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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Lesnovski. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017;3(gt3):1-20 Entre o ordenamento e o inesperado: reflexões preliminares sobre a controvérsia nas práticas do design GT3 – Produção De Conhecimentos E Artefatos – Experiências Interdisciplinares Em Design Melissa Merino Lesnovski

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Lesnovski. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017;3(gt3):1-20

Entre o ordenamento e o inesperado: reflexõespreliminares sobre a controvérsia nas práticas dodesign

GT3 – Produção De Conhecimentos E Artefatos – ExperiênciasInterdisciplinares Em Design

Melissa Merino Lesnovski

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lesnovski. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017;3(gt3):1-20

INTRODUÇÃO

Ao longo da trajetória história de publicações sobre os processos e práticas do design,

a abordagem da controvérsia no design acompanha a visão sobre o que viria a ser o próprio

design, encontrando diferentes respostas ao longo das décadas, fundadas na visão de mundo e

nas referências epistemológicas vigentes.

Em suas diversas manifestações e consequentes significações no processo de design, a

controvérsia provoca disrupção, em maior ou menor grau: o indesejado causador de

problemas, a desordem tão inerente ao projeto que não é digna de supressão, o confronto

criativo de ideias adversárias (LESNOVSKI, 2017). Esse protagonismo da controvérsia na

prática projetual reforça sua relevância para pesquisa – ela relativiza certezas, perturba

ordenamentos existentes e catalisa novos ordenamentos, consistindo em um elemento, ou

força, influente nas práticas do design e que emerge situada em cada contexto projetual.

Embora seus efeitos sejam sensíveis, a controvérsia não possui materialidade própria e até

mesmo sua temporalidade é sutil e deslocada: notam-se as repercussões de controvérsias

instaladas no passado e, até então, silenciadas. As possibilidades de investigação ocorrem a

partir de seus rastros materiais explicitados nas relações de prática projetual entre os atores de

uma situação de controvérsia conflagrada ou potencial.

Enxerga-se, pois, espaço e oportunidade para tratar especificamente da controvérsia

dentro do design: se as conversações sobre métodos, processos, práticas e paradigmas não

escapam às variações da entropia residente em cada situação, esforços rumo a uma

compreensão das agências da controvérsia no design poderiam prover subsídios para tornar os

modelos vigentes mais aptos à aplicação.

Este artigo abraça tal provocação e elabora reflexões preliminares a partir dos achados

de três estudos de caso que originalmente examinaram o caráter formalizador e ordenador de

artefatos projetuais, mas que se encontraram em meio a relatos e evidências que apontavam

para o protagonismo da controvérsia nos rumos projetuais, vinculada à entropia residente e

tão mais ostensiva quanto mais dissimulados fossem seus mecanismos de revelação.

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A partir das lentes dos estudos sociotecnicos, estruturou-se três eixos de discussão,

abordando os derrames de controvérsia em meio a dispositivos de ordenamento, a abordagem

do problema de design como um diálogo em meio à entropia e perspectivas para o

acolhimento da controvérsia como força motriz projetual.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Se a prática de serviços de design ocorre entre indivíduos e organizações distintas, é

necessário percorrer as diferenças entre os modelos mentais vigentes em tais serviços e suas

possíveis conexões com controvérsias no processo projetual.

As diferenças de modelo mental são originárias da diversidade entre as empresas

fornecedoras de design e suas organizações clientes, ampliando-se desde as fases iniciais até o

final do projeto – e além desse marco. Nas primeiras, nota-se a influência da visão do

designer sobre seu próprio negócio (MOZOTA, 2011), romântica e fomentadora de mistério

sobre suas práticas (MEYER, 2010; DORST, 2015) e, por outro lado, tentando tornar a

atividade codificada e previsível (VERGANTI, 2012). Nas segundas, o cliente goza de

considerável influência na relação com o designer (MEYER, 2010), questionando a

exclusividade do designer sobre o pensar e fazer design.

As alianças entre os diversos stakeholders do processo de design se relacionam a seus

respectivos projetos de poder: redução de custos, motivações estratégicas, vantagem

competitiva (MOZOTA, 2011), conformando uma tapeçaria de intenções e expectativas

distintas - e potencialmente controversas. Tais intenções e expectativas são mais transparentes

quanto melhor sucedida for a emergência de requisitos dentro do projeto.

Haug (2015) posiciona o cliente do projeto de design como a fonte primordial de seus

requisitos - desejavelmente, todos os requisitos necessários à realização do projeto deveriam

ser apresentados por ele, de forma ordenada e inequívoca, no início do ciclo de trabalho,

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permanecendo imutáveis durante todo o curso do projeto. A emergência, a posteriori, de

requisitos desconhecidos ou, ainda, a alteração de requisitos previamente estabelecidos

ameaçaria a viabilidade do projeto, lançando por terra todos os esforços e recursos já

empregados pelo designer no processo. É necessário mencionar o brief de design como objeto

de atenção: se ele concentra declarações de expectativa e insumos projetuais, abrangendo

possibilidades, oportunidades e limites (MOZOTA, 2011), prestando-se menos à prescrição de

uma solução e mais ao enquadramento de um problema (PHILIPS, 2007; HAUG, 2015),

compreender seus agenciamentos em meio a (ou a partir da) controvérsia pode suscitar novas

e profundas reflexões.

A emergência de requisitos é um processo coletivo, do qual participa uma gama

variada de atores (BUCCIARELLI,1988; PHILIPS, 2007) que acrescentam palavras,

propostas, pedidos e súplicas direcionadas ao objeto a ser projetado, em um processo

dialógico que pode ser entendido como uma “conversação reflexiva” (HAUG, 2015; SCHÖN,

1983).

Como processo social, o levantamento de requisitos em design é controverso,

inundado pela incerteza e ambiguidade, onde cada ator expressaria seus desejos e angústias

em uma linguagem própria, derivada de seu object world - conceito introduzido por

Bucciarelli (1988). Deve-se levar em consideração que o levantamento de requisitos

representa a declaração de expectativas e recursos em uma fatia temporal, estando sujeito à

mudança no decorrer de toda a trajetória projetual – o que consolida a visão desse processo

como essencialmente social, sujeito às variações de opiniões, interesses, alianças e

significados ao longo do tempo.

Nesse cenário dinâmico, a controvérsia surge não apenas como o inesperado, mas

como um indicador de rearranjos e novas relações sendo forjadas, dando margem a uma nova

constelação de requisitos. Quais seriam, portanto, as consequências da remodelação do pensar

e fazer design em meio a contextos em ebulição constante?

Dorst (2015) posiciona o problema de design como aberto, complexo, dinâmico e em

rede, sendo inócuas as abordagens que não se adaptem às mutações da realidade. O autor

menciona o paradoxo, dentro do contexto de abordagem do problema, como essencial para

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seu enquadramento. Pode-se enxergar, nessa proposição,espaço para amplificar a reflexão

sobre as agências da controvérsia enquanto fomentadora da criatividade no projeto.

Utilizada como ferramental teórico na análise dos estudos de caso abordados, por dar

conta do murmúrio incessante de relações e arranjos dentro de um processo projetual, a Teoria

Ator-Rede apresenta uma metodologia coerente de incorporação dos não-humanos nos relatos

científicos, em uma tentativa de ruptura com a tradição filosófica que opõe objetos a sujeitos

(SAYES, 2013). Por sua perspectiva, a sociedade, suas organizações, agentes e máquinas

seriam todos efeitos gerados em redes padronizadas de materiais diversos, não apenas

humanos (LAW, 1992). Alguns tipos de interação estabilizar-se-iam e reproduzir-se-iam a si

próprias, gerando efeitos como poder, fama, tamanho, escopo ou organização (LAW, 1992).

O conceito de tradução aportado pela Teoria Ator-Rede, no sentido de equivalência,

deslocamento e traição (CALLON, 1984; LAW, 1997) é relevante para o estudo da

controvérsia no processo projetual, ao passo que provê lentes para análise dos constantes

agenciamentos realizados nas redes envolvidas em uma prática projetual e das controvérsias

produzidas por ou produtoras desses agenciamentos.

Adotada como ferramental teórico na análise dos estudos de caso abordados, a

Cartografia de Controvérsias é um conjunto de técnicas voltadas a explorar e visualizar

questões, um exercício de desenvolver dispositivos para observar e descrever o debate social,

especialmente o que envolve questões sociotécnicas (VENTURINI, 2010). “Apenas olhe para

as controvérsias e conte o que você vê”, é a exortação que Latour repete em suas lições, uma

declaração que implicaria no abandono de qualquer teoria, metodologia social, definições,

premissas, hipóteses, procedimentos ou correlações a priori. Uma topografia das

discordâncias, tensões, alianças e atores em uma situação, a cartografia de controvérsias

convoca o praticante a explorar todas as ferramentas de observação que tem à mão,

misturando-as sem restrições (VENTURINI, 2010).

Os princípios postulados por Venturini (2010) para a cartografia de controvérsias são

de especial valia para a análise de situações projetuais de design: a controvérsia envolveria

todo tipo de ator, humanos e não-humanos, embora suas agências não sejam necessariamente

iguais; as controvérsias exibem o social em sua forma mais dinâmica: todo ator pode ser

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decomposto em uma rede e toda rede pode se agregar para funcionar como um ator; as

controvérsias são resistentes à redução a questões simples; as controvérsias são debatidas; as

controvérsias podem ser abordadas como conflitos, sendo a construção de um universo

compartilhado frequentemente acompanhada de um choque entre mundos conflitantes.

A visão do projeto e práticas de design como assembleias socio-materiais (BJÖRGVINSSON

et al. 2012), onde o projeto é uma assembleia com objetivos, cronogramas, entregáveis, briefs

de projeto, protótipos, rascunhos, etnografias, edifícios, dispositivos, relatórios de projeto,

usuários, engenheiros, arquitetos, designers, pesquisadores e outros stakeholders, permite

compreender o projeto como espaço público de discussão, com grande heterogeneidade de

perspectivas entre atores em tentativas incessantes de alinhamento de seus objetos conflitantes

de design. Latour (2008) questiona se todo design não seria um design colaborativo – a

própria definição das políticas de questões de interesse – mesmo se, em alguns casos, os

colaboradores podem não ser visíveis, convidados à discussão ou mesmo dispostos a

colaborar.

Se o design lança mão de composições e conexões em sua processualidade, costurando

uma trama híbrida de elementos que se relacionam uns com os outros em assembleias

funcionais (NELSON, STOLTERMAN, 2012), é possível que a observação atenta da

construção incessante de assembleias possa revelar informações relevantes ao estudo sobre as

controvérsias. O movimento consolidaria uma mudança emergente do design, de

configurações pre-definidas a constelações de atores em constante movimento

(BJÖRGVINSSON et al., 2010). Tal visão é compatível com a de Sismondo (2010), segundo

o qual as pessoas, quando defrontadas com escolhas entre tecnologias, não têm como saber

qual opção seria melhor, independente de contexto. Suas escolhas devem, segundo o autor,

navegar entre constelações de interesses, metas, reivindicações, imagens e artefatos existentes

e potenciais. O trabalho do design e desenvolvimento tecnológico não seria, portanto,

reduzido a objetos ou redes de dispositivos, mas poderia ser visto como uma entrada nas redes

de relações de trabalho, o que incluiria disputas e alianças (SUCHMAN, 2002), em uma

realidade onde contextos, práticas e tecnologias são constantemente submetidas a mudanças e

demandam infraestruturação e alinhamento de interesses parcialmente conflitantes (STAR,

RUHLEDER, 1996).

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Essa colaboração na heterogeneidade de modelos mentais e interesses pode ser

compreendida através da perspectiva dos boundary objects, articulando modelos mentais (ou

object worlds) distintos, expondo divergências e fomentando a compatibilização de interesses.

A perspectiva dos boundary objects foi proposta por Star e Griesemer (1989), ao abordarem a

coexistência entre a heterogeneidade e a cooperação, investigando como grupos de pessoas

diferentes interagem quando são postos trabalhando conjuntamente - ainda que haja

divergências de interesses, objetivos e visões sobre suas próprias atividades. A duração de um

boundary object seria dependente da persistência das diferenças a serem negociadas – uma

vez que estas cessam, o boundary object torna-se uma infraestrutura, um conjunto de padrões

a ser seguido (STAR, 2010). Essa instância de infraestrutura permaneceria até novas tensões

irromperem, retornando o objeto à condição de boundary object, e assim sucessivamente. Para

esta pesquisa, o fato de que a transformação cíclica entre boundary object e infraestrutura não

estaria, necessariamente, vinculada a um momento temporal no projeto, e sim ao nível de

entropia, convergências e divergências sucessivas no decorrer deste, pode prover luzes para a

compreensão das controvérsias nas situações cartografadas.

ESTUDOS DE CASO

Este artigo encontra sua origem em um percurso de pesquisa anterior, que observou a

proposta comercial de design dentro do contexto de subdeterminação do problema de design,

como um possível boundary object mediando e articulando os interesses e relações de

diversos atores, dentro e fora da organização de design, na etapa comercial e ao longo do

projeto (LESNOVSKI, 2017), no qual foram empreendidos três estudos de caso.

A autora resgatou os questionamentos da indústria da comunicação digital sobre as

dificuldades da certeza, na etapa de elaboração de uma proposta comercial de projetos de

design digital, sobre o escopo a ser realizado. A proposta, artefato elaborado na etapa

comercial de um projeto, teria como objetivo cristalizar as decisões de escopo solicitado pelo

cliente e delimitar os recursos necessários para sua execução, restando dúvidas sobre sua

eficiência em consolidar um escopo cujos requisitos não estão totalmente emergentes e

maduros e que, ao longo do tempo, tendem a mutar.

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A proposta comercial de design seria gerada na confluência de diversos modelos

mentais: o do fornecedor do design, o do cliente do design e de demais atores que venham a

influenciar no processo. Sendo a emergência de requisitos um processo social, dependente da

interação entre os atores envolvidos no processo (BUCCIARELLI, 1988), pode-se enxergar a

proposta como boundary object, tanto no momento de sua elaboração quanto nos seus efeitos

ao longo do desenvolvimento do projeto (STAR, GRIESEMER, 1989). Da mesma forma, um

olhar sobre a proposta não poderia prescindir dos efeitos que provoca nos artefatos que a

antecedem e sucedem: estes também seriam boundary objects do processo projetual,

mediando relações em situações de diversos graus de entropia.

A perspectiva da teoria ator-rede e a ampliação provida por suas lentes às relações

entre atores humanos e não-humanos provou-se instrumental para acompanhar, na

investigação, a mediação agenciada pela proposta comercial e demais artefatos na constante

criação e dissolução de grupos ao longo do projeto.

A proposta de Latour e Venturini (2010) para uma cartografia das controvérsias guiou

a pesquisa para os pontos onde as relações entre os atores se tornavam mais visíveis.

Entrevistas foram pontos de partida para investigações subsequentes envolvendo análise

documental e construção de modelos para compreensão e reflexão sobre o conteúdo

apreendido.

O método de pesquisa envolveu dois movimentos investigativos. O primeiro

movimento abrangeu entrevistas com especialistas na área comercial de agências digitais para

mapear a trajetória de composição da proposta comercial e seu deslocamento, traduzido em

outros artefatos, ao longo do projeto. Os achados do primeiro movimento foram consolidados

em um modelo do percurso da proposta comercial, seus artefatos geradores e sucessores ao

longo do projeto, assim como os atores envolvidos nas traduções realizadas, exibido na Figura

1, a seguir.

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Figura 1 - Modelo da trajetória da proposta comercial a partir de entrevistas com

especialistas.

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Fonte: LESNOVSKI, 2017

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O segundo movimento contemplou um estudo de caso composto, com múltiplas

unidades de análise, investigando três projetos de criação de websites com análise documental

e entrevistas com os principais atores nas organizações envolvidas: uma associação do varejo,

um centro de convenções e um hospital. A cada um dos casos, o modelo elaborado no

primeiro movimento (Figura 1) foi aplicado, observando coincidências e dissonâncias de

estratégias, fluxos e padrões de abordagem das divergências.

Os três casos selecionados pela autora para a pesquisa, de complexidade comparável

de escopo, visavam apresentar um panorama de equivalências entre projetos realizados pela

mesma agência de design para três organizações diferentes. Sua intenção inicial era consolidar

a visão de que a proposta comercial de design desempenharia papéis mediadores similares em

todas as situações estudadas. Contudo, ao longo das entrevistas e do levantamento documental

nos três casos de estudo, observou-se que, em cada caso, as estratégias de composição e os

papéis mediadores da proposta comercial eram substancialmente distintos e vinculados ao

ordenamento - e reordenamento - suscitado pela configuração da controvérsia existente. Ao se

tentar sobrepor o modelo construído a partir das entrevistas com especialistas à realidade dos

três casos, pode-se observar divergências substanciais, como mostra a figura 2.

Figura 2 - Comparação entre o modelo e os três casos abordados

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Fonte: LESNOVSKI, 2017

Em cada caso a composição e articulação dos artefatos mediadores variou

substancialmente em função do nível de entropia vigente. No primeiro caso, houve um ajuste

maior ao modelo, em uma situação em que havia poucos stakeholders e grande previsibilidade

dos processos e práticas projetuais a serem adotados. No segundo caso, a quantidade de

influenciadores do projeto aumentou, assim como o distanciamento de parte dos

influenciadores do dia a dia do projeto - como a situação era conhecida desde as etapas de

briefing comercial, as práticas comerciais e projetuais foram modificadas para comportar um

dado nível de incerteza nas definições de escopo ao longo do projeto. No terceiro caso, o

elevado número de influenciadores e a dinâmica de poder entre eles tornou inviável a previsão

de escopo e tornou-se necessário antecipar etapas projetuais para gerar externalizações

capazes de mediar as discussões.

Nos casos abordados, a controvérsia residente nos coletivos de humanos e não-

humanos foi determinante das estratégias de abordagem projetual ainda na etapa comercial.

Seria possível, pois, prever processos e práticas projetuais que não levassem em conta a

controvérsia em cada sistema? Duas posições possíveis e identificadas nas entrevistas com

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especialistas mostram a controvérsia ou como algo indesejado no projeto (e indicador de

problemas) ou como algo tão inerente ao processo de design que não seria digno de maior

atenção. Este artigo acrescenta uma terceira ponderação - de que a controvérsia talvez

merecesse olhares mais atentos não apenas como algo a ser evitado, mas também como um

possível ativo a ser explorado - ou provocado - no projeto.

Com base nos achados, foram abertos quatro eixos de discussão, onde foram

analisados boundary objects como promotores de abertura e fechamento de perspectivas

dentro do processo projetual, as relações da proposta comercial com a cartografia e

dispositivos de agência, a controvérsia e pontualização como o inesperado em relatos e, por

último, o problema de design em um crescente de complexidade.

As reflexões geradas ao longo do processo de discussão deram margem a provocações

propositivas, abordando o enquadramento da venda de serviços de design por uma perspectiva

de acoplamento à complexidade residente na organização, as possibilidades decorrentes da

emergência de um coletivo de boundary objects no processo projetual e a ressignificação do

agente-vendedor do design como um agente-cartógrafo comercial.

Uma vez encerrada a pesquisa e, aparentemente, apaziguadas as inquietações mais

prementes, o rescaldo das informações revelou a emergência de outro padrão de perguntas que

se insinuava em meio aos achados e linhas de discussão. Elabora-se, a seguir, algumas dessas

emergências, geradoras das questões que acompanham este artigo.

DISCUSSÃO

Atirando na ordem, acertando na controvérsia

O percurso investigativo descrito no estudo de casos - que inicialmente mirou a

proposta comercial de design como articuladora de atores de mundos sociais diferentes ao

longo do projeto - revelou-se rico tanto em evidências quanto em questionamentos acerca do

papel da controvérsia no projeto de design. Uma investigação que examina o caráter

formalizador e, de certa forma, ordenador do projeto viu-se em meio a relatos e evidências

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que apontavam para a controvérsia como elemento presente, pulsante e influente em todos os

casos abordados.

Ao longo das entrevistas com os 13 informantes consultados (LESNOVSKI, 2017), os

relatos versaram tanto sobre a prevenção da controvérsia através de dispositivos de

ordenamento da proposta comercial, quanto do irrompimento da mesma em situações

inesperadas - sugerindo um protagonismo maior do tema do que o inicialmente pretendido

pela pesquisa. A controvérsia aparecia vinculada a contextos de entropia ou ebulição, onde os

rumos projetuais obedeciam a interesses diferentes dos originalmente mapeados. Observando-

se que as organizações envolvidas - e seus respectivos atores - estavam em constante

formação e reconformação de redes, a controvérsia emergia menos como um acidente de

percurso e mais como um fator natural dentro do processo projetual.

O contraste entre os mecanismos de formalização - planilhas, apresentações, intranets

e extranets - e as controvérsias que irromperam em meio às tentativas sucessivas de

ordenamento ressaltam uma visão do projeto como efetiva assembleia socio-técnica

(BJÖRGVINSSON et al., 2010), onde as constelações de atores se colocam em constante

movimento em função da conformação e reconformação de suas alianças e interesses. Há

tradução, deslocamento e traição (CALLON, 1984; LAW, 1997) ao longo dos movimentos

associativos, mais efusivos do que podem comportar planilhas e instrumentos de controle.

O protagonismo da controvérsia no processo projetual, portanto, torna-se saliente

quando são relativizadas as certezas sobre limites, recursos e objetivos do projeto e catalisam-

se novos ordenamentos da prática projetual. Nesse sentido, quão eficientes - ou ingênuas -

seriam as tentativas de enquadrar um efusivo reordenamento da constelação de atores e

interesses em dispositivos de ordenamento pouco mutáveis?

A abordagem do problema de design como um diálogo em meio à entropia

Os achados da pesquisa mostram que os três casos abordados, embora apresentassem escopos

equivalentes, revelavam níveis distintos de complexidade em suas relações: havia substancial

variação na quantidade de decisores, seu afastamento do contato com o projeto, sua

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capacidade de abstração de elementos projetuais e, principalmente, projetos de poder não

totalmente mapeados - ou em constante reformulação.

Frente ao que se considerava “escopo”, no início da investigação - um conjunto de

requisitos ordenados e registrados - o novo conjunto de elementos influentes no projeto

insinua que a definição de “escopo” seja insuficiente frente à controvérsia residente - talvez

ele devesse abarcar o espectro de dispositivos para colocar em movimento um panorama

sociotécnico de diferentes intensidades de controvérsia. Retomamos, pois, Dorst (2015), para

quem o problema de design é aberto, complexo, dinâmico e em rede, resultando inócuas as

abordagens não adaptadas às mutações da realidade.

A partir das evidências dos estudos de caso, observou-se que à medida em que a

complexidade nas relações entre os atores aumenta, os modelos e fluxos de trabalho

mencionados pelos especialistas (e consolidados no modelo da Figura 1) não dão conta da

controvérsia: o modelo analítico que representava “como as coisas devem ser” não comportou

as adaptações necessárias para situações de entropia aumentada. Em um dos casos, a proposta

foi modificada para comportar uma projetação com variação de requisitos. Em outro, o

processo de composição e projetação antecedeu a orçamentação, face a incerteza na

emergência de requisitos. Questiona-se se a constituição ordenada do modelo não seria um

indicativo da esperança - ou ilusão - de que haja lógica ou previsibilidade na resolução de

problemas de design.

Se o controverso exibiu as rachaduras da construção do modelo, questiona-se se não

haverá espaço para práticas projetuais que se adaptem às controvérsias vigentes. O caso 3

apresenta uma situação em que os requisitos mutavam mais rapidamente do que comportava a

evolução prevista do trabalho, havendo considerável conflito entre os muitos tomadores de

decisão e ramificações de poder pouco visíveis. A inversão do processo projetual tradicional,

antecipando externalizações e fracionando os mecanismos de inscrição comercial, indica uma

conversação reflexiva entre as duas organizações, abordando o problema dentro de sua

situação e desenhando-se uma intervenção particular, afastada de qualquer solução-padrão

(SCHÖN, 1983; LESNOVSKI, 2017).

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É compreensível que a condição mais favorável para um designer que navegue em

situações complexas seja a que lhe garanta maior liberdade e recursos para se aprofundar em

controvérsias - feitas as ressalvas de que o risco, nesse caso, se deslocaria para a organização

cliente. Essa posição dependerá da habilidade do designer em posicionar sua atuação como

um ponto de passagem obrigatória aos projetos de poder existentes na organização cliente.

Abordar o problema de design como um diálogo em meio à entropia vigente será, antes de um

conjunto de técnicas de ordenamento, uma estratégia de posicionamento e navegação dentro

de uma rede em constante reformulação.

Dando voz ao inesperado

Um dos especialistas entrevistados, ao se referir a situações de desencontros,

instabilidades e descontinuidades de processos dentro de projetos, trouxe à tona a palavra

“lambança” repetidas vezes. Por baixo de um aparente ordenamento do projeto, garantido por

planilhas e controles processuais, irrompiam indícios de controvérsia. O olhar aportado pelos

referenciais da Teoria Ator-Rede (CALLON, 1984; LAW, 1997; LATOUR, 2012) sobre esse

derrame de controvérsia revela projetos de poder em desacordo e questiona afirmações como

“o bem do projeto”, onde não se especifica a que interesses serviria cada versão de “bem” e

“projeto” operantes na situação. Em outra passagem das entrevistas, o caso 3 apresentou

controvérsias no confronto entre projetos de poder da equipe de trabalho e os de uma

plataforma de software, até então invisíveis aos atores humanos. A invisibilidade das

ramificações dos interesses da plataforma de software impediu sua identificação durante a

problematização, ocasionando conflito de interesses e descontinuidade de estratégias

projetuais ao longo do trabalho.

A cartografia das controvérsias (VENTURINI, 2010) como inspiração investigativa

resultou frutífera, ao dar espaço a vozes dissonantes e permitir à pesquisadora explorar os nós

de controvérsia por trás de cada evento adverso. Enquanto a “lambança” citada revelava a

desestabilização de uma rede que se considerava consolidada, as evidências da invisibilidade

de projetos de poder apontam para uma pontualização de determinados elementos, oriunda de

uma problematização insuficiente.

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Ao descrever o jogo entre a supracitada lambança e a invisibilidade, a autora se

defrontava com o subproduto controverso de uma investigação sobre um dispositivo de

ordenamento. O inesperado acolhe a controvérsia manifesta na lambança e silenciada na

pontualização como uma nova categoria, digna de atenção.

Haja visto a grande quantidade de dispositivos de ordenamento voltados à redução da

controvérsia na prática do design, perguntamo-nos, à luz de Law (1992), se tal tentativa de

supressão não resultaria ingênua ou, até mesmo, contraproducente. Não haveria riqueza a ser

aportada pela manifestação da controvérsia nos processos projetuais? Estariam as práticas do

design preparadas para acolher a dissonância como força motriz? Entende-se que o caminho

para responder tais perguntas passe pela reflexão sobre a abertura e fechamento dos

participantes do projeto de design às controvérsias que produzem e àquelas que os envolvem.

Se a solução criativa é tão melhor quanto melhores são as pontes e os enquadramentos

explorados (DORST, 2015), a solução do problema de design se afasta da ideia de “bala de

prata” - única intervenção salvadora capaz de solucionar o problema. A criação de pontes e a

exploração de paradoxos acompanha a topografia das relações e projetos de poder existentes,

adaptando-se, em intensidade e configuração temporal, à complexidade relacional de cada

situação (LESNOVSKI, 2017). Tal abertura não ocorreria sem uma modificação na

compatibilização dos interesses dos envolvidos, em especial os diretamente relacionados ao

core do projeto (SISMONDO, 2010), tornando possíveis arranjos flexíveis e continuamente

mutáveis.

A controvérsia, portanto, pode resultar benéfica ao se abrirem espaços para que ela se

manifeste e seja acolhida ou, até, para que ela seja provocada por intervenções projetuais. Os

paradoxos abordados por Dorst (2015) e as controvérsias descritas por Latour (2012) podem

representar tanto desafios quanto fontes de riqueza dentro do processo projetual. Em outras

palavras, o aproveitamento criativo do potencial de uma controvérsia pode ser uma questão,

antes de mais nada, política dentro das práticas do design. Estariam, contudo, os atores

envolvidos dispostos a se abrirem a essa conversação?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Este artigo retoma achados de pesquisa anterior (LESNOVSKI, 2017) e os ilumina

sob a perspectiva da controvérsia ao longo do processo projetual. Ao longo da análise,

tornou-se relevante analisar a dualidade entre o ordenamento pretendido e a controvérsia

irrompida nas práticas do design, assim como as possibilidades de abordagem do problema de

design em meio à entropia e as possibilidades criativas que os encontros com o inesperado e

controverso podem aportar ao projeto.

Se o relato dos especialistas e a expectativa inicial da própria autora apontavam na

direção de um processo projetual ideal, previsível e garantidor da segurança da

sustentabilidade do projeto, as evidências insinuaram que tal segurança é tão ilusória quanto a

estabilidade de relações em cada contexto (ou, até mesmo, por causa da instabilidade destas).

A abordagem da controvérsia dentro do contexto projetual parece requerer não apenas um

conjunto novo de lentes e ferramental, mas uma nova configuração política do projeto, com

abertura suficiente de seus atores ao contraditório.

Entende-se que as reflexões aqui urdidas possuem caráter preliminar, circunscrito aos

limites deste artigo e, enquanto conferem maior visibilidade às agências da controvérsia nas

práticas projetuais do design, abrem espaço para desenvolvimentos posteriores no tema.

Futuras investigações poderão cartografar relações projetuais para identificar

elementos que auxiliem na construção de uma teoria da controvérsia no design, estudando

artefatos de mediação de processos de design e identificando condições de emergência da

controvérsia na prática do design.

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