engenharia genÉtica: implicaÇÕes Éticas e …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua...

24
1 ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E JURÍDICAS KARINA SCHUCH BRUNET I - INTRODUÇÃO Os direitos e garantias constitucionais inerentes a pessoa humana têm sido, cada vez mais, questionados frente ao poder que advém do conhecimento da biotecnologia, entendido como biopoder. Esse novo poder deve ser pensado em seu sentido ético e moral, para que possa se manifestar e ser exercido legitimamente no Estado Democrático de Direito. Assim sendo, faz-se necessária uma reflexão a respeito das questões éticas e morais que norteiam o desenvolvimento da ciência formadora do conhecimento biotecnológico. Deve-se, então, verificar com que orientações bioéticas as pesquisas genéticas têm sido desenvolvidas. É preciso que se reflita, também, a respeito do dilema entre o que a ciência pode fazer e o que a ética permite que façamos. Nesse sentido, vê-se presente a função reguladora do Direito, que tem o compromisso de resguardar os direitos e garantias fundamentais do homem frente os arbítrios que podem advir do biopoder. Deve haver, assim, um debate bioético a respeito das novas relações sociais que a biotecnologia passa a estabelecer na sociedade, a fim de que o Direito

Upload: vanthien

Post on 24-Sep-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

1

ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E JURÍDICAS

KARINA SCHUCH BRUNET

I - INTRODUÇÃO

Os direitos e garantias constitucionais inerentes a pessoa humana têm

sido, cada vez mais, questionados frente ao poder que advém do conhecimento da

biotecnologia, entendido como biopoder. Esse novo poder deve ser pensado em seu

sentido ético e moral, para que possa se manifestar e ser exercido legitimamente no

Estado Democrático de Direito.

Assim sendo, faz-se necessária uma reflexão a respeito das questões

éticas e morais que norteiam o desenvolvimento da ciência formadora do

conhecimento biotecnológico. Deve-se, então, verificar com que orientações

bioéticas as pesquisas genéticas têm sido desenvolvidas.

É preciso que se reflita, também, a respeito do dilema entre o que a

ciência pode fazer e o que a ética permite que façamos. Nesse sentido, vê-se

presente a função reguladora do Direito, que tem o compromisso de resguardar os

direitos e garantias fundamentais do homem frente os arbítrios que podem advir do

biopoder. Deve haver, assim, um debate bioético a respeito das novas relações

sociais que a biotecnologia passa a estabelecer na sociedade, a fim de que o Direito

Page 2: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

2

possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais,

sem, no entanto, impedir o avanço científico.

Ante o exposto, pretende-se fazer um diagnóstico do atual estágio de

desenvolvimento da engenharia genética, apresentando-se os questionamentos

éticos e jurídicos que norteiam as pesquisas que estão sendo hoje implementadas,

tais como a adoção de terapias gênicas, a permissão de experimentação genética

não-terapêutica, a conclusão do Projeto Genoma Humano e o patentamento de

genes.

II – ENGENHARIA GENÉTICA

A hereditariedade humana consiste na transmissão de informações

genéticas, através da molécula de ácido desoxirribonucléico ( ADN ), composta de

aproximadamente 100 mil genes, constituídos de pares de cromossomos. Os genes

são os responsáveis pelas diferentes características físicas e psicológicas

encontráveis no homem.

A engenharia genética pode ser utilizada em um sentido amplo (

manipulação genética ), referindo-se à qualquer tipo de manipulação ou intervenção

nos seres humanos, incluindo-se aqui os casos de reprodução humana artificial. Em

seu sentido estrito, com o qual se vai trabalhar, refere-se à intervenção específica no

intuito de criar, substituir, alterar ou adicionar genes ao código genético do homem1.

1 VARGA, Andrew C.. Problemas de bioética. Traduzido por Pe. Guido Edgar Wenzel, S. J. , São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 123.

Page 3: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

3

Pode-se dizer, então, que a engenharia genética é a modificação

biológica do homem pela manipulação direta de seu ADN, através da inserção ou

deleção de fragmentos específicos – genes - , independente do uso terapêutico ou

experimental. Não se confunde, assim, com a manipulação genética, que é uma

acepção mais genérica de toda e qualquer intervenção no ser humano, não

necessariamente no seu código genético.

Deve-se referir, ainda, a título de esclarecimento, que se vai trabalhar

unicamente com a noção de engenharia genética humana, excluindo-se a

manipulação de outros tipos de organismos vivos, tais como animais e plantas.

A ) TERAPIA GÊNICA:

A terapia gênica é a aplicação da engenharia genética, pela manipulação

de genes, no intuito de corrigir “defeitos genéticos”. Pode ocorrer por correção (

inserção de um gene funcional em substituição ao não-funcional ), complementação

( introdução de gene normal sem exclusão do original ) ou adição ( acréscimo de um

gene ausente do genoma ).

Técnicas de engenharia genética permitem que se desenvolvam dois

diferentes tipos de terapia gênica: a somática e a germinativa. A terapia gênica

somática refere-se a atividade terapêutica para a cura de doenças hereditárias,

restrita unicamente ao paciente que a ela se submete. Trata de enfermidades

genéticas em células não relacionadas a produção de gametas. As modificações

genéticas são operadas exclusivamente em células somáticas do corpo humano.

Tem o objetivo de modificar a estrutura genética do paciente, a fim de que a mesma

Page 4: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

4

cumpra adequadamente a função para a qual esta destinada, e que , por falhas na

informação hereditária, não pode se desenvolver2 .

A terapia gênica germinativa igualmente refere-se à cura de doenças

hereditárias, mas não se restringe àquele que a ela se submete, pois relaciona-se à

alteração de células germinais, ou seja, produtoras de gametas ( óvulos,

espermatozóides e seus precursores ). Assim, esta terapia visa a impedir a

transmissão de “defeitos genéticos”.

Entende-se que a terapia gênica é fundamental para o desenvolvimento

da humanidade, mas isso não a isenta de riscos e problemas éticos e sociais. Muitas

questões podem ser colocadas em relação a tal tipo de terapia, principalmente no

que se refere à terapia gênica germinativa.

O avanço tecnológico proporcionado pela engenharia genética é ainda

muito recente para se poder delimitar todas as suas conseqüências. Assim, ao se

trabalhar com terapia gênica, deve-se ter o cuidado referente à introdução no meio

ambiente de organismos geneticamente modificados. Tanto quanto a

hereditariedade é fundamental na definição das características humanas, não se

pode negar a contribuição do ambiente nessa formação. Com isso, verifica-se que

os geneticistas não têm, pelo menos por enquanto, como controlar o

desenvolvimento dos caracteres geneticamente modificados ou criados face a

interferência do ambiente aberto. Os resultados, aqui, são desconhecidos e, quem

sabe, até mesmo assustadores.

Compreendendo, assim, a exata relação entre o meio ambiente e a

dignidade e integridade física e biológica do homem, o legislador constituinte,

estabeleceu que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

2 MARTINEZ, Stella Maris. ? Quién el el dueño del genoma humano?, in Bioética, vol. 5, nº 2, Brasília, Brasil, 1997, p. 223.

Page 5: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

5

bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao

Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as

presentes e futuras gerações” ( art. 225 da CF/88 ). Para assegurar esse direito,

determinou que incumbe ao Poder Público a preservação da diversidade e

integridade do patrimônio genético do país, bem como fiscalizar as entidade de

pesquisas genéticas e controlar a produção e comercialização de técnicas, produtos

e substâncias que comprometam a qualidade de vida e o meio ambiente ( § 1º,

incisos I e II ). Com isto, o constituinte procurou resguardar o ser humano em sua

relação com o meio ambiente contra as agressões advindas da biotecnologia

irresponsável.

Em atendimento ao preceito constitucional, a Lei nº 8.974/95 prescreve

normas de segurança e fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética,

visando à proteção da saúde do homem, animais e plantas, bem como o meio

ambiente. Determina a emissão de registro específico para a liberação no meio

ambiente de organismos geneticamente modificados, bem como sua vedação, se

estiverem em desacordo com as normas estabelecidas pela Comissão Técnica

Nacional de Biossegurança e pela própria Lei. ( art. 8º, VI ).

A referida lei impõe, também, a aplicação de multa proporcional ao dano,

no caso de liberar-se no meio ambiente qualquer organismo geneticamente

modificado sem prévia aprovação e publicação no Diário Oficial da União ( art. 12, III

). Verifica-se, aqui, uma certa impropriedade da lei, uma vez que os danos

decorrentes do uso de técnicas de engenharia genética são desconhecidos. Assim,

fica muito difícil determinar a proporção do dano, que pode ter dimensões

incomensuráveis. Reconhecendo a importância de se resguardar o meio ambiente

saudável, a lei, ainda, considera como crime a liberação ou descarte de organismos

geneticamente modificados sem atenção ao preceituado anteriormente ( art. 13, V ).

Page 6: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

6

Outra questão a ser abordada, relacionada com os desconhecidos efeitos

da terapia gênica, além de sua introdução no meio ambiente, refere-se à decisão

quanto a sua adoção. Entende-se que a terapia gênica somática tem natureza

pessoal, pois a modificação genética implementada restringe-se ao ser humano

objeto da terapia, sendo que seus efeitos, ainda que se desenvolvam de forma

prejudicial, cessam com a sua morte. Assim, havendo a devida orientação –

aconselhamento genético - e respeitados os princípios basilares da Bioética, pode-

se dizer que a decisão pela terapia gênica somática cabe exclusivamente ao

paciente que a ela vai se submeter, pois só ele pode decidir sobre a sua integridade

física.

Acontece, porém, que a decisão pela adoção da terapia gênica somática

não pode ficar assim tão só e unicamente ao arbítrio do paciente. É inegável a sua

possibilidade de disposição pela própria vida e saúde, mas, como já referido, tal tipo

de terapia é ainda muito recente e pode envolver riscos desconhecidos. Não se

pode descartar, por exemplo, a hipótese de uma transmissão involuntária a

terceiros, ou mesmo ao meio ambiente, o que , no entanto, pode-se resguardar com

o adequado uso da técnica. Assim, não basta o informado e livre consentimento do

paciente, é preciso que se verifique a idoneidade técnica do médico a aplicar a

terapia, como também a efetiva avaliação dos riscos e benefícios do tratamento,

excluindo-se totalmente qualquer caráter experimental que possa ser conjugado.

Nos casos de terapia gênica germinativa, a modificação genética é

incorporada às células reprodutivas do ser humano, sendo que as novas

características implementadas são transmitidas a sua prole por infinitas gerações.

Assim, vê-se que a decisão por tal tipo de terapia não se restringe unicamente ao

paciente que a ela se submete, mas a toda a sociedade com que ele e sua prole

podem se relacionar, ou seja, a humanidade. Com isso, tem-se que a decisão pela

adoção da terapia gênica germinativa só pode ser permitida após um amplo debate

com a comunidade internacional. Esse tipo de terapia interfere na integridade física,

Page 7: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

7

identidade biológica e igualdade dos homens, não sendo permitido que alguns

decidam a respeito de direitos e garantias inerentes a condição de ser humano.

Ainda quanto à terapia gênica germinativa, deve-se atentar para o fato de

que o diagnóstico de uma doença genética não significa a confirmação de seu

desenvolvimento. A herança genética revela apenas a probabilidade de que

determinada enfermidade venha a se desenvolver. Atua como mera predisposição.

Além disso, existem doenças genéticas que são resultado da interação de várias

outras, quando não são simultaneamente bloqueadoras3 de outras enfermidades.

A Lei de Biossegurança - Lei nº 8.974/95 - , reconhecendo os graves

riscos da adoção da terapia gênica germinativa, expressamente veda as atividades

relacionadas a organismos geneticamente modificados que envolvam manipulação

genética de células germinais humanas ( art. 8º, II ). Diante a vedação legal, o

desenvolvimento de tais atividades constitui figura típica delituosa, prevista no art. 13

da referida lei, com prescrição de pena de detenção de três meses a um ano.

Deve-se reconhecer a boa intenção legislativa em regular e sancionar

atividades e técnicas de engenharia genética, mas não se pode deixar de referir as

falhas que a lei apresenta. A pena cominada pelo crime de manipulação de células

germinativas humanas é desproporcional ao bem jurídico tutelado. Tal procedimento

científico, como já referido, interfere na integridade físico-biológica de toda

humanidade. Pode-se dizer que a vítima deste delito é o ser humano, pois as

alterações produzidas no genoma, por meio de manipulação de células geminativas,

integram-se ao homem enquanto espécie. Evidente, assim, a irrelevância da pena

face a gravidade do delito.

3 Exemplo típico dessa situação é a anemia falciforme, severa doença do sangue que torna seus portadores mais resistentes à malária – MARTINEZ, Stella Maris. ? Quién es el dueño del genoma humano?, op. cit., p. 225.

Page 8: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

8

Ao se analisarem as agravantes da pena, verifica-se, também, que o

legislador realmente desconsiderou a humanidade como vítima do crime em

questão. Elencou apenas conseqüências pessoais da prática de manipulação

genética germinativa, nos termos individualistas do Código Penal. Não dimensionou

os efeitos coletivos do delito, o que confirma a desproporção entre a pena e o delito,

ainda que seja aquela aumentada pelas agravantes prescritas pela lei.

B ) EXPERIMENTAÇÃO GENÉTICA NÃO-TERAPÊUTICA

O desenvolvimento de atividades experimentais pode ser considerado o

antecedente lógico às possibilidades de terapia. Assim sendo, entende-se que a

experimentação genética é uma exigência natural das próprias ciências bio-médicas.

Acontece, porém, que, não obstante seu valor científico, técnicas de engenharia

genética não têm sido desenvolvidas unicamente com fins terapêuticos, o que

envolve questões éticas fundamentais, além das já mencionadas quanto às

referentes à terapia genética.

As experimentações genéticas não-terapêuticas desenvolvem-se no

âmbito da curiosidade científica e não podem ter seu valor negado. Tais

experiências, no entanto, merecem relevado cuidado, uma vez que podem

apresentar objetivos discriminatórios, ou mesmo contrários à ética e à dignidade

humana.

Existem experimentações genéticas relacionadas à clonagem de seres

humanos idênticos ou híbridos, bem como a atividades eugênicas, no sentido de

eliminar desvios da “normalidade genética”. Na experiência eugênica, pretende-se

modificar o genoma humano para a obtenção de características antes não

verificadas.

Page 9: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

9

A eugenia, assim, busca o aperfeiçoamento dos seres humanos através

de manipulações genéticas sem fins terapêuticos. Asseguram os eugenistas que a

seleção natural já não mais ocorre na sociedade, pois a atividade estatal e

institucional protege os fracos e doentes. Assim, entendem que devem fazer a

seleção artificial dos seres humanos, para que não ocorra a decadência da raça

humana, nem transmissão de doenças sociais como a pobreza4.

Evidente, assim, o caráter discriminatório da eugenia, tanto em seu

aspecto positivo – desenvolvimento de qualidades superiores, quanto negativo –

eliminação de defeitos genéticos, pois pretende fazer uma exclusão social com base

em fatores que, muitas vezes, independem da vontade do excluído, estando

relacionados às políticas públicas de saúde, assistência social, emprego e outras.

Quanto à clonagem de seres humanos, ainda não possível

cientificamente, não se pode afirmar que haja um intuito discriminatório, mas

verifica-se o desenvolvimento da ciência de forma atentatória à ética e à dignidade

do homem enquanto espécie. A produção de cópias humanas revela uma afronta

direta à identidade pessoal do ser humano. Nesse aspecto, entende-se que não se

deve permitir a clonagem de seres humanos. Acontece, no entanto, que são

inegáveis os benefícios que as técnicas de clonagem podem trazer para o

desenvolvimento da medicina, especialmente no âmbito dos transplantes. Assim

sendo, parece conveniente que não haja uma proibição expressa da clonagem de

órgãos humanos em separado, deixando essa questão para ser discutida com o

avanço da ciência.

Outro tipo de experimentação genética com a qual se deve ter muita

cautela é a fusão celular intraespecífica. Nesta experiência, há a fusão de células de

espécies diferentes, numa perfeita atividade de miscigenação de espécies entre

humanos, animais e vegetais. Entende-se que esta técnica deve ser 4 VARGA, Andrew C., Problemas de bioética, op. cit., p. 77.

Page 10: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

10

terminantemente proibida quando se procure fundir células germinativas humanas

com de outra espécie, por ser claramente atentatória à dignidade humana5. Nos

casos em que a fusão for de células somáticas humanas e de um animal ou vegetal,

entende-se que não há afronta grave à dignidade humana, desde que haja fins de

diagnóstico. Ressalta-se, no entanto, que, mesmo nestes casos, deve haver muito

cuidado com a liberação para o meio ambiente dos organismos assim modificados.

Quanto às possibilidades de desenvolvimento da pesquisa científica,

terapêutica ou não, deve-se atentar para as disposições constitucionais. O artigo 1º

da Constituição Federal considera a dignidade da pessoa humana ( inciso III ) como

fundamento do próprio Estado e o art. 5º garante o direito à vida, à liberdade e à

igualdade ( caput ), bem como a intimidade ( inciso X ) e a não submissão a

tratamento desumano ou degradante ( inciso III ). No seu inciso IX, por sua vez, o

mesmo artigo proclama a liberdade da expressão científica. Assim sendo, e

considerando-se que a Carta Magna elenca diversos direitos tidos por fundamentais,

deve-se fazer uma análise de prioridades quando houver algum confronto entre eles.

Nesse sentido, entende-se que prevalecem os valores de dignidade, liberdade,

igualdade e intimidade em relação à livre pesquisa científica.

Acontece, porém, que essa prevalência não vem explícita em nenhuma

norma jurídica, cabendo a sua compreensão à analise ética e moral de cada cidadão

e, em especial, do médico e pesquisador em sua atividade profissional, cujo livre

exercício é igualmente garantido pela Constituição ( art. 5º, XIII ). Assim sendo,

entende-se que cabe ao legislador brasileiro determinar os critérios de prevalência

desses direitos fundamentais garantidos pela nossa Carta Magna, restringindo a

liberdade de pesquisa científica, quando necessário, à proteção do homem em sua

dignidade. Com isso, procura-se não deixar ao arbítrio do médico, ou pesquisador,

ponderação tão fundamental a sociedade, pois estes, muitas vezes, estão imbuídos

5 MARTINEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal. Tradução de Fabrício Pinto Santos, São Paulo: IBCCrim, 1998, p. 229.

Page 11: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

11

de sentimentos tão ambiciosos, intelectual ou economicamente, que acabam

interferindo na sua consciência ética e moral a cerca da experimentação.

Ainda no âmbito constitucional, faz-se necessário referir a questão

discriminatória. O art. 3º determina que constitui objetivo fundamental do Estado a

promoção do bem comum, sem preconceitos e discriminações ( inciso IV ). O art. 5º,

XLI, por sua vez, dispõe que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos

direitos e liberdades fundamentais. Acontece, porém, que ainda não houve

regulamentação infraconstitucional a respeito das discriminações genéticas, que

evidentemente atentam contra a dignidade, a liberdade, a igualdade e a intimidade

do homem.

As manifestações discriminatórias que a lei se incumbiu de evitar referem-

se, genericamente, a idade, sexo, raça ou religião, sem qualquer referência ao

conhecimento genético das potencialidades da pessoa. E mister que se promova o

debate e a adequação da legislação a respeito da discriminação genética, que está

cada vez mais patente na sociedade, sob pena de se ver a erradicação da pobreza e

marginalização, bem como a redução das desigualdades ( art. 3º, III da CF/88 )

efetivadas através da seleção genética artificial.

III – PROJETO GENOMA HUMANO

O Projeto Genoma Humano é um projeto de cooperação internacional

desenvolvido para a identificação da função e mapeamento da totalidade da

seqüência do genoma humano, tanto dos genes normais, quanto dos patológicos. O

projeto iniciou oficialmente em 1º de outubro de 1990, nos Estados Unidos, com o

Page 12: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

12

patrocínio do Instituto Nacional de Saúde e do Departamento de Energia6 e tem

término previsto para o ano de 2.005.

Considerando-se a importância científica do projeto, bem como os

interesses econômicos em questão, tornou-se indispensável a cooperação

internacional e, então, tem-se hoje três programas oficiais paralelos: Estados

Unidos, Comunidade Econômica Européia e Japão7. O Brasil participa do Projeto

Genoma Humano (extra oficialmente) através do apoio científico da Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo ( FAPESP ), Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico ( CNPq ) e do Programa de Apoio ao

Desenvolvimento Científico e Tecnológico ( PADCT )8.

Com a decodificação do genoma humano e, consequentemente, o

mapeamento e a identificação da função de cada gene, entende-se que o resultado

imediato do projeto será a possibilidade de realização de testes genéticos para fins

de diagnósticos e tratamentos. Secundariamente, pretende-se que o conhecimento

adquirido com o desenvolvimento do Projeto Genoma Humano possa ser, também,

útil ao aperfeiçoamento da biotecnologia agrícola, veterinária e zootécnica9.

A ) QUESTÕES ÉTICAS

Não obstante os benefícios que o desenvolvimento do Projeto Genoma

Humano pode trazer para a sociedade, deve-se analisá-lo cuidadosamente quanto

aos problemas éticos e sociais que igualmente oferece. Essas questões estão

6 MARTINEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal, op. cit., p. 208. 7 Idem, ibidem. 8 BUENO, Maria Rita Passos. O Projeto Genoma Humano.http://200.239.45.3/cfm/espelho/revista/bio2v5/projetogenoma.htm, p. 2. 9 PESSINI, Léo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 4ª ed., São Paulo: Loyola, 1997, p. 247.

Page 13: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

13

relacionadas com o uso do novo conhecimento científico genético que surge com a

decodificação da seqüência do genoma humano.

O conhecimento e a tecnologia advindos do Projeto Genoma Humano

trazem para a sociedade contemporânea uma “biopolítica” da espécie humana10,

através da qual há a manifestação de um verdadeiro biopoder. Esse novo poder

emerge em substituição ao poder soberano e passa a ter contorno populacional

prevalecente sobre o individual. Assim, a “biopolítica” procura desenvolver projetos

globais, havendo preocupação com o estímulo da natalidade, redução da

mortalidade e preservação da vida com saúde. Verifica-se, com isto, uma bio-

regulamentação pelo Estado11, que pretende ver assegurada a convivência

harmônica e saudável da população.

Nesse sentido, a partir do momento em que se pode ter um conhecimento

completo do código genético dos homens, não podemos negar a possibilidade de

uma imposição estatal no sentido de realização de exames de identificação

genética, sob o argumento de desenvolvimento de políticas sanitárias públicas12,

num verdadeiro processo de estatização do biológico13. Essa imposição, no entanto,

deve ser vista com muito cuidado. Não se pode descartar a possibilidade de

utilização dos resultados dos exames genéticos para fins totalitários e eugênicos.

Além disso, deve-se resguardar a efetiva confidencialidade das informações

genéticas, bem como respeitar a vontade de quem não quer conhecê-las.

Preocupa-se, então, com a possibilidade de utilização do exame genético

pré-natal para fins eugênicos. Entende-se que pode haver pais que prefiram

“descartar” fetos defeituosos a submetê-los a terapias genéticas sem garantia de

10 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France ( 1975 – 1976 ). Tradução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 289. 11 Idem, p. 298. 12 MARTINEZ, Stella Maris. Manipulação Genética e direito penal, op. cit., p. 210. 13 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade..., op.cit., p. 286.

Page 14: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

14

êxito. Maior problema surge nos casos de diagnóstico de doenças tardias, em que

se pode ver abortados fetos que teriam um longo período de vida saudável. Além

disso, não se sabe até que ponto é ético e moral que os pais conheçam a totalidade

do dados genéticos de seus filhos e, em conhecendo-os, se têm eles o direito de

promoverem alterações em seus genomas14.

Deve-se ter cuidado, também, com as questões discriminatórias. Não é

absurdo imaginar que empresas e seguradoras exijam o mapeamento genético dos

candidatos a emprego ou seguro de vida, por exemplo. Nesses casos, vê-se

necessária a garantia do sigilo da “ficha genética” das pessoas, a fim de se ver

preservado o direito à intimidade da cada um, bem como a justiça no uso da

informação genética.

Verifica-se, ainda, a problemática da exploração comercial dos genes

humanos. Havendo cooperação internacional para o desenvolvimento do Projeto

Genoma Humano, tem-se que questionar a respeito da participação de cada país no

resultado global do projeto. Não se entende justa a divisão de resultados

proporcional ao investimento de cada governo, como pode ser pensado por alguns.

O genoma humano é patrimônio de toda a humanidade. A seqüência

genética não pertence a cada membro da sociedade, que pode usá-la e modificá-la

a sua vontade, mas a todos os seres humanos, uma vez que o genoma é inerente à

existência da própria espécie humana. Considerando-se, assim, que o genoma

humano não pertence a nenhum país específico, mas à humanidade como tal,

entende-se que os resultados do Projeto Genoma Humano devem ser partilhados

igualmente não só entre todos os participantes, como também entre todos os países

indiscriminadamente. Não se pode permitir a exploração econômica de uns países

sobre outros, utilizando-se para tanto bens dos quais todos são titulares. Nesse

sentido, a professora Stella Maris MARTÍNEZ muito bem trata a questão:

14 MARTINEZ, Stella Maris. Manipulação genética e direito penal, op. cit., p. 211.

Page 15: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

15

“El genoma humano es patrimonio de toda la humanidad, y es a ella a quien se pone en riesgo cuando se lo altera, aún com declarados fines terapéuticos individuales.

...

En tal sentido, el titular del bien jurídico genoma humano no puede ser ni un gobierno dado ni una comunidad en especial, sino todo el género humano, originándose – en suma – cuando se lo pone en peligro o se lo daña, un supuesto equiparable al de los llamados delitos contra la humanidad.”15

Entende-se, nessa linha, que as alterações no genoma humano podem

ser consideradas crimes contra a humanidade quando efetivadas em células

germinativas. As intervenções genéticas em tais células tornam-se permanentes na

sociedade a medida que são transmitidas para os descendentes daquele que sofreu

a alteração. Assim sendo, incorporam-se as alterações no genoma humano,

modificando-o em sua natureza. Com isto, tem-se uma afronta à integridade do

homem, bem como uma interferência privada num domínio público, qual seja, o

patrimônio genético da humanidade.

B ) ASPECTOS JURÍDICOS

Colocada entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a

dignidade da pessoa humana ( art. 1º, III da CF/88 ) deve prevalecer em relação a

qualquer outro direito ou garantia constitucional. Assim sendo, o uso científico e

prático que se possa fazer do conhecimento advindo do Projeto Genoma Humano

deve ser sempre circunstanciado por esta referência. O já existente biopoder, que se

tornará ainda maior com o mapeamento da seqüência genética do homem, não

poderá ser exercido de forma atentatória a sua dignidade.

Tem-se, com isto, que o Estado, mesmo no desenvolvimento de

biopolíticas, não pode impor a realização de exames genéticos a seus cidadãos. A

Page 16: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

16

Constituição garante o direito à saúde e coloca sua preservação como dever estatal

( art. 196 da CF/88 ), mas isso não justifica a implementação de programas que

incluam a obrigatoriedade de tais exames. A coerção para a realização de exames

de identificação genética, além de ferir a dignidade, afronta diretamente a intimidade

da pessoa, cuja inviolabilidade é garantida constitucionalmente ( art. 5º, X da CF/88

).

A intimidade está resguardada, também, pelo Código Penal. A lei penal

considera conduta típica a violação de segredo profissional, sem justa causa ( art.

154 ). Entende-se que o conhecimento da “ficha genética” de alguém por parte do

médico ou biólogo configura a hipótese de segredo profissional, uma vez que tal

conhecimento é adquirido em razão da profissão. Assim sendo, a intimidade

genética da pessoa fica, pelo menos em tese, assegurada pela sanção imposta

àquele que injustamente revelar os seus dados genéticos.

Verifica-se, ainda, que o conhecimento generalizado da seqüência

genética de um povo, como já referido, pode ser usado negativamente, com fins

totalitários e eugênicos. Assim sendo, governos podem fazer uso desse novo saber

e poder para exterminar raças ou grupos étnicos que sejam contrários a seus

interesses políticos. Evidente que esse mau uso da ciência deve ser rigorosamente

evitado. Nesse sentido, o Código de Ética Médica veda ao médico a participação em

qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos, políticos, raciais ou

eugênicos ( art. 122 ).

Entende-se que, enquanto não houver uma legislação específica que

proíba a imposição de exames coletivos de identificação genética; ou que, ao

permiti-los, não regule a utilização de seus resultados, as raças e grupos étnicos

ficam protegidos, garantindo-se a sua perpetuação, através da Lei do Genocídio –

Lei nº 2.889/56. Esta lei considera crime a atividade intencional de destruir grupo 15 MARTÍNEZ, Stella Maris. ? Quién es el dueño del genoma humano?, op.cit., p. 226.

Page 17: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

17

nacional, étnico, racial ou religioso ( art. 1º, caput ), tipificada nas seguintes

situações: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave a sua integridade

física ou mental; c) submetê-los a condições existenciais que levem a sua

destruição; d) impedir os nascimentos; e, e) efetuar a transferência forçada de

crianças de um grupo para outro. Vê-se, assim, que a conduta típica é perfeitamente

realizável através das técnicas de engenharia genética, exceto no caso da letra “e”.

Com isto, pode-se, claramente, sancionar a atividade eugênica ou totalitária

implementada através biotecnologia com as penalidades impostas para o crime de

genocídio.

Ressalta-se, mais uma vez, a importância da inviolabilidade da intimidade

da pessoa ( art. 5º, X da CF/88 ), a medida que é um instrumento de proteção,

inclusive contra atos de discriminação. A informação generalizada dos dados

genéticos de alguém pode ser utilizada de forma discriminatória, por exemplo, nos

processos de seleção de emprego ou contratação de seguro. Conforme já referido,

não existe uma regulamentação específica a respeito da discriminação genética,

nem mesmo sobre o uso do conhecimento advindo do Projeto Genoma Humano.

Assim sendo, deve-se fazer prevalecer as garantias constitucionais de dignidade,

intimidade e igualdade.

IV - PATENTEAMENTO DO GENOMA HUMANO

A patente industrial tem o objetivo de reconhecer a propriedade intelectual

do inventor a respeito do resultado da coisa inventada e lhe garantir uma

recompensa, de modo a incentivar o desenvolvimento industrial.

Page 18: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

18

Acontece, porém, que este intuito de desenvolvimento industrial deve ser

dimensionado em relação às questões de engenharia genética. Fica difícil proteger a

propriedade intelectual do inventor quando se trata de um bem que pertence desde

sempre à humanidade, qual seja, o genoma humano.

A ) QUESTÕES ÉTICAS

A questão ética fundamental a respeito da possibilidade de

patenteamento do genoma humano refere-se à violação da dignidade humana, ao

se permitir que o homem seja objeto de propriedade de outros homens,

configurando-se um verdadeiro processo de objetificação do ser humano. Isso

significa um degradante retrocesso à escravidão, agora não mais racial, porém

genética. Essa possibilidade de mercantilização do homem fere frontalmente os

direitos humanos e, por isso, não pode ser permitida.

Deve-se abordar, também, a problemática da divulgação dos resultados

do Projeto Genoma Humano. Esse projeto está sendo realizado em cooperação

internacional e refere-se a um patrimônio da humanidade. Dessa forma, entende-se

que as informações através dele obtidas devem ficar à disposição de toda a

comunidade científica. Permitir que algum governo ou instituição patenteie o genoma

humano significa excluir a comunidade internacional dos benefícios que a

decodificação da seqüência genética do homem pode oferecer.

Ainda, pode-se referir a questão econômica que está relacionada às

patentes. A empresa, ou laboratório, que patentear o genoma humano terá uma total

e exclusiva retenção das informações, dados e tecnologias genéticas que este novo

conhecimento puder proporcionar. Sendo, então, única no mercado, poderá haver

abuso de preços dos produtos que daí surgirão, como exames de diagnóstico,

medicamentos, técnicas terapêuticas, entre outros.

Page 19: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

19

B ) ASPECTOS JURÍDICOS

O ordenamento jurídico brasileiro não permite o pantenteamento do

genoma humano. Esta á a conclusão a que se chega pela análise da Lei n.º

9.279/96 - Código de Propriedade Industrial. O art. 8º da referida lei determina que

são patenteáveis as invenções que atendam aos requisitos de novidade, atividade

inventiva e aplicação industrial. Sendo relevante o fator inventivo para a

característica de patenteabilidade, o art. 10º dispõe sobre o que não se considera

invenção, ou seja: descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos ( I ); bem

como o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na

natureza, ou ainda que dela isolados inclusive o genoma ou germoplasma de

qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais ( IX ). Ainda,

complementa-se a não patenteabilidade do genoma humano, pelo exposto no art.

18, I que diz não ser patenteável o que for contrário à moral, aos bons costumes e à

segurança, à ordem e à saúde públicas.

Acontece, porém, que não basta que a nossa legislação não permita a

patente do genoma humano. É preciso que haja um debate internacional a cerca do

problema, pois não se resolve a questão ética de mercantilização humana se algum

país permitir tal tipo de patente. Se isso ocorrer, mesmo aqueles países que tiveram

adotado atitudes éticas, morais e justas verão violada a dignidade da pessoa

humana.

Para que se fortaleça o debate internacional a respeito da patente do

genoma humano, entende-se interessante referir a questão da invenção. Acredita-se

que todas as legislações mundiais sobre propriedade industrial exijam o elemento

inventivo para a caracterização de uma patente. E aí está o cerne da questão.

Page 20: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

20

Entende-se que não há atividade inventiva no Projeto do Genoma

Humano. A seqüência dos genes humanos existe e sempre existiu

independentemente do projeto que ora se desenvolve. O isolamento do gene é

atividade científica de descoberta, não havendo qualquer invenção. Pode, no

entanto, ocorrer que o método utilizado nessa descoberta seja criativo e original,

merecendo, então, a proteção conferida pela patente.

A seqüência genética deve ser livremente utilizada pela comunidade

científica, sem qualquer restrição imposta pela propriedade industrial. No caso da

engenharia genética, isso é fundamental para o desenvolvimento cientifico, pois a

descoberta de um gene abre caminhos para um estágio mais avançado da pesquisa,

uma vez que há um seqüenciamento genético a ser desvendado pelo Projeto

Genoma Humano. Nesse sentido, o professor Salvador Darío BERGEL, diz:

“Reiteramos que no se puede pretender protección por patentes en una etapa embrionaria de la investigación; no puede ser protegida una herramienta que abre el camino a futuros estudios, que podrían no verse coronados por el éxito por no alcanzar una concreta utilidad indstrial.

...

...las secuencias funcionales de ADNc son en sí fundamentalmente útiles como herramientas para la investigación e desarrollo.”16

Com isto, havendo a patente do conhecimento, ou descoberta de um

gene, todo e qualquer outro uso que dele se fizer estará relacionado a esta primeira

patente. Isso, no contexto dos laboratórios de pesquisa, poderá ocasionar um

desestímulo à pesquisa face às desvantagens econômicas que daí resultarão.

Assim, ficará prejudicado todo o desenvolvimento científico a respeito das questões

genéticas.

16 BERGEL, Salvador Darío. Patentes de genes: implicancias éticas y jurídicas, in Bioética, vol. 5, nº 2, Brasília, Brasil, 1997, p. 250.

Page 21: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

21

V – CONCLUSÃO

A ciência tem duas faces: uma libertadora e outra destruidora17. A face

libertadora permite mais opções para a solução de problemas. Assim, quanto mais

alternativas o homem tiver, maior a sua capacidade de libertação. A face

destruidora, por sua vez, estimula nos homens o egoísmo e o instinto de

superioridade destrutiva em que se pretende a superação através do uso negativo

da tecnologia. Assim, é evidente que se deve fazer uma reflexão ética e moral a fim

de se evitar a sobreposição da destruição à liberdade dos avanços genéticos.

Nesse sentido, a engenharia genética está no limite entre a libertação e a

destruição. Pode libertar ao possibilitar o desenvolvimento de avançadas tecnologias

de tratamento para doenças até então sem cura, ao evitar o desenvolvimento de

doenças diagnosticadas ainda na fase pré-natal, ao facilitar o uso da biotecnologia

na produção alimentícia... Mas, por outro lado, pode destruir ao ser usada para o

extermínio de raças ou grupos étnicos, ao servir ao totalitarismo estatal, ao

discriminar portadores de “defeito genéticos”...

Assim sendo, faz-se necessário que a Bioética e o Direito, em trabalho

conjunto, estabeleçam os limites de utilização do conhecimento genético,

transfigurado em biopoder. A engenharia genética está deixando de ser uma ciência

exclusivamente biomédica, agregando elementos das ciências sociais, pela

interferência direta de seus progressos na determinação das novas formas de

relações sociais.

Face a essa nova realidade, o Direito deve estar presente no

desenvolvimento do conhecimento biotecnológico, regulando o uso das técnicas de

Page 22: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

22

engenharia genética e estabelecendo sanções para as atividade atentatórias à

dignidade humana. O legislador deve trazer o debate bioético para dentro de sua

atividade legiferante, a fim de que efetivamente se possam ver garantidos os direitos

fundamentais do homem.

O nosso ordenamento jurídico preocupou-se com as questões bioéticas,

bem como com a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do homem –

dignidade, igualdade, liberdade e intimidade. Nesse sentido, foi editada a Lei n.º

8974/95 – Lei da Biossegurança -, que estabelece normas para o uso das técnicas

de engenharia genética e sua liberação no meio ambiente. A referida lei, no entanto,

não chega a esgotar a problemática dos avanços da biotecnologia de forma

eficiente, mas já é o princípio para um debate maior.

Assim, face a insuficiência da Lei de Biossegurança, os juristas brasileiros

devem realizar um trabalho interdisciplinar na proteção do ser humano em relação à

utilização arbitrária e prejudicial que pode advir do biopoder. É preciso que se faça

um aplicação subsidiária entre a referida lei, a Constituição Federal, a Lei de

Patentes, o Código Penal e sua legislação extravagante, agregando-se, ainda,

conhecimentos bioéticos, filosóficos, sociológicos e antropológicos.

VI – BIBLIOGRAFIA

- BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O direito de experimentação sobre o homem e a biomédica ( cidadania e ciência ). http://www.apriori.com.br/artigos/arti_007.htm .

17 LIMA NETO, Francisco Vieira. Direito e discriminação genética, 26 de setembro de 1998 ( mimeog. )

Page 23: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

23

- BERGEL, Salvador Darío. Patentes de genes: implicancias éticas y jurídicas, in

Bioética, vol. 5, nº 2, Brasília, Brasil, 1997.

- BUENO, Maria Rita Passos. O Projeto Genoma Humano.

http://200.239.45.3/cfm/espelho/revista/bio2v5/projetogenoma.htm .

- CLOTET, Joaquim. Bioética como ética aplicada e genética.

http://200.239.45.3/cfm/espelho/revista/bio2v5/bioeticaapliacada.htm .

- FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975 – 1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins

Fontes, 1999.

- FROTA-PESSOA, Oswaldo. Fronteiras do biopoder. http://200.239.43.3/cfm/espelho/revista/bio2v5/fronteirasbiopoder.htm .

- HERDEGEN, Mathias y DEDERER, Hans-Georg. Aspectos jurídicos de la terapia

genética somática en humanos, in Contribuiciones, v.3, Buenos Aires:

Konrad-Adenauer-Stiftung A. C., 1997.

- LIMA NETO, Francisco Vieira. Direito e discriminação genética, 26 de setembro

de 1998 ( mimeog. ).

- MARTÍNEZ, Stella Maris. ? Quién es el dueño del genoma humano?, in Bioética,

v. 5, n. 2, Brasília, Brasil, 1997.

- ______________________. Manipulação genética e direito penal. Tradução de

Fabrício Pinto Santos, São Paulo: IBCCrim, 1998.

- NASSIF, Renée Maciel. Genes – o destino da vida, normas e uma proposição

jurídica, in Ajuris, v. 68, Porto Alegre, 1996.

- PESSINI, Léo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética . 4 ª ed., São Paulo: Loyola, 1997.

Page 24: ENGENHARIA GENÉTICA: IMPLICAÇÕES ÉTICAS E …tica.pdf · 2 possa cumprir com eficiência a sua atividade de harmonização de conflitos sociais, sem, no entanto, impedir o avanço

24

- SGRECCIA, Elio. Manual de bioética. Tradução de Orlando Soares Moreira, 3ª

ed., São Paulo: Loyola, 1996.

- SILVA FRANCO, Alberto. Genética humana e direito, 08 de abril de 1999 (

mimeog. ).

- VARGA, Andrew C.. Problemas de bioética. Traduzido por Pe. Guido Edgar

Wenzel, S. J., São Leopoldo: Unisinos, 1998.