entre pontes e cidades: um estudo sobre arte,...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
VINICIUS MARTINS GONZALEZ
ENTRE PONTES E CIDADES:
um estudo sobre arte, memória e paisagem urbana a partir da obra "Caminho das Águas", de Piatan Lube
VITÓRIA 2015
VINICIUS MARTINS GONZALEZ
ENTRE PONTES E CIDADES:
um estudo sobre arte, memória e paisagem urbana a partir da obra "Caminho das Águas", de Piatan Lube
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes na área de Orientador: Prof. Dr. Aparecido José Cirillo
VITÓRIA 2015
À minha querida família, e a minha amada companheira de todas as horas.
Obrigado por serem eterna fonte de inspiração. Gratidão eterna!
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Aparecido José Cirillo pela confiança, ensinamentos,
incentivo, paciência e total apoio.
Ao Laboratório de Pesquisa e Extensão em Artes da UFES (LEENA) pela disponibilização de documentos de processo, empréstimos de livro, e por
ser importante espaço de discussão e diálogo acadêmico.
Aos professores do Programa que contribuíram com sugestões enriquecedoras ao longo das disiciplinas, e aos demais funcionários do PPGA-UFES pelo
incansável trabalho.
Ào artista Piatan Lube pela disponibilidade e generosa contribuição.
A Prefeitura de Vitória, por meio da minha chefia imediata, Famiglia Cristina Neves Martins Braga, pelo suporte e apoio.
À toda espiritualidade que me guia e que não me deixa suncumbir diante dos
obstáculos no caminho.
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo pesquisar/entender/revelar como as
múltiplas relações da arte com a cidade colaboram na produção de obras
capazes de ativar novas paisagens urbanas através do transeunte/espectador.
Para a reflexão trago como exemplo o trabalho “Caminho das Águas”, do
artista plástico Piatan Lube. A intervenção que se iniciou como obra para o 8º
Salão Bienal do Mar, que aconteceu na cidade de Vitória/ES entre os dias 20
de dezembro de 2008 e 05 de fevereiro de 2009; se tornou projeto quando em
2010 expandiu suas fronteiras e aterrissou em Florianópolis/SC. “Caminho das
águas” é uma intervenção que rememora o antigo limite entre o mar e a terra
em uma releitura física. Sua linha azul de 30 centímetros de largura, pintada
sobre o chão problematiza o espaço urbano, força questionamentos coletivos
sobre as transformações do homem na natureza, busca mesmo que
provisoriamente provocar/resgatar uma pequena memória coletiva sobrepondo
o passado à forma contemporânea das cidades, convidando seus habitantes,
por via da arte, a repensar ela mesma, em uma série de possíveis
desdobramentos visuais, imagéticos e por que não pessoais. Linha que
provoca no transeunte/espectador uma projeção visual de uma cidade que não
existe mais, que agora jaze sob nossos pés e que dorme no esquecimento de
um passado. Assim, trata de se apropriar da cidade em uma ação efêmera,
intervindo na história das capitais-ilhas participantes do projeto, em diálogos
patrimoniais que ligam memórias (geológicas, naturais, culturais, econômicas e
sociais) e integram uma narrativa de ocupação e desenvolvimento urbano.
Palavras chaves: Paisagem urbana / Cidade / Intervenção / Memória
ABSTRACT
This dissertation has as objective research / understand / reveal how multiple
art relations with the city collaborate in the production of works capable of
activating new urban landscapes by passerby. To bring the reflection as an
example the work "Caminho das Águas," the artist Piatan Lube. The
intervention that began as a work for the 8th Salon Biennale Sea, held in Vitória
/ ES between days 20 December 2008 and 5 February 2009; became project
when in 2010 expanded its borders and landed in Florianópolis / SC. ”Caminho
das Águas” is an intervention that recalls the old boundary between the sea and
the earth in a physical rereading. His blue line 30 inches wide, painted on the
ground questions the urban space, strength collective questions about the
transformations of man in nature, even provisionally cause search / rescue a
small collective memory overlaying the past to contemporary form of cities,
inviting its inhabitants, through art, to rethink itself in a number of possible
developments visual, pictorial and why not personal. Line that causes the
passer / viewer a visual projection of a city that no longer exists, which now lies
buried beneath our feet and sleeping in oblivion of the past. Thus comes to
appropriate the city in an ephemeral action, intervening in the history of the
project participants capital-island, in equity dialogues linking memories
(geological, natural, cultural, economic and social) and integrate an occupancy
of narrative and urban development .
Keywords: Urban / City / Intervention / Memory
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ........................................................................................................... 14
Figura 2 ........................................................................................................... 15
Figura 3 ........................................................................................................... 20
Figura 4 ........................................................................................................... 30
Figura 5 ........................................................................................................... 30
Figura 6 ........................................................................................................... 31
Figura 7 ........................................................................................................... 45
Figura 8 ........................................................................................................... 45
Figura 9 ........................................................................................................... 50
Figura 10 ......................................................................................................... 58
Figura 11 ......................................................................................................... 63
Figura 12 ......................................................................................................... 68
Figura 13 ......................................................................................................... 70
Figura 14 ......................................................................................................... 70
Figura 15 ......................................................................................................... 71
Figura 16 ......................................................................................................... 71
Figura 17 ......................................................................................................... 72
Figura 18 ......................................................................................................... 72
Figura 19 ......................................................................................................... 73
Figura 20 ......................................................................................................... 73
Figura 21 ......................................................................................................... 74
Figura 22 ......................................................................................................... 74
Figura 23 ......................................................................................................... 75
Figura 24 ......................................................................................................... 75
Figura 25 ......................................................................................................... 76
Figura 26 ......................................................................................................... 84
Figura 27 ......................................................................................................... 89
Figura 28 ......................................................................................................... 90
Figura 29 ......................................................................................................... 91
Figura 30 ......................................................................................................... 91
Figura 31 ......................................................................................................... 97
Figura 32 ......................................................................................................... 98
Figura 33 ....................................................................................................... 102
Figura 34 ....................................................................................................... 104
Figura 35 ....................................................................................................... 106
Figura 36 ....................................................................................................... 110
Figura 37 ....................................................................................................... 113
Figura 38 ....................................................................................................... 120
Figura 39 ....................................................................................................... 121
Figura 40 ....................................................................................................... 122
Figura 41 ....................................................................................................... 123
Figura 42 ....................................................................................................... 124
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
1.1 A CIDADE POR BAIXO DA LINHA.............................................................. 12
1.2 BREVE PERCURSO ENTRE O NATURAL E O ANTROPOLÓGICO:
caminhos das cidades sob a linha.....................................................................
1.2.1 O caso da Vila Nova.................................................................................
13
13
2. MAS AFINAL, DE QUE CIDADE ESTAMOS FALANDO?........................... 28
2.1 O PROBLEMA DA PAISAGEM.................................................................... 38
2.2 DA CIDADE A ARTE UM OLHAR BASTA...................................................
47
3. IMAGENS/PROJEÇÕES PARA ALÉM DA PAISAGEM.............................. 55
3.1 ORIGEM ETIMOLÓGICA ……………………………………….…………….. 55
3.2 A NOÇÃO DE MEMÓRIA NO INDIVÍDUO CONTEMPORÂNEO E SUA
RELAÇÃO COM A CIDADE PÓS-MODERNA …………………….…………….
3.3 A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE UM NOVO HABITAR.......................
56
58
4. ENTRE PONTES E CIDADES: O projeto “Caminho das Águas”............. 67
4.1 A GÊNESE DE CAMINHO DAS ÁGUAS ……………………………….….. 80
4.2 OS DOCUMENTOS DA OBRA ………………………………………………..
4.3 DOS REGISTROS HISTÓRICOS DA CIDADE AO PROJETO POÉTICO
DAS INTERVENÇÕES………………………………………………………………
4.3.1 A proposta conceitual................................................................................
4.3.2 Da obra se fez projeto: O caso de Desterro..............................................
86
94
95
99
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................
110
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …………………………………………...
115
7. ANEXO A - Alguns outros documentos da obra "Caminho das Águas" …...
120
1. INTRODUÇÃO
1.1 A CIDADE POR BAIXO DA LINHA
Ao caminharmos pela cidade, raramente nos permitimos perguntar ao
chão que pisamos quais histórias por ele passaram. Num dia de maior atenção,
podemos até perguntar quais histórias lhe habitam, pois impossível pressupor
que apenas uma ou outra ecoam em suas entranhas. Por menor ou mais
recente que seja a cidade, tenho certeza que por baixo dos pés dos convivas
muitas marcas – visíveis ou não – somam-se àquelas em contínuo processo de
(re)construção. Experimente, pergunte.
Quando caminhei sobre certa linha azul, me permiti justamente
perguntar. E ai descobri que não seriam poucas. Certa angústia me tomava à
medida que avançava na paisagem e não conseguia mergulhar de maneira que
conseguisse responder à altura as histórias que me faltavam, tamanha era a
lacuna que precisava ser preenchida. Ao final da linha, não resisti e retornei.
Era preciso recomeçar. Será que eu realmente sabia por onde caminhava? O
que seria aquela linha azul?
A linha azul de “Caminho das Águas” 1 ganhou as ruas. Invadiu
calçadas, contornou postes, subiu em bancos, cruzou praças e avenidas.
Desvendou ruelas. Revelou esquinas com ares de província. Em três dias o
que antes era monotonia, ganhou tons de novidade. “O que essa faixa azul
está fazendo aqui?” pergunta o transeunte desavisado. Para aqueles em que o
processo de ir e vir é uma rotina, a paisagem quase não muda. Ou se muda
pouco percebe. Anda, entra, sai, corre. Os dias vão e vem como se todos os
sons, cores e cheiros fossem os mesmos. Se deparar com um elemento que
lhe rouba a rotina pode ser inquietante. De onde vem? Para onde vai? Será
vandalismo? No mínimo, um tanto curioso na mente de quem se atenta, nem
que seja por pouco minutos.
Ao marcar o antigo limite entre mar e terra, a linha azul parece reativar e
trazer a discussão o processo de mudança social, político e econômico que
1 “Caminho das Águas”, Piatan Lube dá a memória a forma discreta de uma linha contínua de
um azul-claro bem vivo, pintada sobre o chão, com trinta centímetros de largura: os limites originais da cidade, as beiras naturais da terra e do mar (Texto curatorial de Agnaldo Farias para o catálogo da 8º Salão Bienal do Mar, 2008, p.21).
transformaram a paisagem, contando histórias e revelando cicatrizes de
ocupação, desvelando um mar de perspectivas. A linha simbólica traçada no
concreto sugere também um caminho a ser percorrido no espaço urbano,
desloca para o chão e o infinito o olhar do transeunte e o estimula a múltiplas
interpretações. Assim como tantas outras obras que se apropriam do contexto
urbano, fala em memória, relações sociais, paisagem, pertencimento, processo
histórico. Busca, a partir desse ponto e através da arte, convidar a cidade a
pensar sobre ela mesma, ao mesmo tempo em que através da linha traz a arte
à superfície e para a realidade visual dos seus habitantes.
O que a linha azul se propõe é ser parte dessa particularidade, desse
algo a mais que difere um lugar do outro. Por mais que o idealizador da obra
possa não atingir as camadas mais profundas da história singular daquela
cidade, por mais que exercite a prospecção das variadas camadas existenciais
que repousam sob aquele solo, somente seus transeuntes podem através dela
ativar as marcas de constituição da identidade local; desde que se permitam
interagir e atingir fundo as águas submersas em concreto e asfalto. Mas, trata-
se de uma leitura poética dos fatos históricos, afinal estamos falando de arte.
Não se pode, e o artista parece ter real noção de suas possibilidades e limites,
pretender dar conta na totalidade de tudo e de todos. Principalmente se este
objeto sensível é a cidade. Afinal, de qual cidade estou falando? Que espaço
afetivo me toma de assalto?
1.2 - BREVE PERCURSO ENTRE O NATURAL E O ANTROPOLÓGICO:
caminhos das cidades sob a linha
1.2.1 O caso da Vila Nova
A fundação do Espírito Santo e de Vitória começa 34 anos depois de o
Brasil ter sido descoberto, em 1500. O então Rei de Portugal, D. João III,
dividiu as terras do Brasil em capitanias hereditárias, cabendo a capitania do
Espírito Santo ao fidalgo Vasco Fernandes Coutinho, que tomou posse em 23
de maio de 1535, instalando-se no sopé do morro da Penha, hoje município de
Vila Velha.
No século XVI, quando os primeiros colonizadores portugueses
chegaram à região da atual Vitória, encontraram uma intensa disputada por
território entre três grupos indígenas diferentes: os goitacás (procedentes do
sul), os aimorés (procedentes do interior) e os tupiniquins (procedentes do
norte). Aliados aos nativos que permanentemente brigavam pelo domínio da
terra, os portugueses enfrentaram dura disputa devido aos constantes ataques
dos franceses e holandeses à cidade fundada. A confusão reinante entre os
colonos foi indescritível e esse estado de coisas prolongou-se até 1550,
quando retornou Vasco Coutinho, que ante o quadro de desolação e a
impossibilidade de suster-se em seus velhos domínios decidiu-se a fundar, na
ilha de Santo Antônio, a Vila Nova, que oito anos mais tarde se rebatizaria com
o nome de Vitória (MONJARDIM, 1949, p.20).
Figura 1 - Imagem de cópia de um mapa da então Vila de Victória utilizada por Piatan Lube durante fase de estudos para o projeto “Caminho das Águas” (sem data).
Fonte: documentos do artista
A Vila Nova do Espírito Santo, como foi denominada a nova capital, foi
fundada em 8 de setembro de 1551. Posteriormente, a cidade teve seu nome
mudado para o nome atual, Vitória, em memória da vitória em uma grande
batalha comandada pelo donatário da capitania, Vasco Fernandes Coutinho,
contra os goitacás
Seu núcleo fundacional foi estabelecido em cima de um platô com uma
encosta de aproximadamente 30 metros de altura. Essa região atualmente é
denominada Cidade Alta. O platô era delimitado pelo mar, pelo relevo do
Maciço Central (hoje conhecido como Morro da Fonte Grande) e pelas áreas
alagadiças. Todos esses elementos serviam como limitadores para o
crescimento da vila. No período inicial da Vila de Vitória, o casario era baixo e
contínuo e respeitava a configuração do terreno colonial, conforme os
portugueses estabeleciam para pequenos núcleos, com ruas tortuosas, com
terrenos e quadras de dimensões irregulares, refletindo a topografia da colina
(KLUG, 2009, p.19).
Figura 2 – Fotografia IPHAN 0024 e Fotografia IPHAN 0025. Fotomontagem realizada com imagens do Acervo do IPHAN que permitem ter uma vista geral do estreitamento de terra
provocado pela proximidade do mar com o maciço central na ilha de Vitória. Fonte: IPHAN.
Percebia-se uma ocupação mais horizontal, podendo-se contemplar o
Maciço Central ao fundo, uma visão bucólica da vila, mas tendo sempre em
destaque as igrejas, os edifícios mais altos da vila. E foi a partir dessa região
que a cidade de Vitória se expandiu e se desenvolveu.
Mas engana-se quem de inicio acredita que a ilha de Vitória sempre foi
uma grande ilha. Antes dos primeiros grandes projetos de intervenção
urbanística que ocorreram em finais do século XIX, estima-se que o
arquipélago em torno da Vila de Vitória era composto de aproximadamente 34
formações divididas entre ilhas e ilhotas. Estudos morfológicos realizados pelo
Professor Frois de Abreu2 publicados na Revista Brasileira de Geografia
publicada, em Junho de 1943, em consonância com estudos realizados pelo
geólogo canadense Hartt3, afirmam que, na era terciária4, a baía de Vitória
conservavam-se as suas montanhas como ilhas na entrada da barra
(MONJARDIM, 1995, p.20). Nesse mesmo estudo, o Professor Frois aponta a
existência de sinais evidentes do recuo progressivo do mar, o que demonstra
um desenho de litoral bem diferente do atual. Pontos elevados do relevo e
distantes da costa revelam claros vestígios de fósseis marítimos.
Acreditamos que as pesquisas iniciais sobre os antigos limites da cidade
de Vitória, não apontaram a complexidade do processo de transformação
natural que a região passou ao longo dos milhões de anos. Mesmo porque não
lhes interessavam as mudanças da natureza – incontrolável força que nos
torna frágeis, mas sim aquelas da ocupação humana, aquelas que
determinaram uma paisagem antropológica. Percebemos que mesmo diante de
materiais que apontavam essa realidade e tendo pela frente a difícil tarefa de
estabelecer o fluxo transformatório do sítio pesquisado, deixaram sinais
evidentes de que foi preciso estabelecer um marco onde iniciariam a
investigação. Através dos documentos de investigação que tivemos acesso, as
referências sobre as principais mudanças topográficas e geográficas da ilha
partem do final do século XIX, sempre através de mapas, fotos e escritos da
época, período fundamental para o processo expansivo do sítio urbano. Talvez
a percepção da paisagem natural estivesse sobreposta pela intenção de uma
paisagem antropológica que tanto se buscou revelar.
2Sílvio Fróis de Abreu (1902-1972) foi um químico e geógrafo brasileiro especializado nas
descrições das regiões naturais brasileiras. Foi também um dos fundadores do Conselho Nacional de Geografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no final da década de 1930, e um dos mais importantes colaboradores da Revista Brasileira de Geografia. 3Charles Frederick Hartt (1840 - 1878) foi um geólogo canadense-americano. Acompanhou
Louis Agassiz, de quem foi aluno, em sua viagem ao Brasil. Durante esta expedição, explorou o litoral brasileiro, entre a Bahia e o Rio de Janeiro, reunindo grande coleção zoológica e tornando-se autoridade em História Natural da América do Sul. 4É conhecido por Período Terciário uma unidade de tempo utilizado para demarcar um período
específico de desenvolvimento da Terra e da vida nela contida. Atualmente considerado um
conceito defasado, o Terciário consiste no espaço de tempo que vai de 65 milhões até 2,6
milhões de anos atrás.
Sabemos de antemão, que o termo paisagem implica em uma variedade
de definições, sendo, mas comumente utilizada de acordo com o campo de
conhecimento em que se aplica. Partiremos da definição que toda noção de
paisagem é uma construção cultural (MADERUELO, 2005, p.17), portanto
antropológica.
Entendida como uma elaboração mental do homem é a uma convenção
que varia de uma cultura a outra, o que nos obriga a delimitar que o que
chamamos de paisagem natural no contexto desta pesquisa, nada mais é do
que a projeção imagética de um ambiente primitivo desassociado de qualquer
interferência humana.
Assim, com o passar dos anos e ainda durante o período colonial, a
condicionante geográfica da situação do sítio, localizado nas proximidades do
centro do território do Estado e dotado de um porto natural, serviu para
consolidar Vitória como sede burocrática do controle Português no Espírito
Santo. Iniciado o período imperial, a antiga Vila de Vitória transformou-se de
fato em cidade através de Decreto Imperial de 17 de Março de 1823 (CAMPOS
JUNIOR, 1996, p.123). Apesar de possuir um número maior de
estabelecimentos comerciais em relação a outras cidades de relevância no
território capixaba (como os povoados de São Mateus, ao norte, e Itapemirim,
ao sul), o setor do comércio ainda era inexpressivo se comparado as cidades
envolvidas no ciclo do ouro, ficando a cargo das funções político-
administrativas a manutenção de uma tímida economia.
Até então, a capital da província não passava de um povoado cuja
resistência aos hábitos e tradições coloniais entravavam o progresso. Ainda por
volta do século XVIII, questões políticas determinaram que o escoamento do
ouro produzido na Vila Rica fosse através da cidade do Rio de Janeiro, mesmo
que a menor distancia entre as minas e o litoral fosse pelo território do Espírito
Santo. Enquanto as capitais paulista e carioca recebiam impactos positivos em
seu crescimento econômico com a expansão das atividades comerciais entre
as regiões produtivas, coube ao território capixaba o papel de frente de defesa,
proibindo-se a abertura de qualquer caminho entre o litoral e o emergente
mercado mineiro (CAMPOS JUNIOR, 1996, p.67). Em 1790, a população
registrada era de 7.225 habitantes. Além do isolamento forçado por motivos
econômicos, a topografia da vila era terrivelmente ingrata, sendo formada por
uma estreita faixa de terra no sopé da montanha íngreme e limitada pelos
imensos manguezais, não sendo apropriada para o grande desenvolvimento.
Mediante a oficialização do decreto, Vitória que até os primeiros anos da
república não havia sofrido nenhuma alteração no seu espaço habitado, passa
a receber investimentos que viriam a transformar de uma vez por todas sua
configuração urbana. Junto com a oficialização da vila como cidade, soma-se a
expansão comercial promovida pelo cultivo do café. Se inicialmente as
primeiras habitações povoaram a parte mais elevada do relevo, com o
constante crescimento populacional e agora as constantes iniciativas de
desenvolvimento econômico, os primeiros aterros oficiais surgem inicialmente
com o objetivo de gerar maior acessibilidade e a resolver a grave situação
sanitária da capital.
No tocante ao ambiente construído, o momento de prosperidade proporcionado pelo café ficou registrado no padrão da organização espacial da Capital. A cidade, que antes ocupava a parte alta próxima do Palácio do Governo e das igrejas, desce a elevação e vai aterrando as partes baixas junto à baia. Nestas áreas, vão sendo construídas as casas de comércio, reforçando, assim o caráter comercial emergente da cidade. (CAMPOS JUNIOR, 1996, p.133)
Uma das primeiras intervenções de aterro que se tem notícia na Ilha de
Vitória ocorre no período de governo de Francisco Alberto Rubim entre 1812-
1819 nas imediações da área do atual Parque Moscoso, um dos tantos limites
naturais da cidade até os fins do século XIX. Essa obra vem transformar o
manguezal da então área denominada de Campinho em alagadiço sujo, por
resultar em obstrução que impedia a limpeza natural do local pelo movimento
das marés, tornando o alagado depósito de detritos e dejetos (MUNIZ, 2001,
p.24).
Estudos apontam que essa obra foi o marco das seguintes
transformações que a parte baixa da ilha de Vitória sofreria. Em 1890, um
Código de Posturas da Intendência Municipal da Cidade de Vitória, em
benefício das melhorias das condições sanitárias da capital define, dentre
outros objetivos, o esgotamento de pântanos e águas estagnadas, aterros,
tapamento de terrenos abertos e valas e canalização de águas.
E inúmeras foram as transformações do sítio urbano. Pautado em
projetos urbanísticos inspirados pelo movimento de modernização que
passavam as principais cidades brasileiras, o governo de Muniz Freire (1892-
1896) elabora um arrojado projeto político-econômico que viria mudar de vez a
cara da cidade. Ciente que a simples execução de melhorias na infra-estrutura
básica (água, luz e esgoto) não resolveria a situação do quadro de epidemias
que assolavam frequentemente a população, decidiu que esse era o momento
exato de expansão. A época demandavam-se grandes áreas próximas da
cidade em condições adequadas de salubridade o que exigira obras de vulto
(CAMPOS JUNIOR, 1996, p.153), como aterros e anexações de áreas do mar.
Nesse momento, paralelo a ampliação da malha ferroviária que interligava
as principais cidades do estado a capital, objetivando o fortalecimento e a
consolidação do porto como principal canal de escoação dos produtos
capixabas, cria-se o projeto do Novo Arrabalde, com o maior interesse de
propiciar a tão sonhada expansão territorial e assim transformar Vitória no
principal centro populoso e comercial do Espírito Santo, o que na concepção do
governo oportunizaria novas atividades econômicas na zona urbana. Elaborado
por uma comissão5 especial presidida pelo renomado sanitarista Saturnino de
Brito, o projeto previa anexar uma área cinco a seis vezes maior do que a atual
área construída de Vitória.
Tratava de construir um novo bairro situado na região das praias, a
nordeste da ilha. Com um traçado primoroso dentro das melhores técnicas de
engenharia e urbanismo que havia na época, previa dentre outras coisas,
modernizar a cidade e transformar Vitória em um polo de negócios apropriado
para se viver e morar.
5A Comissão de Melhoramentos da Capital foi criada pela Resolução nº 46, de 9 de Abril de
1895, com a função imediata de fazer o levantamento topográfico da área do Novo Arrabalde (CAMPOS JUNIOR, 1996, p.154)
Figura 3 - Vitória no século XIX, vendo-se em primeiro plano o braço de mar que tomava toda a área do atual Parque Moscoso e em destaque os prédios das igrejas de São Gonçalo e
Santiago e, ao fundo, o Penedo. Em seguida a região após aterro já em processo de urbanização (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional).
Apesar das primeiras intervenções terem se arrastado por anos devido
ao alto custo de investimento por parte do governo (vale ressaltar que mesmo
diante de uma expansão na produção cafeeira, a economia capixaba sofria de
altos e baixos entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século
XX); tal iniciativa desencadeou um efeito cascata no período situado entre fins
do século XIX e a década de 1950, quando a cidade de Vitória passou por um
processo de modernização, embelezamento e expansão promovido pelo poder
público, que iria remodelar partes da cidade e buscar novas áreas para
expansão do tecido urbano (KLUG, 2009, p.25).
Interessante perceber que desde as primeiras décadas do século XIX a
paisagem, então predominantemente natural, se transfigura em detrimento do
moderno modelo de cidade que se implementava.
[...] Os planos de melhoramento e embelezamento das cidades tinham como principais preocupações a estética urbana, a construção de infra-estrutura nas cidades e a reforma e ampliação dos portos. As ações prioritárias se concentravam na realização de saneamento, abertura e regularização do sistema viário, com o alargamento das ruas para facilitar a circulação de mercadorias e a comunicação do porto com o restante da cidade. (KLUG, 2009, p.30)
A água perde o confronto e cede lugar a terra. Doce ironia, afinal em uma
ilha geologicamente formada por um grande maciço rochoso, grande parte da
terra usada para aterro do mar e dos seus ecossistemas derivados vem tanto
dos desterros dos morros e encostas como do canal da baia de Vitória. Terra
que outrora lentamente se movimentava com os movimentos das marés
rapidamente ganha papel de protagonista e consolida o pisar firme dos que
almejam um pouco mais de “espaço”.
O equivalente a 1.168 campos de futebol, ou 10 quilômetros quadrados, foi o que a cidade de Vitória ganhou, no último século, com áreas aterradas. Deste total, 48,6% correspondiam a manguezais, 30,3% os fundos de baía, enseadas e a aterros sob arrecifes, como na Ponta de Tubarão, e 21,1% a áreas aterradas na Baía de Vitória6.
De uma paisagem horizontal gabaritada na cadeia de montanha que
circunda a ilha, a cidade agora impulsionada não mais por investimentos
públicos e sim pela iniciativa privada, objetiva cada vez mais o alto. A
construção da paisagem após os últimos aterros na década de 1970 ganha
contornos determinados pela especulação imobiliária, mesmo que os Planos de
6 Trecho de uma reportagem sobre as transformações da cidade de Vitória publicados no Jornal A Gazeta (ES), em 23 de Julho de 2002. Retirado do site do geólogo capixaba Willis de Faria http://deolhonailha-vix.blogspot.com.br/search?q=ATERROS&x=17&y=12 acessado em 12 de Janeiro de 2014.
Desenvolvimento Urbano (PDU) tentem conter uma expansão descontrolada e
em alguns momentos demasiadamente exploratória. Luta-se, então, pela
preservação dos atributos cênicos naturais por meio de medidas rigorosas e
restritivas, principalmente no que diz respeito à área do núcleo histórico da
capital, seu casco histórico que tende a ser preservado, apesar do seu
abandono em termos de políticas públicas de recuperação arquitetônica e
social.
Inerente ao caráter histórico-afetivo, esta reflexão nos permite pensar
sobre uma paisagem uma urbana carregada de significâncias socioeconômicas
e culturais. Mais do que isso. Fala dos indivíduos e de sua complexa
sociedade, de suas aspirações e suas tradições históricas, de um cenário
natural que por mais remoto e desconhecido que seja ainda transpira através
dos ruídos de um passado nem tão distante assim.
Se Lynch nos permitisse realizar breve interferência em seu texto sobre a
imagem da cidade (2011), diríamos que ao aparecer como um lugar admirável
e bem interligado, a cidade que nos é proposta se oferece como lugar que
realça todas as atividades humanas que um dia se desenvolveram,
estimulando-a como depósito de um traço de memória.
****
Assim, é objetivo desta dissertação investigar a potencialidade que
algumas obras de arte pública trazem de ativar novas paisagens urbanas
através de suas construções/intervenções nas cidades. Para isso se faz
necessário entender como a arte dialoga com as transformações urbanas
provocadas pelo rápido e enérgico processo de modernização a partir da
segunda metade do século XX.
Sabemos a principio que a arte pública está inserida em um contexto no
qual a obra, sendo reflexiva, abre espaço para outros olhares da e para a
cidade e também para diálogos entre críticos, artistas e comunidade. Falamos
de obras que possibilitem reflexão sobre o papel da arte pública na ativação de
uma memória urbana, na ativação afetiva dos lugares, resignificando e
transformando-os c enquanto paisagem urbana. São novas imagens/projeções,
não apenas pela simples relação arte/cidade, mas principalmente por carregar
em si um discurso memorialístico como conceito chave para essa ativação.
Assim, surge o interesse de buscar as respostas para essa fascinação. Assim,
nasce esta dissertação
Para buscar pensar esse lugar e gatilho da arte pública como
fomentadora de uma percepção, ou ressignificação da percepção cotidiana da
cidade, este trabalho está dividido em 03 capítulos. O primeiro capítulo, “Mas
afinal, de que cidade estamos falando?”, busca definir o que chamo e entendo
como cidade, e as consequentes implicações do termo no discurso teórico.
Com o intuito de se aprofundar nesse entendimento, usarei como principal
referencial os estudos de Giulio Carlo Argan, Javier Maderuelo e Yi-fu Tuan em
uma proposição acadêmica de se criar base teórica pautada em conceitos
sólidos e amplamente discutidos.
Nesse sentido, buscamos em um breve resgate histórico refletir sobre a
busca por uma cidade ideal. Enquanto Tuan e Maderuelo conceitualizam a
cidade pelo viés de seus habitantes, Argan traz o entendimento da cidade pela
ótica da história da arte. Todos, sem sombra de dúvidas, dialogam e se
entendem quando afirmam que quando se fala em cidade, estamos falando de
uma construção social e coletiva; onde a dualidade conflituosa entre o ideal e o
real se potencializa no abrupto processo de urbanização que as grandes
cidades ocidentais sofreram após a industrialização. Mesmo não pretendendo
elevar a discussão sobre tal processo, trouxemos Nilton Santos com o intuito
de esclarecer, através do movimento de reconfiguração territorial, como
chegamos a cidade de hoje e suas intensas contradições. Subsequentemente,
se faz necessário determinar e delimitar as fronteiras do termo paisagem e sua
implicação no contexto urbano, a fim de estabelecer o paralelo entre os dois
termos e como eles conversam ao longo da dissertação. Parto do pressuposto
de uma compreensão de mundo como paisagem, uma entidade de desfrute
intelectual que se coloca ainda como um longo caminho a ser percorrido,
sempre entrelaçado com outras experiências culturais. Assim, Massimo
Cacciari e Kevin Lynch propõem uma leitura poética do que o campo da arte
entende sobre o conceito de cidade. Ora, sendo a cidade uma marca cultural,
enxergá-la como suporte e expressão da arte não é nenhum exagero. Por meio
dela,a cidade, podemos descobrir suas qualidades como paisagem, ambiente
carregado de significados e interpretações; meio de construção e reconstrução
de realizações e representações, ativando e (re)configurando novas paisagens
a cada olhar mais atento.
No segundo capítulo, intitulado “Imagens/projeções para além da
paisagem”, abordaremos a condição memorialística da arte pública
contemporânea como geradora do processo de construção de novas paisagens
urbanas. Partimos de uma rápida definição etimológica do termo memória a fim
de situar o leitor do entendimento que consideramos fundamental: que se trata
de uma faculdade de reter as idéias adquiridas anteriormente, de conservar a
lembrança do passado ou da coisa ausente. Contudo, em uma apropriação
direta dos estudos literários, chegamos à proposição que, por mais que o
clássico conceito de memória a defina como o ato de recordar, entendemos
que pouco tem haver com o conceito de verdade, sendo então a lembrança
uma forma de ficção, ou uma memória ficcional. Através dos estudos de Stuart
Hall delimitamos nossos esforços na construção de uma memória no indivíduo
contemporâneo, e como esse individuo se relaciona com a cidade que
anteriormente definimos como contraditória e provocativa. Seria, então,
possível confrontar os excessos vivenciados na cidade sobre moderna através
da memória? Bergson não diz que sim, mas também não diz que não. Afirma
que a acumulação do passado sobre o passado prossegue sem trégua, mas
nos tranqüiliza que estamos aptos a tal processo a medida que aprendemos a
selecionar que poderá nos ser úteis no presente. O passado só se torna
passado quando o empurramos o já vivido abrindo espaço para as novas
aquisições.
Ao exemplificarmos o pensamento através de obras que naturalmente
conduzem o espectador/transeunte na direção de uma leitura pautada em
(re)significações diretas com uma memória institucionalizada, procuramos ir
além. Como é o caso de The Monuments of Passic, de Roberth Smithson.
Partindo de referenciais pessoais, o público dessas obras possui a liberdade de
rememorar o passado por vias subjetivas. Fazer acréscimos. A ponte para essa
travessia entre o ontem e o hoje se apresenta em forma de objeto artístico, e o
pano de fundo nessa paisagem é a cidade. Penso em memória como ficções.
Não no sentido de falsas ou não factuais, mas de algo construído, modelado,
experimentos de pensamento. Por isso que trazer estudos sobre a memória
colabora no desenvolvimento do conceito proposto. Ao incorporar o
fazer/pensar ao conteúdo geral da memória (seja ela individual, coletiva,
urbana ou simbólica), cada vez mais a modificaria em infinitas repercussões,
redelineando-lhe novos contornos em cada nova carga vivencial, gerando, no
cenário urbano, novas projeções através na/da arte.
O terceiro e último capítulo, “Entre pontes e cidades”, tem como objetivo
tecer a trajetória da obra “Caminho das Águas”, de Piatan Lube, e analisar seu
desenvolvimento até sua configuração final como projeto, iniciado na cidade de
Vitória/ES e que atingiu seu ápice desaguando em Florianópolis/SC, a partir de
um desdobramento do projeto de cidades ilhas e memórias urbanas aprovado
pela FUNARTE, e que viabilizou a verificação dos conceitos estéticos
propostos pelo artista e testados em outro locus urbano insular. Através da
análise de escritos e estudos do próprio artista, buscamos a investigação
artística de como “Caminho...” problematiza o espaço urbano, força
questionamentos coletivos sobre as transformações do homem na natureza,
objetivando, mesmo que provisoriamente, provocar/resgatar/ativar uma
memória afetiva coletiva que sobrepõe o passado à forma contemporânea das
cidades. Neste ponto, vale ressaltar, que mesmo ao nos apropriar de questões
tragas pela crítica genética, não é nosso objetivo analisar a obra sobre esse
viés. Como pode ser percebido ao longo da introdução, o mergulho no trabalho
de Piatan vem de um encontro sensível e particular; onde as reminiscências
afetivas com a cidade de Vitória foram gatilhos fundamentais na provocação
crítica e teórica que esta dissertação se propõe. Contudo, apontamos a
importância de acesso aos documentos da obra, mas sempre na tentativa de
nos aproximarmos do ato criador para, quem sabe, nos apropriarmos dos
conceitos (pré)postos pelo artista, suas inúmeras possibilidades de
materialização do pensamento,e por que não, chegarmos mais perto da própria
obra. Estudos de Aparecido José Cirillo e Cecília Almeida Salles nos conduz na
leitura do dossiê de Piatan Lube, onde buscamos estabelecer relações entre
diferentes sistemas não-lineares que se definem no processo de criação.
Especificamente sobre a questão da memória pessoal (do artista), a memória
do transeunte (o outro) e a memória da cidade (coletiva).
Assim, a obra “Caminho das Águas” convida os habitantes de Vitória e
Florianópolis, por via da arte, a repensarem eles mesmos a cidade, em uma
série de possíveis desdobramentos visuais, imagéticos e, por que não,
pessoais. A obra se configura materialmente em uma longa linha azul, linha
que provoca no transeunte/espectador uma projeção visual de uma paisagem-
cidade que não existe mais, que agora jaze sob nossos pés e que dorme no
esquecimento de um passado distante. A obra parece tratar de se apropriar da
cidade em uma ação efêmera, em diálogos patrimoniais que ligam memórias
(geológicas, naturais, culturais, econômicas e sociais) e integram uma narrativa
de ocupação e desenvolvimento urbano.
Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai
Khan conseguia discernir, através das
muralhas e das torres destinadas a
desmoronar, a filigrama de um desenho tão fino
a ponto de evitar as mordidas dos cupins.
(Ítalo Calvino, em Cidades Invisíveis)
2. MAS AFINAL, DE QUE CIDADE ESTAMOS FALANDO?
Os primeiros testemunhos arqueológicos de vida urbana no ambiente
mediterrânico remotam a 3500-4000 a.C.; portanto, só há cerca de
6000 anos é que podemos falar de civilização urbana com os seus
ciclos, os seus apogeus e as suas crises.
Massimo Cacciari (2009, p.25)
Rapidamente situados no tempo e no espaço (geograficamente falando),
partimos para uma questão, de ordem conceitual e de fundamental relevância
para o encaminhamento da nossa discussão: afinal, o que chamamos de
cidade? Buscar seu entendimento se torna pertinente para delimitação do
nosso campo de atuação.
Vamos começar com Javier Maderuelo, pesquisador espanhol que
possui uma interessante definição:
La ciudad es un fenómeno complejo que se desarrolla muy lentamente, adquiriendo forma y apariencia características como consecuencia de las condiciones físicas del lugar y de las tensiones generadas por el conjunto de los intereses de sus ciudadanos a lo largo de su historia (MADERUELO, 2001, p.17)
O que ele nos diz é que a cidade é um complexo fenômeno que se
desenvolve lentamente, adquirindo características de formas e aparências
consequentes das condições física do lugar e das tensões geradas pelo
conjunto de interesses de seus habitantes ao longo da história. Forma em
detrimento da necessidade.
Historicamente, a cidade quase sempre foi sinônimo de refúgio,
proteção, sobrevivência. Símbolo máximo da libertação do homem diante da
natureza. Trazia em suas idealizações a promessa de continuidade da frágil
raça humana, como acreditava os medievais, quando os homens livres viviam
dentro dos muros, enquanto os camponeses, do lado de fora, ficavam a própria
sorte. Ainda na pólis grega, a cidade propiciava aos homens livres a
oportunidade de alcançar a imortalidade de pensamento e de ação, e deste
modo ascender acima da servidão biológica (TUAN, 1980, p.172).
Desde as primeiras civilizações, a tentativa de se construir uma cidade
ideal habitou o consciente dos seus habitantes. A cidade ideal de Platão
combinava o círculo com o quadrado, tendo como representação máxima a
mítica Atlântida. A forma celestial do círculo somado ao racionalismo
geométrico do quadrado é a representação perfeita dos ideais pregados pelo
filósofo. No Egito antigo, o planejamento ortogonal baseado nos princípios
cosmológicos figurou entre os complexos arquitetônicos desenhados para
servir aos mortos. Antes da era cristã, em diferentes culturas e épocas, o
cosmos foi largamente representado pela forma retangular. Quando a ordem
circular do céu é trazida para a terra, assume a forma de um retângulo com os
lados orientados para as direções cardeais (TUAN, 1980, p.178).
As cidades européias dos primeiros séculos da era cristã tinham como
característica principal a forma circular, como a Cidade de Deus de Santo
Agostinho (TUAN, 1980, p.180). Pregava que a cidade de seu tempo, da forma
que se constituía, era a imagem da imperfeição. Cabia ao Estado controlar e
vigiar seus habitantes para enfim extrair o pecado dos homens. Viver sob as
rédeas do cristianismo seria sinônimo de habitar uma cidade mais justa,
imagem e semelhança da perfeição Divina. Entre 1150 e 1350, foram
construídas inúmeras cidades fortificadas, porém, comparadas as gigantescas
cidades da Antiguidade, as cidades medievais eram insignificantes em
tamanho e número de habitantes. No oitavo século, por exemplo, a Alemanha
Medieval podia ostentar cerca de 3.000 cidades, mas a grande maioria (cerca
de 2.800) tinham menos de 1.000 habitantes (TUAN, 1980, p.211).
Diante da forte investida do cristianismo em purificar as cidades, dentro
das muralhas, a paisagem estava dominada pelas igrejas. Uma floresta de
campanários perfurava o céu de Londres: dentro do muro que cercava uma
área de aproximadamente dois quilômetros quadrados, havia noventa e nove
igrejas matrizes (TUAN, 1980, p.212). Na mudança de panorama, o vertiginoso
crescimento demográfico transformou a atmosfera da cidade medieval. Se
antes tivemos um significativo êxodo provocado pela queda do Império
Romano, a nova configuração espacial das cidades fortificadas trouxe de volta
o apinhamento, forte atividade comercial, barulho, cheiro e cor produzindo
intensa animação e confusão.
Figura 4 - A lendária ilha-continente de Atlântida foi construída de anéis concêntricos de terra e água. A cidadela estava na elevação secreta mais interna, que era rodeada por uma
sucessão de muralhas redondas.
Figura 5 - Temos poucas evidências dos planos das antigas cidades egípcias porque foram construídas principalmente com material perecível. Um dos exemplos mais conhecido
hoje é o traçado de Akhetaton, exemplo de um planejamento urbano ortogonal.
Se pensarmos como a cidade é vista durante toda a Idade Média, pelo
prisma do cristianismo, temos, na verdade, o esvaziamento do sentido de
proteção, como propôs Santo Agostinho. A cidade se transforma e passa a ser
a imagem da perdição, e, somente com o enfraquecimento do sistema
medieval é que as cidades vão retomar um certo espaço de possibilidades.
Mais do que a Idade Média, a Renascença e o Barroco foram períodos em que
os planejamentos urbanísticos buscavam a cidade perfeita, apesar de poucas
saírem do papel. Forma em detrimento do simbólico.
Figura 6 – Poucos desenhos circulares da Renascença foram realmente construídos. Um exemplo da tradução do ideal para a realidade foi a Palmanova, cidade-fortaleza sob o
domínio de Veneza. Sua construção se iniciou em 1593.
Argan (2005, p.73) afirma que a ideia de cidade ideal sempre esteve
profundamente arraigada em todos os períodos históricos da humanidade,
sendo assim inerente ao caráter sacro a relação institucional com a cidade.
Esse pensamento se confirma na contraposição recorrente entre a cidade
celeste ou divina e a cidade terrena ou humana. Tal dualidade nos leva a crer
que o homem buscou em quase toda sua existência (se o ainda não faz)
denegar o natural como sagrado afim de desmistificar o que não dominava,
sempre em detrimento da construção de um recinto artificial que por diversas
vezes almejou ser sacralizado, ou simplesmente, reduzir a região mitológica da
natureza em espaço sagrado da civilização humana. Ou como sentencia
Argan, a natureza como mundo das causas primeiras e das finalidades últimas.
Quando se fala em cidade, nós que pertencemos às civilizações
urbanas, assumimos sempre uma postura dupla e contraditória em relação a
esta forma de vida associada (CACCIARI, 2009, p.26). De um lado,
concebemos a cidade como lugar de trocas afetivas, relações inteligentes e
seguras. Aprendemos ao longo de nosso desenvolvimento como raça que viver
em grupos se torna mais vantajoso quando o que está em jogo é a
sobrevivência. Através do coletivo preservo o indivíduo e vou construindo os
laços necessários para vencer as adversidades naturais. Se nos primórdios, o
ambiente hostil prevalecia sob nossas frágeis condições humana, a medida
que nos associamos por afinidade desenvolvemos a grande habilidade de viver
socialmente. Os agrupamentos passam a marcar territórios, criando-se um
lugar para se morar, um porto seguro afetuoso e confortável onde se pode
repousar após longa jornada.
Por outro lado, ao adentrarmos no período moderno da civilização
humana, cada vez mais consideramos e queremos que a cidade seja lugar de
negócios, dinâmico, uma máquina que permite a todos estabelecer sem
impedimentos suas relações comerciais.
Todos sabem que, em sua fase inicial, a grande indústria se instalou nas grandes cidades ou em suas imediações, dando lugar a fluxos migratórios que multiplicaram até por dez a população urbana e praticamente destruíram a coesão das comunidades urbanas tradicionais (ARGAN, 2005, p.78).
Para a grande maioria, hoje a cidade como ideal parece declinar diante
das transformações a partir da revolução industrial e suas consequências ao
meio ambiente físico. Mediante a crescente expansão populacional e a
consequente expansão territorial, as cidades crescem de maneira abrupta e
muitas vezes descontrolada. O tão sonhado sentimento de garantias se desfaz
na mesma velocidade que nos distanciamos uns dos outros, afinal, a cada
novo empreendimento imobiliário, a cada novo bairro regulamentado, privilegia-
se a cultura do isolamento como premissa para uma vida “segura e tranquila”.
Não seria exagero afirmarmos que cada casa, prédio ou condômino
habitacional se transformou em pequenos feudos medievais, onde o outro é a
margem; e o coletivo se restringe a sua cercania, o lado de fora do muro.
Quem está dentro, está “livre”.
Temos, na Itália, um caso limite [...], Veneza. Por sua localização especial e por sua configuração, o desenvolvimento industrial foi transferido, como uma solução aparentemente correta, para uma cidade vizinha, Mestre, que cresceu com a rapidez de todas as cidades industriais, mas que justamente por isso, é um verdadeiro monstro urbanístico, um acúmulo puramente quantitativo de instalações industriais e de seus complementos habitacionais (ARGAN, 2005, p.81).
A criação de um novo centro urbano alterou significativamente a relação
da população local com seu lugar de origem, no caso Veneza. Tal
resignificação fez com que a cidade de Mestre adquirisse um peso econômico,
social e demográfico infinitamente superior ao de Veneza, deixando a cidade
histórica exposta a um processo de empobrecimento de funções.
Sob outro viés, mas nem por isso com o olhar antagônico, ao discutir os
não-lugares sob a perspectiva do tempo, Augé (1994), destaca que na
contemporaneidade o fluxo acelerado da informação transforma o ontem em
história alterando a percepção do mundo, o que acaba gerando o sentimento
de que o mundo encolheu. À medida que as referências espaciais se distorcem
e se perdem no entra e sai individualista da mobilidade social, a cidade se
transforma em aglomerados de espaços habitacionais efêmeros e
comprometidos com a solidão. São lugares dos outros sem os outros.
Antes de prosseguir, quero ressaltar que não me cabe, muito menos
pretendo, elevar a discussão sobre as cidades ao nível das práticas
urbanísticas adotadas ao longo do processo histórico de formação dos centros
aqui estudados. A abordagem sobre o problema do urbanismo lá fora e no
Brasil se mostra indissociável à medida que evoluímos no entendimento do que
nos cabe nesta pesquisa, que é se apropriar da contextualização histórica
desses territórios. Entender, mesmo que superficialmente das teorias urbanas
que influenciaram a construção dessas cidades colabora em muito no
pertencimento simbólico e peculiar que esses lugares possuem.
Nesse sentido, podemos considerar que o que chamamos de
urbanização vem da definição que Argan traz em seu livro "A história da arte
como história da cidade", ou melhor, não seria de fato uma definição, mais
precisamente seria uma conceitualização, já que desconsidera a discussão
sobre o urbanismo ser ciência ou arte. Para o autor, o urbanismo é uma
disciplina que supera qualquer esquematismo tradicional, e por isso, podemos
dizer que se compõe tanto de componentes científicos, no mais sentido
tradicional do termo, como também é formado por componentes sociológicos,
já que estuda as estruturas sociais e seus desenvolvimentos previsíveis; como
também possui componentes políticos, históricos e por fim, componentes
estéticos, uma vez que termina sempre na determinação de estruturas formais
(ARGAN, 2005, p.211).
Ora, se partimos do pressuposto que o urbanismo não se enquadra em
uma estrutura sistêmica e estática, estamos considerando que se trata de um
processo onde o objeto final é sempre a existência humana como existência
social.
Milton Santos (2012), trabalhando sob uma perspectiva da América do
Sul, considera que após a Segunda Guerra Mundial uma nova economia
internacional se apresentou com algumas características muito marcantes:
internacionalização e multiplicação das trocas, preponderância da tecnologia e
a concentração dela decorrente, solidariedade crescente entre países,
modificações da estrutura e força do consumo.
A urbanização dos países subdesenvolvidos foi mais recente e mais rápida, efetuando-se num contexto econômico e político diferente daquele dos países desenvolvidos. Tem características originais, que a diferenciam nitidamente da urbanização deste último grupo de países (SANTOS, 2012, p.21).
Nos países subdesenvolvidos, a inclinação em consumir como os
países ricos, atraiu cada vez mais os homens para as cidades, o que chamou
de “êxodo da miséria e da esperança” (SANTOS, 2012, p.24). Mesmo para o
Brasil que possuía certa urbanização antes da Segunda Guerra, essas cidades
não passaram por um processo “natural” de formação econômica, no qual o
desenvolvimento da indústria cumpriu com a passagem pelos setores
primários, secundários e terciários.
O processo de urbanização levou ao nascimento de numerosas
pequenas cidades, sendo para Santos, um dos fenômenos mais característicos
e negligenciados da floração urbana nos países subdesenvolvidos. A formação
dessas pequenas cidades no passado foi majoritariamente impulsionada por
uma economia rural especifica, que com o passar do tempo foram perdendo
sua importância face ao declínio da indústria local. Assim, a população
economicamente excedente parte em um movimento migratório em direção às
grandes cidades. Esse fenômeno colabora diretamente na explosão
demográfica dos grandes centros, que por sua vez desencadeia naturalmente
uma transformação agressiva na paisagem urbana.
Paralelo ao problema do deslocamento populacional interno, Freitag
(2006) aponta outra consequência no desenvolvimento urbano das cidades
brasileiras. Pautadas nos modelos urbanos norte-americanos, afirma que a
partir da segunda metade do século XX, o Brasil investe na verticalização das
construções e no favorecimento do transporte urbano voltado para o
automóvel. Enquanto as grandes cidades europeias caminhavam na
consolidação de um transporte público coletivo eficiente, nós, do lado de cá,
demos preferência ao transporte público rodoviário, multiplicando o uso de
carros particulares, que começaram a congestionar nossos centros urbanos. E
vai mais além.
[...] Isso modificou a fisiognomia das grandes cidades e capitais, associando-se aos congestionamentos de trânsito a poluição do ar e a irratabilidade dos motoristas. Praticamente desapareceu o flâneur. As calçadas de pedestres cederam lugar a estacionamentos autorizados e clandestinos. A excitação da vida mental (Simmel) deu lugar à irritação descontrolada do motorista estressado. Esse desenvolvimento urbano destruiu formas de urbanidade, civilidade, solidariedade entre moradores brasileiros (FREITAG, 2006, p.131).
Em uma visão interna do problema que se transforma essas
megacidades, como aponta Brissac (2004, p.397), a mudança de escala com
brutal verticalização, a criação de grandes complexos dotados de infra-
estrutura autônoma e a reconfiguração urbanística de regiões inteiras, são
indicativos de uma nova etapa do processo de reestruturação da espacialidade
metropolitana. A formação de megalópoles7.
Entendemos que quando Brissac fala em cidades, sua referência é São
Paulo, que extrapola as definições clássicas do termo e se encaixa muito mais
confortavelmente na definição de megalópole. Nossa realidade é outra.
Partimos de uma experiência limitada pelas vias urbanas de uma cidade que
7Megalópole, segundo Freitag (2006, p.153) refere-se a uma cidade gigante (megacidade) com
a população em torno de 10 milhões de habitantes ou mais, cujo crescimento vertiginoso aconteceu nas últimas três ou quatro décadas do século XX, período que a população urbana se multiplicou de cinco a oito vezes.
não deve ser equiparada com a capital paulista. Mesmo assim, reconhecemos
certa familiaridade nos conceitos propostos por ele. Vitória não é metrópole no
sentido brissaquiano do termo, mas concebe traços e fraturas de uma grande
cidade, conseguindo abarcar e dar conta do que propomos na discussão sobre
a relação arte e cidade. Principalmente por já compartilhar de grandes vazios
urbanos carentes de significação enquanto espaços afetivos de urbanidade e
vivencia.
Sabemos também que, apesar de certo crescimento descontrolado da
população e o alto investimento imobiliário, as duas capitais-ilhas (Vitória e
Florianópolis) possuem grave limitação geográfica natural e administrativa.
Nessa perspectiva, o pensamento de Cacciari (2009, p.31) complementa ao
confirmar que, em detrimento da falta de espaço e da necessidade de
progresso, são nesses centros metropolitanos que todos os lugares da cidade
são transformados e projetados em função de uma relação básica de
produção-troca-mercado. Como são os exemplos do Novo Arrabalde em Vitória
e a o Aterro Sul de Florianópolis8.
[...] Desaparecem os lugares simbólicos tradicionais, sufocafos pela afirmação dos lugares de troca, expressão da mobilidade da cidade [...] É assim que nascem os centros históricos: enquanto a cidade se desenvolve, agora em conformidade com as presenças de produção e de troca – dominantes e centrais - a memória torna-se museu e cessa, assim, de ser memória, pois a memória tem sentido quando é imaginativa, recreativa, caso contrário, transforma-se numa clínica onde podamos as nossas recordações (CACCIARI, 2009, 32).
Mas as cidades que estamos buscando não são apenas conglomerados
de ferros fundidos e concretos armados. É preciso subverter o caminho
apocalíptico apontado pelas estatísticas e censos sócio demográficos. Ficar
preso a essa leitura restringiria nosso campo de atuação e de nada contribuiria
para o desenvolvimento do trabalho. Nossa questão é outra. Aqui, a cidade é
muito mais do que um grande barril de pólvora prestes a ir pelos ares. Ela é
possibilidade de novas leituras estéticas. É ambiente carregado de significado
histórico e sentimental.
8 Destacamos aqui estes dois exemplos de cidades, porque as mesmas serão fundamentais
para a discussão do objeto desta dissertação, a obra” Caminhos das Águas”, de Piatan Lube, a qual teve edições nestas duas metrópoles.
Apesar de já termos afirmados que a cidade é fruto dos interesses
sociais e econômicos que dela se espera, Maderuelo vai além. Fala que a
configuração que as cidades adquirem é apenas resultado de uma complexa
equação entre as características do sítio natural e as intenções daqueles que o
transformam. Afirma, ainda no mesmo texto, que se trata de um “conceito de
cidade”, e que a seu ver está em declínio na atualidade. Declínio
principalmente porque defende a conservação de uma cidade onde as relações
sociais se desenvolvam e se construam entre e através dos seus habitantes, e
não por meio do desenvolvimento tecnológico, como exemplifica no caso dos
automóveis (2001, p.18).
Por mais provocador que seja a discussão, não nos interessa confrontar
o antes com o agora, muito menos desvalorizar a modernização do cenário
urbano. Interessa-nos muito mais entender a cidade como materialização das
expressões dos poderes econômicos, sociais e políticos; reflexo das maneiras
de ser, sentir e habitar de seus cidadãos, como uma grande teia em
permanente construção e desconstrução, se (re)estruturando incessantemente
no ritmo de seus passantes. Talvez seja o que Argan (2005) procura esclarecer
quando defende a manutenção das funções urbanas diante da desordem da
cidade moderna. Não se trata, porém de uma defesa inibidora dos núcleos
antigos. Mais do que isso. Trata-se da defesa de uma essência da cidade como
instituição, onde o próprio conceito de cidade como acúmulo ou concentração
cultural não deve ficar relacionado aos interesses dos conservadores, muito
menos aos dos renovadores inveterados. Nem um nem o outro.
Perceber enfim, que a cidade como testemunho das histórias de seus
habitantes nos leva para o entendimento que ela é fruto de uma construção
coletiva, e por isso, marco de manifestações culturais. Nelson Brissac é outro
que concebe as cidades como lugar de histórias, já que se configuram como
ele próprio define como paisagens-passado. A seu ver, cidade de histórias
dotadas do peso e da permanência das extraordinárias paisagens, horizontes
de pedra, onde o mais moderno convive com o passado, o futuro com a
antiguidade. Um solo arcaico, juncado de vestígios e lembranças. São de fato,
visões da cidade como um sitio arqueológico (PEIXOTO, 2004, p.13). A cidade
como paisagem.
2.1 O PROBLEMA DA PAISAGEM
Ao analisar as diferentes correntes de pensamento que abordam o tema
da paisagem e diante das inúmeras conceitualizações epistemológicas do
termo, eleger aquela que mais se aproxima do nosso objeto de estudo facilita e
contribui de maneira efetiva no entendimento da pesquisa como um todo. É
definir e deixar claro o que aqui chamamos de Paisagem.
Tradicionalmente podemos dividir a paisagem em duas esferas: a
paisagem natural e a paisagem cultural. Grosso modo, entende-se como
paisagem natural o conjunto de elementos primitivos da natureza tais como a
flora, a fauna, o solo, os acidentes de relevo; enquanto a paisagem cultural
inclui todo processo de humanização dessa primeira, incluindo as modificações
realizadas nos espaços rurais e urbanos. Milton Santos (1988, p.23) define que
a paisagem artificial (ou cultural) é a paisagem transformada pelo homem,
enquanto grosseiramente podemos dizer que a paisagem natural é aquela
ainda não mudada pelo esforço humano.
Um belo exemplo de descrição de uma paisagem natural faz Charles
Frederick Hartt, em 1870, quando passa pela cidade de Vitória.
O Pão de Açúcar é um morro de gnaisse9, escarpado e irregularmente cônico de 400 a 500 pés de altura, pendendo para o lado norte e apresentando frente ao canal uma encosta lisa e quase vertical. Nessa face, pela projeção de uma ponta de terra do lado norte, o canal se estreita bruscamente, ficando com uma largura de 600 pés somente. Passando o Pão de Açúcar o canal se alarga numa espaçosíssimo porto e, do lado norte, num belo anfiteatro entre morros, está construída a cidade de Vitória (HARTT, 1941, p.97).
Interessante notar que chama o Morro do Penedo de Pão de açúcar. A
princípio não encontramos nenhuma referência explicitada sobre o porquê
desse batismo ao morro capixaba, mas podemos pressupor que Hartt fez direta
analogia com a famosa formação rochosa do Rio de Janeiro, principalmente se
considerarmos a familiaridade morfológica e a constituição mineral dos dois
relevos.
9Gnaisse é uma rocha de origem metamórfica, resultante da deformação de sedimentos
arcósicos ou de granitos. Devido à sua grande variação mineralógica e seu grau metamórfico, é amplamente empregada como brita na construção civil e na pavimentação, além do uso ornamental.
Quando o geógrafo fala do porto situado na cidade de Vitória/ES, por
exemplo, pelo contexto que se dá a descrição, está falando de uma paisagem
ainda predominantemente natural, apesar de o porto ser um ambiente
construído pelo homem, repleto de significância socioeconômico e dotado de
elementos típicos de uma cidade portuária, como os barcos, o cais e os
armazéns. No caso específico do ambiente urbano, para se criar um panorama
mais preciso daquilo que se pretende falar, é necessário que seja investigado a
configuração da paisagem através de sua temporalidade, espacialidade e o
contexto no qual está inserida, tanto sob o viés geográfico quanto histórico.
Compreender a paisagem em um sítio urbano, em geral, não quer dizer
anular os elementos que a ela compõe independente da natureza de cada um.
Por trás de uma descrição esquemática que pretende abarcar a diversidade
paisagística de um ambiente, está a noção que os elementos físicos de
qualquer paisagem estão entrelaçados, ligados entre si.
Assim, como a capital do Espírito Santo, tantas outras cidades
brasileiras possuem uma composição paisagísticas dotada de elementos que
podem ser facilmente identificados como naturais e culturais. Até mesmo o
skyline de São Paulo que possui a perder de vista os grandes edifícios no
horizonte de concreto pode se dar ao luxo de ter um belo pôr do sol, pelo
menos nas tardes em que a poluição atmosférica está em seu menor nível.
Milton Santos vai além quando nos provoca ao afirmar que se no passado
havia a paisagem natural, hoje essa modalidade de paisagem praticamente não
existe mais.
Se um lugar não é fisicamente tocado pela força do homem, ele, todavia, é objeto de preocupações e de intenções econômicas ou políticas. Tudo hoje se situa no campo de interesse da história, sendo, desse modo, social (SANTOS, 1988, p.23).
Vale ressaltar que estamos com essas colocações apenas reforçando
que ao direcionar a discussão para a definição de uma paisagem tipicamente
urbana, não estamos de maneira alguma ignorando as partes de seu todo que
não sejam criados pela mão do homem. Os elementos naturais estão lá, em
menor ou maior escala, não importa; e por isso mesmo podemos considerá-los
como parte constituinte do que tanto chamamos de paisagem urbana. Por que
então não apenas chamarmos de Paisagem?
Maderuelo, em seu texto “Aquello que llamamos paisaje” (2013, p.24)
traz que o conjunto de elementos que surgiu de forma natural se encontra
fisicamente “trancado” por leis que ditam uma natureza alheia aos caprichos
humanos. Em qualquer lugar que formos encontraremos árvores cujas raízes
estão entrelaçadas em rochas. Rochas que, segundo suas propriedades físicas
encontram-se apoiadas umas nas outras sob a implacável lei da gravidade
universal, onde, por sua vez, correm os rios que cortam o território
aproveitando as diferenças de nível que oferecem esses extratos.
Mas só podemos falar em paisagem quando existe “trabazón”, algo
como sendo uma união ou estreita relação entre as coisas (MADERUELO,
2013, p.24). Quando as diversidades que formam os diferentes elementos que
se oferecem a nossa contemplação estão entrelaçadas. Nesse sentido, não se
trata de uma simples relação física. Existe algo que vai além daquilo que nos
oferece a mãe-natureza. Por traz de qualquer composição de elementos
naturais está um certo sentimento misterioso que envolve o lugar. Enquanto
metáfora, o sentido da palavra mistério adquire em seu deslocamento o
conceito de poético como revelação de verdades ocultas.
Se aceitarmos essa transferência conceitual de termos, entendimentos e
percepções como propõe Maderuelo, perceberemos que essa “atmosfera
invisível” que cerca os lugares é revelada e formalizada através da poética, do
subjetivo e do interpretativo. Em outras palavras, de fato só há paisagem
quando há interpretação e está sempre será subjetiva, reservada e poética, ou
se quiserem, estética.
Una vez superada la duda metafísica, el paisaje empieza a ser un tema interesante de reflexión filosófica. El paisaje, en cuanto Idea que representa al medio físico, es lo otro, algo que se encuentra fuera de nosotros y nos rodea, pero en cuanto constructo cultural es algo que concierne muy directamente al individuo, ya que no existe paisaje sin interpretación (MADERUELO, 2013, p.27).
Justamente por não existir paisagem sem interpretação, é necessário
estabelecer uma ponte entre múltiplas descrições plásticas, literárias e
científicas que o termo suscita. Ainda segundo Maderuelo, durante a
modernidade vanguardista, a paisagem havia caído em uma região incerta e
esquecida como gênero obsoleto da pintura, como uma série de receita para
aplicação dos urbanistas e como uma metodologia de analise para geógrafos,
ou simplesmente havia se extraviado como cavalo de batalhas das
reivindicações dos grupos de ecologistas. Nos últimos anos, o interesse pelo
termo e pelo tema ressurge em diferentes aspectos da vida cotidiana, sendo
aplicado diariamente em distintas situações, acentuado o entendimento que a
paisagem não é um ente cerrado em si mesmo, já que se oferece em muitas
faces como tema de estudo.
Contudo, diante dessa dilatação conceitual que o termo paisagem
sofreu, corremos o risco de não sabermos exatamente a que nos referimos e
nem quando usarmos. A arte, através de sua necessidade de representação
nos ensinou a contemplar e valorizar os cenários da natureza, o que contribuiu
decisivamente na configuração de um determinado conceito de paisagem.
Montanhas, rios, bosques e assentamentos humanos podem ser objetos de
narrações literárias, pinturas e representações fotográficas. Elementos que
constituem um substrato físico do qual entendemos como paisagem. Porém,
para que sejam assim entendidos, para que sejam enquadrados dentro de uma
categoria nomeada de paisagem, é necessário que exista um olho que
contemple e se gere um sentimento.
El paisaje no es, por lo tanto, lo que está ahí, ante nosotros, es un concepto inventado o, mejor dicho, una construcción cultural. El paisaje no es un mero lugar físico, sino el conjunto de una serie de ideas, sensaciones y sentimientos que elaboramos a partir del lugar y sus elementos constituyentes. La palabra “paisaje” [...] reclama también algo más: reclama una interpretación, la búsqueda de um carácter y la presencia de una emotividad (MADERUELO, 2013, p.28)
Em outras palavras, através de uma construção do termo por meio de
uma relação interdisciplinar, percebe-se que a paisagem é uma relação
subjetiva entre o homem e o meio que vive, relação que se estabelece através
do olhar10. Ela, a paisagem, não é de fato a natureza muito menos aquilo em
que se constrói através da ação humana, tampouco é o meio em que vivemos.
A paisagem é uma construção, uma elaboração mental que os homens
realizam através dos fenômenos da cultura.
10
Não descartamos aqui os conceitos de paisagem sonora, olfativa, virtual, mas estes não são temas que corroboram para a discussão nesta dissertação.
El paisaje, entendido como fenómeno cultural, es una convención que varía de una cultura à otra, esto nos obliga a hacer el esfuerzo de imaginar cómo es percibido el mundo en otras culturas, en otras épocas y en otros medios sociales diferentes del nuestro (MADERUELO, 2005, p.17).
Olhando para nosso entorno nos perceberemos imersos em diversos e
diferentes ambientes. Habitamos em lugares muitas das vezes diferentes
daqueles que convivemos e realizamos nossas atividades vitais para
sobrevivência: espaços domésticos, recreativos, esportivos, econômicos,
públicos, urbanos, rurais, entre tantos outros. Para Maderuelo, estamos por
tanto constantemente submersos em “paisagens”, cuja morfologia
diferenciamos e constantemente usamos o próprio termo para nomeá-los.
Assim, o autor afirma que essa imersão na paisagem nos permite assegurar
que pertencemos a uma “cultura paisagista”. E deixa a pergunta: “Afinal, qual
cultura não o é?” (MADERUELO, 2005, p.17)
Ao exercitarmos a identificação do nosso entorno, nos percebemos em
um ambiente urbano, onde histórias e estórias se desenrolam na cidade, o que
nos leva a crer que falar em paisagem urbana nos parecerá redundante, pelo
menos é o que nos sugere as palavras de Maderuelo.
Mas vamos lembrar que quando falamos em cidade não é qualquer
cidade que nos interessa. Estamos falando de cidades-ilhas, ou seja, sítios
naturais reconfigurados por um processo de urbanização brutalmente
impositivo. Água versus concreto. Natureza versus homem. Passado versus
presente.
Historicamente o homem se sente atraído pelo desconhecido e pelo
sentimento de conquista e transformação. Segundo Yi-fu Tuan apenas os seres
humanos ostentam “uma capacidade altamente desenvolvida para o
comportamento simbólico” (1980, p.15), por mais que exista um parentesco
genético, a ciência ainda não conseguiu preencher a lacuna que nos separa
dos primatas justamente por apresentarmos uma linguagem abstrata de sinais
e símbolos, características da espécie humana. Através de uma complexa
linguagem de sinais e símbolos, construímos mundos mentais para nos
relacionarmos com o mundo externo e entre nós mesmos. Somos construtores
de ambientes artificiais. Como nos fala Santos:
A paisagem é um conjunto heterogêneo de formas naturais e artificiais; é formada por frações de ambas, seja quanto ao tamanho, volume, cor, utilidade, ou por qualquer outro critério. A paisagem é sempre heterogênea. A vida em sociedade supõe uma multiplicidade de funções e quanto maior o número destas, maior a diversidade de formas e de atores. Quanto mais complexa a vida social, tanto mais nos distanciamos de um mundo natural e nos endereçamos a um mundo artificial (SANTOS, 1988, p.23).
À medida que a humanidade se desenvolve tecnologicamente,
produzimos cada vez mais instrumentos de artificialização da natureza. Se
antes as ferramentas de trabalho eram complementos da ação do homem,
caminhamos no sentido de transformar os instrumentos de produção em
próteses da terra; como as estradas, pontes e portos são acréscimos a
natureza.
O que buscando, ao trazer Milton Santos para essa discussão, é
substanciar a afirmativa que a paisagem que consideramos não se cria de uma
única vez. Como ele próprio diz, ela é fruto de um processo de acréscimos,
substituições; fruto de uma herança de muitos momentos diferentes. Ou
parafraseando Argan, trata-se do resultado da complexa relação de múltiplos
passados-presentes.
Mas vamos retornar ao ponto que de fato nos interessa quando nos
dispusermos a explorar o problema da paisagem urbana. Vimos, que a priori,
por ideologia, as cidades se transformam em paraísos artificiais, ou seja,
paisagens passíveis de contemplação. Em Lynch (2011), a paisagem é
entendida como um conjunto de elementos dos quais constituem a fisionomia
das cidades, do qual esperamos que nos dê prazer ao contemplá-la, ou pelo
menos que nos de condição de questiona-la, confronta-la.
Uma cidade-ilha é de fato uma dicotomia paisagística do tipo cultura-
meio ambiente. Aceitamos com normalidade a máxima que o selvagem
(natural) é antítese ao urbano (cidade), constructo cultural. Mas, como proceder
diante desse ambiente paradoxal da ilha? Em uma relação horizontal temos
uma tríade perceptiva na qual os extremos são basicamente desenhados pela
montanha e pelo mar, tendo os casulos verticais de concreto como o “recheio”
dessa singular paisagem, assim tem: montanha, mar e concreto.
Tuan quando reflete sobre as relações afetivas e culturais que se
constroem a partir da relação do homem com o seu meio ambiente, traz o
exemplo do povo indonésio para o qual a montanha e o mar são polaridades
eternas. Mais do que isso. São pontos cartográficos essenciais de locomoção.
E sobrevivência. Em uma ilha, qualquer formação geológica é ponto referencial
para uma navegação segura e eficiente. Saber decifrá-lo e desenhar com
precisão sua relação com o mar pode ser a chave de uma permanência
duradoura dentro do território. Em meio ao caos do complexo urbano, enquanto
a cidade e o selvagem são antinomias, paradoxos mutáveis na dinâmica
histórica do mundo ocidental, temos a privilegiada posição dos elementos
físicos naturais que são naturalmente deflagradores de infinitos estímulos
sensoriais, ao menos para aqueles que assim se permitem influenciar, para
aqueles que de fato param para prestar atenção. O habitat urbano está repleto
de ambientes retangulares, linhas retas; enquanto a natureza e o campo
carecem de retangularidade. Na paisagem da cultura primitiva até mesmo os
abrigos podem ser arredondados como as colméias (TUAN, 1980, p.87)
Retomemos ao caso da Ilha de Vitória, por exemplo. Dotada de um
maciço rochoso no centro cartográfico da ilha, essa formação determina a
forma de configuração da cidade, não apenas pelas limitações espaciais que
impõe ao processo de urbanização, como também funciona como bússola para
os habitantes que procuram “intuitivamente” situar seus corpos em um
momento de breve devaneio urbano. Quando nos atentamos para a função
geográfica do selvagem permanente nas cidades insulares como Vitória e
Florianópolis, somos tomados por sentimentos muitas vezes difíceis de
transcrever, ou muitas vezes apenas explicados pelo misterioso. Ainda hoje,
em pleno século XXI, somos tomados pelo sentimento do inacessível quando
vislumbramos no infinito urbano fragmentos de nossa ancestralidade. Ou seria
pelo primitivo instinto?
Figura 7 - Vista Geral da Cidade de Vitória, provavelmente do século XVIII, onde é possível notar a referencia cartográfica da cadeia rochosa em relação a cidade que se desenvolve no
estreito trecho insular da ilha. Fonte: Arquivos de pesquisa de Piatan Lube
Figura 8 – Vista aérea da ilha de Vitória/ES onde é possível perceber a paisagem composta por três ambientes diferentes: montanha – cidade – mar.
Fonte http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1499573&page=8. Acessado em 20 de Janeiro de 2015
Os marcos se tornam mais fáceis de identificar e mais passiveis de ser escolhidos por sua importância quando possuem uma forma clara, isto é, se contrastam com seu plano
de fundo e se existe alguma proeminência em termos de sua localização espacial (LYNCH, 2011, p.88).
Estamos aqui (re)afirmando e considerando os monumentos naturais
dessas cidades como marcos11, pontos referenciais externos ao observador.
Como nos indica Lynch, os mais familiarizados com a cidade parecem confiar
cada vez mais nesse tipo de referência, já que tendem a preferir a
singularidade e a especialização dessas formas que tem no contraste entre o
plano de fundo e a figura o seu fator principal.
Acreditamos que tanto as reflexões de Maderuelo quanto as de Tuan
coadunam com a ideia de que cada povo possui sua relação direta com o meio
que vive, ou com a paisagem que constrói para si. Mas, há noções e formas
relacionais que ultrapassam a barreira da polaridade do mundo e se firmam
como lugar ideal de aproximação cultural, como é o caso dos povos que
habitam uma ilha e à transformação em seu “habitat natural”.
A ilha parece ter um lugar especial na imaginação do homem. A sua importância reside no reino da imaginação. No mundo, muitas das cosmogonias começam com o caos aquático: quando a terra emerge, necessariamente é uma ilha. A primeira colina também foi uma ilha e nela a vida começou. Em inúmeras lendas a ilha aparece como a residência dos mortos ou dos imortais. Além de tudo, ela simboliza um estado de inocência religiosa e de beatitude, isolado dos infortúnios do continente pelo mar (TUAN, 1980, p.135).
Conforme pudemos observar na breve história da Cidade de Vitória
contada no capítulo anterior, os colonizadores "abandonaram" a parte
continental do território ao procurar refúgio diante dos ferozes ataques
realizados pelos índios nativos da região. Diante da iminência de serem
exterminados, a grande ilha foi local seguro para refazimento dos planos de
territorialização da nova terra descoberta.
A paisagem muda à medida que as pessoas adquirem novos interesses,
sejam eles de ordem social, econômico, político, territorial ou cultural. Mas
quando surgem, continuam a surgir do meio ambiente que os rodeia, já que
ele, uma vez percebido (o meio ambiente), deixa de ser negligenciado e passa
a ter novo sentido. Se não encontramos a paisagem a qual nos identificamos,
11
“Em geral, são um objeto físico definido de maneira muito simples: edifício, sinal, loja ou montanha. (...) Podem estar dentro da cidade ou a uma distancia tal que, para todos os fins práticos, simbolizam uma direção constante”(LYNCH, 2011, p.53)
buscar a melhor forma de relacionamento é o caminho mais curto. Queremos e
vamos sempre ir ao encontro da paisagem que melhor nos possibilita
(con)viver, e quem sabe, pelo menos em nosso caso, seja a arte a ponte esse
o mundo que temos e o mundo que idealizamos.
2.2 DA CIDADE A ARTE UM OLHAR BASTA
"A cidade favorece a arte, é a própria arte".
É citando Lewis Mumford que Argan (2005, p.73) inicia seu capítulo “A
cidade ideal e a cidade Real", para logo de inicio deixar clara a estreita relação
entre o fazer história da arte e o fazer história da cidade. Como ele próprio
continua, ela, a cidade, não é apenas um invólucro ou uma concentração de
produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma.
Como, então, entender a cidade pelo olhar da arte?
Por mais que exista um diagnóstico “padrão” para o futuro territorial dos
complexos urbanos, também é sabido que cada cidade possui particularidades
e especificidades que fazem suas engrenagens serem únicas, que nos
possibilitam enxergá-las com olhos mais delicados, ou como em nosso caso,
possibilitam realizar uma leitura poética do que o campo da arte entende sobre
o conceito “cidade”. Nesse sentido a definição de cidade parte de uma leitura
histórica do seu processo de formação como busca de reconhecimento dos
caminhos trilhados até chegar ao ponto da busca pela apropriação de uma
realidade urbana que podemos chamar de nossa.
Resgatando as discussões anteriores sobre a cidade e sua percepção
através da paisagem, iniciamos agora estabelecer como nos colocamos, ou
pelo menos, como enxergamos o papel do sujeito nessa teia de relações
urbanas. Entendemos que seja fundamental partir de uma leitura universal
para, pelo menos, tentar dar conta do nosso microcosmo. Estamos falando de
uma busca por um reconhecimento ontológico do termo, ou simplesmente
sentir-se parte. Condição fundamental no processo de significação do lugar que
habitamos. Afinal, habitar é ser-estar no mundo.
Um dos dilemas pós-modernos apontados por Cacciari (2009, p.33), é
quando nos diz que não habitamos mais as cidades. Habitamos territórios cuja
métrica já não é espacial; já não existe qualquer possibilidade de definir eixos
espaciais precisos. Se antes os sítios eram divididos por espacialidades
palpáveis, como territórios não habitados ou zonas rurais, hoje dificilmente
conseguimos distinguir os limites entre as cidades que configuram uma região
metropolitana por exemplo. Lynch (2011, p.52) define que os limites “são os
elementos lineares não usados ou entendidos como vias pelo observador”.
Fala em quebra de continuidade, como as praias, os rios, ferrovias e até
mesmo espaços em construção como as áreas industriais que circundam
muitas zonas metropolitanas. Se formos diminuir o foco e adentrarmos nas
estruturas urbanas, ai sim o problema se agrava. Entre os bairros que compõe
uma cidade muitas das vezes os que os separam são uma ruela ou um beco,
elementos que se interpenetram e se sobrepõem regularmente.
Com esse pensamento nos chama a perceber que não se trata de uma
materialidade visível que o verbo habitar facilmente nos remete.
[...] O habitar não tem lugar lá onde se dorme e, por vezes, se come, onde se vê televisão e se diverte com o computador de casa; o lugar do habitar não é o mero alojamento. Só uma cidade pode ser habitada; mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser habitada, ou seja, se não “der” lugares. O lugar é o sítio onde paramos: é pausa – é análogo ao silêncio de uma partitura. Não há música sem silêncio [...] (CACCIARI, 2009, p.35).
Fala de uma transposição geográfica e física quando afirma que o
desenvolvimento da metrópole para território não pode ser programado. Não se
trata, contudo, de uma incapacidade técnica ou de uma vontade política, e sim
da simples impossibilidade de programação dos limites administrativos, que
mesmo existindo são todos artificiais e fictícios. Estamos falando de uma
diluição dos limites tradicionais que até mesmo a carga simbólica que o termo
cidade carrega em si não suporta mais dentro de uma região metropolitana, por
exemplo. Onde começa e termina uma cidade? Em uma avenida? Uma
esquina? Ou quem sabe em um olhar?
Com o devido cuidado e sem ter a intenção de estender a longos
parágrafos a discussão12, podemos afirmar que habitar não se trata de um
estado de ter residência, morar em uma construção, como dois corpos
independentes. Mas sim, estabelecer um modo no qual o homem, ao
12
No capítulo 03 desta dissertação voltaremos a abordar a temática do habitar através da arte.
desenvolver possibilidades de uma relação ser-no-mundo 13, constrói o mundo
que o circunda. Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de
que se ocupa […] “a ocupação se concentra no único modo ainda restante de
ser-em, ou seja, no simples fato de demorar-se junto a” (HEIDEGGER, 1954,
p.01). Perceber e responder o que nos faz ser parte, porque não podemos
imaginar uma natureza do ser (essência) sem considerar o seu entorno.
Em um claro (e breve) exercício de flexão do pensamento heideggeriano
nos interessa sua preocupação na questão do ser em conjunto enquanto tal e
como esse ser se relaciona com o todo, em uma proposição dialética entre o
interior e o exterior.
Usufruímos de sua noção existencial fenomenológica, baseada na
posição do homem no mundo enquanto ser ativo constituinte do todo, para
entender as engrenagens que o leva a construir sua relação memorialística
através da arte com a cidade e sua respectiva a paisagem urbana. Essa torção
filosófica contribui no desenvolvimento da pesquisa quando abordamos a
problemática da memória na arte pública. Diante do exposto, podemos afirmar
que, ao paço que (re)construímos o nosso entorno, nossa realidade, entramos
em constante estágio de habitação daquilo que nos faz parte. Imersão.
Completude.
Vejamos, por exemplo, a obra “After Banhof Video Walk”, dos artistas
Janett Cardiff e George Miller. Desenvolvido para a Documenta de Kassel, de
2013, o trabalho foi projetado para acontecer em uma antiga estação ferroviária
da Alemanha, em Kassel, e consiste em um vídeo de 26 minutos que é
“projetado” em um Ipod que o espectador retira em uma cabine localizada
dentro da estação.
Guiado pelo vídeo e pelas vozes de Cardiff e Miller, o espectador-
usuário-transeunte passa a se relacionar com a estação e a vaguear por uma
paisagem que é tanto ficção quanto realidade. Fala-se em um perturbador e
misterioso mundo14, onde os participantes ao assistirem as cenas na pequena
tela do aparelho eletrônico, sentem a presença do que vêem ao se
13
Com o conceito de ser-no-mundo Heidegger pretende caracterizar a simultaneidade de mundo e homem, mostrando que a existência do homem recebe seu sentido da sua relação com o mundo e que este obtém sua significação através do homem. (FERREIRA, Acylene Maria Cabral. O destino como serenidade). 14
Em uma tradução livre, esse trecho descritivo da obra foi adaptado do site dos artistas.
posicionarem no mesmo local que tudo foi filmado. E quando buscam
enquadrar o aparelho com a cena que se desenrola, tentam seguir os mesmos
movimentos como se fossem o operador da câmera, causando estranha
sensação de deslocamento temporal. Nesse momento, passado e presente se
cruzam em um espaço paralelo criado pelos artistas, onde se discuti uma
memória de um passado nem tão distante assim. Mais do que isso. Fala,
também, de uma memória paisagística típica de uma cidade modernizada ao
evidenciar uma relação nem sempre percebida que o usuário da estação
ferroviária tem com seus pares e os aparelhos urbanos que utiliza. E que só
percebemos a ausência quando participamos do trabalho.
Figura 9 – Janett Cardiff & George Miller - After Bahnhof Video Walk - Documenta de Kassel, 2012. Foto Malvina Sammarone
Assim, habitar se faz através de uma relação sensível com o mundo
(fazer arte). Habito porque me sinto parte do que me proponho a transformar.
Reconfiguro. Vejo o que ninguém vê. Ou quando vejo o que todos veem meu
olhar extrai nuanças e detalhes que possivelmente passaram despercebidos
pela grande maioria. A cidade para mim é campo fértil de possibilidades
infinitas. O skyline urbano é como uma paisagem impressionista explodindo em
movimentos multicoloridos. Retomando Tuan, talvez esse skyline urbano se
aproxime da experiência espacial dos habitantes das grandes florestas
tropicais: onde a linha do horizonte, o infinito, é barrada pelos troncos de uma
mata fechada, quando na verdade não há horizonte, e sim uma grande
carência de marcos visuais (TUAN, 1980, p.91).No caso das cidades, nossas
árvores são de concreto, e vislumbrar o horizonte se transforma em exercício
de imaginação diante de truncadas e inúmeras ruas e avenidas. Talvez o mais
próximo que consigamos chegar, seja no infinito perspectivo arquitetônico.
Por isso que, quando Lynch constrói a ideia de que olhar para a cidade
pode dar um prazer especial, por mais comum que possa ser o panorama, ele
deixa claro que ao mudarmos a perspectiva do olhar passamos a enxergá-la
como uma grande obra de arte temporal, como ele mesmo define. Temporal
porque não aceita padrão como outras artes, temporal porque a cidade é vista
sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis. “A cada instante, há
mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário
ou uma paisagem esperando para serem explorados” (LYNCH, 2011, p.01).
Rykwert, ainda na introdução do seu livro “A sedução do lugar”, faz
interessante relato. Desde a fase acadêmica questiona o conjunto de
ensinamentos recebidos sobre a natureza racional dos assentamentos
urbanos, “assim como a ideia de que a cidade é moldada por forças
impessoais”. Para ele, outras noções, sentimentos e desejos comandam os
projetistas e construtores, não relacionando o crescimento das cidades apenas
ao que os economistas ensinavam. Acredita que a cidade seja um “artefato
almejado, um constructo humano em que muitos fatores conscientes e
inconscientes desempenham seu papel” (RYKWERT, 2004, p.05).
Mesmo reconhecendo a intenção de distanciamento na construção dos
edifícios corporativos e dos prédios habitacionais, o autor diz que:
[...] A sensação da cidade e o seu tecido físico estão sempre presentes para os habitantes e visitantes. Apreciado, visto, tocado, cheirado, adentrado, consciente ou inconscientemente, esse tecido é uma representação tangível daquela coisa intangível, a sociedade que ali vive – e suas aspirações. Uma representação, uma figuração – mas não, ínsito, uma expressão. A palavra “expressão” sempre me faz pensar em algo involuntário, instintivo, e por tanto, passivo, algo como creme dental para fora do tubo (RYKWERT, 2004, p.07)
Nesse sentido, precisamos nos atentar e repousar nossos esforços.
Através de um olhar estético, enxergamos naturalmente a cidade como obra de
arte. Por meio dela, podemos descobrir suas qualidades como paisagem;
ambiente carregado de significados materiais e imateriais; de interpretações. E
como sugere Rykwert, representação, ao contrário de expressão, sugere
reflexão, intenção e até mesmo, nesse contexto, um desígnio. A cidade assim,
se torna nesse momento o grande suporte, meio de construção e reconstrução
de realidades e representações, ativando e (re)configurando novas paisagens a
cada olhar mais atento, por fim, produzindo outra realidade visual.
Ora, sendo a cidade então uma marca cultural, enxergá-la como suporte
e expressão da arte não é nenhum exagero, pois como afirma Maderuelo, ela
possui qualidades como paisagem e por isso está sujeita a um olhar estético.
Entendida como obra de arte, la ciudad se encuentra sometida a la mirada estética y, a través de ella, podemos descubrir sus cualidades como paisaje, entorno sentimental, depósito de la historia y escenario arquitectónico (MADERUELO, 2001, p.18)
Quando o autor espanhol traz a cidade como fruto do trabalho coletivo,
gera um profundo significado simbólico, ao ponto que podemos considerá-la
como uma obra de arte porque representa as aspirações, ideais, realizações e
frustrações de seus habitantes ao longo de toda história. Entende-se, portanto
que sítio urbano, através de suas inúmeras paisagens, torna-se um campo
onde ocorre a materialização entre diferentes espaços e tempos, entre diversos
suportes e tipos de imagem. Nesse contexto, acreditamos que a arte pública se
coloca como responsável por ativar novas paisagens, como ocorre quando
acontece eventos como o Salão Bienal do Mar, ocorrido em terras capixabas.
Sem pretender um efeito comparativo, eventos como o “Madri Abierto”
(Madri, Espanha) e o “Arte Cidade” (São Paulo, Brasil), não buscam afirmar a
necessidade da arte estar fora dos museus e galerias, muito pelo contrário,
procuram enfatizar novas estratégias espaciais e críticas sobre o uso do
espaço urbano (público). Diante desse novo contexto urbano, a arte
contemporânea apresenta, e representa, sobretudo, a complexidade do
ambiente, suas diferenças e, principalmente, a consequente capacidade de
interpretação de cada um que de fato ali habita, determinando múltiplas
possibilidades de leitura.
São nessas condições que os artistas contemporâneos, através de suas
intervenções/instalações, estabelecem mudanças no cenário, estimulam o
debate comunitário, interagem com a arquitetura do entorno e corroboram para
um novo olhar sobre o lugar. Quando observamos na arte contemporânea um
campo ampliado de atuação, possibilitado pelo encurtamento da relação
discursiva entre o fazer e o pensar, passamos a enxergar as práticas artísticas
pautadas em espacialidades diversas.
Kublai Khan percebera que as cidades de
Marco Polo eram todas parecidas, como se a
passagem de uma pra outra não envolvesse
uma viagem, mas uma mera troca de
elementos.
(Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis)
3. IMAGENS/PROJEÇÕES PARA ALÉM DA PAISAGEM
“A memória é uma ilha de edição”
Waly Salomão
Este capítulo vai tratar de como a arte produzida na, e através da cidade
possibilita uma (re)construção imagética do lugar/paisagem para além de uma
memória coletiva institucionalizada, o que chamarei de “memória ficcional”15,
15 Em uma apropriação direta dos estudo literários, o termo Memória Ficcional surge ao longo
do meu percurso acadêmico aparecendo pela primeira vez em minha monografia de graduação. Parte do entendimento que o conceito de memória pouco tem haver com o conceito
não apenas por não estar relacionada com a história oficial do lugar, mas
principalmente por ser constituído por uma situação em si nova e específica.
Memória como ficções, não no sentido de falsas ou não factuais, mas de algo
construído, modelado, experimentos de pensamento.
3.1 ORIGEM ETIMOLÓGICA
Memória, s.f. (do latim memoria) 1. Faculdade de reter as ideias
adquiridas anteriormente, de conservar a lembrança do passado ou da coisa
ausente; 2. reminiscência; lembrança; recordação (AMORA, 1999); 3. Termo
que remonta ao mito de Fedro, contado por Sócrates. De acordo com este
mito, a alma humana teria circulado pelo mundo das ideias como um carro
puxado por dois cavalos alados. O caráter desordeiro de um desses cavalos,
metáfora dos instintos sensuais e das paixões, e as dificuldades de condução
do mesmo teriam levado à queda da alma e à correspondente encarnação no
corpo. O homem encarnado perde o acesso às ideias contempladas pela alma
na sua situação originária. Mas ao ver as coisas, estas fazem-no recordar as
ideias vislumbradas na existência anterior. O homem parte das coisas para que
elas lhe provoquem uma recordação ou reminiscência (anamnesis) das ideias
já contempladas. Conhecer é recordar o que está dentro de nós, as ideias
anteriormente vislumbradas (CARLOS CEIA)16; 4. Os antigos gregos
consideravam a memória uma identidade sobrenatural ou divina: era a deusa
Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as Artes e a História. A deusa
Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de
lembrá-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir imortalidade aos mortais,
pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os
gestos, os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca será
esquecido e, por isso, tornando-se memorável, não morrerá jamais (CHAUI,
2000).
de verdade, sendo então a lembrança uma forma de ficção, como veremos ao longo deste capítulo. 16
Segundo o E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=877&Itemid=2, acessado em 26 de Janeiro de 2015.
3.2 A NOÇÃO DE MEMÓRIA NO INDIVÍDUO CONTEMPORÂNEO E SUA
RELAÇÃO COM A CIDADE PÓS-MODERNA
As transformações provocadas, principalmente pelo processo de
globalização a partir da segunda metade do século XX, produziram o que Hall
(1998) classifica como sujeito pós-moderno, conceitualizado como sem
identidade fixa, essencial ou permanente. Este sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, “identidades que não são unificadas ao
redor de um eu coerente” (HALL, 1998, p.13). Com uma força autodestrutiva,
os grandes centros urbanos, na promessa do novo, revelam-se insensíveis à
destruição das engrenagens que movimentam sua memória. A noção do tempo
torna-se fragmentada pelo trabalho excessivo e a homogeneização dos
espaços. O mais moderno convive com a decadência, o futuro com o passado.
Ainda segundo Hall, a rapidez com que as coisas são descartadas e
trocadas por outras mais novas gera um apagamento das referências coletivas,
o que nos afasta de uma relação mais contemplativa com os lugares. O
passado pode se tornar sinônimo de ultrapassado.
À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural (HALL, 1998, p.74)
Olhar para trás causa certa estranheza em uma sociedade que se
acostumou a admirar as realizações implantadas pelos modernos meios
tecnológicos. Não há mais referências nas quais nos apoiar, visto que estamos
sempre mudando e nos reconfigurando. Não possuímos uma identidade e
identificação única, nem conosco nem com os lugares. O passado mais recente
perde-se na efemeridade dos acontecimentos, o mesmo ocorre com os
vínculos mais estreitos que construímos ao longo da vida. A aceleração informa
o ritmo dos passantes, uma avalanche midiática nos alimenta incessantemente
com excessiva carga de informação, alternância cadenciada entre construção e
destruição da cidade.
Assim perguntamos: é possível através da memória confrontar os
excessos vivenciados pela cidade na sobre modernidade?
Ao mesmo tempo em que a sociedade reconstrói sua forma de viver, e
mesmo que a velocidade das informações e vivências nos insira em outra
realidade, se compararmos as gerações anteriores; não podemos ignorar a
potencialidade humana de adaptação. Bergson, apesar de afirmar que a
memória não é uma faculdade de classificar recordações, no caso recordações
classificáveis por tema, sensação, momento ou importância; confirma que a
acumulação do passado sobre o passado prossegue sem trégua:
O mecanismo cerebral é feito precisamente para recalcar a quase totalidade do passado no inconsciente e só introduzir na consciência o que for de natureza que esclareça a situação presente, que ajude a ação em preparação, que forneça, enfim, um trabalho útil (BERGSON 2011, p.48).
Pensando na complexa relação que estabelecemos com o meio urbano,
podemos mesmo diante do bombardeio informativo em que estamos inseridos,
converter lembranças e ampliar nossa consciência para as formas de
inteligência associativa. Circunstâncias novas podem reavivar um conteúdo
anterior, desde que existam fatores análogos ao da situação original. Ainda em
Bergson nosso passado manifesta-se integralmente por ímpeto e de forma
tendenciosa, embora apenas uma parte dele se torne representação, o que nos
dá a entender que apesar de sermos e querermos ser integralmente o passado
que nos constitui, o ativamos de forma parcial, ou nos diz, pensamos apenas
com uma pequena parte de nosso passado.
Daí torna-se importante para o nosso entendimento à relação da
memória individual com a coletiva. Acreditamos que uma está direta, e/ou
indiretamente conectada com a outra. Para todos os fins, a memória pessoal
está, invariavelmente atrelada ao grupo, às tradições e ao universo coletivo. É
um contexto mais amplo que envolve a família, a comunidade, a cidade e todos
os grupos sociais que pertencem a quem recorda. Podemos ir mais além
quando indicar que o passado se faz presente através dos objetos; o que nos
aproxima as gerações anteriores e, assim, aos conteúdos coletivos.
Mas como se identificar em uma sociedade cada vez mais superficial?
Como se sentir parte de uma paisagem cada vez mais fraturada?
3.3 A ARTE COMO POSSIBILIDADE DE UM NOVO HABITAR
Figura 10 - Robert Smithson, The Monuments of Passic, New Jersey, 1967. Fonte: James Cohan Gallery
Como vimos, as grandes cidades converteram-se em um arquipélago de
enclaves modernizados – com suas torres corporativas, shoppings centers e
condomínios fechados – cercados por vastas áreas abandonadas, terrenos
vagos ocupados por populações itinerantes (PEIXOTO, 2004, p.393). É um
mundo cada vez mais sem passado (ou seria um novo passado?), uma nova
geografia econômica que obriga os indivíduos que nele habitam a novas
relações de interação.
Forma-se uma instabilidade espacial em áreas onde o fazer e desfazer é
contínuo. Criam-se espaços críticos, paisagens quebradas bem no meio da
cidade, deslocando continuamente nossa percepção. O aparecimento dessas
novas estruturas espalhadas pelas cidades são detritos de um passado
violentado. Resíduos do progresso, depósitos em que se acumulam vestígios
arqueológicos; fraturas aparentemente desprovida de rosto e história.
Seria essa fração de memória a matéria constituinte na (re)construção
imagética da paisagem urbana através da arte?
Robert Smithson realizou, no final dos anos de 1960, diversas
expedições de reconhecimento da paisagem através de regiões industriais nos
arredores de Nova York. Resultado: uma série de seis fotografias e um
foto/mapa intitulados “The Monuments of Passic”. Através de uma narrativa
documental, fez um tour por essa paisagem para retratá-la devastada pela
industrialização e pelo crescimento urbano. Nenhum desses monumentos
mapeados por Smithson são lugares aos quais seus habitantes atribuíram
qualquer significado. Ele não faz referência à história ou à antiga configuração
urbana da região, mas evidencia e aponta desde então o problema da
transformação urbana e a relação de memória dos seus habitantes.
Smithson no seu texto sobre “Monuments of Passic” tratou as estruturas
fotografadas como ruínas às avessas, ou seja, “não desmoronaram em ruínas
depois de serem construídas, mas se ergueram em ruínas antes mesmo de
serem construídas”. São cicatrizes que revelam as marcas deixadas por um
processo de modernidade, caracterizado pela brutalidade interventiva e pela
velocidade de deslocamento e adaptação proveniente de interesses
econômicos especulativos, geradores de espaços latentes, oscilando entre o
existir e não-existir.
Esse entendimento, se projetado a uma escala maior, revela que pelo
menos metade das estruturas em estado de abandono (ruínas) e categorizadas
potencialmente como ‘resquícios’, surgem de um desperdício causado pela
rapidez com que os projetos são considerados viáveis ou não
economicamente. É a lei da oferta e procura que sempre determinou a sucesso
ou fracasso de qualquer empreendimento17.
A mudança que, principalmente o mercado da construção civil dá ao
redirecionamento do fluxo financeiro, pelo menos aqui nos municípios da
Grande Vitória, faz nascer em todos os cantos da região, oponentes
17
Vale ressaltar que não estamos nos baseando em dados provenientes de estáticas oficiais, mas em deduções através do processo que vivenciamos durante a pesquisa para esta dissertação.
‘monumentos’ ou ‘esculturas’ da contemporaneidade. Dessa forma, a
transformação da paisagem urbana, e consequentemente sua reconfiguração,
oscilam entre o novo e velho, o futuro e o passado, nos dando a falsa sensação
de progresso, já que este velho nada mais é do que um futuro esquecido.
Se formos além, quando a fragmentação e o caos parecem
avassaladores, se deparar com o descontrole das metrópoles e com uma nova
experiência de escalas, distância e tempo, ajuda-nos a construir novas
imagens da cidade, que agora também são partes da própria paisagem urbana.
É através dessas paisagens, que redescobrimos a cidade (PEIXOTO, 2004, p.
15) Mais além, talvez seja através dessas paisagens que interagimos com a
cidade, indo e vindo, construindo um mecanismo de pertencimento
reconfigurado diariamente.
O que nos interessa neste ponto, quando consideramos os resquícios
lugares de memória da pós-modernidade, é a aproximação ao modo como
Smithson retratou “Passic”. Apesar de se tratar de uma região em expansão
industrial, de todo aparato tecnológico empregado, e da promissora
transformação proposta pelo processo de modernização que o lugar passava,
Smithson já enxergava a futura decadência que ali poderia emergir.
Passic parece cheia de ‘buracos’, comparada coma cidade de Nova Iorque, que parece compacta e sólida, e esses buracos em certo sentido são os vazios monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória de uma série de futuros abandonados (SMITHSON, 2001, p. 46).
A previsão de um suposto passado esquecido vem ao encontro do
pensamento de Bergson (2011, p.50), quando afirma que não temos o que
fazer com a lembrança das coisas enquanto temos as próprias coisas. As
coisas então se tornam lembranças à medida que outras coisas tomam seu
lugar, empurrando o já vivido para o passado enquanto o presente se atualiza
na direção do porvir. Parece-nos que fica claro uma faculdade que temos de
ainda no processo vivencial das coisas, de pré-selecionarmos o que no futuro
pode ser útil para a dissolução de algum entrave ou simplesmente cabível de
recordação.
Vale ressaltar, que o termo Lugares, como explica Marc Auge (1994,
p.76), é tratado aqui por uma noção antropológica, “incluída a possibilidade dos
percursos que neles se efetuam, dos discursos que neles se pronunciam e das
linguagens que os caracterizam”. Lugares que podem resgatar simbologias,
provocar o invisível e criar lendas e histórias urbanas, separando-os do comum
dentro do banal cenário metropolitano. Porém, imaginar não é lembrar.
Uma lembrança, à medida que se atualiza, sem dúvida tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira, e a imagem pura e simples não me remeterá ao passado ao menos que tenha sido de fato no passado que eu tenha ido buscar, seguindo assim o progresso contínuo que a levou da obscuridade para a luz (BERGSON, 2011, p.49)
O que pensar então de uma fotografia antiga, por exemplo, como
aquelas que passam de geração em geração e que guardamos em nossos
arquivos pessoais de relíquias afetivas. Será que a sua simples existência é
capaz de nos levar ao passado? Ou estaria Bergson falando de uma imagem
metafórica, aquela que habita um imaginário coletivo e genérico? Como seria
então essa relação da lembrança com a imagem quando se tratar de uma obra
de arte, partindo do pressuposto que toda obra é em si uma imagem18?
Quando fala de uma possível diferença entre percepção e lembrança,
Bergson fala da ilusão que temos em diferenciá-las por intensidade,
desmentindo a tese que define a percepção como um estado forte e a
lembrança como um estado fraco, com um simples exemplo:
Tome uma sensação intensa e faça-se decrescer progressivamente até zero. Se entre a lembrança da sensação e a própria sensação houver apenas uma diferença de grau, a sensação irá se tornar lembrança antes de se extinguir (BERGSON, 2011, p.51).
Nesse sentido, ele nos aponta para outra direção, onde a lembrança se
torna outra coisa, se torna na verdade um índice, que aponta para a percepção,
que sugere através de uma marca do que não existe mais, mas continua não
sendo a percepção, conforme afirma mais a frente, ainda na mesma página: a
lembrança de uma sensação é coisa capaz de sugerir essa sensação, ou seja,
de fazê-la renascer, fraca primeiro, mais forte em seguida, cada vez mais forte
à medida que a atenção se fixa nela (BERGSON, 2011, p.51)
18 Trata-se de ficções, não no sentido de falsas ou não factuais, mas de algo construído,
modelado, experimentos de pensamento.
Apesar da abordagem sobre a questão da memória no indivíduo pós-
moderno soar um pouco nostálgica, vale ressaltar que se trata de um
entendimento pautado nas relações de interação com a cidade, uma forma de
sentir e se sentir parte dela. Esse pensamento ajuda-nos a construir novas
imagens da cidade, que agora também são partes da própria paisagem urbana.
É através dessas paisagens, que redescobrimos a cidade (PEIXOTO, 2004,
p.15). Mais além, talvez seja através dessas paisagens que interagimos com a
cidade, indo e vindo, construindo um mecanismo de pertencimento
reconfigurado diariamente.
Quando definimos essa diferença entre percepção e lembrança proposta
por Bergson, logo pensamos em uma obra de arte produzida na, e através da
cidade, cujo principio ativo busca na relação com o transeunte/espectador
gerar uma consciência histórica, ou quem sabe ao menos sugerir, ativar.
Consequentemente, pensa-se nos diferentes níveis que essa relação é capaz
de construir. Trata-se, portanto, de obras geradoras de múltiplas possibilidades
de (re)construção de uma ponte de ligação entre o passado e o presente, mas
que sem a pré-existência de uma lembrança, ou seja, sem o fio condutor capaz
de resgatar o passado, a percepção que se tem da obra ficaria incompleta.
O autor fala em duas disposições mentais diversas, dois graus distintos
de tensão da memória. Tensão seria a princípio a elasticidade que a
lembrança/passado tem em relação ao presente. Seria a principio uma
capacidade de se atualizar conforme uma necessidade momentânea e/ou
experiência vivida (BERGSON, 2011, p.56). Ao invés de se tornar um elemento
de congelamento histórico, a obra de arte produzida na cidade passa então a
funcionar como um signo (índice), um referente invisível, não necessariamente
relacionado ao seu papel iconográfico, mas a um instrumento de (re)construção
de uma nova paisagem urbana. A cidade por sua vez, com a sua dinâmica se
converte num reflexo do mundo e o artista, atento a isto, utiliza-a como meio de
reflexão das relações entre o sujeito e a realidade.
Figura 11. Rubens Mano, “Observador”, s/ data. Fonte: site do artista
Rubens Mano enxerga a cidade potencialmente como objeto de
trabalho, e se utiliza da fotografia para imprimir seu olhar sobre ela. A fotografia
por sinal, pelo menos em nosso caso, é uma possibilidade de projeção do que
categorizamos como memória ficcional. É através dela que nos permite
imaginar um entre, capaz de conceber a arte como espaço potencial de prática
crítica, cognitiva e por que não, social, que possa instaurar uma
autoconsciência crítica do mundo, possibilitando até mesmo sua reconstrução.
Para alguns artistas da contemporaneidade, a cidade aparece como
tema escultórico, o que pode ser considerado como extensão natural de temas
anteriores como a paisagem e a pintura. Ela (a arte) incorpora uma série de
elementos singulares do sítio urbano, como a arquitetura, suas ruínas e
estruturas, potencialmente em um latente silêncio esperando para serem
reveladas pelo olhar do artista. A fotografia em questão transforma-se em
ferramenta antropológica, revelando materialidades, descortinando vestígios.
Para Rosane de Andrade, antropóloga e fotógrafa, a imagem fotográfica
nasce modificando comportamentos e provocando questões do próprio ser. Ela
carrega consigo significados e fragmentos de uma cultura. A imagem comunga
com o texto para melhor compreender e elaborar uma análise desses
significados. Ou seja, a fotografia, assim como a antropologia, ordena
culturalmente os dados, os fragmentos da realidade através da observação.
Nesse sentido, tanto a escrita como a imagem, estão amarradas ao contexto
cultural.
Com a crescente aceleração trazida pela pós-modernidade e com o
grande desenvolvimento técnico das máquinas fotográficas; as reproduções se
tornaram mais nítidas, mais rápidas, levando as imagens a serem parte efetiva
do nosso cotidiano. Assim, imagem e realidade se confundem, já que vivemos
cada vez mais a partir de realidades construídas pelas imagens (virtualização
da informação).
Pensando a respeito do enunciado acima, faremos uma breve citação de
Barthes no seu livro “A Câmara Clara”.
[...] tudo aí se transforma em imagens: só existem, só se produzem e só se consomem imagens(...). O que caracteriza as sociedades ditas avançadas é que hoje essas sociedades consomem imagens e não crenças, como as do passado; são, portanto mais liberais, menos fanáticas, mais também mais falsas (menos autênticas) (BARTHES , 1984, p.173).
Podemos dizer que nos acostumamos a ver apenas a superfície,
observando apenas uma fração do que nos rodeia. Com relação aos nossos
antepassados, não nos tornamos bons observadores, apesar de o uso das
máquinas mediadoras, como no caso da fotográfica, da realidade que nos
cerca. Portanto, assim como a antropologia, o ato de fotografar nos dá uma
visão mais global, detalhada do todo, considerando sempre, sermos parte do
aparelho fotográfico. Praticar e arriscar nossa potencialidade de observação/
captação da realidade, é uma atividade do olhar, que aproxima o ato de
fotografar/ documentar as coisas da noção do ato antropológico.
Ao invés de se tornar um elemento de congelamento histórico, a
fotografia passa então a funcionar como um signo (índice), um referente
invisível, não necessariamente relacionado ao seu papel iconográfico, mas a
um instrumento de construção da obra. Ela é antes de qualquer consideração
representativa, antes mesmo de ser uma imagem do mundo, é em primeiro
lugar da ordem do traço, da impressão, do registro.
[...] nesse sentido a fotografia pertence a toda uma categoria de signos, chamados pelo filósofo e semiótico americano Charles Pierce de índice. [...] os índices são signos que mantém ou mantiveram num determinado momento do tempo uma relação de conexão real, de contigüidade física, de co-presença imediata com seu referente (sua causa) (DUBOIS, 1993).
Em nosso caso, ela é o meio de projeção de uma memória ficcional. O
que nos permite imaginar um entre, capaz de conceber a arte como espaço
potencial de prática crítica, cognitiva e por que não, social, que possa instaurar
uma autoconsciência crítica do mundo, possibilitando até mesmo sua
reconstrução.
A arte pública interage de tal modo com a realidade da cidade e os seus
fluxos que não é percebida como tal. A desmaterialização da arte é fruto das
reflexões contemporâneas sobre o seu papel e lugar. A cidade como lugar da
vida cotidiana, do coletivo, do fluxo de ações, dos acontecimentos e
temporalidades e da acumulação histórica, oferece reflexão estética ao
converter-se em parte das obras-manifestações de arte pública.
O pensamento de Maderuelo contribui para o entendimento do que por
diversas vezes chamamos de imagem. Mas é preciso retomar a questão da
paisagem urbana, fundamental na construção da pesquisa. Segundo
Maderuelo (2007, p.12), o termo paisagem tem vários significados: qualifica
tanto um entorno real, um meio físico, quanto a representação desse entorno: a
sua imagem. Dessa forma, paisagem e imagem abraçam esses termos como
representação da cidade, tanto em nível formal quanto de significado,
reelaborando a maneira de ver o urbano e perceber a arte como possibilidade
de transformação do entorno, capaz de ativar espaços públicos novos e
antigos.
___ Você estava distraído. Eu lhe falava
justamente dessa cidade quando fui interrompido.
(Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis)
4. ENTRE PONTES E CIDADES
O projeto “Caminho das Águas”
Era 20 de Dezembro de 2008, na cidade de Vitória/ES, quando
inaugurou-se a 8ª edição do Salão do Mar. O Salão19, até sua sexta edição em
2004, era anual e apenas capixabas e mineiros20 podiam inscrever seus
trabalhos. Com abertura aos artistas de outros estados a partir da sétima
edição, em 2006, passou a dar visibilidade aos capixabas em todo o Brasil,
incluindo Vitória no mapa cultural do país.
O evento promovido pelo poder público municipal, Secretaria Municipal
de Cultura, tinha como forte característica a formalidade das categorias
artísticas que um típico “salão de arte” traz em sua concepção. Pintura,
19
O antigo Salão Capixaba do Mar surgiu em 1999 como resultado de uma parceria entre a Capitania dos Portos e a Secretaria Municipal de Cultura de Vitória (Semc). 20
A restrição à participação estava relacionada à circunscrição da Capitania dos Portos de Minas Gerais e Espírito Santo.
escultura, desenho, gravura, objetos ou instalações. A temática do mar
permeava as produções e conduzia os jurados no balizamento de suas
decisões a partir de uma aproximação formal ou conceitual ao temário da
mostra. Desde sua estreia em 1999, transformou-se na principal oportunidade
que muitos artistas, ainda começando no circuito das artes, possuíam de expor
seus trabalhos ao lado de artistas com mais currículo e experiência, uma vez
que dentre os selecionados a mescla de jovens com veteranos artistas dava o
tom da listagem final.
Diferentemente das edições anteriores, nessa sua oitava edição (2008) a
missão era de ser Bienal e ao ar livre. Segundo os curadores José Cirillo e
Neusa Mendes, a proposta era que o então salão anual cedesse lugar a uma
estrutura de Bienal, ao moldes do Programa Madrid Abierto21; tal aproximação
implicava em um modelo nacionalizado, no qual um pequeno grupo de artistas
(selecionados em um edital público) receberiam um montante em recursos
financeiros para executarem o projeto apresentado e acompanhado pelos
curadores. Buscando sintonizar e recolocar o evento nas tendências mais
contemporâneas do circuito, numa proposta de renovar o modelo antigo dos
salões de arte, a proposta para essa edição era se lançar a cidade, rompendo
com as paredes, com as salas e galpões, ganhando os espaços públicos,
expondo-se à observação ativa dos passantes e transeuntes22. Doze projetos
de caráter interventivo foram selecionados para serem executados em uma
área delimitada entre a região beira-mar e o miolo central da ilha. A mostra em
questão não se limitava especificamente a objetos colocados inertes em um
expaço expositivo nos moldes do cubo branco. Propunha-se uma reformulação
não apenas na estrutura conceitual e formal do evento, mas também no lugar
do público. Assim, na proposta temática que o Conselho de Curadores tomou
para selecionar as obras, estas deveria ser capazes de ativar memórias da
cidade em um determinado recorte espacial que se originava no centro antigo
de Vitória e se estendia ao longo da avenida Beira Mar, em direção ao norte da
21
Informações mais específicas sobre este programa de intervenções urbanas na Cidade de Madrid podem ser acessadas pelo endereço eletrônico a seguir: http://www.madridabierto.com/ 22
Apresentação da mostra. 8° Salão Bienal do Mar: ondas, pontes e intervenções navegáveis: 20 de dezembro de 2008 a 5 de fevereiro de 2009 / org. Priscila R. Rufinoni, Samira Margotto; [trad. Karin Philippov]. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, Casa Porto das Artes Plásticas, 2009. pág. 10.
ilha. Esse percurso não era aleatório, segundo José Cirillo23, esse era o
movimento de expação da cidade ao longo dos anos de 1960 a 1990. A cidade
cresceu nesta direção, era sua história.
Figura 12. Projeção da área definida para as obras serem instaladas durante o 8º Salão Bienal do Mar, 2008 (imagem capturada do Google Maps).
Entre os pontos A e B da figura 1, estava um pouco da história dos
principais aterros que demarcaram o atual desenho geográfico da ilha, sendo
que a área entre A e C demarcam o centro histórico da cidade. Com o
crescimento da ilha a partir da década de 1950, o olhar sobre a cidade levou a
uma ocupação da área norte, em direção ao ponto B e além. Os anos de 1980
e seguintes ocuparam definitivamente o norte, com a movimentação não
apenas do centro financeiro da cidade, mas também de toda a estrutura do
poder político municipal e partes do poder federal (apenas o Palácio do
Governo estadual permaneceu no centro antigo. Esse deslocamento do olhar e
dos interesses econômicos, políticos, sociais e culturais estabeleceram o
território demarcado pela linha azulada do mapa (figura 11) como um espaço
de passagem, uma espécie de vazio urbano. Vazio não no sentido de
ocupação humana, mas de esquecimento e apagamento de sua condição de
paisagem urbana. Assim, diariamente, milhares de capixabas cruzam esse
território, em seus carros com seus vidros fechados para manter o ar frio de
seus interiores, nos ônibus superlotados em direção ao trabalho, em percursos
de ida ou de voltam que era “obrigados” a trafegar por este espaço, pois lhes
era o único possível. Assim, essa região, outrora ocupada por uma estação der
transporte aquaviário, importante ponto de apoio à mobilidade urbana nos anos
23
Em entrevista realizada em março de 2013.
de 1990, tornara-se apenas um não espaço de circulação e de esvaziamento
da percepção sensível, tornou-se uma área de passagem.
É neste ponto a inserção desse trecho da cidade na proposta temática
da Bienal do Mar de 2008/2009: reolhar para este espaço, perceber sua
existência como espaço de subjetivações, de memórias, de vidas no eixo
cidade nova centro. Deste modo, aos artistas que por ventura se
inscrevessem para a Bienal estava implantado um desafio: construir uma obra
que ocupasse esse trecho, algo que resignificasse a presença deste espaço da
cidade.
Dessa vez, renunciasse às definições estilísticas tradicionalmente pré-
estabelecidas nas fichas de inscrição. Ganhar a cidade se revela ambiente fértil
que possibilitaria explorar desde a nítida relação do mar com a cidade como
também avançar por sua paisagem, observar sua arquitetura, entender seus
fluxos e quem sabe respirar junto com seus passantes. Assim, o Salão Bienal
buscou que cada projeto tivesse a direta intenção de se relacionar com a
cidade e suas múltiplas possibilidades.
Figura 13 – “O Retorno de Araribóia”, Coletivo Maruípe, 2008.
Figura 14 – “O Silêncio do martelo”, Fabrício Carvalho, 2008.
Figura 15 – “Folhetim Sereia”, Hebert Pablo, 2008
Figura 16 – “ Nós vemos a cidade como a cidade nos vê”, Heraldo Ferreira, 2008.
Figura 17 – “ ATENÇÃO: ARTE”, Jo Name, 2008
Figura 18 – “Ego trip pré-sal” João Wesley / Sandro de Souza, 2008
Figura 19 – “ Do Pó ao Pó – Work in progress”, Laerte Ramos, 2008-2009
Figura 20 – “Líquidas fronteiras”, Lucimar Bello, 2008
Figura 21 – “grandePEQUENAcatraia”, Marcelo Gandini, 2008-2009
Figura 22 – “Marí [n] timo”, Melina Almada, 2008-2009
Figura 23 – “Você vê?”, Jean-Blaise Pichral, 2008
Figura 24 – “PLUS ULTRA”, Oriana Duarte, 2007
Figura 25 – “Caminho das Águas”, Piatan Lube, 2008
Cada uma das propostas aprovadas buscou falar da cidade que é ilha,
de sua memória histórica, social, política, ambiental e porque não,
contemporânea. Todas, sem exceção, falam do mar ou para o mar. Em sua
grande maioria, reconfiguram o papel do transeunte ao transformá-lo em
espectador. Em breve relato, suscitaremos os conceitos abordados por cada
trabalho.
"O Retorno de Araribóia", do Coletivo Maruípe, traz como proposta
reproduzir uma réplica idêntica da escultura Araribóia e deslocá-la pela cidade.
A intenção por trás da reprodução de um tradicional monumento é evidenciar
uma história que poucos conheciam. Durante muitos anos, a escultura mudou
algumas vezes de lugar na cidade, ora por questões urbanísticas, ora por
questões políticas, chegando ao ponto de virar marcinha de carnaval. Ao
produzir uma escultura móvel, o grupo cria uma reterritorialização do espaço
urbano por meio do "retorno de Araribóia", que aparece e desaparece,
provocando uma visão temporária e deslocada da escultura (Catálogo da
Bienal do Mar, 2009,p.25).
"O silêncio do martelo", do artista mineiro Fabrício Carvalho, trabalha a
memória sob a perspectiva da resignificação dos objetos-dejetos encontrados
pelas ruas da cidade. De forma aleatória, segundo o próprio artista, busca, sem
saber o que vai encontrar, objetos domésticos, móveis, que fizeram parte de
um ambiente íntimo e foram despejados em um espaço público (Catálogo da
Bienal do Mar, 2009,p.37). A partir daí, a interação se dá nos locais que são
encontrados, reconfigurando-os (o objeto e o local) por meio de cordas, pregos,
madeiras, ou qualquer outro material que por ventura sejam igualmente
achados. Pretende-se dessa forma construir situações provisórias ao provocar
no passante, sutil desvio na rotineira experiência urbana. Sintomas de
estranheza ao se deparar com situações-intervalos simbolicamente anônimas.
Com a intervenção "Nós vemos a cidade como a cidade nos vê", de
Heraldo Ferreira, trabalha-se, através de um jogo de espelho, a evidenciação
de uma relação cotidiana no sítio urbano, mas pouco percebida pelos seus
transeuntes habituais: nós somos o reflexo da cidade que habitamos, assim
como a cidade é o reflexo daqueles que a habitam. Fala ainda de uma
virtualidade quando propõe uma relação imaginária do que se vê e o que se
reflete na obra, conduzindo o olhar do espectador pelo posicionamento dos
espelhos na calçada.
"Folhetim Sereia" busca também evidenciar a cidade, mas
diferentemente da obra anterior, essa revelação vem através da própria arte.
Quando Herbet Pablo se apropria de imagens do circuito da arte
contemporânea e as decalcas nos vidros dos pontos de ônibus da Avenida
Beira-Mar, ele traz a tona o corpo da cidade travestido de nova roupagem, ou
seria tatuado de outros corpos? A questão se instala quando a chamada de
atenção para esses pontos espalhados pela avenida é construída pelo uso de
famosos corpos da arte: Rebecca Horn, Marina Abramovic, Cindy Sherman,
Orlan, Márcia X e Nan Goldin, cujas propostas são expor conflitos de diversas
naturezas, como as sereis, que são híbridos de homem e peixe (Catálogo da
Bienal do Mar, 2009, p.49).
Em “Marí [n] timo”, Melina Almada instala diversas estantes nos abrigos
dos pontos de ônibus localizados a beira-mar. Ao todo, 10 pontos são
contemplados com uma mini biblioteca, onde uma seleção de livros com a
temática do mar é colocada a disposição dos passantes e usuários do sistema
de transporte coletivo da cidade. Não existe nenhum mecanismo de controle
sobre o uso dos exemplares. O fluxo é livre, como o ir e vir dos transeuntes da
região. Cria-se, assim, outra circulação. Ou novos outros cursos para a cidade,
e que, indireta e diretamente, dialogam com o transporte de tantos mundos
particulares e individuais.
A cidade como lócus do habitar (Catálogo da Bienal do Mar, 2009,p.67).
Esse é o tema norteador do trabalho de Lucimar Bello. “Líquidas fronteiras”
consiste na projeção de 03 (três) vídeos na parede externa de um edifício
localizado na Avenida Marechal Mascarenhas de Moraes, no Centro da Cidade
de Vitória. Os vídeos projetados são uma conseqüência de outro trabalho
realizado pela artista, nomeado “dos Alpes ao Ilha de Capri”, realizado em sua
cidade natal, no caso, São Paulo. Assim, Lucimar propõe sobrepor as
paisagens das duas cidades ao projetar as imagens de um prédio vizinho ao
que mora, em outro edificação; agora na capital capixaba. Como ela própria
define, essas imagens transbordam e vazam ao escorrer sobre outra superfície
(Catálogo da Bienal do Mar, 2009,p.67), reconfigurando, mesmo que
momentaneamente, as percepções e afetividades dos passantes.
“Do pó ao pó” é uma intervenção performática de Laerte Ramos. Assim
como outros trabalhos da Bienal, busca uma reconfiguração da paisagem pela
ação da arte, em seu caso, através da coleta de seus resíduos, mais
especificamente, do pó. Seus acessórios coletores de pó exploram a superfície
da cidade: calçadas, veículos coletivos, lugares públicos, estúdio de artistas,
galerias e museus de arte. Segundo Laerte, “a coleta do pó é como uma foto
de um lugar, um registro de um momento contando partículas que restam das
pessoas e de seus trabalhos” (Catálogo da Bienal do Mar, 2009,p.73).
Novamente o olhar e a contemplação se direcionam para o mar em
“grandePEQUENAcatraia”, de Marcelo Gandini. Para tanto, resgata-se a
figura do catraieiro, profissão quase extinta na Baía de Vitória. Trata-se da
pessoa que pode ser considerada o taxista marítimo, aquele que atravessa
uma ou mais pessoas de uma costa a outra entre os municípios de Vitória e
Vila Velha. Diante dos imponentes navios cargueiros, o artista cria uma relação
lúdica de Dom Quixote diante dos moinhos de ventos (Catálogo da Bienal do
Mar, 2009,p.79), ao observar o catraieiro em seu pequeno barco de madeira
“duelar” com as grandes embarcações de ferro e aço. Assim, instala em uma
catraia uma caixa acústica que emite os mesmos sinais sonoros que os navios
emitem quando se aproximam da Baía, buscando evidenciar o tradicional
trabalho de um personagem quase anônimo da Ilha de Vitória.
“PLUS ULTRA” é um conjunto de operações artísticas que propõem a
imersão do observador em experiência geovirtual (Catálogo da Bienal do Mar,
2009,p.85). Ao registrar em vídeos o fluir constante do remar em águas
urbanas, Oriana Duarte constitui novas paisagens ao capturar as imagens
pelas cidades onde passa e as edita de modo que o espectador tenha variação
de percepção ao notar as diferenças de ângulos e variações de luz. Trata-se,
portanto, de uma operação acumulativa, onde as águas passadas irão se
imbricar nas novas águas, em um processo de permanência continua do
projeto artístico.
Em um momento específico do cenário político e econômico do Espírito
Santo, os artistas João Wesley e Sandro de Souza procuraram enfatizar a
inclusão do Estado na produção petrolífera do pré-sal. Através da obra “Ego
trip pré-sal” pretendeu-se discutir como esse fato poderia, em tese, transformar
o imaginário local. Historicamente o território capixaba serviu de passagem
para aqueles que se locomoviam entre o Sul e o Nordeste do País. O umbigo
que flutuou na Baía de Vitória remeteu a uma mudança de cenário, reforçando
a evidencia nacional que a cidade recebeu ao ser transformada,
momentaneamente, como a capital do petróleo do Brasil.
O projeto “ATENÇÃO: ARTE”, de Jo Name, se apresenta na forma de 26
placas de sinalização com layout semelhante às placas de trânsito, mas com
mensagens diferentes das oficiais (Catálogo da Bienal do Mar, 2009,p.97).
Evidenciam-se, através das placas, as relações sociais que estão sobrepostas
nas camadas dentro da cidade quando consideramos o papel de organização
que a sinalização urbana impõe ao seu usuário. Mesmo sendo consideradas a
margem do politicamente correto, essas figuras “oficializam” as ações que
representam, uma vez que são constituídas das mesmas normas técnicas da
placas convencionais. Estamos falando de representações de ações como
roubar, cometer infrações de trânsito e urinar em local público.
Quando Jean-Balise Picheral foi convidado a participar da Bienal do Mar,
logo buscou referências para o novo projeto em um conjunto de obras intitulado
“Arquipélago” realizado em 2004.
Vitória é a ocasião de ampliar o arquipélago, de tecer uma ligação com as instalações que fiz em Dunkerque, perto da praia e no porto, ao mesmo tempo em que as duas cidades se comprometem numa parceria de cooperação descentralizada (PICHERAL, Catálogo da Bienal do Mar, 2009,p.103)
O título da instalação – “Você vê?”, materializa o propósito do artista.
Apoiado em sua experiência de arquiteto e urbanista, traz a questão do lugar e
do espaço, a questão do olhar sobre o lugar. Não o interessa necessariamente
o resultado estético da obra, e sim o olhar sobre o novo que ela pode provocar
na rotineira paisagem da Baía de Vitória.
Propositalmente por último, “Caminho das Águas” é matéria prima desta
dissertação por colaborar diretamente na proposição das questões teórico-
conceituais aqui discutidas. A nosso ver, se destaca pela sutileza quando
provoca uma simbólica projeção de uma paisagem que, possivelmente a
maioria esmagadora daqueles que pisam sobre o solo marcado pela linha azul,
jamais imaginou que pudesse um dia ter existido. Exala memória, mesmo
quando fala do presente. Provoca o olhar sobre, e para a cidade; lançando a
face dos seus usuários habitantes a estranheza de perceber seus
(des)conhecidos entornos de cada dia. Por fim, Piatan (re)vive, por meio da
intervenção, tempos que foram sobrepostos. Passado que nunca deixou de
existir, apenas foi soterrado. A mesma água que busca brotar a superfície,
encontra-se permanente na vida urbana da nova cidade. Vitória é uma ilha, e
nesse sentido, a obra colabora para não perdermos de vistas nossas raízes
geosociais.
4.1 A GÊNESE DE CAMINHO DAS ÁGUAS
A obra de arte sempre exerceu um fascínio quanto à sua gênese e ao
seu funcionamento; assim como tudo o que gira em torno da criação de uma
obra ou da vida de artistas. Como resultado disso, tem-se um grande número
de biografias envolvendo tanto a obra em sua feitura, como também as
particularidades da vida privada dos artistas. Vale salientar que algumas
dessas edições biográficas trazem os estudos que levaram à produção de
determinados objetos artísticos, auxiliando na verificação, por parte do leitor, de
facetas da feitura da obra, elementos de sua composição, de cor, forma, etc.,
assim como do valor desses documentos do processo de criação.
Para Cirillo (2004), quando se é posto frente a frente com um conjunto
de registros residuais do processo de construção de uma obra visual, os
documentos desse processo, está-se diante, então, de um emaranhado de
fragmentos, muitas vezes desordenados cronológica, espacial e mesmo
formalmente. São desenhos, escritos, colagens, rasuras, pedaços de objetos,
maquetes e uma sorte de artefatos pertencentes aos mais diferentes sistemas
semióticos que se colocam agrupados ou avulsos. Não há uma organização
aparente e, partindo desse pressuposto, pode-se considerá-la caótica.
Essa é a situação quando se depara com os registros que acompanham
o processo de criação do artista capixaba Piatan Lube. Suas anotações,
cadernos, folhas, arquivos digitais, mapas e fotografias são evidências do lado
irregular da natureza do gesto criador, um lado o movimento contínuo e incerto
que envolve a mente criadora durante seu processo de criação – o que se dá
com uma desordem aparente, com irregularidade, de modo caótico. Segundo
James Gleick (1989, p. 4), “[...] o caos é antes de tudo uma ciência de processo
do que de estado; de vir a ser do que de ser [...]”, dando, pois, continuidade à
investigação do ponto onde a ciência clássica havia parado: no estudo dos
sistemas não-lineares. Para ele, sistemas não-lineares são aqueles que não
podem ser solucionados, montados ou desmontados simplesmente, pois não
se somam uns aos outros do modo cartesiano, não se prestam aos manuais
por não possuírem uma virtude modular.
[...] a não-linearidade significa que o ato de fazer o jogo modifica, de certa maneira as regras [...]; é o caminhar por um labirinto cujas paredes modificam sua disposição a cada passo que damos. (Gleick, 1989, p. 15)
Cada registro é apenas aquilo que foi capturado durante o ato criador, é
notação, talvez o índice de uma mudança de regra durante o jogo da criação,
uma evidência da modificação, do movimento dinâmico e multidirecional em
busca de uma recompensa material. Gleick (1989, p. 39), em seu estudo sobre
o caos, associa a dinâmica caótica e sua complexidade ao processo de
criação. No caso de Piatan Lube essa complexidade fica potencializada por ser
um artista cuja dinâmica criadora opera vários objetos simultâneos.
Estudar uma obra por meio de seus documentos do processo de criação
é certamente olhá-la a partir de sua dinâmica, pois esta é como um sistema
oscilante cujas regras de funcionamento regem o movimento criador. Este, em
sua instabilidade, estabelece padrões e fluxos; leis e movimentos em
descoberta (Cirillo 2008). É a busca pela origem da turbulência e da coerência
da mente criadora. É seguir uma ação não estável, a dinâmica da não
estabilidade. É buscar construir locus de coerência. É o projeto poético de uma
determinada obra ganhando contornos. É estabilidade no caos: ilhas de
estrutura. No caso de Piatan, ilhas que tentam retomar a memoria das cidades-
ilha.
O estudo do processo de criação de “Caminho das Aguas” se dá por
meio do que Salles (1998) define como critica de processo, uma derivação da
crítica genetica (Hay, 1998; Gressillon, 2009). Para Salles (1998), a critica
genética se configura por meio de um processo investigativo cujo centro é a
obra em construção; essa investigação vê a obra a partir da sua feitura,
buscando melhor compreender o processo de criação. A Crítica Genética
pretende, deste modo, oferecer uma nova possibilidade de abordagem para as
obras de arte: observá-la a partir de seus percursos de fabricação. É assim
oferecido à obra uma perspectiva de processo (SALLES, 1998, p.12).
Fala-se, portanto, de um estudo do processo de criação, do percurso de
gestação da obra. O profissional que desvela esse funcionamento chama-se
crítico genético. Para Salles (1998, p. 12-13) “[...] o crítico genético é um
pesquisador que comenta a história da produção de obras de natureza
artística, seguindo as pegadas deixadas pelos criadores. Narrando a gênese da
obra, ele pretende tornar o movimento legível e revelar alguns sistemas
responsáveis pela geração da obra”.
Ao crítico genético, qual o físico do caos, cabe a função de desvelar
alguns dos princípios direcionadores que regem o processo de criação. Ele
entrega-se ao acompanhamento de percursos criativos ou à análise dos
documentos da criação. Estabelece-se em movimento, numa ação em direção
à dinâmica que antecede a obra. Acabada uma obra, seus registros vão sendo
colocados pelo artista à margem da nova criação, sendo raramente resgatados
em um novo percurso gerativo. Entretanto, o interesse pelo estudo dos
mecanismos e da estrutura do gesto criador devolveu a essas marcas o frescor
que lhes é inerente. Dessa forma, o crítico genético, como uma espécie de
voyeur, seduzido pela possibilidade de descortinar momentos da ação do
artista, coloca-os novamente em ação. Ele os acompanha de modo crítico-
interpretativo, buscando nexos nesses vestígios; olha-os no seu conjunto, na
sua possibilidade interativa, procurando compreendê-los e as suas funções no
processo de criação.
A Crítica Genética analisa o documento autógrafo – documento vindo da
própria mão do criador, não passando por processo de publicação – para
compreender, no próprio movimento de criação, os mecanismos da produção,
elucidar os caminhos seguidos pelo artista e entender o processo que presidiu
o desenvolvimento da obra (SALLES, 2000, p. 24).
Nessa busca por entender os meandros da produção da obra, os
documentos do processo cumprem funções fundamentais que apóiam o
trabalho do crítico genético. De modo geral, pode-se dizer que são funções dos
documentos do processo: armazenamento e experimentação – temas que
serão mais bem trabalhados posteriormente. Limita-se aqui à sua apresentação
de modo geral. Eles servem, desde o início do trabalho, para o armazenamento
de idéias, imagens e materiais possíveis, informações geradoras que são ou
que poderão ser relevantes à pesquisa estética, em desenvolvimento ou não
pelo artista, de modo que estas não lhe escapem no pântano da memória. A
idéia é guardada no frescor do insight, o que garante à mente criadora
possibilidades de retorno a ela em momento posterior. Poder-se-ia dizer que
são fragmentos à espera de correção. Buscamos conhecer algo desses
documentos que desvelam a cidade debaixo de linha azul. As memórias de
uma obra que fala das memórias da cidade.
Nasce “Caminho das Águas”. Obra selecionada que tinha como proposta
pintar uma linha azul de 30 centímetros de largura em um azul vivo24 sobre o
chão da cidade redesenhando seus antigos limites geográficos. Mar e terra. Ou
como aponta Piatan Lube, trata-se de uma intervenção artística que consiste
em uma linha azul que será traçada nas áreas limítrofes das antigas formas
geográficas do arquipélago de Vitória, sobrepondo-se à forma territorial
contemporânea da cidade (LUBE, 2008).
24
Apesar de não encontrar nenhuma referência no material disponibilizado pelo artista Piatan, o azul encontra-se presente em muitos elementos relacionados ao mar: barcos de pesca, janelas das casas dos pescadores, entre outros.
Figura 26. Mapa da proposta interventiva da obra “Caminho das Águas” , inscrita no 8º Salão Bienal do Mar (2008). Fonte: Documentos de processo de Piatan Lube, acervo do
LEENA/UFES
Em sua execução inicial, foram 1.800 metros de pintura horizontal que, a
partir do porto de Vitória insinuou-se pelas ruas centrais da cidade até alcançar
um banco de rua, estrategicamente instalado na ponta do morro do Forte São
João, um ponto de observação sobre a baía, bem de frente para a pedra do
Penedo25, importante ponto de referência para os viajantes náuticos desde a
povoação do Estado. A formação granítica é um ponto emblemático na
constituição do que hoje se tem da cidade de Vitória, e sua história como
marco paisagístico se confunde com o processo de transformação geográfica
da ilha. Além de ser a porta de entrada dos navios para os portos da região, os
limites entre a pedra e a margem receberam as mais famosas batalhas no
período de colonização, marcando definitivamente o local como símbolo
máximo da Baía de Vitória. Coincidência ou não, “Caminho das Águas” termina
ali, em um simples banco de cimento como muitos outros existentes nas praças
da cidade, e que sinceramente não sabemos o que ele faz ali, perdido na
paisagem, mas que o destino permitiu que servisse de repouso para a obra
descansar. Vale destacar que não há nenhum tipo de registro por parte do
artista sobre o porquê de parar neste ponto.
25
Penedo de Vitória. Medindo 136 m de altitude, esta montanha-ilha é o símbolo máximo da baía de Vitória e, apesar de estar localizada no município de Vila Velha, foi tombada como Patrimônio Natural Paisagístico de Vitória, o que garantiu sua integridade, hoje patrimônio de todos os capixabas. Créditos: Acervo da Secretaria Municipal de Vitória. http://pt.wikipedia.org/wiki/Penedo_de_Vit%C3%B3ria
Figura 27 - O artista Piatan Lube e sua obra “Caminho das Águas” inscrita no 8º Salão Bienal do Mar. Foto: Luara Monteiro
Mesmo nas entrevistas ele não define claramente a escolha. Assim, nos
parece que esta acertada estética para fechar o ciclo de ocupação da obra é
ação poética do acaso, é o acaso gerador apontado por Salles (1998).
Descansar ou retomar ao seu lugar. Afinal, parar de frente para a baía é
como (re)encontrar os seus. A linha que simboliza onde um dia o mar esteve
parece possibilitar, de alguma forma devolver sua origem como um espelho
que reflete a imagem de uma realidade geográfica, de uma poesia paisagística
que não mais existem. Poeticamente, as águas do passado descansam sob
casas e edifícios, praças e avenidas, literalmente de frente para o mar, e sobre
o mar.
As etapas de construção da obra envolveram muita pesquisa,
entrevistas e a formação de uma equipe de voluntários na pintura da faixa.
Essas etapas estão evidenciadas no conjunto de documentos de processo de
Lube, disponibilizados de modo digital para esta pesquisa.
4.2 OS DOCUMENTOS DA OBRA
A obra entregue ao público como pronta é apenas a ponta de um iceberg
que, estudado, revela a complexidade do ato criador. Toda obra, deixando
marcas evidentes ou não, não é um ato espontâneo, ela é processo, se
constrói na mediação do artista com diferentes etapas da criação, as quais
podem ou não estar registradas em documentos de processo. No caso de
"Caminho das Águas", Piatan Lube é um desses artistas que faz uso do
registro de sua ação geradora, revelando um sem fim de informações sobre o
seu processo.
Essa diversidade de informações presentes nos registros anexa-se à
própria diversidade dos suportes que as contém – o que irá definir que tipo de
documento se está analisando. No seu conjunto, os documentos de Piatan são
dos mais variados tipos, o que nos faz lembrar as definições de Louis Hay.
Segundo Hay (1999), o que dá contornos à nomenclatura dos documentos, ou
do seu conjunto, é a articulação dos objetos e suas funções. Assim, foi a
análise dos diferentes tipos de objetos utilizados por Lube que nos levou a uma
taxonomia dos seus documentos do processo, tais como textos experimentais,
trabalhos de graduação, resenhas, criticas curatoriais, folders das exposições,
catálogos, fotografias, mapas, arquivos pessoais e conversas informais.
Dessa forma, configurados os documentos do processo como uma
extensão da mente criadora (Cirillo, 2004), exige-se do pesquisador estar
atento à singularidade e à generalidade neles contida. Assim, é da observação,
descrição e análise que se deu o levantamento “[...] de hipótese quanto ao
funcionamento de um processo de criação específico [...]”, neste caso, o de
“Caminho das Águas”. Destaca-se que o que está sendo buscado só pode
estar nestes documentos que “[...] lhe oferecem a possibilidade de testar esta
hipótese” (SALLES, 2000, p.52).
A busca deste investigador está na compreensão da ordem constitutiva
de uma poética que fala da cidade, não da cidade atual, mas daquela que se
constrói em camadas de memórias, sobrepostas de modo a irem apagando as
anteriores. Partimos da percepção de que esses documentos são uma
possibilidade e a obra deles decorrente é uma escolha entre outras possíveis –
o que fica claro na reoperação dos mesmos mecanismos para a sua versão em
Florianópolis. A obra apresentada é uma versão dentro de um sem-fim de
probabilidades, porque o documento de processo é “[...] limitado em seu
caráter material e, ao mesmo tempo, ilimitado em sua potencialidade
interpretativa” (SALLES, 2000, p.52).
Essa potencialidade interpretativa ilimitada é uma das maiores
dificuldades para se desvelar os procedimentos da mente criadora. Só estão
acessíveis momentos do movimento da criação disponíveis nesses fragmentos
que se cruzam e formam um único objeto: “[...] porém aquilo que está
representado no signo não corresponde ao todo do objeto, mas apenas a uma
parte ou aspecto dele. O signo é sempre incompleto em relação ao objeto”
(SANTAELLA, 1998, p.45).
É nesse campo movediço da incompletude do signo, bem como na
busca para fugir da poeira do esquecimento nos arquivos, que se localiza a
tarefa investigativa desta dissertação. Para Grésillon (2002, p.160), essa tarefa
[...] consiste, de um lado, em dar a ver, isto é, em tornar disponíveis, acessíveis e legíveis os documentos autógrafos que antes de tudo não passam de peças de arquivo, mas que ao mesmo tempo contribuíram para a elaboração de um texto e são testemunhos materiais de uma dinâmica criadora. Em outros termos, o pesquisador reúne, classifica, decifra, transcreve e edita dossiês manuscritos que habitualmente são chamados de ‘prototextos’.
Esse prototexto, ou dossiê genético é então formado do conjunto de
materiais da criação disponibilizados por Lube para os fins deste trabalho de
investigação. Estamos falando de um conjunto de material que se constitui
basicamente de documentos digitais e digitalizados. Pouco, ou quase nada, foi
de ordem da matéria física, palpável. Talvez o material mais evidente que
tivemos acesso tenha sido a própria obra, que dialogou, e ainda dialoga na
construção desta dissertação.
Dos documentos de processo enviados pelo artista em formato digital,
investigamos primeiramente seus estudos correspondentes a fase inicial que
antecede a construção da obra “Caminhos...”. Esse primeiro grupo de arquivos
é composto basicamente de imagens antigas, mapas e documentos
escaneados/fotografados por Piatan em suas visitas ao arquivo público, tanto o
municipal, quanto estadual.
Posteriormente, surgem os escritos aleatórios, pensamentos registrados
em parágrafos e formatados em texto. À medida que o trabalho ganha corpo,
surge o primeiro projeto para participação da Bienal. Com ele, documentos
complementares como cartas, e pedidos ao poder público para execução da
obra, são anexados a trajetória do projeto artístico. Quando se lança a rua,
Piatan reúne vasto grupo de imagens do processo de materialização da obra,
com posterior registro do trabalho já finalizado.
O último grupo de documentos, diz respeito a trajetória que Piatan traçou
até desembarcar em Florianópolis. Em processo similar ao realizado em
Vitória, o artista mantém a mesma metodologia de arqueologia das memórias
que a cidade pode oferecer e contribuir ao seu projeto. Grupos de imagens,
mapas, relatos e histórias sobre a nova cidade indicam o caminho que às
águas deveriam ressurgir através do azul pintado sobre o presente.
Cronologicamente, os últimos documentos integrantes desse conjunto
disponibilizado pelo artista é a sua monografia de conclusão de curso, quando
se forma, em 2012, Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do
Espírito Santo; assim como o projeto artístico que prevê a finalização da obra
“Caminho...” na última ilha-capital ambicionada por Piatan: São Luiz do
Maranhão.
Figura 27 – Digitalização de documento sobre os bondes de Vitória, de 1965. Fonte: Arquivo de processo de Piatan Lube
Figura 28 – Documento digitalizado sobre o aterro da Esplanada Capixaba. Figura representativa no que diz respeito a área investigada para receber a obra “Caminho das
Águas”. Fonte: Arquivo de processo de Piatan Lube
Figura 29 – Mapa digitalizado da antiga Cidade do Desterro.
Fonte: Arquivo de processo de Piatan Lube
Figura 30 – Fotografia digitalizada da Rua Trajano, em Santa Catarina, integrante do grupo de imagens que estudam o possível percurso de intervenção da obra “Caminho das Águas”.
Fonte: Arquivo de processo de Piatan Lube.
Esse dossiê de Piatan Lube não se põe simplesmente como uma
equação a ser resolvida; nele, buscamos estabelecer relações entre diferentes
sistemas não-lineares que se definem no processo de criação. Especificamente
sobre como a questão da memória pessoal (do artista), a memória do
transeunte (o outro) e a memória da cidade (coletiva). Como equação
preliminar, o dossiê é o desdobramento dos movimentos inerentes aos
documentos investigados. Ele vai definir efetivamente os recortes da pesquisa
– um constante diálogo com os documentos, um mecanismo comunicativo que
envolve o pesquisador e o objeto pesquisado, um objeto dinâmico. Assim, é no
desdobramento investigativo, na análise dos documentos da obra, que os
estudos genéticos encontram a definição mais precisa de seus recortes. Desse
modo, a equação em busca da compreensão da organização caótica vai se
resolvendo e desvelando alguns dos mistérios que envolvem tanto a
construção de uma obra, quanto o processo de criação como um todo, pois
permite o afloramento de teorias sobre o ato criador (SALLES 2000).
É fato que os documentos do processo trazem em si dados sobre a ação
da mente criadora: podem ser encontradas as mais diferentes informações que
revelam momentos das reflexões durante o processo de criação. Dentre elas,
toda a gama de experimentações que antecedem a produção da obra: forma,
dimensão, cor, material, etc. A investigação dos documentos permite que o
projeto poético da obra, ou do próprio conjunto de obras do artista, seja
parcialmente compreendido. A maior ou menor complexidade dessa
compreensão está associada ao conjunto de hipóteses levantadas ao longo da
investigação e sua possível verificação nos documentos do processo.
Segundo Cirillo (2004), entende-se por projeto poético a ação da mente
do artista com intencionalidades e tendências, as quais vão sendo reveladas e
compreendidas pelo próprio artista ao longo do ato de construção da obra.
Essa intencionalidade e tendência do projeto do artista podem ser evidenciadas
por meio de estudos do processo de criação, à medida que eles revelam as
nuances do projeto poético de diferentes artistas.
Apesar desta relevância dos estudos do processo para a arte e para a
ciência, não há, entretanto, uma política documental (mesmo nos estudos
arquivísticos) clara que trate esses documentos e arquivos artistas para além
de uma visão memorialística ou de uma relação voyeuriste de acesso à
intimidade do artista. Há, ainda, uma outra tendência no trato com esses
documentos e arquivos, comum em projetos curatoriais: atribuir-lhes o status
de obra – o que é feito por meio de estratégias de emolduração (GULLAR,
2009) desses documentos, as quais os isolam de seu contexto e lhes colocam
o atributo de obra-prima (vários estudos de Rodin são hoje exibidos como
masterpieces do artista que, apesar de sua genialidade, nunca lhes atribui
outro valor que não o de estudo).
Este trabalho tem por objetivo situar, sitiar e apresentar uma análise
geral dos documentos do processo do artista plástico brasileiro Piatan Lube, os
quais têm sido material inestimável para a continuidade de uma ação
investigativa sobre o processo de criação nas Artes Visuais no Espírito Santo.
Busca-se compreender os procedimentos gerais que possibilitam uma
aproximação com o papel da memória e do espaço/cidade como matéria no
projeto poético desse artista. Piatan, assim como outros artistas na
contemporaneidade, parte do estudo histórico dos sítios que pretende se
relacionar como forma de aproximação e apropriação de uma memória que não
é sua, mas que ao longo do processo de dissecação das camadas que se
revelam enquanto atua como um arqueólogo urbano transforma-se em parte
integrante do objeto de pesquisa.
Piatan Lube nasceu no ano de 1985, em Belo Horizonte, Minas Gerais,
mas viveu desde menino no Estado do Espírito Santo, mais precisamente no
município de Viana, integrante da Região Metropolitana de Vitória. Graduou-se
em Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Espírito Santo
no final de 2012, mas muito destaca-se ao participa de diversas exposições
coletivas e individuais dentro e fora do Estado.
O fato de muito cedo ter se mudado contribui de forma decisiva na
formação visual e poética do seu trabalho. Somado as experiências de criança
ao lado do pai que foi restaurador, a chegada em terras capixabas potencializa
sua tendência sensível de lidar com o mundo a sua volta. Viana é um município
predominantemente de área rural e essa nova geografia influencia diretamente
o projeto artístico de Piatan, como ele mesmo define em um resumo de sua
biografia26:
26
Arquivo sem referencia bibliográfica oficial enviado diretamente ao email do pesquisador pelo artista.
Nascido no ninho poético do barroco mineiro, meu caminho estava traçado nos caminhos das artes. Filho de restaurador, nasci entre as cores das pinturas de Ataíde as deformas e arranjos celestiais de altíssimo teor indentitário do mestre de Aleijadinho. Perfumes do tempo, cheiro de cera de abelha derretida, pigmentos em pó mágicos que viravam homens, plantas, céus e mares, coloriram meu imaginarium. 20 anos depois deste ciclo, primeiro, onde vivia em terras mineiras, passei a viver em Piapitangui aldeia da zona rural de Viana, Espírito Santo, onde pássaros orquestram as musicas das tardes e as águas desenham a paisagem (LUBE, 2013).
Percebemos claramente nesse relato que Piatan possui estreita relação
afetiva com a nova morada. O vilarejo de Piapitangui, em Viana, Espírito Santo,
é o lugar com cheiro de vó materna, descente de índios e onde criou nove
filhos, como faz questão de frisar. Lá desenvolve seu processo de escuta do
mundo e revela as nuanças da terra em suas obras, frutos de um escultor
social, como ele mesmo se define. Terra que é atelier e berço, onde constrói
pontes e faz da sua paisagem fonte de água fresca em um processo
primitivamente romântico de relação com a arte.
Assim, nos aproximamos dos documentos do artista, para, a partir deles
desvelarmos as tendências e intencionalidades de um projeto poético que
trabalha com a mediação de diferentes tipos de memória, as quais que se
materializam nas duas instalações de Lube.
4.3 DOS REGISTROS HISTÓRICOS DA CIDADE AO PROJETO POÉTICO
DAS INTERVENÇÕES
O levantamento histórico do processo de transformação das cidades-
ilhas foi realizado em arquivos e acervos públicos e particulares (mapas, fotos,
livros, desenhos, documentos civis de aterros) e por meio de entrevistas com
especialistas de áreas diversas (Arquitetos urbanistas, geólogos, professores
universitários, artistas, ativistas, pessoal das Secretarias Municipais de
Desenvolvimento Urbano, de Transito, etc.) que puderam auxiliar de alguma
forma a equipe no entendimento da ocupação e na redescoberta da antiga
cidade.
“Caminho das Águas” ganha as ruas. Invade calçadas, contorna postes,
sobe em bancos, cruza praças e avenidas. Desvenda ruelas. Revela esquinas
com ares de província. Sim, Vitória ainda tem esquinas onde o tempo parece
não andar. Em três dias o que antes era monotonia, ganha tons de novidade.
“O que essa faixa azul está fazendo aqui?” pergunta o transeunte desavisado.
Para aqueles em que o processo de ir e vir é uma rotina, a paisagem quase
não muda. Ou se muda pouco percebe. Anda, entra, sai, corre. Os dias vão e
vem como se todos os sons, cores e cheiros fossem os mesmos. Se deparar
com um elemento que lhe rouba a rotina pode ser inquietante. De onde vem?
Para onde vai? Será vandalismo? No mínimo um tanto curioso na mente de
quem se atenta, nem que seja por pouco minutos.
4.3.1 A proposta conceitual
Quando nos apropriamos dos primeiros escritos sobre a obra, revela-se
um discurso que se confunde pela intenção de ser tanto possibilidade de
rememoração do passado (memória como passado), quanto manifesto
político/social/ecológico, como demonstra o artista em entrevista realizada pela
organização do evento e que ficou registrado no catálogo oficial do Salão.
Perguntado se o projeto apresentado ao tratar de uma memória geológica da
Baia de Vitória poderia ser relacionado às pesquisas da Land Art, mas com
nova ênfase ecológica, Piatan responde que o ambiente e seu entorno se
tornam elementos fundamentais na constituição da obra, assim como suas
características físicas e simbólicas.
O objetivo do trabalho é evidenciar, por meio desta linha azul, a violência contra o meio ambiente, anunciada como progresso, a Mata Atlântica que sumiu praticamente, a população indígena dizimada, o buraco na camada de ozônio, aumentando a temperatura do planeta devido à crescente emissão de poluentes (LUBE, 2009, p.32)
Em um exercício de busca intima, tenta através dela (a obra) responder a
muitas questões da contemporaneidade, como os problemas de ocupação
desordenados do espaço urbano, o engajamento pela conservação dos
ecossistemas litorâneos, a luta por terra dos índios oprimidos pelo povo branco,
enfim, tantas equações envolvidas que o que de fato chama atenção é o
discurso que surge em meio a tudo isso e que gradativamente vai encorpando.
O que ganha consistência como proposta conceitual em um segundo momento,
talvez nem antes nem depois, é a iniciativa, e que mais tarde vai se tornar
persistente, de afirmar que o trabalho é uma importante ferramenta para se
discutir o dilema da memória urbana na pós-modernidade e as infinitas
possibilidades de interação dos transeuntes/expectadores com as obras de arte
na cidade.
“A linha azul apresenta toda uma série de eventos históricos que envolveram Vitória no que tange à sua paisagem, essa que traduz toda ação do homem no espaço. Tal linha é um código e impõe uma leitura que está claramente inscrita na cidade e nela inscreve características culturais e pensamentos que movimentaram determinada época; a construção da paisagem é um processo histórico, onde são representadas as relações sociais entre homem e meio, criando os lugares dotados de valores comuns e individuais (LUBE, 2009, p.32).
Conforme o pensamento se expande, ao longo da fala percebe-se a
transição de um discurso munido de ideais sociais para um discurso
amadurecido pautado em conceitos chaves para arte contemporânea. Fala em
memória, relações sociais, paisagem, pertencimento, processo histórico. Busca
a partir desse ponto e através da arte convidar a cidade a pensar sobre ela
mesma, ao mesmo tempo em que através da linha traz a arte à superfície e
para a realidade visual dos seus habitantes.
Quando “Caminho das Águas” se insere e incorpora à paisagem, ganha
status de obra. Ganha autonomia. O programa de arte educação do Salão
colabora na transformação conceitual que o trabalho passa ao expandir seus
horizontes através de uma orientação direcionada e reflexiva. Agora convidava
os passantes, grupos agendados e os próprios monitores ao diálogo sobre
identidade e memória territorial.
Figura 31. Detalhes da obra “Caminho das Águas” no 8º Salão Bienal do Mar, 2008. Foto: arquivo LEENA/UFES
Uma das ações que ganhou destaque foi a distribuição entre os
abordados de um folder com fotos da cidade de Vitória antes dos aterros. Essa
iniciativa foi resultado da demanda de informações que
transeuntes/espectadores traziam a medida que a simples abordagem oral não
dava conta de gerar a ponte necessária entre o discurso e a leitura da obra.
Ao marcar o antigo limite entre mar e terra, a linha azul reativa e traz a
discussão o processo de mudança social, político e econômico que
transformaram a paisagem, contando histórias e revelando cicatrizes de
ocupação, desvelando um mar de perspectivas. A linha simbólica traçada no
concreto parece sugerir também um caminho a ser percorrido no espaço
urbano, desloca para o chão e o infinito o olhar do transeunte e o estimula a
múltiplas interpretações (LUBE, 2009).
Mas não podemos perder o foco. Por mais que seja instigante dar conta
das discussões que sucedem o trabalho, a vela mestre que impulsiona
“Caminho das Águas” continua sendo sua iniciativa de se apropriar dos
espaços públicos e discutir o resgate de uma memória urbana através da arte.
Ao falar da cidade para a cidade incorpora uma tendência de valorização do
passado, e que está invariavelmente relacionada a uma mudança de postura
no que diz respeito às incertezas do amanhã, resultado de um colapso do
projeto de construção de uma sociedade nova e mais justa, dentre outras
decepções, tornaram bastante incerto aquele futuro pelo qual tanto se
esperava.
Figura 32 - Frente e verso de folder produzido pelos monitores Filipe Frauches Mecenas Marcel Nascimento Rosa, Patrícia Mendonça Almeida e Rejane Afonso Teixeira
27
Talvez a obra não seja o caminho de ruptura com as futuras gerações,
mas parece ser um compromisso com a memória que ainda respira na cidade.
Sua linha não apenas marca, como nos esfrega a face, o que antes foi um
27
Imagem e créditos retirados do blog oficial do programa de arte educação do Salão Bienal do
Mar. http://artedu-celialice.blogspot.com.br/
limite, não nos deixando esquecer que por ali o mar já esteve e que por cima
dele caminhamos todos os dias. Mostra e demonstra o quanto somos páginas
a serem viradas como aqueles que por ali viveram antes de soterrarem seus
passos. Esse compromisso com a memória da cidade foi entendido como um
possível (e viável) compromisso global. Quantas cidades, ilhas ou não,
sofreram o mesmo processo? A ação poderia habitar em muitas cidades
litorâneas brasileiras que viram a transfiguração através dos aterros. Sua
matéria é a investigação das urbes perdidas no tempo (LUBE, 2012).
4.3.2 Da obra se fez projeto
O caso de Desterro
Historicamente as capitais ilhas do projeto de Piatan se diferem em sua
constituição. Diferentemente de Vitória, a ilha de Florianópolis durante quase
dois séculos foi lugar de passagem de muitos navegadores europeus que
buscavam em suas dóceis terras o refúgio necessário para reporem as forças e
seguirem adiante em suas explorações marítimas. Habitada nos primórdios
pré-históricos pelo homem de sambaqui28, e posteriormente pelos índios tupi-
guaranis, que possuíam a característica marcante de sempre receberam os
brancos com grande cordialidade e curiosidade; a ilha desde então possuía em
sua constituição hábitos sedentários ligados à pesca e a agricultura, atrativos
significativos para aqueles que precisavam de lugar seguro e confortável
durante longas expedições, na sua grande maioria em direção as terras ao
extremo do continente sul-americano.
O povoamento da Ilha de Santa Catarina teve início entre 1651 e 1673
por iniciativa do bandeirante vicentista Francisco Dias Velho29 que enviou seu
filho acompanhado de pequena comitiva de São Paulo com o objetivo de
desenvolver um empreendimento agrícola na região. Porém, os registros
28
Por volta de 10 mil anos atrás, as transformações da natureza foram responsáveis pelo deslocamento das populações que habitavam o continente americano. A elevação dos níveis de temperatura e dos oceanos motivou os homens dessa época a se deslocarem para as regiões litorâneas da América. A presença humana nessas localidades foi comprovada por meio de aglomerados de conchas e restos de peixes com mais de trinta metros de altura. http://www.brasilescola.com/historiag/os-povos-sambaquis.htm acessado em 27 de Fevereiro de 2014. 29
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Florian%C3%B3polis acessado em 27 de Fevereiro de 2014
históricos consideram o ano de 1675 como o ano de fundação do povoado da
então Nossa Senhora do Desterro, em alusão a sua padroeira. Quando, devido
a sua privilegiada localização geográfica, passa a ser ocupada militarmente a
partir de 1737, o povoamento da ilha se intensifica e alavanca maior
desenvolvimento principalmente através da agricultura e da indústria
manufatureira de algodão e linho30. Ainda no século XVIII, uma decisão da
corte Portuguesa incentiva a vinda de inúmeros colonos oriundos
principalmente da Ilha de Açores com o único intuito de fortalecer e acelerar o
povoamento do território.
Desterro se transforma em cidade no ano de 1823, tornando-se capital
da província de Santa Catarina, período de grande prosperidade com os
investimentos oriundos de recursos federais. Projetou-se a melhoria do porto e
a construção de edifícios públicos, entre outras obras urbanas. A modernização
política e a organização de atividades culturais também se destacaram,
marcando inclusive os preparativos para a recepção ao Imperador D. Pedro II
(1845). Com o advento da República (1889), as resistências locais ao novo
governo provocaram um distanciamento do governo central e a diminuição dos
seus investimentos. A vitória das forças comandadas pelo Marechal Floriano
Peixoto determinaram em 1894 a mudança do nome da cidade para
Florianópolis, em homenagem a este oficial31.
Avançando pelo século XX percebemos que a estrutura urbana de
Florianópolis pouco mudou até meados da década de 1950, quando ares de
interior ainda se sobressaiam na rotina “pacata” da ilha. Até 1926, o acesso a
suas terras ainda eram pelo mar, panorama que mudou com a inauguração da
Ponte Hercílio Luz, hoje patrimônio histórico e arquitetônico. A ameaça de
transferência da capital Catarinense para outra cidade devido as péssimas
condições de transporte entre a ilha e o continente através do antigo cais,
forçou o governo vigente a realizar além da inauguração da Ponte uma grande
reforma urbanística, que viria não apenas modernizar a travessia mar-terra
como melhorar as condições gerais da população. Nesse contexto de
30 Dados coletados no site http://floripendio.blogspot.com.br/2010/06/florianopolis-dados-e-historia.html acessado em 27 de Fevereiro de 2014. 31
Informações retiradas do site da Prefeitura Municipal de Florianópolis. http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/turismo/index.php?cms=historia&menu=5 acessado em 28 de Fevereiro de 2014.
modernidade, regras de higiene e urbanização da cidade, surgiram os
trabalhos para construção de um novo cais que veio a substituir o antigo
Trapiche Municipal32.
Outro ponto significativo na história urbana da cidade de Florianópolis é
o inicio dos aterros na década de 1970. A partir da década de 1950, a capital
começou a ser dotada de edifícios de mais de oito andares destinado a
escritórios e apartamentos na parte mais central, e somente apartamentos em
outras áreas. Na década de 1960, com a chegada da Universidade Federal de
Santa Catarina e a implantação da BR 101, houve um crescimento na
população causando também uma expressiva evolução no plano urbano33.
Diante de um significativo crescimento populacional a ilha precisava ganhar
área, e os aterros foram a solução encontrada para expandir a malha urbana.
Junto com os novos habitantes, novos hábitos. A malha rodoviária não
suportava mais o crescente número de veículos.
Apesar dos primeiros aterros, como as primeiras intervenções na região
da Prainha, ainda no inicio do século XX, terem a função de higienizar e
melhorar as condições sanitárias da capital, o aterro da Baia Sul proporcionou
um acréscimo de 6 (seis) quilômetros quadrados, mudando substancialmente a
relação do sujeito com a cidade. Através dessa nova área foi possível escoar o
fluxo oriundo de duas novas pontes que ligaria o continente a ilha de forma
mais eficiente e segura, desafogando a já desgastada e ameaçada Ponte
Hercílio Luz. Estudos mostram que os primeiros objetivos para a região do
aterro “eram a implantação de espaços livres e de lazer, praças cívicas,
sistema viário, edifícios de administração pública, edifícios residenciais, áreas
industriais, edifícios de escritórios privados, comércio, a expansão da cidade
nova sem a inércia da parte histórica34”.
32
Eram toscas pontes de madeira que entravam algumas dezenas de metros no Estuário, alcançando o convés dos navios a vela - que não podiam se aproximar mais das margens, sob pena de encalharem no lodaçal (http://www.dicionarioinformal.com.br/trapiche/) 33
Informações do portal http://www.arq.ufsc.br/urbanismo1/2005-1/final/final_km.pdf acessado em 05 de Março de 2014. 34
Informações do portal http://www.arq.ufsc.br/urbanismo1/2005-1/final/final_gc.pdf acessado em 05 de Março de 2014.
Figura 33 - Antigo Cais Municipal (abaixo da Praça XV), antes da sua reforma, ainda de madeira, e Cais do Miramar, já reformado em 1930.
Porém, tudo não passou de uma grande utopia progressista,
característica marcante do urbanismo consagrado pelos estudos de Le
Corbusier. Trata-se de uma
“visão racionalista, tecnocrática, a-histórica, que ignora as tradições culturais e pretende estruturar o presente e o futuro, levando em considerações as novas tecnologias e materiais de construção e idéias “progressistas”, em que prevalecem os princípios da higiene, da luz, da ventilação, da circulação (FREITAG, 2006, p.63).
Suas reais funções hoje são de área de circulação de veículos, terminal
rodoviário, estação de tratamento de águas e esgoto, sambódromo e, de
herança, um enorme vazio urbano.
“Florianópolis, até o início dos anos 70, tinha o mar junto ao centro histórico. O mar, seu ritmo, seu cheiro, seu ‘temperamento’, as práticas, usos e técnicas por ele demandados, implicam na maneira das pessoas relacionarem-se com o meio. Seus hábitos, enfim, suas formas de produzir cultura, todos os seus equipamentos sócio –técnicos ligados ao mar, compõem a maritimidade do lugar. Existia um contínuo entre a cidade e o mar. Existiam rampas, trapiches, praia,
escadas, que permitiam o acesso às águas (...)”35
35
Relato extraído do portal http://www.arq.ufsc.br/urbanismo1/2005-1/final/final_gc.pdf acessado em 05 de Março de 2014.
*****
Nesse ponto, aproximamos as duas cidades-ilhas do projeto artístico de
Piatan: Vitória/ES e Florianópolis/SC. Vamos compreender mais a frente que
“Caminho das Águas” não apenas fala das águas que por ali existiam. Fala
também daquela paisagem configurada pela morfologia natural do ambiente
que não mais existe. Fala de (des)configurações. Chama à lembrança a
estreita relação do homem com o mar, seus aromas, seu tempo alargado no ir
e vir do continente a ilha. Fala das antigas construções inspiradas na
arquitetura portuguesa sobre o alinhamento das vias, costumeiramente
respeitando as variações dos terrenos. Descer e subir. E mesmo apesar de
possuir um “padrão colonial”, era sempre fluida, linear. Fala enfim, de uma
ausência materializada nos fragmentos.
“Caminho das Águas” foi pensada e construída para ser específica. Após
a experiência adquirida ao longo de todo processo que resultou na participação
da Bienal do Mar, Piatan parecia ter em mãos a certeza que sua proposição
poética lhe garantia possibilidades reais de expansão. O pensamento dilata. A
linha deveria agora marcar novos territórios. Lugares onde a história de
transformação urbana fosse similar e que lhe propiciasse reverberar seus
conceitos e códigos estabelecidos no primeiro momento em Vitória/ES.
Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina era o destino. O Edital
de Arte e Patrimônio do IPHAN o meio de realização. O ano, 2009. A propósito,
o referido Edital estabelece linhas de financiamento a projetos que
desenvolvem diálogos entre as artes visuais contemporâneas e o patrimônio
artístico e histórico nacional, visando relacionar dois universos de referências
culturais, por um lado, trabalhos artísticos e processos estéticos atuais e, por
outro, os acervos, as tradições, as culturas e os sítios que estabelecem a
memória do País36. O edital fala em patrimônio artístico. Memória. Sítios. Ora,
“Caminho...” trata as cidades como sítios arqueológicos, paisagens ricas em
vestígios antropológicos e sociais. Mas não estamos falando em patrimônio
edificado. Não podemos apalpar, segurar, entrar, mas podemos sentir,
enxergar, vislumbrar as tantas histórias (e estórias) contadas através da linha.
36
Mais informações no site http://www.artepatrimonio.org.br/regulamento.php
Figura 34. Detalhes da área da intervenção artística em Florianópolis/SC, 2009. Fonte: Acervo do artista.
Ao ser considerada linha de patrimônio histórico e artístico, a obra
cresce e se transforma em um projeto ambicioso que poderia ganhar tantos
outros mares. Mas é na ilha que a obra encontra seu caminho (LUBE, 2012).
Inúmeras cidades ao longo do litoral brasileiro com certeza receberam
modificações em seus traçados originais em nome do progresso. O mar
compõe nossa genética e as ilhas são como extensões de nosso farto território.
Habitá-las era questão de necessidade e logo cidades seriam levantadas,
moldadas, erguidas para o alto e para frente. Expandir era preciso.
Naturalmente suas margens foram sendo dilatadas e redesenhadas. Pontes e
conexões com o continente não seriam mais suficientes para dar conta do
desenvolvimento urbano estabelecido. Enfim, muitas “ilhas” foram de encontro
à terra firme e preservaram apenas o nome de sua formação geológica como
lembrança do que um dia foram. Vitória/ES e Florianópolis/SC resistiram e se
tornaram capitais, o que não significa que passaram sem cicatrizes por esse
processo.
Quando o projeto “Caminhos das Águas” é aprovado no Edital 2009 do
IPHAN, Piatan possui novo desafio. Se antes falar de Vitória é natural por lá
habitar e diariamente (com)viver. Desvendar e revelar as memórias
entranhadas de outra ilha-capital passa a exigir um exercício maior de
apropriação de velhas novas histórias. Falar em memória da cidade pode ser
“fácil” quando fazemos parte dela. Transferir seu conteúdo a outra realidade
exige sacrifícios. É preciso entender suas engrenagens e de alguma forma
funcionar junto. Como exercício vem à residência. Processo comum nas
práticas artísticas da contemporaneidade colabora no deslocamento do artista
para outro contexto cultural, com o objetivo de desenvolver um processo de
criação artística associado à troca de experiências, linguagens, conhecimentos
e realidades37. Estamos falando de um processo onde o maior objetivo são as
trocas culturais, políticas e simbólicas, fortalecendo os vínculos entre os
agentes envolvidos no desenvolvimento do projeto e propiciando ao artista
participante porta de entrada para enfim iniciar seu processo pessoal de
construção de uma nova realidade. Mergulhar fundo, prospectar, intuir, respirar,
pulsar.
37
Conceito retirado do site www.funarte.gov.br/.../Apresentação-oficinas-Interações-2012
Figura 35. Imagens do material de divulgação do projeto “Caminho das Águas” – Vitória/ES e Florianópolis/SC, 2009. Fonte: Acervo do artista.
O esforço monumental de entrar em novo contexto simbólico passava
pelo processo de estudo do outro ambiente. Era preciso chegar novamente aos
limites originais entre mar e terra. O espírito antropológico que habita em
Piatan se especializa em uma cartografia do passado. Poeta que escreve em
linha azul memoriais geográficos das capitais-ilhas. Mas para recomeçar era
preciso se esvaziar. Não dos conteúdos. Talvez da impregnação referencial
que a regionalização gera. Digo talvez porque sabemos que essa limpeza
jamais acontecerá. Como apontamos na relação da memória individual com a
memória coletiva. Por isso, ficou estabelecido que a metodologia não fosse
muito diferente da realizada em terras capixabas: análise do mapeamento dos
aterros em arquivos públicos, livros de história com descrição física da cidade,
documentos, mapas antigos, relatos, conversas, interação, apoio operacional
do poder público local, enfim, tudo que possa ou deva contribuir para o
entendimento da paisagem que logo logo receberia a intervenção.
Mas o trabalho pede mais que conceito, mais que uma experimentação
de convívio; pede paixão, pois é árdua a tarefa a executar, e a residência
proporciona o fundamento vital que é a escuta do lugar (LUBE, 2012). Mas não
é simplesmente escutar. Trata-se de uma escuta poética. Por maior que seja a
tentativa, o artista navegante jamais será como um habitante local. Ele chega e
vai. A memória a ser revelada não é mais a da cidade em questão. Quando se
aventura a navegar em outros mares, ele agora trabalha com um conceito
universal de memória da cidade, ou muitas vezes aqui chamado, “memória
urbana”.
O resgate do passado de um lugar requer a utilização de vestígios que
ficaram no tempo/paisagem, sempre a partir de contextualizações dos
referencias que extrapolam a singularidade que aquele local pode lhe
proporcionar. Ao fazer história suprimimos as particularidades e assim nos
distanciamos do mundo seletivo das memórias. Já que não fazemos parte
daquele grupo social, nossa memória individual não colabora na formação da
memória coletiva do lugar.
Para dar conta de outros ambientes precisamos lançar mão de referências universais, perdendo aquilo que é fundamental na constituição de qualquer memória de cidades, que é a sua individualidade. [...] Por essa razão, as conclusões sobre uma determinada cidade que se estudou podem ser aplicadas, sem solução de continuidade, a muitas outras cidades. Seguindo-se
a definição acima, o que foi recuperado foi a “memória urbana” e não a “memória da cidade (ABREU, 1998, p.18)
O que a linha azul de “Caminho das Águas” se propõe é ser parte dessa
particularidade, desse algo a mais que difere um lugar do outro. Por mais que o
idealizador da obra não consiga atingir as camadas mais profundas da história
singular daquela cidade, por mais que exercite a prospecção das variadas
camadas existenciais que repousam sob aquele solo, somente seus
transeuntes podem através dela (a arte/obra) ativar as marcas de constituição
da identidade local; desde que se permitam interagir e atingir fundo as águas
submersas em concreto e asfalto. Mas trata-se de uma leitura poética dos fatos
históricos, afinal estamos falando de arte. Não se pode, e o artista tem real
noção de suas possibilidades, pretender dar conta na totalidade de tudo e de
todos.
Ao lutar com pinceis e rolos de tinta contra os conceitos que dizem “não,
você não vai conseguir revelar a verdade”, Piatan assume seu papel de
roteirista de uma ficção que almeja ser história real. Ao planejar o trajeto a ser
pintado reconhece a impossibilidade de seguir fielmente os limites originais que
separavam mar e terra. O que está em jogo, muito mais do que seguir as riscas
as primeiras cartografias da ilha, é a necessidade, acima de qualquer outra
coisa, de interação com o lugar. Reconfigurar o passado através da linha azul é
o que podemos chamar de licença poética. A memória coletiva da cidade não
vai ser burlada por essa adaptação. Muito pelo contrário. Ganhará novos
contornos sem jamais perder sua essência.
Pode-se admitir enfim que o pertencimento é uma tendência do projeto
poético da obra de arte inserida na cidade; e dele decorre a noção de
coletividade. Pública, então, já o é a arte na sua concepção uma vez que sua
natureza (a da arte) é para o outro e seu entorno (CIRILLO 2009). Nesse
sentido o projeto como um todo (Vitória/ES e Florianópolis/SC) se equivalem
independente da relação do artista com a cidade. O foco é a obra e é ela que
interage diretamente com a paisagem urbana. É o elo de pertencimento que
une o transeunte a sua memória, e conseguinte a memória coletiva da cidade.
Essa relação é capaz de ativar/resgatar/buscar no espectador um conteúdo
inconsciente facilitador para uma aproximação afetiva entre ele, a obra, a
cidade, seu entorno ou tudo mais que possa remeter naquele momento de
interação; independente de um senso estético de gosto ou admiração (belo e
feio bom e ruim). “Caminho das Águas” é sim oportunidade de recuperação do
passado pelo singelo gesto de convidar a todos a percorrer sua linha sem
compromisso.
Hoje, muito do seu azul está apagado, se esvaindo como a memória que
se perde quando nos esquecemos de guardar o que nos é caro. Quando o
passado não serve para o futuro é no presente que deixamos ele ir. Assim, é o
tempo que passa, assim são as águas que chegam e silenciosamente se vão
com o movimento das marés. Assim somos nós. Habitantes de cidades que
lutam para preservar o que ainda resiste na paisagem de ontem. Assim
também se faz história. E por mais que aquela linha azul um dia se apague de
vez, é por meio da reflexão já instituída que permaneceremos no constante
movimento incansável de ir e vir em seu infinito caminho.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 36. Piatan Lube, Caminho das Águas, Vitória, ES, 2008 Fonte: Acervo do artista
Vimos que Piatan Lube, em seu trabalho “Caminho das Águas”,
apresentado no 8° Salão Bienal do Mar, buscou, mesmo que provisoriamente,
provocar/resgatar uma pequena memória coletiva ao traçar com uma linha azul
as antigas formas geográficas do arquipélago de Vitória, sobrepondo-se à
forma contemporânea da cidade. A linha azul provocou no
transeunte/espectador uma projeção visual de uma cidade que não existe mais,
que agora jaze sob nossos pés e que dorme no esquecimento de um passado
que a maioria dos habitantes dessa nova cidade ignora ou simplesmente
desconhece. Quem hoje sabe disso? Pergunta o artista (Catálogo da Bienal do
Mar, 2009,p.21).
E por que não partir em movimento contrário? Por mais que exista uma
grande possibilidade do não reconhecimento do passado, por mais que, para a
grande maioria dos transeuntes a linha azul seja de fato apenas uma linha azul
manchando sua rotina; para aqueles que a obra consegue atingir, Bergson
(2011, p.59) fala em “lembranças-imagens”, onde as lembranças pessoais
(onde poderíamos categorizar como uma memória oficial, já que sua existência
cabe ao seu pertencido) essencialmente fugazes, só se materializam por
acaso, seja porque uma determinação acidental de nossa postura as atraia,
seja porque a indeterminação dessa postura deixa o campo livre para o
capricho de sua manifestação. Ora, se considerarmos que o acaso aqui pode,
e é, a obra de arte, esta por sua vez, ao invadir o cotidiano de quem
inconscientemente circula pela cidade, consegue provocar a manifestação do
passado através da geração de uma imagem-passado.
Quando Bergson aponta a memória em direção à imagem, usa como
exemplo uma conversa para demonstrar que existem fatores externos – neste
caso incitado pelo interlocutor, capazes de conduzir nosso
pensamento/trabalho intelectual por caminhos capazes de acessar conteúdos
outrora adormecidos.
O esquema motor, ao sublinhar as entonações de nosso interlocutor, ao acompanhar, de desvio em desvio, a curva de seu pensamente, indica o caminho para o nosso pensamento. Ele é o recepiente vazio que determina, por sua forma, a forma para o qual tende a massa fluida que nele se precipita (BERGSON, 2011, p.60).
Através desse pensamento podemos então considerar a obra de arte
como um interlocutor bergsoniano. O que nos gera mais alguns
questionamentos. Seria ela (a obra) capaz de conduzir nossas lembranças por
caminhos de uma memória até mesmo inexistente? Ou quem sabe estamos
falando de uma memória coletiva; que não vivenciamos, mas que
desenvolvemos uma percepção através de uma história oficial dos lugares e
dos povos?
Seguindo a linha de raciocínio, Bergson busca conceituar o que ele
chama de imagem-lembrança, primeiramente como ideia, e depois como
sensação, afirmando ser quase impossível determinar onde uma ou outra
começa e termina. Fala em constante mudança, confusão de percepção.
Porém é preciso, como ele mesmo afirma, através de um pensamento
científico, analisar essa série ininterrupta de mudanças, cedendo a uma
irresistível necessidade de figuração simbólica (BERGSON, 2011, p.61).
Cria para consolidar o entendimento entidades independentes, três
termos: percepção bruta, imagem auditiva e ideia (BERGSON, 2011, p.61), que
nos permite considerar aqui como “percepção, visualização e conceito”. Com
essa distinção, se formos à busca de uma experiência pura, era da ideia que se
devia partir todo o processo, sendo o som bruto (sem significação a priori)
completado pela lembrança, o que não significa que o inverso estaria errado,
podendo afirmar que vamos da percepção às lembranças e das lembranças à
ideia. Ou seja, de fora para dentro, das experiências vivencias a percepção
mental. Seria aqui a ideia como um ente primário, independente de uma
vontade, anterior até mesmo ao subconsciente.
Para finalizarmos o pensamento discorrido ao longo desta pesquisa e
diante do exposto, fica a questão: Por que então as lembranças se tornam
imagem? Bergson (2011, p.61) afirma, “de modo geral, de direito, o passado só
retorna à consciência na medida em que se possa ajudar a compreender o
presente e a prever o porvir: é um batedor da ação”.
Em outras palavras, podemos afirmar que o passado tem uma função de
significação do presente, podendo ser ativado tanto por uma a revelia, de forma
instantânea, quanto propositalmente, tendo como perspectiva a construção de
um futuro diferente. Quando tensionamos este pensamento para a relação do
transeunte/espectador e a obra de arte produzida no cenário urbano,
percebemos que essa faculdade da memória abre um campo quase
inesgotável de possibilidades ao artista.
Nesse sentido, a arte pública, como explica Maderuelo (S/D, p.31), não se
esgota em um tipo de forma, modelo, imagem ou material. Não é um estilo que
se reconhece por alguma característica formal ou material de algum tipo de
formas, modelos, imagens ou material, mas que tem muitas facetas e
interpretações. Por isso esse tipo de arte vem se diferenciando pelos aspectos
de durabilidade ou pela efemeridade, que podem ou não, sugerir a ideia de
resgate de uma memória urbana, como é o caso do projeto, poético e
propositivo, “Caminho das Águas”.
Piatan, quando ainda navegava em águas capixabas, projetou ir para
além de Florianópolis. Apesar de não ter materializado a obra na ilha-capital de
São Luiz do Maranhão, podemos afirmar que estabeleceu pontes e conexões
com as três cidades – Vitória Florianópolis São Luiz Vitória.
Figura 37 – Projeção de intervenção da obra “Caminho das Águas” nas três ilhas-capitais brasileiras. Fonte: Arquivo do artista
A não concretização da terceira, e última etapa do projeto, não deixa de
gerar a reflexão memorialística que a obra suscita em seu aspecto mais amplo.
Ao provocar nos usuários-habitantes-transeuntes-espectadores uma retomada
de uma memória muito mais coletiva, do que individual; Piatan nos autoriza a
expandir tal discussão a todo território insular do País. Quantas cidades
brasileiras constituídas a beira-mar não sofreram, e ainda sofrem, com a
urbanização que desconfigura sua paisagem? Lembrem: falar em paisagem,
seja ela natural, cultural ou urbana, não nos comove mais. Quando falamos em
cidade, leia-se que estamos falando de uma paisagem que é típica de
morfologia urbana. No caso específico das cidades litorâneas, a mesma
contemplação afetiva que se dá ao mar, se concerne ao horizonte concretado
de cinza das inúmeras avenidas que corta o sítio urbano. Por fim; paisagem.
A verdade é que, se falamos em arte, independente de que natureza seja;
falamos em percepção, e se uma percepção evoca uma lembrança, segundo
Bergson (2011, p.62), é para que as circunstâncias que precederam e
acompanharam a situação passada e seguiram-se a ela lancem alguma luz
sobre a situação atual e mostre como sair dela. Talvez não sair dela como se
sai de uma enrascada, mas como um caminho de acesso ao conteúdo
proposto, ou como neste caso, evocado. Seguindo o raciocínio, porém
estreitando a leitura, podemos apontar a percepção aqui trabalhada como
experiência estética.
Pensar desta forma pode colaborar no entendimento da arte como
possibilidade de significação pessoal para o espectador. A relação do
espectador/transeunte com a arte estabelecida ao vivenciar uma obra no
cenário urbano é capaz de ativar/resgatar/buscar um conteúdo inconsciente
facilitador para uma aproximação afetiva independente de um senso estético
de gosto ou admiração (belo e feio, bom e ruim). Mais ainda, através dessa
relação é possível trabalhar conteúdos desconhecidos e até naquele momento
inexistentes. Podemos finalizar falando de uma associação por semelhança, ou
resumir dizendo que, embora a totalidade de nossas lembranças exerça a todo
instante uma pressão do fundo do inconsciente em direção ao agora, a
consciência atenta à vida só deixa passar, legalmente, aquelas que podem
concorrer para a ação presente (BERGSON, 2011, p.63).
“Caminho das Águas” é a lembrança que emerge do fundo, literalmente.
Vem para nos indagar, provocar, e por que não, contribuir. São as águas
silenciadas pelo tempo, que inesperadamente amanhecem no caminho de
quem outrora não se percebeu personagem de um passado nem tão distante
assim. A linha azul, para aqueles que a obra tocou, é como uma página de um
livro antigo. Arrancada pela mão do artista, paira em leves brisas na paisagem
a procura de um adormecido. Quando encontra, ganha novo fôlego ao ser
(re)registrada pela mesma história que a compõe, com a diferença que agora o
leitor está atualizado de novos conteúdos, podendo, quem sabe, lhe oferecer
outra roupagem, perante o que um dia, foi.
6. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
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Janett Cardiff & George Miller
http://www.cardiffmiller.com/artworks/walks/bahnhof.html acesso em 02 de
Outubro de 2014.
ANEXO A - Alguns outros documentos da obra "Caminho das Águas"
Figura 38 - Registro de construção da obra "Caminho das Águas" em Florianópolis. Fonte: acervo do artista.
Figura 39 - Registro de construção da obra "Caminho das Águas" em Florianópolis. Fonte: acervo do artista.
Figura 40 - Registro de construção da obra "Caminho das Águas" em Florianópolis. Fonte: acervo do artista.
Figura 41 - Registro de construção da obra "Caminho das Águas" em Florianópolis. Fonte: acervo do artista.