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Economia

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  • Biblioteca Digital

    http://www.bndes.gov.br/bibliotecadigital

    Ensaios sobre economia financeira

    Francisco Marcelo Rocha Ferreira e Beatriz Barbosa Meirelles (organizadores)

  • EnsaiossobreEconomiaFinanceira

    Organizadores

    Francisco Marcelo Rocha Ferreira

    Beatriz Barbosa Meirelles

    Rio de Janeiro 2009

  • Coordenao EditorialGerncia de Editorao do BNDES

    Projeto Grfi coAna Luisa Silveira Gonalves

    Produo EditorialEditora Senac Rio

    Editorao EletrnicaAbreus System

    ImpressoImprinta Express Grfi ca e Editora

    Rio de Janeiro 2009

    E59 Ensaios sobre economia fi nanceira / organiza-dores Francisco Marcelo Rocha Ferreira, Beatriz Barbosa Meirelles. Rio de Janeiro : BNDES, 2009.

    320 p. ; 23 cm. ISBN: 978-85-87545-31-2

    1. Sistema fi nanceiro. 2. BNDES. 3. Mercado de capitais. 4. Crdito. I. Ferreira, Francisco Mar-celo Rocha. II. Meirelles, Beatriz Barbosa.

    CDD 332

  • Sumrio

    Prefcio 5

    Introduo 7

    Captulo 1Mecanismos de Direcionamento do Crdito, Bancos de Desenvolvimento e a Experincia Recente do BNDES 11

    Captulo 2Crdito Pblico e Desenvolvimento Econmico: A Experincia Brasileira 57

    Captulo 3As Instituies Financeiras de Fomento e o Desenvolvimento Econmico: As Experincias dos EUA e da China 109

    Captulo 4Mercado de Crdito no Brasil: Evoluo Recente e o Papel do BNDES (2004-2008) 151

    Captulo 5Mercado de Capitais: Evoluo Recente e Financiamento das Empresas Brasileiras no Perodo 2004-2007 173

    Captulo 6A Consolidao da Estabilizao e o Desenvolvimento Financeiro do Brasil 199

    Captulo 7Os Determinantes das Taxas de Cmbio Nominal e Real no Brasil no Perodo 2003-2007 225

    Captulo 8As Origens e Desdobramentos da Crise do Subprime 287

  • 5Prefcio

    O Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) foi criado em 1952, por iniciativa do presidente Getlio Vargas, como parte da estratgia de superao do subdesenvolvi-mento brasileiro. Havia, poca, a necessidade inequvoca de mon-tagem de um banco pblico que pudesse oferecer crdito de longo prazo para o fi nanciamento a projetos da indstria e da infraestrutu-ra. Ao longo de mais de cinco dcadas de histria, o BNDES con-tribuiu para que os desafi os de cada ciclo de investimento fossem enfrentados com novas formas de atuao. Novos instrumentos, modalidades e programas foram criados para que o Banco pudesse corresponder aos desafi os que lhe foram atribudos pelos sucessivos governos e respectivas polticas.

    Entre 2004 e 2008, a economia brasileira experimentou seu mais recente ciclo de investimentos o mais longo e intenso desde a d-cada de 1970. Nesse perodo, o BNDES teve papel relevante na as-censo da taxa agregada de investimento, de modo que a participa-o de seus desembolsos na formao bruta de capital fi xo subiu de 9,2%, em 2004, para 13,3%, em 2008. Aps setembro de 2008, no perodo que se seguiu ao agravamento da crise fi nanceira internacio-nal, o Banco tambm teve papel fundamental na manuteno do cr-dito de longo prazo s empresas: no ltimo trimestre do ano, contri-buiu com 32% do incremento do crdito total na economia.

    A disponibilidade de fi nanciamento de longo prazo e em moeda na-cional propiciada pelo BNDES fundamental ao desenvolvimento econmico. Permite que as empresas se lancem em projetos de am-pliao da capacidade produtiva em larga escala, sem depender do autofi nanciamento ou da captao externa essa ltima vulnervel

  • 6aos movimentos de expanso e contrao da liquidez internacional. O mercado de capitais emisso de aes e debntures tambm fonte relevante de funding de longo prazo para as empresas, mas tende a apresentar um comportamento procclico. Os bancos pbli-cos, alm de poderem cumprir funo anticclica em perodos de crise e retrao do fi nanciamento privado, so importantes fi nancia-dores de projetos portadores de grandes externalidades positivas, cuja combinao entre risco e retorno frequentemente proibitiva ao fi nanciamento privado.

    Com base na percepo de que existe pouco conhecimento produzi-do sobre o tema no Brasil, o primeiro objetivo do livro Ensaios so-bre Economia Financeira consiste em compreender os mecanismos de fi nanciamento de longo prazo e de direcionamento de crdito. Em linha com essa aspirao, os seis primeiros artigos versam sobre de-fi nies conceituais, experincias internacionais, a evoluo dos mercados de crdito e de capitais no Brasil e os obstculos ao desen-volvimento de um mercado de capitais mais robusto na economia brasileira.

    Alm dos mecanismos de fi nanciamento direto, o desenvolvimento de um mercado de derivativos importante ferramenta de mitigao de riscos. Dada a importncia do tema e a associao crise fi nan-ceira internacional, o presente livro conta ainda com dois artigos que tratam de questes relacionadas a esse mercado: os determinantes da taxa de cmbio no Brasil com base no mercado futuro e a cronologia da crise do subprime.

    A publicao agrega estudos produzidos dentro e fora do BNDES. Os artigos de autoria externa fazem parte do conjunto de pesquisas fomentadas pelo Banco com o objetivo de incentivar a produo acadmica em temas selecionados. De forma geral, as anlises so voltadas ao diagnstico do sistema fi nanceiro brasileiro, como parte relevante da agenda do desenvolvimento econmico nacional. Espe-ramos que sua divulgao contribua para estimular os debates e for-mulaes de propostas de desenvolvimento do sistema fi nanceiro e do mercado de capitais no Brasil.

    Luciano CoutinhoPresidente do BNDES

  • 7Introduo

    O livro Ensaios sobre Economia Financeira, por meio de uma coletnea de artigos produzidos por autores do corpo funcional do BNDES e do meio acadmico, analisa questes ligadas ao desen-volvimento fi nanceiro no Brasil, em particular ao fi nanciamento de longo prazo.

    A obra est dividida em trs blocos. O primeiro conta com trs arti-gos que investigam, de um ponto de vista conceitual e de experin-cias especfi cas, os mecanismos de direcionamento de crdito, os mecanismos de poupana compulsria e os bancos pblicos de de-senvolvimento. Ernani Torres prope uma taxonomia para lidar com os mecanismos de direcionamento mais comumente utilizados, a fi m de identifi car as especifi cidades e as limitaes existentes nos diferentes instrumentos de alocao de crdito, bem como marcar as particularidades dos bancos de desenvolvimento. Trata tambm da experincia brasileira recente por meio do BNDES e das perspecti-vas para a instituio no contexto das mudanas no curso do merca-do fi nanceiro brasileiro.

    Marcos Cintra, por sua vez, discute o papel desempenhado pelas instituies fi nanceiras pblicas e a importncia dos fundos de pou-pana compulsria no fomento ao desenvolvimento econmico bra-sileiro, resumindo o debate crtico em torno do direcionamento de crdito. O terceiro artigo, tambm de autoria de Marcos Cintra, apre-senta duas experincias internacionais: a americana, no que tange s suas principais instituies especializadas pblicas ou com patroc-nio governamental; e a chinesa, caracterizada por um sistema fi nan-ceiro majoritariamente pblico e pela utilizao de diferentes instru-mentos de direcionamento de crdito.

  • 8O segundo bloco aborda o desenvolvimento do mercado de crdito e do mercado de capitais no Brasil de uma perspectiva emprica. Andr SantAnna, Gilberto Bora e Pedro Quaresma analisam as mudanas recentes ocorridas no mercado de crdito brasileiro, rela-cionadas s condies de crdito, ao montante, contribuio dos segmentos por atividade econmica e contribuio dos bancos de diferentes origens de capital. Por fi m, procuram situar o papel do BNDES nessa nova dinmica, destacando tanto o carter anticclico de sua atuao quanto sua vitalidade no fi nanciamento de longo pra-zo da indstria e da infraestrutura no Brasil.

    Em outro artigo, Andr SantAnna investiga o boom do mercado de capitais brasileiro entre 2004 e 2007, buscando identifi car as razes de ordem microeconmica que levaram as empresas brasileiras a emitir aes e debntures nesse perodo. O autor parte das caracte-rsticas gerais das emisses recentes de ttulos e valores mobilirios no Brasil e de teorias que tratam da perspectiva de fi nanciamento das empresas, ou seja, do que determina as decises relativas ado-o de uma determinada estrutura de capital. Por fi m, um teste em-prico procura avaliar quais foram as variveis mais relevantes na deciso de captao de recursos em mercados de capitais pelas em-presas brasileiras.

    Luciano Coutinho e Brulio Borges, por sua vez, em atualizao de artigo publicado em 2007, mostram como a estabilizao incomple-ta bloqueou o desenvolvimento fi nanceiro no Brasil at 2005. No entanto, ressaltam que os avanos recentes no que tange exposio cambial da dvida pblica e o cumprimento sistemtico das metas de infl ao proporcionaram crescente confi ana na estabilidade econ-mica, o que pode explicar, em parte, a recuperao do mercado de crdito imobilirio e do mercado de capitais nos ltimos anos. Por fi m, apontam perspectivas positivas ao desenvolvimento do fi nan-ciamento ao setor privado, com taxas de juros cadentes, e analisam o papel do crdito direcionado e dos mecanismos de poupana com-pulsria diante desse novo cenrio.

    O ltimo bloco trata de questes no propriamente relacionadas ao desenvolvimento do sistema brasileiro de fi nanciamento de longo

  • 9prazo, mas ao mercado de derivativos. Daniela Prates destaca o grau de desenvolvimento do mercado de derivativos fi nanceiros vincula-dos taxa de cmbio e de juros no Brasil e o papel central das ope-raes realizadas nesses mercados no processo de apreciao da moeda domstica entre 2003 e 2007. A publicao encerrada com estudo de Gilberto Bora e Ernani Torres, que analisa as origens e os desdobramentos da crise do subprime. Este e o quarto artigo do livro foram os nicos produzidos aps o agravamento da crise fi nanceira internacional.

  • Captulo 1

    Mecanismos de Direcionamento do Crdito, Bancos de Desenvolvimento e a Experincia Recente do BNDES

    Ernani Teixeira Torres Filho*

    * Superintendente de Pesquisa e Acompanhamento Econmico do BNDES e professor do Instituto de Economia da UFRJ.Este texto uma verso ampliada e atualizada de artigo anteriormente publicado pela Associao Nacional de Bancos de Investimento (ANBID) em 2007. O autor agradece o apoio de Andr Albuquerque SantAnna.

  • 13

    1. Introduo

    Em todo o mundo, os governos intervm nos mercados de crdi-to. Essa atuao envolve motivos, meios e propsitos diversos, que, grosso modo, podem ser reunidos em trs reas diferentes: regula-o, poltica monetria e direcionamento de crdito.

    Regulao refere-se aos mecanismos, regras e instituies voltadas para a preservao do funcionamento dos mercados fi nanceiros. Ao cumprir essa funo, o governo impe normas que afetam, entre ou-tros aspectos, a dimenso global dos mercados, tanto do ponto de vista da oferta quanto da demanda.

    Poltica monetria atua sobre a quantidade de moeda, a taxa de juros e o nvel de valorizao dos ativos. Sua preocupao so as condi-es correntes da liquidez, tendo em vista a evoluo dos preos dos bens e dos ativos, do nvel de atividade, do emprego, do balano de pagamentos etc.

    Direcionamento de crdito, diferentemente das duas primeiras, no foca o mercado como um todo. Seu propsito afetar as condies taxas de juros, prazos etc. em que os emprstimos so oferecidos a determinados setores, regies ou categorias de empresas por exem-plo, pequenas e mdias. O objetivo dessa atuao , portanto, afetar a distribuio do crdito no interior do mercado em favor de seg-mentos da economia julgados prioritrios pelo governo.

    Para direcionar o crdito, o governo pode lanar mo de diferentes mecanismos. Caso queira induzir o mercado a ampliar seu atendi-mento a determinados setores, pode oferecer aos bancos privados estmulos, como fundos com condies especiais, subsdio aos juros ou ainda garantias. Essas medidas tm o intuito de alterar o risco, o custo ou o prazo dessas operaes. Outra classe importante de ins-trumentos de direcionamento de recursos fi nanceiros so os bancos

  • 14

    pblicos.1 Neste caso, o governo, diferentemente dos mecanismos anteriores, torna-se diretamente responsvel pela concesso do cr-dito.2 Em vez de apenas induzir, o Estado atua diretamente sobre a concorrncia bancria.

    Ao longo dos ltimos anos, a atuao dos bancos pblicos passou a ser cada vez mais questionada.3 O Banco Mundial, por exemplo, tem uma posio contrria a este tipo de interveno. Em seu livro de 2001, Finance for Growth, afi rma que a propriedade dos bancos pelo Estado tende a impedir o desenvolvimento do setor fi nanceiro, contribuindo, consequentemente, para um menor crescimento.4 J o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) adota uma pos-tura mais neutra sobre o tema. Em seu Relatrio sobre o Progres-so Econmico e Social da Amrica Latina de 2005, intitulado Unlocking Credit, o BID sustenta que embora exista alguma evi-dncia em apoio ideia de que os bancos pblicos no so alocado-res timos de crdito, (...) os resultados, demonstrando que a pro-priedade estatal inibe o crescimento e desenvolvimento fi nanceiro, so menos robustos do que se pensava.5

    A despeito da polmica em curso, a literatura econmica recente sobre bancos pblicos apresenta grandes limitaes, particularmente no que diz respeito aos bancos de desenvolvimento. Normalmente, os autores no distinguem os bancos pblicos comerciais dos de lon-go prazo, nem aqueles com atuao universal dos voltados para seg-mentos especfi cos, como agricultura, habitao, pequenas empresas etc. So todos tratados como se fossem instituies indistintas.

    1 Neste texto, so considerados bancos pblicos todas as instituies controladas por go-vernos que originem operaes de crdito, independentemente de serem organizados como bancos, agncias, corporaes, fundos etc.2 Apesar de, em alguns pases, existirem bancos pblicos que s oferecem crditos a outros bancos; so os chamados bancos de segunda linha.3 Para uma resenha dessa literatura, ver Castellar (2007) e Novaes (2007), publicados em Anbid (2007).4 () state ownership of banks tends to stunt fi nancial sector development, thereby contribu-ting to slower growth [Banco Mundial (2001, p. 123), citado em BID (2004, p. 156)]. 5 Although the chapter fi nds some evidence in support of the idea that state-owned banks do not allocate credit optimally, it also shows that the results demonstrating that state ownership inhibits fi nancial development and growth are less robust than previously thought. [BID (2004, p. 156)].

  • 15

    Do mesmo modo, as anlises de experincias nacionais de bancos pblicos normalmente no levam em conta o fato de que, em cada pas, a escolha entre os mecanismos de direcionamento de crdito varia em funo das condies histricas, institucionais e do tama-nho relativo e profundidade dos mercados fi nanceiros nacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o mercado de capitais tem uma posio mais dominante, o direcionamento feito basicamente por meio de instrumentos de garantia para emprstimos concedidos pelo setor privado. No Japo, diferentemente, onde o mercado ban-crio tem mais relevncia, os bancos pblicos so instrumentos de alocao importantes, respondendo por 20% do mercado bancrio em 2005.6

    Diante desse cenrio, o objetivo desse trabalho analisar o papel dos bancos de desenvolvimento no direcionamento do crdito e, em par-ticular, a experincia recente do Banco Nacional do Desenvolvi-mento Econmico e Social (BNDES). Para tanto, o texto foi dividi-do em cinco partes, incluindo esta introduo e as concluses. Na segunda, prope-se uma taxonomia para lidar com os mecanismos de direcionamento mais comumente utilizados. O intuito apontar as especifi cidades e as limitaes existentes nos diferentes instru-mentos de alocao de crdito, bem como marcar as particularidades dos bancos de desenvolvimento neste contexto. A terceira parte pro-pe uma conceituao para analisar bancos de desenvolvimento e a quarta trata da experincia brasileira recente de direcionamento de crdito atravs do BNDES. Finalmente, nas concluses, abordam-se perspectivas para a instituio, no contexto das mudanas no curso do mercado fi nanceiro brasileiro.

    6 Ver OCDE (2006).

  • 16

    2. Mecanismos de Direcionamento de Crdito

    O crdito uma mercadoria muito diferente das que so retratadas nos modelos dos livros-textos de microeconomia.7 Entre suas espe-cifi cidades, est o fato de sua disponibilidade poder provocar impac-tos sistmicos relevantes sobre o restante da economia.8 De fato, as condies do crdito podem afetar tanto o nvel de atividade e de emprego correntes, como tambm a taxa de investimento e a trajet-ria de crescimento.

    Alm de ter importncia macroeconmica, o crdito um dos deter-minantes dos gastos dos assalariados bem como da distribuio da riqueza entre os diferentes grupos da sociedade. Um exemplo disso o fi nanciamento imobilirio. A possibilidade ou no de adquirir a prazo uma residncia afeta diretamente o nvel de renda real, a qua-lidade de vida e a capacidade de acumulao de patrimnio da maior parte das famlias menos abastadas.9

    O crdito , ainda, um instrumento efi caz de poltica industrial, ou seja, de promoo de investimentos, gerao de emprego, renda, ex-portaes ou tecnologia. A existncia de mecanismos fi nanceiros adequados , por exemplo, condio para a instalao ou para a con-tinuidade de indstrias importantes.

    No Brasil, dois exemplos ilustrativos so os setores de aeronutica e de bens de capital. Os avies da Embraer, alm dos atrativos de pro-jeto, engenharia e montagem, precisam tambm do fi nanciamento do BNDES para concorrer, em um mercado em que as empresas produtoras de aeronaves gozam de condies especiais oferecidas

    7 De acordo com Stiglitz e Greenwald (2003), it is remarkably diffi cult to incorporate credit within the standard general equilibrium model ( muito difcil incorporar o crdito dentro de um modelo de equilbrio geral).8 Outros exemplos de mercadorias que requerem um tipo de tratamento diferenciado por apresentarem importncia sistmica so o dinheiro e o petrleo. Para uma viso do petrleo, ver Torres (2004).9 Outro exemplo so os microcrditos e os fi nanciados voltados para incluso social, que, ademais dos benefcios em termos de renda e acumulao patrimonial, buscam tambm es-tender a seus benefi cirios as vantagens dos direitos da cidadania.

  • 17

    por mecanismos pblicos de direcionamento de crdito. o caso da parceria entre a Boeing e o Eximbank norte-americano, entre a Airbus e as agncias de comrcio exterior europeias e entre a Bom-bardier e a Export Development Canada (ECD). Do mesmo modo, as empresas brasileiras de mquinas e equipamentos precisam do suporte fi nanceiro do BNDES para enfrentar, mesmo no mercado brasileiro, a concorrncia dos produtos estrangeiros fi nanciados no longo prazo pelos respectivos Eximbanks.

    O direcionamento do crdito , assim, um dos principais meios de que os governos dispem para atender a diferentes demandas da so-ciedade. Tem ainda a vantagem de, em muitos casos, poder prescin-dir ou substituir o uso de recursos fi scais, sem grande perda de efi c-cia. Os instrumentos existentes so ainda variados, fl exveis e podem ser mesclados de diferentes formas.

    De acordo com a originao da operao, os mecanismos de aloca-o de crdito podem ser reunidos em dois grupos: os diretos e os indiretos. Nos mecanismos diretos, os governos, atravs de bancos pblicos, concedem diretamente o crdito ao devedor fi nal. Nos me-canismos indiretos, o emprstimo feito pelo setor privado, que, para isso, conta com benefcios fi nanceiros oferecidos pelo governo.

    Mecanismos Diretos

    Os bancos pblicos so, por excelncia, mecanismos diretos de alo-cao pblica de crdito. Nesses casos, o governo origina um fi nanciamento, estabelecendo uma relao direta com o credor, sem a participao de um ente privado. sua a responsabilidade pela avaliao, pela contratao e pela administrao do crdito.

    Para tanto, os bancos pblicos podem se fi nanciar junto ao governo ou ao mercado. No caso de os recursos terem origem tributria ou serem provenientes da gesto do patrimnio pblico, os crditos so gerados sem que o Estado precise captar recursos junto ao mercado.

    Exemplos de mecanismos de fi nanciamento com recursos pbli-cos so encontrados em vrios pases. No Japo, existe o Fiscal

  • 18

    Investment Loan Program (FILP).10 Trata-se de um fundo do Minis-trio das Finanas do Japo voltado para o fi nanciamento de investi-mentos de longo prazo de entidades pblicas, como empresas, ban-cos e governos municipais, em reas consideradas prioritrias. Uma parte importante dos recursos do FILP se origina das reservas dos fun-dos de penso dos funcionrios pblicos (recursos parafi scais). Os ati-vos totais do FILP em 2006 montavam a US$ 3 trilhes ( 300 trilhes) e seus desembolsos foram de US$ 185 bilhes ( 18,5 trilhes). 11

    Cingapura e Mxico so outros exemplos de pases que contam com mecanismos diretos: o Central Provident Fund e o Infonavit, respec-tivamente. Ambos so voltados para o fi nanciamento do setor habi-tacional e fazem parte do sistema de seguridade social. Guardam uma grande semelhana com o Fundo de Garantia do Tempo de Ser-vio (FGTS) brasileiro.

    No Brasil, ademais do FGTS, outro importante mecanismo direto de alocao de recursos do setor pblico o sistema FAT/BNDES. O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) tem por objetivo fi nanciar as despesas com o seguro-desemprego. Sua principal fonte uma contribuio fi scal feita pelas empresas o Programa de Integrao Social (PIS). A esses recursos se somam os ganhos fi nanceiros obti-dos com as aplicaes dos excedentes de arrecadao acumulados em exerccios anteriores. Desde sua criao em 1988, as receitas com o PIS superaram os gastos correntes do FAT, o que permitiu que o fundo acumulasse, at dezembro de 2007, um patrimnio de R$ 189 bilhes, ou seja, mais de US$ 108 bilhes. Desse montante, a quase totalidade est aplicada em bancos pblicos, particularmen-te no BNDES.

    A grande vantagem dos mecanismos diretos que usam recursos p-blicos a autonomia decisria do Estado na fi xao das condies fi nanceiras desses emprstimos. Por serem desvinculados de uma captao em mercado, os critrios de destinao, avaliao de risco e de fi xao de taxas de juros no precisam ter correspondncia di-

    10 A traduo possvel seria Programa Fiscal de Emprstimos para Investimentos. O FILP, na prtica, um mecanismo direto misto porque tanto mobiliza recursos fi scais quanto se alavanca junto ao mercado privado.11 Ver Torres (2006) e FILP (2007).

  • 19

    reta com os parmetros praticados pelo setor privado. Por isso, so instrumentos muito efi cazes em termos de atuao anticclica e de ao focada em segmentos no atendidos pelo crdito corrente, como as operaes de prazos mais longos 12 e as destinadas a micro, pequenas e mdias empresas. A principal desvantagem desse tipo de mecanismo a necessidade de mobilizar elevadas somas de recursos de origem fi scal ou parafi scal para atividades de fi nanciamento.

    A atividade dos bancos pblicos no se limita, no entanto, ao geren-ciamento de fundos do governo. Pelo contrrio, a maior parte de suas operaes fi nanciada com recursos captados junto ao merca-do. A mobilizao de recursos pblicos nesse caso se limita ao capi-tal do banco.13 A mobilizao de recursos junto a depositantes, ao mercado interbancrio ou de capitais impe ao banco pblico limi-taes em termos de taxas de juros, prazos e da avaliao do crdito de seus clientes.

    Entre os pases desenvolvidos, h importantes bancos pblicos que captam recursos junto ao pblico. O Banco Postal do Japo, a maior instituio bancria do mundo, um deles. Na Alemanha, de acordo com a Associao dos Bancos Alemes,

    os bancos pblicos detm a maior parcela do mercado em ter-mos de ativos totais. Os savings banks (bancos pblicos munici-pais) e o Landesbanks (bancos pblicos estaduais), juntos, res-pondem por 34%. Se os bancos pblicos de propsito especfi co, os hipotecrios e as associaes de emprstimo e construo fo-rem includos (nessa conta), ao redor de 45% do mercado banc-rio alemo est nas mos do setor pblico.14

    No Brasil, o Banco do Brasil e a Caixa Econmica Federal so exem-plos da importncia dos mecanismos diretos que alavancam recur-

    12 Por exemplo, o crdito imobilirio de longo prazo no Brasil.13 Em pases como o Brasil, os bancos pblicos contam com uma garantia legal do Estado para suas captaes, mas na Alemanha, por exemplo, essa garantia foi recentemente suspen-sa por determinao da Comisso Europeia. 14 The public-sector banks have the largest market share measured in terms of total assets. The savings banks and Landesbanks together hold over 34%. If the public special purpose banks, mortgage banks and building and loan associations are also included, around 45% of the German banking market is in the hands of the public sector. Disponvel em: .

  • 20

    sos no mercado. O BB e a CEF ocupam duas entre as cinco maio-res posies entre os bancos comerciais brasileiros com ativos que, em meados de 2007, somavam, respectivamente, R$ 358 bi-lhes (US$ 204 bilhes) e R$ 250 bilhes (US$ 142 bilhes).

    Mecanismos Indiretos

    Os mecanismos indiretos tm como caracterstica essencial o fato de a originao do crdito ser privada. O direcionamento do Estado, nesses casos, feito atravs de incentivos ao mercado. Graas a esse benefcio, os bancos ou os investidores decidem conceder um em-prstimo em condies de taxas de juros, de prazos ou de exigncia de garantias melhores do que as que praticariam normalmente. Em contrapartida, o benefi cirio do crdito tem de pertencer a um grupo prioritrio especfi co por exemplo, ser agricultor familiar de baixa renda , uma classe de empresas pequenas e mdias ou estar reali-zando uma operao prioritria por exemplo, exportando avies.

    Os mecanismos indiretos mais comuns esto associados reduo do custo fi nal do crdito. o caso das garantias pblicas. Por meio de um aval ou de um seguro de crdito, o governo assume, em deter-minadas condies, todo ou parte do risco de uma operao. Em troca, o custo do fi nanciamento para o tomador fi nal deveria fi car pouco acima das taxas praticadas para a dvida pblica normal-mente, os Tesouros Nacionais so os devedores de mais baixo custo em suas prprias moedas.15 Os mecanismos de garantia so muito efi cientes do ponto de vista fi scal porque, ademais de poderem gerar receitas por meio de taxas ou prmios de seguro sobre o valor da operao , as despesas s ocorrem no futuro e apenas em casos de inadimplemento.

    15 Nos Estados Unidos, essa margem adicional normalmente de 5 a 15 pontos bsicos, ou seja, de 0,05 a 0,15% a.a., mas esse diferencial pode aumentar muito em situaes de baixa liquidez de mercado; no caso da chamada crise do subprime, chegou a atingir quase 1% ao ano.

  • 21

    Nos Estados Unidos, a garantia pblica para crditos privados muito utilizada. , por exemplo, responsvel por quase metade do crdito imobilirio. Instituies como National Mortgage Associa-tion (Fannie Mae), Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac) e Federal Home Loan Banks (FHLBs), que gozam de garan-tias do governo federal americano, dominam o fi nanciamento de re-sidncias nos EUA. Renem, em conjunto, hipotecas no valor de mais de US$ 4 trilhes, o que as situa entre as maiores instituies fi nanceiras do mundo.16

    Nos pases menos desenvolvidos, as condies dos mercados fi nan-ceiros locais tornam pouco efi cazes os instrumentos de garantia. Isso porque o crdito ao governo muitas vezes caro e de curto prazo, o que limita a capacidade de a garantia pblica reduzir o custo dos emprstimos privados. Alm disso, os mercados fi nanceiros em moe da nacional so limitados e instveis, o que torna proibitivos os custos dos fi nanciamentos, particularmente os de prazos mais lon-gos.17 O Brasil um exemplo disso. As limitaes ao crdito pblico afetam as condies em que a dvida pblica fi nanciada pelo mer-cado: prazos e duration18 curtos e juros reais elevadas.

    Outro mecanismo indireto o subsdio ou equalizao de taxa de juros. Neste caso, o governo paga diretamente ao fi nanciador parte do custo da operao. Com isso, o governo consegue fazer com que a taxa de juros para o tomador fi nal seja inferior que seria cobrada, com base nos parmetros de mercado. O custo fi scal corrente desse tipo de instrumento , no entanto, maior que o resultante do uso de

    16 De acordo com Holtz-Eaken (2003), a garantia implcita (da Fannie Mae e da Freddie Mac) comunicada aos investidores em mercados importantes atravs de vrias provises legais que criam uma percepo da melhor qualidade do crdito para as empresas em con-sequncia de sua afi liao com o governo. Essas provises incluem uma linha de crdito do Tesouro dos Estados Unidos; a iseno das exigncias do registro e abertura de informaes Securities and Exchange Commission; iseno de impostos de renda estadual e local; e a nomeao de alguns diretores pelo presidente dos Estados Unidos; ver tambm Greenspan (2004). Em 2008, Fannie Mae e Freddie Mac foram formalmente estatizados pelo governo americano.17 Ver BID (2004).18 A duration mede a sensibilidade do valor presente de um fl uxo de caixa a variaes da taxa de juros. Com isso, um ttulo indexado a uma taxa de juros que fl utua diariamente tem seu valor presente variando a cada dia independentemente do seu prazo total.

  • 22

    garantias, mas, em compensao, o governo deixa de ter nus de pagar a dvida em caso de inadimplemento.

    Esse mecanismo pode tambm ser utilizado como instrumento de hedge de taxa de juros, quando, por exemplo, a captao de recursos para o fi nanciamento baseada em taxas fl exveis e o governo dese-ja que o devedor se benefi cie de uma taxa fi xa.19 Nesse caso, perdas decorrentes de descasamentos entre as duas taxas so cobertas com recursos pblicos.20

    No passado, a equalizao chegou a ser largamente utilizada por agncias de crdito exportao (ECA), principalmente de origem europeia.21 No Brasil, esse instrumento atualmente usado associa-do a fi nanciamentos para exportao e a alguns crditos do BNDES direcionados para investimentos no setor agrcola. Nesse ltimo caso, o mecanismo serve para o governo federal garantir que o cr-dito seja realizado a juros fi xos para o tomador fi nal, enquanto os recursos da instituio so captados a uma taxa que fl utua trimestral-mente a taxa de juros de longo prazo (TJLP).

    Outra forma de o governo incentivar a originao voluntria de cr-ditos por intermdio da proviso aos bancos de fundos pblicos direcionados. Nesse caso, essas instituies tornam-se repassadores desses recursos, assumindo o risco e o gerenciamento das opera-es. Trata-se de um mecanismo importante em pases como os latino-americanos em que so escassos os mercados de longo pra-zo para fi nanciamento em moeda nacional.22 Em contrapartida, esse instrumento demanda muito intensamente o uso de recursos fi scais ou parafi scais. No Brasil, esse modelo serve de base s operaes indiretas do BNDES com os bancos comerciais.

    Alguns mecanismos indiretos, como o redesconto seletivo do Banco Central, so atualmente pouco utilizados. Nesse caso, a Autoridade Monetria utiliza seu poder de emisso de moeda para direcionar o

    19 Nesse caso, a equalizao varivel conforme a fl utuao que venha a ocorrer nas taxas de mercado. 20 Na situao reversa, o Tesouro pode at obter ganhos com a operao.21 Ver Torres e Esteves (2006) e Ball e Knight (1989).22 Ver BID (2004).

  • 23

    crdito domstico, oferecendo condies vantajosas de redesconto para operaes especfi cas. At os anos 1980, era comum que ban-cos centrais, at mesmo de pases desenvolvidos, oferecessem ja-nelas de redesconto para, por exemplo, capital de giro para a expor-tao. No Brasil, durante a crise de 2002, o Banco Central chegou a oferecer, ao mercado, redescontos de fi nanciamento de curto prazo para emprstimos exportao como forma de reduzir o impacto negativo decorrente do cancelamento inesperado das linhas dos ban-cos internacionais. Esse mecanismo tambm foi largamente utiliza-do pelo Banco Central do Japo, ao longo da dcada de 1960, para estimular os bancos comerciais a fi nanciar projetos de investimento de longo prazo, a partir de captaes de mais curta durao, em geral de at dois anos.23

    Todos os mecanismos indiretos at agora descritos tm em comum o fato de serem voluntrios. Assim, os bancos privados no so obrigados a atender os credores, tidos como prioritrios pelo governo. Entretanto, caso decidam faz-lo, podem se benefi ciar de vantagens concedidas pelo governo a essas operaes. Diferentemente dos mecanismos vo-luntrios, h instrumentos indiretos que, em lugar de oferecerem pr-mios, impem penalizaes aos bancos que no cumprirem metas espe-cfi cas de originao de crditos para grupos prioritrios. Esses mecanismos compulsrios so atualmente pouco utilizados no mundo. No Brasil, so encontrados nas normas do Banco Central que obrigam os bancos comerciais a observar um percentual mnimo de aplicaes na agricultura, na habitao ou no microcrdito, sob pena de incorrerem em perdas de rendimento e pagamento de multas.

    Tendncias do Direcionamento de Crdito e Panorama Atual

    Nos pases desenvolvidos, os mecanismos de direcionamento de crdito foram uma importante resposta poltica dos governos Crise de 1929. A experincia dos Estados Unidos particularmente ilus-

    23 Ver Torres (1983).

  • 24

    trativa. Praticamente todo o sistema americano de direcionamento de crdito hoje existente foi implantado na dcada de 1930, a partir de uma instituio financeira federal, a Reconstruction Finance Corporation (RFC).

    O propsito original da RFC era realizar emprstimos emergenciais para bancos, ferrovias e companhias de seguro. Em seguida, passou tambm a operar com governos municipais e a agricultura. Poucos anos depois, a exportao foi includa nesse cardpio. A Commodity Credit Corporation, agncia norte-americana at hoje voltada para o fi nanciamento agrcola e a administrao de estoques reguladores, foi criada em 1933 como uma subsidiria da RFC. O mesmo acon-teceu com o Eximbank em 1938, constitudo para fi nanciar as expor-taes americanas.

    No caso do investimento residencial, foi estabelecido em 1932 o Federal Home Loan Bank System para oferecer ao sistema bancrio crdito direcionado para hipotecas residenciais. Diante da baixa li-quidez desses emprstimos, o RFC montou, em 1938, uma subsi-diria, a Federal National Mortgage Association (Fannie Mae), que, como vimos anteriormente, at hoje tem um papel de destaque nes-se mercado.

    A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial mobili-zou o sistema de direcionamento de crdito para o esforo de guerra. Com o fi nal do confl ito, algumas dessas instituies perderam im-portncia. A RFC foi extinta na dcada de 1950, dando lugar Small Business Administration (SBA), agncia voltada para pequenas e mdias empresas. Entretanto, muitas de suas antigas subsidirias continuam at hoje sendo muito atuantes no mercado americano.

    Na maior parte dos pases desenvolvidos da Europa e no Japo, os sistemas de direcionamento de crdito implantados aps a Segunda Guerra Mundial seguiram, em linhas gerais, o modelo americano dos anos 1930. Foram criados bancos pblicos para a reconstruo e para segmentos especfi cos. Desde ento, o fortalecimento das insti-tuies privadas e dos mercados de capitais em moeda local fez com que os instrumentos diretos de direcionamento a exemplo do que ocorreu no EUA perdessem importncia relativa para os instru-mentos indiretos, como garantias e seguro de crdito.

  • 25

    No mundo em desenvolvimento, a experincia foi distinta. O pro-blema central desses pases aps a Segunda Guerra era a superao do subdesenvolvimento e no a reconstruo. Mesmo assim, o mo-delo americano serviu de base criao de vrias instituies de direcionamento de crdito. A grande diferena frente experincia dos pases ricos est no fato de que, at hoje, os mecanismos indire-tos tiveram, na maior parte dessas economias, pouco sucesso por causa do custo elevado do crdito pblico. O baixo desenvolvimento dos mercados fi nanceiros locais, ademais de fatores histricos e ins-titucionais, faz com que os bancos pblicos sejam o mecanismo b-sico de direcionamento de crdito utilizado nesses pases.

    Um exemplo de insucesso de mecanismo indireto em pases em de-senvolvimento o atual mecanismo brasileiro de seguro de crdito exportao. Seu modelo foi baseado na experincia francesa em que uma seguradora privada contratada para administrar o mecanismo, mas as receitas com prmios e o pagamento de sinistros permane-cem de responsabilidade direta do governo.

    Ora, as condies de risco de crdito do Tesouro Nacional do Brasil sempre foram muito piores que as francesas. Por isso, sabia-se, des-de o incio, que a capacidade de a garantia do governo brasileiro, por si s, conseguir atrair os bancos comerciais para o fi nanciamento de longo prazo s exportaes era praticamente nula. Para contornar essa difi culdade, foi adicionado ao seguro brasileiro um mecanis-mo inexistente nos pases desenvolvidos de garantia de liquidez, consubstanciado em um fundo especfi co de participaes acion-rias do governo em empresas que gozassem de elevada liquidez no mercado acionrio.24

    A despeito da existncia de uma dupla garantia para o fi nanciador seguro acoplado a uma garantia de liquidez , o seguro de crdito exportao jamais conseguiu atrair bancos privados. Apenas as ins-tituies pblicas BNDES e o Banco do Brasil (BB) utilizaram-se do mecanismo (Tabela 1). Mesmo assim, o BB, a partir de 2002, deixou de faz-lo, permanecendo o BNDES como nico usurio.

    24 Para uma anlise do seguro de crdito exportao brasileiro, ver Torres e Esteves (2006).

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    Ora, mecanismos indiretos s tm sentido quando redirecionam a atuao do mercado. Para atender um nico banco pblico, existem solues mais simples e de menor custo operacional, como um sim-ples aval do Tesouro Nacional.

    3. Bancos de Desenvolvimento

    Uma Proposta de Conceituao

    Defi nir bancos de desenvolvimento (BD) no uma tarefa fcil. Isso faz com que coexistam na literatura conceitos que possuem focos muito distintos. A defi nio recentemente proposta pelas Naes Unidas to ampla que chega a incluir, nesse universo, instituies privadas e aquelas focadas em projetos de natureza social. Uma abrangncia to elstica, apesar de poder ser relevante para determi-nadas fi nalidades, no de muita utilidade para a anlise dos bancos de desenvolvimento como instrumento particular de direcionamen-to de crdito.25

    Tabela 1Evoluo do Seguro de Crdito Exportao

    (Em US$ Milhes)

    ITENS 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

    Valores Segurados Total 57 209 1.337 956 577 647 1.070 1.513

    Valores Segurados BNDES

    43 199 1.335 953 571 644 1.036 1.509

    Participao do BNDES (em %)

    75 95 99 99 99 100 97 100

    Fonte: SBCE.

    25 De acordo com as Naes Unidas (2006, p. 9), national development banks can be defi ned as fi nancial institutions set up to foster economic development, often taking into account objecti-ves of social development and regional integration, mainly by providing long-term fi nancing to, or facilitating the fi nancing of, projects generating positive externalities.

  • 27

    Outra defi nio recente, que foi aceita pelo BID (2004) e serviu de base para o conceito formulado pela ONU (2006), foi a de Panizza (2004): () development banks are () fi nancial institutions that are primarily concerned with offering long-term capital fi nance to projects that are deemed to generate positive externalities and hence would be underfi nanced by private creditors.26

    Panizza atribui, corretamente, como caracterstica fundamental dos bancos de desenvolvimento o fato de serem instituies voltadas para o fi nanciamento de investimentos de longa maturao. Nesse sentido, so descendentes de um tipo especfi co de banco o de longo prazo que surgiu a partir da segunda metade do sculo XIX e que teve um papel importante na arrancada da industrializao da Europa Continental e do Japo. Esses bancos foram responsveis pela proviso de elevadas somas de recursos fi nanceiros para proje-tos de implantao de indstrias pesadas e de infraestrutura, particu-larmente as ferrovias.

    Essa experincia contrasta com os mecanismos de fi nanciamento do investimento utilizados, por exemplo, na Inglaterra. Na ento princi-pal potncia econmica do mundo, o papel de reunir e alocar fundos de longo prazo a projetos de investimento foi feito por meio das bolsas de valores regionais. Os bancos comerciais ingleses os mer-chants banks no tiveram interesse nessa atividade. Sua atividade principal era o fi nanciamento do crdito corrente de curto prazo e da dvida soberana de pases estrangeiros.

    Gerschenkron (1970) identifi ca nessa inovao institucional ou seja, na criao dos bancos de longo prazo um dos elementos rele-vantes que explicam o sucesso das respostas nacionais alem, fran-cesa e de outros pases europeus continentais em reduzir o atraso econmico frente industrializao inglesa.

    Outra origem dos bancos de desenvolvimento, vistos como institui-es fi nanceiras voltadas para crdito de longo prazo, o princpio da segmentao dos mercados fi nanceiros, adotado nos EUA a partir 26 (...) bancos de desenvolvimento so (...) instituies fi nanceiras dedicadas principalmente a oferecer fi nanciamentos de capital de longo prazo para projetos de longo prazo que ge-rariam externalidades positivas e que, portanto, receberiam fi nanciamento insufi ciente por parte dos credores privados.

  • 28

    da dcada de 1930 e que foi incorporado regulao de vrios pases aps a Segunda Guerra Mundial. De acordo com esse preceito, o crdito de curto prazo exclusividade de bancos comerciais; o de longo prazo, de bancos de investimento; e as atividades de compra e venda de ttulos, das corretoras. Exige-se, ademais, que os controla-dores de um tipo dessas instituies por exemplo, bancos comer-ciais no possam deter participaes em outro tipo de instituies fi nanceiras como os bancos de investimento e as corretoras. Esse tipo de regulao difere radicalmente do princpio do banco univer-sal que pode atuar em qualquer segmento do mercado de crdito , e que caracterizou historicamente a experincia de pases da Europa Continental, como a Alemanha.

    O conceito de Panizza se, de um lado, aponta a importncia do fi nan-ciamento de longo prazo na caracterizao dos bancos de desenvol-vimento, de outro, deixa de relacionar o foco dessas instituies com a industrializao ou com a reconstruo. Privilegia, em seu lugar, aspectos como a externalidade positiva de projetos e o subfi nancia-mento por parte do setor privado. Essa opo, em lugar de aprofun-dar a especifi cidade dos bancos de desenvolvimento, como meca-nismos de direcionamento de crdito, volta a aproxim-los a um banco pblico qualquer, a partir de uma perspectiva da teoria das falhas de mercado.

    Na Europa Continental e no Japo, tanto no sculo XIX como no ps-guerra, a questo do fi nanciamento de projetos industriais e de infraestrutura pesada no pode ser reduzida a falhas do mercado de crdito. Na prtica, esses Estados Nacionais, diretamente ou atravs de capitais privados, estavam construindo instituies que, muitas vezes, tinham como funo mudar as estruturas de mercado existen-tes de forma a permitir o fi nanciamento de projetos que, s condi-es correntes de mercado, no se viabilizariam. Nesse cenrio, os objetivos polticos de desenvolvimento, industrializao, reconstru-o ou enfrentamento externo eram, do ponto de vista do Estado, mais importantes do que a subordinao aos interesses imediatos dos bancos privados.

    Um exemplo desse confl ito de interesses entre o Estado e o sistema bancrio descrito por Gerschenkron (1970) quando aborda a expe-

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    rincia de um dos mais importantes bancos de longo prazo da se-gunda metade do sculo XIX, o Credit Mobilier francs, institui-o privada com fortes ligaes com o governo. De acordo com Gerschenkron, desde o princpio, o Credit Mobilier se meteu em uma violenta pugna com os representantes da velha riqueza da banca francesa, especialmente com os Rothschild. Foi precisamente este confl ito o que, inicialmente, minou a fora da instituio e foi responsvel pelo colapso eventual que sofreu em 1867.

    Com base nessa perspectiva, uma alternativa ao conceito de Panizza a defi nio proposta por Aghion (1999): Development banks are government-sponsored fi nancial institutions concerned primarily with the provision of long-term capital to industry.27 Alm de expli-citar a natureza pblica dessas instituies, Aghion ressalta a especi-fi cidade dos bancos de desenvolvimento como provedores de crdi-to de longo prazo para investimento na indstria pesada e na infraestrutura. Desse ponto de vista, uma das caractersticas essen-ciais dos bancos de desenvolvimento ser instrumento de direciona-mento de crdito para a formao bruta de capital fi xo.

    Para fi ns deste trabalho, seria necessrio adicionar ao conceito de Aghion duas qualifi caes. A primeira diz respeito ao funding dessas instituies. Um banco de desenvolvimento, para poder ser um ins-trumento efetivo de direcionamento de crdito, no pode depender excessivamente de recursos captados no exterior, inclusive junto a agncias multilaterais. Instituies que tm essa caracterstica per-dem sua autonomia decisria frente s limitaes impostas pelo mercado custos, rating etc. ou pelos organismos internacionais polticas de alocao. Assim, instituies, como a Corporacin de Fomento (CORFO) chilena, que so em grande medida repassado-ras de recursos do BID e do Banco Mundial, no deveriam, por esse critrio, ser consideradas bancos de desenvolvimento.

    A segunda qualifi cao que sejam bancos que possam originar operaes de crdito. Essa capacidade fundamental para que o BD, quando necessrio, atue arbitrando ou formando preos em segmen-

    27 Bancos de desenvolvimento so instituies fi nanceiras mantidas pelos governos, volta-das basicamente para a disponibilizao de capital de longo prazo para a indstria.

  • 30

    tos do mercado fi nanceiro, associados ao investimento. Na Amrica Latina, nas ltimas dcadas, muitos dos tradicionais bancos de de-senvolvimento da regio, como o Cofi de peruano, tiveram sua atua-o limitada ao provimento de recursos de longo prazo para o siste-ma bancrio. Passaram a atuar exclusivamente como bancos de segundo piso, ou seja, como bancos de bancos.

    O BNDES, como ser aprofundado mais adiante, atende plenamente ao conceito formulado por Aghion, com as duas qualifi caes pro-postas. Trata-se de um banco controlado pelo governo federal, vol-tado basicamente para atender projetos de investimento de longo prazo, particularmente na indstria e na infraestrutura. Os recursos de longo prazo administrados pela instituio tm origem domstica e so denominados em moeda nacional. Metade de suas operaes correntes originada diretamente. Alm disso, o BNDES tem capa-cidade de infl uenciar a determinao dos preos e das quantidades de crdito nos mercados em que atua.

    Bancos de Desenvolvimento, Organismos Multilaterais e BNDES: Um Panorama Recente

    A Tabela 2 rene algumas informaes fi nanceiras e operacionais recentes de alguns dos principais bancos de desenvolvimento exis-tentes no mundo BNDES, KDB e KfW e, para fi ns de compara-o, de organismos multilaterais BID e Banco Mundial. Os indica-dores de natureza fi nanceira esto expressos em dlares americanos e, por isso, esto sujeitos a variaes das taxas de cmbio. Por esse motivo, so, na prtica, relevantes apenas como elementos para comparar ordens de grandeza.

    De acordo com esses dados, o BNDES tem, grosso modo, um porte semelhante ao do Banco de Desenvolvimento da Coreia (KDB). Em termos de ativos, o KfW de longe a maior das instituies pesqui-sadas, com US$ 556 bilhes, seguida do Banco Mundial, com

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    US$ 212 bilhes. O KDB e o BNDES tm cerca de US$ 110 bilhes de ativos e o BID pouco mais da metade desse valor, US$ 66 bi-lhes. O BNDES, entre todas, a instituio com menor patrimnio lquido, mas a mais lucrativa, tanto em termos do lucro lquido apu-rado quanto do rendimento sobre o capital. O nmero de emprega-dos muito semelhante entre o BNDES, o BID e o KDB: cerca de 2 mil funcionrios. O KfW tem quase o dobro desse contingente e o Banco Mundial, cinco vezes mais.

    Tabela 2Indicadores de Bancos de Desenvolvimento e Multilaterais Selecionados

    (Em US$ Bilhes)

    ITENS BNDES BIDBANCO

    MUNDIALKDB KFW

    Ativos Totais 108,0 66,5 212,3 110,0 555,7

    Patrimnio Lquido 13,3 19,8 36,5 18,0 23,7

    Lucro 4,1 0,2 (2,4) 2,2 1,5

    Desembolsos 35,2 6,4 11,8 n.a. n.a.

    Nmero de Empregados 1.932 1.852 >10.000 2.036 3.946

    Fonte: BNDES (2007), BID (2007), Banco Mundial (2007), KDB (2007) e KfW (2007).

    O principal destaque do BNDES nesse contexto o valor elevado de seus desembolsos anuais: US$ 35 bilhes em 2007. Trata-se de um montante seis vezes maior que o realizado pelo BID e trs vezes maior que o do Banco Mundial. No foi possvel obter dados seme-lhantes para o KfW e o KDB.

    Essa especifi cidade do BNDES deve-se ao fato de a instituio res-ponder no mercado brasileiro por quase todo o funding destinado ao fi nanciamento das aquisies de mquinas e equipamentos produzi-dos no pas e a obras civis industriais de menor porte. Esse tipo de demanda, por ser normalmente de menor valor unitrio, pode ser atendido com fi nanciamento de prazo de 5 a 7 anos, enquanto proje-tos de instalao de plantas ou de obras de infraestrutura precisam,

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    normalmente, de 15 a 25 anos. Isso faz com que o prazo mdio das operaes do BNDES seja de 4 anos, muito inferior ao de institui-es congneres. Permite tambm que a instituio consiga gerar um volume de desembolsos anual maior, frente a um mesmo valor de ativo de crdito.

    Esse mecanismo, voltado ao atendimento de operaes de menor porte, foi criado em meados da dcada de 1960, com base em suges-to de uma agncia do governo americano (USAID). Era, poca, visto como um meio de permitir que a incipiente indstria brasileira de bens de capital, ento em crise, pudesse fazer frente, no mercado interno, concorrncia de produtos importados, que normalmente contavam com fi nanciamentos de longo prazo das agncias de crdi-to exportao de seus pases de origem. Nenhuma das outras insti-tuies listadas na Tabela 2 desempenha funes semelhantes a esta. Restringem-se a fi nanciar operaes relacionadas a projetos de in-vestimento de longa maturao na indstria e na infraestrutura que tambm so funes desempenhadas pelo BNDES. As instituies multilaterais e o KfW tambm tm uma carteira importante de em-prstimos a governos. Isso faz com que o prazo mdio de suas ope-raes seja muito mais elevado, superior a 15 anos.

    O elevado volume anual de desembolsos do BNDES est, assim, diretamente ligado a trs fatores. O primeiro a importncia desses fi nanciamentos para um pas que detm uma indstria importante de equipamentos, principalmente nas reas de transporte e de equipa-mentos agrcolas. O segundo consiste na dimenso continental e na importncia da produo agrcola para a economia brasileira. O ter-ceiro so os nveis elevados de taxas de juros e os prazos curtos praticados no mercado fi nanceiro brasileiro.

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    4. O Mercado de Crdito Brasileiro e o BNDES: Caractersticas e Desempenho Recente

    Como se pode ver na Tabela 3, a proporo entre o estoque de crdi-to privado do setor bancrio e o PIB no Brasil em 2006 chegou a 33% do PIB, frente a 29,2% em mdia nos anos 1990. Mesmo as-sim, o crdito bancrio brasileiro ainda era muito inferior ao de pa-ses em desenvolvimento como a ndia, 41%, e o Chile, 75% e ao dos desenvolvidos, que em geral superam 100% do PIB.

    Tabela 3Crdito Privado de Bancos Comerciais e Outras Instituies Financeiras

    (Em % do PIB)

    PASES SELECIONADOS 1990 1997 2006

    Desenvolvidos

    Estados Unidos 117 143 194

    Reino Unido 116 120 164

    Alemanha 89 110 108

    Japo 196 192 97

    BRICs

    Brasil 24 29 33

    Rssia n.d. 9 23

    ndia 25 24 41

    China 88 98 115

    Latino-Americanos

    Chile 47 56 75

    Mxico 15 21 20

    Fonte: Banco Mundial, Financial Structure Data Base, 2007.

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    De acordo com o BID (2004), o quadro brasileiro no muito dife-rente da situao verifi cada nos demais pases latino-americanos, uma vez que,

    em grande medida, o tamanho e a volatilidade dos mercados de crdito na Amrica Latina e no Caribe podem ser associados a choques macroeconmicos. (...) Muitas das crises bancrias mais recentes podem ser associadas a fatores externos que leva-ram a restries de liquidez e ao contgio dos mercados de capi-tais. Paradas sbitas nos fl uxos de capital, especifi camente cor-tes inesperados no fi nanciamento do dfi cit em conta corrente, tiveram efeitos profundos na Amrica Latina e no Caribe.28

    De fato, a despeito de o nosso mercado bancrio nos anos 1990 ter evitado a dolarizao e ter seguido normas mais rgidas de prudncia bancria que outros pases da regio, o crdito brasileiro ao setor privado, nesse perodo, foi muito voltil, oscilando entre um mnimo de 17,1%, em outubro de 1991, e um mximo de 35,1%, em maro de 2008 (Grfi co 1).

    As desaceleraes de 1994/1995, 1996/1997 e 1998/1999 refl etiram sucessivamente as crises do Mxico, da sia e da Rssia-Brasil, que igualmente afetaram os demais pases latino-americanos. A contra-o de 2002/2003, diferentemente, foi especfi ca do Brasil e esteve relacionada reduo da liquidez externa, motivada pelas eleies presidenciais. J a acelerao verifi cada nos anos seguintes o cr-dito domstico ao setor privado passou de 22,9%, em maro de 2003, para 35,1%, em maro de 2008 foi decorrente do cenrio externo benigno que se traduziu na reduo do risco de crdito de quase toda a Amrica Latina. No primeiro semestre de 2008, dois pases sul-americanos, o Peru e o Brasil, alcanaram o investment grade junto s agncias internacionais de classifi cao de risco.

    Nesse cenrio, o BNDES seguiu uma trajetria diferente do restante do mercado. Como se pode ver no Grfi co 2, ao longo de 2000-2008, os ativos de crdito da instituio apresentaram uma tendncia fi rme de expanso frente ao PIB, passando de 4,3%, em junho de 2000, para 6,1%, em abril de 2008.

    28 Ver Torres e Esteves (2006).

  • 35

    Grfi co 1Evoluo do Crdito ao Setor Privado

    Fonte: Banco Central do Brasil.

    Esse crescimento foi mais intenso entre 2000 e 2003 ganho de 1 ponto percentual do PIB , exatamente no momento em que a cri-se econmica e, consequentemente, a retrao do mercado fi nancei-ro tornavam-se mais agudas. Entre 2003 e 2007, quando houve a nova fase expansionista, o crdito do BNDES frente ao PIB apresen-tou relativa estabilidade. Entretanto, a partir de junho daquele lti-mo ano, novamente seu ativo de crdito voltou a crescer acima do PIB, atingindo 6,06% em abril de 2008 um ganho de 0,5 ponto percentual desde ento.

    Como resultado da trajetria de crescimento do seu ativo de crdito, a participao do BNDES no mercado bancrio sofreu intensa osci-lao no perodo. O Grfi co 3 mostra que, durante a fase mais con-tracionista do crdito bancrio, o BNDES aumentou sua participa-o de 18,7%, em setembro de 2000, para 25,5%, em janeiro de 2003. Desde ento, esse percentual vem se reduzindo, em consequn-cia da rpida recomposio do crdito dos bancos comerciais, atin-gindo 17,1% em abril de 2008. Esses dados evidenciam que o crdi-to do BNDES no acompanhou a tendncia do restante do mercado tanto nas fases de descenso quanto de ascenso do ciclo.

  • 36

    Grfi co 2Evoluo do Crdito do BNDES frente ao PIB

    Fonte: Banco Central do Brasil.

    De acordo com a literatura sobre bancos pblicos,29 esse comporta-mento anticclico deveria ser esperado e decorreria, entre outros mo-tivos: da existncia de uma funo objetivo anticclica do Estado, que atribui essa misso a seu banco de desenvolvimento; e da aver-so a risco dos depositantes, que, em momento de crise, procurariam abrigar suas aplicaes em bancos, como os do governo, que no esto sujeitos a falncia.30 Para avaliar a relevncia dessas hipteses para o caso do BNDES, torna-se necessrio analisar os determinan-tes da demanda e da oferta de recursos fi nanceiros da instituio nos ltimos anos.

    29 De acordo com o BID (2004, p. 23), no caso da Amrica Latina, o crdito fornecido por bancos pblicos menos pr-cclico do que o crdito fornecido por bancos privados. Ver tambm Castellar (2007) e Novaes (2007).30 Ver Micco e Panizza (2004).

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    Grfi co 3Participao do Crdito do BNDES no Crdito ao Setor Privado

    Fonte: Banco Central do Brasil.

    A Evoluo da Demanda de Recursos do BNDES: 19972007

    Como um tpico banco de desenvolvimento, o BNDES atua em seg-mentos especfi cos do mercado de crdito: investimentos de longo prazo, particularmente na indstria e na infraestrutura; exportaes de bens de elevado valor agregado; e, em menor escala, operaes de mercado de capitais. Como se pode ver na Tabela 4, desde 2003, metade das liberaes destina-se a operaes de grande porte, que envolvem menos de mil contratos, cada um de valor superior a R$10 milhes. O restante composto por fi nanciamentos de menor por-te mais de 180 mil contratos em 2007 (90% do total) que so, em sua quase totalidade, originados por bancos comerciais as chama-das operaes indiretas.

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    Tabela 4Composio dos Desembolsos do BNDES por Modalidade e Originao

    (Em % dos Desembolsos)

    ITENS 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

    Modalidade

    Projetos de Grande Porte

    41,4 41,8 40,0 27,5 32,9 32,3 33,7 41,8

    Projetos de Menor Porte

    24,8 30,3 26,2 33,9 37,5 33,4 32,5 40,3

    Exportao 24,9 23,8 31,5 35,5 27,9 29,8 27,0 12,4

    Mercado de Capitais 8,6 3,9 2,2 2,9 1,5 4,4 6,6 5,7

    Outros 0,4 0,2 0,2 0,2 0,2 0,1 0,2 0,1

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

    Originao

    Operaes Diretas 47,7 46,9 58,7 45,7 44,6 47,0 43,1 41,5

    Operaes Indiretas 52,3 53,1 41,3 54,3 55,4 53,0 56,9 58,5

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

    Fonte: BNDES, elaborao da APE.

    O Grfi co 4 mostra a evoluo dos desembolsos do BNDES em moe da constante entre 1997 e 2007. Os dados referentes parte in-ferior das barras correspondem a uma estimativa da demanda cor-rente pelos recursos do Banco e a parte superior identifi ca o valor das operaes extraordinrias, que contaram com recursos vincula-dos do governo.

    Percebe-se que, em todo o perodo de contrao do crdito bancrio brasileiro de 1997 a 2002 , exceo do ltimo ano, os desembol-sos do BNDES se mantiveram estveis em termos reais. Entre 1997 e 2001, os desembolsos a valores de dezembro de 2007 foram, em mdia, de R$ 37,6 bilhes, oscilando entre uma mxima de R$ 39,3 bilhes, em 1998, e uma mnima de R$ 35 bilhes, em 2000. Em 2002, ano em que a crise econmica foi muito intensa por causa da escassez de energia eltrica de 2001 e das eleies presidenciais, houve um salto nas liberaes totais para R$ 62,3 bilhes. Se, desse

  • 39

    valor, forem retiradas as operaes extraordinrias, relacionadas ao Programa Emergencial de Energia Eltrica que contou com recursos vinculados do Tesouro Nacional, mesmo assim, as liberaes atingiriam R$ 53,8 bilhes, um valor de 43% superior mdia dos quatro anos anteriores. De qualquer maneira, um crescimento considervel.

    Grfi co 4Desembolsos do BNDES em Moeda Constante*

    Fonte: BNDES, elaborao da APE.* Os dados foram atualizados pela evoluo do IPCA no perodo e a parcela destacada na parte superior das colunas referentes aos anos de 2002 a 2005 corresponde a desembolsos feitos com recursos extraordinrios especifi camente destinados.

    A partir de 2003, a situao mudou de fi gura. As liberaes, depois de uma queda inicial, apresentaram uma trajetria fi rme de cresci-mento. Os crditos ordinrios passaram de R$ 43,2 bilhes, em 2003, para R$ 64,5 bilhes, em 2007, um aumento de quase 50% em termos reais, o que equivale a uma taxa de crescimento de mais de 10% ao ano. Claramente as liberaes do BNDES, entre 2003 e 2007, tiveram uma forte aderncia trajetria ascendente do crdito global.

  • 40

    O Grfi co 5 mostra a composio dos desembolsos do BNDES entre 1997 e 2007 por principais setores. Percebe-se que trs segmentos infraestrutura, indstria e exportao responderam, ao longo de todo o perodo, por mais de 80% das liberaes.

    Os investimentos na indstria e na infraestrutura so voltados para o mercado interno e responderam, historicamente, pela maior parte da demanda por recursos do BNDES. Sua participao conjunta sofreu intenso declnio no incio do perodo, variando de um mximo de 78% do total, em 1997, a um mnimo de 46%, em 2002. Desde en-to, essa participao vem aumentando rapidamente, atingindo 74% em 2007, tanto pelo crescimento dos fi nanciamentos para a indstria que se verifi ca desde 2003 quanto para a infraestrutura , que passou a crescer mais fortemente a partir de 2006.

    A demanda de recursos pela indstria e pela infraestrutura depende do nvel da taxa de investimento da economia, mas principalmente de sua acelerao. O aumento sustentado da taxa de investimento normalmente est relacionado implantao de um conjunto rele-vante de projetos novos ou greenfi eld, enquanto, em um perodo de intensa volatilidade, os investimentos esto mais associados ma-nuteno, eliminao de gargalos ou expanso incremental da plantas existentes. O impacto dos projetos greenfi eld sobre a de-manda de recursos do BNDES tende a ser maior que o do investi-mento corrente, pelo fato de os prazos e os montantes envolvidos serem maiores.31 O Grfi co 6 mostra o crescimento da taxa de inves-timento no perodo. Pode-se identifi car que, a partir de 2003, houve um aumento relevante e sustentado da formao bruta de capital fi xo, que repercutiu imediatamente na liberao de recursos do BNDES para esses setores.

    31 Para uma anlise das caractersticas do investimento brasileiro no perodo, ver Torres e Puga (2006).

  • 41

    Grfi co 5Composio dos Desembolsos do BNDES por Principais Setores Demandantes

    Fonte: BNDES, elaborao da APE.

    Grfi co 6Taxa de Crescimento da Formao Bruta de Capital Fixo

    Fonte: IBGE, elaborao do BNDES/APE.

  • 42

    O fi nanciamento exportao um segmento do mercado de crdito no qual o BNDES s comeou a atuar no incio dos anos 1990. At ento, os fi nanciamentos do governo para essa rea eram feitos ex-clusivamente pelo Banco do Brasil, por meio de sua Carteira de Co-mrcio Exterior (Cacex). Em 1997, apenas 6% do total dos desem-bolsos do BNDES tinham como destino as exportaes. Em 2003, esse percentual atingiu um mximo de 32%, recuando da em diante at atingir 11% em 2007 (Grfi co 5). Dois fatores so relevantes para explicar essa trajetria. De um lado, est a taxa de cmbio, que fl utuou entre pouco mais de R$ 1,00 no incio do perodo para um mximo de R$ 3,90 em setembro de 2002, retornando a uma mdia mensal de R$ 1,68 em abril de 2008.32 De outro lado e mais impor-tante , houve um aumento na demanda de recursos para fi nancia-mento das exportaes brasileiras de mquinas e equipamentos, em particular para avies. Assim, os dados mostram que, ao longo da ltima dcada, o BNDES teve uma atuao anticclica frente ao res-tante do mercado de crdito. Houve aumento de participao do mercado durante a fase de retrao e perda na retomada.

    No perodo de desacelerao do crdito 1997 a 2001 , no se observou um crescimento da atuao do BNDES, como resposta retrao do restante do mercado. De fato, a reduo da demanda decorrente de investimentos da indstria e da infraestrutura impac-tou diretamente a instituio. A manuteno dos nveis reais de de-sembolso nesses cinco anos refl etiu o aumento da demanda por cr-dito s exportaes, principalmente de indstrias novas e que envolviam montantes elevados de fi nanciamento. A exportao fun-cionou, assim, como um estabilizador automtico endgeno.

    Essa misso anticclica fi cou explcita no crescimento das operaes verifi cado em 2002, quando o processo de contrao do crdito in-terno chegou a seu momento crtico. Nessa oportunidade, o BNDES foi chamado a ocupar o vazio deixado pelo mercado, particularmen-te em duas reas consideradas estratgicas pelo governo federal: crdito corrente para exportaes e refi nanciamento das distribuido-ras do setor eltrico.

    32 Os percentuais do Grfi co 5 foram calculados com base no valor corrente em reais das liberaes.

  • 43

    Ao longo de 2002, o aumento do risco Brasil levou os bancos inter-nacionais a suspender unilateralmente linhas de crdito para o capi-tal de giro dos exportadores os chamados Adiantamentos de Con-trato de Cmbio (ACC). Isso criou difi culdades para essas empresas continuarem operando e efetivando suas vendas externas. Outro exemplo foi no setor eltrico. O BNDES foi chamado a ampliar suas operaes com vrias distribuidoras, que estavam em situao fi nan-ceira crtica junto aos bancos nacionais, por causa da crise de oferta de energia do ano anterior. Vrias dessas empresas contaram com novos fi nanciamentos do BNDES, com taxas de juros inferiores s praticadas pelo mercado poca, mas sujeitos a converso em aes, a critrio do Banco. Isso permitiu que, quando a converso foi efe-tuada nos anos seguintes, o Banco, por ter assumido os riscos da atuao anticclica, obtivesse ganhos de capital elevados.

    Finalmente, no h sinais de que a atuao anticclica do BNDES tenha levado a uma deteriorao dos seus indicadores fi nanceiros. Pelo contrrio, os resultados da instituio desde 1997 foram positi-vos (Grfi co 7). Alm disso, desde 2003, vm alcanando cifras muito elevadas, que atingiram um mximo de R$ 7,3 bilhes em 2007. Esses valores refl etem, em boa medida, a estratgia operacio-nal adotada nos anos anteriores. Os nveis elevados de lucros decor-rem basicamente da reverso de provises de crditos e de ganhos obtidos com a carteira de renda varivel, que se valorizou muito com o quadro econmico mais estvel.

    A Evoluo das Fontes de Recursos do BNDES: 19972007

    Para que um banco pblico atue anticiclicamente, no basta que pas-se a atender uma demanda insatisfeita pela retrao do setor privado ou que desenvolva novos segmentos de mercado. preciso tambm que tenha recursos em condies adequadas. De acordo com Micco e Panizza (2004), os bancos pblicos seriam favorecidos na crise pelo fato de os depositantes, pelo aumento da averso ao risco, bus-

  • 44

    carem abrigar suas aplicaes em bancos, como os do governo, que no esto sujeitos a falncia.

    Grfi co 7Lucro do BNDES

    Fonte: BNDES.

    Esse motivo, no caso do BNDES, pode ser descartado pelo simples fato de que no se trata de um banco que capte depsitos do pblico. Como se pode ver no Grfi co 8, a maior parte do funding da institui-o tem origem em fundos fi scais ou parafi scais cerca de 80% do total. Destes, o FAT o mais importante. As captaes em mercado respondem por uma pequena proporo do total, menos de 10%.33 Isso decorre do fato de os fundos disponibilizados pelo sistema ban-crio e pelo mercado de capitais brasileiros serem basicamente de prazo e de duration curtas e de taxas de juros muito elevadas.

    Do restante, as captaes externas compem o segundo grupo mais importante de fontes de recursos, com 8%. Esses passivos so basi-

    33 A primeira captao de recursos junto ao pblico brasileiro foi realizada em dezembro de 2006 atravs da emisso pblica de debntures simples de sua subsidiria BNDESPAR, que montou a R$ 540 milhes. A amortizao desses ttulos est prevista para ser feita em parcela nica ao fi nal de seis anos.

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    camente provenientes de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o BID ou bancos de desenvolvimento estrangeiros, como o JBIC japons e o KfW alemo. O BNDES, no passado, chegou, em diversas oportunidades, a colocar ttulos de dvida corporativa diretamente no mercado internacional, sempre a taxas pouco supe-riores s pagas pela Repblica. Esses fundos externos, a despeito do prazo adequado para fi nanciar investimentos de longo prazo, tm, no entanto, o inconveniente de serem denominados em moeda es-trangeira, ou seja, tm seu custo efetivo em moeda nacional sujeito volatilidade da taxa de cmbio. Por esse motivo, sempre tiveram uma participao menor no passivo total da instituio.

    Grfi co 8Composio das Fontes de Recursos do BNDES em 2007

    Fonte: Elaborao da rea Financeira.

    A estrutura de funding mostrou-se, na prtica, inelstica aos ciclos do crdito bancrio dos ltimos anos. Assim, pelo lado da oferta de fundos, inexistem mecanismos que transmitam automaticamente ao BNDES os movimentos de expanso e contrao da oferta de fundos do restante do mercado bancrio.

    O mesmo acontece com o nvel de liquidez corrente da instituio. Como pode ser visto no Grfi co 9, o dinheiro proveniente de retor-nos ou seja, receitas de juros e de amortizaes e da venda de ativos monetizao de ttulos e valores mobilirios respondeu,

  • 46

    em mdia, por 84% dos desembolsos da instituio entre 1997 e 2002 e por 97% entre 2003 e 2007.34 As vendas lquidas de valores mobilirios constituem um mecanismo de transmisso entre o mer-cado e o BNDES, mas at hoje os montantes envolvidos nessas ope-raes foram, em geral, pequenos frente aos desembolsos correntes da instituio.

    Grfi co 9Participao dos Retornos e da Monetizao de Ativos nos Desembolsos do BNDES

    Fonte: BNDES, elaborao da APE.

    Esse resultado refl ete tambm a qualidade e a liquidez elevada da carteira do BNDES. Quase 40% dos ativos do BNDES em 2007 so dvidas de bancos comerciais, o que, por si s, lhe proporciona uma caracterstica de risco diferenciada. Entretanto, a boa qualidade do crdito diretamente originado pelo BNDES que refl ete os critrios de seleo de propostas e de anlise de risco da instituio supe-rior mdia dos bancos comerciais, como se pode ver na Tabela 5. Em consequncia, os nveis de inadimplementos enfrentados pelo

    34 A liquidez gerada pelas demais fontes, de forma global, foi sufi ciente para fazer frente s demais despesas correntes da instituio, a exemplo do servio da sua dvida, pagamentos de dividendos etc.

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    Banco ao longo do tempo tambm so relativamente baixos, quando comparados ao restante do sistema bancrio brasileiro (Grfi co 10).

    Tabela 5Classifi cao de Risco da Carteira do BNDES em 2007

    RISCOSISTEMA

    BNDESSFN1

    INSTITUIES FINANCEIRAS

    PRIVADAS

    INSTITUIES FINANCEIRAS

    PBLICAS1

    AA-C 96,5 92,0 93,0 90,3

    D-G 2,1 5,1 4,4 6,3

    H 1,4 2,9 2,6 3,4

    Total 100,0 100,0 100,0 100,0

    Fonte: Banco Central do Brasil. SFN = Sistema Financeiro Nacional, incluindo o BNDES.

    Grfi co 10Inadimplncia sobre a Carteira Total do BNDES

    Fonte: BNDES, elaborao da rea Financeira.

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    Assim, diferentemente do que preconiza a literatura, a atuao anti-cclica do BNDES no foi fi nanciada pelo desfi nanciamento dos bancos privados, ou seja, por uma captao lquida de depsitos jun-to a um pblico em busca de garantia do governo para suas aplica-es. A robustez fi nanceira da instituio nesse perodo decorreu basicamente de trs fatores. O primeiro estabilidade de suas fontes de fi nanciamento em termos de prazo e custo, o que permite o insu-lamento da instituio em momentos de crise econmica. O segundo a qualidade de sua carteira. Metade dos credores so instituies fi nanceiras e o restante composto basicamente pelos grandes in-vestidores na indstria e na infraestrutura, empresas que, em sua maioria, tm, h muitas dcadas, relacionamento estvel com o BNDES. O terceiro o tamanho relativo da instituio. Com sua elevada participao no mercado, o BNDES consegue ter uma atua-o relevante em alguns segmentos do mercado de crdito, particu-larmente no fi nanciamento do investimento de longo prazo.

    5. Concluses e Perspectivas

    O crdito no uma mercadoria usual. Sua disponibilidade afeta no s o nvel de atividade econmica como a distribuio da renda e da riqueza no interior da sociedade. Em particular, recursos fi nanceiros so fundamentais para a determinao do nvel de investimento e, por consequncia, para a trajetria de crescimento tanto de empresas quanto da economia como um todo.

    Por esse motivo, a ao do governo sobre a alocao de crdito uma prtica relativamente comum, no mundo desenvolvido e no mundo em desenvolvimento. Entretanto, o conjunto de mecanismos de interveno adotados em cada pas varia bastante.

    Nesse cenrio, os bancos de desenvolvimento constituem um meca-nismo especfi co de direcionamento de crdito. Suas caractersticas dominantes so: o controle pblico de suas decises; o foco no fi -nanciamento de investimentos de longo prazo na indstria e na in-fraestrutura; a disponibilidade de fundos em moeda nacional; e a

  • 49

    capacidade de originar crdito diretamente junto ao pblico. So instituies que, em sua maioria, foram criadas nos anos que se se-guiram Segunda Guerra Mundial, com o intuito de promover a reconstruo das economias destrudas pelo confl ito ou a industria-lizao dos pases subdesenvolvidos. Sua concepo levou em conta a experincia dos bancos de longo prazo europeus da segunda meta-de do sculo XIX e o princpio norte-americano de segmentao das operaes bancrias de curto e de longo prazos.

    O BNDES uma experincia que se destaca entre os grandes bancos de desenvolvimento existentes no mundo. Uma diferena marcante o de-sembolso anual da instituio ser quatro vezes maior que o valor apre-sentado pelo BID e duas vezes mais que o Banco Mundial.

    Essa especifi cidade est diretamente relacionada ao fato de o BNDES responder no mercado brasileiro pelos recursos do cr-dito direto ao consumidor de equipamentos e de obras civis de pequena monta, associado ao ativo fi xo das empresas. Essas ati-vidades so, em outros pases, desempenhadas por bancos priva-dos ou por bancos estrangeiros, normalmente apoiados por agn-cias de crdito exportao. No Brasil, o BNDES foi pensado como uma forma de no s estimular o investimento domstico, mas tambm dar suporte a uma indstria de bens de capital ainda incipiente. O desenvolvimento de importantes segmentos de m-quinas e equipamentos como nibus, caminhes e tratores consequncia do sucesso e da dimenso alcanada por esse me-canismo de direcionamento de crdito.

    As demais atividades desempenhadas pelo BNDES fi nanciamento de longo prazo a investimento e a exportaes so segmentos de mercado em que, em todo o mundo, o direcionamento do Estado se faz presente. A caracterstica especfi ca da experincia brasileira est relacionada a dois aspectos.

    O primeiro uso do um mecanismo direto no alavancado, ou seja, de um banco pblico de desenvolvimento fi nanciado basicamente por recursos de origem fi scal ou parafi scal. Essa opo, como vimos anteriormente, est relacionada s histricas limitaes do mercado de crdito brasileiro e opo por evitar a dolarizao, mesmo do

  • 50

    crdito de longo prazo, a exemplo do que ocorreu em outros pases latino-americanos.

    O segundo aspecto est diretamente relacionado importncia que a industrializao35 teve para o desenvolvimento brasileiro. Desse ponto de vista, o BNDES foi um mecanismo criado nos anos 1950 e aperfeioado nas dcadas seguintes para assegurar uma fonte estvel para investimentos produtivos de longo prazo em moeda local, mes-mo em cenrios macroeconmicos desfavorveis. A liquidez de fun-dos parafi scais de porte permitiu que se consolidasse uma oferta es-tvel de recursos de longo prazo, que no fi cou sujeita s condies do restante do mercado de crdito brasileiro, ou seja, escassez e vo-latilidade de fundos e taxas de juros elevadas frente a parmetros internacionais.

    Diante desse cenrio, a atuao anticclica do BNDES pode ser divi-dida em duas partes. A primeira parte est relacionada funo que a instituio cumpre na economia: garantir fundos em moeda nacio-nal para investimentos de longo prazo. Dado sua autonomia de funding e sua elevada liquidez frente ao mercado, a capacidade de fi nancia-mentos do BNDES pouco afetada pelas fl utuaes do mercado de crdito.36

    O maior impacto do ciclo sobre o BNDES faz-se, portanto, sentir pelo lado da demanda. Flutuaes relevantes na economia afetam os nveis de investimento desejados pelas empresas e, em consequn-cia, a demanda oriunda de projetos. A ao do Banco, nesse particu-lar, basicamente dar continuidade aos projetos em curso e, princi-palmente, evitar que uma escassez de fundos de longo prazo venha a se tornar um elemento adicional de desacelerao do investimento. Na dcada passada, o fi nanciamento s exportaes cumpriu um pa-pel importante e estabilizador da demanda de recursos.

    35 A industrializao entendida como um processo de montagem e sustentao do investi-mento na indstria e na infraestrutura econmica.36 Alguma transmisso feita atravs da TJLP, que fl utuante e fi xada a cada quatro meses, mas, como sua regra de formao leva em conta parmetros internacionais, essa passagem no integral nem automtica.

  • 51

    A segunda parte da anlise do BNDES no ciclo de crdito diz respei-to ao curto prazo. Diante de relativa inelasticidade de suas fontes de recursos e de liquidez, o BNDES pode ter um papel focadamente anticclico, particularmente nas fases descendentes. Um exemplo fo-ram as medidas tomadas no segundo semestre de 2002. Durante o perodo eleitoral daquele ano, houve uma crise de confi ana do mer-cado fi nanceiro internacional sobre o Brasil, que chegou a compro-meter as linhas de crdito dos bancos estrangeiros que sustentavam o fi nanciamento corrente das exportaes brasileiras. Naquele mo-mento, para evitar que ocorresse um colapso de crdito semelhante ao que havia ocorrido na Coreia do Sul poucos anos antes, o BN-DES, juntamente com o Banco Central, atuou de forma a recompor o funding dos bancos brasileiros.

    Como buscamos mostrar, a literatura econmica atual sobre bancos pblicos em geral e de desenvolvimento, em particular pouco contribui para o entendimento da experincia brasileira. Em geral, os analistas partem de uma perspectiva terica limitada por exem-plo, falhas de mercado ou se centram em dicotomias maniquestas que buscam apontar os bancos pblicos como instituies inefi cien-tes, por motivos genticos, e que, ademais, inibem o desenvolvi-mento de um sistema fi nanceiro privado.

    A experincia brasileira recente mostra que, o mecanismo forma-do pelo FAT e pelo BNDES constitui-se em um sistema de fi nan-ciamento relativamente autnomo com relao ao restante do mercado. Suas fontes de captao de recursos e as reas em que atua so complementares s dos bancos comerciais e de outras instituies fi nanceiras.

    Os canais de integrao com o restante do mercado so limitados por exemplo, bolsa de valores e lanamento de debntures e no chegam a impactar a atuao do BNDES ou do prprio mercado. Na prtica, a interao mais importante de natureza operacional, na rea das operaes indiretas. O BNDES repassa recursos para os bancos comerciais atenderem diretamente as necessidades de fi nan-ciamento dos investimentos de seus clientes. Essas atividades nos bancos comerciais acompanham o desempenho do BNDES e no o do mercado.

  • 52

    Diante desse cenrio, no fcil apontar perspectivas para o BNDES. Essa resposta tem de ser buscada dentro de algum cenrio de longo prazo para o sistema fi nanceiro nacional. At hoje, como se buscou mostrar, a atuao entre o sistema FAT/BNDES e os bancos comerciais foi claramente complementar, com segmentaes ntidas entre as atividades de crdito de curto e de longo prazos, e com divi-so de mercado no atendimento s grandes e s pequenas e mdias operaes.

    Cabe indagar se, a exemplo do que vem ocorrendo no mercado in-ternacional, haver uma reduo nos limites dessa segmentao e, consequentemente, uma redefi nio de papis entre o BNDES e os bancos comerciais. Uma segunda questo diz respeito ao aprofunda-mento do mercado de capitais e, em consequncia, a possibilidade de os mecanismos de direcionamento de crdito tornarem-se instru-mentos efi cazes. Ser que esse mercado tende a substituir o Banco em algumas das reas onde hoje atua?

    No h respostas fceis nem defi nitivas para essas perguntas. Qual-quer cenrio que venha a ser traado depende da trajetria de cresci-mento da economia e das condies de juros e prazos que venham a ser praticadas no mercado. Mudanas mais substantivas dependero basicamente de uma reduo mais rpida das taxas de juros e de um maior alongamento de prazos e do duration do crdito ao governo e, consequentemente, s empresas. Dependem tambm da trajetria da poltica monetria nos prximos anos.

    Caso isso venha a ocorrer, possvel que os bancos, aos poucos, passem a atender com seus prprios recursos demanda de investi-mento de prazo inferior a cinco ou sete anos. Incluem-se nessa ativi-dade o fi nanciamento aquisio de nibus, caminhes e maquin-rio agrcola, alm de obras civis de pequeno porte. Nesse caso, o BNDES tenderia a ter uma participao relativa decrescente nessas atividades, o que levaria a instituio a se assemelhar mais com o perfi l de outras grandes instituies de desenvolvimento (Tabela 2). Seus desembolsos anuais tenderiam, em termos reais, a cair, na me-dida em que as operaes de prazos mais longos passassem a com-por uma proporo muito maior da carteira.

  • 53

    Do mesmo modo, a consolidao de um mercado de capitais mais amplo e profundo pode atrair uma fatia dos investimentos fi nancia-dos pelo BNDES e, como resultado, tornar mais atrativo o uso, por parte do governo, de instrumentos indiretos, como garantias. Caso o investimento produtivo venha a crescer muito rapidamente, a de-manda pelos fundos disposio do BNDES pode superar a capaci-dade de resposta do sistema, o que permitiria uma ao mais com-partilhada entre o Banco e outros fi nanciadores de longo prazo.

    Uma questo importante nesse cenrio se o comando desse novo mercado seria feito por investidores nacionais ou estrangeiros. A ex-perincia canadense mostra que, diante da ausncia de instituies originadoras nacionais, o governo pode decidir manter uma posio estratgica nesses mercados com instituies originadoras estatais atuantes, mesmo quando os mecanismos de garantias pblicas te-nham grande aceitao.

    Mudanas estruturais dessa natureza difi cilmente ocorrero de for-ma abrupta. O mais provvel que se processem aos poucos, acele-rando-se ou desacelerando-se conforme caminhem as condies de liquidez interna e externa da economia brasileira.

    No curto prazo, o boom de investimentos em curso promover o crescimento mais acelerado dos ativos do BNDES. O aumento da presso de demanda nos ltimos meses tende a impactar fortemente as liberaes e, consequentemente, as fontes tradicionais de liquidez da instituio, particularmente os mecanismos pblicos de fi nancia-mento e poupana. Depois de ter se recuperado das crises dos anos 1990, o FAT assim como o FGTS acumulou grande volume de recursos lquidos que, nos ltimos trs anos, viabilizaram investi-mentos para indstria e infraestrutura. Seu fortalecimento e conti-nuidade so muito importantes.

    Mesmo assim, ser inevitvel o aumento do volume de captaes do BNDES em mercado. preciso diversifi car fontes de recursos, am-pliar prazos e dar maior liquidez aos mercados privados. Essa pers-pectiva poder servir de base para a criao de novos instrumentos de captao, eventualmente baseados em ndices de preos, e no na taxa de juros do mercado monetrio. Esse avano, no entanto, preci-

  • 54

    sar ser construdo por meio de uma estratgia que envolva os prin-cipais atores pblicos e privados relevantes. Mudanas no mercado de capitais requerem tempo para dar resultado. No existem medi-das fceis nem de rpida implementao.

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  • Captulo 2

    Crdito Pblico e Desenvolvimento Econmico: A Experincia Brasileira1

    Marcos Antonio Macedo Cintra*

    1 Este estudo est associado com a pesquisa O Brasil na era da globalizao: condicionantes domsticos e internacionais ao desenvolvimento, realizada no Centro de Estudos de Conjuntura e Poltica Econmica do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), sob a coordenao do professor Ricardo Carneiro, com o apoio do BNDES.* Professor do IE/Unicamp e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfi co e Tecnolgico (CNPq).

  • 59

    1. Introduo

    Este artigo procura discutir o papel desempenhado pelas institui-es fi nanceiras pblicas (em especial, as instituies fi nanceiras de desenvolvimento) e a importncia dos fundos de poupana compul-sria no fomento ao desenvolvimento econmico brasileiro. O arti-go est organizado em seis sees, incluindo esta b