulido Valente escreveu assim: 'Um livro de um desconhecido publicado por uma editora desconhecida"

"Fui egoísta, vaidoso nunca fui. O que é que eu deixo? Papel e palavras é o que vai ficar de mim"

"Da Áustria a Israel, e com o meu nome vem Portugal. Ainda hoje dava a vida pelo meu país

não a guerra de Africa, onde não tínhamos razão nenhuma -, mas se houvesse uma guerra como a Primeira Guerra Mundiar'

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Tiragem: 27481

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 49

Cores: Cor

Área: 25,50 x 30,00 cm²

Corte: 4 de 6ID: 62158147 05-12-2015

aquela explosão em França, com os *teatros a darem durante seis meses António Lobo Antunes. Logo eles que são tão chauvinistas, que nos consideram um povo de mulheres a dias. Fiz mais por Portugal do que estes políticos juntos, pus a bandei-ra nos mastros das principais capi-tais da Europa. Vaidade não é, tra-ta-se do que aconteceu. Da Áustria a Israel, e com o meu nome vem Portugal. Eu pouco interesso, é o país. Ainda hoje dava a vida pelo meu país—não na guerra de África, onde nào tínhamos razão nenhuma —, mas se houvesse uma corno a Pri-meira Guerra Mundial. É o meu país, deu-me tanto, gosto tanto dele. Não é o Portugalzinho do meu amor! Ou o daquela quantidade de parvos que se entretém a escrever sobre mim. No El País disse que não era possível ser bom escritor sem se ter fodido. É o que penso, mas não daquela maneira, nem naquele contexto. Tudo quanto é cachorro vadio andou a tentar morder-me as canelas. Vão para puta que os pariu. Porque têm de saltar muito alto para chegar aos meus pés. É evidente que aquilo era dito num determinado contexto e sentido. Fui logo avaca-lhado. Parece que há pessoas que não suportam o talento dos outros quando deveriam era ficar conten-tes. Eu só não fico contente quando o Sporting ganha, porque prefiro que seja o Benfica. Não reconhece valor a Pessoa? Não gosto e sou capaz de funda-mentar, mas não me parece impor-tante falar disso. Continuem a mor-der, é-me indiferente. Insultaram--me e não respondi a nada. Podem ladrar à vontade. A mim não me ou-vem dizer mal de ninguém. Quando publica um livro e lê as crfticasnão se irrita com a receção nesse "Portugalzinho"? Não, não sei como é por cá porque não as leio. Há países onde não te-nho críticas, são mais adjetivos, e também não as leio. Qual é a língua em que mais estra-nhou que o quisessem ler? A Etiópia e o Irão surpreenderam--me. Agorasou virai, como dizem os parvos! Há certos países e pessoas que funcionam como referências, e se eles falam é-se replicado por todo o lado. Nos Estados Unidos é o Ha-rold Bloom, em Inglaterra o Steiner. Opiniões decisivas. Porque não participa nos muitos festivais literários em Portugal? Não vou porque falta tempo. Agora recusei um convite para Buenos Ai-res. Tantas horas de viagem! As via-gens são muito compridas e tenho de estar sempre a responder às mes-mas perguntas. E nos jantares ficam a ver como pego nos talheres. Tenho sempre os olhos em cima! É o terrorismo que o preocupa? Nunca pensei nisso. Uma bomba no avião? Nisso não penso, até porque gosto muito da comida dos aviões. Faz-me voltar à infância! Como vou em executiva é ótimo porque tem ta-lheres, imensas coisas para abrir e vermos o que há lá dentro. Gosto muito de andar de avião! Devia ha-ver um restaurante que servisse co-

mida de avião naquelas bandejas. Tem um lado de brincar aos jantari-nhos que gosto. Voltemos aos festivais literários em PortugaL Porque não vai? É a mesma coisa que me faz não ir a Munique agora. E minha editora ale-mã é muito preocupada com as tra-duções, porque já lá vai o tempo em que os livros eram traduzidos do francês, como faziam o João Gaspar Simões e a Isabel da Nóbrega. Pode-mos ficar com uma ideia do livro, mas é impossível traduzirTchelchov! E a língua deles é lindíssima, veja-se como é bonita a língua russa falada pelo Putin. Aliás, urna das coisas que os russos admiram nele é o seu rus-so, o modo como maneja a língua com aquela voz bonita. E quase im-possível traduzir e quanto melhor é um escritor mais simbólica é a sua língua.

"OS SENHORES DO MUNDO EM PORTUGAL" Então, vamos ao simbolismo. Se está tão fechado em casa, como é que sabe do mundo que aparece em DaNatumados Deuses? Viajei bastante até agora e não me fe-cho ao mundo. Não tenho é tempo fora dos livros. Vai buscar muito ao passado? Sei lá onde vou buscar... Então, as viagens deste livro não são só do passado? Ira Cascais não é uma grande via-gem, são 20 minutos. Só se formos a pé e descalços. Repito. Porquê um livro tão cruel? Eu não sou um homem cruel. Falo das personagens. Ah são...Vou tentar lembrar-me de-las... Sim, algumas são. Há o homem que fecha a mulher no quarto. É um monstro mas é um desgraçado, um infeliz que pede ao criado para fazer o filho por ele. É esse, não é? Queria concentrar nessa figura várias pes-soas, 15 ou 20 homens diferentes, que gostava de ter podido espalhar por outras personagens. Mas isso é uma coisa que não posso fazer. O Thomas Mann pôde escrever Os Buddenbmoly mas eu não posso. Tal - vezo faça num livro para ser publica-do depois da morte, sobre pessoas que não quero que sofram com isto. Não farei, chateia-me escrever um li-vro e ficar por publicar. Mas haverá alguma coisa de real nas pessoas e vozes que habitamos livros. Vêm de onde? Ninguém é como aquela gen-te, mas há pessoas pelas quais tenho dificuldade em sentir piedade. Te-mos a mania de que a inteligência é a maior virtude, mas a bondade é maior. O meu irmão João diz isso: "O pior defeito que um homem pode ter é a ingratidão." As mulheres sofrem muito neste livro. Qual é a razão? Elas sofrem muito em todos os li-vros. Sobretudo na vida. Porque as coisas mais pesadas caem sobre elas. O tempo tem-me ajudado a res-peitar as mulheres, mesmo que ne-

nhum homem as conheça bem. É um livro que tem uma particula-ridade literária: os decotes das mu-lheres. Mais ou menos abertos con-forme são as personagens! Os decotes. Não reparei nisso. Há um broche que fecha avista... Não tenho nada contra os decotes. Falo muito em decotes?... Elas po-dem ter muitas toilettes, mas isso não lhes compensa a solidão. Quando elabora as personagens... ... Eu não as elaboro, elas já chegam inteiras. Então, distrai-se a vesti-las? Falo muito em roupa? Não me lem-bro... Não é assim na vida também? Se é, então não está mal. Tem mais personagens do que é habitual e dá-lhes nome. É para se orientar? Não é nada premeditado, eram mui-tos e as pessoas podiam confundi--los. Quanto à escolha dos nomes, é de grande dificuldade. Nas classes mais altas é assim: o senhor ou a se-nhora. Os empregados é que têm nome. Neste livro que estou a escre-ver nenhuma tem nome. É sobre gente muito pobre. Este é da bur-guesia. A palavra mais repetida neste livro é"puta". Porquê? Puta?Tem a certeza? E não é sempre a mesma pessoa a dizer isso? Terá que ver com os habitantes do livro e da maneira como olham para as mulheres. É uma determinada clas-se social que as vê como coisas que se utilizam e deitam fora. Encontrei pessoas assim, todas da mesma clas-se social. E as mulheres são objetos, com ambição, que de certa maneira se comportam corno eles. É um livro sobre uma certa camada social, em que as relações homem /mulher não são como as entendemos, mas mui-to diferentes. É uma relação de poder? O poder que elas têm só existe se fo-rem provocantes numa forma pri-mitiva, através dos brincos, dos anéis e da roupa. Esses homens só pensam em cobri-las de joias e não percebem que o empregado é mais amado do que eles. Este é um livro sobre os senhores do mundo em Portugal. Eles não obrigam só as mulheres a obedecer, também os homens que estão abaixo deles, até quando entram para a família são humilhados. É o poder que vem com o dinheiro. Não é em vão que tem havido tanto escândalo finan-ceiro em Portugal. Eles dão dinheiro aos partidos antes das eleições mas desprezam as pessoas. Continua a haver uma oligarquia na sombra que é quem realmente manda. Ha-via determinadas pessoas que nos últimos governos tinham lá três ou quatro ministros que lhes perten-ciam. Podia ser ministro mas era apenas um empregado. O poder de-les é quase ilimitado e não é exercido frontalmente, chega por trás até quem de direito. Era empurrado, dava três cambalhotas e caía num ministério. Só lendo o livro é que se percebe do que estamos a falar. E não vale a pena estar a empurrar-me para essa questão porque não quero ir mais longe.

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António Lobo Antunes

"ESTOU NA RETA FINAI:

Da Natureza dos Deuses e o novo romance de Antonio Lobo Antunes