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Está vivo! A corrida para criar vida a partir do nada. Bob Holmes NewScientist, 12 fevereiro 2005 Tradução: Sergio Russo Matioli Pode-se pensar que Norman Packard brinca de Deus. Ou pode-se vê-lo como um empresário do futuro. Como fundador e diretor geral da ProtoLife, uma companhia baseada em Veneza, na Itália, Packard é um dos líderes de um projeto ambicioso que tem como grande meta a própria vida. A sua equipe tenta aquilo que ninguém jamais fez antes: criar uma nova forma de vida a partir de substâncias químicas no laboratório. Trazer a faísca de vida à matéria inanimada uma vez foi considerada como uma prerrogativa divina. Mas, atualmente, vários grupos de pesquisa bem-financiados e sérios trabalham muito para chegar nesse objetivo. Se um deles prosperar, o mundo terá encontrado vida alienígena da mesma forma que se a encontrássemos em Marte ou em Europa, lua de Júpiter. Esse primeiro encontro com alienígenas ajudará os cientistas a entender melhor o que vida realmente é, como começou, o que significa estar vivo e verificar se há graus de "estar vivo". "Queremos demonstrar que diabos a vida é construíndo-a" diz Steven Rasmussen, sócio no negócio de Packard, um físico em Los Alamos National Laboratory no Novo México. "Se conseguirmos fazer isso, será uma grande festa. A primeira equipe que o fizer receberá o Prêmio Nobel." Embora as experiências estejam ainda nas etapas iniciais, algumas pessoas, especialmente aquelas com sólidas crenças religiosas, sentem-se incomodadas em imaginar cientistas tomando o papel de criadores. Outros preocupam-se com segurança – o que acontecerá se uma forma sintética de vida escapar do laboratório? Como controlaremos o uso de tal tecnologia? Achar uma maneira de enfrentar estas preocupações pode ter benefícios adicionais além de ajudar os cientistas responderem as perguntas básicas sobre a vida. As recompensas práticas de criações como aquelas propostas por Rasmussen podem ser enormes. A vida sintética poderia ser usada para construir novas tecnologias: criaturas vivas sob medida que produzem combustíveis limpos ou que ajudem a curar ferimentos. O potencial de organismos sintéticos ultrapassa de longe o que a engenharia genética realiza hoje com organismos convencionais tais como bactérias. "Os retornos potenciais são muito, muito grandes - comparável qualquer outro progresso realizado desde o advento da tecnologia," diz Packard. E não há dúvida nenhuma que há muito lucro potencial também. Só alguns grupos de pesquisa explicitamente propuseram-se a fazer uma forma sintética de vida (veja "Corrida para o prêmio final" – mais a frente). A maioria está adaptando pedaços de organismos já existentes. Os planos da ProtoLife são os mais radicais e ambiciosos de todos. Baseiam-se em uma idéia original de Rasmussen, que ele apelidou de “O Bicho de Los Alamos”. Ainda um simples brilho no olhar de seu criador, o Bicho basear-se á em quatro princípios, e será construído com substâncias químicas em grande parte inexistentes nas criaturas atuais. "Você de qualquer maneira tem que esquecer-se de tudo que você sabe sobre vida," diz Rasmussen. "O que nós temos é o que de mais simples com o que podemos sonhar." Para alcançar esta simplicidade radical, Rasmussen e seus colegas têm que começar com a mais básica das perguntas: o que é o mínimo que se pode considerar como um ser que é vivo? Os biólogos e filósofos lutaram por responder essa pergunta durante décadas (New Scientist, 13 junho 1998, p 38). No entanto, atualmente a maioria concorda que a diferença chave entre o vivo e não-vivo seja a evolução Darwiniana. Para algo estar vivo, tem que ser capaz de deixar progênie cujas características podem ser refinadas por seleção natural. Isso exige algum tipo de molécula que carrega informação hereditária, assim como algum tipo de processo – metabolismo elementar – sobre o qual a seleção natural possa agir. Algum tipo de invólucro também é necessário para unir estes dois componentes juntos por um tempo suficientemente longo para que a seleção possa fazer seu trabalho. A contenção, a hereditariedade e o metabolismo, em poucas palavras. Ponha isso tudo junto no meio mais simples possível, e você concebeu o Bicho de Los Alamos. Mas cada passo será completamente diferente do que aqueles com os quais nós estamos acostumados (veja o gráfico - as quatro etapas estão mostradas mais ainda em "O Bicho de Los Alamos" – mais abaixo). Veja a contenção, por exemplo. A vida terrestre é sempre baseada em água, essencialmente um gel aquoso de moléculas incluído dentro de uma membrana oleosa. As células modernas transportam nutrientes através desta membrana com a ajuda de uma formação de proteínas diferentes enterradas na membrana. O Bicho de Los Alamos, no entanto, será completamente diferente. Para começar, ele é baseado em óleo-, menor que uma gotícula de ácidos graxos. "Em vez de ter uma sacola com todo o material bom dentro, pense em um pedaço de chiclete," diz Rasmussen. "Então grude as moléculas metabólicas e as moléculas genéticas no chiclete, então estas estarão na superfície ou no interior do chiclete." As necessidades básicas O invólucro é a parte fácil. O próximo passo – a hereditariedade - é onde a maioria de esforços de criar vida sintética atolam-se. O desafio é criar uma molécula suficientemente complexa para carregar a informação genética útil, e que também possa replicar. Nos organismos modernos, o DNA tem um exército inteiro de enzimas que ajudam a duplicar sua informação genética – um processo muito complicado para o Bicho. Em vez disso, Rasmussen planeja

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Está vivo! A corrida para criar vida a partir do nada. Bob Holmes NewScientist, 12 fevereiro 2005 Tradução: Sergio Russo Matioli

Pode-se pensar que Norman Packard brinca de Deus. Ou pode-se vê-lo como um empresário do futuro.

Como fundador e diretor geral da ProtoLife, uma companhia baseada em Veneza, na Itália, Packard é um dos líderes de um projeto ambicioso que tem como grande meta a própria vida. A sua equipe tenta aquilo que ninguém jamais fez antes: criar uma nova forma de vida a partir de substâncias químicas no laboratório.

Trazer a faísca de vida à matéria inanimada uma vez foi considerada como uma prerrogativa divina. Mas, atualmente, vários grupos de pesquisa bem-financiados e sérios trabalham muito para chegar nesse objetivo. Se um deles prosperar, o mundo terá encontrado vida alienígena da mesma forma que se a encontrássemos em Marte ou em Europa, lua de Júpiter. Esse primeiro encontro com alienígenas ajudará os cientistas a entender melhor o que vida realmente é, como começou, o que significa estar vivo e verificar se há graus de "estar vivo". "Queremos demonstrar que diabos a vida é construíndo-a" diz Steven Rasmussen, sócio no negócio de Packard, um físico em Los Alamos National Laboratory no Novo México. "Se conseguirmos fazer isso, será uma grande festa. A primeira equipe que o fizer receberá o Prêmio Nobel."

Embora as experiências estejam ainda nas etapas iniciais, algumas pessoas, especialmente aquelas com sólidas crenças religiosas, sentem-se incomodadas em imaginar cientistas tomando o papel de criadores. Outros preocupam-se com segurança – o que acontecerá se uma forma sintética de vida escapar do laboratório? Como controlaremos o uso de tal tecnologia?

Achar uma maneira de enfrentar estas preocupações pode ter benefícios adicionais além de ajudar os cientistas responderem as perguntas básicas sobre a vida. As recompensas práticas de criações como aquelas propostas por Rasmussen podem ser enormes. A vida sintética poderia ser usada para construir novas tecnologias: criaturas vivas sob medida que produzem combustíveis limpos ou que ajudem a curar ferimentos. O potencial de organismos sintéticos ultrapassa de longe o que a engenharia genética realiza hoje com organismos convencionais tais como bactérias. "Os retornos potenciais são muito, muito grandes - comparável qualquer outro progresso realizado desde o advento da tecnologia," diz Packard. E não há dúvida nenhuma que há muito lucro potencial também.

Só alguns grupos de pesquisa explicitamente propuseram-se a fazer uma forma sintética de vida (veja "Corrida para o prêmio final" – mais a frente). A maioria está adaptando pedaços de organismos já existentes. Os planos da ProtoLife são os mais radicais e ambiciosos de todos. Baseiam-se em uma idéia original de Rasmussen, que ele apelidou de “O Bicho de Los Alamos”. Ainda um simples brilho no olhar de seu criador, o Bicho basear-se á em quatro princípios, e será construído com substâncias químicas em grande parte inexistentes nas criaturas atuais. "Você de qualquer maneira tem que esquecer-se de tudo que você sabe sobre vida," diz Rasmussen. "O que nós temos é o que de mais simples com o que podemos sonhar."

Para alcançar esta simplicidade radical, Rasmussen e seus colegas têm que começar com a mais básica das perguntas: o que é o mínimo que se pode considerar como um ser que é vivo? Os biólogos e filósofos lutaram por responder essa pergunta durante décadas (New Scientist, 13 junho 1998, p 38). No entanto, atualmente a maioria concorda que a diferença chave entre o vivo e não-vivo seja a evolução Darwiniana. Para algo estar vivo, tem que ser capaz de deixar progênie cujas características podem ser refinadas por seleção natural. Isso exige algum tipo de molécula que carrega informação hereditária, assim como algum tipo de processo – metabolismo elementar – sobre o qual a seleção natural possa agir. Algum tipo de invólucro também é necessário para unir estes dois componentes juntos por um tempo suficientemente longo para que a seleção possa fazer seu trabalho.

A contenção, a hereditariedade e o metabolismo, em poucas palavras. Ponha isso tudo junto no meio mais simples possível, e você concebeu o Bicho de Los Alamos. Mas cada passo será completamente diferente do que aqueles com os quais nós estamos acostumados (veja o gráfico - as quatro etapas estão mostradas mais ainda em "O Bicho de Los Alamos" – mais abaixo). Veja a contenção, por exemplo. A vida terrestre é sempre baseada em água, essencialmente um gel aquoso de moléculas incluído dentro de uma membrana oleosa. As células modernas transportam nutrientes através desta membrana com a ajuda de uma formação de proteínas diferentes enterradas na membrana. O Bicho de Los Alamos, no entanto, será completamente diferente. Para começar, ele é baseado em óleo-, menor que uma gotícula de ácidos graxos. "Em vez de ter uma sacola com todo o material bom dentro, pense em um pedaço de chiclete," diz Rasmussen. "Então grude as moléculas metabólicas e as moléculas genéticas no chiclete, então estas estarão na superfície ou no interior do chiclete."

As necessidades básicas

O invólucro é a parte fácil. O próximo passo – a hereditariedade - é onde a maioria de esforços de criar vida sintética atolam-se. O desafio é criar uma molécula suficientemente complexa para carregar a informação genética útil, e que também possa replicar. Nos organismos modernos, o DNA tem um exército inteiro de enzimas que ajudam a duplicar sua informação genética – um processo muito complicado para o Bicho. Em vez disso, Rasmussen planeja

2 usar uma molécula ácida chamado ácido nucléico-peptídeo, ou PNA (abreviatura em inglês de “peptide nucleic acid”). Essa molécula usa as mesmas "letras" de código genético do DNA, mas tem duas formas, uma solúvel só em gordura, a outra também atraída pela água. Rasmussen espera colocar natureza dupla do PNA numa forma básica de replicação (veja o gráfico).

O metabolismo do Bicho também foi simplificado ao máximo. Os pesquisadores planejam "alimentá-lo" o com substâncias químicas que podem ser convertidas em ácidos graxos. Se moléculas suficiente forem produzidas, a gotícula crescerá e dividir-se-á em duas. Um processo metabólico semelhante transforma precursores de PNA em PNA funcional.

Embora a maioria do projeto esteja ainda na prancheta ou nas etapas mais iniciais de experimentação, a equipe fez a maior parte do progresso com o metabolismo do Bicho. "Se olharmos as peças individuais, eles já foram meio que demonstradas no laboratório. Mas se você põe tudo junto, ainda não," diz Liaohai Chen, um bioquímico do Argonne National Laboratory, próximo a Chicago, que encabeça a equipe experimental do Rasmussen. Se tudo ocorrer conforme planejado, estes três componentes – invólucro, genoma e metabolismo – devem, juntos, fornecer o essencial para evolução darwiniana.

Em outubro de 2004, Rasmussen conseguiu um grande financiamento de Los Alamos para tornar o Bicho uma realidade. "Eu não posso prometer que nós o teremos em três anos, mas posso garantir que teremos um bom progresso," diz. O maior problema está na coordenação do processo de copiar do PNA com o metabolismo dos precursores de ácidos graxos, de tal forma que a replicação do genoma ocorra no mesmo ritmo que o crescimento das gotículas. "Quase sempre quando se coloca processos juntos, há reações cruzadas, coisas que as teorias não te contarão." Unidade de terapia intensiva

Outro programa de pesquisa inovador, Evolução Programável Artificial de Células, ou PACE (sigla de “Programmable Artificial Cell Evolution”), podem fornecer a solução para este desafio de coordenação. Packard e Rasmussen colaboram com o PACE, que focaliza algum de suas atenções no projeto de Rasmussen. A idéia chave por detrás do PACE está em fornecer quantidades precisas de compostos químicos particulares para as células sintéticas em lugares específicos usando computadores para controlar precisamente o fluxo de quantias minúsculas de produtos químicos. Por exemplo, um computador pode usar sensores para controlar os índices de replicação do PNA e da produção de ácidos graxos no em sistema experimental de Rasmussen, e então entregar as quantias corretas de cada precursor. Isso permitiria que os pesquisadores pudessem desatar os nós um a um num cenário programável controlado, fornecendo algo que seria uma espécie de UTI que ajuda células artificiais nos passos críticos em direção a tornarem-se vivas. "Uma vez que nós tenhamos nossa unidade híbrida, então nós podemos retirar paulatinamente a UTI e nos aproximarmos de uma célula autônoma," diz John McCaskill, um químico da Universidade de Ruhr em Bochum, Alemanha, que encabeça o programa de PACE.

Desta maneira, os planos da equipe do PACE poderão desenvolver-se na direção de uma célula artificial auto-suficiente. Para fazer isso, a equipe necessitará um jeito de reconhecer os primeiros passos em direção à vida. Mas como reconhece algo levemente vivo, quando olhamos para uma forma de vida que nós não conhecemos?

Procure as pegadas da adaptação, diz Bedau de Mark, um filósofo que especializou-se no limite entre vida e não-vida. Bedau está em afastamento do Reed College, em Oregon, para trabalhar com Packard na ProtoLife. Se algo está evoluindo, então deve estar gerando adaptações - soluções singulares aos problemas do mundo. E essas novas soluções, embora sutis, tornam-se a fundação a partir da qual a evolução segue os seus próximos passos. As adaptações que conferem alguma vantagem devem durar mais tempo e espalhar-se mais rapidamente que outras variações.

Bedau desenvolve testes estatísticos que analisarão esses padrões em formas pouco conhecidas de vida. Mas, uma vez que o projeto de PACE ainda não iniciou a fase de experiências em laboratório, ele não sabe se as provas podem detectar as luzes trêmulas de vida real. No entanto, ele tem experiência num sistema que trabalha de forma semelhante, a cultura humana. Em 2002, Bedau e seu colega Andre Skusa peneiraram por mais de cinco anos os registros de patentes dos EUA, contando o número de vezes cada patente foi citada como uma base para patentes posteriores. Eles verificaram que algumas patentes - tal como capacitar um navegador de internet a exibir um anúncio enquanto carrega a página principal - foram citadas muito mais freqüentemente que se esperaria se as diferenças achadas no número de citações para invenções fossem casuais. Estas inovações chave são o equivalente de adaptações biológicas tal como os polegares oponíveis. "Isso permite-nos pensar que possa ser possível fazer o mesmo tipo de coisa em sistemas químicos que não são, mas podem estar no caminho de se tornarem vivos," diz Bedau.

Usando testes como esses, a equipe de PACE espera ver seu híbrido gradualmente tornar-se cada vez mais parecido com algo vivo. Mas em que ponto realmente tornar-se-ia vivo? Talvez em nenhum ponto particular, diz Bedau, o vivo e o não vivo sejam separadas por uma linha distinta e clara, mas sim por uma área cinzenta em que o Bicho esteja parcialmente vivo. "Há tonalidades de cinza, e imagino medir o quão escuro o cinzento é," diz. "Nossa concepção sobre o que a vida é desenvolver-se-á assim que aprendermos mais e adquirimos a capacidade de fazer coisas que são cada vez mais vivas."

O momento no qual um borrão de moléculas torna-se um ser completamente vivo e que evolui está anos à frente. "Mesmo os nossos cientistas mais otimistas não poriam um horizonte de tempo muito menor que 10 anos para esse tipo de realização," diz Packard. De fato, céticos perguntam-se se o Bicho de Los Alamos e a sua turma se

3 renderão algum dia alguma coisa útil. "É certamente interessante do ponto de vista conceitual," diz Pier Luigi Luisi, um bioquímico da Universidade de Roma III e um perito em vida sintética. "Mas a natureza com ácidos nucléicos e enzimas é muito mais esperta, porque esses produtos foram otimizados por bilhões de anos de evolução. Tentar fazer vida com química simples é uma deliciosa idéia ambiciosa, mas provavelmente não será muito eficiente."

Ainda, se Packard, Rasmussen e seus colegas conseguirem algum dia criar formas sintéticas de vida, eles terão aberto a porta a um mundo inteiro de novas possibilidades. "Quebraríamos as últimas barreiras entre nós e tecnologia viva," diz Rasmussen. "Isso será uma coisa muito grande. Acontecerá, nenhuma dúvida sobre isso."

Entre os desfechos mais óbvios podem ser listados a criação sob medida de organismos projetados para destruir compostos tóxicos ou produzir produtos químicos úteis tal como combustível de hidrogênio. Organismos mais convencionais podem ser modificados geneticamente para fazer estas tarefas, mas como Rasmussen observou, "o problema é que estes rapazes desenvolveram-se por bilhões de anos. São extremamente versáteis, e é muito difícil de mantê-los nas tarefas." Um organismo artificial, por outro lado, poderia, em princípio, não fazer nada além da tarefa programada, embora ainda tenha a flexibilidade evolutiva para adaptar-se a condições em mudança.

Packard espera que esta adaptabilidade controlada pode até levar a coisas maiores. Ele vislumbra farmacêuticos vivos que entregam drogas para as células doentes por um meio adaptável inteligente, ou formas diagnósticas de vida que podem vagar os nossos corpos colecionando informações e observando sinais de um problema. A meta final seria máquinas que se reparam como os seres vivos o fazem – mesmo computadores capazes de cálculos incrivelmente complexos enquanto enfrentam erros inevitáveis, assim como os nossos corpos toleram erros e falhas dentro de nossas centenas de bilhões de células.

Se vida é a capacidade de desenvolver-se e de adaptar-se, então as tecnologias baseadas em vida sempre têm o potencial de surpreender nos com novas estratégias inesperadas que podem faze-las escapar de nosso controle. Mas o risco não é algo novo. Nós já lidamos com ele quando pensamos no que aconteceria se autômatos dotados de inteligência artificial também se rebelassem ou na avaliação da segurança de peixes geneticamente modificados, de batatas provenientes de cruzamentos de variedades ou mesmo de coelhos introduzidos. De fato, para a vida sintética, num futuro imediato, provavelmente possa haver muito pouco risco de fuga, porque as primeiras versões serão tão frágeis e exigirão muito apoio. Isso significa que a segurança da vida sintética é algo para se ficar de olho, e não para se assustar. "Não iremos para nenhum precipício," diz Bedau. "Nosso progresso será lento, teremos muitas oportunidades para retroceder."

Alem da preocupação com segurança, a vida sintética levanta algumas considerações religiosas e éticas profundas. "O fato de se fazer vida a partir do nada fará algumas pessoas hesitarem. As pessoas poderão pensar que isso é uma prerrogativa que seres humanos nunca devem tomar para si," diz Bedau. “Se seres humanos podem criar vida por conta própria, isso não retira um dos últimos mistérios profundos da existência das mãos de Deus?”

Não necessariamente, dizem os teólogos. "Somos parte integrante da natureza e, como seres naturais, estaremos criando mais vida, justamente o que a evolução vem fazendo nos últimos 4 bilhões de anos," diz John Haught, um teólogo católico na Universidade de Georgetown em Washington DC. "E isso, em princípio, não significaria que excluímos Deus de criar vida usando causas naturais – no caso nós mesmos - que é a maneira pela qual a teologia entende que Deus esteja, como sempre, operando no mundo."

Uma coisa parece certa; a vida sintética fornecerá aos filósofos muitas questões com as quais possam se exercitar. Até agora, os esforços feitos para a elaboração de uma boa definição de vida estiveram limitados pelo fato que nós tentamos generalizar a partir de um único exemplo, a vida que surgiu aqui na Terra. Ter uma segunda forma de vida, completamente independente e baseada em química diferente, deve dar uma nova perspectiva para essa questão antiga. E sabendo o que funcionou ou não trabalhou no laboratório, também pode ajudar nos entender a origem de vida - a primeira versão, isso é - na Terra.

O Bicho de Los Alamos

Envoltório Este parte do fato de que óleo e água não misturam. Os componentes de cada Bicho individual são contidos

por uma gotícula de ácidos graxos, suspensos numa solução aquosa em um tubo de ensaio. Cada molécula de ácido graxo tem um cabeça carregada negativamente que é atraída pela água voltada para o ambiente aquoso, e uma cauda hidrofóbica que fica interna.

Hereditariedade Ao invés do DNA o Bicho tem trechos curtos de ácido nucléico peptidídico, ou PNA. Como o DNA, PNA é

feito de dois fios entrelaçados contendo as "letras" genéticas A, T, C e G. Como no DNA, as seqüências de letras nestas posições complementam-se. A emparelha-se com T e C emparelha-se com G.

As fitas de PNA têm uma “espinha dorsal de peptídeos sem carga elétrica", que se dissolve em gordura. Isso significa que as moléculas de PNA preferem ficar no interior da gotícula de ácidos graxos, como migalhas enterradas na superfície de um pedaço de chiclete.

Isto dá uma mobilidade rara para a molécula. Em sua forma normal, de dupla hélice, com suas duas espinhas de peptídeos para fora, uma molécula de PNA é completamente solúvel em lipídeos, então afundará no centro oleoso da gotícula do Bicho. Mas acima de uma temperatura crítica, os dois fios do PNA dupla hélice separam-se espontaneamente. Quando isto acontece, as bases, que apresentam uma carga elétrica leve, são expostas e atraídas ao ambiente aquoso do Bicho.

4 Então estas moléculas de PNA de fita simples devem migrar para borda da gotícula onde a cadeia peptídica

pode permanecer no óleo enquanto as bases ficam para fora, na água. Esta mobilidade fornece a o instrumento necessário para controlar a replicação. O plano é fornecer o Bicho com pedaços curtos de precursores de PNA de fita simples, da metade do comprimento de seu genoma minúsculo. Se um gene fita simples de PNA da superfície do Bicho encontra-se com dois destes PNAs "nutrientes" que têm as seqüências corretas de base, emparelhará com eles para formar uma molécula de fita dupla de PNA. Esta então deve afundar para baixo na gotícula, onde se propicia a união dos dois fragmentos de "nutriente" numa fita inteira. Finalmente, a molécula de fita dupla se dissociará mais uma vez e suas duas fitas se moverão para a superfície onde cada uma delas pode hibridar com novas parceiras - uma forma básica de replicação.

O metabolismo A terceira parte essencial da vida do Bicho – o metabolismo - também foi reduzida ao seu mínimo. Os

pesquisadores planejam "alimentar" o Bicho com precursores de ácidos graxos. Estes terão moléculas fotossensíveis unidas às suas "cabeças". Estes bonés fotossensíveis mascaram a cabeça, fazendo as moléculas completamente solúveis em gordura. Isso significa que elas tenderão a ficar dentro das gotículas do Bicho.

Quando luz atinge o “boné” fotossensível, quebra, expondo a cabeça, que migra para a superfície da gotícula. Finalmente, quando muitos novos ácidos graxos forem produzidos a gotícula crescerá e se dividirá em duas novas gotículas. O Bicho também será alimentado com precursores inativos de PNA ligados a uma molécula fotossensível. Mais uma vez, quando luz atinge este composto, ele se quebra para liberar o fragmento ativo de PNA.

Metabolismo eficiente também exige mais um passo para prevenir a molécula fotossensível, uma vez quebrada, de se religar ao PNA ou ao ácido graxo inativando-os novamente. O material genético de PNA previne isto agindo como um fio rudimentar, que conduz elétrons que possam neutralizar o fotossensibilizador. Desta maneira, o "genoma" do Bicho desempenha um papel ativo no processo metabólico.

A evolução Se tudo ocorrer conforme planejado, estes três componentes – envoltório, genoma e metabolismo - devem

juntos fornecer todo o essencial para evolução darwiniana. Assim que os Bichos crescerem e se reproduzirem num tubo de ensaio, a seleção natural deve favorecer seqüências de bases de PNA que se emparelhem e desemparelhem rapidamente, e que também conduzam elétrons eficientemente.

Escravos sintéticos Organismos artificiais poderiam ser feitos sob encomenda para tarefas particulares:

• Destruição de compostos tóxicos • Produção de substâncias úteis, tais como combustível limpo como hidrogênio. • Servir como “farmacêuticos vivos” que levam substâncias medicinais aos lugares do corpo onde elas sejam

necessárias. • Servir como pequenos agentes diagnósticos coletando informações e verificando problemas nos corpos. • Tornar-se partes de máquinas que se auto reparam, assim como fazem os seres vivos.

A corrida para o Grande prêmio O Bicho de Los Alamos têm competidores fortes na corrida ser a primeira forma artificial de vida,

Especialmente daqueles participantes que escolheram rotas muito mais convencionais para atingir essa meta. No Institute for Biological Energy Alternatives em Rockville, Maryland, Craig Venter, líder do grupo privado que sequenciou o genoma humano, e seu colega Hamilton Smith, tentam criar uma nova forma de vida a partir do genoma de uma bactéria existente substituindo-o com um genoma sintético desnudado com uma mínima quantidade de genes (New Scientist, 2003, 31 de maio, p 28).

Como essa proposta deixa intacta a maioria da maquinaria da célula, a equipe de Venter é, de longe, a primeira esperada para prosperar, talvez dentro de alguns meses ou anos. (De modo pouco habitual, Venter não conversa com a imprensa sobre esse projeto). Entretanto, o novo organismo do Venter será muito parecido com organismos já existentes.

Na Universidade de Roma III, Pier Luigi Luisi trabalha no "projeto de célula mínima". Começando com uma vesícula simples limitada por membrana, a equipe de Luisi planeja gradualmente adicionar enzimas e outros componentes celulares até que eles formem a célula funcional mais simples.

Do outro lado do Atlântico, na Universidade de Harvard, Jack Szostak tem trabalhado numa forma sintética de vida tão simples quanto o Bicho de Los Alamos de Rasmussen, mas usando uma química mais familiar. O projeto do Szostak usa uma vesícula minúscula envolta por uma membrana contendo pequeno trecho de molécula RNA ou parecida com RNA com um talento especial: catalisa a própria replicação.

O problema é que ninguém nunca desenvolveu um RNA capaz de duplicar mais que somente uma parte pequena de si mesma. Szostak prevê êxito em provavelmente uns 10 ou 20 anos. "Tenho dito que é para os próximos 10 ou 20 anos," diz, "e ainda é verdade”.

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