o dia em que didi moco desconstruiu a arte moderna

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lounge.obviousmag.org o dia em que didi mocó desconstruiu a arte contemporânea Carlos Batalha A arte contemporânea se constrói em conceitos cada vez mais complexos e subjetivos tão incompreensíveis quanto a obra em si. Mas, eis que vem Didi Mocó e desconstrói tudo... Bem... no meu texto anterior teve gente que me atribuiu um juízo de valor que em nenhum momento fiz. E isso seria dissipado se

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Um artigo genial que mostra sob um ângulo absolutamente inusitado a questão da arte moderna

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Page 1: o Dia Em Que Didi Moco Desconstruiu a Arte Moderna

lounge.obviousmag.org

o dia em que didi mocó desconstruiu a

arte contemporânea

Carlos Batalha

A arte contemporânea se constrói em conceitos cada vez mais

complexos e subjetivos tão incompreensíveis quanto a obra em si.

Mas, eis que vem Didi Mocó e desconstrói tudo...

Bem... no meu texto anterior teve gente que me atribuiu um juízo

de valor que em nenhum momento fiz. E isso seria dissipado se

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um “a” cedesse lugar a um “o”, talvez. E lá foi o debate para algo

que nem foi posto. Mas fica a dica para mim mesmo de, quem

sabe, ser mais claro... rs. Então, dessa vez, deixemos sem

margem a dúvidas: vou fazer juízo de valor. Posto isso, sigamos.

Não tenho simpatia pela arte contemporânea. E, acredito, nem

ela tem por mim. A teoria não me convence, e a prática não me

comove.

Em 1917, Duchamp expôs um urinol no Salão dos Independentes

de Nova York, lançando seu conceito de ready-made, onde a obra

não era uma produção original, mas uma peça industrial comum

retirada do seu contexto ordinário. Ou seja, qualquer coisa poderia

ser transmutada em objeto de arte pelo simples deslocamento do

uso comum. Praticamente uma alquimia. Bastava tirar o mictório

do banheiro e colocá-lo na galeria do museu e pronto! Fez-se a

luz! Curiosamente, ainda hoje figuras como Damien Hirst e Jeff

Koons se utilizam desses truques, quase 100 anos depois!

Page 3: o Dia Em Que Didi Moco Desconstruiu a Arte Moderna

Recentemente me deparei com a obra da foto aqui acima. Estava

no meio de uma galeria bem vazia, sem qualquer coisa que a

identificasse, contextualizasse e/ou explicasse. Não sei nem o

nome do autor. O que mais me incomodou nem foi o fato de não

ter tido qualquer sentimento pelo objeto em si. O que mais me

deixou apreensivo foi não saber se o cubo de acrílico transparente

fazia parte da obra ou se era apenas um objeto esquecido ali,

talvez para apoiar um panfleto informativo. Ou seja, bastava

alguém decretar e ou seria arte, ou seria nada.

Assim, a arte passa a ser qualquer coisa decretada como tal.

Em 1975, Tom Wolfe, no ótimo "A Palavra Pintada", apontou como

esse é um conceito absurdo e escreveu: "O que via diante de mim

era o crítico-chefe do New York Times dizendo que [...] carecer de

uma teoria convincente é carecer de algo crucial". Ou seja, o

próprio crítico admitia que de nada valia o objeto em si, mas sim a

historinha que o artista conta pra tentar fazer daquilo alguma

coisa.

Então, as obras se tornam arte por um sistema de validação que

envolve apenas artistas e críticos. Ao público cabe aceitar o que se

impõe. E se isso não fizer sentido, como disse a crítica

Avelina Lésper, é por ser “ignorante, estúpido e diz-lhe com grande

arrogância que, se não agrada é por que não apercebe“. Logo,

“o espectador, para evitar ser chamado ignorante, não pode dizer

aquilo que pensa, uma vez que, para esta arte, todo público que

não submete-se a ela é imbecil, ignorante e nunca estará a altura

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da peça exposta ou do artista por trás dela”.

Mas, quem melhor criticou esse conceito que faz o tudo e o nada

serem arte, desde que ungidos como tal, foi o maior personagem

humorístico da história brasileira (na minha opinião): Didi Mocó

Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbo! Numa esquete, Didi é o

caixa de um mercadinho e vai atender Chico Anysio, o próprio (se

o programa tivesse pretensão de arte os críticos babariam pela

metalinguagem dialética entre o real e o fictício...). Empolgado em

ver o ídolo, Didi bajula Chico como se não houvesse amanhã. Lá

pelas tantas, pergunta:

"Chico, poderia me dar um pornógrafo?". E Chico:

"Autógrafo? Sim, claro. Tem caneta?". Então, eis que Didi subverte

a lógica e questiona toda a relação entre o valor em si da coisa e o

valor atribuído pela intenção, disparando:

"Tô sem caneta, mas escreve aqui na máquina", e saca uma

máquina de escrever. Incrédulo, Chico pergunta:

"Autografar com a máquina?". E Didi, mais fundo na subversão dos

valores, explica:

"Chegar em casa eu passo a limpo". E, pra finalizar, ainda

comenta, enquanto Chico datilografava:

"Muito bonita sua letra. É igual dos livros que eu leio!”

Nesse diálogo genial, de alguns poucos segundos, Didi resume a

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grande questão da arte atual: a arte se valida pelo valor em si de

uma obra produzida, ou se torna arte pelo conceito atribuído a algo

que antes não tinha valor algum? A intenção de Chico Anysio em

produzir um autógrafo é tão válida quanto um autógrafo que foi

efetivamente produzido? E após passado a limpo, a intenção

prevalece sobre a produção?

Assim é a arte contemporânea: um autógrafo feito na máquina e

passado a limpo...