bicho sem fundo

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BICHO SEM FUNDO R. Elfe não é o homem que faz o poema é o poema que desfaz o homem. Edição Presença, 2013 Ilustrações: Mayara Nardo

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Poemas: R. Elfe Ilustrações: Mayara Nardo

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Page 1: Bicho sem fundo

BICHO SEM FUNDO

R. Elfe

não é o homem que faz o poema é o poema que desfaz o homem.

Edição Presença, 2013 Ilustrações: Mayara Nardo

Page 2: Bicho sem fundo

À Maria Angélica, mestra e primeira entusiasta; aos poetas que cruzaram meus olhos com suas vertigens; aos meus poucos amigos; ao amor da minha vida, dedicação

diária: Mayara Nardo; à minha família, minhas saudades. Registro também meu ódio

aos opressores de todas as espécies.

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AMOR, Coisa que gente não explica, poetas gastam, e desangustia crer que Deus compreenda. SAUDADE É dedo no gatilho: click! - e o tambor vazio. Lá fora anda a Tarde, pouco sabe de mim Aqui, noutra cidade, São Paulo, Saúde, Saudade... Urge o avião sob a grade num ronco, a distância se abre Também de mim pouco sabe Aqui, noutra cidade, São Paulo, Saudade, Fim.

Page 4: Bicho sem fundo

BICHO SEM FUNDO Você precisa resolver coisas dar de comer aos bichos, alimentar-se deles. Ligar pra família, mentir pros amigos. Mentir pra família, ligar pros amigos. Único que prolifera remorsos bicho que fuma escondido chora quando nunca nunca quando chora. Diz que precisa resolver tudo matar recibos vencidos cimentar negócios dar-se de abraços à cama precisa fingir que ama e ama fingir que precisa. Único que vomita tempo enforca pessoas, fabrica relógios vive de tédio e pressa

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ama quando nunca nunca quando ama. Bicho de guardar segredos acha-se dono das coisas e só uma gripe te derruba uma paixão e diz poesia que nunca foi tua, que nunca foi boa. Único que literatura e brinca de estragar o mundo mastiga poeira, cospe parafuso bicho de comer à mesa nem a sete palmos de avareza tira esse peso do fundo.

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MIOPIAS I Com suas palavras inalcançáveis: estrelas de oito pontas avião, mastro, girafa o cão abraçado ao muro a língua das cartas a mesma voz solene, diria: - só o brilho café nos olhos da fotografia - mastigava tudo. A saudade escapulia nos cabelos, enfeitiçada você fingia riso e sua pequena mão de arbusto podava o berro. e sua pequena mão de arbusto aninhava o verso. e sua pequena mão de arbusto sufocava o verbo.

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III Ali onde esconde-se a noite, em desaviso, de pequenos túmulos verdes fantasmas com pés trocados suspendem a alvorada. IV O que acontecerá? Olhar represado de estátua, sol palrando cume uma nesga de noite aparvalha-se abre-se o ventre da aurora uma manhã nasce latindo. V Se vivo não mata Se morro não sei Mas não estanca nem seca

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Tem fundo falso esse peito Que bicho nenhum traduz. VI Pequena espera quase dor sem demora; à sombra do ventre se altera o tempo que em tudo dobra, urgência de flor que acorda nascendo a cada instante, e pra sempre: o fulminado beijo do agora. VII O mundo das ideias é o mundo dos homens. Nele, Deus pode deixar de existir; ser Criança, Lobo, Mulher, Demônio. O mundo de Deus, é o mundo do qual não fazemos ideia. Nesse limite, do qual nossa razão não pode avançar, está a ideia de Deus.

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VIII Inunda a lua na cozinha teus magros pés de tinta branca indagam o céu que tanto cobre morrem ao vento à sombra enorme do homem curto, o tempo curto no homem. Edifício curvando estrelas; preto é o chapéu da velha casca. Nenhum desejo te devora só tua carne enquanto comes e o adeus no riso telegrafa por dentro, em chamas, teu nome por fora e toda parte meu enxame.

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IX Da manhã só o veneno; à boca o óleo dos pássaros e o suor dos que não vivem.

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ENCHENTE (poema noticiado todos os anos) Quem sequer dormiu foi engolido um grande golfo de terra uma silenciosa tumba descendo e nenhum cachorro latiu.

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RECORRENTE você me lembra coisas dessas que não mensuro coisas que permanecem como a voz no interfone - mas não te ouço, levo de seu, só o pedaço de um mar nas orelhas e o barco virgem rabiscando a praia no rastro, o marulho branco tua face mal desenhada - que não fui homem bastante para apagar.

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FIXAGENS DAS DISTÂNCIAS o seixo branco que se agrupa sob o mar sem água; o infinito acenando no fim da rua; a lua longe, noutra cidade. DO INVISÍVEL Cresce seu cabelo dentro de mim: dentro não tem espelhos. DO ESPÓLIO Morra, senão por mil amores inventados, uma paixão sequer vivida.

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DO ZEN Nessa rua, suponho, devam brotar milhares de eus aos quais ainda não consegui chamar pelo nome.

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RISÍVEL PARNASO MANHÃ DE MARÇO Caro A. R., Intocável manhã de março onde encontro? Em meu coração noturno só a insustentável juventude! Vejo em vis lábios o riso miserável da paixão. Nesses teus lábios! - longos rios, o fino entardecer a ti se entrega e todo tesouro dos céus. Uma a uma, devotarei-te estrelas. Não te vejo mais! - manhã de março. Intocável! Teu prazer em mim tudo cala. Minha vida por teus ossos de calçar segredos,

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Posso tocar-te a vida inteira mas que eu não o veja assim por menos que um beijo.

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IRREAIS Incompleto peso! Irreal doçura! Incorrigível céu! - me diz a loucura. Jamais nas jardas da tua pele! Nunca mais teu beijo destrutivo - a seiva precoce anda em caules velhos. Incompletos! Irreais! E a beleza avara... aldrava de sonhos. Vai o peito neles, de porta em porta, recolher perdões, inventar números. Nenhuma palavra pesa menos, nenhuma mais. Senão por sentimentos - aprisionadas. Aos corações desumanos, ferrolhos cegos, estes com olhos ferozes de máquinas de lua. E a noite me acelera

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é toda ela uma morte inteira, para alguma vida humilde, leve. Ninguém mais como eu, incompletamente - penso. e a doçura desfeita. Que loucura! O céu esmigalhado... Migalhas fortuitas de uma grande aurora. Em mim a única certeza: em nenhum peito bate o mesmo coração.

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SALSUGEM A sede do leito, esse meu peito onde muito vago ajeito e ponho-me a ver-te navegar. Oh vida minha, pequena. Nessa e noutras, tão cheia dai-nos a brisa na areia, leva estes brincos pro mar; e neste vem e vai da lua onde a maré verde recua cala este braço de vento traz os fantasmas do tempo e os que há muito sumiram por lá. Conta-nos que há o mistério da ida, já que há outro na partida, sempre por perto de chegar. E que nenhuma carta avisa e lá se vai voando, rouba-me a vida e só, me saio sem nem um i ou a.

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Me conta como pará-lo agora antes que a fúria da memória devore do porto este corpo e tudo que a contragosto não o quiser acompanhar. Oh vida, minha pequena. Não vejo em nada a desgraça mas a ventura é sentida e eu já sem prazer na lida ouço o mar em cuspidas teu nome nos vir lembrar. Então melhor o mergulhar com tudo e jamais ter outro mais fundo barco, corpo, mundo! Nenhum naufrágio mais surdo que este lance profundo de feliz abraçar-te.

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MANUAL DE BERROS* Rescinde a ferrugem da manhã, no café, sem tétano. Como dela sem mascar seu vulto. Sirvo dela de fazer a cama. O poeta me sopra aqui nos dedos moles, uma rosa estourou lá fora. Bem sabe ele como inventar a flácida iluminação. A manhã então... já sabes criar o verde! Nesse assobio calmo, desce à tumba suave - levanta os ossos do enfeitiçamento: - Toda manhã cresce assim: torneira aberta, água fria no balde.

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MEUS PECADOS I Ando preguiçoso. Uma preguiça quente. Preguiça de poço na sombra. De gato. Preguiça de gente morta. II Querer migrar com pássaros, dentro do homem que recebe o chão pra voar.

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III Sei que aqui não consigo, lá talvez, noutra vida. Onde perceba o quanto deixei de fazer, fazendo o que não percebia. IV O poeta perdura-se na iluminância eterna de um verso. Mas sua existência coincidirá com a dos outros, na insignificância escura dum túmulo. V Convido a desesperar-se comigo! Desabitar abrigos, perder a manhã!

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SILÊNCIO É motor de geladeira. Quando desliga é brilho de estrela Mas desse tipo só ouvimos a cor.

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BRASÍLIA Brasília, 19 horas agarrada às asas do boing de gravatas grita: - Fica! Côncava, plana, central, estranha, via deserta. Brasília é a Barra da Tijuca à noite, embora não saiba. Brasília desdentada de ônibus-trem-elétrico voltando. Brasília é moderna, embora não caiba nela mesma. Embora não saiba, é luz de abajur intelecto janela sóbria em pequenos prédios. É astro fóbica, filosófica... - É coisa-e-tal, saca?

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Brasília é mais cedo, bala de festa. Mais-tarde deixa Brasília tonta; gira Brasília sem braços. E Brasília tem filhos e pais separados. Aguarda adoção. Brasília ambidestra. Fala alemão, engole facas. Agarrada aos fios é uma criança pedindo colo. Brasília tem nome, ora não tem. O céu quer Brasília mais alta, chama por ela, que nem da janela pisca. Brasília é uma curva desfeita.

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Brasília é alcoólatra, posta por conveniência. É uma prancha e dois pratos. Brasília é ela. Que vai embora e chega, retorna do inferno pro inferno. Pra outra Brasília que nunca pisei. Distinta dela mesma, de seus detritos. Brasília que nunca estive, e já nem sinto o quanto a amo. Brasília ruiva, hippie e bela. Agora, Brasília inteira é uma curva.

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APRENDIZAGEM pro Poeta das facas e pedras Aprendo a ser melhor que a cabra que a ferramenta na caixa que o dobre d´água. Sendo pior que eles, não sendo nada. Aprendo a reconhecer o mau nas aranhas que me esquecem nas pessoas-porta-retratos que os suportam os porta-retratos, sendo pessoas. O mau que urge nas silenciosas caras que aflige famílias, doenças graves Aprendo sendo melhor que ele - o mau, existindo como pessoa despregada de paredes. Aprendo a ser mais forte que o sino que o mar na manhã trêmula

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que a faca no dedo sobre o peso das costas que a corda bamba de mendigos muro de alcançar baixios. Aprendo a ser mais sendo menos, tênue fio que se estanca. Aprendo a resolver o meu medo no escuro mergulhado num mar de cinzas sonoras tubarões e sacis me perseguem agonizando entre terreiros de macumba capas negras e vermelhas sob fumaça de cachimbos a orca, o vizinho queimado vivo, o desenterro do amigo olhos mortos na pele que devora o riso. Aprendo a ter coragem não tendo, deixando que o monstro me alcance tornando-me algum tipo de monstro.

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Aprendo meu delírio vivendo-o no duro concreto da mais absurda realidade meu mastro fundo, falo! no ácido que me toma estrelas-irmãs telefonemas solitários tudo pra um dia que não existe Aprendo a delirar delirando rasgando o que me parece ter algum resto de delírio.

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POEMIA Por ti zil regressos. Por onde sempre recomeço, sem ter jamais partido. AFRESCO Cessa o céu, Foge a chuva. Reservado o úmido gosto nas coisas. Nenhuma estrela tem lugar no amarelo adágio. É um céu branco, raro. Céu de chuva que termina contumaz, gelada e leve; lavrando o sopro extenso que o mitral armou.

Page 32: Bicho sem fundo

TEMPO nada que se faça com o tempo ninguém amarra o tempo mede altura, corta unhas, nada! não é pele, pluma, peso... não tem cara, nem cheiro ninguém deita o tempo o tempo não tem costas ninguém bate tempo na pedra o tempo é um tipo de nada que vaza e somos o que resta dele.

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RISCO Estou sempre procurando em mim um abraço que me acenda, que me atenda no chamado veloz da noite. No metrô fugindo, driblando cidade. Sempre devastado, ávido pelo abraço doente, de quem espera da semente morta a grandiosa sombra.

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NASCIMENTO Devolvestes o fruto. Fostes mais árvore que as mãos. Não plantei teus olhos, raízes que inundaram de sangue. Pés de tua pele, onde, à sombra, a boca borrou um nome. Do fogo, geramos a era cega da vela. Envolvestes minha chama bruta. Oco, em fuligens, gastei o espectro, risquei-o. Fostes minha âncora e partira em voz de silêncio. Devolvestes o fruto. A terra ressentida evocou vossa sílaba

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uma pesada folha retesou meu falo. Nem eu nem você apenas o encanto. Cruzamos nossos nomes. Riscou-se um rosto: de margarida, de abelha, de negros olhos, dentes tortos. Fugiu. Fomos três pessoas Devolvestes o fruto. Fostes mais árvore que as mãos. Não plantei teus olhos, raízes que inundaram de sangue. Pés de tua pele, onde, à sombra, a boca borrou um nome. Do fogo, geramos a era cega da vela.

Page 36: Bicho sem fundo

Envolvestes minha chama bruta. Oco, em fuligens, gastei o espectro, risquei-o. Fostes minha âncora e partira em voz de silêncio. Devolvestes o fruto. A terra ressentida evocou vossa sílaba uma pesada folha retesou meu falo. Nem eu nem você apenas o encanto. Cruzamos nossos nomes. Riscou-se um rosto: de margarida, de abelha, de negros olhos, dentes tortos. Fugiu. Fomos três pessoas

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ADVENTOS CRUCIAIS DO POEMA I Feroz é o galo, advento crucial da manhã. Cruza de noite e luz. Feroz todo mundo dentro do mundo, feroz. No bonde, no escuro às 6, na padaria abrindo. No raiar do poste elétrico, torturando mendigo. A primavera sonâmbula, canhões crivados de sol. O sideral volume espacial da aurora. E teu cadarço frouxo, amarrando tudo. Feroz tua boca,

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mordendo o ócio, travando o ofício. Tua ferida cobrindo a falta. O frio sem o lençol pra matar. Feroz tua fuga desembestada, tua verruga na cútis prata, paupérrima tez mulata. Feroz é a tevê, cintilando na sala sem ninguém. Teu pai morrendo no quarto. Tua avó desenterrada. Tua pá de ossos coloridos. Teu filho veado. Tua pasta de fígado de ganso. Feroz é o pasto, roendo terra. Terra tragando pasto; pastor comendo ovelha - prova oris do sistema. Feroz é a tela, janela vomitando margem, esconde-esconde e manhã.

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Feroz é o galo, rasgando a matina. Fantasmagórico trem amarelo, fulgente, advento crucial do poema. II Quando disser o galo: - Veeem dia! Não virá. Ali, cães sonolentos resistirão escondidos, entre conversações distantes, divisando ruas, gente e silêncio. Quando vier o galo e disser: - Veeem dia! O dia não virá - e duvidará dele.

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Nisso, estaremos fechados trancafiados vencendo outra morte. Resistiremos respirando sob cobertas o peso morto de nossos escombros. E de tão breves, nenhum sol tocará o pó; nem devolverá a Terra nosso barro. Vergonhosamente tocará a campana um despertar atrasado por mil vezes, mas nenhum soldado erguerá um dedo sequer. A guerra acontecerá dentro dos homens, antes que a manhã por si aconteça, mas não acontecerá. O galo em vão dirá outra vez: - Veeem dia! (E o dia) Não virá.

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TEU ENCANTO Minha urina na árvore tua voz entre mil, distante ouvi tua palavra - qualquer pensei você em casa na mangueira do quintal aberta nas cores do jogo americano tropical teus cabelos abertos, a mangueira minha urina na árvore nascendo tão dourada como em mim, nascendo teu encanto.

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METRÔ LITORÂNEO Ouço o mar em você, quando beijas num sol perturbando a vista. E seu cheiro de areia... nos sapatos o que trago é você. Quebras em mim tantas ondas... lá fundo, onde a ideia é vaga, mergulho no sal de teu riso; não é o mar, é você. Ouço da minha cama: é o vento relando a janela, e o Linha Azul cruzando o bairro da Saúde; É o avião mergulhando curvo na cúpula de Congonhas, o mar fica distante, eu te ouço. Nosso mar racionado, atravessado, dentro de nós, um feitiço. Um pequeno mar de bordas sujas, cenas de sonho em filmes, o eco na voz. Ouço o mar quebrar distante essa manhã, tão distante da minha cama,

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pra depois do sono, dentro de mim.

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DOS FRUTOS Olha, amor, é tudo feito de mágica e espanto. Nada brota da matéria fria. Quis o humano experimentar a criação e lá anda sempre atrás no caminho. Quis o Algo que fosse assim. Amor, deixe que tudo te espante! Pois o que se tem nessa vida não dura mais que a mágica d’um instante.