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EM DEFESA DA LEGALIDADE Temas de Direito Constitucional e Filosofia Política

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Em DEfEsa Da LEgaLiDaDETemas de Direito Constitucional e Filosofia Política

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Em DEfEsa Da LEgaLiDaDETemas de Direito Constitucional e Filosofia Política

THOMAS BUSTAMANTEProfessor da Universidade Federal de Minas Gerais

Doutor em Direito pela PUC-Rio Mestre em Direito pela UERJ

Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ2)

Belo Horizonte2018

Com a colaboração de Misabel Abreu Machado Derzi e Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante.

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341.2 B982e 2018

Bustamante, ThomasEm defesa da legalidade: temas de direito constitucional efilosofia política / Thomas Bustamante. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2018. 284 p.

ISBN: 978-85-8238-371-1ISBN: 978-85-8238-372-8 (E-book)

1. Direito constitucional. 2. Filosofia política. 3. Positivismo jurídico. 4. Legitimidade política.5. Impeachment. I. Título.

CDD(23.ed.)–342 CDDir – 341.2

Belo Horizonte2018

CONSELHO EDITORIAL

Elaborada por: Fátima Falci CRB/6-700

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora.

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2018.

Coordenação Editorial: Produção Editorial e Capa:

Revisão:

Fabiana CarvalhoDanilo Jorge da SilvaResponsabilidade do Autor

matriz

Av. Nossa Senhora do Carmo, 1650/loja 29 - Bairro Sion Belo Horizonte/MG - CEP 30330-000

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www.arraeseditores.com.br [email protected]

Álvaro Ricardo de Souza CruzAndré Cordeiro Leal

André Lipp Pinto Basto LupiAntônio Márcio da Cunha Guimarães

Bernardo G. B. NogueiraCarlos Augusto Canedo G. da Silva

Carlos Bruno Ferreira da SilvaCarlos Henrique SoaresClaudia Rosane Roesler

Clèmerson Merlin ClèveDavid França Ribeiro de Carvalho

Dhenis Cruz MadeiraDircêo Torrecillas Ramos

Emerson GarciaFelipe Chiarello de Souza Pinto

Florisbal de Souza Del’OlmoFrederico Barbosa Gomes

Gilberto BercoviciGregório Assagra de Almeida

Gustavo CorgosinhoGustavo Silveira Siqueira

Jamile Bergamaschine Mata DizJanaína Rigo Santin

Jean Carlos Fernandes

Jorge Bacelar Gouveia – PortugalJorge M. LasmarJose Antonio Moreno Molina – EspanhaJosé Luiz Quadros de MagalhãesKiwonghi BizawuLeandro Eustáquio de Matos MonteiroLuciano Stoller de FariaLuiz Henrique Sormani BarbugianiLuiz Manoel Gomes JúniorLuiz MoreiraMárcio Luís de OliveiraMaria de Fátima Freire SáMário Lúcio Quintão SoaresMartonio Mont’Alverne Barreto LimaNelson RosenvaldRenato CaramRoberto Correia da Silva Gomes CaldasRodolfo Viana PereiraRodrigo Almeida MagalhãesRogério Filippetto de OliveiraRubens BeçakVladmir Oliveira da SilveiraWagner MenezesWilliam Eduardo Freire

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V

A Dilma Vana Rousseff, por tudo que a defesa do seu mandato representa para o Estado de

Direito no Brasil e na América Latina.

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agraDEcimEntos

Agradeço, primeiramente, à Profa. Misabel de Abreu Machado Derzi, es-trela maior do pensamento jurídico brasileiro, cuja inteligência, rigor científico e engajamento nas grandes questões nacionais serviram de exemplo para minha atuação profissional nos últimos sete anos, desde que cheguei à Universidade Fe-deral de Minas Gerais. Agradeço-a não só por ser minha interlocutora, coautora em diversos trabalhos e parceira de reflexões, mas principalmente pela lealdade e amizade sincera e desinteressada, que me honra e me dá motivação para prosse-guir nas minhas reflexões sobre direito e legitimidade.

A Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante, fiel companheira de vida, de estrada e de reflexões, que sofre comigo pelas reviravoltas políticas de nosso país.

A meus pais, Cristina e Jorge, que celebram as minhas conquistas mais do que as deles próprios.

Aos queridos amigos docentes da Universidade Federal de Minas Gerais, que tanto me ensinam, dividem comigo suas experiências e compartilham a paixão pela docência e pelo conhecimento. Agradeço, em particular, aos que tiveram oportunidade de discutir os temas trabalhados nesse livro enquanto ele era gestado ou trabalharam comigo em disciplinas, projetos de pesquisa e grupos institucionais, como Bernardo Fernandes, Marcelo Cattoni, Emílio Peluso, Leandro Zanitelli, Adriana Campos Silva, Fabrício Polido, Onofre Ba-tista Jr., Andityas Moura, Maria Fernanda Repolês, André Mendes Moreira, Dierle Nunes, Vítor Sartori, Maria Rosaria Barbato, Ricardo Salgado, Renato Cardoso e, mais recentemente, Lívia Miraglia, David Gomes, Thiago Decat e Adamo Dias Alves.

Aos meus queridos alunos e orientandos que acompanharam minhas refle-xões e me fizeram mudar de ideia várias vezes, no período em que este livro foi

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escrito: Igor Enríquez, Ana Luísa Navarro, João Víctor Martins, Lucas Paulino, Christina Brina, Franklin Dutra, Mirlir Cunha, Adriano Borges, Ludmila Lacer-da, Rayara Silva, Vinicius Faggion, Rodrigo Dornas, Hudson Soares, Mariana Mello e João Pedro Lopes Fernandes.

Ao amigo Ronaldo Porto Macedo Júnior, com quem desenvolvi uma parte substantiva dos argumentos desse livro, num período mais fecundo para nosso país, no ano de 2015, em que passei como seu convidado na Universidade de São Paulo.

A José Eduardo Cardozo, gigante defensor do Estado de Direito no Brasil, cujas palavras no prefácio deste livro me honram e me tocam profundamente.

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sumário

PREFÁCIO .................................................................................................... XI

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ............................................... 1

REFERÊNCIAS DAS PUBLICAÇÕES ORIGINAIS ............................ 6

PartE iO PODER LEGISLATIVO COMO AMEAÇA AO ESTADO DE DIREITO ............................................................................................... 8

CaPítulO 1JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA ERA CUNHA: ENTRE O PASSIVISMO PROCEDIMENTAL E O ATIVISMO SUBSTANCIALISTA DO STF (2016) ...................................................... 9

CaPítulO 2AS “EMENDAS AGLUTINATIVAS” NA ERA CUNHA: O DEVIDO PROCESSO LEGAL ENTRE A PROTEÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA AUTONOMIA POLÍTICA (2016) ......................................................................................... 39

CaPítulO 3PARECER JURÍDICO: O PROCESSO DE IMPEACHMENT E AS ESFERAS DE AUTORIZAÇÃO PELA CÂMARA DOS DEPUTADOS. LIMITES E POSSIBILIDADES DE CONTROLE JUDICIAL (2016) ................................................................ 52

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CaPítulO 4PARECER COMPLEMENTAR: O PROCESSO DE IMPEACHMENT E AS ESFERAS DE AUTORIZAÇÃO PELA CÂMARA DOS DEPUTADOS. LIMITES E POSSIBILIDADES DE CONTROLE JUDICIAL (ANÁLISE DO DIREITO DO PARLAMENTAR DE PARTICIPAR DE UM JULGAMENTO QUE OBEDEÇA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL ...................................................................... 98

CaPítulO 5O PROCESSO DE IMPEDIMENTO E ARGUMENTO DA INSINCERIDADE: O SENADOR ANTONIO AUGUSTO ANASTASIA EM FACE DO GOLPE (2016) .......................................... 103

PartE iiINTERPRETAÇÃO DO DIREITO E O COMPORTAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ............................................. 110

CaPítulO 6A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO: UMA NOTA SOBRE A RECENTE SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO E A REVISÃO DA TESE DO “LEGISLADOR NEGATIVO” (2012) ................................... 111

CaPítulO 7ROYALTIES DO PETRÓLEO E O EQUILÍBRIO FEDERATIVO: REFLEXÕES SOBRE A LEI 12.734/2012 E A ADI 4.917 (2016) ...... 124

PartE iiiFILOSOFIA POLÍTICA, LEGITIMIDADE, INSTITUIÇÕES E ARGUMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL ........................................ 157

CaPítulO 8A INTEGRIDADE E OS FUNDAMENTOS DA COMUNIDADE POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA NOÇÃO DE INTEGRIDADE EM RONALD DWORKIN ........................................................................ 158

CaPítulO 9A DIFICULDADE DE FUNDAMENTAR A AUTORIDADE DAS CORTES CONSTITUCIONAIS: PODE A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL FORTE SER MORALMENTE JUSTIFICADA? (2015) ................................................................................ 179

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CaPítulO 10A CONTÍNUA BUSCA PELA LEGITIMIDADE: PODE UM MODELO DELIBERATIVO “PRAGMÁTICO AINDA QUE BASEADO EM PRINCÍPIOS” JUSTIFICAR A AUTORIDADE DAS CORTES CONSTITUCIONAIS? (2015) ....................................... 223

CaPítulO 11POSITIVISMO NORMATIVO OU NOVOS DESENHOS INSTITUCIONAIS? UMA ANÁLISE DE DUAS ALTERNATIVAS PARA SE CONTESTAR A SUPREMACIA DAS CORTES CONSTITUCIONAIS (2016) ..................................................................... 248

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PrEfácio

Muitas vezes, ao longo da minha vida, tenho me perguntado: o que deve a sociedade esperar de um jurista?

Em um ponto todos convergirão ao tentar refletir sobre esta questão. Ela jamais ensejará uma resposta simples, unívoca e que a todos possa confortar nas suas naturais inquietações.

Inicialmente podemos afirmar que isso ocorre pelo simples fato de que não se pode imaginar que alguém reflita sobre o papel de quaisquer “operadores do direito” (e o jurista não deixará nunca de ser, ao menos em sentido amplo, um operador “intelectual” ou “especulativo” do direito, na medida em que direta ou indiretamente fornece ingredientes para a praxis jurídica), sem partir de uma re-ferência, consciente ou inconsciente, do que seja o próprio direito ou do que seja a própria justiça. Refletir sobre o papel de um jurista e o que se deve dele esperar uma sociedade historicamente determinada, portanto, implica em um necessário posicionamento sobre questões essenciais à própria Filosofia do Direito, na inexo-rável interface que este campo do conhecimento mantém com a Ciência Política, a Sociologia e diversos outros campos das denominadas Ciências Humanas.

Se nos é permitido lembrar o óbvio, dizer o que é e para que serve o direito, e qual o real significado da idéia de justiça, são problemas que talvez nunca sejam definitivamente resolvidos. Afinal, eles nunca superarão a condição de serem aporias. Sempre tomarão, queiramos ou não, a prefiguração de verdadeiros fan-tasmas da ópera jurídica. Assombram, agem e interagem nas coxias dos teatros em que se encena a aplicação do direito. Influenciam os seus atores e têm ascen-dência sobre os elaboradores do roteiro da peça encenada. Podem encarnar uma dimensão fantasmagórica quando, por ordem do diretor teatral ou do patrocina-dor do evento, são colocados em cena não como problemas insolúveis que são, mas com a falsa roupagem das respostas induvidosas, dogmáticas e passionais, na busca de uma legitimação autoritária para a afirmação de um pragmatismo justiceiro, tão frequente nos dias atuais. Quase sempre, nesses casos, com a sua súbita aparição travestida, acabam encantando uma platéia estupefata que de-lira diante da sua inesperada visualização sob a luz dos holofotes de um palco

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armado. Uma mise-en-scéne que sempre gera aplausos estridentes da turba e soa aos ouvidos mais apurados como ecos das antigas arenas romanas. Só que agora, partem não da plebe, mas de uma platéia de cidadãos igualmente ensimesmados, intolerantes, passionais, em espetáculos transmitidos ao vivo e comentados nas redes da web. Espetáculos que talvez sejam registrados pelos historiadores, no futuro, como a damnatio ad bestias do século XXI, invariavelmente produzidos e dirigidos pelo ativismo judicial consequencialista incauto que a pretexto de dizer o bom direito tem vitimado e pode sepultar os Estados de Direito.

Não bastasse isso, a resposta pretendida ainda esbarra em outros aspectos tormentosos da realidade jurídica. Qualquer reflexão feita sobre o papel social dos juristas sempre envolverá a projeção axiológica pessoal daquele que a realiza. Sem-pre partirá da sua visão de mundo, das suas concepções de vida, da ideologia que se reproduz no seu pensar, consciente ou inconscientemente, das suas fragilidades e dos seus vigores intelectuais. Conservadores buscarão nos juristas o amparo para o seu conservadorismo. Revolucionários buscarão nos juristas a resposta para os seus reclamos transformadores. O papel social de um jurista sempre será, em larga medida, o desenho projetado pela mente daquele que sobre isso pensa e reflete.

Por óbvio, ao produzir um pensamento sobre isso, tenho consciência de que não devo e não posso agir de forma diferente. Pelas premissas que fundam o meu próprio ato de pensar e foram forjadas ao longo da minha existência e da minha experiência jurídica e política, penso o direito como uma realida-de indissociável do poder político, pouco importando o modus pelo qual este mesmo poder se organiza e se expressa ao longo das sociedades historicamente determinadas. Penso a justiça como um valor ideologicamente condicionado pelas concepções que dominam as formas de pensar e legitimam as diferentes formas de poder existentes em todas as sociedades. Penso o direito e a justiça como realidades sempre postas sob o império do incessante movimento dialéti-co, como ditados pelos fatos da vida, a partir de relações de poder cambiantes afirmadas entre dominantes e dominados, opressores e oprimidos, sociedades e pessoas que vivem nestas sociedades, e ainda entre os grupos sociais e as pessoas que vivem nesses mesmos grupos. E penso, por isso, ser o jurista um operador da praxis do fenômeno jurídico, onde teoria e prática, dialeticamente, se fecundam reciprocamente na explicação e na ação sobre a realidade social, mantendo-a ou transformando-a, a partir das referências pautadas por normas ditadas pelo po-der político e que estabelecem o que deve ser.

Superando o dogma kelseniano, entendo que um jurista jamais será neutro e a ciência do direito jamais poderá ser pura. Ser neutro equivale a uma forma de pensar axiologicamente asséptica, purificada de valores, o que é radicalmente incompatível com o ato de pensar humano. Uma ciência, para ser pura, exige a fragmentação da realidade por meio de cortes epistemológicos que alteram essa mesma realidade, idealizando-a, transformando-a em algo distante do que a vida

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e os fatos são no mundo empírico. Uma realidade “idealizada” pela mente hu-mana passa a ser uma realidade existente no cérebro de quem pensa, e não reflete a “impura” realidade jurídica onde tudo está sempre conectado, integrado, inte-rado em relações que estão sempre em movimento e imersas em uma totalidade histórica.

Juristas pensam o direito, o explicam, o interpretam projetando as suas visões valorativas, políticas e ideológicas, quer queiram ou não. Quando tentam pensar o direito como “técnica neutra” de controle de condutas, expulsam sua forma de ver o mundo pela porta da frente do seu castelo idealizado, ingenua-mente, não se dando conta de que ela permanece no sótão como um gerente oculto mental que a tudo comanda e explica dentro dos edifícios “purificados”, nos quais residem com as portas e janelas trancadas, com medo de sentir os ven-tos poluídos da realidade.

Uma distinção, porém, merece ser feita. Há juristas que se proclamam “neu-tros” por conveniência, e sabem que não o são. Não são motivados pela ingenui-dade ou por um equívoco metodológico. Aqui, de fato, assumem a condição de verdadeiros ilusionistas circenses, frequentemente sustentados, na sua vaidade medíocre ou na sua ganância, por acólitos imbecilizados que se maravilham em decorrência da sua própria ignorância e da sua absoluta falta de senso crítico.

Afirmo, portanto, que juristas que ainda se assumem como neutros, em pleno século XXI, são ingênuos ou hipócritas. Nesta etapa da evolução do pensamento jurídico, seguramente, tenho a ousadia de sustentar que tertium non datur.

Todavia, uma pergunta incômoda não pode ser aqui omitida. Juristas, na medida em que não são neutros poderão, legitimamente, vir a ser parciais? Po-dem ter lado? Podem não ser imparciais, sem um descompromisso ético com o seu papel de cientistas do direito?

Essa é uma questão difícil de ser respondida. Em uma boa compreensão conceitual, “neutralidade” e “parcialidade” são realidades inconfundíveis. Ser parcial é muito mais do que reconhecer e assumir as consequências de que o seu ato de pensar é sempre condicionado, construído e formatado por uma dimensão axiológica ou ideológica. Ser parcial é assumir um lado, é empunhar uma bandeira. É ter uma posição estruturada e definida em um campo em que se trava uma disputa.

A comparação entre o papel institucional de um advogado e de um juíz talvez possa nos auxiliar a esclarer o que se pretende dizer.

Um advogado, ao atuar na defesa do seu cliente, será sempre ‘parcial’. A ele caberá assumir a defesa de uma parte em um conflito de interesses. Ele sempre terá ‘lado’. Naturalmente, a sua forma de ser, de ver o mundo, a sua ‘não neutralidade’, enfim, marcará a forma pela qual ele parcialmente defenderá os interesses da parte que representa. Já um juiz, embora não seja neutro, jamais poderá ser ‘parcial’. Ele não exerce a sua função em apoio a uma parte, para condenar ou absolver. Ele

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não deverá buscar, com as suas decisões, os aplausos da multidão, ou a consagração pelos meios de comunicação. Com a sua ‘não-neutralidade’ cognoscitiva, ele tem o dever funcional de examinar a realidade objetiva para ‘dizer o direito’, não de acordo com o que quer ou com o que o senso comum deseja, mas aplicando obje-tivamente aquilo que os representantes eleitos pelo povo aprovaram. É assim que deve ser nos Estados Democráticos de Direito”1.

Creio que os juristas, ao tratarem de teses in abstracto, têm um compromis-so intransponível com a ciência do direito. Um compromisso, a bem da verdade, muito diferente daquele assumido por aqueles que, enquanto agentes estatais, são investidos na função pública com a missão de dizer o direito in concreto, em nome do Estado e do povo, diante de um conflito de interesses. O seu papel será sempre o de garantir a seriedade científica do tratamento que emprestarão ao fenômeno jurídico sobre o qual empreenderão suas análises.

Todavia, em que medida ter seriedade científica significa ser “imparcial”, ou seja, significa “não ser parte”? Entendo, dialeticamente, que ao se abordar esta indagação deve ser dada como resposta, ao mesmo tempo, um “sim” e um “não”.

Um jurista não pode se pretender “parte”, a ponto de deturpar completa-mente a realidade jurídica que busca retratar, analisar, compreender e explicar. Aquele que assim procede, por estar a soldo de algum interesse, ou por estar acometido pela cegueira imposta pela paixão de uma causa, deixa de ser sério. E o pensamento científico, sobre qualquer realidade, por ser científico, jamais pode deixar de ter seriedade. A perda de seriedade no ato de pensar é um pecado capi-tal para quem se propõe a realizar um pensamento científico, na medida em que ele implica em distorções do conhecimento de uma realidade, e sempre poderá estar associada a muitos outros vícios.

Não se pode esquecer, porém, que aquele que pensa in abstrato o direito, embora não seja parte de um processo judicial, sempre será uma parte de um processo histórico. Um processo em que a disputa de poder e de concepções guarda uma relação direta com a realidade política e social. Pensar o direito, nessas condições e diante dessa realidade, e não ser “neutro”, em larga medida, prepara a condição de alguém ser “parte”. Parte na disputa pela transformação, ou parte na disputa pela conservação do status quo. Parte enquanto pensa e formula para explicar e convencer, a partir do que as normas dizem e de uma visão que as compreende interpretativamente no bojo de uma realidade histó-rica em curso.

Um jurista, assim, ao atuar no plano abstrato da análise do fenômeno jurí-dico, analogicamente, não deixa de ser “um pouco advogado” e “um pouco juiz”, embora, por definição, não tenha nenhuma identidade ontológica com o modus de atuação de nenhuma destas duas espécies de operadores do direito.

1 In Vivendo o Direito, José Eduardo Martins Cardozo, in Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula, p. 248, Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom, João Ricardo Dornelles (orgs.). Baurú: Canal 6, 2017.

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Ele se identifica com os advogados quando se assume como parte de um processo histórico, quando utiliza os espaços normativos existentes, dentro dos marcos possíveis e não descaracterizadores de uma seriedade científica analí-tica, construindo teses jurídicas a partir daquilo que julga ser correto e neces-sário para a compreensão das próprias necessidades da ordem jurídica. Nesse sentido, a sua “não-neutralidade” assume a dimensão parcial de produção do “novo” ou de conservação do “velho”, dentro dos marcos normativos que es-tabelecem o que deve ser e não podem por ele ser ignorados ou deturpados. Se ele os ignora ou os deturpa comete um erro científico, a que todos poderão estar sujeitos. Se o faz de forma deliberada, dolosa, age com falta de seriedade científica, atuando no campo próprio dos oportunistas ou dos canalhas. Dos oportunistas, sempre que se tratar de cegueira ditada pela paixão de uma cau-sa, onde o dolo eventual é frequentemente uma característica dos acometidos por esta perigosa forma de doença visual. Dos canalhas, quando se tratar de mentira construída a soldo ou a mando, na busca da satisfação de interesses pouco nobres, como é próprio dos que se esmeram em assumir a condição de “lambe-botas” dos poderosos ou dos endinheirados.

Na história, quando um cientista constrói uma máquina que atende às necessidades sociais e propulsiona o nascimento de algo que transforma a socie-dade, ele seguramente estará agindo como um “advogado” do novo tempo, ao longo de um processo histórico em curso. Assim fizeram os juristas europeus quando, por exemplo, construíram teses jurídicas do emergente Direito Inter-temporal, no nascimento da sociedade capitalista, para assegurar a retroatividade das normas do direito que pudessem aniquilar as relações jurídicas feudais, ao mesmo tempo que formularam o conceito de “direito adquirido” para garantir a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações decorrentes da propriedade e do novo modo de produção da nova sociedade que nascia2.

Não se pode ignorar, por outra via, que o jurista, em certa dimensão, tam-bém deve se comportar como “juiz”, sem negar a sua condição de “parte” de um processo histórico em que ele está autorizado a lutar por suas ideias e suas utopias. Se um advogado, em um processo judicial, ao desenvolver as suas teses de defesa, pode colocar luzes em certos fatos que favorecem o seu cliente, reque-rendo a produção das provas que o favoreçam, ignorando aquelas que poderiam vir a desfavorecê-lo, um jurista não pode fazer isso na construção das suas teses. Sua parcialidade não pode conduzí-lo a um descompromisso com a seriedade científica. Nos autos, um juiz é o responsável pela verdade de um processo, após ouvir as “verdades” expostas pelos advogados das partes. Na ciência do direito, um cientista é o responsável pela busca da verdade científica, ou quando isso não

2 Exemplo clássico dessa construção pode ser vista na grandiosa e célebre obra de Carlo Francesco Gabba, Teoria della Retroativitá delle Leggi. Torino: Uniove, 1981. A respeito dessa abordagem histórica, v. o nosso Da Retroa-tividade da Lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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é possível de ser alcançado pela limitada ação da mente humana, pela construção de verdades sustentáveis em padrões de razoabilidade e de aceitabilidade cognos-citiva. Um jurista tem o dever de não construir, culposa ou dolosamente, um equívoco ou uma fraude científica, na mesma perspectiva em que um juiz tem o dever de não propiciar um erro judiciário.

Por isso, entendo que o jurista não se identifica totalmente com um juíz, na medida em que ele poderá se assumir como parte de um processo histórico produzindo, nos marcos do plausível e do possível, suas teses, argumentos e análises jurídicas, transformadoras ou conservadoras do status quo. Ao mesmo tempo, não se identifica também totalmente com um advogado, na medida em que embora parte, ele tem um compromisso em colocar a nu os “prós” e os “con-tras”, as “provas” e as “contraprovas”, no que diz respeito ao seu ponto de vista. E ao contrário destes últimos, se perceber que suas razões não se sustentam, ele tem o dever de deixar “indefesa” a sua tese, silenciando, para que o veredictum científico oposto àquilo que defende no processo histórico seja proferido à sua revelia, mesmo que em prejuízo da sua vontade ou em desfavor da sua utopia.

Por isso, me senti orgulhoso ao ser convidado a prefaciar a presente obra. Ela é escrita por um homem que considero um autêntico, robusto e denso juris-ta. Autor de importantes obras jurídicas, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Thomas da Rosa de Bustamante consegue, como poucos, combinar coerência, consistência jurídica, profundidade de reflexão e coragem acadêmica. Não expulsa a sua visão de mundo dos seus escritos jurídicos, aban-donando com convicção o vetusto e carcomido dogma da neutralidade cientí-fica. Assume, como compromisso de vida, a sua condição de protagonista na defesa de um Estado Democrático de Direito permeado por valores humanistas. Sua contundência analítica e seu arrojo teórico não o afastam um milímetro sequer da mais absoluta seriedade científica.

Tudo isso se revela, a mancheias, nesta obra jurídica que tenho a honra de prefaciar.

Ao apresentar os profundos e bem estruturados pareceres que ofereceu gratui-tamente à defesa da Presidenta da República Dilma Rousseff, ao longo do processo em que se discutiu o seu impeachment, o professor Thomas Bustamante dissecou, com profundidade inigualável, temas ainda abordados superficialmente pela dou-trina brasileira, e não enfrentados de forma direta pela nossa jurisprudência. E, ao fazê-lo, forneceu subsídios importantes, não apenas para os atores envolvidos naquele processo, mas também para a ciência jurídica e para a própria história.

Muito antes do desfecho daquele malfadado processo de impeachment pre-sidencial, ainda em abril de 2016, advertia o ilustre professor mineiro no final do parecer agora publicado nessa obra, que “uma mudança ilegítima de gover-no, sem a devida caracterização de crime de responsabilidade, é não apenas uma violência contra a democracia, mas pode trazer também graves consequências no

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XVII

âmbito internacional, e contribuir ainda mais para o impasse e a instabilidade que temos verificado no cenário politico nacional” 3.

Suas palavras se tornaram uma triste premonição dos dias que se seguiriam e que marcarão a história do nosso país.

O impeachment de Dilma Rousseff foi consumado sem a caracterização e a demonstração probatória da ocorrência de uma verdadeira razão constitu-cional que o justificasse. Pode, por isso, ser caracterizado como um claro coup d’État (golpe de Estado), realizado sem armas, sem tanques nas ruas e sem mili-tares chegando ao poder. Foi um “golpe parlamentar”, consumado pelo rasgar de uma Constituição e com o violar de um Estado de Direito, a partir de uma retória variável, frágil e grotesca, onde a cada dia que passa o descompromisso com a verdade democrática dos que assumiram a sua liderança se torna ainda mais evidente.

A história, amparada nos pareceres publicados nessa obra, e em tantos ou-tros ofertados gratuitamente por grandes juristas brasileiros, registrará que em um país marcado pela corrupção, as acusações dirigidas contra Dilma Rousseff eram risíveis. Ela não foi acusada enriquecimento indevido, de ter contas no exterior ou ganhos patrimoniais ilícitos, de ter sido subornada, de ter traído o país, ou de ter praticado um “grave crime” tipificado nas leis penais. Foi acusada da prática de ilícitos atinentes ao campo da mera gestão orçamentária que não foram provados.

As imputações dirigidas contra a Presidenta Dilma Rousseff diziam respeito a atos que foram praticados pelos governos anteriores ao seu, sem que, até então, ninguém tivesse questionado nada a respeito. Veio a ser condenada, assim, por meio de uma absurda mudança jurisprudencial do órgão de controle (Tribunal de Contas da União), conduzida por um membro do Ministério Público coloca-do sob suspeição por decisão do Presidente da Suprema Corte que dirigia o jul-gamento do processo de impeachment. Uma mudança jurisprudencial aplicada de forma escandalosamente retroativa, sem qualquer pudor, em situação clara-mente refutada pelos princípios constitucionais vigentes. Chegou-se à desfaçatez, inclusive, de se acusar a Sra. Presidenta da República de ter praticado um crime (o hipotético atraso no pagamento dos subsídios devidos ao Banco do Brasil, na execução do denominado “Plano Safra”), sem que nenhum ato seu tivesse sido efetivamente encontrado, como chegou a constatar a própria perícia técnica feita por especialistas do designados pelo próprio Senado Federal.

Não se demonstrou, naquele processo, a prática de nenhum crime de res-ponsabilidade pela Presidenta da República Dilma Rousseff. E, alias, ad argu-mentandum tantum, como se costuma dizer na prática forense, mesmo que

3 Parecer jurídico: o processo de impeachment e as esferas de autorização pela Câmara dos Deputados. Limites e possibilidades de controle judicial. Elaborado a partir de Consulta apresentada pelo Deputado Federal Reginaldo Lopes (PT-MG), neste volume..

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algum ato ilícito tivesse ocorrido, seguramente, não existiria prova, ou mesmo indício, de que ela pudesse ter agido dolosamente na sua prática.

A destituição de Dilma Rousseff da Presidência da República, portanto, foi uma farsa, um embuste jurídico. Eram tão frágeis as acusações dirigidas no processo de impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff que, a partir de um certo momento, seus algozes já não conseguiam, em face dos argumentos da defesa, defender as suas próprias teses acusatórias. Passaram então a se escudar na desculpa de que a destituição da Chefe do Poder Executivo se daria, na verdade, não por estes “crimes”, mas pelo “conjunto da obra” do seu governo. Agiram, então, de forma ainda mais despudorada, como se estivessem no parlamentaris-mo. Faziam questão de ignorar que, pela Constituição Brasileira, o sistema de governo adotado era o presidencialista, e que nele a consumação de um processo de impeachment apenas pode ocorrer diante de atos ilícitos comprovados, gravís-simos e dolosos, denominados, no nosso direito, de crimes de responsabilidade.

Dilma Rousseff não praticou nenhum crime de responsabilidade. E, por isso, o relatório aprovado pela maioria do Senado e que ensejou a cassação da pri-meira mulher eleita Presidenta da República, nas palavras do próprio professor Bustamante, acabou por qualificar uma verdadeira “violação moral” que tornou o seu autor, o Senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), “um dos principais perso-nagens históricos do golpe de 2016”4.

Essa violência contra a democracia brasileira - conquistada com sangue, suor e lágrimas, após o fim do Golpe de Estado Militar de 1964 - como não po-deria deixar de ser, trouxe para o país uma péssima repercussão internacional. Apesar de todos os esforços da diplomacia brasileira, comandada pelo governo golpista de Michel Temer, para justificar a “legitimidade” constitucional do impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil que era tido como um país pujante, de institucionalidade sólida, e aplaudido pelos programas que levaram milhões de pessoas a deixar a linha de miséria, começou a ser visto por analistas e juristas estrangeiros como uma frágil “república das bananas”. Mesmo após a retomada do Poder Executivo por um governo legitimamente eleito pelo povo, e empossado de acordo com a nossa Constituição, demoraremos ainda muitos anos para recuperar a credibilidade institucional que tínhamos antes do golpe de 2016 ser consumado.

E hoje, passado mais de um ano do início do governo de Michel Temer, a cada dia mais se confirmam, lamentavelmente, as palavras proféticas do professor Bustamante. O impeachment de Dilma Rousseff agravou a crise política, que passou a atingir o patamar de uma autêntica crise institucional. O terremoto po-lítico que adveio da cassação de uma Presidente da República legitimamente eleita descalibrou completamente o quatro institucional brasileiro. Levou a um conflito

4 O processo de impedimento e argumento da insinceridade: O Senador Antônio Augusto Anastasia em face do Golpe.

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aberto entre os Poderes, um governo com uma impopularidade histórica, um Pre-sidente da República denunciado criminalmente (pela primeira vez) por prática de corrupção, uma Câmara dos Deputados atingida por denúncias gravíssimas de improbidade e de ilícitos e que se recusa, apesar das evidências, a permitir que o Chefe do Executivo tenha as acusações contra ele dirigidas devidamente apuradas e punidas. Direitos e conquistas sociais que foram nossas bandeiras de orgulho no mundo, também passaram a ser suprimidos ou desrespeitados.

Essa passou a ser a realidade dos nossos dias. Uma triste realidade. A reali-dade de um Coup d’État que jogou a institucionalidade do nosso país na lama, e jogou a sua população, de vez, no abismo de uma crise sem limites.

De todo oportuna, assim, se apresenta também a leitura do robusto texto que nos é ofertado, nesta obra, pelo professor Thomas Bustamante, sobre a teo-ria da legitimidade desenvolvida por Ronald Dworkin. A respeito, ele conclui em assertiva que deve nos fazer meditar sobre a atual realidade brasileira que “a afirmação de Dworkin segundo a qual a integridade pode exigir que aceitemos normas e decisões que não consideraríamos legítimas em um cenário ideal” de-verá “ser interpretada com cautela”. Isto porque, “não podemos exigir de nossos governantes e de nossas instituições que eles cheguem à mesma conclusão que nós ao fazerem os seus juízos sobre a moralidade política e criarem leis para a nossa comunidade. Mas podemos exigir, sim, de cada integrante da comunidade e de cada oficial a atitude moralmente responsável de buscar a integridade em cada argumento ou pronunciamento público sobre os direitos e deveres que vigoram na nossa comunidade. Se entendida dessa maneira, a integridade segue sendo relevan-te tanto para a aplicação do direito com vista a resolver casos concretos”(…) “como também para avaliar a legitimidade de nossas instituições e determinar as obriga-ções políticas que temos enquanto membros de uma comunidade de princípios”5.

Nesse contexto de reflexão sobre a realidade brasileira, também não pode-riam ficar de fora as interessantes e profundas análises apresentadas neste livro sobre a “supremacia das cortes constitucionais”6, a legitimação das suas decisões7 e a possibilidade da jurisdição constitucional ser “moralmente justificada8”; a discussão entre “o passivismo procedimental e o ativismo substancialista do STF9, a “superação do positivismo jurídico e a revisão da tese do legislador negativo10”;

5 A integridade e os fundamentos da Comunidade Política: Uma análise da teoria da legitimidade de Ronald Dworkin, neste volume.

6 Positivismo normative ou novos desenhos institucionais? Uma análise de duas alternativas para se contestar a supremacia das Cortes Constitucionais, neste volume.

7 A contínua busca pela legitimidade: pode um modelo deliberativo “pragmático ainda que baseado em princípios” justificar a autoridade das cortes constitucionais?, neste volume.

8 A dificuldade de fundamentar a autoridade das cortes constitucionais: Pode a jurisdição constitucional forte ser moralmente justificada, neste volume.

9 Jurisdição Constitucional na Era Cunha: entre o Passivismo Procedimental e o Ativismo Substancialista do STF10 A interpretação jurídica e o Supremo Tribunal Federal Brasileiro: uma nota sobre a recente sup[eração do positi-

vism jurídico e a revisão da tese do “legislador negativo” , neste volume.

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e, finalmente, a bem posta análise sobre o processo legislativo diante de valores como a “autonomia moral” e a “segurança jurídica”, e sobre os seus reflexos no “modelo institucional brasileiro”11.

Estamos, pois, diante de um grande jurista e de uma magnífica obra. Segu-ramente, a produção intelectual do professor Thomas Bustamante não parará por aqui. A nós, restará hoje brindar a possibilidade de que estes estudos sejam lidos por muitos, superando preconceitos, desfazendo dúvidas, reforçando convicções ou ampliando o espectro das reflexões dos amantes do saber jurídico. E ainda de-sejar que, em breve futuro, o brilho intelectual contagiante deste ousado e corajoso professor mineiro seja expresso em novas páginas que possam ser lidas, por todos nós, em melhores momentos da vida democrática e institucional brasileira.

JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZOProfessor de Direito da PUC/SP, da UNICEUB/DF, da Escola Paulista de Direito e do Damásio Educacional. Advogado. Ex-Ministro de Estado da Justiça e Ex-Advogado-Geral da União.

11 As “emendas aglutinativas” na Era Cunha: o devido processo legal entre a proteção da segurança jurídica e da autonomia política, neste volume.