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1 ENSINO DE ARTE NO DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA (20 DE NOVEMBRO) Flaviane dos Santos Malaquias [email protected] Universidade Federal de Uberlândia Comunicação – Relato de Experiência O presente trabalho tem como intenção relatar a experiência de uma aula de arte realizada no dia 17/11/2005 durante a realização de estágio da Disciplina de Prática de Ensino sob Forma de Estágio Supervisionado 1, do curso de Artes Plásticas da Universidade Federal de Uberlândia, em que todas as observações foram registradas. Essa experiência relaciona a teoria discutida em sala de aula a partir da bibliografia estudada durante o período, à prática de no mínimo 60 horas/aula na rede estadual de ensino da cidade de Uberlândia. Desse modo, este trabalho tem como ponto de partida a relação teoria/prática sob a orientação da professora Teresa Cristina Melo da Silveira, nessa mesma universidade. A somatória do estudo de campo viabilizou a percepção de várias incógnitas, que não são possíveis de se perceber somente em estudos teóricos, portanto a necessidade da prática. O estágio foi realizado em duas turmas de 8° série do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Presidente Tancredo Neves que é uma escola situada em região periférica da cidade de Uberlândia. Uma escola que além de apresentar boa administração e disciplina, também valoriza muito o Ensino de Artes sendo bem receptiva à profissionais que desejem oferecer projetos que contribuam com a escola de maneira positiva. Descobrir possibilidades e soluções de várias propostas através da experimentação de materiais diversos parece ser um dos lemas do Ensino de Arte na escola em questão, e sendo assim me propus a realizar uma aula que condissesse com o conteúdo que a professora já estava trabalhando. Percebi que a escola naquele semestre passava por um momento interdisciplinar, pois a questão das influências culturais do negro na sociedade estava sendo explorada tanto nas disciplinas de História quanto Geografia, Artes e outras, uma vez que o dia 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra estava se aproximando. Existia uma preocupação em enfatizar o que foi trazido à nossa cultura através da cultura africana. Explorando essa temática, os alunos estavam construindo máscaras de jornal que foram pintadas, e posteriormente máscaras em argila com enfoque na cultura africana durante as aulas de artes.

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Page 1: ENSINO DE ARTE NO DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA (20 DE … · O presente trabalho tem como intenção relatar a experiência de uma aula de arte realizada no dia 17/11/2005 durante

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ENSINO DE ARTE NO DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA (20 DE NOVEMBRO)

Flaviane dos Santos Malaquias [email protected]

Universidade Federal de Uberlândia Comunicação – Relato de Experiência

O presente trabalho tem como intenção relatar a experiência de uma aula de arte

realizada no dia 17/11/2005 durante a realização de estágio da Disciplina de Prática de Ensino

sob Forma de Estágio Supervisionado 1, do curso de Artes Plásticas da Universidade Federal

de Uberlândia, em que todas as observações foram registradas. Essa experiência relaciona a

teoria discutida em sala de aula a partir da bibliografia estudada durante o período, à prática

de no mínimo 60 horas/aula na rede estadual de ensino da cidade de Uberlândia.

Desse modo, este trabalho tem como ponto de partida a relação teoria/prática sob a

orientação da professora Teresa Cristina Melo da Silveira, nessa mesma universidade. A

somatória do estudo de campo viabilizou a percepção de várias incógnitas, que não são

possíveis de se perceber somente em estudos teóricos, portanto a necessidade da prática.

O estágio foi realizado em duas turmas de 8° série do Ensino Fundamental, na Escola

Estadual Presidente Tancredo Neves que é uma escola situada em região periférica da cidade

de Uberlândia. Uma escola que além de apresentar boa administração e disciplina, também

valoriza muito o Ensino de Artes sendo bem receptiva à profissionais que desejem oferecer

projetos que contribuam com a escola de maneira positiva.

Descobrir possibilidades e soluções de várias propostas através da experimentação de

materiais diversos parece ser um dos lemas do Ensino de Arte na escola em questão, e sendo

assim me propus a realizar uma aula que condissesse com o conteúdo que a professora já

estava trabalhando.

Percebi que a escola naquele semestre passava por um momento interdisciplinar, pois

a questão das influências culturais do negro na sociedade estava sendo explorada tanto nas

disciplinas de História quanto Geografia, Artes e outras, uma vez que o dia 20 de Novembro –

Dia da Consciência Negra estava se aproximando. Existia uma preocupação em enfatizar o

que foi trazido à nossa cultura através da cultura africana.

Explorando essa temática, os alunos estavam construindo máscaras de jornal que

foram pintadas, e posteriormente máscaras em argila com enfoque na cultura africana durante

as aulas de artes.

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Tive então como ponto de partida a temática da Consciência Negra, como uma aula

que concluiria esse conteúdo, com permissão da professora regente, com objetivos de propor

ao aluno uma compreensão dos exercícios práticos realizados por eles durante o período,

como exemplo as máscaras africanas; estabelecer relação entre os trabalhos realizados e a

semana da consciência negra; mostrar a importância de nossas raízes e a inclusão do negro na

sociedade e conscientizar a sociedade a partir do trabalho prático que seria realizado pelos

próprios adolescentes dessa turma.

Como conteúdo dessa aula foi promovida a apresentação do fotógrafo francês Pierre

Verger (1902 – 1996), que trabalhava a questão do Negro e a relação África/Brasil1.

A metodologia utilizada para tal aula foi a Proposta Triangular, em que houve um

momento para leitura de imagem do artista, outro para sensibilização e contextualização e o

momento do fazer, em que os alunos construiriam seus próprios trabalhos a partir de suas

impressões.

Relacionar o conteúdo do Dia da Consciência Negra que é 20 de Novembro, com o

contexto dos alunos foi um dos passos fundamentais dessa aula, um exercício que não seria

difícil de ser percebido na obra de Pierre Verger que retratou a temática de maneira bem

abrangente.

A sala de aula foi organizada em círculo para que a discussão fosse mais dinâmica, e

no centro da sala foram organizadas mesas onde foram colocadas as imagens a serem lidas.

Sendo assim a aula foi introduzida apresentando tal artista e ao término de sua biografia, os

alunos foram convidados a se deslocarem até o centro da sala para conhecerem as fotografias

do artista, que foram apresentadas impressas em cartões postais. Assim que conheceram o

trabalho do artista, foram escolhidas apenas duas para que nelas se concentrassem a leitura e

as discussões das obras.

1Pierre Verger (1902-1996) nasceu em Paris 04/11/1902, com boas condições financeiras, discordou dos valores de sua sociedade, em 1932 aprendeu a fotografar e começou a viajar ao redor do mundo. Com a perda da mãe passou a ser um viajante solitário que viajou até 1946, sobrevivendo de fotografia. Enquanto a Europa vivia o pós-guerra em 1946, ele estava em Salvador-BA, onde tudo era tranqüilidade. Encontrou hospitalidade e riqueza cultural onde ele acabou ficando, e gostando da simplicidade. Se tornou um estudioso dos orixás quando descobriu que o candomblé era parte dessa cultura. A partir desses estudos ganhou uma bolsa para estudar na África, para onde partiu em 1948, se tornando um pesquisador. Sua pesquisa teve um rendimento de 2.000 fotos além de escrever sobre suas passagens. Ao final dos anos 70 parou de fotografar, e fez suas últimas viagens de pesquisa à África. Pois comprou uma casa em Vila América e em seus últimos anos de vida passou a disponibilizar suas pesquisas à outras pessoas para garantir a sobrevivência do acervo. Em 1988 ele criou a Fundação Pierre Verger (FPV) transformando sua casa num centro de pesquisa. Em Fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de prosseguir com seu trabalho.

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1 -Adjaweré, Abomey, Benim/ Pierre Verger 1948-1958

2- Marbial, Haiti/ Pierre Verger, 1948

O tempo foi disponibilizado para que os alunos falassem as diferenças e semelhanças

das imagens, em alguns momentos eu enquanto educadora me colocava no papel de

mediadora para que eles falassem mais. Relataram que a pessoa da primeira imagem parecia

assustada com o fotógrafo, enquanto na pessoa da segunda imagem não estava nem aí, com

um olhar bem tranqüilo e lerdo; nas duas imagens têm uma pessoa sendo o centro das

atenções, ou seja, os alunos apresentaram a noção de figura e fundo, disseram também que o

fundo da primeira está embaçado, mas têm pessoas atrás e a outra também tem o fundo

embaçado, mas não tem pessoas. Contextualizei as obras, sendo a primeira imagem da África

e outra da América Central e a partir dessa idéia levantaram a hipótese de que a menina vive

numa aldeia, e o rapaz numa sociedade um pouco mais evoluída, falaram que isso é notável

pelas vestimentas e também pelos cortes que a menina tem no rosto. Evidenciaram que a

semelhança é que ambos são negros, e que as duas fotos são preto e branco, mas que em

termos culturais os dois não apresentariam semelhanças por terem crescido em lugares e

situações completamente diferentes.

Esgotando-se as possibilidades para leituras daquelas fotos, pedi que eles se

assentassem em seus lugares, para que uma frase de Pierre Verger fosse lida, como

sensibilização do momento. A sala que foi organizada em formato circular tornou o ambiente

bem propício à discussão, pois eles podiam ver todos os colegas ao mesmo tempo e dessa

forma debaterem melhor.

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Foi lida então a seguinte frase do próprio fotografo2: “ Mas teve uma vez que não me

senti branco. Foi numa Festa Geledê em plena floresta do atual Benin. Era uma noite

escura, sem lua, e o pessoal bailava ao redor de certas árvores, não tinha luz nenhuma, então

conheci uma liberdade que não havia conhecido antes. Não era um branco entre os negros. A

escuridão da floresta africana apagou a diferença.”

Apesar de não ter recebido vários comentários à respeito dessa frase o momento em

que diz: “A escuridão da floresta africana apagou a diferença”, provocou certa expressão na

face dos alunos, como sendo uma frase de forte significado de respeito.

O fazer dessa aula foi planejado a partir de recursos materiais como: ¼ de papel sufite

para cada aluno, revistas, envelopes, tesoura e colas que foram pedidos na aula anterior.

A proposta foi a de realizar durante o período de vinte minutos uma colagem a partir

de recortes de revistas que valorizassem a questão do negro na sociedade a partir do que tais

adolescentes entendiam por consciência negra. O objetivo de tal atividade era que os alunos

construíssem cartões postais (para isso o sufite foi cotado em ¼), e após a montagem eles

receberiam envelopes e a lista telefônica para procurarem um comércio ou empresa para onde

seriam enviados os cartões postais com intenção de conscientizar a comunidade de Uberlândia

a respeito da importância da data de 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra.

Vendo a abrangência social do trabalho, a escola fez a doação dos envelopes, e

também autorizou que os alunos endereçassem os postais com o endereço da própria escola,

pois se alguma empresa tivesse por interesse dar algum retorno, entraria em contato

diretamente com a escola.

2 Essa frase foi retirada de uma exposição do artista Pierre Verger no Palco das Artes em Belo Horizonte, em Maio de 2005.

3 - Envelopes endereçados, escola como remetente e comércios como destinatários.

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A atividade foi se concretizando de forma coesa, pois os alunos se sentiram

importantes em perceber que um simples trabalho de artes realizado na escola poderia

abranger tal extensão, ou seja, perceberam que o artista também tem sua importância social.

Muitos alunos colocaram negros assumindo posições de ricos, uma aluna até mesmo

substituiu o rosto de uma branca de alta sociedade pelo rosto de uma negra. Motivados

porque iriam mandar seus próprios trabalhos para alguém que não conheciam, perguntaram se

poderiam escrever uma mensagem sobre o negro atrás do cartão postal, pois muitos acharam

que a imagem não seria suficiente para explicar do que se tratava o cartão.

Outros comentários que também se fizeram validos foi o de mencionar sobre a Arte

Postal3, que é um tipo de arte que trata de questões sobre se corresponder artisticamente.

Percebi que eles tiveram certas dificuldades em preencher o envelope, pois não sabiam

onde se colocava o destinatário, e onde se colocava o remetente, e isso mostra que a arte

educação viabiliza oportunidades para se ensinar inúmeras questões do cotidiano, apesar de

que a realidade da internet não deixou com que esses alunos tivessem tido anteriormente a

possibilidade de um dia enviar uma carta ou cartão postal internet.

3 Arte Postal é uma tendência artística originada e formalmente estabelecida em 1968 por Ray Johnson e sua Escola de Arte por Correspondência. O movimento consiste em trocar mensagens criativas utilizando o sistema de correios para veiculação. É um meio livre, onde todo tipo de imagens, ícones, pinturas, desenho, carimbos, adesivos, envelopes, colagens ou composições são permitidas. Os artistas que a praticam são pintores, desenhistas, ilustradores, arquitetos, poetas, escritores e pessoas de todas as idades. Para se iniciar na Arte postal é necessário apenas que se enviem trabalhos artísticos a outros artistas.

4 - Produção de alunos de 8º série, colagem, 2005.

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A partir dessa aula puderam ver que a atividade artística teria um resultado que

possibilitaria o aprendizado de outras pessoas da comunidade através de um conhecimento

que foi repassado por eles mesmos de forma indireta. Eles se sentiram de grande importância

em poder contribuir com alguém, seja esse alguém quem for, conscientizando para uma

questão de grande importância social.

Essa prática concretiza o que Lowenfeld (1972) diz em seu livro Desenvolvimento da

Capacidade Criadora, na faixa etária de 14 à 17 anos. Esse autor fala que os projetos

artísticos podem ser significativos para os próprios alunos e também exercer um impacto em

toda a sociedade.

Nesse contexto pode-se dizer que a arte se resolve dentro da temática da Consciência

Negra, se aplicando à questões dos temas transversais dos Planos Curriculares Nacionais, e

sendo assim se assume enquanto um dos papéis fundamentais da educação.

6 - Produção de alunos de 8º série, colagem, 2005.

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OUTRAS PRODUÇÕES:

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LOWENFELD, Victor e BRITTAIN, W. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São

Paulo: Mestre Jou, 1972.

LUQUET, Georges-Henri. O Desenvolvimento Infantil. Porto: Minho, 1969.

MARTINS, Mirian Celeste. Sobre a Observação. In: __. 1996 p. 15-37.

WALLON, Henri. Imitação e Representação. In: Acto ao Pensamento. Lisboa: Moraes, 1979.

WILSON, Brent e WILSON, Marjorie. Uma Visão Iconoclasta das Fontes de Imagens nos

Desenhos de Crianças in Arte: Estudos de Arte Educação. São Paulo, 1982 (artigo de revista). FREIRE, Madalena; CAMARGO, Fátima; DANINI, Juliana; MARTINS, Mirian Celeste. Avaliação e Planejamento: a prática educativa em questão. Instrumentos Metodológicos II. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. p. 54-87 www.pierreverger.org.br data de conexão: 07/11/2005 www.arte postal.com.br data de conexão: 07/11/2005