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Eloiza Dias Neves ENTRE O “QUINTAL”, A “CASA” E A “RUA”, O OFÍCIO DOCENTE EM CONTEXTO RURAL um estudo de caso Tese de doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas – Educação Orientadora: Isabel Oswald Monteiro Lelis Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Eloiza Dias Neves

ENTRE O “QUINTAL”, A “CASA” E A “RUA”,

O OFÍCIO DOCENTE EM CONTEXTO RURAL

um estudo de caso

Tese de doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas – Educação

Orientadora: Isabel Oswald Monteiro Lelis

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Eloiza Dias Neves

Entre o “quintal”, a “casa” e a “rua”, o ofício docente em contexto rural um estudo de caso

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas – Educação. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Isabel Alice Oswald Lelis

Orientadora

Prof. Tânia Dauster

PUC-Rio

Prof. Menga Lüdke

PUC-Rio

Prof. Ana Maria Monteiro

UFRJ

Prof. Pedro Benjamin Carvalho e Silva Garcia

UCP

Prof. Paulo Fernando C. de Andrade

Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora e da orientadora.

Eloiza Dias Neves

Graduou-se e licenciou-se em Letras (português-inglês) pela U.F.R.J. em 1984, a partir de quando trabalha no ensino fundamental da rede particular. Atuou como lexicógrafa do Instituto Antônio Houaiss e desde 2001 vem trabalhando com o tema da formação de professores, seja na perspectiva da formação em serviço, nos âmbitos do sistema particular de ensino na cidade do Rio de Janeiro (Cândido Mendes e PUC-Rio) e de uma organização não governamental, seja na perspectiva da formação inicial, no âmbito dos cursos de Pedagogia e outras licenciaturas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ficha Catalográfica

CDD: 370

Neves, Eloiza Dias Entre o “quintal”, a “casa” e a “rua”, o ofício docente em contexto rural: um estudo de caso / Eloiza Dias Neves; orientadora: Isabel Lelis. – 2008. 260 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. Educação – Teses. 2. Educação rural. 3. Escola rural. 4. Ofício docente. 5. Identidade profissional. 6. Estilos de ensinar. I. Lelis, Isabel. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.

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Dedico este estudo a todas as pessoas que acreditam que a mudança é necessária e possível. E que ela depende da participação de cada um de nós.

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Agradecimentos

Agradeço a meus pais, Abel e Nazareth, pelo incentivo aos estudos que deram a mim

e a meu irmão, Abelzinho (in memoriam). Ao meu pai devo o esforço e o trabalho

que me permitiram desenvolver minha vida acadêmica. Minha mãe foi quem me

ensinou que nós, humanos, nascemos especialmente para saber.

Aos meus filhos, Ana e Nino, pelo amor.

À minha orientadora Isabel Alice O. Lelis, pelo estímulo e parceria.

Às professoras doutoras Menga Ludke, Zaia Brandão, Sonia Kramer, Tânia Dauster e

Alicia Bonamino, pelo compartilhamento de seus saberes acadêmicos.

À professora doutora Ana Maria Monteiro (UFRJ) e ao professor doutor Pedro Silva

Garcia (UCP), pela participação na banca de defesa .

À professora doutora Hedy Silva Ramos de Vasconcelos, pela amizade em todas as

horas.

Às colegas de turma Ana Lúcia Vaz, Marcela Fernandez, Solange Rocha, Maria

Cristina Galvão e Lobélia Faceira, que me ajudaram com sua imensa alegria e

cumplicidade.

A todos os professores da escola-da-dona-Clair, pela disponibilidade no acesso ao

exercício de seu ofício.

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A todos os estudantes da escola-da-dona-Clair, em especial a Simone, Edilane, Jeani

e Bárbara, pela preciosa ajuda na aplicação dos questionários aos colegas.

Ao professor doutor Rui Canário, da Universidade de Lisboa, pelo compartilhamento

de seus saberes sociológicos quando da estruturação da tese.

À professora doutora Zeila Demartini, pelos preciosos contatos com a produção

brasileira sobre educação rural.

À professora doutora Maria Regina Clivati Capelo, da Universidade Estadual de

Londrina (PR), pela generosa interlocução sobre o tema da educação rural.

Ao professor doutor Anderson Tibau, que compartilhou comigo seu imenso saber

sobre “a casa, a rua e o outro mundo”.

À ex-aluna na U.F.R.J. e agora colega de doutorado Roberta Teixeira, pelo exemplo

de coragem e persistência.

Às colegas Elisangela Bernado e Fernanda Pedrosa, pela paciência e conhecimentos

compartilhados especialmente na elaboração e tabulação dos questionários. À Alice

Pereira Xavier, pela ajuda com o tratamento das entrevistas. E ao amigo Marcos

Roberto Carmona, pela ajuda na formatação final da tese.

Aos colegas José Ângelo Gariglio e Maria das Graças do Nascimento, pela

interlocução pertinente.

Às amigas Branca Falabela Fabrício e Fernanda Schnoor, pelo apoio em diversos

momentos.

Ao CNPq e à PUC-Rio, pela ajuda financeira.

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Resumo

Neves, Eloiza Dias; Lelis, Isabel Alice Oswald Monteiro. Entre o “quintal”, a

“casa” e a “rua, o ofício docente em contexto rural: um estudo de caso. Rio de Janeiro, 2008. 260 p. Tese de doutorado – Departamento de Educação. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A escola no meio rural é um tema periférico no meio acadêmico educacional

brasileiro. Conhecer quem são os professores brasileiros que atuam em contexto rural

constitui condição essencial para que se possam efetivar as expectativas ligadas à

profissão e à valorização deste trabalhador. A presente investigação se situa no

universo das pesquisas sobre o trabalho dos profissionais docentes, sua formação e o

exercício do seu ofício. Filia-se aos estudos que privilegiam, por um lado, a

importância dos contextos e organizações escolares, e, por outro, o realce da

singularidade dos sujeitos. O objetivo foi conhecer os modos de exercício do ofício

de professores que lecionam várias disciplinas, em todas as séries, há mais de dez

anos, em uma escola pública situada no meio rural fluminense, cujos estudantes têm

tido o melhor desempenho regional no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O

estudo de caso de base etnográfica fez uso de técnicas associadas à etnografia

(observação participante, análise de documentos e entrevista biográfica), além de

questionário, e procurou compreender quais os sentidos os professores dão àquela

escola, qual a imagem que têm de si e de sua profissão, assim como quais os estilos

de ensinar desenvolvem. Para a interpretação dos dados, a interlocução foi feita com

autores da sociologia e da antropologia, como Dubar, Dubet, Canário, Tardif, Geertz

e Roberto DaMatta. O grupo docente parece ter elevada auto-estima, sendo a escola

percebida pelo menos por três modos: uma “escola-família”; um espaço de se

ensinar-aprender; e, ainda, o “quintal da casa” (baseada em categorização de

DaMatta, 1997). Os estilos de ensinar variam de acordo com estas representações

anteriores tanto sobre a escola como sobre os estudantes.

Palavras-chaves

Educação rural; escola rural; ofício docente; identidade profissional; estilos de

ensinar

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Abstract

Neves, Eloiza Dias; Lelis, Isabel Alice Oswald Monteiro. The ‘backyard’, the

‘house’ and the ‘street’ - teaching in rural regions: a case study. Rio de Janeiro, 2008. 260 p. Doctor’s degree thesis – Departamento de Educação. Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

Rural schooling is a peripheral issue in Brazilian Schools of Education. In order

to meet teachers’ expectations and to value those from schools in the countryside, it is

a crucial condition to know what type of professionals they are. The present research

is on teachers’ training and performance. It is part of several studies that, on one

hand, emphasize the importance of school context and organization and, on the other

hand, emphasize the uniqueness of each research subject. It aims at understanding the

procedures of teachers who, for more than ten years, have been teaching different

subjects to primary and secondary school students at a public school in Rio de Janeiro

agricultural area. These students have had the best regional performance at ENEM -

Exame Nacional do Ensino Médio (Brazilian National Exam of Secondary

Education). The present ethnographically-based case study made use of ethnographic

techniques (participative observation, document analysis and biographic interviews)

and questionnaires, so that we could understand teachers’ views of the school they

work at, the image they have of themselves and of their profession, as well as the type

of teaching they develop. The analysis of the data was based on sociologists and

anthropologists, such as Dubar, Dubet, Canário, Tardif, Geertz and Roberto DaMatta.

The teaching staff we studied seem to have high self-esteem and see their school in at

least one of three perspectives: the ‘family-school’, the teaching-learning

environment and the ‘backyard’ (based on 1997 DaMatta’s category). Their different

teaching styles vary according to these representations of school and students.

Keywords:

Rural Education; rural schools; teaching; professional identity; teaching styles

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Sumário 1. Introdução 11 2. Profissão docente e mutações da escola 17 2.1. Escola 18 2.1.1 A escola como objeto de estudo 19 2.1.2 Mudanças na organização escolar 23 2.1.3 A cultura e a organização escolar 27 2.1.4 O urbano e o rural: uma primeira aproximação 29 2.2. Professores 36 2.2.1 Os estudos 36 2.2.2 O estatuto social 39 2.2.3 A formação 45

3. As escolhas metodológicas 50 3.1 Questionários 55 3.2. Abordagem biográfica: elementos metodológicos, vantagens e limitações 59 3.2.1 Entrevistas biográficas 61 4. A escola-da-dona-Clair 66 4.1 A escola e o contexto local 66 4.1.1 Vista Alegre 67 4.1.2 Caracterização social dos pais 69 4.2. Caracterização da escola 73 4.2.1. Espaços e equipamentos 73 4.2.2. Histórico 76 4.2.3 População discente 80 4.2.4. População docente e pessoal auxiliar 87 4.3. Funcionamento e modos de interação coletiva 90 5. As identidades dos professores da escola-da-dona-Clair 99 5.1 O processo de negociação identitária 100 5.1.1 A identidade para o outro: “os professores dessa escola são ótimos” 104 5.1.2 A identidade biográfica para si 107 5.1.2.1 Um grupo docente “espetacular” 107 5.1.2.2 A escolha profissional possível 110 5.1.2.3 A formação na prática 112 5.1.3 A identidade “relacional” para si: entre a escola como a casa e o pai ausente 117 6. Ofício docente: entre a “casa”, a “rua” e o “quintal”, modos de perceber o mundo, de ser e de fazer 125

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6.1 No “mundo da casa”: efeitos de disposição 127 6.1.1 A força das experiências familiares 129 6.1.2 A força da formação escolar 135 6.1.2.1 As escolas freqüentadas e a escola-da-dona-Clair 135 6.1.2.2 As primeiras relações professor-aluno vividas 137 6.2 No “mundo da rua”: efeitos de posição 143 6.2.1A força das experiências anteriores à da escola-da-dona-Clair 144 6.2.2 A força da escola-da-dona-Clair 151 6.2.2.1 Na escola como na “casa” 152 6.2.2.2 Na escola como na “rua” 157 6.2.2.3 Na escola como no “quintal” da casa 164

7. Conclusão 173

8. Referências bibliográficas 180

9. Anexos 191

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1 Introdução

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. (Guimarães Rosa, 1967)

O trabalho do professor tem sido considerado um dos principais vetores de

transformação da organização das sociedades atuais, embora, paradoxalmente, esteja

sofrendo um processo de desvalorização, desde o último quartel do século XX. Essa

ambigüidade está presente no estatuto social e econômico dos professores,

considerado um eixo estruturante da profissão por António Nóvoa (1991a). Se o

professor tinha grande prestígio social e situação econômica digna até o meio do

século passado, o mesmo não se pode falar nos dias de hoje, ainda que o ensino em

ambiente escolar represente uma das esferas fundamentais da sociedade moderna na

atualidade, integrando cada vez mais a cultura, a economia e a política e sendo

responsável pela instrução dos seres humanos em suas mais diversas profissões.

Além do valor da profissão e dessa ambigüidade, também os números

impressionam: no Brasil, existem 2,64 milhões de profissionais docentes, trabalhando

em Creche, Pré-Escola, Classe de Alfabetização, Ensino Fundamental e Ensino

Médio, para um total de 52,9 milhões de estudantes matriculados em 198,5 mil

estabelecimentos de ensino, dos quais 82,6% são públicos e 17,4%, privados (INEP,

2007). Conhecer quem são os professores brasileiros constitui condição essencial para

que se possam efetivar as expectativas ligadas à profissão, e, da mesma forma, para

que se concretizem as iniciativas voltadas à valorização dos docentes.

Por sua vez, os números oficiais sobre a profissão docente em meio rural

confundem. Os estudos Estatística dos Professores no Brasil (INEP, 2004) e O Perfil

dos Professores Brasileiros (UNESCO, 2004) não revelam o número exato de

professores que atuam no meio rural, embora o primeiro documento, como adianta o

título, provê as estatísticas: 61,6% dos professores brasileiros atuam no interior

(considerado o que não é capital e suas periferias)1, dos quais 56,6% são homens e

1 A questão da classificação rural e urbano será abordada à frente, mas por hora deve-se considerar que interior se refere aos espaços não-urbanos, mas também nos pequenos centros urbanos do interior, considerados todos como espaços de ruralidades.

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62,8%, mulheres. 45,3% deles, aqui no Sudeste. Felizmente, a última produção do

INEP (2006), denominada A Educação no Brasil Rural, diminui a confusão: há

354.316 professores atuando na educação básica do campo (contra 2.065.269

trabalhadores das áreas urbanas), que representam 15% dos profissionais em

exercício no país (INEP, 2006, p. 41). São, em sua grande maioria, os menos

qualificados e os que recebem os menores salários.

Nas últimas décadas, analisar o trabalho dos professores tem sido objetivo

crescente de estudos realizados no âmbito das ciências da educação, estudos esses que

procuram investigar a materialidade das práticas de ensino desenvolvidas pelos

docentes em seus diversos e singulares locais de trabalho. O tema da formação de

professores cresceu a partir da década de 1980 no Brasil e o assunto dos saberes e das

práticas pedagógicas tem ocupado um lugar central nas pesquisas sobre o ensino em

vários países da Europa, no Canadá e nos Estados Unidos, já a partir da década de

1990.

Tais estudos desenvolvem-se a partir de questões como Quais são os saberes

necessários para ensinar e como esses saberes são construídos e mobilizados?

Tratam-se de rotinas, intuição, dom, conhecimentos e/ou competências? Como se

constituem as identidades profissionais dos professores e como elas são criadas?

Estudar e produzir academicamente sobre a profissão docente é uma tarefa a

qual venho me dedicando nos últimos oito anos. A pesquisa de mestrado refletiu

sobre a construção e a mobilização dos saberes dos professores que trabalham na

perspectiva da Educação Ambiental (Neves, 2002). Aprendi neste estudo que as

fontes dos saberes dos professores advém da história de vida, da cultura pessoal (com

ênfase na cultura escolar), dos conhecimentos disciplinares e pedagógicos adquiridos

na formação inicial e continuada, e, ainda, pela prática cotidiana nas escolas, ou seja,

no exercício do ofício. Descobri que uma grande fonte de conhecimento dos

professores é a experiência diária vivida na escola (que inclui, além da relação com os

estudantes, os pares e os pais, o contato com o currículo, os programas e manuais),

conclusão que corroborou estudos anteriores feitos por vários autores, dentre os quais

destaco Tardif (2000).

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Vale dizer que sou professora do ensino fundamental desde 1981, e que há sete

anos venho trabalhando com o tema da formação de professores, seja na perspectiva

da formação em serviço, nos âmbitos do sistema particular de ensino na cidade do

Rio de Janeiro e de uma organização não governamental, seja na perspectiva da

formação inicial, no âmbito dos cursos de Pedagogia e outras licenciaturas na

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como integrante do grupo de pesquisa Profissão Docente: entre o estatuto

profissional e o exercício do ofício, desenvolvida no Departamento de Educação da

PUC-Rio e coordenado pela professora Isabel Alice Lelis, tive a oportunidade de

compartilhar de uma série de reflexões acerca da profissão docente2.

A presente investigação pretende se situar no universo das pesquisas

contemporâneas sobre o ensino, mais particularmente dos estudos que se interessam

pelo trabalho dos profissionais docentes, sua formação e o exercício do ofício. Filia-

se aos estudos que têm como linha de investigação privilegiar, por um lado, a

importância dos contextos e organizações escolares, e, por outro, o realce da

singularidade individual dos sujeitos.

Trata-se de um estudo de caso realizado numa escola pública brasileira, criada

nos anos de 1950, pertencente à rede estadual de ensino e situada no meio rural de um

pequeno município no interior do Estado do Rio de Janeiro, local onde nasci e vivi

até os 18 anos, quando vim para a cidade grande cursar a faculdade3.

O que atraiu a minha curiosidade para o local foi a informação de que os

estudantes daquela escola do meio rural têm tido nos últimos anos o melhor

desempenho municipal no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O objetivo

2 Diferentes fontes de referencial teórico sobre o tema foram nos colocando em contato com a produção bibliográfica recente (documentos oficiais, artigos, livros, dissertações e teses), antes de partirmos para a empiria, esta realizada via entrevistas com gestores, diretores de sindicatos docentes e, ainda, na forma de questionários com professores das séries iniciais da rede municipal pública e privada da cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa visava estudar a profissão docente na atualidade a partir da divisão entre o estatuto profissional (o que é definido pelo sistema de ensino), e o exercício real do ofício (como os professores pensam o trabalho que realizam no cotidiano escolar). 3 A escola foi escolhida após a realização de um exercício etnográfico, na disciplina Antropologia e Educação, ministrada pela professora Tânia Dauster, como parte da minha formação no doutorado. O trabalho, intitulado Uma escola em que o horário de estudar é o “horário de descanso”, foi realizado durante o primeiro semestre de 2005.

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daquela primeira aproximação foi conhecer a cultura daquela escola, assim como o

sentido da instituição para as pessoas da região, o que poderia a me ajudar a

compreender o desempenho acadêmico dos estudantes (anexo 1).

A pouca pesquisa acadêmica em escolas rurais do Brasil já seria motivo

suficiente para este trabalho, de difícil realização, especialmente pelo fato de eu

morar atualmente a 190 km de distância da escola. André (2000) chega a dizer que

esse tema é “silenciado” entre os pesquisadores da educação. A pesquisa sobre

educação rural teve uma larga produção especialmente entre 1930 a 1960, a partir de

quando os estudos passaram a se concentrar, predominantemente, na escola urbana.

Ela reapareceu no cenário acadêmico e político no primeiro quartel dos anos 1990,

com o aumento dos movimentos sociais, principalmente com o Movimento dos Sem

Terra. Mesmo assim, segundo Beserra e Damasceno (2004), a proporção média é de

doze trabalhos na área de educação rural para mil nas outras áreas da educação, entre

1980 e 1990, mesmo havendo neste período um aumento do número de programas de

pós-graduação no país.

O primeiro contato com essa escola revelou-me a existência de uma cultura

organizacional (Nóvoa, 1992a) peculiar e diferenciada. Tomo cultura como uma “teia

de significado” social, que segundo Geertz (1978) interfere na definição da identidade

da escola. Por conseguinte, tais culturas específicas afetam as identidades das pessoas

que nelas trabalham e estudam, identidades estas que, concomitantemente, ajudam a

construir essa identidade institucional.

O objetivo deste estudo é analisar como os professores de diversas disciplinas

de uma escola situada no meio rural (re) constroem o exercício do ofício docente,

discursivamente. Para isso, busca-se conhecer

1) quais sentidos os professores atribuem à escola e aos estudantes;

2) quais sentidos atribuem a si e a seu trabalho; e

3) quais sentidos atribuem à prática cotidiana em sala de aula.

Desta maneira, o primeiro capítulo desta tese fornecerá alguns dados sobre os

professores brasileiros, os estudos sobre o ofício e o estatuto docente, assim como sua

formação. Em segundo segmento do capítulo, dei especial importância à escola e à

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cultura organizacional como aspectos fundamentais no exercício do ofício docente,

assim como o fato de que “os alunos representam a comunidade dentro da escola”.

Por fim, a polêmica questão dos conceitos rural e urbano será abordada.

Após o primeiro exercício etnográfico, ainda em 2005, o desejo de conhecer

quais seriam as características daquela experiência pedagógica responsáveis pelo

“sucesso” dos estudantes foi o que me levou a estudar o ofício dos professores.

Durante a realização deste ato cógnito de “olhar” e ouvir”, para, depois, “escrever”

(Oliveira, 1998), outras escolhas metodológicas foram sendo feitas, o que será

apresentado no capítulo 3. Trata-se de um relato de cunho etnográfico, fruto de três

anos de contato quinzenal com a escola e a comunidade. Fiz uso de todas as técnicas

associadas à etnografia: a observação participante, a análise de documentos e a

entrevista intensiva. No intuito de obter dados contextuais do meu universo de

pesquisa, realizei um levantamento de dados sobre as famílias, que a escola não

possuía, fazendo uso de um instrumento de mensuração típico de pesquisas ditas

quantitativas: o questionário. Vale destacar que, além disso, me utilizei de

questionários para obter os mesmos tipos de dados acerca dos professores envolvidos

na pesquisa.

Ademais, uma vez que meu objetivo era descrever o ofício docente e estava

referenciada na singularidade individual dos sujeitos e nos processos de apropriação

das oportunidades formativas, realizei entrevistas na linha de histórias de vida, outra

escolha que também será analisada, junto com os critérios de seleção dos sujeitos

pesquisados. Por fim, cabe lembrar que, ao optar pelo estudo de caso de base

etnográfica, tive que conhecer a importância e os limites da escolha.

No capítulo 4, apresento a “escola-da-dona-Clair”4, o “caso” deste estudo,

quando faço uma descrição da cultura organizacional da escola. A organização do

trabalho na escola é uma construção social originada das atividades dos diversos

atores individuais e coletivos, que, por razões pessoais, atuam na mesma organização.

Apresento o contexto local, Vista Alegre, e forneço, ainda, uma caracterização social

4 Como é de praxe no meio acadêmico, todos os nomes dos locais e dos sujeitos dessa pesquisa foram trocados para preservar ao anonimato, o que, desde o início, prometi a todos os sujeitos. Além desse nome, pelo qual é mais conhecido, o estabelecimento é nomeado Colégio VIOLA sigla do nome do proprietário que doou o terreno para a construção do colégio e que também serve para a identificação do mesmo: colégio Vinícius. Ou, ainda, Escola de Vista Alegre.

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dos pais, a caracterização da escola, seus espaços e equipamentos, a população

docente, o pessoal auxiliar e os estudantes, mostrando o histórico daquele

estabelecimento escolar, seu funcionamento e os modos de interação coletiva.

O capítulo 5 aborda o ofício docente, mas com base no confronto entre a teoria

apresentada anteriormente e o campo empírico. Assim, ele será apresentado em sua

dimensão biográfica e contextual. O que quer dizer que as histórias de vida dos

professores estudados serão comparadas, buscando-se estabelecer semelhanças e

especificidades entre os sentidos que dão à escola e a seus estudantes, à sua pessoa e,

ainda, à prática docente cotidiana. Isso será feito com base na técnica de análise do

conteúdo e num sistema de categorias que surgiu do campo empírico. Discuto aqui a

questão identitária dos professores, numa perspectiva pública e privada, usando para

tal, principalmente, as lentes de Dubar (2005, 2006).

A partir das categorias centrais que emergiram das histórias de vida e do

contexto de trabalho, no capítulo 6 aprofundo a problematização teórica do estudo,

através do alargamento e da consolidação da base bibliográfica. Analiso, a partir das

muitas disposições construídas durante a vida e as posições diversas tomadas pelos

professores no contexto de trabalho (Boudon, 1989), os múltiplos modos de exercer o

ofício hoje. Baseada na categorização dual de Roberto DaMatta (1997), no mundo da

“casa” e da “rua”, analiso os modos de ser, sentir e viver a docência pelos

professores. Encontro em Tardif (2002, 2005) e Perrenoud (1993, 1995, 2001) outros

interlocutores privilegiados para esta interpretação.

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2 Profissão docente e mutações da escola

A educação no Brasil vive um momento especialmente paradoxal e contraditório

neste início de século. Por um lado, a enorme expansão do sistema educacional nas

últimas décadas, acompanhada do discurso oficial apresentando a educação como a

grande responsável pela modernização de nossas sociedades, pelas possibilidades de

integração ao mundo globalizado e à sociedade do conhecimento, que demandam o

domínio de habilidades de caráter cognitivo, científico e tecnológico, altos níveis de

competência, além do desenvolvimento da capacidade de interação em grupos,

criatividade e iniciativa. Por outro lado, persistem os altos índices de analfabetismo,

evasão, repetência e desigualdades de oportunidades educacionais. A título de

exemplo, a precariedade extrema do aproveitamento escolar dos alunos brasileiros,

revelada nas avaliações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Nas

três séries regularmente avaliadas (quarta e oitava-série, terceiro ano do ensino

médio), um desempenho médio nunca atinge a 10% dos alunos, e vem piorando

desde a implantação da avaliação, há 12 anos (SAEB, 2005, pp. 7 e 8).

Todos sabem que é grave a crise da escola pública e crescente a diferenciação

do sistema de ensino, pois, de um lado, os mais pobres só têm acesso a escolas

públicas, e, de outro, faixas de população com maior poder aquisitivo frequentam as

escassas boas escolas públicas e as escolas particulares de excelência. Tal realidade

torna visível a tendência a inserção da educação na lógica do mercado, como um

produto de consumo que se compra, segundo as possibilidades econômicas de cada

um.

Nesta perspectiva, a tendência dominante é a primazia dos conteúdos

curriculares e, no que se refere aos profissionais da educação, é notória a

desvalorização da experiência teórica e prática acumulada pelos professores e

pesquisadores da área de educação. No entanto, não se pode ignorar que existem

também inúmeras experiências e buscas que se situam em outras perspectivas, que

reconhecem a importância dos professores na educação básica do Brasil.

O presente capítulo pretende apresentar o referencial teórico no qual me apóio a

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fim de desenvolver o estudo sobre o ofício docente em uma escola situada no meio

rural. Como já afirmado na introdução, a idéia de partida é de que o trabalho docente

é o resultado do cruzamento da trajetória pessoal dos professores e o contexto onde

exercem seu ofício. Desta forma, a aprendizagem e exercício da profissão se tornam

inseparáveis da identidade dos sujeitos envolvidos, e as identidades profissionais não

são consideradas categorias adquiridas para sempre, porque, como as demais

identidades humanas, elas se constroem nas e pelas interações ao longo da vida

(Dubar, 2005).

Como a escola é o ambiente cuja contingência pesa enormemente sobre as

condições de trabalho dos professores (Tardif e Lessard, 2005), inicio a apresentação

discutindo a instituição escolar e as mudanças que sofreu desde sua criação, além de

abordar a interligação entre a escola e comunidade em que ela está inserida, no caso,

no meio rural, cujo conceito também será revisto. Para isso, tenho como referencial

teórico principal autores como António Nóvoa, François Dubet, Rui Canário, Vera

Candeau, Maria José Carneiro, Zeila Demartini, Jadir Pessoa. A seguir, disserto sobre

a cultura da organização escolar na atualidade, quando me apóio em Nóvoa, Walo

Huchmaker, Forquin e Geertz, principalmente.

Num segundo momento do capítulo, discuto como as mutações na instituição

escolar causaram mudanças no ofício e no estatuto do professor, e, ainda, explicito

alguns estudos sobre o trabalho docente e sua formação no Brasil. Nesta parte,

fundamental a ajuda de António Nóvoa, Isabel Lelis, Perrenoud, Mauricio Tardif,

Claude Lessard, Miguel Arroyo, entre outros.

2.1 Escola

Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de alguns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto.

Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre (...), decorei gramática, as operações, regras-de-três, até geografia e estudo pátrio (...) Inda hoje, apreceio um bom livro,

despaçado. (Guimarães Rosa)

A escola é, neste início de século XXI, uma instituição tão comum e rotineira

que costuma ser encarada como um objeto natural. Desta maneira, não se estranha

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frequentemente a sua pertinência e muito menos seu papel de reprodutora e de

produtora de normas e cultura. Apesar de a situação atual apontar cada vez mais para

a necessidade de construção de ecossistemas educativos alternativos (Candau, 2000)

ou mesmo de uma “sociedade sem escolas”, a instituição tem sido o espaço formal e

privilegiado para o exercício do ato educativo nos últimos três séculos (Nóvoa,

1991a; Canário, 2005).

Escola é uma invenção histórica, contemporânea da revolução industrial e

liberal do início da modernidade, que traz como novidades principais a separação

entre o aprender e o fazer, a criação de uma relação social inédita, a relação

pedagógica na sala de aula, e, ainda, uma nova socialização (a escolar) que tornar-se,

com o tempo, hegemônica (Canário, 2005; Tardif e Lessard, 2005).

No plano pessoal, a escola sempre foi um local de muita curiosidade e desejo,

pois nasci em frente a uma grande e pública, onde estudei durante muitos anos de

minha vida e para onde quis ir todos os dias por cinco anos, até ter idade suficiente

para tal. Chego a acreditar que os diversos barulhos dessa “fonte do meu desejo de

saber” (o hino nacional cantado à entrada, as cirandas do recreio, os silêncios pelas

mortes, o alvoroço da saída) tenham embalado meu sono de bebê e despertado minha

curiosidade e “disposição” para ser professora.

Não é, portanto, de modo espontâneo e natural, que me coloco na posição de

encarar a escola como um objeto social e científico. De “fonte do meu desejo de

saber” à realização: a escola passou a fazer parte do meu objeto de estudo, dentro de

campos de conhecimentos científicos definidos: a Sociologia e a Antropologia da

Educação.

2.1.1 A escola como objeto de estudo

Os estudos sobre a escola iniciaram-se em fins de 1960, na Inglaterra e EUA,

como resultado da necessidade de se entenderem melhor as relações entre a

desigualdades sociais nas sociedades e o desempenho escolar de alunos de diferentes

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origens socioculturais. Os estudos levaram à conclusão de que os estabelecimentos de

ensino têm uma identidade própria, um ethos escolar.

Para Canário (2005, p.64),

A construção de uma sociologia da escola implica reconhecer a especificidade do estabelecimento de ensino, enquanto realidade organizacional que, sendo produzida pelos comportamentos e interacções de seus membros, não pode ser definida da forma redutora, nem como território delimitado por fronteiras físicas, nem como um agregado biológico.

Os estabelecimentos de ensino fazem parte das organizações do tipo

burocrático, por causa de seu modo de regulação e de exercício do poder. As

características típicas dessas organizações são basicamente duas, segundo Hutmacher

(1992). A primeira é que o fluxo de tarefas e de ações está em conformidade com

regras e leis, que antecipam a resposta legítima aos acontecimentos e situações. Nas

escolas, isso acontece na criação de categorias de classificação dos alunos (por idade,

nível, etc), ou, ainda, na determinação de horários e locais rígidos de trabalho, nos

tipos de saberes a serem ensinados, nos métodos de avaliação etc. A segunda

característica da organização burocrática presente nas escolas é que a legitimidade do

poder se funda na crença comum de que é justo obedecer a regras e leis conhecidas de

todos, previsíveis e de legitimidade controlável.

Mas, segundo Canário (2005), a escola pode ser analisada, além de como uma

organização, como uma forma, e, também, como uma instituição. Na forma escolar, a

concepção da aprendizagem deixa de ser por continuidade da experiência individual e

social e pela imersão social, para ser baseada na revelação (o mestre sabe e ensina ao

aluno ignorante), na cumulatividade (a aprendizagem está ligada ao acúmulo de

informações) e na exterioridade relativamente aos sujeitos, cujas experiências são

desvalorizadas: “Na escola, as crianças deixam de fazer perguntas e passam a dar as

respostas que lhes são ensinadas” (idem, p.69). A segunda perspectiva de análise do

autor sobre estabelecimento consiste em considerar a escola como uma instituição

que funciona como uma “fábrica de cidadãos”, historicamente promovendo a

unificação cultural, linguística e política, e tendo sido instrumento fundamental da

construção dos Estados Nacionais modernos.

A partir dos anos de 1980, um continuum de estudos revela o estabelecimento

de ensino como um novo objeto científico, no qual as ações docentes são

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mediatizadas e definidas menos simples e diretamente pelas políticas macro e mais

pelo estabelecimento escolar (abordagem denominada meso e micro, em detrimento

da macro-análise). Este deixa de ser entendido apenas como uma unidade da

administração central e passa a ser considerado como uma organização social dotada

de autonomia e características próprias.

A primeira consequência dessa tendência foi a redefinição na forma como as

ciências da educação se articulam com as ciências sociais, e o paradigma

funcionalista cedeu lugar ao interacionista. Na França e na Inglaterra, o foco de

análise dos estudos sobre os estabelecimentos escolares passou ser centrado no

sujeito, em suas ações, suas trajetórias, práticas e éticas. (Van Zanten, 1999). Nesse

movimento, valorizaram-se o cotidiano escolar, as práticas dos chamados “agentes de

base” (professores) e as teorias de médio e curto alcance. É o fenômeno de

“descoberta da escola” (Derouet, citado por Canário, 2005), que tem algumas outras

consequências imediatas: o enriquecimento e a diversificação dos procedimentos

metodológicos, com a valorização das abordagens qualitativas de natureza

etnográfica; e, ainda, o estabelecimento de uma maior articulação da produção de

conhecimento com a formação e a ação. Apresenta-se uma nova concepção de escola,

definida assim por Canário (2005, p.55):

uma organização social, inserida e articulada com um contexto local singular, com identidade e cultura próprias, produzindo modos de funcionamento e resultados educativos muito diferenciados. Deste ponto de vista, o estabelecimento de ensino emerge como uma construção social cuja configuração e funcionamento têm como elementos decisivos a acção e a interacção dos diferentes actores sociais em presença.

Além dessa perspectiva centrada nos atores, os estudos atuais, voltados para o

que se denomina cultura organizacional, reúnem, ainda, uma visão de sistema. A

questão fundamental a ser extraída da teoria dos sistemas é uma valorização maior do

comportamento coletivo em relação à atuação independente dos sujeitos que

compõem um determinado sistema. Desta forma, busca-se compreender a estrutura

organizacional e as conexões interiores e exteriores entre o objeto de estudo e o

ambiente do qual ele faz parte.

Deste ponto de vista, uma abordagem sociológica interacionista, a escola é

considerada um sistema de ação que comporta uma dimensão coletiva e outra

individual, o que significa que há uma articulação entre os atores e o sistema social. A

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perspectiva do sistema e do ator “são co-constitutivas, estruturam-se e reestruturam-

se mutuamente” (Canário, 1996, p.132), numa conexão entre “constrangimentos

sistêmicos” e “comportamentos estratégicos dos atores”, de uma forma tão original

que torna a escola uma “totalidade singular” (idem, p.133).

Nesta visão, “as instituições escolares adquirem uma dimensão própria,

enquanto espaço organizacional onde também se tomam importantes decisões

educativas, curriculares e pedagógicas” (Nóvoa, 1992a, p. 14). Do ponto de vista

pedagógico, há um processo de aprendizagem coletivo, entre professores, alunos e

pais, e a interação com a comunidade pode induzir uma outra forma de encarar o

aluno, de valorizar a sua experiência, os seus saberes, encarando-o como uma

“comunidade dentro da escola” (Canário, 2005, p.157). Também para Tardif e

Lessard (2005), a solidariedade e a convergência da gestão de classe, da escola e do

contexto social são fatores muito importantes para o trabalho docente.

Concluindo, esta nova perspectiva de investigação permite que se estudem as

políticas educativas globais no plano local, articulando as dimensões organizacional e

pessoal, e que se encare a formação na lógica do reconhecimento da organização

como um local de interação de atores que buscam coletivamente a aprendizagem.

Sendo assim, a tendência atual é o reconhecimento da ineficácia da formação dos

professores com tempos e espaços diversos da ação, concomitante ao favorecimento

da formação docente centrada no estabelecimento de ensino.

Ao transformarem “o meu objeto de desejo” em objeto de estudo, os

pesquisadores das ciências da educação constataram, entre outras coisas, que a crise

mundial da educação nos países industrializados, a partir dos anos 70, deve ser

entendida como uma “crise da escola”, ápice de diversas modificações que sofreu, o

que não é um fenômeno novo, já que vem desde finais do século XIX (Nóvoa, 2002).

Contudo, há uma piada no meio escolar que diz que, se uma pessoa

hipoteticamente congelada na época do Renascimento acordasse nos dias de hoje, a

única instituição que ela reconheceria, além da Igreja, seria a escola. Embora se

reconheça que a escola seja o lugar da tradição, como nos lembrou Hannah Arendt

(1972), ou, ainda, uma organização “estável e estacionária”, nas palavras de

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Hutmacher (1992), sabe-se também que ela sofreu muitas mudanças desde a sua

criação.

E não se pode pensar no ofício do professor sem analisar as transformações que

se operaram na escola. Para diversos autores (Nóvoa, 1992a; Esteve, 1995; Canário,

1996 e 2005; Tardif e Lessard, 2005), o significado e os problemas atuais da função e

da profissão docentes só podem ser entendidos se os situamos no processo de

transformação do sistema educativo nos últimos anos.

2.1.2 Mudanças na organização escolar

A escola de hoje não é a do princípio do século nem sequer a escola da ‘reprodução’ descrita por Bourdieu. A escola sofreu mutações que engendram as contradições estruturais e os paradoxos em que

hoje se move. (Canário)

Para o autor português, a chamada “crise da escola” remete a mudanças de

caráter estrutural e não apenas conjuntural. Daí, ele preferir se remeter ao conceito de

“mutações da escola”. Segundo ele, o problema central da escola na atualidade é seu

déficit de legitimidade e o principal requisito para ela ser eficaz é a construção de

sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes. Como essa perda

de legitimidade aconteceu é o que apresento agora.

Nóvoa, ainda em 1991, afirma que a idéia de escola como a conhecemos hoje

nasce com o homem burguês, portador de uma nova perspectiva de mudança e de

uma nova relação com o mundo, aquele que introduz noção de um mundo

transformável em relação à natureza e ao ser humano. Este autor atesta a existência de

dois momentos distintos da nova instituição. Um primeiro, a escola ficou sob o

domínio da Igreja, até a segunda metade do século XVIII, a partir de quando os

Estados Nacionais tomaram a sua tutela.

A análise diacrônica de Canário (2005) revela que a escola como instituição

moderna teve três períodos distintos. No primeiro, o período da “escola das certezas”,

que vai do século XVIII até a Segunda Guerra Mundial, a escola aparece como

promotora de uma nova ordem política, social e econômica. Do ponto de vista

político, a criação de sistemas nacionais de escolas significou a subtração da Igreja à

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tutela sobre o ensino. A escola desse “tempo” pode ser definida prioritariamente

como instituição, pois visa a formar cidadãos com princípios morais, formados na

prática da liberdade e da autonomia.

A escola como instituição funciona dentro do que Dubet (2002) chama de

“programa institucional”, entendido como “um processo social que transforma

valores e princípios em ação e em subjetividade através de um trabalho profissional

específico e organizado” (Dubet, 2002, p. 24). Este processo prevê, portanto, uma

ação socializadora deliberada, que acontece em um espaço separado do mundo. A

instauração da “forma escolar” cria a hegemonia de uma nova forma de aprender, a

partir de uma relação social inédita, a relação pedagógica entre um professor e vários

alunos. A coordenação da ação fica a cargo de profissionais que, além de

competência técnica e legitimidade, devem aderir a um sistema de valores,

incorporados à própria identidade profissional. Para o autor, a escola é um templo da

República, um “santuário” da ciência, da cultura e do mérito, e os docentes são os

sacerdotes.

Do ponto de vista social, a hegemonia da cultura escolar contribui para acelerar

a transferência da população do campo para a cidade e sua proletarização, dentro da

dinâmica da urbanização. Do ponto de vista econômico, a “escola do tempo das

certezas” participa da construção da sociedade industrial, na medida em que é uma

organização de educação moral, produtora de uma força de trabalho disciplinada.

Sabe-se que este modelo de organização foi usado pela Igreja medieval para pacificar

mosteiros, antes de assegurar a viabilidade das escolas a partir do século XVI e de se

impor como modelo dominante de regulação de organizações como o exército,

hospitais, empresas etc (Hutmacher, 1992).

Desta maneira, Canário (2005) conclui que, neste tempo, a escola tem uma

dupla coerência: em termos externos, ela está conforme a nova ordem política, social

e econômica; no plano interno, encoraja condutas conformistas e de pouca

negociação entre a escola e os públicos, pois tal modo de funcionamento dificulta a

criatividade e a participação.

Após a Segunda Guerra e até a metade da década de 1970, com o fenômeno da

“explosão escolar”, a escola deixa de ser elitista para se tornar de massa. É o “tempo

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das promessas”: de desenvolvimento, de mobilidade social e de igualdade,

fundamentado e referenciado na teoria do capital humano. Os princípios reguladores

da escola desse período são os mesmos da produção econômica: produção em massa,

com ganhos de produtividade, via inovação tecnológica.

O último período, o da “escola das incertezas”, começa com a crise de energia

do início dos anos 70 (que marca o fim da ilusão do crescimento sem fim), e o

declínio dos Estados Nacionais (que significa o fim do bem-estar social, com

implicações nos países periféricos, como o Brasil), quando as expectativas da oferta

escolar e educativa se frustram, passando a escola a ser vista como reprodutora social

das desigualdades, produtora da injustiça e formadora de um exército de

desempregados.

Novas formas de regulação baseadas nos resultados marcam a escola das

incertezas e elas têm como traço comum o fato de considerarem o estabelecimento de

ensino como a unidade crucial de gestão do sistema, atrelada a políticas de autonomia

e descentralização. Atualmente várias políticas educativas, como na Suécia, França,

Grã-bretanha, EUA e Japão, têm concebido o estabelecimento de ensino como um

agrupamento orgânico de profissionais e de alunos, com uma maior atribuição de

responsabilidades às coletividades locais e aos profissionais no contexto de trabalho

(Hutmacher, 1992).

Da mesma forma, um estudo comparativo realizado ao nível europeu

confirmou a convergência entre novas modalidades de regulação dos sistemas

escolares, a saber: uma crescente autonomia dos estabelecimentos de ensino, com

uma também crescente erosão da autonomia profissional, individual e coletiva dos

professores (Maroy, 2006). De qualquer maneira, para Tedesco e Fanfani (2002), a

situação de autonomia dos estabelecimentos ainda não é e dificilmente será a

realidade das escolas públicas da América Latina, em que pese o fato de este ser um

dos problemas mais importantes que se apresentam para a política educacional atual,

no que se refere à administração e à gestão.

A implicação básica das mudanças desse período no campo da educação é que

os Estados modernos são referentes principais da identidade e missão da escola

enquanto instituição. Numa perspectiva globalizada, as funções escolares de

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reprodutora de cultura e de formadora de força de trabalho não fazem sentido. É o

fenômeno chamado de “desinstitucionalização” da escola, para Dubet (2002), a crise

do “programa institucional”, a dispersão do modelo educativo. A consequência mais

importante dessa mutação é a de colocar como central o trabalho de construção do

sentido do trabalho realizado por professores e estudantes nas escolas. Dubet (1994)

prefere falar em “experiência social” privada, quando não íntima, como detalho mais

à frente.

Para Canário (2005), o aspecto central da mutação sofrida pela escola está na

abertura a novos públicos e na mudança operada nos modos de seleção, que deixou de

ser percebida como ligada à classe social (portanto, anterior à escola) para ser

predominantemente escolar, o que deslocou a competição para dentro da escola,

criando, assim, a exclusão dos piores. A democratização do acesso provocou uma

desvalorização dos diplomas e uma translação das desigualdades para dentro das

escolas, principalmente, para os níveis secundário e superior (Cunha, 1991; Bourdieu,

2004).

Em relação ao fato de que os docentes encontram hoje nas aulas novos alunos,

que possuem características socioculturais novas, cabe trazer a reflexão de Tedesco e

Fanfani (2002) para quem há de se pensar sobre a mudança nas relações de

autoridade entre professores, diretores e alunos, que passam a demandar mais

equanimidade, e, ainda, que os “novos alunos” são portadoras de uma nova cultura,

com novos saberes e valores, que impacta sobremaneira o trabalho docente. A

explicação, de uma maneira simples, é que os alunos, além de terem cada vez mais

acesso a outras formas de aprendizagem fora da escola, trazem uma predisposição ao

uso de uma visão predominantemente imagética para o acesso aos conteúdos

culturais, o que facilita o desenvolvimento de uma linguagem não-proposicional,

oposta, portanto, à linguagem proposicional típica da cultura escolar.

Se atualmente o problema central da escola é o de déficit de legitimidade e a

principal condição para ela ser eficaz é a construção de sentido para o trabalho

escolar de professores e estudantes, é preciso conhecer os significados que uma

escola pode ter para os sujeitos que nela trabalham, o que demanda o conhecimento

da cultura organizacional da escola.

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2.1.3 A cultura e a organização escolar

A cultura escolar tende a curricularizar, gradear, disciplinar e normatizar saberes sociais, relações e até ciclos de desenvolvimento.

(Miguel Arroyo)

O livro que primeiro impactou o estudo sobre as organizações escolares no

Brasil foi o homônimo organizado por António Nóvoa e publicado em 1992. É dele

que trago as primeiras contribuições para a pesquisa, algumas das quais já apresentei

acima, como é o caso do trabalho de Hutmacher, para quem a escola possui apenas

três componentes típicos de uma organização: o centro operacional (composto pelos

professores e alunos, que tem lugar preponderante e mobiliza o essencial dos recursos

de trabalho); o topo estratégico (a direção, representante local das autoridades, que

supervisiona o conjunto de recursos humanos e assegura que a missão da instituição

seja cumprida); e os suportes logísticos, que apóiam o funcionamento do conjunto

(cantina, manutenção das instalações etc).

Por sua vez, ao apresentar as características organizacionais de uma escola,

Nóvoa (1992a) lembra que estas se constroem com base em três áreas: a estrutura

física, a estrutura administrativa e a estrutura social. Essa última, além de conter as

relações entre os atores e o clima, guarda a cultura organizacional.

Para o autor (idem) a cultura organizacional da escola é “composta por

elementos vários, que condicionam tanto a configuração interna, como o estilo de

interacções que estabelece com a comunidade” (idem, p.30) e integram aspectos de

ordem histórica, ideológica, sociológica e psicológica.

Muitos são os autores que reconhecem que a relação entre cultura e escola é

antiga e que as questões culturais sempre estiveram presentes em debates sobre a

escola, até porque uma função primordial da escola tal qual se conhece hoje tem sido

a de transmissora de cultura. Com a produção e extensão dos sistemas de ensino

moderno, o processo de seleção e hierarquização dos saberes a serem transmitidos na

escola esteve baseado num estatuto científico que os coloca em ruptura com os

saberes práticos das instâncias tradicionais de socialização, como a família, as

corporações medievais ou outros espaços de sociabilidade (Correia, 1991).

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Atualmente, quem primeiro revelou a existência de uma “relação íntima,

orgânica” entre educação e cultura foi Forquin (1997), que considera a escola como

um “mundo social” de características e vida próprias, nomeado de cultura de escola.

Mais recentemente, Pérez Gómez (2001, p. 131) traz que A escola, como

qualquer outra instituição social, desenvolve e reproduz sua própria cultura

específica, denominada cultura institucional, sendo esta definida como o conjunto de

significados e comportamentos que ela cria1. De maneira similar, Mafra (2003)

afirma que os estabelecimentos de ensino têm uma identidade própria, um ethos

escolar, um “conjunto de valores, atitudes e comportamentos que dão identidade

particular à escola” (Mafra, 2003, p.113). Finalmente, para Nóvoa (1992a), essa

cultura institucional é a cultura interna, parte integrante, junto com a cultura externa,

da cultura organizacional da escola.

Nesta pesquisa, toma-se o conceito semiótico de cultura, uma prática social,

uma teia de significados, segundo Geertz (1978). Para o etnógrafo americano, essa

teia de significados, que é pública, pode ser interpretada quando se confere a devida

importância às ações do sujeitos, que são sempre simbólicas. A cultura não é algo ao

qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os

comportamentos, as instituições ou os processos, mas, sim, um contexto, dentro do

qual tais comportamentos, fatos, processos ou instituições podem ser descritos de

forma inteligível, ou seja, com “densidade”. Então, busca-se “traçar a curva de um

discurso social”, fixando-o numa “forma inspecionável” (Geertz, 1978, p.13). Nas

palavras de Geertz:

Acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias, e a sua

1 O autor identifica a escola como um espaço de cruzamento de culturas, que lhe dão identidade,

relativa autonomia e a finalidade de mediar, de forma reflexiva, os múltiplos conhecimentos que

chegam, a saber:

as propostas da cultura crítica, alojada nas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas; as determinações da cultura acadêmica refletida nas definições que constituem o currículo; os influxos da cultura social, constituída pelos valores hegemônicos do cenário social; as pressões do cotidiano da cultura institucional, presente nos papéis, nas normas, nas rotinas e nos ritos próprios da escola como instituição específica; e as características da cultura experencial, adquirida individualmente pelo aluno através da experiência nos intercâmbios espontâneos com o meio (Pérez Gómez, 2001, p.17).

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análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa à procura de significados. É justamente uma explicação o que procuro, interpretando expressões sociais que são enigmáticas em sua superfície (idem, p.15) O que se pretende é fazer uma “descrição densa” dessa cultura organizacional

da escola, buscando entender como acontece a interação entre seus membros, o que

significa para eles, especialmente os estudantes e professores, essa instituição

moderna denominada escola, e, principalmente, como esta cultura organizacional

influencia (e é influenciada pelas) as identidades profissionais dos professores. Uma

vez que a escola pesquisada está situada em meio rural, é necessário conhecer o

conceito de rural.

2.1.4 O urbano e o rural: uma primeira aproximação

O sertão é do tamanho do mundo. (Guimarães Rosa)

Para o senso comum, há uma dicotomia entre o meio rural e o urbano, com as

características do primeiro geralmente apresentadas em oposição ao segundo, e

aquele sendo frequentemente abordado como que subordinado a este. O tema,

presente marcadamente em novelas e noticiários da mídia nacional brasileira, é

geralmente marcado por duas posições: a primeira tem uma visão idealizadora, já que

rural é considerado o espaço bucólico, o guardião das tradições e das relações

solidárias. A cidade, por oposição, é um local poluído, destruidor de tradições e

composto de relações pouco solidárias; a segunda visão é depreciativa, pois considera

o rural como o espaço da pobreza, do atraso e da ignorância, contrapondo-se à cidade

moderna, sábia e rica.

Para iniciar este estudo acadêmico, caminhei em direção a autores do campo da

Sociologia e da Antropologia. A primeira constatação é que muitos estudiosos têm

salientado a impossibilidade de se falar de campo e cidade como realidades definidas,

estáticas, acabadas.

Já nos anos de 1950, tentava-se definir o que é rural e o professor Robert Hall,

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então visitante do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), afirmava que

“‘Área rural’ é essencialmente uma área geográfica definida por uma comunidade de

interesses da população que ali reside, com base em características demográficas,

econômicas e culturais” (Hall, 1950, p. 17). Para o autor, a população rural é

moradora de área fracamente povoada, com alta taxa de natalidade e cujos jovens

migram frequentemente para as cidades. Quanto ao aspecto econômico, trata-se de

região com produção predominantemente agrária, relativa falta de energia, pouco

nível de mecanização, baixa renda per capita e dificuldades no transporte e na

comunicação. No âmbito social, segundo o autor, havia dois padrões básicos: a)

grandes propriedades com rendeiros; b) pequenos proprietários com investimento de

capital. Que, culturalmente, compunham uma população conservadora e tradicional,

cujos membros se ajudam mutuamente e mantêm relativamente pouco contato com os

centros urbanos. A sociedade está organizada em grupos de famílias estreitos, o que

significa que quase todos os serviços sociais são prestados dentro do lar.

A pesquisadora argentina Mastrángelo (2000), ao estudar sobre uma

comunidade rural no interior de seu país, numa revisão histórica, destaca que a

oposição conceitual entre rural e urbano foi apenas (mais) um produto da urbanização

associada à industrialização, que ocorreu nos séculos XIX e XX, com a expansão do

capitalismo, em toda a América Latina.

Para a antropóloga Maria José Carneiro, o rural é frequentemente definido e

tratado a partir da ótica do seu par oposto, a sociedade urbano-industrial, por um

processo de exclusão. O rural é tudo aquilo que está fora desses referenciais urbanos.

No entanto, para a autora, é possível encontrar uma ruralidade também no interior da

sociedade que se pretende apenas urbano-industrial.

Demartini (1988) acredita que trabalhar com essa problemática se deve mais à

necessidade de acabar com o preconceito na forma que sociólogos e educadores têm

tratado do tema do que às possíveis diferenças entre o meio rural e urbano. Embora

ela tenha realizado seus estudos no interior do estado de São Paulo, podemos trazer

para o interior fluminense muitas de suas observações, especialmente porque, para

esta autora, o rural é definido segundo a natureza do trabalho, o que quer dizer que as

formas de relação de trabalho que se estabelecem no campo é que caracterizarão as

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diferentes categorias de profissionais rurais e, consequentemente, a identidade social

e econômica da comunidade. Então, para a autora, rurais são “aqueles grupos da

sociedade que estão diretamente ligados à produção agropecuária, considerando-se

também as diferenciações existentes entre as categorias de agricultores em função da

posse ou não dos meios de produção e, de maneira especial, da terra, assim como a

posição ocupada no sistema de relações sociais de produção” (Demartini, 1988, p.25).

Nesse sentido, cabe lembrar que há três situações sócio-econômicas

estruturalmente diferentes no campo, a saber: os proprietários rurais são os

produtores que detêm a posse dos meios de produção; os arrendatários e parceiros

têm o poder de usar os meios de produção que não possuem e, desta forma, pagam

pelo uso da terra, os primeiros desembolsando uma quantia fixa pela utilização, e os

segundos, uma porcentagem pela produção; finalmente, os assalariados, permanentes

ou temporários, que não têm os meios de produção e vendem sua força de trabalho.

Outra observação pertinente a este respeito dos aspectos sociais e econômicos

ligados ao conceito de rural vem de Pessoa (2003), que lembra que existe,

atualmente, na área rural, por um lado, a presença forte da agroindústria, eletrificação

rural, estradas asfaltadas e, por outro lado, um grande contingente de sua população

que, antes de ter acesso a esses benefícios, fora para a cidade, porque já havia perdido

as condições de aí permanecer. Ainda, há uma pequena parcela da população que

permaneceu na condição de população “rural”, mas que vive um vínculo muito mais

efetivo com a cidade do que com o campo, pela dependência de serviços de educação,

saúde, comercialização dos seus produtos. E, finalmente, há uma cidade, composta

por uma população vinda diretamente das regiões rurais ou de pequenas cidades. O

que faz o autor concluir que “O campo está na cidade e a cidade está no campo”. Ou,

como diria Guimarães Rosa (1967, p.9), “O sertão está em toda parte”.

Ao terminar essa análise, Pessoa (2003) conclui que é melhor analisar o rural

levando-se em conta os seguintes aspectos: a) a categoria geográfica específica; b) a

produção agrícola ou agropecuária; c) a representação social e simbólica, sendo que

esta é uma concepção de mundo, ou seja, um modo como as pessoas e os grupos

organizam suas relações sociais e produtivas. Conclusão muito próxima da

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conceituação de Hall (1950), em que pesem as diferenças de contexto trazidas com as

mais de cinco décadas passadas.

Desta forma, penso ser importante abrir um novo espaço de observação, como

faz Mastrángelo (2000), que, em sua pesquisa sobre uma comunidade do interior,

conclui que o se deve buscar é uma articulação social capaz de nos permitir

compreender a relação entre unidades sociais menores (rurais e periféricas) e maiores

(o estado, a região, o Estado nacional e os capitais transnacionais), uma vez que a

expansão do capitalismo e a descentralização da produção industrial colocam

tradições diferentes em contato numa mesma realidade e, portanto, articulam o nível

local (o distrital, o municipal, o estadual) com o nacional e o transnacional, numa

nova formação social específica, a ser conhecida.

Idéia compartilhada por Carneiro (1998, p. 59), para quem

Nesse sentido, importa mais do que tentarmos redefinir as fronteiras entre o “rural” e o “urbano”, ou simplesmente ignorar as diferenças culturais contidas nessas representações sociais, buscar, a partir do ponto de vista dos agentes sociais, os significados das práticas sociais que operacionalizam essa interação e que proliferam tanto no campo como nos grandes centros urbanos (....).

A pesquisa sobre educação rural teve uma larga produção especialmente entre

1930 a 1960, a partir de quando se passou a estudar principalmente a educação

urbana, com raras exceções, como é o caso da pesquisadora Zeila Demartini, cujas

referências são, contudo, localizadas no estado de São Paulo. Com o golpe militar de

1964 e o modelo econômico adotado a seguir, que aguçou os processos de

concentração fundiária e do êxodo rural, o setor rural brasileiro e, dentro dele a escola

rural, cai numa espécie de exílio. Mas, de fato, com o fim da ditadura militar e o

retorno dos movimentos sociais no campo, as questões referentes às condições de

vida e trabalho de quem vive ou trabalha no meio rural voltaram ao centro das

atenções.

Assim, os estudos sobre escolas em meio rural reaparecem no cenário

acadêmico e político nos anos de 1990, primordialmente com o Movimento dos Sem

Terra (MST), que, com suas propostas escolares e educativas, inaugurou um

momento de se refletir sobre a diversidade que existe no campo (via estudos, ainda

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incipientes, sobre os quilombolas, ribeirinhos, bóias-frias, mulheres do campo, índios

etc).

Contudo, também devo lembrar que há outras formas escolares diversas, ainda

que sejam de matriz burguesa, acontecendo nesse meio. Embora as pesquisas sobre a

educação e escola rural sejam raras, no Brasil de hoje, a área rural concentra mais de

50% dos estabelecimentos de ensino de educação básica (107.432 para 106.756

escolas em área urbana), mas, aproximadamente, apenas 14,9% da população em

idade escolar para o ensino fundamental (Brasil, 2006, p.24).

A idéia do sentido da escola para a comunidade rural merece algumas

considerações. Demartini (1988) recolhe histórias de vida de velhos mestres que

lecionaram para populações rurais paulistanas no início do século passado, para

conhecer a visão que a população rural tinha sobre a escola. Ela nos relata que, mais

do que simplesmente valorizar, a população rural procurava literalmente pela escola,

uma vez que estava sob a influência dos mesmos valores que agiam sobre os demais

setores da sociedade global, os ideais de igualdade e fraternidade, da educação para

todos, naquela época da “escola do tempo das certezas”. O que fez com que os

sitiantes se interessarem pelos conhecimentos de leitura e cálculo. Ainda, no plano

político, a leitura e a escrita eram considerados elementos importantes na obtenção de

favores dos políticos e a escola era considerada um trunfo que as forças locais

buscavam barganhar com seus eleitores. Desta maneira, de acordo com a narrativa

dos professores da pesquisa citada, a constante dominação política, administrativa e

cultural do urbano sobre o rural se manifestava também no plano educacional,

fazendo com que os habitantes desejassem adquirir os valores urbanos, mais

oportunidades educacionais, aspirações que correspondiam, também, aos valores

dominantes da sociedade global.

Da mesma forma, ao buscar reconstruir um cenário histórico da atuação de

professores de Matemática no interior do estado de São Paulo, Garnica (2005) faz um

bom apanhado das pesquisas locais sobre os discursos docentes que revelam

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dificuldades de articulação do trabalho com as diferenças da comunidade e, ainda,

uma tendência à “urbanização do caipira2”. Em suas palavras,

A história da educação escolar caipira, constituída nos vãos da história oficial da educação brasileira, vai, pois, trilhando caminhos distintos daqueles trilhados pelos alunos e professores dos grandes centros. Citadinos, cosmopolitas, elegantes, finos e sofisticados, segundo os dicionários, servem de antônimo à ‘caipira’. (Garnica, 2005, p.131). Essa idéia vai ao encontro de outra descrição de estudo, dessa vez em Minas

Gerais, nos anos de 1990. Rocha & Soares (2002) investigaram as representações

sociais de 113 professores das séries iniciais do ensino fundamental, sobre a escola do

espaço rural, de 40 escolas, em 13 municípios. Os dados revelaram que para noventa

por cento das professoras entrevistadas a escola deve ser um espaço para ensinar o

caminho da cidade. Para quatro por cento, a escola deve ensinar o amor ao campo, já

que este é empobrecido e não oferece perspectivas para melhoria de vida. E seis por

cento da professoras não tem o meio rural como conteúdo de trabalho.

Para os pesquisadores, os professores brasileiros em geral não têm tido em sua

formação (tanto inicial como continuada) a oportunidade de vivenciar ou sequer

discutir as especificidades em relação ao ensino rural, sendo que, na literatura

pedagógica, o tema aparece de forma superficial. Ainda, parece que entre os

professores há uma valorização de profissões urbanas em detrimento de profissões

rurais, o que faz com que eles raramente vinculem os conhecimentos rurais ao

trabalho escolar. A exceção fica por conta das escolas localizadas em assentamentos

do MST ou, ainda, de algumas experiências escolares fruto de movimentos sociais,

como as Escolas Família Agrícola, as Casas Familiares Rurais e a Escola Ativa, em

que há uma defesa de que os conteúdos dessas escolas reflitam a cultura, as

necessidades e os valores dos trabalhadores do campo (Arroyo, Caldart e Molina,

2004; Brasil, 2006).

Ainda, Garnica & Martins (2005) percebem nos relatos dos professores de

Matemática uma hipervalorização dos conhecimentos sistematizados por alunos

urbanos que têm mais facilidades de acesso a certas informações, pela melhor 2 O autor usa esse termo para se referir aos “habitantes do interior do estado de São Paulo, ainda que haja algumas indicações que estendam o termo para as comunidades do sul de Minas Gerais e parte da região centro-oeste brasileira.”(p.131) Na região estudada nesta pesquisa, os moradores usam o termo “roceiro”, mas geralmente o fazem de maneira pejorativa.

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comunicação e a frequência a cursos pré-primários, inexistentes na vida do homem do

campo. Esta atitude acontece concomitantemente a uma certa negligência em relação

aos conhecimentos cotidianos prévios do aluno rural. Os autores concluem:

Os relatos revelam o quão dependente dos conhecimentos detidos pelos professores (urbanos) está a população rural, até mesmo para que estes possam sair da condição de vida proporcionada por sua profissão e atingir “cargos urbanos” mais valorizados, denunciando que o parâmetro de comparação está sempre na zona urbana, o que nos remete a uma possível contribuição dada pela escola no processo da perda de identidade do homem rural. (Garnica & Martins, 2005, p.17-18)

Vale ressaltar que essa tendência vai de encontro aos muitos discursos oficiais,

que, através dos tempos, reconhecem o problema e afirmam promover a fixação do

homem no campo, como percebemos inclusive nos documentos atuais:

De uma maneira geral os dados mostram que, de fato, há muito que se avançar para melhorar as condições de ensino oferecidas à população rural. É tarefa de difícil solução e que demanda diferentes estratégias. De qualquer forma, melhorar a qualificação dos docentes que atuam nessas áreas tem como fator limitador à disponibilidade de mão-de-obra qualificada nessas localidades. Formação continuada para os profissionais que já atuam na zona rural e políticas de formação e melhoria das condições profissionais são tarefas que podem ser fomentadas e implantadas pelo poder público para diminuir a distância entre o meio urbano e o rural. (Brasil, 2003; Brasil, 2006)

Em resumo, esses estudos parecem revelar que a escola rural tem

desempenhado papel mais intenso na valorização do urbano.

Antes de discutir o trabalho docente e as mudanças que o mesmo sofreu com as

mutações da instituição escolar, vale uma última consideração, para além da

discussão acerca da organização escolar no mundo contemporâneo e de sua

incontestável influência no trabalho docente: analisar uma escola em meio rural

significa reconhecer que ela se inscreve numa questão mais ampla, que diz respeito

ao futuro do mundo rural, e, consequentemente, à configuração global da sociedade

(Canário, 2000); e, ainda, que

A escola não é o princípio da transformação das coisas. Ela faz parte de uma rede complexa de instituições e das práticas culturais. Não vale mais, nem menos, do que a sociedade em que está inserida. A condição de sua mudança não reside num apelo à grandiosidade de sua missão, mas antes na criação de condições que permitam um trabalho diário, profissionalmente qualificado e apoiado do ponto de vista social. A metáfora do continente (os grandes sistemas de ensino) não convém à escola do século XXI. É na imagem do arquipélago (a ligação entre pequenas ilhas) que melhor identificamos o esforço que importa realizar. (Nóvoa, 2002, p. 244-245).

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2. 2 Professores

Neste segmento, dou continuidade à tese que as mutações na instituição escolar

causaram mudanças no ofício e no estatuto do professor, quando explicito alguns

estudos sobre o trabalho docente e sua formação no Brasil.

2. 2. 1 Os estudos

O desafio é estudar a profissão docente do lugar da pesquisadora que é, antes de

tudo, uma professora que concebe a profissão de modo ambíguo: a docência é uma

vocação, mas também meu ganha-pão, numa clara referência aos dois paradigmas da

profissão levantados por Fernandes (1998): 1) o “socrático-platônico”, para o qual a

docência é uma vocação e o docente um “mestre de vida e de pensamento”, capaz de

instigar os discípulos a procurar e encontrar dentro de si um saber que antes ignorava,

sendo o amor pelo saber mais importante que a remuneração; 2) o do sofista, um

profissional remunerado por seu trabalho de transmissor de um saber definido e útil.

Este último modelo é tido por Tedesco e Fanfani (2002) como dois distintos,

caracterizados como professor-trabalhador (funcionário público) e profissional

(alguém com saber esotérico para exercício do ofício).

O mapeamento da problemática do exercício do ofício docente e da formação de

professores revelou uma produção heterogênea nas últimas décadas, tanto no que se

refere aos recortes do objeto de estudo como aos referenciais teórico-metodológicos.

Para Catani (2000), a produção sobre o tema é muito pequena e o que se encontra de

mais significativo são estudos de períodos mais recentes, com foco na organização da

categoria profissional e suas relações com o Estado. Ainda, a produção acadêmica no

Brasil sobre o tema é dispersa e sem continuidade.

Se nos anos 70 havia o entendimento da docência como um fazer técnico,

sustentado unicamente nos conhecimentos científicos, e, se na década de 80, as

palavras “professor” e “técnico” foram substituídas por “educador”, a partir dos anos

90, os adjetivos ligados à palavra professor passaram a ser “profissional”,

“pesquisador”, “reflexivo”. Contudo, do que fica da literatura desse último período

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são as contribuições sobre os saberes da docência e que acabam por delinear

conhecimentos para a compreensão de uma epistemologia da prática docente.

Com forte penetração nos EUA e Canadá e mais recentemente no Brasil, a

revalorização dos saberes da experiência do professores é um tema que tem sido

muito estudado (Tardif, Lessard & Lahaye, 1991; Tardif, 2002). Essa perspectiva

toma a noção de saber como conhecimentos, competências, habilidades, promovendo

uma crítica ao papel desempenhado pela universidade na tarefa de formar os

professores, na medida em que se apóia em um modelo aplicacionista do

conhecimento. Trata-se de um modelo através do qual se pretendem educar as escolas

e os professores de modo semelhante ao que a escola tradicional procura educar as

crianças. A chamada “epistemologia da prática” propõe relativizar o lugar da teoria

na formação de professores e a própria concepção acerca do papel dos conteúdos de

ensino (Lelis, 2001a). Uma das críticas centrais a ela está na desvalorização do

conhecimento teórico, acadêmico, científico (Duarte, 2003), conhecimento este que,

segundo outras pesquisas sobre os saberes docentes, impacta o exercício do ofício

(Borges, 2002; Monteiro, 2002). O que não parece ter afetado o número de pesquisas

que buscam conhecer a construção dos saberes dos professores (saberes estes

considerados plurais, heterogêneos, provenientes de várias fontes), dentre as quais se

situa a pesquisa que resultou em minha dissertação de mestrado (Neves, 2002).

Quanto ao exercício da docência, as pesquisas vêm apontando uma crise da

competência profissional, esta expressa nos conhecimentos e estratégias por meio dos

quais os professores procuram resolver os dilemas do trabalho cotidiano. Estes

estudos procuram discutir questões relativas às características do trabalho docente,

aos perfis dos profissionais, às imagens que têm da profissão, ao tipo de participação

em movimentos sociais e/ou sindicatos de trabalhadores, ao pensarem o professor

enquanto trabalhador cultural e intelectual reflexivo (Hypolito et all, 2003; Gariglio,

2004; Nascimento, 2005; Vicentini, 2005).

Para Nóvoa (1995a), esta crise de competência profissional está intimamente

ligada à crise de legitimidade do magistério, abordada em outras pesquisas, que

ressaltam uma crise do poder do professor e de confiança que o público deposita nele,

ligada ao fenômeno do “mal-estar docente”.

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Este é definido como “o conjunto de reacções dos professores como grupo

profissional desajustado à mudança social.” (Esteve, 1995, p.97). Mais do que

reações, ele pode ser reconhecido como um processo de crise identitária dos

professores, descrita como, além da visão social negativa da profissão, uma

desvalorização do estatuto social, uma proletarização do ofício do professor (a quem

escapa o controle do exercício de seu trabalho, devido à emergência de novas formas

de regulação das organizações escolares), além da colocação aos professores de

problemas novos e de difícil solução, com a chegada de novos e heterogêneos

públicos.

Em pesquisa com professores que pediram exoneração em São Paulo entre

1990 e 1995, Lapo e Bueno (2003) revelam que o “mal estar” que antecedeu o

abandono é provocado pela sobrecarga de trabalho, falta de apoio dos pais, baixos

salários, concorrência com outros meios de transmissão da informação, má qualidade

das relações no ambiente de trabalho, e, ainda, aspectos ligados à burocracia

institucional e ao controle sobre o trabalho do professor, à escassez de recursos

materiais, à falta de apoio técnico-pedagógico e de incentivo ao aprimoramento

profissional. O movimento penoso de desligamento acontece pouco a pouco através

de pedidos de licença não remunerada, remoções de escolas e faltas ao trabalho. O

abandono real da profissão docente acontece ao final, expressando a vivência de

percursos profissionais carregados de insatisfações.

Ainda na última década, passou-se a investigar as histórias e trajetórias de vida

profissional de professores, realçando a figura do professor como “pessoa”, portador

de uma subjetividade, e não somente como profissional. Bueno et all (2006)

apresentam uma revisão de trabalhos na área de Educação, dos anos de 1985 até

2003, que fizeram uso das histórias de vida e dos estudos autobiográficos como

metodologia de investigação científica no Brasil. As análises levaram a concluir que o

uso das abordagens cresceu muito no país, mas que foram usadas muito mais como

fonte de dados de pesquisa do que como ferramenta de formação docente. E, ainda,

que a grande emergência de textos publicados em Portugal (reunindo colaborações de

portugueses, franceses suíços e italianos), com teorias e investigações acerca do

método autobiográfico como recurso metodológico e como fonte de pesquisa, foi um

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dos aspectos definidores do cenário brasileiro de pesquisa durante os anos de 1990.

Também ficou evidente, com a intensificação dessas metodologias, o afloramento de

temáticas e questões novas, tais como a profissão, a profissionalização e identidades

docentes.

Este contexto só foi possível porque, nos últimos trinta anos, as transformações

do modelo social têm sido acompanhadas de formas de socialização em que

processos de individualização e subjetivação encontram cada vez mais lugar. Ao

retornar à cena sociológica, a questão do sujeito é desenvolvida numa teoria do ator

social que constrói o sentido de sua experiência e se faz sujeito de sua ação (Charlot,

2000; Dubet, 1994 e 2002). Por último, se a revisão bibliográfica sobre educação e escola rural mostra que

os estudos são parcos, não é difícil deduzir o pouco conhecimento levantado acerca

dos professores que exercem sua profissão nas áreas rurais. Demartini, ainda em

1988, manifestava sua preocupação com o fato de a maioria dos estudos sobre a

educação escolar focar aspectos relacionados ao sistema educacional e sua expansão,

com poucas referências ao desempenho dos professores ou aos sujeitos e agentes da

educação envolvidos no processo educativo. Assim mesmo, as pesquisas se limitam

às séries iniciais do ensino fundamental (Rocha & Soares, 2002; Cavalcante, 2003),

com exceção da já citada pesquisa de Garnica e Martins (2005) cujos sujeitos são

professores de matemática.

2. 2. 2 O estatuto social

Profissão impossível, dizia Freud a respeito da educação; certo, mas ensinar é também a mais bela profissão do mundo.

(Tardif e Lessard)

O estatuto social e econômico é uma das chaves para o estudo dos professores e

da sua profissão (Nóvoa, 1995a). Embora o discurso genérico sobre o professor esteja

cheio de perigos, a primeira impressão é que a imagem social e a condição

socioeconômica do professor na atualidade se encontram em estado de degradação,

em que pese o fato de seu trabalho representar a realização da instrução formal de

todos os humanos em suas mais diversas profissões. Aliás, esse grande porte da

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missão é um dos responsáveis pela dificuldade na melhoria do estatuto

socioeconômico, uma vez que os professores se constituem em um dos mais

numerosos grupos profissionais da sociedade contemporânea.

Esse paradoxo é um dos muitos aspectos do trabalho docente, dentre os quais se

destacam, ainda, a ambiguidade , heterogeneidade e a polissemia (Lelis, 1996). Para a

pesquisadora, o caráter polissêmico do trabalho e da profissão docente adviria das

condições objetivas de produção dos docentes, sob as quais construíram formas de

perceber, classificar e agir na escola e no mundo.

É mais uma vez António Nóvoa (1991a, 1995a) quem fornece um “modelo de

análise da profissão” que vem sendo usado pela maioria dos pesquisadores do ofício

docente no Brasil nos últimos anos e que pode nos ajudar a entender a imagem social

da profissão e a atual condição socioeconômica dos professores.

Lembrando, o modelo divide o processo histórico de profissionalização em

quatro etapas, desde a gênese da profissão, a partir do século XVII, até os dias atuais.

Um primeiro momento importante, já no início do século XVIII, foi quando o

professorado começou a exercer a profissão em tempo integral e deixou, portanto, de

considerá-la como uma atividade passageira. Ao aderirem ao projeto estatal de

funcionarização, os professores instauram um segundo momento, e confirmam sua

condição de “profissionais do ensino”, ao mesmo tempo, defendidos e controlados

pelo Estado, que posteriormente cuida de criar instituições específicas para a

formação especializada e relativamente longa do professor, período este já

considerado a terceira etapa do processo de profissionalização docente. A quarta é

quando os professores se organizam em associações profissionais, o que tem papel

fundamental no desenvolvimento de um espírito de corpo e na defesa de seus

interesses profissionais.

No século XVIII e início do XIX3, com a produção de um sistema complexo de

ensino estatal e a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, inicia-se um

3 De fato, a intervenção na organização do ensino só se legalizará em 1827, com a Lei Geral do Ensino, no Primeiro Império, que cria os sistemas de ensino primário e secundário, e a formação docente, havendo, ainda, o início de um processo de homogeneização, unificação e hierarquização do trabalho anterior. Na verdade, a efetivação dessa realidade só ocorreu em 1834, com o Ato Adicional que transferiu para as províncias a responsabilidade pela formação dos docentes, ato este baseado no princípio de descentralização administrativa, embora com forte centralização política (Villela, 2000).

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processo de secularização da instrução com a vinda de professores régios para o

Brasil. O professor régio, categoria criada como parte das reformas que o Ministro

Pombal promoveu em todo o domínio do reino português a partir de 1759, seria o

agente da mudança do ideário jesuítico para o ideário iluminista, da disseminação das

conquistas da ciência, da consolidação da idéia dos Estados nacionais e da unificação

linguística, legitimando a identidade do Estado português. Era a época da “escola das

certezas”, quando a instituição funcionava como uma “fábrica de cidadãos”.

No Ato adicional de 1834, lê-se que “Os professores régios gozavam, ainda, do

Privilégio de Homenagem em razão da nobreza de seu Emprego (...)” (pesquisado por

Cardoso, 2002, p.251), o que significava que não podiam ser presos sumariamente,

tinham isenção do serviço e de taxas militares, aposentadoria passiva (não podiam

ser despejados arbitrariamente por seu senhorio), entre outras regalias destinadas à

nobreza (Fernandes, 1998). Tinham, portanto, grande valor e dignidade.

Por outro lado, embora imbuídos de tão nobre missão, uma hierarquização das

categorias docentes já podia ser observada, pois os professores régios recebiam

tratamento diferenciado, diverso e contraditório, de acordo com o nível que

ensinavam, para não falar da oscilação dos privilégios de acordo com o local em que

trabalhavam. Assim, os “mestres das primeiras letras” tinham remuneração mais

baixa, atrasos no pagamento, dureza no estatuto disciplinar, sem direito a

aposentadoria. Os “professores de Gramática Latina, de Retórica, de Grego e de

Filosofia” eram mais valorizados do ponto de vista social. Para Vicentini (2005),

essa separação foi a grande responsável pela “heterogeneidade da categoria”, presente

até hoje entre os professores das primeiras séries do ensino fundamental, por um lado,

e os professores do segundo segmento do ensino fundamental e os do ensino médio,

por outro.

Devo lembrar que a escola como instituição formadora de cidadãos funciona

dentro do “programa institucional” (Dubet, 2002), que previa uma ação socializadora

deliberada, cuja coordenação ficava a cargo de profissionais que tinham competência

técnica e legitimidade, além de aderirem a um sistema de valores que acabam

incorporados à própria identidade profissional. Os professores são agentes a serviço

da instituição escolar. Nas palavras de Nóvoa (1991ª, p.123 e 124):

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Isso os coloca no cruzamento de interesses e aspirações sócio-econômicas frequentemente contraditórias: funcionários do Estado e agentes de reprodução da ordem social dominante, eles também personificam as esperanças de mobilidade social de diferentes camadas da população. Aqui reside toda a ambiguidade e toda a importância da profissão docente: agentes culturais, eles são também, inevitavelmente, agentes políticos”.

Assim, sua tarefa era resultante de uma vocação, assemelhando-se ao

sacerdócio. É, então, nesta época, que é radicada a imagem do professor

“missionário”, dotado de forte autoridade e prestígio, e que permanece no imaginário

coletivo dos professores e da sociedade em geral até os dias de hoje4.

A essa imagem do professor como missionário, durante o século XX, é

acrescentada a do professor como um trabalhador que precisa ser formado (Tedesco e

Fanfani, 2002), pois até então se aceitava a idéia de que qualquer indivíduo bem

letrado, de boa índole e de reconhecimento na comunidade, poderia exercer este

ofício.

Ao estudar o trabalho sobre o outro, Dubet (2002) traz uma alternativa para

pensar o exercício da profissão de professor, vivendo entre seu estatuto profissional e

seu métier, isto é, entre o lugar que lhe é atribuído no sistema, no plano coletivo, e a

maneira como representa o seu trabalho, na esfera individual. Ele considera que, após

os anos 60, a profissionalização deixa de estar estava ligada à vocação e ao

desenvolvimento do trabalho e passa a ser fundada em uma legitimidade racional, na

eficácia (nos resultados, portanto) e nas competências estabelecidas por processos

legais. Em outras palavras, o registro vocacional e individual dá lugar ao técnico e

coletivo, nascendo, assim, a cultura da avaliação e do controle, o que aponta para uma

mudança na legitimidade e no trabalho, pois passa a existir uma valorização dos

resultados em detrimento dos trabalhadores. Os professores passam a ser experts, que

estão no centro da formação, esta capaz de garantir que eles fossem ser membros

eficazes, com técnicas e competências para trabalhar na organização. Esta perspectiva

anula a possibilidade de o professor ter uma compreensão ampla da sociedade, das

4 Para Dubet (2002), a lógica da ação dos agentes é a do controle social, pois as expectativas eram de que os agentes cumprissem seus papéis, sendo que eles tendiam a ser considerados a encarnação da instituição. O agente seria a sua função de controlador, para que a lei fosse aplicada a todos os cidadãos, que eram iguais.

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instituições, das relações de poder, e o torna incapaz de situar sua profissão no

contexto geral de uma sociedade como a brasileira.

O movimento atingiu o ápice nos anos de 1970, época da “explosão escolar”,

do processo de democratização do acesso à escola. Contudo, com a entrada da escola

no “período das incertezas”, as instituições perderam seus monopólios, houve uma

desestabilização das imagens institucionais e os atores sociais nas escolas passaram

de uma lógica do desempenho de papéis para a lógica da construção da experiência

escolar (Dubet, 2002). A consequência mais importante dessa mutação é a de colocar

como central o trabalho de construção do sentido do trabalho realizado por

professores e estudantes nas escolas.

Com a explosão escolar, os professores tornaram-se o grupo profissional mais

numeroso e com maior visibilidade social. E atravessado pela ambiguidade

fundamental. A situação profissional dos professores mistura elementos de afirmação

profissional com lógicas de desvalorização e de controle autoritário da profissão, o

que faz a imagem da profissão oscilar entre “a mais bela profissão do mundo” até

uma profissão desgastante e perigosa (Nóvoa, 1995a), considerada até mesmo como

uma semiprofissão.

A profissão docente é tomada como uma semiprofissão (Enguita, 1991;

Sacristán, 1999), por um lado, porque foi historicamente se formando com orientação

política externa e, por outro, porque há condicionamento do trabalho ao sistema e às

instituições escolares. Os professores são assalariados e submetidos à autoridade de

seus empregadores, mas lutam por uma autonomia profissional.

Daí, algumas discussões acerca da proletarização do trabalho docente ganharem

força. Algumas teorias críticas sobre a educação argumentam que a escola não

somente se presta a reproduzir as desigualdades sociais, mas também funciona como

um local de trabalho capitalista, ou seja, de trabalho alienado, com o trabalho manual

separado do mental. Os argumentos básicos são que as profissionais do ensino

vendem as suas forças de trabalho, que há uma cisão entre os professores e a

organização do processo, e, ainda, que existe uma intensificação e uma fragmentação

do trabalho, assim como a apropriação do saber do professor (Enguita, 1991; Silva,

1992; Sacristán, 1999).

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Contudo, Nóvoa (1991b) lembra que esse processo de desprofissionalização do

professorado não é compatível com a complexidade atual do ensino e com a

necessidade de o ofício docente se basear em sólidas básicas científicas. Neste último

sentido, o que falta, garante Perrenoud (2001, p.139), é uma “redefinição bastante

radical da natureza das competências que estão na base de uma prática pedagógica

eficaz”. A isso somada a idéia de que a prioridade do ofício docente é resgatar o

sentido do trabalho na escola.

Em relação à ultima etapa do processo de profissionalização dos professores,

quando eles se organizam em associações profissionais, no Brasil, algumas condições

históricas, analisadas por Vicentini (2005), apontam para a heterogeneidade da

categoria, que, ao conceber a profissão de modos distintos, organizou práticas

associativas com estratégias diferentes em cada estado brasileiro, no que se refere à

melhoria do estatuto. Os fatos históricos ligados a esse fenômeno são os seguintes: a

descentralização instituída no Ato Adicional de 1834 separou a educação primária e a

profissional (incluindo a Escola Normal), que ficou a cargo dos estados, do ensino

secundário e superior, sob a tutela da União; as diferenças socioeconômicas em cada

estado do país; assim como o serviço público brasileiro, o magistério oficial foi

proibido de se sindicalizar até 1988; apesar de a atual Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional ter nivelado a formação docente, a distinção identitária entre os

professores do ensino secundário e os das séries iniciais do ensino fundamental

permanece, movida pelas diferenças de público, de formação inicial, nas variações na

forma de organizar as aulas, no tempo de trabalho, na natureza das relações

estabelecidas com os alunos, do tipo de remuneração.

Vicentini (idem) realiza um levantamento histórico sobre as associações

docentes cariocas em jornais e informa que a primeira foi criada em 1931, nos “anos

de ouro” do magistério nacional, pelo magistério secundário particular. A UPP-DF

(União dos professores Primários do Distrito Federal) atual SEPE-Rio (Sindicato da

Educação Estadual), teve vários nomes, mas, em 1979, dividiu-se também em Centro

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Estadual dos Professores do Rio de Janeiro (CEP-RJ), comandou uma greve histórica

e entrou para a clandestinidade5.

Por último, a mesma autora (idem) estuda três grandes greves que marcaram a

profissão e difundiram novas imagens docentes, dando visibilidade a diferentes

concepções da profissão e ao movimento docente. A primeira, em 1956, no Rio de

Janeiro, o magistério particular lutava contra a “indústria do ensino”, momento em

que os professores secundários de escolas particulares pararam para denunciar a

exploração que sofriam dos proprietários de escolas. Em 1963, também em São

Paulo, as professoras primárias lutaram por melhores salários, na primeira greve geral

do professorado, quando, muito bem vestidas, disciplinadas e ordeiras (para se

diferenciarem dos operários), caminhavam, com um sorriso no rosto, contra a

desvalorização salarial, consolidando a imagem dos docentes como profissionais que

precisavam ser bem remunerados. Finalmente, em 1978, os então emergentes

“trabalhadores do ensino” deflagraram, em São Paulo, uma greve à revelia das

principais organizações docentes. Esta greve gerou opiniões contraditórias a respeito

das mudanças, pois registra a emergência de um novo modelo de professor-barbudo,

cabelos compridos e vestidos de calça jeans, que rompia totalmente com a imagem

tradicional da profissão, e que se insurgiu contra a precariedade de sua situação

funcional, simbolizando a expansão desordenada do ensino médio.

Para concluir, devo lembrar que ambiguidade , contradição e paradoxo, fatores

que marcam negativamente a situação profissional dos professores, são indissociáveis

dos processos de mutação dos sistemas escolares, que configuram, não um problema

de eficácia, mas, sim, um problema de legitimidade, articulando de forma necessária

a crise da escola com uma crise da identidade profissional (Canário, 2005).

2. 2. 3 A formação

Parece-me fecundo pensar na formação de professores, antes de mais, como preparação para uma profissão complexa, ou mesmo, segundo Freud, para uma profissão impossível (Perrenoud)

5 Segundo a autora, foram os seguintes os nomes: União dos Professores Primários do Distrito Federal, União dos Professores Primários do Estado da Guanabara, União dos Professores Primários do Rio de Janeiro.

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Às etapas da profissionalização apontadas antes, Nóvoa (1991a) adiciona duas

dimensões de análise, ligadas originalmente ao momento em que é instituída uma

licença para se ensinar, dada pelo Estado. A primeira dimensão refere-se a um

conjunto de conhecimentos e técnicas necessários ao exercício da profissão, e a

segunda, a elaboração de um corpo de normas e valores muito influenciados por

atitudes morais e religiosas. Embora essas normas e esses valores tenham sofrido

mudanças através dos tempos, elas sempre tiveram sob a tutela alheia, primeiro da

Igreja, depois do Estado. Isto fez com que os docentes absorvessem o discurso oficial

como seu, o que certamente impacta a identidade do grupo.

Correia (1991), ao questionar as práticas e os sistemas de formação de

professores, articulando-as com a problemática da identidade profissional e com a

mudança educacional, mostra que a produção histórica do grupo profissional está

intimamente ligada à produção dos Estados Modernos, estes, por sua vez, frutos da

fábrica moderna e da ciência positivista. A ciência cria as condições sociais,

epistemológicas e simbólicas necessárias ao reconhecimento social da especificidade

da “função” docente.

Mas, ao contrário de quando estavam submetidos à Igreja (que parecia perceber

melhor a sua função estratégica), os “novos funcionários públicos” passam a ser

formados em Escolas Normais somente na segunda metade do século XIX, sendo que

a formação dos primeiros professores régios vai acontecendo pela prática docente,

pelos exames de admissão e pela leitura dos compêndios (Mendonça, 2005).

Nóvoa (1995a) e Villela (2000) revelam que as Escolas Normais, mais do que

somente elaborarem conhecimentos pedagógicos no âmbito individual, também

produziram coletivamente a profissão. As Escolas Normais no Brasil do século XIX

criam a “nova” professora do ensino primário, em substituição ao “velho” mestre-

escola, formada e preparada para a atividade docente. Embora o Brasil tenha sido

pioneiro na criação das Escolas Normais, essa formação sofrerá avanços e

retrocessos, reformas, extinções de escolas, durante todo o século XIX.

No início do século XX, ainda na época da “escola das certezas”, na “época de

ouro das escolas”, a formação dos professores adquire importância crucial, com

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reorganização das Escolas Normais; os primeiros cursos de licenciatura do Brasil

passaram a acontecer nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, com a

introdução de disciplinas de formação pedagógica nos currículos. O texto do

Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova apresenta, de forma enfática,

preocupações acerca da profissionalidade do professor dos diferentes graus da escola

brasileira.

Além de dominar os saberes da tradição filosófica, científica e religiosa, para

ser um bom mestre passou a ser preciso o conhecimento e utilização de outros saberes

que garantissem uma boa transmissão desses saberes aos alunos. Era preciso entender

os mecanismos de sua transmissão e de sua apropriação pelos estudantes. Seriam,

então, as Ciências da Educação que dariam o suporte para esse entendimento e

formariam, portanto, o professor.

Ao analisar a formação docente, Ludke (1996) lembra dos conhecimentos

específicos do professor, e procura mostrar que, apesar de o conceito de profissão

docente ser bastante vulnerável, o professor é um profissional crítico, reflexivo,

questionador, que possui um saber esotérico, especializado, típico de seu grupo. O

saber pedagógico é o legitimador do exercício da atividade docente enquanto uma

atividade especializada.

O campo de estudos sobre os conhecimentos e das práticas dos professores teve

um desenvolvimento fulgurante, nos últimos 20 anos, no âmbito qualitativo e

quantitativo, na América e nos países anglo-saxões. Apesar do pouco tempo de

pesquisas, já há, por exemplo, uma enorme diversidade de formas de se delimitar o

que é o termo saber docente, assim como uma certa confusão conceitual, dentro de

uma variedade de correntes alternativas de pesquisas, algumas convergentes, outras,

divergentes.

A partir dos anos de 80, com a expansão do sistema escolar no Brasil, a questão

da formação docente vai ocupar um lugar central nas políticas educativas,

concomitante com a promoção da inovação educativa. A formação inicial e

continuada é vista como uma panacéia para os problemas que afetam os sistemas

escolares. Aquela é baseada na racionalidade técnica e segue a “forma escolar”, cujo

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um modelo é basicamente que a universidade fornece a teoria, os métodos e as

habilidades, a escola constitui o campo prático para este conhecimento, e os

professores entram o esforço individual para aplicar tal conhecimento.

A formação continuada, por sua vez, não se constitui em um domínio

privilegiado de intervenção nem como um espaço de reflexão, mas, sim, tem sido

encarada como uma extensão da formação inicial visando adaptar os professores às

mudanças planejadas, o que se configurou em um conjunto de ações de reciclagem

com objetivo de diminuir a resistência dos professores à “inovação” instituída

(Correa, 1991).

Na verdade, trata-se de mais um reforço à idéia paradoxal que se tem sobre o

trabalho docente: as elevadas expectativas sobre sua ação têm simetria com uma

visão de incompetência para o exercício do ofício.

Ainda sobre a temática da formação docente, vale lembrar a já citada tendência

atual é o reconhecimento da ineficácia da formação dos professores com tempos e

espaços diversos da ação, concomitante ao favorecimento da formação docente

centrada no estabelecimento de ensino. A capacidade de exercício do ofício docente,

além da formação inicial, constitui-se pela autonomia que exerce na escola, diante de

seu trabalho, pela responsabilidade de sua formação permanente, pela capacidade de

aprender e refletir sobre sua ação (Schön, 1995).

Também para Nóvoa (1991b e 1995b), a formação deve estimular uma

perspectiva crítico-reflexiva sobre as práticas, para que o professor possa desenvolver

um pensamento autônomo e (re) construir permanentemente sua identidade pessoal,

porque esta “produz-se num jogo de poderes e de contra-poderes entre imagens que

são portadoras de visões distintas da profissão”. Ainda, ela articula dimensões

individuais, que pertencem à própria pessoa do professor, com outras dimensões

coletivas, estas inscritas na história e nos projetos do coletivo docente (Nóvoa, 2000).

Sendo assim, é fundamental o investimento na pessoa do professor e prioritário dar

estatuto ao saber da experiência.

Nessa perspectiva, compreende-se que as dimensões do ofício docente podem

ser explicitadas tanto do ponto de vista da formação do professor como de sua

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atuação profissional. Não se pode mais pensar na formação docente deslocada de

espaços reais onde se efetivam as trocas entre ensinar e aprender, seja esses espaços

da escola ou outros espaços educativos. Em outros termos, o saber profissional dos

professores é essencialmente produzido nas escolas, a partir de um processo de

socialização que combina processos de conhecimento simbólico com processos de

conhecimentos da experiência (Canário, 2007). Basicamente porque

O professor é uma pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor (Nias, 1991). Urge por isso (re)encontrar espaços de interacção entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida. (Nóvoa, 1995b, p.25)

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3 As escolhas metodológicas

(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (Guimarães Rosa, 1967, p. 52)

Os modos de se realizar uma investigação, as técnicas de coleta e tratamento de

dados, fazem parte do processo de construção do objeto de estudo, ao mesmo tempo

em que deste se originam. Depois de passar cerca de um ano freqüentando

quinzenalmente, às quintas e sextas-feiras, o colégio Viola, para procurar entender o

desempenho diferenciado de seus alunos e o valor da escola para a comunidade de

Vista Alegre, decidi realizar um estudo de caso para conhecer os modos como os

professores (re)constroem o seu ofício e como vivem essa experiência, num contexto

organizacional específico. O meu caso é a escola da dona Clair e sua cultura

organizacional singular.

O termo "estudo de caso" vem de uma tradição de pesquisa médica e refere-se a

uma análise detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de

uma doença dada. O método supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno

adequadamente a partir da exploração intensa de um único caso. Adaptado da

tradição médica, o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de

análise das ciências sociais, sendo que o caso estudado é tipicamente não o de um

indivíduo, mas sim de uma organização ou comunidade (Becker, 1999).

Como já adiantei, este estudo de caso é de base etnográfica. Em termos simples,

uma etnografia é a descrição das práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens,

significados de um grupo social (André, 2005). O estudo de caso etnográfico é, como

sugere o nome, a aplicação da abordagem etnográfica ao estudo de caso (André,

2005, p.30), quando se busca compreender uma unidade e as suas (inter-) relações

com o contexto global. A escolha de um caso se dá pelo fato de ele ser uma instância

de uma classe ou porque ele é interessante por si só, que é a situação da presente

pesquisa. A busca de resultados humanistas e de diferenças culturais costuma ser uma

boa razão para a escolha da metodologia de estudo de caso etnográfico, mas aqui o

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fator que mais contou foi mesmo a singularidade do contexto da escola em meio

rural.

No estudo de caso, busca-se conhecer complexa e completamente a instância

escolhida, sendo que há um interesse maior pelo processo do que pelos resultados,

uma vez que se querem descobrir novas relações, hipóteses, conceitos, e retratar o

dinamismo de uma situação em sua forma cotidiana.

As vantagens dessa última característica (descobertas de novas relações em uma

situação cotidiana) vêm junto com uma desvantagem, pois há o risco de o estudioso

se perder em descrições infinitas e realizar uma análise superficial e inconsistente, ao

acreditar muitas vezes que sua posição é neutra (Fonseca, 1999; André, 2005).

Exatamente por fazer parte do problema, como ressaltou Marcel Mauss, no distante

ano de 1921 (Mauss, 1979), o pesquisador usa seus próprios talentos e habilidades

pessoais, para não falar no conteúdo ético apresentado em suas seleções e descrições

do campo.

Já no final da década de 1970, evidencia-se o interesse dos pesquisadores em

educação pela etnografia, enquanto opção metodológica de pesquisa, e, mais

especificamente, nos estudos do dia-a-dia da sala de aula e da avaliação do currículo

escolar. Como já salientei no capítulo 2, somente a partir dos anos de 1980 o eixo de

análise da instituição escolar deixa de ser macro-estrutural (embalado, de um lado,

pelas “teorias funcionalistas”, e, de outro, pelas “teorias da reprodução”) para se

basear nas ações dos sujeitos em relação às estruturas sociais (Ezpeleta & Rockwell,

1986).

Essas últimas autoras desenvolvem uma análise em que pensam a escola como

um espaço sócio-cultural próprio, no qual há uma trama resultante de um confronto

de interesses. Lembrando, a escola, por um lado, é uma organização oficial do

sistema escolar, com suas características típicas, que definem idealmente as relações

sociais: fluxo de tarefas e de ações em conformidade com regras e leis, e legitimidade

do poder fundada na crença comum de que é justo obedecê-las (Hutmacher, 1992).

Por outro lado, a escola é um processo permanente de construção social, processo este

vivido pelos sujeitos (alunos, professores, funcionários) cotidianamente.

As técnicas associadas à etnografia são a observação participante, a entrevista

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intensiva e a análise de documentos (Ezpeleta & Rockwell, 1986; André, 2005). Na

observação participante, o pesquisador é o principal instrumento de coleta e análise

de dados e tem uma constante interação com a situação estudada, tocando-a e sendo

tocado por ela. Neste período, ao buscar “documentar o não-documentado”, tive

contato direto e prolongado com as pessoas todas que freqüentam a escola, seja na

forma de conversas pelos corredores, pátio e espaços fechados (salas de aula,

secretaria, cozinha, biblioteca), seja na forma de entrevistas individuais ou com

grupos focais (especialmente com os estudantes)1, ou, ainda, com aplicação de

perguntas diretas às turmas e aos professores, diretora, coordenadores, pessoal da

cozinha e da limpeza, a ex-professores, a ex-alunos, a pais de alunos e ex-alunos.

Durante minha estadia, fui considerada uma nova professora da escola, pela já

conhecida carência de profissionais numa escola situada fora de centro urbano.

Depois, uma amiga pessoal de uma professora que além de sujeito atuou como minha

Doc2 (nos termos de Foote-White, 1980). Até que me identificaram apenas como

professora e pesquisadora, mesmo porque eu havia sido colega de escola, por dois

anos, quando adolescente, de duas das professoras estudadas.

Nesse período, exerci várias funções, como dar aula de português, aplicar e

tomar conta de prova de Geografia, fotografar palestra, levar aluno mordido por

cachorro para atendimento no posto médico, ajudar na organização de festas,

acompanhar professoras em pesquisa de campo3.

No entanto, participar do cotidiano da escola, ouvir e ver inúmeras situações de

interação entre as pessoas, não significava que eu fazia parte daquela cultura. Pelo 1 Pedi aos estudantes que respondessem às seguintes perguntas: 1) Qual o valor do colégio Viola na sua vida?; 2) Levante os pontos positivos e negativos de sua escola e explique por quê; 3) A que vocês atribuem o bom desempenho dos alunos dessa escola no ENEM? Dos 74 alunos do ensino médio no ano de 2005, 52 o responderam. A todos os professores foram feitas as mesmas perguntas. Em um segundo momento, adicionei às anteriores uma pergunta acerca da construção das fábricas na redondeza, porque queria saber se isso afetava de alguma modo a visão de escola que eles tinham. Quase todos os respondentes (estudantes e professores) viam com bons olhos a novidade, sendo que alguns professores se mostravam assustados com tamanha mudança na ordem econômica local e com a chegada de novos moradores à vila. 2 O “Doc” seria um colaborador da pesquisa proveniente do meio pesquisado; no caso, a professora Sofia, também psicóloga, e com quem tinha uma relação anterior e fora da escola. 3 Atividade esta que me fez conhecer lugares inusitados, como o cartório e o pequeno cemitério local, pesquisados pelas professoras na busca de informações históricas sobre a comunidade, que completava 100 anos em 2006.

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contrário, na busca das significações do outro, muitas vezes tive que empreender uma

busca para entender as lógicas vividas, quase sempre diferentes das minhas, e, ainda,

conceber a existência de um mundo tão “familiar”, uma escola, mas, ao mesmo, tão

diferente do meu atual. Foi preciso “estranhar o familiar” (Velho, 1981) e ultrapassar

meus próprios valores.

O que nem sempre foi fácil, porque se sabe que no estudo etnográfico o

pesquisador carrega consigo para o campo sua subjetividade, que é também um

componente essencial da análise (Fonseca, 1999). Devo citar, por exemplo, que tive

um certo preconceito com a religiosidade presente na escola, realidade que me levou

a uma breve discussão, no ano que iniciei o trabalho, com a professora de religião,

que no corredor tentava convencer um grupo de jovens a participar de uma discussão

acerca do aborto e, ao mesmo tempo, a mim que sua postura era imparcial, de

fornecer apenas informação “neutra”. A pesquisadora arrependeu-se pela intromissão

de imediato, porque cabia a mim “ver” e “ouvir”, mais do que falar, embora devo

confessar que minha “pessoa” saiu dali aliviada.

Além desse “conflito cultural” (explícito, no caso) entre o olhar da

“estrangeira” e da professora de religião, tive que reconhecer a existência de

diferentes grupos dentro da própria escola, entre estudantes e professores e entre os

próprios professores. Dentre estes, há uma visão da escola como o espaço de trabalho

e de disputas pelo poder, por um lado, e uma outra concepção clara da escola como

uma continuação de sua casa, de sua família de origem. Por sua vez, para os

estudantes, a escola está ligada à possibilidade de um futuro melhor e, no presente,

configura-se no espaço do encontro e na possibilidade do lazer. Como mostro

detalhadamente nos próximos capítulos.

Constatar a complexidade desse contexto e saber situar os grupos foi

fundamental para a continuação do trabalho, que, em termos metodológicos, teve dois

períodos distintos. Em primeiro momento, realizei entrevistas com informantes

“privilegiados”, analisei documentos e apliquei um questionário a todos os alunos e

aos professores. Num segundo tempo da empiria, a partir do terceiro ano de pesquisa,

foram realizadas as entrevistas na linha de histórias de vida, a mais importante fonte

dos meus dados.

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As primeiras entrevistas foram realizadas de diversas formas (breves entrevistas

individuais ou em grupo, aplicação de perguntas dirigidas a todos os alunos do ensino

médio), com diversos sujeitos (estudantes e ex-estudantes, professores e ex-

professores, pessoal de apoio, direção, presidente da Associação de Moradores local).

Depois, optei por aplicar um questionário a todos os alunos e professores, a fim de

conhecer suas realidades sociais, econômicas e culturais. Isso porque a escola não

dispunha desses dados, fato que tomei ciência quando iniciei a análise dos

documentos escolares, a saber: o censo escolar, o projeto político pedagógico e suas

atualizações, as avaliações do Programa Nova Escola, além de inúmeros ofícios

enviados à burocracia estadual e federal.

Um mês depois da aplicação dos questionários, o que aconteceu em março de

20074, realizei três entrevistas com a direção/coordenação: uma entrevista

aprofundada com dona Clair, para conhecer sua trajetória de vida, seu exercício da

gestão da escola e a imagem que tem de seus professores; outra, na mesma linha, com

sua filha, que além de professora de Geografia e sujeito da pesquisa, desempenha a

função, oficiosamente, de vice-diretora e atualmente de diretora; finalmente,

entrevistei por e-mail a coordenadora pedagógica, a fim de entender melhor os

seguintes aspectos: a equipe técnica, a visão que tem dos resultados escolares, das

metas e objetivos pedagógicos do colégio, da organização escolar; o perfil do quadro

docente e das estratégias de orientação pedagógico-educacional, além do

relacionamento interpessoal entre os professores; as expectativas sobre o desempenho

dos estudantes e de suas aprendizagens; e, finalmente, do relacionamento escola,

família e comunidade.

A seguir, explicito o caminho percorrido para elaboração, aplicação e

tratamento dos dados dos questionários, e, depois, discuto a escolha da abordagem

biográfica como técnica privilegiada. Mas antes, devo apresentar, aqui, para

completar a minha linha de orientação de estudo, a idéia de Geertz, para quem

4 Por rigor, devo dizer que no planejamento inicial esta aplicação dos questionários estava prevista para o fim do segundo ano de trabalho de campo, em novembro de 2006, mas teve que ser atrasada por quatro meses, porque sofri um acidente de carro a caminho da escola, período que coincidiu, felizmente, com parte das férias escolares.

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O locus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. Você pode estudar coisas em diferentes locais, e algumas coisas (...) podem ser melhor estudadas em localidades isoladas. Isso não faz do lugar o que você está estudando. (Geertz, 1978, p.16).

3. 1 Questionários

A construção de um questionário (anexo 2) é um processo longo, mas que

explicito brevemente. Em um primeiro momento, deve-se ter clareza sobre os

conceitos que se quer conhecer (Babbie, 1999), e isso eu já tinha. Para estudar as

práticas docentes, sabia que também precisava conhecer mais claramente também a

vida dos alunos, seus capitais culturais e econômicos, além de obter uma razoável

caracterização sociodemográfica dos sujeitos. Isto por estar convicta de que não se

pode pensar de modo dissociado o trabalho de professores e os alunos (Perrenoud,

1995), porque é na escola, com os alunos, que os professores aprendem a sua

profissão, idéia que aparece na forma escrita pela primeira vez com Guimarães Rosa,

em 1967, é retomada por Paulo Freire em 1997, e que serve de inspiração para se

pensar o ofício docente na atualidade.

Depois, sabe-se que os conceitos são baseados em referências teóricas ou

empíricas pré-determinadas, que ajudam a clarear o sentido de alguns conceitos tidos

como pressupostos. É isso o que se pretendia entender com a aplicação de

questionários, uma vez que tais conceitos podem ser observáveis e operacionalizados

na forma de um questionário. Acontece que há conceitos nas ciências sociais que nem

sempre podem ser acessados diretamente, uma vez que podem evocar diversas

imagens e noções para diferentes pesquisadores; por isto, são classificados como

latentes. O pesquisador precisa, então, especificar as imagens, ou seja, as

manifestações evocadas pelos conceitos, mas principalmente ter clareza de que está

medindo um conceito oculto.

Nesta pesquisa, algumas manifestações latentes de conceitos foram observadas

e/ou colhidas na forma de breves entrevistas com os estudantes, durante três meses,

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antes da definição final do instrumento. Concomitantemente, os questionários do

SAEB 2001 (Brasil, 2001) e do GERES (PUC-

RIO/UFMG/UFJF/UFBA/UNICAMP/UEMS, 2005) foram sendo estudados e

serviram de inspiração para a confecção do instrumento (o anexo 3 apresenta um

quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização com os itens dos

questionários dos alunos e dos professores).

Para conhecer o status socioeconômico da comunidade escolar, tomei por base

alguns conceitos sugeridos nessas obras. O primeiro que interessava para esta

pesquisa era o de capital cultural, conceito este incorporado aos estudos na área da

educação a partir dos trabalhos de Bourdieu5. Este tipo de capital se relaciona aos

valores, aos modos de comunicação e às vantagens culturais e sociais que indivíduos

ou famílias possuem. Possuir capital cultural significa ter competência social e

lingüística para traduzir os códigos culturais de mais alto nível. Embora não haja

consenso sobre a melhor forma de conhecê-lo, sabemos que ele se manifesta através

dos hábitos culturais, sejam os de leitura, de freqüência a cinema, de assiduidade na

assistência à televisão ou à escuta de música, práticas que definem um ambiente mais

favorável ou não para as realizações educativas. Os itens do questionário buscavam

essas práticas culturais observáveis, além do apoio familiar às mesmas, medidas

também pela escolaridade dos pais, incluindo aquelas mais latentes, como a

disponibilidade de recursos educacionais e culturais em casa (livros, CDs, local

apropriado para a feitura do dever de casa).

Outro conceito presente nesta área é o de capital econômico, freqüentemente

medido por meio da renda ou riqueza familiar, assim como pela situação de bem-estar

material dos domicílios expressa pelas condições de moradia. As perguntas versavam

sobre a existência dos seguintes itens: banheiro separado de quarto, rádio, televisão,

videocassete ou DVD, computador, máquina de lavar roupa, automóvel, antena

parabólica, telefone celular (o item telefone foi omitido, pois é sabido que são raros

os aparelhos disponíveis na região).

5 Para Bourdieu (2004), o capital cultural, que pode variar em volume e estrutura, encontra-se em três estados, a saber: incorporado na pessoa (inculcado e assimilado como um bronzeado no corpo); objetivado em suportes materiais (como escritos, pinturas, monumentos etc); ainda, institucionalizado em diplomas.

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Seguindo o trabalho proposto pelo SAEB 2001, o item do questionário dos

estudantes relacionado a outro conceito pesquisado, o capital social, foi medido por

questão relativa ao número de vezes que o mesmo já mudou de escola, pois isso

indica vínculo social estabelecido com a comunidade escolar. Ainda para medir essa

quantidade de vínculos estabelecidos com o local em que o aluno vive, uma pergunta

sobre a freqüência a igrejas.

O último aspecto analisado foi a caracterização sociodemográfica e os

discriminantes individuais considerados nesta pesquisa foram o sexo, a idade e a

composição familiar (com quem mora).

Após a definição desses conceitos, passou-se à formulação dos itens do

questionário, cuja primeira versão foi validada na realização de um pré-teste com

dezessete responsáveis da escola. Depois, uma série de ajustes no tocante à

formulação, à organização das questões e mesmo ao conteúdo foi empreendida,

confirmando a idéia de Babbie (2005), para quem a pré-testagem pode garantir a

criação de dados úteis, além de detectar falhas na estrutura, ou, ainda, linguagem

difícil, questões supérfluas ou que causam constrangimento ao respondente. A fase

em que este mesmo autor chama de validação de face (uma avaliação conceitual do

instrumento) foi realizada com a ajuda de duas colegas da pós-graduação,

especialistas em pesquisas quantitativas, que também sugeriram algumas mudanças

tanto no conteúdo como na forma de apresentação das perguntas.

Em relação a esta última questão, a formatação de um questionário é tão

importante quanto a natureza e a redação das perguntas. Tive cuidado com a

distribuição equilibrada das questões, e maximizei o “espaço em branco”. Para

Babbie (idem), “Pesquisadores inexperientes tendem a temer que seus questionários

possam parecer muito longos e, por isto, apertam várias perguntas na mesma linha,

abreviam perguntas, tentam usar o menor número de páginas possível. Tudo isto é

desaconselhável e mesmo perigoso” (Babbie, idem, p.199). Isso sem esquecer, ainda

seguindo orientação do autor, de buscar tornar os itens mais claros, objetivos e

concisos. Da mesma forma, os itens foram aleatoriamente ordenados e os que

buscavam conhecer o perfil sociodemográfico dos alunos ocuparam a primeira

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página, para garantir uma familiaridade com as questões, mas antes incluí uma breve

mensagem de convite à participação.

Uma vez que todos os estudantes da escola eram respondentes e que a direção

tinha interesse em conhecer tais dados, ficou combinado que a aplicação do

questionário aconteceria durante o horário de aula. Para minimizar os transtornos da

interrupção dos trabalhos, elas foram agendadas antes com o/a professor/a. O trabalho

começou com as turmas de 5ª. a 8ª. série e do ensino médio e os alunos mais velhos

foram convidados a ajudar na aplicação aos mais novos, da educação infantil e dos

primeiros segmentos do ensino fundamental, ajuda esta que foi fundamental para a

conclusão da tarefa a contento, pois sem as quatro voluntárias o mesmo teria se

arrastado por um longo tempo. Houve um total de 309 estudantes respondentes.

Em relação aos professores, apliquei o questionário em forma de perguntas que

fazia diretamente antes de iniciar as entrevistas. Acredito que minha presença tenha

sido fundamental em todo o processo de operacionalização da aplicação dos

questionários, tanto dos estudantes como dos professores, reduzindo a quantidade de

dados faltantes, além de evitar confusões ou mal entendidos em relação aos itens e

diminuindo eventuais perdas dos dados. Outro aspecto diz respeito à sensibilização,

muitas vezes necessária, para que o respondente se sentisse motivado e seguro no

preenchimento do questionário (Babbie, idem).

Com a finalização do trabalho de campo com os questionários, os mesmos

foram tabulados, e análises estatísticas dos dados foram sendo geradas. Devo lembrar,

ainda, que embora teoricamente se saiba que os múltiplos fenômenos revelados pelas

observações do investigador devam ser todos incorporados ao seu relato do grupo e

depois receber atribuição de relevância teórica, considerei utópico ver, descrever e

descobrir a relevância teórica de tudo, e terminei me concentrando em alguns

aspectos, quando estes se relacionavam ao trabalho docente naquela escola.

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3.2 Abordagem biográfica: elementos metodológicos, vantagens e limitações

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasas importâncias. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar,

cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. (Guimarães Rosa)

Uma vez mais considero, com Guimarães Rosa lá no início do capítulo, para

quem o caminho se faz no caminhar, que os procedimentos metodológicos de uma

pesquisa, ao mesmo tempo em que são construídos junto com a mesma, também dela

decorrem. Para compreender as diversas maneiras de se (re)construir o ofício docente

em um contexto rural, considerei a abordagem biográfica como a estratégia

metodológica mais apropriada, uma vez que ela é capaz de fornecer uma

interpretação do social, resguardando, ao mesmo tempo, a especificidade de cada

pessoa.

De fato, a história de vida vem sendo considerada como um procedimento de

investigação promissor para se penetrar de forma mais profunda e significativamente

nos processos de constituição de identidades profissionais. No processo de “produção

de si” (Bourdieu, 2005) dos professores, há certamente muitos elementos que

contribuem para a compreensão dos processos de

construção/desconstrução/reconstrução de identidades profissionais, tanto em sua

singularidade como em sua generalidade.

Ao estudar vidas de professores, Nóvoa (1992b) lançou mão da relação entre a

pessoa do professor e sua profissão para compreender os significados do trabalho

docente em trajetórias individuais, nas quais notou a impossibilidade de separação

entre o eu pessoal e o eu profissional, numa profissão muito impregnada de valores e

ideais e exigente no que se refere ao empenhamento e à relação humana. Desta forma,

verificou que as histórias de vida dos professores compõem um todo orgânico que

une a instância pessoal com a dimensão profissional.

Assim também, para Queiroz (1988, p.36), “A história de vida é, portanto,

técnica que capta o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social”. As

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histórias de vida “se colocam justamente no ponto de intersecção das relações entre o

que é exterior ao indivíduo e o que ele traz em seu íntimo” (idem, ibidem, p. 40).

No entanto, o recurso do método biográfico foi uma perspectiva metodológica

pouco usada no século XX pelos teóricos das ciências sociais, com exceção dos

poloneses e dos sociólogos da Escola de Chicago, portanto, nos anos de 1920 e 1930

(Bueno, 2002). No Brasil, ele surgiu nos anos 1940 e início de 1950, mas depois

desapareceu, retomando após os anos de 1980 (Queiroz, 1988; Bueno, 2002). A

chegada tardia das histórias de vida no discurso sociológico foi referida por Bourdieu

(2005, p.74) como “(...) uma dessas noções do senso comum que entraram de

contrabando no universo do saber”.

A entrada do método como “contrabando” se deveu basicamente a dois fatores

ligados ao mau uso do mesmo. O primeiro fator foi que, na tentativa que se fez em

transformá-lo em método científico, adaptado, portanto, aos métodos tradicionais das

ciências sociais, buscava-se estabelecer hipóteses prévias e quantificar os seus

produtos, o que, em última análise, mostrava uma total incompreensão do valor do

conhecimento que o método atribui à subjetividade. Outro uso equivocado do método

era o de tomar uma biografia não como fonte possível para novos conhecimentos,

mas apenas como exemplo para ilustrar as hipóteses levantadas e os problemas

estudados (Ferrarotti, 1988).

Embora a história de vida seja um procedimento de grande utilidade para

levantamento de questões de um tema sobre o qual se têm poucos conhecimentos,

como é o caso desse estudo, ela demanda longo tempo e, às vezes, vários encontros, o

que nem sempre é possível em uma pesquisa com prazo certo para terminar. Diante

disso, apesar de usar material biográfico primário, recolhido, portanto, através de

entrevistas gravadas, optei por narrativas na linha de história de vida.

A narrativa de vida não corresponde à própria vida, mas apenas a uma

reestruturação que a pessoa faz da sua vida, como nos alerta o personagem Riobaldo,

de Grande Sertão: Veredas, no início desse segmento. As lógicas de narração de

cada “vivimento” da pessoa pertencem a diferentes pessoas. Assim, o narrador

seleciona e privilegia os elementos que lhe parecem ter mais sentido, ou até mesmo

que acredita interessar ao entrevistador. Afinal, quem conta uma história o faz para

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alguém, o que requer um posicionamento em relação ao outro, mas também a si

mesmo e com relação àquilo que está sendo narrado.

Para Ferrarotii (1998), a narrativa é uma micro-relação social completa (com

papéis, expectativas, normas e valores) e o entrevistador deve assumi-la como uma

interação natural, uma comunicação. Idéia explicitada assim pelo grande narrador

Riobaldo: “Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me

ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as

coisas que formaram passado para mim com mais pertença” (Rosa, 1967, p. 79).

Narrar seria, desta forma, um processo instaurador de realidades sociais.

Segundo Bruner (1997, p.64), “a narrativa não é simplesmente uma forma de texto,

mas é um modo de pensamento”, que revela um saber. E que se realiza numa prática

dialógica, criadora de sentidos para a vida social, que envolve conhecimentos de

convenções retóricas e interacionais por parte de uma comunidade. A entrevista é um

exemplo desta prática.

Das diversas “micro-relações” sociais que estabeleci com os diferentes sujeitos

do contexto estudado, descrevo, a seguir, a escolha, realização e tratamentos dos

dados das entrevistas biográficas.

3.2.1 Entrevistas biográficas

Os relatos dos professores foram colhidos através de entrevista biográfica,

considerada a forma mais antiga e conhecida de coleta de depoimentos. Tem sido

considerada a técnica, pois ela permite a identificação dos momentos-chave, a partir

dos quais se pode determinar o que foi relevante para a construção das identidades

profissionais.

Por outro lado, cuidado especial deve-se dar ao fato de ela ser também

potencialmente disvirtuadora dos relatos (Queiroz, 1988). Tal opção metodológica

ainda traz outros problemas, que levanto de forma esquemática: 1) a questão da

subjetividade exacerbada pela história pessoal, o que pode levar à perda dos aspectos

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políticos e sociais (Goodson, 2003); 2) a questão ética de identificação dos depoentes,

o que deve ocupar lugar central na investigação (idem); 3) o texto escrito, a ser

analisado, não corresponde à memória falada, por mais que se seja cuidadoso na

transcrição (Lelis, 1996).

Sobre a questão da subjetividade, além do que já foi apresentado anteriormente

em relação aos cuidados que deve ter o pesquisador no uso da biografia, cabe trazer

mais uma vez Ferrarotti (1988, p.26), para quem “O nosso sistema social encontra-se

integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios,

obras, comportamentos. E a história deste sistema está contida por inteiro na história

da nossa vida individual”. Assim, para o autor, a questão de como a subjetividade

contida nas narrativas pode vir a se tornar objeto de conhecimento científico é

absolutamente destituída de sentido.

O segundo problema levantado acerca da utilização de entrevistas biográficas,

ou seja, a questão ética da identificação, o cuidado refere-se à manutenção do

contrato realizado com os sujeitos na preservação da confidencialidade e do

anonimato. Nesta pesquisa este problema se coloca e procurei minimizá-lo dando

nomes fictícios aos entrevistados, à escola e ao espaço geográfico de sua localização.

No que se refere à transcrição, tentei ser fiel às falas dos professores, incluindo

um parêntesis em caso de interrupção de uma frase, e, ainda, marcando os silêncios,

uma vez que “é tão importante o que dizem como o que omitem” (Canário, 2007b).

Entretanto, optei por retirar repetições e interjeições repetitivas, comumente usadas

no discurso oral. Por outro lado, mantive algumas repetições que considerei

significativas, como, por exemplo, uma entrevista em que a professora repetiu

centenas de vezes o meu nome, o que conclui tratar-se de uma busca de intimidade e

de simetria. Ao final, uma cópia da transcrição foi dada a todos os professores a quem

foi pedida uma conferência em relação à entrevista dada.

Bourdieu (2003) alerta para a dissimetria da situação de entrevista, uma vez que

o pesquisador ocupa uma posição superior a do pesquisado, ele inicia o jogo e

estabelece as suas regras, os objetivos e os hábitos. O autor nos alerta aqui para uma

hierarquia dos diferentes tipos de capital, principalmente do capital cultural. Sugere

que a diminuição dessa dissimetria (ligada à distância social entre pesquisador e

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pesquisado) pode acontecer com um “exercício espiritual” de ser capaz de se colocar

no lugar do outro no pensamento. Concluindo, a entrevista, para Bourdieu (2003),

pode se transformar em um “discurso extraordinário” se convertida numa forma de

(...) exercício espiritual, visando a obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os problemas do pesquisado, a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como é, na sua necessidade singular é uma espécie de amor intelectual (...)” (Bourdieu, 2003, p.704)

Ainda em relação aos necessários cuidados na atitude do pesquisador durante a

entrevista, quero lembrar do respeito ao entrevistado, sugerido por Sennet (2004,

p.55), traduzido na habilidade “(...) em calibrar distâncias sociais sem deixar o

entrevistado se sentir um inseto sob o microscópio”. E, ainda, na atenção ao

etnocentrismo: “Um entrevistador deve usar sua experiência para compreender os

outros, em vez de ouvir os ecos de sua própria vida (...) A lição parece ser: se você os

respeita, não se projete neles”.

Aprendidas as lições de amor intelectual e de respeito, dediquei-me aos

cuidados necessários para realizar as entrevistas de uma maneira bem informada. Para

isso, li vários estudos, mas usei como maior referência o Manual da História Oral

(Alberti, 2005), que traz sugestões de ordem prática acerca da preparação de uma

entrevista, da elaboração de um roteiro, da realização (local, material, presença de

outras pessoas, a melhor forma de conduzir), do encerramento e, finalmente, do

tratamento do acervo.

Para a entrevista, confeccionei um roteiro cujas questões versam acerca das

trajetórias familiares, escolares e profissionais dos professores (anexo 4). A fim de

economizar tempo, optei por aplicar o questionário de levantamento de dados sócio-

econômico e culturais aos professores, que, como já comentei, tem forma e

fundamentação teórica similares ao dos estudantes. O que variou foi a introdução de

algumas perguntas típicas do ofício, como o tempo da experiência docente e o tipo de

escola em que lecionam (anexo 5).

O critério da escolha da amostra foi baseado no tempo de um mínimo de 10

anos de experiência docente na escola, situado, portanto, dentro do período

caracterizado por Huberman (1992) como o de total integração dos docentes no

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estabelecimento (lembro que considerado elemento central na construção do ofício

docente), assim como por uma independência e domínio de conteúdos e métodos.

Um total de 15 professores compõe a amostra, o que corresponde a 62,5% do

quadro de docentes do colégio Viola. São 75% de mulheres e 25% de homens que

lecionam nos níveis a seguir estas matérias: na primeira, segunda e terceira-série

iniciais e numa turma de aceleração; ciências, matemática, português e artes, para

quinta e sexta séries; educação física, inglês, história, geografia para todas as turmas a

partir da quinta-série; língua portuguesa para ensino médio; filosofia e sociologia,

ensino médio.

As entrevistas foram objeto de uma análise uma a uma, com o objetivo de se

identificarem a sua estrutura e o seu sentido, para, a partir daí, buscar captar o modo

como se articulam a dimensão biográfica e a dimensão contextual para cada um dos

profissionais. Assim, num primeiro momento fez-se uma leitura flutuante das

narrativas, quando foram identificados os momentos e acontecimentos chave da vida

dos professores e os temas abordados, o que permitiu a definição dos temas para a

análise do conteúdo, a partir de sua articulação com os objetivos da pesquisa.

Desta forma, explicito os sentidos que os professores dão a si mesmos, ou seja,

as imagens que têm de si. Depois, busco mostrar que sentidos eles dão para a escola e

para seus estudantes, momento a partir do qual passo a operar com a gramática dos

espaços de Roberto DaMatta (1997). Assim, os sentidos eles dão às suas práticas

cotidianas na sala de aula são cotejados numa perspectiva tanto “da casa”, como “da

rua”, como “do quintal”, ou seja, numa perspectiva pessoal e profissional.

A análise de conteúdo usada permite a identificação das variações individuais e

as recorrências entre as várias entrevistas, o que auxilia nas descrições das

semelhanças e especificidades das identidades dos professores. Vale ressaltar que

privilegiei um estilo narrativo também durante a análise.

As entrevistas foram agendadas pessoalmente ou por telefone, quando lhes

explicava que, de fato, não estava pesquisando a escola da dona Clair, mas os

professores que atuavam há mais tempo lá, momento em que brincava dizendo que

“queria descobrir qual o segredo deles que justificasse o bom desempenho no

ENEM”. Acredito que esta abordagem foi bem recebida por todos. Apenas duas

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entrevistadas pareceram claramente resistentes à entrevista, pois alegavam sempre

falta de tempo, resistências que foram vencidas de duas formas: aceitando realizar a

conversa na escola mesmo, durante um intervalo de aulas vagas (chamadas por eles

de “caixote”) e, no outro caso, esperando até as férias de julho.

Onze das quinze entrevistas foram realizadas nas casas dos próprios

professores, duas em minha casa de sítio, uma na própria escola e uma em um

restaurante situado em uma fazenda, no período de abril a julho de 2007. Tentei, de

início, realizar as entrevistas nas casas dos professores, pois queria ter um tempo mais

alargado para a conversa e, ainda, conhecer um espaço pessoal deles.

Antes de começar a gravar, tive o cuidado de explicar a pesquisa e falar da

importância do depoimento da pessoa para ela, além de lembrar da liberdade de se

responder àquilo que quisesse e/ou se pedir para desligar o computador, o que

aconteceu durante duas entrevistas. Por último, tocava na questão da privacidade das

informações dadas, o que começava pela mudança nos nomes, momento em que

pedia uma sugestão de um nome para o entrevistado (com pedido de justificativa pela

escolha), o que foi atendido por dez deles.

A transcrição das entrevistas foi feita pessoalmente por mim, porque não gostei

do resultado de uma única tentativa de pedir a alguém que me ajudasse. Apesar do

enorme trabalho, que durou três meses, penso que ele foi muito frutuoso, porque me

ajudou a iniciar a análise dos dados e a modificar a forma de realizar as entrevistas

seguintes, quando algumas perguntas geradoras de depoimento foram mudadas e

outras trocadas de lugar. Foram cerca de 25 horas de gravação, que totalizaram 193

páginas transcritas.

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4 A Escola-da-dona-Clair

Quando dona Clair não está lá parece que ela está lá. Às vezes eu chego: gente dona Clair não está aí? Parece que eu tinha visto dona Clair. Juro! Isso aconteceu comigo mil

vezes, porque ela é uma presença tão marcante na escola! A escola de dona Clair. (professora Tarsila– séries iniciais)

Neste capítulo, faço uma “pública” descrição “inspecionável” da “teia de

significados” (Geertz, 1978) da escola.

4.1 A escola e o contexto local

Imagine-se de repente saindo de um carro, braços ocupados pelo material de

trabalho (caderno e máquina fotográfica), só, num pequeno lugarejo cujo ar cheira a

flor e a fumaça de fogão de lenha, de rua única, com algumas poucas casas e lojas,

uma igrejinha católica em reforma, mais de uma igreja protestante e uma escola. A

escola de Vista Alegre tinha, em abril de 2005, quando lá cheguei pela primeira vez,

suas paredes brancas salpicadas de muitos desenhos coloridos que, descubro depois,

foram feitos por todos os estudantes e professores no ano de 2004. Em 2006, por

ocasião da comemoração do centenário do distrito de Vista Alegre, o muro da escola

foi coberto por uma tinta branca, e em 2007, um projeto da professora de desenho

pretendia integrar os jovens da localidade e grafiteiros do Rio de Janeiro que iriam

pintá-lo.

O muro é o limite entre o “mundo da escola” e o “mundo de fora” e marca um

novo cenário que eu estava prestes a conhecer. A primeira impressão é que a escola

estava vazia, tal o silêncio ao meu redor. Toquei a campainha ao lado do portão azul

trancado e esperei ansiosa, preocupada em me ajeitar depois da longa viagem, ajustar-

me e ser aceita1.

1 Inicio esta descrição inspirada em Malinowski (1980).

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4.1.1 Vista Alegre: uma localidade em franca expansão

Vista Alegre é um distrito centenário de um pequeno município do interior do

estado do Rio de Janeiro, com 22.857 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE, 2007), que vivem principalmente da agropecuária,

embora desde 2006 nada menos do que quatro indústrias (embalagens e potes

plásticos, ração, fralda descartável) foram criadas na região2, somando-se a algumas

pequenas e caseiras confecções de moda íntima.

No distrito vivem cerca de três mil pessoas, a maioria das quais pequenos

agricultores familiares descendentes de colonizadores portugueses, suíços e alemães,

que começaram a chegar à região em meados do século XIX. A cultura cafeeira foi a

principal atividade agrícola e perdurou por muito tempo, até entrar em declínio e ser

complementada pela chamada “lavoura branca” (cultivo de inhame, batatas,

hortaliças etc), comercializada nos centros urbanos do sul do estado do Rio. Os

pequenos e médios proprietários cultivam, ainda, as lavouras de subsistência, como o

arroz, feijão e frutas.

É cada vez menos comum as pessoas da vila se reunirem à frente das casas, ao

fim do dia, para conversarem, “como uma grande família”, o que era uma prática

cotidiana até uns cinco anos atrás, segundo lembram alguns moradores. Neste

momento, trocavam-se as notícias do mundo e planejavam-se as próximas festas,

geralmente ligadas a uma igreja. As festas são de devoção a santos, às vezes, com

danças, como a apresentação da Quadrilha Pé de Fogo, formadas por adultos e jovens

do lugar e redondezas, dentre os quais duas das professoras estudadas na presente

pesquisa. Elas costumam ser aproveitadas para arrecadação de fundos em favor de

alguma instituição, como a escola ou a igreja católica, por exemplo. Ainda existe um

“calendário de pedir”, acordado entre os moradores mais antigos, para que cada

2 As indústrias foram criadas por incentivo do atual prefeito, que tenta modificar a economia predominantemente rural da região a todo custo, mesmo que isso signifique isenção de impostos municipais e sufocação de uma tendência natural da região ao turismo e à produção agrícola familiar. Ainda não foi possível avaliar o impacto desse fato na vida dos moradores, mas os estudantes e professores estavam divididos entre a aceitação com esperança de emprego nas fábricas e o repúdio, sendo que a primeira tendência era da maioria.

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instituição tenha a vez na realização de almoços beneficentes, brechós etc: “a gente

pede, vende, anuncia, implora” , afirma uma moradora.

Há cinco anos, o fazendeiro dono das terras ao redor da centenária vila criou um

loteamento, sem nenhuma infra-estrutura básica, como água, esgoto e luz, para o qual

se mudaram 180 famílias, o que causou um forte impacto na vida social e econômica

do lugar, pois chegaram muitas “pessoas diferentes” segundo os moradores mais

antigos.

Em agosto de 1997, foi criada a Associação de Moradores, Produtores Rurais e

Artesãos de Vista Alegre, por iniciativa de um grupo de moradores que tentava

diminuir a quantidade de incêndios indiscriminados e incontroláveis, atividade muito

comum entre os agricultores da região para limpeza do terreno antes do plantio. Além

disso, no início de sua existência, a Associação lutava pelo asfaltamento da estrada

principal do lugar que o liga ao centro urbano e pela reativação do posto de saúde

comunitário, fechado há anos. Trata-se de um fórum aberto de discussões de questões

gerais da comunidade, que são encaminhadas aos poderes constituídos e às

instituições privadas (como a empresa de luz, por exemplo). As reuniões acontecem

uma vez por mês e a escola é um dos locais usados pelos moradores para buscar

apoio a ações também relacionadas às manifestações culturais locais e pela melhoria

da educação. O asfalto chegou há sete anos e o posto foi reaberto, com a implantação

do Programa Médico de Família. Mesmo assim, passados onze anos, o problema dos

incêndios continua, pois em agosto de 2007, um dia depois de uma grande festa

comunitária, durante a qual houve a criação de um circuito turístico, o fogo destruiu

toda a vegetação do lugar, o que desencadeou uma nova campanha da Associação

junto aos moradores, no sentido de sensibilizar, informar e cobrar compromisso por

escrito de mudança na prática.

Apesar dos problemas, a infra-estrutura da comunidade é boa quando

comparada a outras regiões do país, pois há energia elétrica em muitas propriedades

rurais, as estradas de acesso são trafegáveis durante o ano todo, com raras exceções.

A comunidade tem sofrido com a enorme queda da produção agrícola e a dificuldade

na comercialização dos produtos, o que faz com que muitos jovens busquem outras

opções nos centros urbanos. Como grandes problemas sociais locais, a falta de

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emprego para os jovens e o alcoolismo podem ser citados, ambos aparentemente

relacionados entre si.

Segundo os últimos dados do IBGE, 55,3% da população brasileira era rural em

1960 e diminuiu para 18% em 2002. No entanto, acredita-se que esses dados estão

subestimados, porque a definição de rural utilizada pelo IBGE não incorpora com

fidedignidade a ruralidade discutida anteriormente e existente no Brasil. Segundo

Veiga (2002), os censos demográficos obrigam os municípios a indicar sua zona

urbana e rural, chegando-se a uma contagem como urbana de toda a população de

pequenos municípios com baixa densidade populacional, valores e cultura

essencialmente rurais. A estratificação proposta por Veiga (na qual ele utiliza-se de

critérios usados internacionalmente para a localização dos municípios, densidade

demográfica e tamanho de sua população) indica um total de 4.490 municípios que

deveriam ser classificados como rurais e a população essencialmente urbana em 58%.

Embora a escola de Vista Alegre seja catalogada pela Secretaria Estadual de

Educação como urbana, por estar localizada dentro da vila, a região é marcadamente

rural, um conceito, como mostrei, bastante controverso. A decisão adotada neste

estudo é a do IBGE: educação rural é definida como a educação de alunos que

residem em áreas rurais, aquelas que são externas ao perímetro urbano. Como

apontou Carneiro (1998), rural acaba sendo considerado aquilo que está fora dos

referenciais urbanos. Mas a opção se deu porque a maioria dos estudos e das

estatísticas governamentais sobre educação rural faz uso dela, o que facilitou o acesso

aos dados. Por outro lado, cuidado foi tomado na análise do censo escolar, em que ela

aparecia com a qualificação urbana.

4.1.2 Caracterização social dos pais

Mais da metade dos estudantes da escola de Vista Alegre (55,2%) é filho (a) de

pequenos sitiantes e trabalhadores assalariados de fazendas ou sítios. Outro grande

número de estudantes (cerca de 44,3%) é de “moradores de beira-de-rua”

(classificação sugerida pela professora Iara – ciências), filhos de comerciantes,

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pedreiros, funcionários públicos, trabalhadores de confecções, aposentados,

serventes, motoristas, mecânicos, professores e “sacoleiros”, que moram em sítios ou

no novo loteamento, situado próximo à escola. Apenas seis pais de estudantes da

escola trabalham nas novas indústrias.

Quanto às atividades das mães, a grande maioria é de donas de casa (51,6%),

seguida de empregadas domésticas (14,6) e de outras profissões (14,3), como

professoras, secretária, merendeiras, aposentadas, costureiras, babás, comerciantes,

artesãs, manicuras.

Nos Quadros 1, 2, 3 e 4 a seguir apresento os dados referentes às ocupações,

seguidos dos níveis de escolaridade dos pais. Quadro 1

Distribuição segundo ocupação principal do pai ou responsável

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos Lavoura própria 63 20,6 20,6

lavoura a meia 52 17,0 37,6

Empregado mensalista

56 18,3 55,9

Pedreiro 40 13,1 69,0

Comércio 18 5,9 74,8

Motorista 15 4,9 79,7

Aposentado 5 1,6 81,4

Fábrica 6 2,0 83,3

Mecânico 7 2,3 85,6

Funcionário público

4 1,3 86,9

Sacoleiro 4 1,3 88,2

Outros* 36 11,8 100,0

Total 306 100,0

N/R 3

Total 309

*empresário, militar, coveiro, político, empreiteiro, professor universitário, criador de escargot, granjeiro, boiadeiro, despachante, garçom, policial, madeireiro, cobrador de ônibus.

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Quadro 2 Distribuição segundo ocupação principal da mãe ou responsável

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada Válidos Dona-de-

casa

159 51,6 51,6

Doméstica 45 14,6 66,2

Confecção 29 9,4 75,6

Lavradora 27 8,8 84,4

Professora 14 4,5 89,0

Outras* 33 10,7 100,0

Total 308 100,0

N/R 1 ,3

Total 309

*merendeira, funcionária pública, aposentada, costureira, babá, comerciante, dona de rádio, caseira, faxineira.

Quadro 3 Distribuição dos pais ou responsáveis segundo escolaridade

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos Não estudou 36 11,7 11,7

Até a quarta-série 138 45,0 56,7

Da quinta à oitava 23 7,5 64,2

Ensino médio 16 5,2 69,4

Faculdade 5 1,6 71,0

Não sabe 89 29 100,0 Total 307 100,0 N/R 2 Total 309

Quadro 4

Distribuição das mães ou responsáveis segundo escolaridade

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos Não estudou 39 12,6 12,6 Até a quarta-série 153 49,5 62,1 Da quinta à oitava 34 11,0 73,1 Ensino médio 16 5,2 78,3 Faculdade 9 2,9 81,2 Não sabe 58 18,8

100,0 Total 309 100,0

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Do ponto de vista da escolaridade, verifica-se uma certa homogeneidade entre

os pais e mães, pois ambos estudaram, em sua maioria (45% e 49,5%,

respectivamente), até a quarta série do ensino fundamental e, ainda, os números dos

pais e mães analfabetos é de 11,7% e 12,6%, respectivamente.

Por outro lado, embora seja mínima a quantidade de pessoas que cursaram a

faculdade, o número de mães é o dobro do de pais. A maioria delas é de professoras,

algumas das quais lecionam na própria escola.

Outro dado que chama a atenção é que 29% dos estudantes não conhecem a

escolaridade do pai, enquanto 18,8% deles ignoram a da mãe.

Trago tais dados porque para compor a medida de capital cultural a

escolaridade dos pais ou responsáveis costuma ser usada, junto com a quantidade de

livros disponíveis em casa, materiais de leitura (jornal, revista, livros etc.), hábitos de

leitura, freqüência ao cinema e ao teatro, assiduidade na frente da televisão – ainda

que majoritariamente em pesquisas quantitativas. Todas estas variáveis ajudam a

definir um ambiente mais favorável ou não para a realização das tarefas educativas.

O apoio familiar é um dos principais fatores do processo de aprendizagem do

aluno (SAEB, 2001). Mesmo apresentando baixa escolaridade, os pais valorizam e

buscam a escola de Vista Alegre, na esperança de um futuro melhor a seus filhos,

talvez até fora da lavoura, realidade coincidente com a encontrada pela já citada

pesquisa de Demartini (1988) sobre as escolas do meio rural paulista do início do

século passado. Por outro lado, como mostro à frente, a grande maioria das crianças

ajuda sua família no trabalho diário e também acontece de os pais acharem que os

filhos “não dão para o estudo” e dizerem que eles ganham mais ajudando em casa. De

fato, a escola tem duas turmas de quintas e sextas séries, mas apenas uma turma

desses níveis em diante, devido à evasão dos estudos. À necessidade de trabalho para

ajudar a família, somam-se a dificuldade de aprendizagem e a ausência de cursos

noturnos. Esta realidade coincide com a descrição etnográfica feita por Brandão

(1990) sobre a cultura camponesa e a escola rural em Catuaçaba, interior de São

Paulo.

Em que pese a valorização do trabalho escolar e talvez pelo nível de

escolaridade dos pais, estes mantêm muito pouco contato com a realidade do lado de

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dentro do muro da escola. Uma situação referida por Dubet (2002) como comum às

famílias menos favorecidas, cujos pais confiam muito nos professores e parecem

desinteressar-se pelos estudos dos filhos, não sendo capazes de ajudá-los. De fato,

aqui a comunicação entre os dois mundos é precária, segundo a maioria dos

professores da escola, o que não parece atrapalhar o trabalho de alguns deles, mas que

é referido como um aspecto que aumenta a solidão do trabalho, por outros.

Ao levantar as pesquisas anglo-saxãs e francesas, entre os anos de 1970 e 1990,

em relação ao efeito que a escola tem sobre o bom desempenho dos estudantes,

Bressoux (2003, p.54) cita um trabalho empírico que conclui que as escolas eficazes

desfavorecidas parecem fechadas à influência dos pais . A presença de pais na escola

se faz em apenas duas reuniões anuais convocadas pela direção, que alega que eles

não têm tempo, porque trabalham muito, além de que moram longe. Fora nas festas

(juninas, de comemoração do centenário do distrito, por exemplo), em que a presença

de todos é maciça, presenciei, neste três anos, apenas poucos responsáveis por

crianças entrando pelo portão onde termina o muro em frente ao qual eu esperava

para entrar na escola. E estavam lá porque haviam sido chamados para tratar de

problemas de mau desempenho, evasão por gravidez precoce e por desinteresse nos

estudos.

4.2 Caracterização da escola

Exponho nesta seção os espaços e equipamento escolar, traço uma descrição

histórica da escola, assim como apresento a população docente, a discente e o pessoal

auxiliar.

4.2.1 Espaços e equipamentos

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O grande muro colorido à minha frente é a parte mais bonita da escola. Seu

portão azul separa a rua única de um largo corredor acimentado e descoberto por

onde todos entram e que dá acesso aos espaços escolares. Ele contrasta com o

pequeno espaço interno da escola, cujas paredes e móveis são velhos e gastos pelo

tempo3. O final do corredor de salas de aula termina na parte mais antiga da escola:

um hall a partir do qual há três salas de aula, a cozinha, a sala da direção. De frente

para este amplo corredor está o pátio de chão batido, muito freqüentado durante o

recreio, para brincadeiras como jogos com bola, bola de gude, piques. Há um grande

pé de nêspera, cujos frutos mal têm tempo de amadurecer e já “desaparecem”, e no

fundo, fica a quadra de esportes, descoberta, com alambrado quebrado, que faz limite

com um rio poluído, no qual é jogado todo o esgoto da vila. Esse pátio é pouco usado

pela maioria dos professores para os trabalhos acadêmicos (fora o professor de

educação física que ministra 99% das aulas ali, vi apenas quatro aulas acontecendo

sob a árvore), mas para os alunos ele representa o local do encontro, junto com o

corredor, onde se brinca, conversa, come, canta, namora.

No seu conjunto, o espaço físico é rústico e pequeno, precário. Ao sair de lá

naquele primeiro dia do ano de 2005, anotei em meu diário de campo:

“impressionante a falta de espaço interno num local com tanto espaço físico! E

localizado em uma comunidade em clara expansão demográfica e econômica”.

A característica da precariedade do espaço físico foi citada por todos os sujeitos

como um dos aspectos mais negativos da escola: falta espaço para determinados

ambientes, como sala de professores, quadra de esportes coberta, banheiros em

número suficiente (existe um banheiro para os funcionários e outros dois para todos

os alunos), refeitório, o que fazia com que os estudantes comessem as refeições

sentados no chão ou em pé, com o prato quente à mão4, no ano que lá cheguei .

3 A última reforma aconteceu em 1998, e, embora rápidas pinturas tenham sido feitas, a verba para manutenção costuma ser usada para obras estruturais, como a reforma da rede de esgoto, por exemplo. 4 Uma nota publicada em famosa coluna de jornal de grande circulação no estado do Rio, em abril de 2006, com fotos que mostravam essa situação, fez com que a escola ganhasse mesas e cadeiras usadas de uma empresa carioca. O poder público estadual limitou-se a ligar para a direção, proibi-la de dar qualquer entrevista e mandar um engenheiro para verificar o local. Até dezembro de 2007, o refeitório ainda não havia sido construído, o que mantinha a situação anterior: quando chovia, os estudantes não podiam sentar-se para comer, porque o mobiliário estava molhado; quando o dia estava claro, eles igualmente não o utilizavam por não agüentarem ficar muito tempo expostos ao sol. O ano letivo de

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O espaço reservado à biblioteca é uma sala de não mais do que seis metros

quadrados, onde as estantes dividem espaço com duas pequenas mesas com cadeiras,

usadas pelos alunos em pesquisas. Este espaço também é re-significado pelos

professores que costumam preparar aulas, se reunir na hora do recreio, conversar e

fazer as refeições ali, juntos. Vi vários avisos da direção e de colegas de turno e/ou

dia diferentes para os professores colados no tampo das mesas.

Outros espaços, tais como a cozinha, a secretaria e muitas das salas de aula,

também são exíguos e insuficientes para a realização do trabalho, tanto que muitas

vezes os estudantes de quinta e sexta séries assistem a aulas sentados no corredor, ou,

então, o professor é obrigado a dividir a turma em dois grupos e dar aula em dois

tempos, quando vão ao laboratório de informática. Ou quando vão à biblioteca. No

total, são sete salas de aula. Entretanto, por mais que a infra-estrutura do

estabelecimento não esteja adequada ao funcionamento das atividades desenvolvidas

e ao atendimento dos estudantes, a escola está entre os 6% das brasileiras localizadas

em meio rural que possuem mais de cinco salas de aula. (Brasil, 2006).

Em todas as salas há crucifixos nas paredes, nos corredores, podem-se encontrar

murais com referências ao catolicismo, e a maioria dos professores costuma rezar um

“Pai Nosso”, “a reza universal” segundo alguns deles, antes das aulas5.

Em termos de equipamentos e recursos educativos, fora os livros estocados na

“biblioteca”, há pouco material de apoio específico para as disciplinas que compõem

o currículo. No caso das aulas de Educação Física, elas se realizam em uma quadra de

esportes descoberta, com alambrado arrebentado pelo tempo, e cujo material único é

uma bola.

Em contraste, há outros recursos materiais da escola em maior variedade e

quantidade. São três videocassetes e três televisões, duas antenas parabólicas, uma

Internet a cabo, duas impressoras, um mimeógrafo (ainda muito usado), um fax, dois

aparelhos de som, três bebedouros, dezoito ventiladores e vinte e três computadores,

2008 iniciou-se com as mesas e cadeiras (já velhas) protegidas por um grande varandão construído pela Secretaria Estadual de Educação. 5 O que acaba virando motivo de gozação entre os estudantes, que comentaram com o professor de inglês que ele deve “rezar mais de um terço por dia”.

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dentre os quais dois são usados pela administração e dez ainda aguardam dentro das

caixas um local para serem disponibilizados aos estudantes.

4.2.2 Histórico

A “escola-da-dona-Clair”, como ela é chamada pelos pais dos estudantes, é

conhecida em toda a região e atende a mais de trezentas crianças, em dois turnos: pela

manhã, freqüentam a escola os estudantes do primeiro ao quinto ano, e à tarde,

adolescentes estudantes do sexto ano do ensino fundamental até o terceiro ano do

ensino médio. O número significa que ela está entre as apenas 2,8% das escolas

brasileiras situadas em zona rural com mais de 300 alunos (Brasil, 2006).

Pelo menos duas observações merecem destaques aqui: primeiro, a escola está

entre os 4,45% de estabelecimentos do Brasil rural que oferecem o ensino médio

(Brasil, 2006); segundo, no ano de 2005, o atendimento abrangia desde o maternal até

o quarto ano Normal, o que quer dizer que o Estado vem comendo pelas beiradas a

oferta de vagas à comunidade. Um caminho inverso ao da história da escola, que nos

últimos 51 anos mobilizou esforços para expandir sua oferta de serviço público,

história que se confunde com a história da dona Clair, diretora do colégio há 51 anos.

A escola-da-dona-Clair foi criada em 1950, em terreno doado por pequenos

proprietários rurais e políticos, que buscavam oferecer estudo aos filhos dos muitos

colonos que trabalhavam nas lavouras de café e fixá-los na região. Lembro que o

período posterior ao da Segunda Guerra Mundial, fundamentado e referenciado na

teoria do capital humano, é marcado pelo grande crescimento da oferta de serviço

escolar, período este denominado por Canário (2005) de “a escola num ‘tempo de

promessas’”, quando as despesas com a educação escolar eram vistas como de

retorno certo. Das atividades escolares em Vista Alegre, desde o início, já

participavam cerca de 40 alunos, em turmas multisseriadas.

O ensino regular em áreas rurais brasileiras surgiu com o advento da

monocultura cafeeira e com o fim da escravidão, quando a agricultura passou a

necessitar de mão-de-obra especializada, ou seja, seu desenvolvimento no Brasil

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reflete as necessidades socioagrárias. Embora nascido no fim do 2º. Império, o ensino

escolar somente se implantou amplamente na primeira metade do século XX

(Calazans, 1993).

A partir da década de 1930, há uma grande defesa da educação rural no Brasil,

na busca de se promover a fixação do ser humano no campo, integrada a

preocupações sanitaristas (Maia, 1982). Em que pesem as missões rurais pelo interior

(nas quais ofereciam-se cursos de formação para professores das áreas rurais, por

exemplo) poucas foram as medidas significativas que propiciaram melhorias

quantitativas ou qualitativas. A escola de Vista Alegre já nasceu com problemas de

infra-estrutura e de falta de professores e, como mostro a seguir, a contratação de uma

professora nativa formada na escola Normal, em 1957, foi uma tentativa (muito bem

sucedida) do Estado de resolver tais problemas.

Dona Clair é uma senhora baixinha, mãe de cinco filhos, católica fervorosa,

calma (“a maneira de ela tratar é que até quando ela está aborrecida ela está calma”,

diz um professor), de olhinhos muito vivos, nos seus 70 anos. Em 1957, então com 19

anos, assumiu o colégio de Vista Alegre, local onde vivia desde criança (e no qual seu

pai, “comerciante do tempo antigo, vendia de tudo, do pano de cueiro até pano de

caixão”), fato que se recorda assim: “Eu cheguei na escola, muito animada no

primeiro dia, querendo conhecer tudo. Não tinha servente. Não tinha ninguém. Eu

mesma limpei tudo. Trouxe a empregada lá de casa para me ajudar a arrumar [risos].

Para começar a aula no dia seguinte”.

Essa diluição de fronteiras entre o trabalho docente e a casa parece ser uma

realidade do profissional que atua no meio rural, como analisou Capelo (2008) em

relação às professoras de áreas rurais cafeicultoras paranaenses, de 1940 a 1960: “(...)

no passado, ser professora rural implicava em muito mais do que exercer uma

profissão. Tratava-se de atuar em uma dimensão que não se enquadrava tão somente

no espaço público do mundo do trabalho, ligando-se, ao mesmo tempo, no espaço

privado e íntimo das vidas pessoais. O mundo privado da casa e o mundo público da

profissão docente são representados de forma inseparável” (p.6) .

A mulher professora fazia parte de um contexto caracterizado pela dominação

masculina e a imagem feminina era marcada por missionarismo e moralidade

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religiosa. Dona Clair rompe com a restrição da mulher ao mundo doméstico e, na

condição de professora, passa a desempenhar a função de “educar” hábitos infantis

por meio de técnicas e procedimentos científicos. Entretanto, sua imagem de

missionária permaneceu a mesma até os dias de hoje, assim como a diluição das

fronteiras entre sua casa e seu trabalho. Certa vez, indaguei a dona Clair qual o papel

daquela escola na sua vida, ela abriu um grande sorriso e disse: “Esse é o meu

trabalho, a minha vida. Para essa comunidade, ela é a única esperança de futuro”. Em

2008, ela prolongou sua obra ao ver sua filha, a professora Mariana, eleita a nova

diretora da escola.

Ainda nos anos de 1950, a “professora-diretora-servente” Clair dava aulas para

os filhos dos lavradores de café matriculados em todas as séries em uma sala única,

com quadro pequeno. Os deveres eram corrigidos em casa, mas durante o dia, pois

não havia luz elétrica na região. O desafio enfrentado nesse começo é descrito desta

forma por ela: “Os [estudantes] que já sabiam ler copiavam o exercício do livro,

alguns copiavam do quadro e outros copiavam do caderno que eu passava em casa

para eles. Os mais adiantados iam me ajudando a ensinar os mais atrasados. E todo

mundo aprendia. Saia todo mundo aprendendo. Era um desafio!”.

Depois de três anos, outras professoras chegaram para ajudar (contratadas que

trabalhavam o ano inteiro para receberem seus salários apenas no fim do ano) e a

escola foi deixando de ser multisseriada. Mas somente nos anos de 1980 começou a

oferecer da quinta até a oitava séries, depois da visita do então governador do estado,

em campanha eleitoral, a uma recém nascida exposição agropecuária local. Decretada

a criação da expansão da escola, restou à direção e ao núcleo educacional local

arrumar os meios para execução, e vários “jeitinhos” foram sendo dados (como, por

exemplo, a contratação de apenas uma professora para a quinta série, que tinha,

portanto, que ministrar todas as matérias). Até que, em 1985, com a duplicação do

número de matrículas do pré-escolar até a sétima série, o estado liberou a construção

de novas salas, e, a partir de um documento assinado por cerca de 300 pessoas,

conseguiu-se a criação do ensino médio com formação de professores, em 1987, um

ano depois de a primeira turma já ter concluído o então primeiro grau (Faria, 1992).

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É interessante o comentário de uma ex-professora de História (com 27 anos de

magistério, 10 dos quais na escola-da-dona-Clair) sobre a escola naquela época: “Ela

tinha um grupo de alunos excelentes, muito interessados, para quem a escola era a

primeira opção em suas vidas. Os professores eram sensacionais. Nós decidíamos

tudo no churrasco semanal, do qual participavam também os alunos. Nós criamos

muitos laços. Até hoje, quando encontro meus ex-alunos de lá, eles falam dos pés de

jabuticaba lotados de frutos, porque sabem que adoro jabuticaba”.

Além da demanda por estudo, da organização e luta da comunidade, e da

dedicação exclusiva da dona Clair ao seu trabalho, outros fatores contribuíram para a

transformação da escola em colégio. O primeiro foi que alguns professores

provenientes do Rio de Janeiro e de outras cidades maiores compraram sítios na

região e passaram a se interessar pelo lugar, lecionando lá matérias como

Matemática, Física e Química, para as quais tradicionalmente há poucos professores

(principalmente no meio rural). Além disso, esses professores interferiram

politicamente na gestão estadual da educação, durante o governo de Leonel Brizola6.

Um segundo fator é que o país vivia a expansão do ensino público básico, e o Estado

passava a contratar professores e a aumentar o número de vagas nas escolas, aquele

tempo da escola denominado por Canário (2005) e já referido anteriormente como

“tempo das promessas”.

Depois de quase duas décadas de lutas e improvisações (como por exemplo, o

fato de que, durante um ano, a turma do então pré-escolar estudou no necrotério

local), a escola, reconhecida como “nem sempre obediente” em dissertação de

mestrado no Departamento de Educação da Fundação Getúlio Vargas (Faria, 1992),

consolidou seu trabalho atendendo desde a pré-escola até o ensino médio, com

formação de professores, oferta que acabou no final de 2005. Devo lembrar que, em

2006, a escola deixou de oferecer o quarto ano Normal e, em 2007, a educação

infantil.

6 Um desses professores era casado com uma auxiliar direta do professor Darcy Ribeiro, então Secretário Estadual de Educação, e lutou bravamente pela transformação. Segundo uma professora da época, o professor dizia que, lá na escola-da-dona-Clair, ele não se sentia “o marido da auxiliar do professor Darcy”, mas apenas o professor. Contudo, para o bem da escola, atuou nos bastidores como “o marido”.

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4.2.3 População discente: quem são, o que buscam na escola e qual o sentido da instituição

São 7 horas da manhã, faz frio, e a neblina cobre boa parte das montanhas ao redor da escola. Dona Clair bate o sinal sonoro para o turno da manhã, abre o portão azul e as crianças entram, silenciosas, em grupos, pares ou sozinhas, uniformizadas com uma blusa cinza do colégio, calça comprida ou short, e carregando suas mochilas ou bolsas. Alguns vieram a pé, pois moram nas redondezas. Outro grupo saiu de casa há mais de uma hora e foi transportado até a escola pela condução oferecida pela prefeitura municipal. Todos se dirigem às salas de aula, onde ficam até às 9h30, quando bate novamente o sinal para o recreio e o almoço. Nesta hora, há um certo alvoroço na corrida até a fila da refeição, servida por três serventes (as mesmas que a cozinharam) em pratos individuais. O cardápio de hoje é arroz com frango desfiado e feijão. As crianças sentam-se, com o prato à mão, no chão do corredor cimentado que dá de frente para o amplo pátio de chão de terra onde depois brincarão exaustivamente até o fim do horário do recreio. Agora já são 11 h e pela terceira vez nesta manhã o sinal sonoro é acionado, agora pela coordenadora Claudia. É o final do turno. Enquanto as crianças se apressam a sair pelo portão azul e entrar nas Kombis, vejo algumas mães pegando algumas crianças pelas mãos e saindo andando a pé. A escola cai num silêncio absoluto, só interrompido pelo cantar dos pássaros e pelo arrastar da vassoura das serventes, que têm menos de uma hora para limpar todo o ambiente para o turno da tarde. Aproveito o tempo para conversar com dona Clair, que só vai almoçar com o turno da tarde (descubro depois que a cozinheira da tarde é favorita de todos). Ela é quem toca o sinal e abre o portão azul anunciando o novo turno. Muitas crianças e adolescentes, também uniformizados, aparentando idades que variam de 10 a 18 anos, esperaram por esse momento sentados no meio-fio ou em pé do lado de fora do muro colorido, conversando animadamente em grupos. Também chegaram, em sua maioria, de condução, muitos vindos de longe, numa jornada que muitas vezes começou às 10h da manhã e que termina agora, às 11h45. O silêncio do local é transmutado num intenso arrastar de carteiras, que descubro ser um rearranjo personalizado que os grupos de estudantes mais velhos fazem antes de se iniciarem as aulas. A instituição escolar tende a reduzir todos estes sujeitos à categoria aluno,

independentemente do turno, idade, sexo, origem social. A essa homogeneização dos

sujeitos como alunos, corresponde uma homogeneização dos sentidos e objetivos da

instituição escolar. O que também reverbera no processo de ensino-aprendizagem,

uma vez que este acontece numa homogeneidade de ritmos, estratégias e propostas

educativas, na chamada “forma escolar” da instituição (Canário, 2005).

Para Dayrell (1996), por outro lado, estes sujeitos podem ser percebidos em

suas diferenças, nas visões de mundo que têm, sentimentos, nas lógicas de

comportamentos e hábitos. E deve ser pensado como possuindo o que Perrenoud

(1995) designa por “currículo oculto”: “(...) conjunto da experiência do aluno, tudo o

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que lhe acontece na escola e que (...) gera aprendizagens: a aquisição de

conhecimentos, o saber-fazer e o saber-ser, a formação de atitudes” (p.172). A escola

é apenas uma parte do projeto do aluno e ela costuma ser polissêmica para ele,

adquirindo uma multiplicidade de sentidos, que nos cabe buscar conhecer.

No Quadro 5 a seguir está a freqüência da distribuição dos 309 alunos

respondentes ao questionário, divididos por turmas. Quadro 5

Distribuição de alunos por turmas em 2007

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos 101 20 7,0 7,0 201 24 8,4 15,4 301 16 5,6 21,0 401 21 7,3 28,3 501 32 11,2 39,5 502 26 9,1 48,6 601 20 7,0 55,6 602 20 7,0 62,6 701 30 10,5 73,1 801 9 3,1 76,2 802 11 3,8 80,1 1001 17 5,9 86,0 2001 17 5,9 92,0 3001 23 8,0 100,0 Total 286 100,0 N/R 23 Total 309

A partir da observação desses dados, pode-se perceber que é grande a taxa de

evasão escolar no segundo segmento do ensino fundamental, pois do total de

estudantes matriculados na quinta-série (atual sexto ano), 65,5% não chegam à oitava

série (atual nono ano). Já da quinta-série para a sétima-série há uma queda

considerável (cinqüenta e oito e trinta alunos, respectivamente), o que pode ser

explicado, como já observei, pela necessidade de ajuda em casa, além da dificuldade

de adaptação à cultura escolar. A taxa decrescente tem se mantido durante o ensino

médio, com exceção do ano de 2007, em que o número de alunos do terceiro ano foi

recorde em toda a história da escola: 23 estudantes.

Em relação ao primeiro segmento do ensino fundamental, pelo quadro não se

pode analisar muita coisa. Sabe-se que os critérios e regras que regem a promoção

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desses estudantes são os da Secretaria Estadual de Educação. Desta maneira, no

primeiro segmento é realizado um relatório qualitativo de competências e habilidades,

com promoção automática do primeiro, segundo e quarto ano (antigos CA, primeira e

terceira séries), enquanto do segundo segmento em diante são realizadas avaliações

do desempenho dos alunos, que são promovidos ou retidos nas séries. Contrariando

as ordens de aprovação automática do Estado, na escola-da-dona-Clair o estudante

costuma ser retido na série em que não teve bom desempenho, embora oficialmente

apareça na série seguinte7. Assim, é dada a ele a chance de aprender a “ler, escrever e

contar” durante pelo menos quatro anos.

A escola tem procurado minimizar estes problemas de mau desempenho e

também da evasão de diferentes maneiras: chama os pais individualmente para

conversar, explica a importância e o dever de seus filhos freqüentarem a escola

(quando comunica que vai “avisar” ao Conselho Tutelar); a direção cria turmas

especiais de recuperação que acontecem durante todo o ano, para a qual contrata, com

verba desviada de outras rubricas, um professor que trabalha basicamente com leitura,

interpretação e produção de textos, e solução de problemas matemáticos.

Mais da metade dos alunos matriculados em 2007 (52,1%) nunca repetiu o ano

escolar, mas 31,6% já o fizeram uma vez. Outros 12,4% foram reprovados duas vezes

e 3,9% dos respondentes afirmam ter repetido de ano três ou mais vezes. Ainda em

relação ao valor da escola e dos estudos, cabe dizer que 94,1% dos estudantes nunca

abandonaram a escola e o restante da amostra o fez por até um ano.

Segundo a coordenadora pedagógica da escola, o desempenho das tarefas de

casa pelos alunos é dificultado pela falta de escolaridade dos pais, embora 82,8% dos

estudantes declarem possuir um local calmo, com mesa, para realizarem os deveres

de casa, o que é considerado um indicador do envolvimento dos pais. Muitos

professores tendem a não incluir o dever de casa em suas práticas, alegando que a

tendência é que ele não seja feito. Por outro lado, 27,5% dos estudantes da escola não

possuem sequer um livro em casa, 59,5% deles possuem até vinte livros, e somente

3,2% afirmam ter mais de cem (Quadro 6).

7 Situação que causa uma certa confusão durante os Conselhos de Classe, porque os professores passam um bom tempo formalizando as avaliações nos diários dos colegas.

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Quadro 6 Distribuição da quantidade de livros não-escolares presentes nas residências

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

válidos Nenhum 85 27,5 27,5 1 a 20 184 59,5 87,1 21 a 100 30 9,7 96,8 mais de

100

10 3,2 100,0

Total 309 100,0

Para completar, cabe trazer a leitura de material não-escolar realizada no ano de

2006 pelos estudantes (Quadro 7). É flagrante a pouca leitura, e comparado ao quadro

anterior, pode-se deduzir que a maioria dela foi feita na escola, único local da

comunidade a possuir livros. O incentivo à leitura pelos professores pode ser mais

observado durante o turno da manhã, em que, além de escolher e levar para a sala de

aulas livros, a maioria das professoras realiza diariamente uma leitura, coletiva ou

individual, silenciosa ou em voz alta.

Quadro 7 Distribuição de quantidade de leitura realizada pelos alunos no ano de 2006

Revistas em quadrinhos ou de humor

Livros de ficção ou romance

Jornais Revistas semanais

Livros religiosos

Não leu 54,8 69,8 70,1 79,1 74,1 Leu 45,2 29,9 29,6 20,9 25,9 N/R 2,6 0,3 0,3 - -

Ainda no que se referem às práticas culturais, mais da metade (53,7%) dos

estudantes daquele meio rural nunca foi ao cinema, mas 78,9% deles dizem assistir

muito à televisão nos fins de semana, sendo que mais da metade dos alunos tem um

aparelho em casa (34,8% dos estudantes afirmam possuir dois ou mais televisores).

75,8% das casas dos estudantes de Vista Alegre têm antena parabólica. Os estudantes

também afirmam gostar de música e 64% a ouvem freqüentemente. Outra atividade

realizada nos fins de semana são os jogos de futebol, praticados ou assistidos por

36% do alunado. Por fim, 33,3% dos estudantes dizem ir à igreja católica aos

domingos, seguidos de outras igrejas protestantes, como Assembléia de Deus (4,8%),

presbiteriana (2,6%) e evangélica (1,3%).

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Dos estudantes, 91,6% moram junto com as mães e 73,5% têm a presença

paterna sob o mesmo teto. Ainda, 79,4 % dos estudantes ajudam seus pais no trabalho

de casa (32,4% deles inclusive nos fins de semana), sendo que, destes, 20,9%

trabalham na roça. Mesmo os estudantes de apenas sete anos de idade “capinam”,

“roçam”, “colocam as mudinhas na cova”, além de participarem em outras tarefas,

como ordenhar vacas, carregar terra no carrinho, lavar roupa, cuidar do irmão, da avó;

enfim, “brincam de trabalhar com o pai e a mãe”, resposta dada prontamente por um

menino quando perguntado sobre do que eles brincam em casa (Quadro 8).

Quadro 8 Distribuição de alunos por trabalho realizado fora da escola

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos Não trabalha 21 8,0 8,0 Ajuda mãe em

casa

140 53,2 61,2

Trabalha na roça 55 20,9 82,1 Diarista 12 4,6 86,7 Babá 5 1,9 88,6 Outros* 30 11,4 100,0 Total 263 100,0 N/R 46 Total 309

• balconista, confecção, lanterneiro, borracheiro, jardineiro, manicure.

Ligado ao aspecto sócio-econômico, valem ressaltar as expectativas de futuro

dos estudantes. Dos vinte e três estudantes cursando o último ano do ensino médio

em 2007, poucos tinham planos de continuar seus estudos no nível superior, pois os

pais não têm condições financeiras de sustentá-los numa faculdade particular (perto

de casa), nem numa da rede pública (longe de casa, o que requer gastos com estadia e

alimentação, além do material)8. A seguir, os Quadros 9 e 10 mostram os sonhos

daqueles estudantes.

8 Em relação a isso, cabe trazer que, no início do ano de 2007, fui procurada por duas estudantes do terceiro ano do ensino médio, que queriam aconselhamento e ajuda na elaboração de um projeto para financiamento de seus estudos numa universidade pública federal fluminense. Cerca de cinco estudantes garantiriam a vaga, e o poder público, o transporte e a estadia no alojamento. Embora tenha me parecido brilhante, a idéia não vingou porque eram muitos os empecilhos.

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Quadro 9 Distribuição de expectativas dos estudantes para 2 anos

Freqüência Percentagem

válida Percentagem acumulada Válidos Somente

estudando

120 39,5 39,5

Somente trabalhando

15 4,9 44,4

Estudando e trabalhando

108 35,5 79,9

Não sabe 59 19,4 99,3

Outra situação 2 ,7 100,0 Total 304 100,0 N/R 5 Total 309

Quadro 10 Distribuição de expectativas dos estudantes para 10 anos

Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada

Válidos Somente estudando

25 8,2 8,2

Somente trabalhando

90 29,5 37,7

Estudando e trabalhando

99 32,5 70,2

Não sabe 83 27,2 97,4

Outra situação* 8 2,6 100,0

Total 305 100,0

N/R 4

Total 309

*servindo à Marinha, viajando e “viajando pelo mundo de caminhão”.

Nota-se que a taxa daqueles que estudam e trabalham mantém-se relativamente

estável na casa dos 30%, independentemente do tempo futuro. Observa-se, ainda, que

em dois anos, 4,9% dos estudantes estarão apenas trabalhando, número que sobe para

29,5% em 10 anos.

A escola-da-dona-Clair representa para a grande maioria destes estudantes uma

possibilidade de um futuro melhor, com um emprego, muitas vezes, fora da lavoura.

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86

A sala de aula é o local privilegiado para a realização desse objetivo. Nela, formam-

se grupos e subgrupos pelas afinidades, localidade de origem (Santo Antônio,

Distrito, Palmeirinha, Boa Vista, São Sebastião), dedicação aos estudos e aos

trabalhos escolares, entre outras categorias. Alguns estudantes ainda dizem que vão à

escola comer e, para alguns jovens dos cursos mais avançados, a escola é o local de

se “aprender a ler, escrever e a questionar as injustiças”.

Concomitantemente, a escola-da-dona-Clair é considerada como o “maior

espaço de convívio social” daqueles estudantes. O horário do recreio é um momento

do encontro e da alimentação. Depois de enfrentarem a longa fila e comerem, os

estudantes espalham-se por todos os espaços dentro e fora das salas de aula,

conversam, brincam de bola, de roda, de dar piruetas, de subir em árvores, de cantar,

de imitar passarinhos, de tocar violão em rodas, até de namorar (embora isso seja

proibido dentro da escola) A escola-da-dona-Clair é o referencial de lazer daqueles

meninos e meninas que trabalham muito, quando não estão na escola. Segundo um

deles, por isso, “o estudo flui muito melhor”. A escola é o espaço do encontro e do

lúdico, da “sociabilidade pura” na fala de Simmel (1978), em que a interação se dá

entre iguais: “A sociabilidade é o jogo no qual se ‘faz de conta’ que são todos iguais

e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e

‘fazer de conta’ não é mentira mais do que o jogo e a arte não são mentiras devido ao

seu desvio da realidade” (p.173).

Outrossim, na escola, tanto dentro da sala de aula como fora dela, é possível a

convivência com a diferença de um modo distinto da família e do trabalho,

qualitativamente. Os estudantes lidam com suas subjetividades, falam de si, trocam

experiências, idéias, vivências. E, ao mesmo tempo, têm acesso aos códigos culturais

dominantes que podem lhes garantir um espaço no mercado de trabalho.

A valorização da escola pode ser sentida em outros momentos. É muito comum

encontrar estudantes do turno da tarde chegando às 8 horas da manhã na instituição,

onde passam o dia para fazerem seus trabalhos escolares. A escola é o único lugar

daquela comunidade em que há livros para pesquisa, além dos computadores e da

Internet, usados por alguns professores, estudantes e ex-estudantes. E a escola é

citada como a “fonte do conhecimento” local, “essencial para a vida”, “um lugar que

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dá status freqüentar”. Cheguei a ouvir de uma mãe, de uma maneira bem

emocionada: “tudo o que meu filho sabe ele aprendeu aqui”9. Concluindo, ela parece

manter o monopólio do saber local.

Junto com o empenho da maioria dos professores, a vontade de aprender e o

interesse dos alunos foram citados por praticamente toda a comunidade como os

fatores que justificavam o bom desempenho no ENEM. “A escola é o meu horário de

descanso”, disse-me um aluno do ensino médio. Talvez com certo exagero.

4.2.4 População docente e pessoal auxiliar

São 1150h e entro (depois do professor) na turma 501 a convite do professor Aquiles, de educação física, com quem já havia conversado anteriormente sobre a escola. Ele trabalha freqüentemente na quadra de esportes e esta é uma das poucas aulas que ministra em sala de aula. Trinta alunos estão presentes e é grande a excitação, pois o professor explica seu sistema de avaliação, que consiste em uma avaliação prática, uma avaliação escrita e uma avaliação diária. Nesta, avalia comportamento em grupo e participação, um objetivo de seu trabalho: “Vocês têm necessidade de movimento”. A avaliação prática é sobre aplicação de regras do esporte, técnicas, coordenação motora e aprendizagem de táticas de jogo. A avaliação escrita versa sobre alguns esportes e tem um peso menor que as outras. Os alunos estão muito atentos à explicação e alguns emitem comentários. O clima é muito alegre, com piadas (como “vocês escutam o galo cantar e não sabem em qual terreiro” sobre uma afirmação equivocada de um estudante), e algumas vezes, durante uma risada geral, ouço (e custo a acreditar) imitações de cantos de passarinho! Três alunos de outra turma assistiam à aula pela janela e foram convidados (e aceitaram) a entrar. Aquiles introduz o tema da aula: futsal. Desenrola um engraçado “pergaminho”, composto por um rolo de papel preso em uma caneta, onde está o texto teórico que vai lendo, comentando e copiando no quadro. Silêncio. Os alunos copiam muito atentos.

Eloiza: conta para mim um dia de aula? Iracema: eu chego e tenho o hábito de passar um exercício para casa, porque português (eu tenho consciência de meu trabalho) é muito conteúdo. Essas crianças têm muita dificuldade na escrita, até na caligrafia mesmo. Têm uns que não lêem o que escrevem! Eu gosto de trabalhar um texto uma vez por semana. Infelizmente,

9 Aliás, essa foi outra surpresa, a “mãe-aluna” da quarta-série da escola-da-dona-Clair. Rosely, 26 anos, é mãe de Thiago, 9, hemofílico (precisando, portanto, de cuidados especiais), e, ao mesmo tempo, aluna. Foi convidada a voltar a estudar pela diretora, que não se conformou de vê-la esperando pelo filho à porta da sala e a levou para dentro, proporcionando “uma das maiores emoções” de sua vida, que foi o reencontro com os estudos, abandonados na segunda série do ensino fundamental.

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sigo muito o livro didático, porque não tenho condições de xerocar e a escola não dá. (..) Você pede um jornal, uma revista, o aluno não leva. (...) São setenta e tantos alunos. Sigo o livro (...). Texto didático não é muito bom realmente, você sabe disso, mas o conteúdo é um dos melhores que vi até agora. Uso muito o livro, porque acho que ali tem muita coisa boa e o que não acho interessante deixo de lado. O tempo é muito pouco e são muitos alunos. Gosto de ver o exercício que passo todos os dias. Eu falo: “se for para eu passar para eu fazer não vou passar”. Se não fazem, eu anoto mesmo; senão, não fazem. Passo o dever e olho se fizeram. Se está certo ou errado não olho. Mas que eu passo nas mesas, olhando e anotando, eu passo. Eu sempre adotei a postura de se não fizerem o exercício vão fazer uma cópia de castigo. Eles preferem fazer o exercício. (...) Eles estão acostumados com minha postura. Eu cobro mesmo. Eu dou para eles aquilo que acho o máximo. Eles mereciam muito mais, mas o tempo não dá. A turma é grande, sempre tem aluno em aula vaga do lado de fora fazendo um auê. (...) Aí corrijo. (...) Eu não saio de sala de aula e deixo aluno sozinho. Eu tenho medo que aconteça alguma coisa.

Em que pese o fato de que na instituição escolar haja um conjunto de tempos e

espaços ritualizados, e os processos sejam parecidos e tudo leva a se ensinar uma

matéria, há, por trás, uma complexa e dinâmica rede de relações entre os professores

e seus estudantes. Esta rede de relações reflete o modo de ser dos sujeitos, como

convivem com as diversidades de valores e visões de mundo e o(s) “clima” (s) que

criam na sala de aula.

Um aspecto primordial das visões de mundo diz respeito à crença que os

professores da escola têm nos objetivos do seu trabalho e nas finalidades da

educação, porque estes nortearão todo o processo de ensino-aprendizagem. Fiz esta

pergunta a muitos deles e as respostas, além do acima citado objetivo comum de

ensinar um conteúdo, são as seguintes: estimular os alunos ao estudo; mudar

comportamento; criar laços de afetividade e de cumplicidade; acompanhar o

crescimento; formar o ser humano quase na totalidade; formar espiritualmente;

preparar para vida social; ainda, lapidar informações e trocar conhecimento com os

estudantes.

Formar cidadãos foi a resposta mais recorrente, sendo cidadão definido como

“pessoa que tenha direitos e deveres e uma vida digna”, “cada um do seu jeito, mas

que saiba se comportar em sociedade e ser solidário”; “aquele que sabe dos seus

direitos, que sabe que vive em uma sociedade injusta e que vai lutar, dentro do

contexto democrático, para transformar essa sociedade”. Assim, se tínhamos

anteriormente crenças bem variadas, decorrentes das diferentes visões que eles têm de

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seu trabalho, neste caso a situação revela uma opinião corrente no campo

educacional, em sintonia com o que pensam 72,2% dos professores brasileiros

(UNESCO, 2004, p.109), que consideram que a maior finalidade a ser alcançada pela

educação é “formar cidadãos”10.

O mundo dos estudantes, por sua vez, tem uma dinâmica própria e diversa do

mundo do professor, sua matéria, seu discurso, seus objetivos e práticas. Estes

mundos são separados, embora por vezes se cruzem. Tanto o professor como o aluno

produz um discurso e um comportamento que classifica, hierarquiza, (des)valoriza, e

eles acabam criando “tipos” de alunos e de professores. Isso para não falar da direção.

Na escola, os tipos de alunos citados pelos professores são “estudiosos”,

“médios” e “preguiçosos”, “humildes”, “inteligentes”. Entretanto, todos os

professores consideram os alunos da escola-da-dona-Clair “os seus alunos mais

interessados”. Os estudantes, por sua vez, consideram os professores “sérios”,

“dedicados”, “excelentes”, mas também “exigentes demais” e “chatos”.

Dona Clair classifica seus professores em dois tipos: “aqueles que se interessam

por tudo da escola (desenvolvimento do currículo, funcionamento burocrático)”, a

maioria; e “aqueles que só se interessam pela aula”.

Ao todo, são quarenta e quatro funcionários na escola, dentre os quais vinte e

quatro são professores concursados e seis trabalham em regime de contrato

temporário. Há sete profissionais extraclasse, outros sete funcionários de apoio,

responsáveis pela limpeza e pela cozinha. Se, por um lado, houve uma expansão da

escola e do público escolar nos últimos anos, paradoxalmente, o número de

professores tem se mantido o mesmo e sabe-se da enorme dificuldade de se

encontrarem professores para o meio rural.

A maioria dos professores reside em área urbana: vinte e quatro ao total.

Também há uma grande estabilidade no quadro docente da escola: quinze dos trinta

professores estão lá há mais de dez anos e outros tantos há mais de cinco. A

permanência por vários anos seguidos na escola por mais da metade do corpo docente

e ao mesmo tempo a residência próxima à escola de vários deles, incluindo dona

10 Em segundo lugar, com 60,5%, aparece “Desenvolver a criatividade e o espírito crítico”, seguido de “Transmitir conhecimento” (com apenas 16,7%). Em pesquisa sobre a escola primária francesa, citada por Dubet (2002, p.109), estes números são 8% e 6%, respectivamente.

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Clair, que ainda mora em sua fazenda de café (situada à cerca de dois quilômetros da

escola), podem ser alguns dos fatos explicativos da criação de um ambiente positivo,

de forte ligação entre os sujeitos, professores e estudantes.

Quanto à formação acadêmica, três professoras do primeiro segmento do ensino

fundamental têm apenas o curso Normal, e uma está fazendo o curso de Pedagogia à

distância. Três professoras que lecionam Ciências, Matemática e Português até a

sétima série estudaram no curso Normal e mais dois anos de um curso Adicional. Os

outros vinte e três professores possuem graduação em diversas áreas, alguns dos

quais com até mais de uma pós-graduação. Os professores de Matemática e Física do

ensino médio também são professores de uma universidade particular em município

vizinho, sendo que um deles é sobrinho de dona Clair e ex-aluno da escola, e o outro

tem sítio nas redondezas.

Além da precariedade física e da falta de suportes logísticos (Hutmacher, 1992),

na escola também falta pessoal do setor administrativo (diretor-adjunto, coordenador

do segundo turno, agente de pessoal) e verbas, o que presenciei no período em que lá

estive, mas que também aparece no Projeto Político Pedagógico. Tal situação

demanda freqüentemente um trabalho árduo de gestão, pois a diretora, a secretária, a

auxiliar de secretaria e a encarregada de serviços gerais (apelidada, não por acaso, de

“pau para toda obra” e “faz-tudo”) têm que fazer grandes esforços para darem conta

da burocracia, da supervisão do conjunto de recursos humanos e assegurarem o

funcionamento da escola.

4.3 Funcionamento da escola e os modos de interação coletiva

Um aspecto que define a identidade de uma escola é o modo como os sujeitos

que nela trabalham se organizam e fazem funcionar as normas escolares. A forma de

organização do trabalho escolar na escola-da-dona-Clair parece mais próxima a um

modelo anárquico de organização do que ao modelo burocrático (March, Firestone e

Herriockt, citados por Tardif & Lessard, 2005), como mostro nesta seção.

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De qualquer maneira, esta organização sofre variação do primeiro para o

segundo turno. Além do público diferenciado (crianças e adolescentes,

respectivamente) e dos professores, a existência de uma coordenação pedagógica no

primeiro turno proporciona um “clima acadêmico” (Bonamino, 2005) diferente. Já

havia notado que as professoras do primeiro turno são mais parceiras, fazem mais

pesquisas juntas e trocam constantemente experiências sobre formas de resolução de

problemas, até porque elas se encontram diariamente. Senti a diferença também no

segundo Conselho de Classe a que assisti, pois a coordenadora pedagógica Claudia

marcava posição sobre a importância de se levantarem os problemas, mas também se

encaminharem soluções, por exemplo.

A coordenadora confirma essa primeira impressão em entrevista, quando diz

que “os professores de primeira à quarta são mais receptivos, lideram projetos e

festas, e estão sempre presentes em reuniões e eventos”. Ainda, ela tem procurado

realizar reuniões pedagógicas com as professoras (sobre as quais todas as professoras

entrevistadas falaram com grande entusiasmo), para, juntas, encaminharem soluções

àqueles problemas levantados nos Conselhos e percebidos no dia-a-dia, dentre os

quais se destacam a busca pela diminuição da repetência e da evasão e a melhoria na

leitura e no desempenho dos estudantes. Um outro objetivo educacional da

coordenação é “tornar a escola um local mais prazeroso para todos”.

Os projetos coletivos da escola e especialmente do turno da tarde são criados

por alguns professores que se encontram na hora do recreio, como ocorre com a

professora de Literatura, que trabalha junto com o de História e a de Artes. Os

encontros ocorrem mais intensamente quando é um projeto da escola, como, por

exemplo, a comemoração do centenário de fundação do Distrito (segundo semestre de

2006), ou, ainda, o projeto “Meio Ambiente, crises e perspectivas” (primeiro semestre

de 2007). Mesmo assim, a interação é feita por bilhetes deixados na secretaria ou

colados à mesa da biblioteca, que, lembro, funciona também como sala dos

professores.

Tendendo mais para o “tipo ideal” anárquico do que para o burocrático, a

articulação das tarefas se realiza com grandes dificuldades na escola e a tendência é a

independência máxima entre os professores, cujas ações geralmente fogem ao

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controle da direção. Na última reunião de professores que presenciei, dona Clair

pediu a eles que a avisassem quando planejassem faltar, porque, às vezes, eram os

alunos que o faziam: “e eu fico com cara de boba”, completou ela. Por outro lado, há

uma clara relação de confiança baseada na legitimidade da maioria dos professores,

por parte da direção, declarada em vários momentos.

Ela costuma, ainda, ser muito complacente com seus professores,

freqüentemente abonando faltas que ela considera justas e não economizando em

“jeitinhos” para dar conta de gerir satisfatoriamente uma escola pública e estadual, o

que, diga-se de passagem, faz parte da cultura local, como já vimos anteriormente.

Numa primeira análise genérica, devo dizer que dona Clair é considerada a

grande “mãe” daquela família, que é a sua escola, a “escola-da-dona-Clair”. Ela é

tida, ainda, como o “elo de união dos professores”, a mãe que leva doce de leite

caseiro para compartilhar com os professores no Conselho de Classe. Participei de

duas dessas reuniões, porque queria conhecer como acontecem as interações entre os

professores fora do horário escolar. Há Conselhos de Classe quatro vezes ao ano, uma

reunião por turno, o que significa que os professores mantêm-se separados por

segmentos (com exceção da última do ano, em que há uma integração de todos).

Passado o mal estar inicial com a presença da pesquisadora, eles me pareceram à

vontade e percebi que os Conselhos se resumem a uma exposição de problemas das

turmas e/ou de estudantes.

Entretanto, alguns professores celebram a diminuição nos Conselhos da

“malhação de alunos” e a inclusão de momentos de elaboração de novos projetos, de

busca de ação efetiva para resolver problemas, além de afirmarem ser este um

momento produtivo, em que os professores podem entrar em contato com cada turma

e pensar juntos sobre as questões da escola. Por outro lado, outros professores

concebem os Conselhos como “desnecessários”, porque se perde o “espírito de

visualizar o todo” para se “falar apenas em nota”, o que fez outra professora expressar

sua opinião desta maneira: “Conselho de Classe para mim é só para encontrar os

colegas, porque não vejo resultado naquilo não! Você vai lá e fala: ‘a turma é isso, a

turma é aquilo.’ No bimestre que vem, você fala: ‘a turma é isso, a turma é aquilo’. E

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no final do ano você está falando a mesma coisa e não aconteceu nada!” (professora

Iracema).

Ainda em relação às reuniões, no início de 2007, havia um embate interno,

porque as professoras pediam que elas se realizassem pelo menos por bimestre, com

suspensão do dia letivo. Tal medida contraria ordem da Secretaria Estadual e de dona

Clair de que os professores se reúnam uma vez por semana, por duas horas, para

realizarem o planejamento coletivo, medida que não parece ser viável em uma escola

situada distante da maioria das moradias dos professores, que, em sua maioria,

trabalha em outras escolas públicas ou privadas.

Dona Clair é parente e/ou foi a primeira professora de muitos dos atuais

professores e professoras da instituição, uma das quais literalmente nasceu na escola,

pois seu pai era o zelador de lá, há mais de 40 anos, e a professora Pilar veio ao

mundo na sala onde hoje funciona a biblioteca. Mesmo sem terem “o umbigo

enterrado aqui”, como se referiu a si mesma, orgulhosamente, a professora Pilar,

muitos ex-estudantes querem, depois de cursar a faculdade, voltar à escola para

trabalhar. Ouvi de um recente ex-aluno, atualmente cursando a faculdade de

Administração em município vizinho (com notas 75, na parte discursiva, e 85, na

objetiva, do ENEM), seu desejo de “ser professor aqui, pois a gente fica com os laços

muito juntos”.

A idéia da grande mãe e da escola como uma grande família apareceu nas falas

da maioria dos professores, ex-professores e dos estudantes, das quais destaco a

seguinte: “Nosso colégio tem um diferencial que o torna único: somos uma

verdadeira família! De fato, temos laços de parentesco e amizade que nos unem em

nossa luta por uma educação de qualidade. Estamos todos implicados no processo

educativo, pois não formamos apenas alunos, mas filhos, sobrinhos, primos, netos...”

(professora Sofia)

Por outro lado, aparece uma repetida e geral reclamação à “mãe”, a quem “falta

pulso forte para punir indisciplinas” ou que “não é de tomar muito as rédeas da

escola”. Achei curioso que essa crítica parta também dos estudantes, a quem

teoricamente caberia um pedido de mais tolerância, mas o fato é que parece que dona

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Clair está cansada, cansaço que foi citado por muitos professores como negativo,

junto ao continuísmo, que é “sempre ruim”, segundo muitos deles.

Este aspecto encontra eco na fala de outros professores, que, ao contrário de

“mãe”, a consideram uma “monarca”, a “dona da escola” que acha que não precisa

dar satisfações aos pais, ou, ainda, que não se atualiza mais (“a maioria dos

professores tem formação maior que ela e, embora tenham muito para dar, não

conseguem”), “recolhe-se muito na parte burocrática”, “embarga projetos novos dos

professores”, e, ao mesmo tempo, não aceita sugestões de mudanças. Este grupo de

professores lembra também que ela lida com a escola como “a patroa, a dona da

fazenda”, que faz política em detrimento da instituição. A coordenadora Claudia

confessa que se sente impotente frente a estes embates, mas suaviza as críticas, ao

comentar que “ela reclama, esperneia, mas depois libera” os projetos dos professores.

Penso que essa postura se configura em um terceiro posicionamento em relação à

gestão: alguns professores não se alinham com a visão de “mãe”, nem com a de

“dona de fazenda”, mas buscam uma conciliação. Todas estas visões serão

cuidadosamente analisadas e interpretadas nos capítulos 5 e 6.

Uma outra característica do modelo anárquico de organização, segundo Tardif e

Lessard (2005), é a falta de definição dos objetivos gerais da instituição, o que

ocasiona uma multiplicidade de preferências sem muita coordenação. A escola até os

tem escritos no Projeto Político Pedagógico, mas o mesmo é produção individual da

professora Maria (sociologia e filosofia), com quem tive muito pouco contato e que

não se mostrou muito disponível para compartilhá-lo. Na verdade, ele foi concebido

pela maioria dos professores mais antigos, quando a demanda da Secretaria Estadual

de Educação surgiu, há alguns anos atrás, mas configura-se como uma formalidade

vazia na escola (Demo, 2006).

Ainda em relação ao funcionamento da escola, cabe ressaltar a crescente

responsabilização da Secretaria Estadual de Educação sobre a gestão da escola e o

trabalho dos professores. Mesmo que a Secretaria Estadual de Educação sequer tenha

um projeto para a educação no campo, as demandas e ordens são quase que diárias.

Não foram poucas as vezes que assisti a direção, a secretária e a auxiliar de secretaria

tentando entender e resolver uma nova determinação da Secretaria. Assim, por

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exemplo, depois de dois anos possuindo onze computadores que ganhou em uma

parceria com uma instituição americana e tendo conseguido acesso à Internet por via

federal, o colégio perdeu, no início de 2007, as duas professoras que atuavam como

orientadoras tecnológicas (OT), com a extinção do cargo pela Secretaria Estadual de

Educação, impossibilitando que as crianças tivesse acesso à nova tecnologia.

Esse fato desencadeou um protesto da professora Sofia, que enviou uma carta

ao diretor de departamento de infra-estrutura tecnológica, do Ministério da Educação,

denunciando a arbitrariedade11. Mas essa foi a única vez nesses anos que presenciei o

envolvimento direto de algum professor com as questões burocráticas da escola.

Penso que um dado muito importante da identidade dessa escola e que merece

destaque é a enorme capacidade de dona Clair gerir o colégio, com suas auxiliares

formais (auxiliares de secretaria) ou informal (Ninice, a servente “faz-tudo”). O que,

associado a uma não-intromissão no trabalho dos professores, como já foi levantado,

garante a estes uma grande autonomia para exercerem seu ofício.

Pode-se dizer que a presença do Estado na escola está mais pela ausência e

acontece, majoritariamente via avaliação dos resultados, com o Programa Nova 11 Aqui, um fragmento da carta que ela escreveu ao diretor de departamento de infra-estrutura tecnológica, do Ministério da Educação, para a qual nunca obteve resposta:

(...) estamos empenhados em elaborar projetos de Inclusão Digital. Nosso Laboratório de Informática funciona desde o ano passado. Nossa preocupação em melhorar as condições de vida do homem no campo se expressa na implementação de projetos na área de Informática Educativa e Preservação Ambiental. Nossa clientela não se resume aos alunos e professores, mas todos os moradores de Vista Alegre. Temos atendido também a ex-alunos que agora fazem faculdade. Um sonho que sequer cogitavam em sua dura realidade. Abre-se um leque de possibilidades infinitas àqueles que antes não imaginavam ser possível um futuro melhor e mais dignidade em suas vidas. Podemos avaliar o que significa para um lavrador semi-analfabeto ter um filho na faculdade? Escutamos suas histórias de vida, as árduas tarefas que desempenham para garantir a sobrevivência da família e ficamos comovidos ao perceber o orgulho que sentem por sua prole que agora pode alcançar o nível superior de ensino. (...) Na semana que passou foi instalada a Internet através da antena Gesac do Governo Federal. A vibração foi ao auge, mas logo em seguida tivemos a má notícia: a retirada dos O.T.s dos LIEDs. Uma mistura de incredulidade, frustração e revolta aprofundou uma ferida em nossos corações e mentes. Pobres de nós! Nosso sonho durou pouco... Que fazer? Não fomos sequer consultados sobre essa medida tão injustificada. (...) Por fim, gostaria de pedir que me deixassem continuar como O.T. Eu amo meu trabalho! Tenho amor por nossa gente, por essa terra abençoada, paraíso ecológico que meus ancestrais escolheram para a família dar continuidade aos seus ideais. Os frutos serão colhidos nas futuras gerações. Sei que estou no meu lugar de direito, com a missão sagrada de dar o melhor de mim, o mel de meu espírito para aqueles que não tiveram o privilégio (como eu) de procurar nos grandes centros a formação necessária para se tornar um profissional competente e de primeiríssima linha.

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Escola12. Uma política pública baseada no sistema de resultados, teoricamente, faz

com que os professores passem a assumir mais a responsabilidade pela aprendizagem

dos estudantes, o que certamente transforma a escola e a sala de aula, e, ainda, o

modo como os professores vêem a profissão e a si mesmos. Do mesmo modo, nesta

política, os fracassos dos estudantes passam a ser atribuídos muito mais aos

programas e às práticas docentes do que ao histórico e às características individuais

dos alunos.

Para Dubet (2002), a “indústria da avaliação” transforma as condições do

trabalho sobre o outro porque o trabalhador passa a ser imputado menos por sua ética

e sua conformidade à instituição burocrática e mais pelos resultados de uma ação

coletiva. Dos quinze professores estudados nesta pesquisa apenas três admitiram que

a avaliação mudou sua maneira de trabalhar. Uma, que mudou para pior.

Brooke (2006) lembra que o principal mecanismo de operacionalização do

Programa Nova Escola é o Sistema de Avaliação Permanente das Escolas Públicas,

planejado para aferir tanto a gestão quanto os processos educativos de cada escola. O

autor percebe que as inúmeras mudanças nesse sistema e no próprio Programa Nova

Escola desde sua criação dão uma idéia, já de saída, da dificuldade de se chegar a um

consenso em torno dos objetivos e métodos de um programa de responsabilização13.

12 O Programa Nova Escola, instituído pelo Decreto estadual 25959 de 12 de janeiro de 2000, é um programa que visa melhorar a gestão das escolas estaduais e responsabilizar seus diretores e funcionários pelos resultados dos alunos. Para Anderson (2005), o grande volume de recursos que tem sido destinado à educação, nos últimas décadas, levanta questões relativas à eficácia dos investimentos neste setor, num mercado global cada vez mais competitivo, e impõe uma aferição mais detalhada da qualidade da educação oferecida. Por conta da busca de se conhecerem os resultados, políticas de responsabilização (accountability policies, no original) têm sido implementadas, através das quais se obtêm informações sobre o trabalho das escolas e nas quais se consideram os gestores e outros membros da equipe escolar como co-responsáveis pelo nível de desempenho alcançado pela instituição.

O programa tem atualmente os seguintes objetivos: 1) fornecer subsídios para a formulação e monitoramento das políticas educacionais nas instâncias central, regional e nas escolas; 2) criar mecanismos de incentivo para adoção de um processo permanente de questionamento quanto às práticas pedagógica e administrativa correntes, no âmbito das escolas; e 3) conferir gratificação por desempenho aos servidores lotados nas unidades escolares (professores e demais profissionais). 13 Em 2000, iniciou-se um estudo longitudinal, que permitisse separar os efeitos do nível socioeconômico e da aprendizagem anterior dos alunos e os efeitos da escola propriamente dita, e avaliou-se o desempenho dos alunos da 3ª e 6ª séries do ensino fundamental e do 1º ano do ensino médio. Logo, em 2001 foram testadas as 4ª e 7ª séries e o 2º ano do ensino médio. Mas, em 2002 não houve coleta de dados, e em 2003, o estudo longitudinal foi abandonado e, nesse ano, foram avaliados 180 mil alunos de 4ª e 8ª séries e do 3º ano do ensino médio por aplicadores externos. O avanço é que

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Para além das condenações de caráter ideológico, que discordam do Programa

por ele instituir a competição entre as escolas e por refletir valores neoliberais

voltados para o mercado, ele enfrenta muitas críticas, principalmente dos professores.

No colégio Viola, a maioria dos professores e a direção concordam que é importante

que haja uma avaliação, porque, às vezes, ela até ajuda a melhorar tanto o trabalho de

sala como a administração, numa concordância com um dos objetivos do Programa

que é criar mecanismos de incentivo para adoção de um processo permanente de

questionamento quanto às práticas pedagógica e administrativa correntes, no âmbito

das escolas..

Por outro lado, todos os sujeitos discordam quanto à forma de concessão da

gratificação por desempenho, que é “injusta”, além de que “o significado dos testes é

confuso”, crítica esta endossada por Brooke (2006). O autor ainda enumera mais duas

críticas ao Programa, também de ordem técnica: a primeira fala do caráter normativo

da classificação de escolas; outra se refere ao uso de dados de desempenho do ano

anterior ao da gratificação: devido à freqüentemente alta rotatividade de professores e

a conseqüente volatilidade no desempenho das escolas (o que não é o caso do Colégio

Viola), o melhor seria avaliar e gratificar durante o mesmo período escolar. A

professora Tarsila, que foi muito afetada com corte de salário porque ganhou um

bebê, juntou-se a outros professores e, com apoio do Sindicato Estadual dos

Professores, move uma ação contra o Estado, relativa à questão da gratificação.

Concordo com a idéia de Brooke (2006), para quem as mudanças implantadas

com o Programa, por gerarem tanta animosidade, acabam por ofuscar o propósito da

avaliação, que é oferecer informação aos membros da equipe escolar e permitir um

diagnóstico do funcionamento da escola.

Encerro o capítulo com este quadro sobre o grupo de professores pesquisados:

neste ano foram criados os índices de Gestão Escolar, de Eficiência Escolar e de Aprendizagem, e se estabeleceram grupos de referência pela média das notas padronizadas de cada índice a fim de evitar comparações entre escolas com alunos de nível socioeconômico muito diferente. Foram criados cinco grupos de referência de acordo com a renda familiar dos alunos, a fim de se comparar escolas que tivessem um nível socioeconômico similar. Mas em 2004 transferiu-se o contrato de gestão para o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed), de Minas Gerais, e o programa foi reformulado para se concentrar na avaliação das escolas por desempenho, fluxo e gestão escolar. Os grupos de referência foram abandonados, e as 1.830 escolas avaliadas foram distribuídas em cinco níveis de qualidade com base nas notas atribuídas pelas três áreas de atuação.

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Nome Idade Anos de magistério/ na escola

Série ou matéria lecionada

Moradia Religião Formação acadêmica

Enquadramento14

Sofia 52 19/17 Todas as séries

Vista Alegre

católica Psicologia, Normal e especialização

IIA

Tarsila 37 17/17 1ª. à quarta séries

Vista Alegre

católica Normal IIA

Carmela 42 19/14 1ª. à quarta séries

Vista Alegre

católica Normal/ faculdade de pedagogia em curso

IIB

Iara 38 17/17 Ciências, quinta e sexta séries

Vista Alegre

católica Normal e adicional em Ciências

IIB

Isaura 42 22/18 Português e literatura (ensino médio)

Centro do município

católica Normal e Letras

I

Bel 48 29/11 1ª. à quarta séries

Centro do município

católica Normal II A

Aquiles 52 24/21 Educação Física, quinta série em diante

Centro do município

católica Educação Física e especialização

I

William 42 15/10 História, sétima série em diante

Vila próxima à Vista Alegre

Católico praticante

Normal, História e especialização em História do Brasil

I

Jéferson

51 30/17 História, quinta e sexta séries

Centro do município

católica Normal, História e especialização em História Geral

IIC

Henrique

46 22/15 Inglês, quinta série em diante

Centro do município

católica Normal e Letras

IIB

Maísa 39 18/10 Artes, quinta e sexta série

Centro do município

católica Artes e especialização em Artes

IIB

Pilar 46 25/15 Matemática quinta e sexta séries

Centro do município

católica Normal e adicional em Matemática

IIB

Iracema 47 25/12 Português, quinta e sexta séries

Centro do município

católica Normal e adicional em Português e Matemática

IIB

Mariana 46 20/17 Geografia, sétima-série em diante

Vista Alegre

católica Normal e Ciências Sociais

IIC

Maria 39 17/16 Sociologia e filosofia

Centro do município

católica Normal, Pedagogia e especialização

IIC

14 Chave: I: professor com curso Superior; IIA: professor com curso Normal; IIB: professor com curso Normal e curso Adicional; IIC: professor com curso Normal e curso Superior. Para o Estado, D é o professor com curso Superior e Especialização. Dentro do grupo estudado, 6 professores têm os cursos, mas não conseguem enquadramento.

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5 As identidades dos professores da escola-da-dona-Clair

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta, mas um dia afinal eu toparei comigo. (Mário de Andrade)

Neste capítulo, apresento os principais eixos que emergiram das histórias da

vida profissional dos professores da escola-da-dona-Clair a partir de uma discussão

acerca das identidades profissionais.

Comecei por realizar uma abordagem exploratória das entrevistas, cujo objetivo

principal foi o de recuperar as trajetórias de vida de cada um. As narrativas de vida

estão em anexo (6), mas sobre elas devo comentar dois pontos aqui. O primeiro é que

a narrativa por mim produzida é uma reconstrução das histórias de vida contadas nas

entrevistas, que por sua vez já se tratavam de uma reconstrução dos professores sobre

suas trajetórias pessoais. Para diminuir a distância (e possível distorção) tive o

cuidado de manter o máximo possível das frases e palavras usadas pelos professores.

Outro aspecto importante consiste no fato de que todas as histórias de vida em

algum momento cruzam com a minha própria história, de maneira mais ou menos

direta, uma vez que nasci e vivi por 18 anos na região. Sabe-se que uma investigação

é um processo antes de tudo pessoal de construção de um objeto de estudo e envolve,

de início, um desejo de compreender um fenômeno social instigante tanto do ponto de

vista intelectual quanto emocional. Além disso, ouvir, transcrever e narrar essas

biografias foi um exercício diário de desconstrução de idéias estáveis e naturalizadas

sobre o ofício docente.

Neste caso, sinto-me acompanhada de Boaventura Souza Santos (2002), para

quem “saber viver” conecta-se à compreensão íntima do ser humano de que há uma

união entre ele e o objeto alvo de estudo. Este passa a ser, portanto, uma própria

extensão do sujeito, implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento

sobre o objeto, diretamente, e sobre o próprio sujeito, indiretamente.

Pensar o ofício docente em sua dimensão biográfica e contextual significa

discutir as ocorrências principais, semelhanças e especificidades das identidades dos

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100

professores da escola-da-dona-Clair, levando em conta a força das histórias de vida e

a força do contexto de trabalho. Frente ao desafio, decido usar como referencial

teórico, entre outros, as reflexões de Hall (2003) e Bakhtin (1992), mas encontro em

Claude Dubar (2005, 2006) um interlocutor que fundamentalmente ajuda a investigar

a dinâmica questão das identidades em uma escola, pois ele traz a possibilidade de

pensar a dimensão biográfica junto com a perspectiva institucional.

Devo dizer, ainda, que se concordo com a tese de Dubar sobre a centralidade do

trabalho na vida pessoal e sobre a eminência das identificações profissionais na vida

social, preciso levar em consideração a cultura da escola onde os professores

trabalham e, no âmbito macro, considerá-la uma instituição que, como outras da

contemporaneidade, sofreu mutações em seu programa institucional (Dubet, 2002).

5.1

O processo de negociação identitária

Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe), etc. e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos

outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da representação que terei de mim mesmo. (Bakhtin)

Diversos discursos contemporâneos falam em transformações profundas e

complexas em todas as áreas – social, cultural, política, econômica. Esses discursos

tentam de alguma maneira dar forma e nome a experiências cada vez mais fluidas,

imprecisas, fugazes, vividas por um sujeito cuja identidade não é mais considerada

fixa, essencial ou permanente.

Várias são as razões para o estudo da identidade dos professores ter passado a

ocupar um lugar importante nas ciências sociais. Para Lawn (2001), a identidade

docente é um componente essencial do sistema educacional, pois simboliza o sistema

e a nação que o criou, e sua gestão é crucial para a compreensão dos sistemas

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101

educativos tanto democráticos quanto totalitários. Mas, aqui neste estudo, o foco é

dado nos sujeitos e nos sentidos que dão a sua existência e a seu trabalho. Para isso,

alinho-me a autores que consideram que o amplo processo de transformações

ocorrido na atualidade faça com que os parâmetros tradicionais de estabilidade dêem

lugar à dúvida, à incerteza, à fluidez e ao constante deslocamento.

O confronto com a multiplicidade desconcertante de opções e estilos de vida ou

a velocidade com que os discursos e as imagens circulam e desaparecem globalmente

nos leva a um esforço contínuo de reconstrução da vida cotidiana em termos de

interação do local e do global, e a uma dificuldade de registro na memória (Hall,

2003). Ainda, viver uma situação de ambivalência devido à perda dos monopólios das

instituições e a uma crescente desestabilização das imagens institucionais e das

funções e papéis profissionais (Dubet, 2002) ocasionam a propalada crise identitária e

fragmentação do indivíduo moderno.

Desta forma, a procura da identidade na “sociedade da modernidade fluida”

(Bauman, 2000, p.31) é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de

solidificar o líquido, de dar forma ao disforme. Para o autor polonês, as identidades

contemporâneas, embora pareçam ser fixas e sólidas quando olhadas de relance e

vistas de fora, são, na verdade, voláteis e instáveis.

Entre as diferentes abordagens teórico-metodológicas sobre o tema identidade,

também é grande a diversidade terminológica dos autores: “eu”, “self, “sujeito”,

“subjetividade”, “face”, “imagem”, “papel”. O que parece evidenciar a dificuldade de

uma explicação definitiva à pergunta “quem somos nós?”, dificuldade esta que pode

ser justificada pela complexidade do processo de identificação dos seres humanos

neste início do século XXI. Se pudessem se encontrar, Hall (2003) teria dito ao poeta

Mário de Andrade, cuja frase abre este capítulo, que uma identidade completa,

unificada e coerente é apenas fruto de “uma cômoda estória sobre nós mesmos ou

uma confortadora ‘narrativa do eu’” (Hall, 2003, p.13) e deve ser vista como uma

fantasia cultural.

Entretanto, em meio a essas diferentes perspectivas, uma comum merece

destaque e será adotada neste estudo, que é o repúdio a uma concepção cartesiana e

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102

essencialista da identidade, na qual os processos são individuais e internos, herdados

no nascimento. É a adoção da idéia de processos sociais intersubjetivos como ponto

de partida. Segundo este ponto de vista, a identidade passa a ser vista como uma

construção social, cultural, criada no contexto, não podendo ser definida por fatores

biológicos.

Deste modo, a identidade do “sujeito sociológico” (Hall, 2003) é formada na

mediação com o ambiente em que ele habita, sendo construída e modificada no

diálogo ininterrupto com as outras identidades do mundo social. Nesta construção da

subjetividade a partir do outro, mais um aspecto crucial é dado por Bakhtin (1992),

para quem todo discurso evoca outros discursos e outras práticas discursivas, o que

realça o caráter polifônico do “eu” e a noção de alteridade, como aparece no excerto

que inicia este segmento. Não há, nesta perspectiva, identidade sem alteridade, como

disse Dubar em 2006 (p.9), e a construção da identidade é um processo contínuo de

articulação do individual com o intersubjetivo, do “eu” (ou “eus”) com os “outros”,

no qual as instâncias privada e pública se encontram em um constante diálogo.

Analisando a formação e a crise das identidades profissionais, Dubar (2005,

2006) se interessa especialmente pela intersecção das esferas pública e privada em

contextos de trabalho, por compreender que estes dois domínios estão em jogo no

processo de construção de identidades profissionais, formas identitárias definidas

como configurações Eu-Nós. Nas “lógicas dos atores na organização”, há o encontro

de dois processos heterogêneos: um processo social de atribuição da identidade pelos

outros agentes e pela instituição, que pode ser analisado neste sistema de ação; um

outro processo, privado, vivido pelo próprio indivíduo que incorpora sua identidade

durante sua trajetória de vida (“interiorização ativa”, na qual há uma transação

subjetiva entre as identidades herdadas e as visadas, entre o passado e o futuro).

Para Dubar (2005, p.136), a identidade é o resultado dos diversos processos de

socialização (ao mesmo tempo, estável/provisório, individual/coletivo,

subjetivo/objetivo, biográfico/estrutural) que, em conjunto, constroem os indivíduos e

definem as instituições. Com essa definição, ele busca introduzir a dimensão do

sujeito na análise sociológica, porque acredita que ocorre um movimento subjetivo

(“identidade para si”), ou seja, qual identidade eu reivindico para mim frente ao

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103

outro, e um outro movimento, intersubjetivo (“identidade para o outro”), ou seja,

como o outro me percebe.

Este movimento intersubjetivo (nomeado “transação objetiva”) diz respeito à

trajetória pelo mundo público e envolve uma série de atribuições - como nome,

números, classe social, gênero, profissão, etnia, raça, senhas, conta bancária, acesso

ou não à Internet, perfil em comunidades virtuais -, que nos diferenciam,

categorizam, posicionam. Nota-se, assim, que nesta esfera do público ocorrem

relações de força e de poder, além da possibilidade de discriminação e todo tipo de

estereótipos. Este movimento de “transação objetiva” dialoga todo o tempo (nem

sempre de acordo), com as “identidades herdadas e visadas”, construídas com base

em nossas trajetórias vividas, que fazem parte de nossa biografia (“transação

subjetiva”). Este diálogo entre os movimentos é chamado de negociação identitária,

“um processo comunicativo complexo, irredutível a uma ‘rotulagem’ autoritária de

identidades predefinidas com base em trajetórias individuais” (Dubar, 2005, p.141).

Este autor vê na intersecção dessas duas transações a chave da dinâmica

constitutiva das identidades sociais e apresenta-as discriminando suas categorias de

análise, o que adapto aqui para efeito de meu estudo1:

“Processo relacional”

Processo social público (institucional)

“Processo biográfico”

Processo social privado (individual)

“Identidade para o outro” “Identidade para si”

“Atos de atribuição”

(como os outros me percebem)

“Atos de pertencimento”

(como digo que sou/quero ser percebido)

Identidade atribuída

(nome, classe social, gênero, profissão, etnia etc)

“Identidade predicativa”

(pertença reivindicada)

“Transação objetiva” (intersubjetiva)

(entre identidades atribuídas e identidades assumidas)

Transação subjetiva

(entre identidades já construídas e identidades visadas)

Experiência relacional e social de poder Experiência de estratificações, discriminações e desigualdades sociais

1 A linha pontilhada entre os dois processos apresentados no quadro é uma tentativa formal de explicitar que há uma total integração entre as duas dimensões, divididas aqui para efeito didático.

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104

Com base neste referencial, descrevo e analiso, a seguir, os processos sociais

constituintes das identidades profissionais dos quinze professores, tanto em seu

âmbito público quanto no privado, assim como em sua relação: a identidade para o

outro, a identidade biográfica e as identidades relacionais, que comportam as

experiências sociais de poder.

5.1.1

A identidade para o outro: “os professores dessa escola são ótimos”

Eu valorizo muitos os professores daqui. Os professores dessa escola são ótimos! Pouquíssimos

deixam a desejar. (dona Clair - diretora)

Esta frase da diretora do colégio Viola por 50 anos resume um aspecto

fundamental da identidade para o outro do grupo pesquisado: os professores são

considerados “muito sérios”, “responsáveis” e dedicados, tanto em suas atuações

dentro quanto fora da sala de aula, qualidade esta que é destacada pelos outros

profissionais da instituição, por ex-professores, membros da comunidade, dentre os

quais a atual Secretária Municipal da Educação, além dos próprios professores

quando falam do grupo de colegas2. Tal valorização dos professores pode ser notada

também no discurso espontâneo da maioria dos alunos mais adiantados da escola com

quem conversei, para quem muitos docentes são “perfeitos”, “excelentes”, “altamente

capacitados”, “eficientes”, “dedicados”, “amigos”, “explicam bem a matéria e cobram

o que ensinam”.

Os professores da escola não somente desfrutam de um bom status social como

têm autonomia em seu processo de trabalho na escola-da-dona-Clair3, apesar de a

própria dona Clair reconhecer que ser professor já foi mais “compensador”, pois se

2 Vale dizer que os que “deixam a desejar” foram citados até nominalmente por outras pessoas, mas eles não fazem parte do grupo pesquisado, cujos professores, lembro, trabalham há mais tempo no colégio. 3 Como mostro no capítulo 4.

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105

tinha um plano de carreira, um maior salário, um melhor estatuto social: “era a

professora”. De qualquer maneira, a diretora sempre buscou escolher seu corpo

docente e ainda hoje procura se “informar nas escolas anteriores” antes de aceitar4.

Ela os percebe respeitando seus alunos, tendo compromisso com a função docente,

procurando “dar o máximo de si”, e, como dito antes, classifica-os da seguinte

maneira: 1) a maioria, que se interessa por tudo da escola (desenvolvimento do

currículo, funcionamento burocrático); 2) aqueles que só se ocupam da aula.

Uma realidade que contrasta com a atual imagem docente presente nas

pesquisas sobre o exercício do ofício (Hypolito et al, 2003; Gariglio, 2004; Vicentini,

2005; Nascimento, 2005), que aponta para uma crise identitária dos professores,

descrita tanto como uma visão social negativa da profissão, como uma desvalorização

do estatuto social e uma proletarização do ofício – idéia esta muito discutida no meio

educacional desde o texto de Enguita em 1991.

Outro aspecto da identidade para o outro comum ao grupo de professores

pesquisados, independentemente da série e da disciplina ensinada, é expresso na

seguinte fala do professor William, de História: “O fundamental é o bom

relacionamento com os alunos. O aluno pode até não gostar de sua matéria, (...) pode

não gostar de História, tudo bem, mas não gostar de você é um problema sério”.

Cerca de treze dos quinze professores falam espontaneamente de como valorizam a

boa imagem que os estudantes têm deles como uma característica fundamental para o

exercício do ofício. O ato de atribuição é expresso como ter “respeito ao aluno”,

“preocupação com o aluno”, “amizade para que ele goste daquele momento”, “amor

ao trabalho” e “envolvimento emocional”.

Tal atribuição alinha-os a uma identidade tradicional do antigo professor

primário e revela uma lógica identitária de construção da experiência docente baseada

na relação pessoal e afetiva com os estudantes. Este perfil da identidade para o outro

deste grupo provavelmente ganha força por um aspecto da identidade construída

dentro do processo biográfico, pois, devo lembrar, treze docentes foram professores

primários em escolas rurais no início de suas carreiras.

4 Em sua entrevista, o professor Henrique, de inglês, contou-me como foi abordado por dona Clair na porta da padaria da cidade, ainda quando estudante da faculdade de Letras, e convidado a trabalhar no Viola.

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106

A valorização do conhecimento da disciplina a ser ensinada é outra

característica do processo social público do grupo. O domínio de um conteúdo e a

formação disciplinar são lembrados como fundamentais para o bom exercício do

ofício por mais da metade dos docentes, mesmo por aqueles que não têm uma sólida

formação acadêmica, só estudaram no curso Normal e trabalham com as séries

iniciais do ensino fundamental. Essa característica aproxima os professores da escola-

da-dona-Clair do perfil dos professores secundários da escola dos outros tempos

(“das certezas” e “das promessas” na nomenclatura de Canário, 2005)5, quando a

vocação estava menos ligada à pedagogia e mais à disciplina a ser ensinada

(Perrenoud, 1993; Dubet, 2002).

Para Dubet (2002), essa defesa da disciplina a ser ensinada está ligada a uma

parte da identidade dos professores secundários, que, realizando sua experiência entre

o estatuto (o lugar que lhe atribui o sistema) e o ofício (o modo de realizar seu

trabalho), defendem o estatuto como uma maneira de inscreverem sua identidade

individual em uma identidade coletiva.

A disciplina ensinada como fator fundamental da afirmação da identidade

profissional é idéia defendida por vários pesquisadores, como Monteiro (2002) e

Borges (2002). Para esta última pesquisadora, os conhecimentos disciplinares, assim

como os da experiência do professor, compõem o conhecimento pedagógico da

matéria e, ao mesmo tempo, igualam-se a ele em importância. E esses conhecimentos

disciplinares são reinterpretados por cada professor a seu próprio modo, a partir do

arcabouço da sua história de vida e na lida diária, na relação com seus estudantes.

Formando, desta maneira, a chamada “identidade para si” de que fala Dubar (2005).

Atividade que faz lembrar uma outra qualidade apontada como inerente à

identidade docente e que aparece em vários trabalhos acadêmicos: a identidade

mediadora no processo ensino-aprendizagem, que pode chegar a constituir-se em o

professor ser tomado como um ator social que transita entre vários contextos

socioculturais e que estabelece comunicação entre diferentes grupos sociais, podendo

até mesmo ser agente de transformação (Loureiro, 2004; Arroyo, 2007; Pimenta,

1997).

5 Como apresento no capítulo 2.

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107

Tradicionalmente, os saberes a serem transmitidos na escola são baseados em

um estatuto científico que os coloca em ruptura com os saberes práticos das instâncias

tradicionais de socialização (família ou outros espaços de sociabilidade). Em um

estudo como este, em uma escola rural, pode-se dizer que a grande ponte construída

pelos professores é entre a cultura social rural de referência dos estudantes e a cultura

escolar, marcadamente “urbana” e estranha ao cotidiano dos estudantes, que deve ser

por eles conhecida e interiorizada. No Brasil, a perspectiva política da modernização

do início do século XX significou industrializar e urbanizar, e a escola rural tem se

apresentado desde então como uma mediação entre a mentalidade urbana e a rural,

servindo para “civilizar” os rudes homens, crianças e mulheres do campo (Capelo,

2004).

5.1.2

A identidade biográfica para si

Analiso nesta seção os “atos de pertencimento” do grupo. Trata-se de como os

professores dizem que são e querem ser percebidos.

5.1.2.1 Um grupo docente “espetacular”

E o corpo docente é muito bom! (...) Já aconteceu de chegarmos e não ter ninguém da direção. Nós cumprimos o horário normal, sem problema nenhum. (...) Podemos reclamar, mas no trabalho somos

muito sérios. Mas muito sérios mesmo! O pessoal é espetacular! (professor Aquiles – educação física).

Sou daqueles que ainda querem (...), contra tudo e contra todos, uma escola séria. Que ensine, que cobra e que forma. Que dá o mesmo conteúdo de uma escola particular (professor Jéferson -

história)

Porque durante as aulas... não sou de sair de sala toda hora, quero que o aluno possa contar comigo. Faço um trabalho de sala e quero que o aluno não leve dúvida para casa. (professor Henrique -

língua inglesa)

Essas falas dos professores são emblemáticas do grupo, que tem uma elevada

auto-estima, em que pesem as reclamações à desvalorização da profissão pelo Estado,

por alguns (poucos) “novos” alunos, pelo individualismo característico do

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108

profissional, problemas estes levantados pelos professores em suas narrativas. Todos

demonstram um forte compromisso com a educação para a promoção de mudança;

seriedade no exercício da profissão; uma manifesta disponibilidade ao trabalho

escolar dentro e fora de sala de aula; sentimento de respeito por parte do alunado. Em

resumo, naquele contexto, os professores se vêem como profissionais

compromissados, sérios, disponíveis à relação pedagógica e respeitados. Como

mostram essas declarações dos professores de história, artes, língua portuguesa e

ciências:

Eu geralmente não tenho problema disciplinar não. Eu intimido muito, porque sou muito quieto. Não tenho problemas com os alunos. Eles me respeitam bastante. Mas acho que a disciplina vem pelo seguinte: o que eu combino no primeiro dia de aula vou cumprindo item a item. Eu combino e cumpro. Na escola pública, está muito fácil de trabalhar para quem não quer trabalhar. Se você não quiser fazer, não faz nada. Eu combino na escola pública as mesmas regras que tenho na escola particular. (William-história)

Sou exigente no sentido que não gosto de muita conversa em sala de aula.(...)Eu quero que eles tenham o máximo, que façam os trabalhos da melhor forma possível. Tem aluno que desenha e pinta muito melhor do que eu. (Maísa-artes)

Eles estão acostumados com minha postura. Eu cobro mesmo. Eu dou para eles aquilo que acho o máximo. Eles mereciam muito mais, mas o tempo não dá. (Iracema-matemática)

Hoje mesmo disse para meus alunos: ‘Sabem por que eu faço isso? Porque amo vocês. Se eu não gostasse, eu deixava a vaca ir para o brejo. Eu quero fazer com vocês o que espero que os professores de meu filho façam quando ele crescer’. (Iara-ciências)

A relação entre a pessoa do professor e sua profissão tem sido usada para

compreender os significados do trabalho docente em trajetórias individuais desde que

Nóvoa (1992b) apontou a imbricação entre o pessoal e o profissional numa profissão

impregnada de valores e ideais e exigente do ponto de vista da relação humana, como

apareceu na análise sobre o processo social institucional da escola-da-dona-Clair.

As imagens dos professores são explicitadas por eles próprios durante as

narrativas de vida (anexo 6) com os seguintes atributos: Sofia (todas as séries), a

doce, amorosa e subversiva mestra-amiga; Tarsila (séries iniciais), a pintora guerreira

e inquieta; Carmela (séries iniciais), a professora-mãezona, pau-para-toda-obra; Iara

(ciências), a cientista curiosa; Isaura (língua portuguesa e literatura), a profissional

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109

séria (mas brincalhona) e encantada (mas desestimulada); Bel (séries iniciais), a

pesquisadora franca e necessária, apesar de extremista, temperamental e brava;

Aquiles (educação física), o inesquecível personagem individualista; William

(história), o comunicador tímido; Jéferson (história), um rigoroso na contra-mão;

Henrique (língua inglesa), o amigo sério e organizado; Maísa (artes), a professora

enérgica e carinhosa; Pilar (matemática), a tranqüila tia, cujo umbigo está enterrado

na escola; Iracema (língua portuguesa), a nostálgica sistemática; Mariana (geografia),

a dinâmica professora-diretora; Maria (filosofia e sociologia), a que tem preocupação

com o ser humano.

Apesar de considerar que as histórias de vida dos professores compõem um todo

orgânico que une a dimensão pessoal com a dimensão profissional, analiso aqui o

processo biográfico em suas características comuns a todos (ou a maioria dos) os

professores, procurando entender como se foi dando o processo de identificação dos

docentes estudados a ponto de eles se tornarem professores. Isto sempre tentando não

esquecer da heterogeneidade típica do ofício, e, conseqüentemente, das identidades,

especialmente pela dificuldade em se retratar o singular e pessoal, as pertenças

reivindicadas por cada professor individualmente. Trata-se, assim, de discutir a

escolha do ofício, como se constrói o saber profissional e como se produzem

princípios éticos comuns.

As marcas deixadas pela família de origem iniciam a análise. Sabe-se que

quatorze dos quinze professores estudados são nativos da região rural. Sete deles

dizem pertencer à classe média, cinco à classe média-baixa, um à média-baixíssima e

uma à pobre. Entretanto, sabe-se também que Sofia, Mariana e Maria pertencem de

fato à classe alta, pois seus pais e avós eram proprietários rurais que detêm a posse

dos meios de produção. Seis outros professores (Tarsila, Iara, Pilar, Iracema, Jéferson

e Bel) provêm de famílias de pequenos proprietários rurais, além do que Maísa e

William são filhos de lavradores assalariados. Henrique, Isaura e Aquiles pertencem a

famílias moradoras do centro urbano, o pai do primeiro era motorista e a mãe, dona

de casa, a mãe de Isaura era uma lavadeira, e a de Aquiles, costureira. Alguns desses

professores (nomeadamente Tarsila, Isaura, Bel e Maísa) acumulam tarefas

profissionais com as domésticas e maternais, situação esta vivida como de sobrecarga

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de trabalho para Tarsila, William, Jéferson, Maísa e Iracema, que têm filhos pequenos

ou se dizem cansados do exercício do ofício.

Todos os docentes se dizem católicos, sendo que Aquiles se qualifica como

“católico ABC” (freqüenta Aniversários, Batizados e Casamentos). Afirmam gostar

muito de ler e estudar, o que fazem nos fins de semana, principalmente. Dois deles se

descrevem como escritores (Sofia e William), duas como pintoras (Tarsila e Bel) e

um como atleta, nas horas vagas. Eles se autoclassificam como pertencentes ao grupo

étnico branco, menos Aquiles, que é pardo, Isaura, “negra, com certeza!” e William,

“produto da mistura de uma negra com um loiro”.

5.1.2.2 A escolha profissional possível

Se os membros das classes populares e médias tomam a realidade por seus desejos, é que, nesse terreno como nos outros, as aspirações e as exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas

condições objetivas, que excluem a possibilidade de desejar o impossível (Bourdieu)

Pelos relatos de vida dos professores pode-se perceber que os primeiros traços

de suas personalidades, os valores e até o dever moral foram sendo aprendidos com as

mães, avôs e avós, no processo de socialização que Arroyo (2007) curiosamente

chama de “estágio-contágio entre humanos”. Embora concorde com este autor que

tanto o gênero feminino como a origem de classe influenciam na escolha e na

identificação da profissão docente e que é um “fato social” que o magistério tem sido

uma opção possível para as mulheres das camadas médias baixas, tendo a relevar

outro “fato”: os professores do grupo pesquisado foram incorporando valores e estilos

de ser professor também por falta de opção de outros cursos de formação profissional

e/ou de espaço de trabalho no meio rural6. Não escolheram a profissão que

desejavam, mas a que foi possível, menos pela condição de classe ou de gênero e

mais pelo local em que nasceram e moram. Apenas duas professoras falam de seu

6 Tarsila queria ser pintora; sua irmã, Iara, bióloga ou enfermeira; Aquiles, atleta; Isaura, jornalista; William, repórter; Maísa, nutricionista; Iracema, dona de loja; Henrique, comissário de bordo; Pilar, secretária; Mariana, assistente social; Maria, psicóloga; mesmo a psicóloga Sofia tornou-se professora.

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desejo desde jovem de ser professora, o que fazia com que uma “brincasse de

escolinha” e a outra se oferecesse para substituir professores ainda no curso Normal7.

Para Bourdieu (2004), os grupos sociais vão construindo um conhecimento

prático (não totalmente consciente) relativo ao que é possível ou não de ser alcançado

pelos seus membros dentro da realidade social concreta na qual eles agem, e sobre as

formas mais adequadas de fazê-lo. O fenômeno de interiorização das oportunidades

objetivas, até que elas se encontrem transformadas em esperanças e desesperanças

subjetivas, foi descrito e denominado por ele de “a escolha do destino” (Bourdieu,

2004, p.46), e desenvolvido por Lelis em sua tese de doutorado (1996), para quem a

escolha da profissão é, na verdade, “a escolha na não-escolha”.

Em que pese a falta de opção, a grande maioria dos professores conta em suas

narrativas como foi gostando, achando que “tinha queda pela profissão”, como ficou

“encantada”; enfim, foi se identificando com a atividade do magistério: “Parece que

eu tinha nascido para aquilo: adorei! De imediato, adorei.” narra Henrique,

atualmente professor de inglês da escola, mas que também lecionou como professor

de todas as séries em escolas rurais multisseriadas. A grande maioria dos professores

demonstra certa satisfação com a profissão, mesmo a “desanimada” Isaura, para quem

o trabalho docente é também encantador e que traz satisfação, quando bem feito. O

trabalho é gratificante para a “subversiva” Sofia, porque ele forma pessoas capazes de

transformar o mundo. William diz que é bom ser professor porque é a sala é um dos

poucos lugares em que ele se “solta mesmo”. Para Tarsila, o exercício do ofício é

uma oportunidade de pesquisar “uma forma mais feliz de ensinar”. Bel gosta dos

alunos, com os quais se identifica e para quem ela se sente “necessária”. Carmela se

diz realizada e satisfeita por poder entender mais das outras pessoas e fazer diferença

na vida delas. Aquiles crê ter encontrado a sua platéia. Iara se emociona ao imaginar

que o aluno reconhece que foi com ela que ele aprendeu muitos assuntos, passou boa

parte da infância ou juventude e que, juntos, aprenderam; o professor Jéferson pode

realizar sua missão cristã de formar espiritualmente os seres humanos, seres eternos;

Henrique e Maísa gostam do contato diário e do retorno às atividades propostas; Pilar

7 Devo lembrar de Aquiles que diz: “a profissão me escolheu”, mas que, entre todos, foi o único que era da cidade e “escolheu” se formar professor e ir morar na zona rural.

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acha bom o “leva-e-traz de aprendizagens”; para Maria, é gostoso conhecer as

pessoas e ajudarem-nas a se auto-conhecerem; Mariana não soube responder a esta

pergunta.

5.1.2.3 A formação na prática

O saber do professor traz em si mesmo as marcas de seu trabalho, (...) ele não é somente utilizado como um meio de trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho. (Tardif & Lessard)

Dentre os vários condicionantes da biografia às identidades profissionais,

destaque especial para as muitas e inesquecíveis experiências escolares, como

estudantes e como professores formados. Sobre os percursos escolares, as imagens de

antigos professores estão na memória e são reveladas durante a narrativa. Falam de

como aprenderam com os antigos mestres a ser professor: conteúdos, técnicas de

trabalho, atitudes diante dos estudantes, traços seculares do ofício docente. Se com a

família dizem ter aprendido valores éticos, com os antigos professores passaram a

criar competências profissionais, que, segundo pesquisas, são duradouras através dos

tempos e pouco transformadas pela formação acadêmica (Tardif, 2002).

Por outro lado, a maioria dos docentes tem consciência que o maior aprendizado

do jeito de ser professor foi feito mesmo dentro da escola, mas quando eles já

exerciam o ofício. Todos os professores são concursados duas vezes e reivindicam

para si uma identidade de experientes e seguros no exercício do ofício atualmente.

Por este caminho, problematizo a idéia de identidade em perspectiva semelhante à de

Tardif (2002), para quem os docentes são quem são de tanto fazer o que fazem.

Com exceção de Maísa (artes), os professores do estudo afirmam ter um estilo

pessoal de exercer a profissão. Os estilos de trabalhar são pessoais e singulares, no

que se refere à abordagem de um conteúdo novo, nas formas de gerir a turma, de

planejar e avaliar. Para lembrar, a título de exemplo, Sofia (todas as séries) realiza as

atividades de aula sempre buscando trabalhar nas três vertentes, a sensibilização (feita

através da música e do desenho), o desenvolvimento do raciocínio (com

questionamentos) e da expressão, oral e escrita. Carmela (séries iniciais), por sua vez,

é uma mãe para seus alunos, apresentando-se para eles sempre disposta a dar-lhes

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prazer. Tarsila (séries iniciais) aborda os conteúdos a partir do convívio com os

alunos, de quem recolhe e considera as múltiplas diferenças. Bel (séries iniciais)

também acredita nas perguntas curiosas como ponto de partida para o trabalho de

pesquisa, que começa com o diagnóstico da turma e as necessidades dos alunos, a

partir de onde ela inicia o trabalho coletivo de pesquisa. Essas duas professoras têm

um jeito parecido de trabalhar no que se refere à pesquisa e a uma preocupação maior

com o processo de ensino-aprendizagem do que com os resultados em si. Assim

também, Isaura (língua portuguesa e literatura) e Iara (ciências) parecem ter uma

semelhança no modo de introduzir um conteúdo, que é a preocupação de partir do já

conhecido, de afirmar junto aos estudantes um saber do grupo, antes de colocar o

novo. E somente depois de sistematizarem o conteúdo junto com os estudantes, elas

partem para a leitura de textos de livros. As duas também acreditam na

individualização do trabalho de sala, como forma de atrair todos. Isaura fala, ainda,

de como se ocupa de explicar a função social da língua, como uma forma de garantir

o interesse dos estudantes. Interesse dos estudantes também é uma preocupação de

Aquiles (educação física), para quem o aluno deve gostar da matéria e do professor.

Para tanto, ele capricha nos “jogos de cena”, mas insiste na importância do

planejamento, sabendo desde o início do ano para onde quer ir e como vai fazer para

lá chegar. William (história) diz acreditar na troca de informações entre o professor e

seus estudantes, quando busca estabelecer relações temporais da história e levá-los à

reflexão. E assim por diante.

Embora os estilos de trabalhar sejam únicos, há algumas características comuns

ao grupo. Uma característica do trabalho docente é condicionar os estudantes à

cultura escolar (cultura estranha ao seu cotidiano), fazer com que eles a interiorizem,

conheçam-na e até mesmo se reconheçam nela, tornando-se alunos, uma categoria

escolar (Tardif & Lessard, 2005). Um modo de vencer este desafio usado pela

maioria dos professores da escola tem sido dar sentido ao trabalho escolar. O que

acontece na prática de buscar “entrar no mundo dos alunos” (William); emparelhar a

cultura cotidiana à cultura escolar; dar exemplos da vida cotidiana ou usar nomes e

fatos conhecidos; oferecer um tratamento individualizado, uma atenção particular;

estabelecer uma relação carinhosa; relacionar o passado com o presente; ou mostrar a

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aplicabilidade daquele conhecimento para a vida cotidiana. Sempre se “buscando

atrair a atenção dos alunos para o assunto” (Iara). Esta professora, Bel e Tarsila

também dizem valorizar o saber do aluno e trazê-lo antes de abordar um conteúdo

novo.

Sobre a introdução de assuntos novos, uma prática que emergiu foi a revisão

cotidiana de conteúdo, usada tanto para localizar os alunos e o professor na matéria,

como para averiguar o aprendido. Outra igualmente importante é o valor do

planejamento, mesmo que se tenham muitos anos de exercício do ofício.

Os professores pesquisados revelam, em maior ou menor grau, um rigor no

estabelecimento de critérios de avaliação de seus alunos, estes geralmente colocados

às turmas no início do ano e seguidos. Contudo, eles parecem estar mais preocupados

em garantir um acompanhamento e uma participação sistemática nas atividades do

que aferir conhecimento adquirido.

Em relação à força da experiência no exercício do ofício, uma palavra acerca

das representações que os professores têm dos seus estudantes da escola-da-dona-

Clair, pois estes são sujeitos privilegiados quando se trata de uma profissão de

relação. Doze professores estudados afirmam que houve uma mudança no perfil do

alunado nos últimos anos e que ficou mais difícil trabalhar, porque há menos

integração, disciplina e interesse pela escola por parte dos estudantes. Ainda assim,

todos os quinze professores têm uma visão extremamente positiva dos estudantes, que

são qualificados como “brilhantes”, “muito interessados”, “orgulhosos da escola”,

“tranqüilos”, “simples”, “muito bons”. Este aspecto parece ser o fator que mais pesa

para que os professores, mesmo os que moram distante, continuem vencendo os

quilômetros que separam suas casas da escola, há pelo menos dez anos.

Além dessa disposição, outra tendência da percepção que os professores têm

dos estudantes pode ser observada. Alguns consideram os estudantes como

“coitadinhos”, “pobres” e “carentes”, enquanto outros acreditam trabalhar com

pessoas que estão ser tornando autônomas, possuidoras de uma cultura interessante e

atraente.

Ainda em relação a seus processos sociais privados (Dubar, 2005), devo lembrar

das comuns histórias do grupo sobre as difíceis experiências iniciais em escolas rurais

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distantes, nas quais exerciam múltiplas funções, desde a de professor unidocente até

gestor da verba pública e do processo pedagógico. Experiências que os fazem

reivindicar uma identidade de autonomia e de luta neste período, percebida em frases

como “tive que correr atrás”, “procurei conselhos com professores mais experientes”,

“não tinha sido formado para isso”.8

Afora terem vivido experiências com turmas multisseriadas e/ou terem atuado

como diretor e/ou coordenador, alguns professores deram aulas de todas as

disciplinas no meio rural9. Estas vivências parecem ter-lhes oferecido uma

experiência pedagógica singular, tornando-os professores generalistas e possuidores

de uma visão sistêmica da escola e do trabalho em sala de aula.

Dentro do processo biográfico e mais especificamente na transação subjetiva

entre essas identidades herdadas durante as histórias pessoais e as identidades

visadas, notam-se dois traços diversos, mas comuns, a dois grupos de professores.

O primeiro traço é que, apesar do longo tempo de exercício do ofício, onze

professores ainda estão investindo na profissão e desejam apenas ter um pouco mais

de tempo para realizarem outras atividades favoritas, como ler, escrever, pintar e

viajar. Inspirada em Huberman (1992), encorajo-me a dizer que esse grupo apresenta

uma sensação de confiança e serenidade em situação de sala e uma maturidade afetiva

nas relações com os alunos. Esta característica pode significar um distanciamento

afetivo (como é o caso de Iara que quer ser identificada como carinhosa, mas sempre

como professora) ou uma aproximação (realidade de Sofia, que diz estar mais

carinhosa com o passar do tempo)10. Outro traço é que Iracema (25 anos de

magistério), Isaura (22), Maísa (18) e Jéferson (30 anos de magistério) estão cansados

e desejam intensamente a aposentadoria, para, então, poderem realizar suas atividades

8 A questão da distância entre o trabalho prescrito na formação e o trabalho real é uma realidade transnacional do trabalho do professor e tem sido levantada por muitos estudiosos da formação docente. Entretanto, concordo com Dubet (2002), para quem tal recorrência não significa necessariamente que se deva concluir que a formação não serve para nada.

9 Com exceção de William, cuja experiência é no centro urbano. 10 Esta análise foi inspirada nos ciclos de vida de Huberman (1992) em cujo estudo, entretanto, não me aprofundei. O autor chama este ciclo de “serenidade e distanciamento afetivo”. Eu o chamaria de “serenidade e maturidade afetiva”, que não necessariamente envolve afastamento.

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favoritas. Segundo Huberman (1992), o “desinvestimento” acontece no final da

carreira profissional, quando são freqüentes tanto uma libertação progressiva do

investimento no trabalho como uma maior consagração de tempo a interesses

exteriores à escola, o que acontece claramente com Jéferson (que gosta de cuidar do

sítio, de consertar aparelhos eletrônicos, além de ler).

Este movimento pode ser vivido pelos professores de forma positiva ou

negativa, correspondendo, assim, a um “desinvestimento sereno” (caso de Isaura) ou

a um “desinvestimento amargo”, claramente observado na história de Iracema. No

discurso desta professora, são observadas características descritas por Huberman

(1992) sobre o momento do ciclo de vida anterior ao do desinvestimento, não por

acaso denominado “conservadorismo e lamentações”, quando se percebem uma

maior rigidez e dogmatismo, uma resistência maior às inovações, uma nostalgia do

passado, manifestados nas queixas em relação à evolução negativa dos alunos

(considerando-os mais indisciplinados, menos motivados, menos bem preparados e

mais frios na relação), à falta de condições básicas de trabalho, à atitude negativa

(sem direção clara) em relação ao ensino e política educacional.

Deve-se atentar para o fato de que, na transação objetiva da identidade dos

professores da escola-da-dona-Clair, no geral, há uma equivalência entre as

identidades atribuídas ao grupo e as identidades assumidas pelos professores da

escola. Entretanto, poderia colocar lentes de aumento e melhorar estes esboços de

formas identitárias no âmbito do processo institucional da escola-da-dona Clair e

dizer que alguns aspectos das identidades atribuídas pelo grupo (direção e estudantes)

às professoras Bel e Tarsila e ao professor Jéferson, por exemplo, são

reconhecidamente conflitantes com as atribuídas a si mesmos por eles, situação esta

que parece causar um certo desconforto aos mesmos. Isso para lembrar que no

processo social público de construção das identidades há peculiaridades dos atos de

pertencimento (portanto, da esfera privada) que entram na transação objetiva entre as

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identidades atribuídas e as assumidas, mas que não são reconhecidas pelos sujeitos e,

por isso, causam conflitos11.

5.1.3

A identidade “relacional” para si: na escola como “a casa”, “a rua” e “o

quintal”

Eu tenho muito carinho com eles [os professores] e acho que eles também têm comigo. (dona Clair)

Eu queria viver num país onde o cara [o Estado] que te pagasse te cobrasse.

(professor Jéferson - história)

Mostrei no capítulo 4 como o colégio Viola representa para dona Clair e para

muitos professores uma continuação de suas casas (nomeadamente para Sofia,

Mariana, Maria, Iracema, Tarsila, Carmela, Pilar e Iara), ocorrendo uma diluição

entre as fronteiras do trabalho docente e da casa, uma inseparabilidade entre o mundo

privado da casa e o mundo público da profissão docente. Ao caracterizar a escola

como uma “escola-família”, a professora Sofia ajuda a revelar uma visão recorrente

do colégio, tida a partir “da casa”, na ótica de Roberto DaMatta (1997), uma das

categorias sociológicas usadas pelo autor para compreender a sociedade brasileira12.

Grosso modo, a casa é o espaço das relações calorosas, onde há lugar para todos, em

distinção à rua, local do público e do estranho. Como também pode ser observado nos

depoimentos a seguir:

Eu gosto de sítio, adoro essa realidade! A gente tem contato com a natureza, vou para Vista Alegre passeando. Acho gostoso pegar o carro e ir até lá. Estar com as pessoas.(...)Lá é tipo uma grande família. (Maria-filosofia e sociologia) Acho que a gente procura trabalhar com seriedade, fazer o trabalho sério. Eu vejo professor dizendo que enrola, mas a gente não. A gente faz sério, um bom trabalho! Isso você encontra lá no Viola. A gente se sente bem dentro da escola. (...) Acho que

11 Bel e Tarsila são vistas como “escandalosa” e “cri-cri”, mas se consideram “necessária” e “inquieta”, respectivamente. Jéferson tem uma imagem pública de professor sério e rígido, mas se considera “sério e carinhoso”. 12 Na íntegra: “Por isso, eu caracterizo nossa escola como uma escola-família. Muitos professores têm seus filhos, sobrinhos, netos. A clientela básica é de filhos de agricultores”. (Sofia).

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aquilo lá tem uma química. (...) não sei se é porque a gente trabalha na simplicidade nossa ali, sem se preocupar muito com as outras escolas. Ou se as pessoas confiam muito em mamãe. (Mariana-geografia)

Mas eu nunca quis sair daqui, porque aqui ainda mantém essa coisa de escola de zona rural. Ao mesmo tempo em que há alunos que já têm contato com toda essa tecnologia, (...), eles ainda têm um pouquinho mais de respeito, alguns alunos ainda se interessam. Eloiza: o que é bom nessa escola, além dos alunos mais interessados? Maísa: os amigos, os professores. (...) A gente quase não se encontra, só no final e meio do ano, em festa. Mas, quando a gente se encontra, a gente conversa, tem assunto.(Maísa-artes) Acho que sou mãezonha [risos]. Sempre. Eu não vejo os meus alunos crianças distantes de mim. Os meus alunos são como se fossem da minha família: filho, sobrinho. Às vezes eu até peco porque dizem que eu passo muito a mão [riso]. Mas procuro tratar os meus alunos como trato os meus filhos. (Carmela-séries iniciais) Resumindo, a “grande família” tem uma “química”, a simplicidade da grande

mãe, que passa confiança e, como uma verdadeira família brasileira, encontra-se,

sempre tendo assuntos para conversar, com intimidade. E trata os estudantes como se

eles fossem membros da família.

Mesmo para aqueles professores que não usaram explicitamente a comparação

com a família ou com a casa, como Aquiles, Isaura, Henrique, William e Jéferson, a

escola é considerada um espaço de convívio agradável e amigo, embora profissional:

Mas muito sério mesmo! O pessoal é espetacular. Uma coisa engraçada: a gente só se relaciona lá. (...) Nós não falamos de problemas pessoais, do dia-a-dia. Só de trabalho. (Aquiles-educação física)

Eu gosto muito da escola. Gosto muito, muito, muito de lá. (...) gosto do aluno, da comunidade em si. (...) a escola é um lugar importante para eles. Um lugar em que eles se encontram, fazem amigos, arrumam namoradinhos e namoradinhas. E acho isso tudo muito legal, porque o aluno passa a dar muita importância...No Viola não, eles não têm outra opção (...) apesar da distância, eu vou para lá muito satisfeito: eu gosto muito do corpo docente e discente da escola. Acho um pessoal muito comprometido, que pensa como eu, faz a coisa com seriedade.(...) Eu faço a minha parte e não sou de ficar olhando o que o outro faz. Mas eu percebo que nosso professor tem esse perfil da tranquilidade de dona Clair de estar sempre lá. Eu vejo histórias de professores fora de lá que faltam muito. Lá a coisa funciona direitinho. Lá uma vez ou outra falta professor. (Henrique-inglês) Nestes casos, a sensação prazerosa do espaço de trabalho está mais ligada ao

convívio com todos, incluindo especialmente a comunidade escolar.

Ainda que marcada pelo missionarismo e pela moralidade religiosa, vimos

como dona Clair deixa de ser apenas a dona de casa da fazenda e passa a

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desempenhar também a função de “educar” crianças, há 50 anos. E leva para o

colégio sua vocação e funções maternas, que não poucas vezes se confundiram na

nova “missão”. Uma das relações estruturantes das identidades dos professores é

estabelecida, portanto, com uma figura materna que costuma dar poucos limites aos

filhos e escolher (ainda que disfarçadamente) os favoritos. No geral, a relação que os

professores estabelecem é de confiança e de afeto, além de respeito. Embora alguns

professores sintam-se preteridos pela mãe e se digam injustiçados.

Por outro lado, um grupo menor de docentes considera dona Clair “a dona da

fazenda”, a aristocrata distante que faz política em detrimento da instituição. Para

esses profissionais, a identificação está menos ligada ao afeto e ao parentesco e mais

relacionada a experiências de poder, como nesta fala de uma professora:

Eu falei que ela é a patroa, a dona da fazenda. E ela lida na escola assim. E perdemos (a escola, a comunidade) o pré-escolar por causa disso, porque, nesse ano, a política municipal é favorável a ela. Para dar asas ao prefeito e ela ficar bem, a Secretária [Municipal de Educação] abriu uma escola perto da nossa e para não bater de frente ela fechou o pré. E nós temos professores, ambiente (a sala, a mobília). A gente perde muito com perder o pré-escolar. Porque ano que vem o número de alunos da alfabetização é menor. Isso é um efeito cascata. E como o Estado quer acabar de primeira à quarta, nós estamos “colaborando” dessa maneira. Isso me irrita.

Desse ponto de vista, escola é o “mundo da rua”, lugar perigoso, “local de

individualização, de luta e de maladragem. Zona onde cada um deve zelar por si,

enquanto Deus olha por todos (...)” (DaMatta, 1997, p.55). O espaço percebido desta

maneira tem, para o antropólogo, “(...) um ponto de vista autoritário, impositivo,

falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora.”

(idem, p.59).

Alguns desses professores revelam em suas narrativas uma falta de apoio aos

seus projetos profissionais e a percepção que dona Clair, pelo tempo de serviço e por

ser a “dona da escola”, atrapalha, pois permite pouca inovação: “A escola de dona

Clair. Minha tia foi aluna de dona Clair, meu tio foi, meu marido foi. E está lá dona

Clair. Mamãe morou na escola, a tia Pilar nasceu na escola. A escola da dona Clair.

Mamãe se aposentou na escola da dona Clair e está dona Clair lá. Só que a escola

perde por esse lado”. (Tarsila). Ou ainda, neste depoimento de Isaura:

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Têm outras dificuldades que fazem com que as coisas estejam mudando lá. O colégio não está evoluindo junto com essa evolução dos alunos. Você devia ter outros recursos até para chamar a atenção para sua aula, algo mais agradável... O recurso pode melhorar um pouco a sua aula, mas é claro que eu posso dar uma boa aula sem o retorprojetor. Eu acho que para o aluno ficaria mais interessante, porque hoje a gente tem que lutar contra muita coisa. Você para dar uma boa aula você tem que fazer com que o aluno esteja motivado para sua aula, porque ele se desliga com muita facilidade. (...) Nada é pior do que aquelas mesas e carteiras quebradas. O aluno que tem que ir ao vizinho ver se tem cadeira sobrando, porque o número é insuficiente. Essa questão, junto com uma reforma geral do espaço físico, é fundamental. Mas acho que o que realmente precisa é uma ação mais enérgica para cobrar essas coisas. (...) Vista Alegre está precisando de sangue novo, não desmerecendo o trabalho de dona Clair, pois ele é muito bom. Dona Clair é uma mãe e não uma diretora. (...) Tem que haver uma reestruturação, porque o colégio vem caindo, caindo, caindo, de uns anos para cá. (Isaura – língua portuguesa)

Eu acho que já não há tanta integração como antes. Antes era mais familiar, tinham pessoas que ficavam mais tempo, tinha menos rodízio. (Jéferson - história) Na fala de Jéferson aparece um fato social de grande importância: a mudança

ocorrida na comunidade com a pavimentação da estrada que a liga ao centro do

município e o loteamento recente, que trouxeram novos e mais alunos, fatos

lembrados por outros professores como um desafio ao trabalho docente.

A realidade parece causar um certo desânimo frente ao que Dubet (2002) chama

de “decadência do programa institucional”, quando o trabalho específico e organizado

de transformação de valores e de princípios em ação e subjetividade começa a não

mais acontecer do modo planejado e a ser transplantado por uma lógica do mercado e

do consumo, uma lógica do “cada um por si”. Mesmo dona Clair acreditando que ser

professor é uma vocação, que ele tem que respeitar o aluno e ser compromissado com

a função de transmitir conteúdos, ela percebe que os tempos são outros e fala com

saudades de quando se “tinha que cumprir o programa, senão o aluno não tinha

condição de fazer a prova que vinha pronta da Secretaria. (...) A gente cumpria o

dever. Tinha responsabilidade” (dona Clair).

A esta altura devo lembrar que o “programa” da escola-de-dona-Clair tem mais

características de uma instituição anárquica do que burocrática, uma vez que há

independência máxima entre os professores, que buscam realizar objetivos pessoais e

múltiplos e articulam tarefas freqüentemente com dificuldades. Muitas destas

definidas pelo Estado, o mentor do programa institucional nos termos de Dubet

(2002), que, nesta metáfora da escola-família, pode ser considerado um pai omisso,

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do tipo que concebe seus filhos, mas não os cria com cuidado, aparecendo quando em

vez para “responsabilizar”, como acontece com o Programa Nova Escola.

Analisar o ofício docente na perspectiva do sistema e do ator é buscar a conexão

entre os “constrangimentos sistêmicos” e os “comportamentos estratégicos dos

atores” (Canário, 1996, p.132), Sobre este assunto, todos os professores da escola, de

um modo ou de outro, falam dessa omissão do “patrão”, em relação não somente ao

salário, mas também à (ausência de) formação continuada e até a uma real avaliação

do trabalho, para muitos uma atitude que pode ser encorajadora:

A gente, que trabalha há bastante tempo e gosta do que faz.... Me sinto valorizado pelos meus alunos e seus pais, mas não me sinto valorizado pelo patrão. Isso não me incomoda, mas acho que não faz bem. No Estado eu estou com um processo de enquadramento, desde 1997, que não saiu até hoje. E a gente está sem aumento. O compromisso, a dedicação, tudo isso é sempre o mesmo. Mas pela gente. Por eles, eles não estão nem aí. (Henrique – língua inglesa) Eu comecei a dar aula a gente estava no regime militar. Eu achava que de uma forma ou de outra a nossa profissão ia melhorar. Fazendo uma análise fria, se eu pudesse voltar a 30 anos atrás, não digo com certeza, mas talvez eu não tivesse optado pela profissão. Primeiro, pela questão da desvalorização da educação no sentido da formação, não digo nem salarial. Eles querem que você não seja bom, que você não seja trabalhador, que você não seja competente. Toda essa questão do aluno que me vê com muito rigor faz parte desse esquema de pauperização do processo de educação. Você vê a educação caminhando cada vez mais para uma maior penúria, de pouco investimento, de não se saber o que se fazer na escola. Eu falo para o meu aluno: ‘eu fecho a porta aqui e eu posso fazer o que eu quiser, até brincar de roda com vocês’. (Jéferson - história) Aliás, ainda não comecei a receber isso ainda, pois o Estado é muito moroso na hora de pagar, embora seja rápido na hora de cobrar. Com o salário do Estado, eu não poderia me locomover e não daria aula em Vista Alegre, porque preciso da moto em que vou trabalhar. Aí eu tenho que ter outra matrícula. O ideal é que eu fosse o professor de História ou do Viola ou do colégio João Brasil. O desencanto tem a ver com a desvalorização profissional e o corre-corre para se ter um salário melhor. Tem dia que o corpo não está mais obedecendo e você tem que... Eu não sou de me entregar à toa, então, eu vou, mesmo sem ter condição estou trabalhando, não sou de faltar. Isso atrapalha muito. O ideal seria ter salário razoável para trabalhar em uma escola só, porque aí até o envolvimento seria maior. (William - história) Eu boto todos os déficits por conta do Estado. O pessoal lá é muito bacana. Querem que a coisa aconteça. Mas do jeito que está! A gente conta com um grupo muito bom de trabalho lá, sabia? Eu acho que a gente conta com um grupo muito bom! Eu acho que a gente conta com um grupo muito bom, que faz das tripas coração para fazer a coisa acontecer. O grande vilão lá é o Estado. (...) Eu trabalho, com a profissão que eu tenho, pelo amor aos meus alunos. Eu não penso no que eu recebo nem para quem eu trabalho. Porque, se eu pensar, eu vou ser uma péssima profissional! (Maria- sociologia e filosofia)

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A questão do salário é muito enjoada. Dá um pouco de frustração. Não é só questão de salário. Porque o que ganho morando aqui na roça é uma coisa. (...) Eu saio daqui de casa dez minutos antes, para ir à escola, não pego nenhum engarrafamento. Venho à minha casa almoçar. Não preciso me arrumar para ir para a escola, com a roupinha que tem em casa, você vai. Não têm essas exigências. A questão do salário...se o professor quer fazer um curso fora, não faz, porque o salário de professor não permite. E o mundo é cada vez mais exigente. (Mariana - geografia) Justamente porque nosso trabalho é um trabalho subversivo, a gente está sempre com pedreira na nossa frente. Sempre batalhando contra o sistema, contra tudo e todos. São leis e resoluções equivocadas que nos atingem. Todo tempo tem que estar engolindo sapo e fazendo de tudo para não ser afetado e continuar nossa luta. E o salário? (Sofia)

E dona Clair, por sua vez, reclama da falta de autonomia para decidir:

Eu tenho que obedecer às ordens que vêm da Secretaria. Eu acho isso um desafio, porque a responsabilidade fica na minha mão e o diretor não tem autonomia para decidir. Se falta um professor, eu não tenho autonomia para contratar um professor. Eu tenho que esperar que a Secretaria autorize. Esse regime de GLP, a gente tem até a oportunidade de escolher um pouco esse professor, mas ao mesmo tempo se a Secretaria não autorizar, eu não posso admitir o professor. Às vezes, fica turma um tempo sem aula, porque não tem professor e a Secretaria não autorizou. E a parte financeira da escola, que a gente tem que administrar? As verbas vêm destinadas para determinada coisa. A merenda é da merenda e a gente não pode mexer. Tem da manutenção e às vezes você precisa comprar um livro didático. Porque a Secretaria manda os livros, mas às vezes não dá e você tem que recorrer, telefona; aí, até resolver o ano já acabou. E a escola não pode tirar dinheiro da manutenção para comprar livro. Todos esses são desafios... (dona Clair)

Dá para perceber que o Estado apenas cria instrumentos de gestão e de

regulação, o que faz com que os professores tenham construído seus ofícios e dona

Clair, sua própria gestão (Dubet, 2002). Assim:

Eu procuro, eu procuro ir ajeitando a escola dentro da necessidade, com os recursos que temos, para não ficarem defasadas as coisas. (...) Eu sei que a própria Coordenadoria estadual não tem autonomia, que a autonomia é da Secretaria, mas eu tenho que cobrar da Coordenadoria, quem está acima de mim. Esse é o maior desafio da diretora. (dona Clair) Por fim, vale destacar que alguns dos professores que percebem a escola,

majoritariamente, como o “mundo da rua” levantam críticas à instituição escolar, que

tem sido o espaço formal e privilegiado para o exercício do ato educativo nos últimos

três séculos (Nóvoa, 1991a; Canário, 2005). Vejam o que falam sobre o seu sentido e

pertinência na atualidade, assim como no excesso de funções e atribuições para as

quais eles não se sentem preparados:

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Eu sinto a responsabilidade mesmo da formação de caráter, de encaminhar esse aluno para a vida. Porque antes nossa função era somente ensinar conteúdos que o livro traz lá. Como na época talvez da minha mãe, a preocupação dos professores era exclusivamente essa: ensinar que está no livro, para a profissão dele lá. Hoje infelizmente ou felizmente, não sei se isso cabe à escola, que está tão desestruturada para assumir tanta responsabilidade. Hoje, não é só isso não. (...) A família está falhando e a escola está assumindo uma responsabilidade que não está preparada para assumir. A escola tem que mudar e rápido, porque se não mudar, é uma instituição falida, falida! Não vamos daqui a pouco ensinar nem o que os livros trazem, nem para a vida. Porque está muito difícil fazer! Muito difícil! (Isaura – língua portuguesa e literatura)

A escola não consegue mostrar o aqui, o agora e o futuro. É um pecado nosso. Por isso planejamento é tudo: tem que saber onde sai e onde chega. (Aquiles – educação física)

Realidade semelhante à encontrada por Canário (2005) em seus estudos sobre a

escola em Portugal, de onde concluiu que o problema central da instituição escolar na

atualidade é seu déficit de legitimidade e o principal requisito para ela ser eficaz é a

construção de sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes.

De qualquer modo, parece que a construção das identidades dos professores na

escola ainda está até certo ponto pautada no programa institucional, nos termos de

Dubet (2002). Lembro que, embora muitos alunos sejam novos, têm algum acesso a

outras formas de aprendizagem fora da escola, e, pelo uso dos computadores na

escola, estão podendo desenvolver uma linguagem não-proposicional (oposta, à

linguagem proposicional da cultura escolar)13, a escola ainda se mantém com o

monopólio do saber local e com uma imagem institucional relativamente estável,

como lembra o professor William:

Para a maioria, a escola é uma maneira de se comunicar com o mundo, porque o mundo deles é muito fechado: a pequena comunidade, a casa distante das outras. A gente recebe aluno de Santo Antonio, de Boa Vista, de Santa Rosa, de lugares em que não se tem muito que fazer. Na escola, ele tem esse espaço para se comunicar com o mundo. Onde ele teria contato com o computador, se não fosse lá? Onde ele teria contato, alguns, com filme (não os de massa, que passam na TV)? (William - história)

Um último grupo de professoras, ex-alunas, traz igualmente a percepção da

escola como um local familiar, mas com um dado a mais:

13 Como nos lembram Tedesco e Fanfani (2002).

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Sei que a gente andava descalça, ia para a escola descalça. Mas a gente gostava dessa amizade, era tudo junto. (...) ah, minha mãe trabalhava de merendeira, tinha dona Clair. Me sentia em casa. Sempre me senti em casa lá. Apesar de tudo, dessa revolta com a situação de trabalho, lá me considero em casa, entendeu? Eu tive oportunidade de sair de lá, mas eu gosto, eu gosto. (Iracema – língua portuguesa) Só estudei um ano fora do Viola. Aprendi a ler no Viola (...).Na escola, a gente brincava muito! (Iara – ciências) A escola era o quintal de casa, porque era desse tamaninho [mostra polegar e indicador próximos]. E os colegas de turma eram todos daqui. Era como se estivesse em casa. O prédio era menor, todo mundo daqui, era como se a gente tivesse em casa. (...) Essa escola é o quintal da minha casa. Eu conheço cada palmo. (Tarsila – séries iniciais)

Em que pese o fato de que as representações sobre a escola de Iara e de Tarsila

estejam carregadas de familiaridade com o local, elas trazem o espaço do “quintal”,

um lugar intermediário entre “a casa”, e “a rua”, pois nele acontecem situações que

fogem totalmente do controle da “mãe” e do “pai” e que são ligadas ao prazer, ao

lazer e ao encontro14. Lembro que, na escola-da-dona-Clair, este é o local da

“sociabilidade pura” (Simmel, 1978), da fruição de afetividades, preferido para a

interação entre os estudantes, onde eles mais lidam com suas subjetividades, falam de

si, trocam experiências, idéias, vivências.

Parece que o programa evoluiu e se diversificou, sem romper com sua lógica de

homogeneizar, e as funções escolares de reprodutora de cultura e de formadora de

força de trabalho ainda fazem algum sentido. No “mundo da casa”, os professores

ainda estão muito determinados por papéis. Por outro lado, há os que atuam no

mundo do “quintal” e que conseguem realizar um trabalho considerado como uma

realização de si próprios, resultado de sua autonomia e da relação desenvolvida com

seus estudantes. A grande maioria coloca como central o trabalho de construção do

sentido do trabalho escolar. Tanto no “mundo da casa” como no “mundo do quintal”.

É o que discuto no próximo capítulo.

14 Como comecei a mostrar no capítulo 4 e desenvolvo no próximo.

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6 Ofício docente: entre a “casa”, a “rua” e o “quintal”, modos de perceber o mundo, de ser e de fazer

Carregamos a lenta aprendizagem de nosso ofício de educadores, aprendido em múltiplos espaços e tempos, em múltiplas vivências.

(Miguel Arroyo)

Depois de ter apresentado e analisado a identidade da escola-da-dona-Clair e as

dos seus professores com “mais tempo de casa”, discuto neste capítulo o ofício

docente, ou seja, as maneiras como os professores realizam seu trabalho neste local,

destacando a força da dimensão pessoal (do privado, das histórias singulares) e da

dimensão profissional (do público, do contexto comum).

Frente ao ethos da escola-da-dona-Clair, sigo guiada pela gramática de espaços

e tempos da sociedade brasileira concebida por Roberto DaMatta (1997, p. 48), para

quem “qualquer evento pode ser lido (ou interpretado) por meio do código da casa e

da família (que é avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao

progresso), pelo código da rua (que está aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à

história linear e ao progresso individualista) e por um código do outro mundo (que

focaliza a idéia de renúncia do mundo com suas dores e ilusões e, assim fazendo,

tenta sintetizar os outros dois)”.

Lembro que a idéia básica deste estudo é a de que o trabalho docente realiza-se

no cruzamento da trajetória pessoal dos professores, caracterizada como o “mundo da

casa”, com o contexto onde exercem seu ofício, o “mundo da rua”. Nesta perspectiva,

as disposições profissionais dos professores são uma síntese viva (Lelis, 2001b) de

um conjunto de experiências familiares, de processos de formação escolar, e também

das marcas das culturas das organizações escolares nas quais construíram (e ainda

constroem) uma forma de ser professor, singular, intransferível, porque pessoal. A

síntese seria, neste caso de pesquisa, resultado das vivências nos espaços entre “a

casa” e “a rua”.

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Com o intuito de analisar modos de exercício do trabalho docente, dialogo

muitas vezes com Tardif (2002, 2005), que me propõe constituir “um discurso em

favor de uma racionalidade limitada e concreta, enraizada nas práticas cotidianas dos

atores, racionalidade aberta, contingente, instável, alimentada por saberes lacunares,

humanos, baseados na vivência, na experiência, na vida” (Tardif, 2002, p.224).1

A natureza do denominado “saber pedagógico” tem sido o tema de muitos

estudos e questionamentos, constituindo mesmo “um dos capítulos mais apaixonantes

e importantes da história da profissão docente”, percepção de Nóvoa (1991a) que

compartilho.

Uma vez que quero interpretar os modos de trabalhar dos docentes, parto da

crença de que há no cotidiano da organização escolar uma diferença entre as maneiras

de olhar dos distintos atores, quando engajados na ação. Nesse sentido, concordo com

Boudon (1989), quando ele afirma que a racionalidade da ação dos atores

institucionais é o produto de uma tensão conjunta de efeitos de situação, que

compreendem os efeitos de posição e de disposição.

Começo o capítulo por determinar o “mundo da casa” dos docentes, na

categorização de DaMatta (1997), suas vivências particulares, pessoais e que tenham

influenciado suas maneiras de pensar, sentir e agir como professores. O que será

analisado neste segmento são os efeitos de disposição dos professores, experiência

vivida antes do exercício da profissão, exercício este considerado o “mundo da rua” e

abordado num segundo momento.

Por efeitos de disposição Boudon (1989, p. 134) entende “o conjunto de uma

experiência e de um saber anteriormente adquiridos, mobilizados pelo agente na

interpretação de todo e qualquer fenômeno social”. Eles dependem das disposições

mentais, cognitivas e afetivas desse ator, e que são sempre, em parte, pré-formadas

por uma socialização passada. Isto quer dizer que os agentes sociais estão socialmente

situados, ou seja, que possuem papéis sociais e, em razão de processos de 1 Tendo realizado inúmeras pesquisas nos últimos anos no Canadá acerca do saber dos professores, o autor fornece muitos elementos para uma “epistemologia da prática profissional” da categoria, muito pertinente a este estudo. Como ele, acredito no dever do pesquisador sobre o ensino-aprendizagem registrar o ponto de vista dos professores, além dos conhecimentos e o saber-fazer por eles criados e mobilizados na ação cotidiana. Considero o professor como um sujeito que assume uma prática a partir dos significados que ele mesmo dá. Significados que importa conhecer.

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socialização, interiorizam um certo número de saberes e representações. O que os faz,

assim, sujeitos a efeitos de situação (idem, ibidem, p.123).

Os efeitos de posição, apresentados na seqüência do capítulo, dependem da

posição que um ator ocupa num contexto determinado, e condicionam seu acesso a

informações pertinentes. Vimos que há professores que atuam mais no espaço da

“casa”, outros, no da “rua”, e ainda alguns que vêem a escola majoritariamente com a

perspectiva de quem está no espaço do “quintal”. A posição social do agente implica

em efeitos de perspectiva, quando "um objeto pode ser percebido de vários pontos de

vista diferentes e quando as imagens correspondentes a estes diferentes pontos de

vista são, elas mesmas, diferentes" (Boudon, 1989, p.128). Por sua vez, os efeitos de

perspectiva estabelecem uma nova série de efeitos, chamados de efeitos de distância,

medidos pelo distanciamento entre o agente e o objeto de interação. Quanto mais

longínquo o objeto estiver do agente, menos inteligível parecerá o seu

comportamento.

6.1 No “mundo da casa”: efeitos de disposição

Mas posso garantir que é uma ampla e acolhedora morada, onde espero receber com honradez e carinho, revelando a fonte de cada peça e procurando iluminar de melhor modo possível seus

corredores e porões. (Roberto DaMatta)

Para Boudon (1989), o social em que estão inseridos os atores não os produz

(como acreditava Bourdieu), mas, sim, influencia seus modos de pensar e agir,

através do processo de aprendizagem formal e informal a que são submetidos desde o

nascimento2. As disposições, assim, parecem ser compreendidas através dos efeitos

2 Reconheço que a sociologia da educação de Bourdieu constitui, ainda hoje, um dos mais importantes paradigmas usados na interpretação sociológica da educação. Embora faça uso de parte dela neste estudo, discordo das suas críticas às abordagens “subjetivistas” e do excessivo viés funcionalista de suas idéias. Neste sentido tendo a concordar com Boudon (1989), para quem as disposições não produzem o agente, mas são, antes, situações mobilizadas à compreensão do objeto com que se interage. Desta maneira, não transforma o ator em sonâmbulo (p.282-83), mas em detentor de saberes sociais que indicam caminhos à apreensão, trabalhados ou não pelo agente através da reflexão que processa a sua ação.

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do processo de cognição, os quais dispõem o ator a um saber prévio que intermedeia

a ação e lhe indicam um caminho de perceber e compreender. O ator, deste modo,

pode construir sua ação pela reflexão, sendo, então, criador e recriado a cada ato,

porque está sempre em movimento entre os recursos cognitivos à sua disposição e a

uma possível reflexão. Os resultados da ação seriam produtos de escolhas racionais

do ator a cada ação ou grupo de ação e, neste sentido, são sempre indeterminados.

Seus atos são produtos de escolhas compreensíveis e racionais e levam a saberes.

Não há um consenso em relação à natureza desses saberes dos professores3,

adquiridos durante a socialização pré-profissional, segundo Tardif (2002), mas o

autor os define como desempenhos e capacidades sociais e culturais dos indivíduos:

A idéia de base é que esses ‘saberes’ (esquemas, regras, hábitos, procedimentos, tipos, categorias, etc) não são inatos, mas produzidos pela socialização, isto é, através da imersão dos indivíduos nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos, escolas, etc), nos quais eles constroem, em interação com os outros, sua identidade pessoal e social (Tardif, 2002, p.71).

Tais conhecimentos, competências, crenças e valores, interiorizados pela

convivência inicial, estruturam não somente a personalidade, mas também as relações

com as pessoas, e são reatualizados e reutilizados na prática do ofício docente.

3 Fala-se em saber prático (Elba, 1994) saber prático e pessoal (Fenstermacher:1994, apud Tardif, 2002), saber em ação (Schön, 1995), saber do conteúdo pedagógico (Shulman,1986), saber profissional (Wideen,1996), saber da experiência (Tardif et al,1991; Tardif, 2002), entre outras, para se descrever este reservatório de saber comum, fruto da socialização dos professores. Destaco, de Shulman, o conhecimento do conteúdo pedagógico, capaz de dar respostas às seguintes perguntas: “De onde vêm as explicações dos professores? Como os professores decidem o que ensinar e como representar este conteúdo, como questionam os alunos sobre isso, e como lidam com o problema da falta de compreensão?” (Shulman,1986, p.8). Também dele, o conhecimento estratégico, fruto da reflexão do professor sobre sua prática, reflexão esta que lhe proporcionará a capacidade de entender sua profissão e comunicar às pessoas as razões de suas decisões e ações. O conhecimento pedagógico da matéria ensinada está além dos conhecimentos disciplinares, chegando à dimensão do conteúdo da matéria para ensinar. Perrenoud (2001), por sua vez, traz a idéia de que as competências profissionais exigem muito mais que saberes, e na frente do debate está a separação entre saberes eruditos ou saberes construídos na experiência. Para o autor, no conjunto das competências de um profissional, há saberes ou conhecimento, mas “Ao contrário dos conhecimentos, que são representações organizadas da realidade ou do modo de transformá-las, as competências são capacidades de ação” (Perrenoud, 2001, p.139). Resolvi me esquivar de trazer este debate para o centro do estudo e considerar os saberes dos professores como suas capacidades de buscar, encontrar e aplicar respostas apropriadas a cada contexto.

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A literatura mais recente sobre a construção das disposições profissionais dos

professores aponta para, como já disse no início deste capítulo e baseada em Lelis

(2001b), a existência de uma síntese viva de, entre outras, um conjunto de

experiências familiares e de processos de formação escolar. Ou o “mundo da casa”.

6.1.1 A força das experiências familiares

Mamãe era professora, na época chamada primária, de uma escolinha municipal, com quarenta e poucos alunos (...)E não eram crianças como a gente vê hoje, era tudo mais marmanjo. Era do lado da minha casa. Aquilo ali era o nosso metier, era o ambiente em que a gente vivia. A escola era mamãe!

(professora Bel - séries iniciais)

Minha mãe era praticamente semi-analfabeta. Mal sabia escrever o nome. Mas meus irmãos todos tiveram oportunidade de estudar. Todos que quiseram estudaram, até se formar. Só não foi quem não

quis. (professora Isaura- língua portuguesa e literatura)

O espaço social da família constitui uma matriz poderosa de percepção,

apreciação e de aprendizagem de ações, especialmente porque é o meio responsável

por inserir o indivíduo no grupo social do qual ele faz parte. A família é o primeiro

mundo exterior com o qual mantemos contato e, como disse Bakhtin (1992, p.278),

de onde vem “tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em

minha consciência”.

Devo recordar que as origens sociais e econômicas da maioria dos professores

eram de famílias dedicadas à produção rural. Três como grandes produtores de café e

líderes políticos da região, a grande maioria como pequenos produtores (cinco) e três

como trabalhadores agrícolas assalariados. Embora saiba que as famílias e as pessoas

não se reduzem à sua posição de classe social4 e que são muitos os aspectos e as

4 Idéia esta que contrasta com a de Bourdieu, para quem o peso da origem social sobre os destinos escolares se daria via volume e estrutura do capital econômico (em termos dos bens e serviços a que ele dá acesso), mas também do capital social (o conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família), além do capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos escolares. A bagagem transmitida pela família inclui, ainda, certos componentes que passam a fazer parte da própria subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma “incorporada”, este sendo o elemento da bagagem familiar de maior impacto na definição do destino escolar (Bourdieu, 2004).

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influências sociais que se inserem nessa discussão (os hábitos culturais e étnicos, a

região geográfica, a produção econômica, entre outros), considero que tal distinção

ajuda na compreensão do exercício do magistério na escola-da-dona-Clair, uma vez

que o modo como acontece a ligação do professor com a cultura “rural” vai modificar

a maneira de ele ocupar as posições dentro da escola, em especial suas relações com

os estudantes e com a direção.

No que se referem aos vestígios dos processos de socialização pré-profissionais,

numa perspectiva mais geral sobre o grupo estudado, posso dizer que emergiu a força

dos investimentos de suas famílias na escolarização dos professores, de uma maneira

mais ou menos direta, seja no abrigo de professoras que moravam distantes na sua

própria residência (Pilar e Iracema) ou de seus avós (Tarsila e Iara), seja na avó-leiga

que montou uma escolinha rural (William), ou, ainda, na história de Jéferson e de sua

“maravilhosa” mãe, mulher culta, que falava francês fluentemente, professora em

Vista Alegre, com quem ele “angariou” tudo que tem de bom, toda a sua formação

moral e ética, “dignidade, honradez, verdade, ser justo”.

No caso de Bel, penso que a mãe ganhou do pai, fazendeiro e político influente,

uma “escola da fazenda”, descrita por Demartini (1988) como comum no interior

brasileiro desde o início do século XX e sofrendo pressões externas diretas da

unidade econômica e social, o que a fazia mudar, por exemplo, o calendário, em

função da colheita, ou até mesmo funcionando somente quando o fazendeiro queria.

Entretanto, aprofundando um pouco mais a análise, como mostram as falas das

professoras Bel e Isaura que iniciam este segmento, observa-se que há no grupo de

professores estudados pelo menos dois tipos de influência familiar: além da

professora Bel, sete outros professores têm diretamente vivências em famílias cujas

mães, tias e irmãs foram professoras, duas delas leigas, como é o caso de Jéferson e

de William; Isaura, Aquiles, Carmela e Maísa provêm de famílias com pouco ou

nenhum acesso à escola.

Isto implica dizer que a educação escolar, no caso do primeiro grupo de

professores, oriundos de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de

continuação da educação familiar, como pode ser obviamente deduzido da história de

Mariana, filha de dona Clair: “Mamãe sempre foi professora e a gente vivia muito

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dentro da escola. Nem sei se isso influencia. Sei que convivi muito dentro da escola.

Mamãe sempre trabalhou, levava a gente quando éramos pequenos, porque não tinha

com quem deixar”.

Outro exemplo desta influência familiar vem de Tarsila, cuja tia Pilar5

costumava acompanhar, a passeio, quando menina, ao trabalho docente em uma

escola multisseriada longínqua, e sobre quem declara que “costumava se abaixar pra

ouvir a criança que estava falando com ela”, mostrando sua importância, o que

“levanta a auto-estima da criança”. Hoje, Tarsila senta na carteira de seus alunos para

juntos fazerem as leituras. Sobre aquele tempo de menina, ela comenta que adorava o

passeio, que “tinha fissura por aquilo”, pois “parecia que já sabia fazer”. Recorda que

gostava do convívio com as crianças cujos cadernos tinham figurinhas6.

A força da família pode ser percebida igualmente na história de Bel. Ela conta

de como aprendeu a ler em casa, dentro da fazenda do avô, onde ficava a sala de aula

da mãe, que fazia em casa o chamado sabão de barrela, e embalava-os em pedaços de

jornal já velhos, que Bel cortava em quatro e ia lhes entregando para embrulhar:

Lá era muito frio, ventava, tinha garoa e eu me lembro como se fosse hoje. Estava em cima da mesa, arrumando o sabão com mamãe e eu li num pedaço de jornal velho que era o homem pisando na lua. Eu me lembro direitinho que eu li lua e que não sabia ler homem. Nisso, meu avô materno estava chegando e ficou ‘me dando corda’ e eu fui lendo várias palavrinhas do jornal. Pronto. Não tive dificuldades com letras. A gente não aprendia o alfabeto primeiro. Nem sei te contar como aquilo aconteceu. (Bel – séries iniciais)

Embora não consiga precisar como aconteceu aquela aprendizagem, a

professora teve certamente sua postura pedagógica modificada com essa vivência

neste metier. Hoje ela conta de como faz a introdução de um conteúdo disciplinar

novo, com o uso de gravuras de jornais, em forma de desafio, como que “dando

corda” para os estudantes, como fez seu avô com a menina Bel:

5 Lembro que Pilar também é sujeito desta pesquisa. 6 Interessante observar que, quando cheguei à escola e conheci Tarsila, ela pediu-me para arrumar-lhe figurinhas diferentes para ela colar nos cadernos e trabalhar a escrita de palavras diversas com seus estudantes.

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Primeiro eu faço um levantamento de hipóteses sobre qualquer assunto. Geralmente eu uso muito jornal, porque é uma coisa diferente. (...) Eu acho que desequilibro aquilo que é muito certinho nele. Quando eu me proponho a esse tipo de desequilíbrio, eu quero uma resposta sobre que caminho eu vou seguir. Ali eu vejo muitas dúvidas deles. (Bel - séries iniciais)

Outra disposição percebida na lembrança de Bel, mas que também aparece

claramente na história de Iara, sua irmã Tarsila e tias Iracema e Pilar, está ligada à

leitura no meio familiar. Ela conta como os primeiros livros infantis que eu leu foram

emprestados por Iara7, uma das professoras que moravam na casa (“grande e

financeiramente organizada”) de seus avós:

Só lembro que Iara era uma mulher grande para mim (talvez naquela época), com cabelo compridão, preto, super brilhoso, que eu admirava demais! E aqueles livros dentro de uma bolsa de palha, que ela usava na escola. Quando ela ia para a família, trazia cheia de livros: Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan. Foi dali, naquela época, que ganhei meu primeiro livro de história, que ainda tenho: Os Irmãos Bichanos. Uma turma de gatinhos e a vida deles. Inclusive, tem a minha letra quando eu estava aprendendo a escrever meu nome e tentando escrever os dos meus irmãos. Sempre a-do-rei. Os de ciências, principalmente. Eu tinha uma curiosidade de saber sobre o corpo humano, as doenças, como evitá-las. O que eu podia fazer para me proteger e ter cuidado com a natureza. Adorava isso. E o meu filho gosta disso. A escola fez uma arrumação e deu alguns livros para as crianças levarem para casa. Meu filho escolheu um livro de ciências e todo dia quer que eu leia um pouco com ele. Ele fala: “mãe, me dá aula de ciências?” Eu me lembro demais de mim nessa época! (Iara - ciências)

Ao tentar explicar o sucesso escolar nos meios populares franceses, buscando

as razões do improvável, movimento similar ao que empreendi quando do início desta

pesquisa de doutorado, Lahire (1997) conclui que uma relação íntima com a cultura

escrita constitui um dos fatores que podem favorecer o sucesso escolar nos meios

populares, uma vez que afeto e livros não são duas instâncias separadas, mas que

estão associadas.

Iara e Bel parecem comprovar esta perspectiva, pois, além de percursos

escolares brilhantes, têm no incentivo à leitura um forte instrumento de trabalho hoje.

Bel diz que faz leituras diárias, e justifica a prática deste modo:

Quando eu leio todos os dias, estou deixando com eles uma série de arquivos e numa hora que ele vai precisar escrever ele vai buscar nesses arquivos. Pela minha

7 E que, como já disse nas narrativas, inspirou a escolha do nome-fictício da professora estudada.

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experiência, sei que ele melhora muito na escrita. Ele começa a ter assuntos. (Bel – séries iniciais)

Iara revela como ao abordar um conteúdo novo procura reunir e sistematizar os

saberes dos estudantes, a partir de comparações com o já conhecido. Depois dessa

prática, ela costuma conduzi-los à leitura coletiva do livro didático, pois considera

“muito interessante ver como o autor se refere àquilo, as palavras, os termos que usa”.

Ao preparar as aulas, procura ler livros para depois “colocar para eles a experiência

sobre uma coisa que vi, que sei como funciona”.

Por outro lado, para o segundo grupo de professores citados, a educação

escolar significava, em princípio, algo estranho e distante ao meio familiar. Acontece

que, contrariando a crença de Bourdieu (2004), para quem os membros das classes

populares, pobres em capital econômico e cultural, tenderiam a investir de modo

moderado no sistema de ensino, porque as chances de sucesso seriam reduzidas

(faltariam os recursos econômicos, sociais e, sobretudo, culturais necessários para um

bom desempenho escolar), as famílias de Isaura, Carmela, Aquiles e Maísa apostaram

em seus filhos e netos. Provavelmente como uma maneira de eles mudarem o destino

econômico e social da família, passando a “ser alguém na vida”, como relata Isaura

sobre sua avó:

Ela era uma pessoa muito importante na minha vida. Era uma grande mulher, uma mulher muito forte, muito sábia, muito inteligente, apesar de praticamente não ter tido nenhum estudo na vida. Eu acho que a minha formação moral mesmo, até mesmo profissional..., mesmo ela não tendo nenhum tipo de formação ela foi muito importante. Importantíssima. Teve muita influência na minha vida. (...) Por ela não ter tido a chance de estudar, de se formar, e minha mãe também não, ela sempre achou que estudar era muito importante. (...) tinha que ter uma profissão, tinha que estudar, me formar em alguma coisa. (Isaura – língua portuguesa e literatura)

Além de Isaura, Aquiles, Carmela e Maísa são as únicas pessoas de suas

famílias que dizem ter escolhido e conseguido avançar no processo de escolarização,

a ponto de chegar à universidade. Para Nogueira e Nogueira (2002, p.6), isso

significa que “os membros de cada grupo social tenderão a investir uma parcela

maior ou menor de seus esforços – medidos em termos de tempo, dedicação e

recursos financeiros – na carreira escolar dos seus filhos, conforme percebam serem

maiores ou menores as probabilidades de êxito”. Todos os professores entrevistados

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se referiram a um certo investimento feito por suas famílias para que pudessem

avançar na escolarização, mas as estratégias utilizadas foram muito diferenciadas.

Entretanto, há de comum nas histórias uma certa influência dos membros

familiares na formação moral e ética dos professores, como evidenciam as falas

anteriores de Isaura, de Jéferson, mas que também aparece nas histórias de Sofia e de

Mariana sobre seus avós e pai, respectivamente. Mariana ainda releva a influência do

pai na sua personalidade e esta no exercício do ofício:

(...) a relação com meu pai e minha mãe, eles fizeram o meu jeito de ser assim. Meu pai foi sempre uma pessoa muito verdadeira, (...) muito positivo! Eu aprendi isso muito com ele. (...) assim, por exemplo, tem dia que a pessoa chega e diz: “Mariana, vamos fazer isso assim, assim” Eu digo: “Isso não vai dar certo não!” (...) Dizer aquilo que pensa, (...) é ser verdadeiro. Verdadeiro naquilo que você pensa, naquele momento. Mas depois eu até posso dizer: “não, gente, eu pensei diferente e aquilo pode dar certo”. (...) Papai era muito assim, de dar uns ‘de-repentes’. Lá em casa se falava que deu ‘olavite’(...), estar muito bem e dar vontade de ir embora [risos]. Ou tem que resolver e tem que ser naquela hora. Isso é muito papai também. Mamãe é assim mais calma. (...) De mamãe, herdei [silêncio]. O que eu herdei de mamãe? Eu falo tanto que sou igual a ela!!! [silêncio] O jeito, o jeito de ser. [silêncio] Fisicamente também sou igual a ela. Às vezes, eu faço assim com mão e até eu mesmo acho igualzinho a dela. (Mariana - Geografia)

Ainda que em contexto diferente, o fato coincide com revelações de pesquisas

sobre a importância da história de vida dos professores feitas por Lessard e Tardif

(1996), Tardif e Lessard (2000), Raymond et alii (1993)8, que apontam que o saber-

ensinar tem suas origens na história de vida familiar e escolar dos professores de

profissão, na medida em que este saber exige conhecimentos de vida que dependem

da personalidade dos atores.

O certo é que a vida familiar e as pessoas significativas na família aparecem nas

pesquisas como uma fonte de influência muito importante que modela a postura do

professor em relação ao ensino (Tardif, 2002). Nesta mesma obra, o autor cita

trabalhos em que os professores falaram da “origem infantil de sua paixão e de sua

opção pelo ofício de professor” (Tardif, 2002, p.75). Como introduzi no capítulo 5,

dentre os quinze professores estudados, o desejo de se tornar professor, desde criança,

foi apenas de Bel e de Carmela. Esta conta de suas brincadeiras infantis, no quintal de

sua casa, onde funcionava a “escolinha da professora Carmela”. E se recorda que a 8 Citadas por Tardif (2002).

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mãe, costureira analfabeta, contava de como os antigos falavam que de acordo com o

que se faz com seu umbigo vem a sua profissão, e que Carmela tinha o umbigo

enterrado com uma letra A, porque sempre que a perguntavam o que ela queria ser

quando crescer, ela respondia: “professora”.

Para vários estudiosos do ofício docente, há mais continuidades que rupturas

entre o conhecimento profissional do professor e as experiências ditas pré-

profissionais, aquelas que, inspirada em Roberto DaMatta, estou nomeando de

experiências do “mundo da casa” dos professores, sua existência privada, particular,

que se estendem, para além da família, aos processos de formação na escola.

6.1.2 A força da formação escolar

Antes mesmo de ensinarem, os futuros professores vivem nas salas de aula e nas escolas-e, portanto, em seu futuro local de trabalho- durante aproximadamente 16 anos. Ora, tal imersão é necessariamente

formadora. (Maurice Tardif)

Tendo considerado durante toda a pesquisa a escola como um lugar

privilegiado, uma forte referência na vida dos professores, procurei, durante as

entrevistas, abordar as lembranças que eles têm de suas escolas, de seus professores e

de suas experiências enquanto alunos.

A literatura informa que boa parte do que os professores sabem sobre o ensino

provém de sua socialização enquanto estudantes e que esse legado permanece forte e

estável através do tempo (Tardif, 2002). Portanto, busco identificar vestígios dessa

experiência nas identidades e nos estilos de trabalhar, especialmente com as pessoas

dos professores que tiveram. Que tipo de escola freqüentaram e quais modelos de

professores marcaram, de modo positivo ou negativo, suas concepções de professor e

de ensinar são as perguntas de saída.

6.1.2.1 As escolas freqüentadas e a escola-da-dona-Clair

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Treze dos quinze professores pesquisados estudaram os primeiros anos do

ensino fundamental em escolas públicas na região de Vista Alegre, numa época em

que a escola pública ainda era considerada de boa qualidade e que a oferta de ensino

particular era menor e destinada majoritariamente ao atual ensino médio. Uma

exceção é Maria, cuja vida escolar foi toda vivida em escolas particulares. Outra é

Aquiles, que estudou na periferia do município do Rio de Janeiro, nos anos de 1960.

Também treze professores freqüentaram o curso Normal, particular, menos

Aquiles, professor de educação física e William, de História, que cursaram apenas a

faculdade e um curso de especialização em suas áreas disciplinares. Dos treze, sete

terminaram os estudos universitários e Carmela faz atualmente uma faculdade de

Pedagogia a distância, sendo que apenas Sofia freqüentou uma universidade pública

na cidade de Niterói. Lembro que tal realidade tem menos a ver com a condição

econômica ou de gênero do que com a existência de oferta de estudos na região,

dentro do quadro analisado como “a escolha da não-escolha” (Lelis, 1996)9, e bem

ilustrado nesta fala de Iara: “se tivesse faculdade por aqui, queria ser enfermeira.

Nunca pensei em ser médica, porque não sou muito de sonhar com o impossível não”.

Um dado do percurso escolar muito marcante do grupo pesquisado é que seis

professores são ex-alunos da escola-da-dona-Clair, sendo que, destes, quatro são ex-

alunos da própria dona Clair, por quem foram alfabetizados, fato que impacta as

concepções atuais sobre a escola e o ofício. Como relatei no capítulo anterior, Iara,

Tarsila, Iracema e Pilar lembram de como a escola era um local de encontro, de

brincadeiras, uma continuação de suas casas. Sofia, por sua vez, fala, demonstrando o

que parece um certo orgulho, de como considerava o ensino de qualidade:

Eu estudava no Viola. E minha primeira professora foi tia Clair10. Fui muito bem alfabetizada por sinal. Porque quando fui para outro colégio, na cidade, já na segunda série, eu lembro que logo no início a professora já achou diferença em mim, porque eu era a única que sabia ler, escrever e fazer conta com a maior facilidade. Enquanto os outros alunos tinham dúvidas, eu já estava bem alfabetizada, bem encaminhada. Já naquela época, a nossa escola era uma boa escola. (Sofia)

9 Confronte capítulo 5. 10 A professora Sofia é sobrinha de dona Clair.

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Em sua história de vida, esta professora mostra, ainda, uma grande disposição

para o estudo, característica narrada espontaneamente por outros seis professores,

muitos dos quais desejam voltar a estudar no futuro. Isaura, Jéferson, Pilar, Bel,

Mariana e Isaura tiveram como característica comum no percurso escolar serem

curiosos, adiantados nos estudos e/ou gostarem de conhecer vários assuntos, como

mostro nestas falas pinçadas entre as histórias:

Sempre gostei de várias áreas. Essa foi até uma dificuldade, quando fiz vestibular, escolher uma determinada área. Eu fiz para Matemática. Quando eu passei e fui fazer a matrícula, eu me matriculei em História. No primeiro dia de aula, eu mudei para Letras. Eu não estava indecisa, mas é que gostava de todas as áreas. (Isaura- língua portuguesa e literatura) Se não fosse professor, com toda sinceridade, sem falsa modéstia, eu não sei o que seria, mas qualquer que fosse eu seria dedicado e coerente naquilo que eu teria escolhido. (Jéferson - história) (...) sinto falta da cultura, do conhecimento. E eu me propus a voltar para a cultura geral, que vou ler, procurar. É assim que eu penso em voltar a estudar. (Bel – séries iniciais)

6.1.2.2 As primeiras relações professor-aluno vividas

Como trouxe no capítulo anterior, as imagens de antigos professores estão na

memória e são reveladas nas narrativas sobre os percursos escolares, confirmando a

tese da “centralidade da influência de determinadas mestras nas disposições para se

tornarem professoras” (Lelis, 1996, p.85). Eles falam de como aprenderam com os

antigos mestres a ser professor: conteúdos, técnicas de trabalho, atitudes diante dos

estudantes, traços seculares do ofício docente. As suas experiências escolares mais

significativas, desde os primeiros anos até a faculdade, são fontes de convicções,

crenças e representações.

Os antigos professores são descritos de múltiplas formas, claramente

identificadas com o estilo pessoal de cada pesquisado. Assim, por exemplo, Carmela

lembra de sua primeira professora, por quem “tinha adoração”, pois era “muito

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humana, muito mãezona”, o “jeito Carmela” de ser professora hoje: “passa muito a

mão na cabeça” dos estudantes, acredita na leitura diária como fonte de prazer e gosta

de ensinar com jogos, porque cativa os estudantes.

A identificação é assunto de reflexão por Isaura ao se recordar de uma mestra:

Eu me identificava muito com o jeito dela trabalhar. Ela era muito amiga, muito aberta, ela brincava, ria, ensinava o português de uma maneira que você não via o português como aquela coisa maçante e difícil. A gente acabava aprendendo com muita facilidade. A gente gostava muito dela e, então, conseguia aprender a matéria com facilidade. Eu acho muito importante essa identificação do aluno com o professor, para ele ter mais vontade e facilidade para aprender a disciplina. Quando você não vai com a fisionomia do professor, e também com o jeito de o professor trabalhar, tudo fica mais difícil. Eu acho que aprendi muito nesse período porque eu tive muitos bons professores. (Isaura- língua portuguesa e literatura)

Esta idéia da importância da “identificação do aluno com o professor” é

igualmente compartilhada e explicitada por Aquiles, William, Mariana e Sofia.

Os antigos (e bons11) mestres são lembrados pelos saberes e competências

oriundos tanto do jeito de ser, como de um fazer pessoal. Todos se recordam

detalhadamente de professores que foram afetuosos, pacientes, amigos, confidentes

ou confiáveis, mas também porque sabiam o conteúdo e ensinavam bem. As

características, freqüentemente associadas à imagem das professoras do antigo

primário e do secundário, separadamente, foram encontradas indiscriminadamente,

em todos os momentos dos períodos escolares. Por exemplo, Aquiles (educação

física) se recorda da professora de língua portuguesa do antigo ginásio:

parava escutando ela falar, ela recitar poemas. Para meu mundo de garoto de Baixada que andava descalço e jogava pelada era um choque, eu achava lindo: o tom, a entonação, a métrica, a impostação. O jeito de falar. O professor é um personagem importantíssimo em qualquer lugar...Por mais que queiram trocá-lo pelo computador, ele vai sempre existir. Porque desde a Grécia antiga, o pedagogo, que era quem conduzia a criança para a instrução, talvez fosse mais importante para a criança que os pais. Tudo bem que foi minha mãe quem me criou, mas foram os professores que me ajudaram a me moldar. (Aquiles – educação física)

11 Apenas Sofia traz à memória uma professora primária que chegou a maltratá-la fisicamente, e que ela usa como o antiexemplo da professora.

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Ou Tarsila, que lembra da professora de história, a professora que ela diz ter

querido ser, a “professora padrão”:

Ela era nota 10, para ensinar e para escutar a gente. Tinha dia que a aula não acontecia, porque (...) a gente era mocinha... muita coisa que a gente não podia conversar em casa, conversava com a Jô. Aí no outro dia, ela ia às forras porque naquele dia, a gente quase não fez nada. Entendeu? A gente tinha uma relação com ela muito estreita. Até hoje eu me lembro do perfume que ela usava. (...) Eu tinha uma admiração muito especial. Eu lembro do livro de História, lembro das observações que ela fazia (...) Eu lembro até da expressão da boca dela falando que Dom Pedro comeu galinha à cabidela. Uma coisa muito marcante. O sorriso, o jeito de ela chegar, de sentar, de considerar uma bobeira que a gente fazia (...) E a gente contava coisa de namorado, podia confiar nela. (...) Aquela professora que considerava cada aluno como um. Eu era, para ela, a Tarsila. (...) Ela tratava cada aluno como se fosse único. E eu faço isso com meus alunos. Cada um é um. Cada aluno. Cada aluno deve ser tratado como único. Não ser tratado como boi. Boi tem um monte lá. (Tarsila – séries iniciais)

Cabe lembrar que o tratamento individualizado foi aprendido com a tia Pilar,

como já mostrado, mas devo adicionar, ainda, a maneira como a professora pensa a

sua profissão hoje: “Trabalhar com gente é assim: eu tinha um aluno filho de um

psicanalista e tinha um filho de um lavrador que não sabia nem ler e escrever. E aí, e

agora? (...) Eu tento primeiro valorizar todo mundo. Porque aquela criança lavradora

sabe muita coisa”.

Essa escuta que valoriza a todos e, concomitantemente, voltada para cada

estudante, “como se fosse único”, foi uma prática relatada por outros professores

como sendo um efeito de disposição criado no percurso escolar e creditado como

muito efetivo no processo de ensino-aprendizagem. Tarsila e Iara viveram a

experiência enquanto estudantes da escola-da-dona-Clair e sendo alunas de Isaura.

Esta recorda de uma professora de literatura portuguesa da faculdade, que “amava seu

trabalho” e se preocupava com a escrita de cada aluno, com quem sentava

individualmente: “líamos com ela as nossas respostas erradas, ela perguntava o que a

gente tinha querido dizer quando escreveu aquilo ali, e sugeria que nós

reescrevêssemos, de maneira que a gente colocasse no papel o que a gente queria

dizer”.

Isaura reconhece o atendimento quase individualizado que ainda pode dar

(embora cada vez menos) aos alunos do Viola, e acredita que o bom desempenho dos

estudantes da escola passa pelo número reduzido de alunos por turma, especialmente

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no início de seu trabalho: “A gente reescrevia tudo, ia pesquisar, abria dicionário, era

aula individual. E até hoje eu ainda tenho oportunidade de fazer isso com algumas

turmas, porque elas não são muito grandes não. Aqui na cidade é impossível”.

Iara também adquiriu esta crença na importância da individualização durante o

processo de ensino-aprendizagem, tanto da ex-professora e agora colega Isaura, como

de um antigo professor de Matemática. A perspectiva coincide com as considerações

de Perrenoud (1993), para quem um dos eixos da profissão docente deveria ser

aprender a tratar do aluno no singular e a enfrentar as diferenças. Veja como a

professora pensa porque o trabalho funciona:

Você se dirigir ao aluno considerando cada um como um indivíduo mesmo. Porque naquele dia que a gente não está muito a fim (sabe, aquele que você chega e fala no geral?), eu vejo que não funciona. Quando eu falo de mim, de você, de você, pergunto ao aluno pelo nome (“e você, o que acha disso, já ouviu falar nisso?”), eu vejo que eles ficam mais presos no que está acontecendo ali no momento. (Iara - ciências) Ainda sobre as crenças no sucesso do trabalho construídas a partir das

influências dos professores antigos, há o caso de Sofia, que viveu uma experiência

escolar muito positiva, de muito afeto, elogios e preferências:

Elas tinham essa coisa do afeto. E acreditavam em mim. A coisa da fé. Elas também me achavam brilhante, elogiavam. Eu sempre fui muito boa em redação e muito caprichosa. Elas pegavam minha redação, liam para a turma. Durante o primário, eu compensava a minha timidez tentando sobressair através das notas. Eu me aplicava muito nos estudos porque gostava de ser elogiada. E com isso as professoras gostavam muito de mim. (Sofia) E que atualmente tem uma postura diante de seus estudantes de construir afetos

e ter fé, acreditar que é possível. Sobre uma turma de alunos repetentes, de 2007, e,

portanto, com problemas de aprendizagem, ela conta que quando foi pegá-los nas

suas turmas, eles “pareciam que estavam indo para a forca” e diziam que estavam

com ela porque eram burros e não aprendiam. Ao que ela retrucou: “Não! Vocês

estão comigo porque foram escolhidos!” [risos]. Agora eles falam: ‘eu sou

escolhido!’.

Sofia também diz ter aprendido com tia Clair a rezar antes de iniciar as aulas e

de escrever um cabeçalho no quadro-negro, com o nome do colégio, espaço para o

nome do aluno e da professora, o local e o dia. Justifica esta prática dizendo que ela

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acha que deu certo porque os alunos se situam. Cabe lembrar a análise de Dubet

(2002) na qual os métodos tradicionais seguem formando o núcleo das práticas

docentes. Idéia compartilhada pela professora Tarsila: “Tinha muita coisa que eu

fazia [no início da carreira] e faço até hoje e que funciona, que eu provo que

funciona. Como por exemplo, existem atividades repetitivas...uma cópia funciona.

Um ditado é muito rico, dependendo do jeito que ele é apresentado. (...) Se ele está

dentro do contexto. Se faz sentido”.

E, ainda, por William, que costuma começar o ano e as aulas fazendo a “boa e

velha” revisão de conteúdo, como mostra o trecho da narrativa no qual ele revela

inclusive a fonte deste saber:

Ele [o estudante] sabe o que vai acontecer o ano todo. Coloco também o programa. Eu começo o ano fazendo uma revisão. Eu tenho lá um gráfico que eu montei e começo o ano fazendo uma revisão em cima daquele gráfico. Vejo tudo o que já vimos até chegar no ponto em que temos que continuar. Geralmente passo um mês e meio fazendo revisão. Também tenho o hábito de começar a aula fazendo uma revisão da aula anterior. Nunca entro e começo a falar do nada (...) Isso acho que vem da minha experiência escolar, porque, às vezes, eu não sabia do que o professor estava falando, porque ele já começava a aula direto. Nem todos. O professor que fazia isso eu conseguia me situar. Só começo a aula lembrando da anterior: “Vimos isso, isso, isso. Vamos começar desse ponto que é onde paramos”. Ás vezes, não rola, porque tem gente que não entendeu a aula anterior e tenho que dar a aula de novo. Mas, na maioria das vezes, não. (William - história) Das falas desses dois professores, Tarsila e William, pode-se depreender uma

característica comum do estilo de trabalhar da maioria dos docentes estudados: a

busca do sentido do trabalho escolar para os estudantes, uma questão que tem sido

pensada por vários estudiosos da escola e do ofício docente (Tardif & Lessard, 2005;

Dubet, 1996, 1998 e 2002; Perrenoud, 1995; Canário, 2005), que concordam com a

idéia de que a eficácia da escola na atualidade passa especialmente pela construção de

sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes.

Tal característica, segundo o depoimento de William, nasceu de sua experiência

enquanto aluno. Ao refletir sobre o assunto para o aluno no nível secundário francês

(colégios e liceus), Dubet (1998, p.30) afirma que se trata de um ator confrontado

com uma grande diversidade de orientações, muitas vezes antagônicas, e que (...) “ele

é obrigado a construir por si mesmo o sentido da experiência. Como dizem os alunos,

a grande dificuldade é se motivar, conseguir dar sentido aos estudos”.

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Perrenoud (1995) concorda que é inerente à forma escolar o afastamento de

uma prática do saber como recurso para resolver verdadeiros problemas e se

atingirem verdadeiros objetivos. Na escola, o saber aparece descontextualizado,

fragmentado, como um valor em si mesmo, um investimento ou um meio de estar de

acordo com as expectativas dos adultos, “codificado de acordo com uma lógica na

qual os imperativos da gestão das tarefas e dos percursos a realizar pesam bem mais

que a preocupação em se compreender o mundo” (p.213)12. E completa que “Para

sobreviver na escola (...), é preciso tornar-se dissidente ou dissimulador, salvaguardar

as aparências para ter paz, sabendo que ‘a vida está para além disso’, nos interstícios,

nos momentos em que escapa a vigilância, ao controlo, à ordem escolar.” (Perrenoud,

1995, p.213)

A vida pode estar também no fato de se terem professores que saibam da

grande distância existente entre os saberes ensinados aos saberes adquiridos pelos

alunos, ou seja, entre o “currículo real” e a aprendizagem efetiva. Distância que os

professores da escola-da-dona-Clair buscam vencer de diferentes maneiras,

relacionadas não somente aos efeitos de disposição, mas também aos de posição,

como acredita Perrenoud (1995), para quem o sentido não é dado, mas, sim,

construído a partir de uma cultura, de um conjunto de valores e de representações,

mas também em situação, numa interação e numa relação. Por este motivo, será do

ponto de vista dos professores que são hoje que continuarei expondo e discutindo, à

frente, as maneiras que alguns deles buscam construir um sentido para os seus

trabalhos e de seus estudantes.

Muitas foram as experiências recordadas por estes professores e vividas no

“mundo da casa” e destaquei apenas as consideradas como de maior influência nos

estilos de ensinar. Todavia, o tempo de aprendizagem do trabalho docente não se

limita ao espaço “da casa”, e inclui também a duração da vida profissional, período

em que os professores assumem posições diversas e que são fontes de conhecimento e

12 E cria a seguinte metáfora: “O saber está para os alunos como o dinheiro para os empregados bancários: passa-lhes muito pelas mãos, mas no fim do dia enriqueceram? Ou compreenderam melhor de onde vinha e para onde ia?” (Perrenoud, 1995, p.213)

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aprendizagem. Isso me leva a considerar a construção desses saberes profissionais no

decorrer da carreira profissional, ou seja, no “mundo da rua”.

6.2 No “mundo da rua”: efeitos de posição

A escola: o lugar onde os professores aprendem (Rui Canário)

A profissão é um momento de troca permanente, é o maior aprendizado que eu tenho. É a minha faculdade. Me faltam conhecimentos teóricos, porque eu só fiz segundo grau (na época era formação de professores). Mas o que eu aprendo trocando com meus alunos, o que eu tenho que aprender para

dar, para passar, às vezes, lapidar alguma informação que eles me trazem! (Bel – séries iniciais)

Assim como acreditam o pesquisador português e a professora Bel, a maioria

dos professores participantes deste estudo, cujas formações acadêmicas foram básicas

(ou quase), reconhece que as experiências de trabalho na escola constituem as

principais fontes de seu saber de professor, tanto no que se refere ao conteúdo a ser

exposto como à forma de fazê-lo.

Em polêmico artigo no qual faz um panorama histórico acerca dos “idiomas

pedagógicos” que tiveram impacto na formação dos educadores nos últimos 20 anos,

Lelis (2001a) verifica a mudança de uma pedagogia marcadamente conteudista para

uma ótica que aponta a epistemologia da prática (que traz os conhecimentos

incorporados e atualizados pelos professores em seus processos de vida, de trabalho e

de formação). E conclui que essa produção efetuou a “curvatura da vara” com a

antiga latitude do conhecimento científico originando-se da universidade.

Além da crítica contundente feita por Newton Duarte (2003) à tendência à

desvalorização do conhecimento científico, teórico, acadêmico, também Tardif

(2002), pelo lado da valorização da prática, alerta-nos que esta resulta em questões

difíceis, algumas das qual sigo tentando responder: qual é a natureza desse saber

específico dos práticos? O exercício da profissão docente é suficiente para garantir a

competência?

Os saberes historicamente construídos pelos professores durante o exercício da

profissão são o foco desta seção. Inicio pelas experiências docentes anteriores ao

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trabalho na escola-da-dona-Clair e completo com as diversas perspectivas fornecidas

pelas diferentes posições ocupadas por eles na escola, buscando explicitar sempre os

estilos de trabalhar a partir de cada uma dessas posições.

6.2.1 A força das experiências anteriores à da escola-da-dona-Clair

As fases iniciais da carreira docente têm sido objeto de diversos estudos, que

terminam por definir diferentes etapas do processo13. Peculiaridades à parte, as

pesquisas têm em comum o reconhecimento de que o início da carreira é uma fase

crítica, chamada não por acaso de “choque de realidade”, noção que remete ao

confronto inicial do professor com a complexa realidade do ofício. Durante este

tempo, o docente vai do idealismo à realidade, vivendo um período de exploração do

sistema normativo informal e da descoberta dos alunos reais, terminando por se

estabilizar e consolidar suas práticas.

Para Tardif (2002), as bases dos saberes profissionais parecem construir-se

entre três e cinco anos de trabalho, quando a estruturação do saber experencial é mais

forte e importante, pois os docentes vão adquirindo certezas em relação ao contexto

de trabalho, à escola ou à sala de aula. É quando confirmam a sua capacidade de

ensinar.

Podem-se depreender pelo menos duas trajetórias nos primeiros anos das

carreiras dos professores estudados: muitos trabalharam como unidocentes e/ou

multisseriados em escolas rurais; alguns exerce(ra)m funções múltiplas nas escolas,

como direção, vice-direção, coordenação de disciplina, o “extra-classe” na fala de

Aquiles. Essas experiências ofereceram-lhes sentidos de posição múltiplos e

singulares.

13 Pesquisas maiores, citadas por Tardif (2002, pp. 92-86), dividem o processo em três (Eddy, 1971) ou duas fases (Lortie, 1975; Gold, 1996; Zeichner & Gore, 1990).

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Dos quinze professores estudados, dez iniciaram sua carreira em escolas rurais,

todas muito longe de suas casas e para as quais o acesso foi motivo de muitas

histórias de sacrifícios, como contam Henrique e Carmela:

Além da locomoção pela estrada de chão e a subida a pé, eu tinha muito medo de cobra. Tinha um atalho para passar que eu morria de medo. Diziam que era bom rezar para são Bento, botar alho no bolso. Fazia uma oração para são Bento e subia. E ouvia histórias de pessoas que tinham matado cobra, as crianças contavam que tinham visto cobras. Aí, me falaram que o alho no bolso tinha que ser sempre, porque o dia em que eu não tivesse o alho a cobra ia me achar. Alho no bolso, nem pensar. Essa foi a dificuldade toda. (Henrique – língua inglesa) Passei muito perrengue, muito aperto: não tinha condução, minha família não tinha carro (porque a gente vivia no aperto, no sufoco), não tinha ônibus; então, eu saía da casa da minha mãe às cinco e meia da manhã, a pé, para chegar na escola às 7h15 mais ou menos. Ia e voltava a pé. Emagreci 8 quilos em 30 dias! [risos] (Carmela – séries iniciais)

Se o acesso físico a todas as escolas foi descrito como muito difícil, as

primeiras experiências “no chão da escola” foram vividas de modo diferente.

Henrique, por exemplo, completa suas lembranças anteriores dizendo assim: “Achei o

máximo, apesar de toda a dificuldade (...) Era a melhor coisa que eu podia estar

fazendo. Tudo era bom: o contato com as crianças todos os dias, aquela coisa, não

sei”. Também para Maísa foi “aquela empolgação, uma turma maravilhosa, uma

gracinha os alunos! No início a gente fica cheia de sonhos!”. E Carmela se recorda:

“A primeira turma que eu tive foi multisseriada: trabalhei com segunda, terça e

quarta-série. Mas eu tive uma turma muito, mas muito boa mesmo. Minha primeira

turma foi 10!”. Iracema, unidocente, diz: “Era eu, a merendeira e só. Tudo numa sala,

dois banheirinhos. Acho que tinham uns 20 alunos. Era igual uma casinha de boneca.

Eu adorava aquelas crianças!”.

Contudo, dentre esses professores, nem todos experimentaram a mesma

“empolgação de início”, porque dizem que não se sentiam formados para enfrentar as

condições de trabalho tão difíceis, notadamente em relação ao exercício das funções

docentes, mas também à multiplicidade dessas funções. A maioria dos professores

que leciona em escolas rurais multisseriadas e unidocentes tem que encarar o desafio

de alfabetizar - considerada pelos professores como a tarefa mais importante e

igualmente mais difícil de ser realizada, especialmente por professores iniciantes- e,

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ao mesmo tempo, acompanhar os estudantes pelas outras séries do ensino

fundamental.

Todavia, a carga de trabalho não parava por aí, pois eles também exerciam a

função de diretores e tinham que realizar a gestão da escola, confeccionar “mapa de

merenda, diário, organizar toda a escola, dar aula, lidar com o pai que vinha

chegando, do aluno que nunca tinha visto nada junto com outro que já estava lá”,

descreve Bel, sobre aquilo que o professor Jéferson denominou de “a inexperiência da

questão funcional da escola: a gente era jogado assim direto. Sobrou para mim o

mapa de merenda. E, pior, naquela época tinham dois. A gente, é claro, contou com a

ajuda de pessoas amigas, experientes, que ajudavam nessa parte burocrática”.

Na solução referida por Jéferson (que, cabe trazer, viveu a experiência de

professor multisseriado e unidocente), percebe-se uma das fontes comuns de

aprendizagem do trabalho do professor: o aconselhamento dos outros, dos pares e

colegas mais experientes (Ludke, 1996; Tardif, 2002). E ela foi dada por todos os

outros docentes, seja no exercício do ofício de diretor, seja em sala de aula.

Outros professores, além deste recurso, lançaram mão de pesquisas em livros

(Henrique), ou, ainda, experimentaram várias estratégias de formação dos grupos, do

uso do tempo e das técnicas. Em outros termos, submeteram-se à experiência no

cotidiano:

Menina, às vezes, eu me pergunto como a gente dá conta! Não sei! Eu gostava, ia, trabalhava com uma merendeira muito boa. Gostava a beça! Às vezes eu fazia uma experiência de colocar terceira e quarta juntas numa sala, e Classe de Alfabetização, primeira e segunda-série, na outra. Depois, eu achava melhor não. Ficava com medo de acontecer alguma coisa numa turma enquanto eu estava na outra. Então, colocava todos numa sala só e dividia: para um eu dava exercício mimeografado, para outro dava atividade no quadro. E a hora passava tão rápido, porque você tinha que se desdobrar! E as turmas não eram pequenas (...) tinham quarenta e tantos alunos. Mas eu dava conta, fiz muita amizade com os alunos e hoje já sou professora dos filhos desses meus alunos. (Pilar - matemática)

Do mesmo modo, na história de Bel também confirma de algum modo a teoria

da epistemologia da prática, pois a mesma narra de que depois de ver tantas

atribuições e achar que não ia dar conta, pediu ajuda a uma colega mais experiente

sobre a alfabetização (“resolvi começar do começo”, lembra ela), separou os alunos

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por série e adotou uma cartilha (“como se aquilo fosse tudo que eu precisava para

formar um aluno, um leitor”). Em novembro daquele ano, “meu pára-quedas

arrebentou e bati de bunda no chão”, fala ela, ao ler um aluno escrever “Xico,

xiscondeu o xinelo. Assim mesmo: tudo com x”. E continua recordando a

experiência:

Como eu achava que não tinha dado nada certo, eu mudei tudo! Comecei a brincar de pique bandeira, comecei a integrar a escola, porque eram duas realidades que eu havia criado no primeiro ano, e sofri para diluir aquilo. Botei tudo numa sala só e comecei a trabalhar dentro do meu instinto. Nem sei se usei a formação ou as colegas! Só sei que comecei a trabalhar em cima do que eles queriam. Sabe o que um pai falou para mim? “Dona Bel, quero que meu filho aprenda é ler, escrever e fazer conta”. Eu falei: “É por aí que eu vou!”. Aquele depoimento daquele pai me fala alto até hoje, porque ele queria muito e eu achei que era pouco (ler, escrever e fazer conta). Hoje é que eu vejo a dimensão que aquilo teve, tinha e tem. Fiz disso o meu objetivo de trabalho. Perguntei como ele queria que ele fizesse isso e ele: ‘ó, nós lida com lista de compra, com caixa de mercadoria, com pranta. Nós tem que saber quanto vai ganhá no dia’. Até hoje eu sigo essa linha. É o lado prático da vida. Quando o aluno traz a informação de que matou a cobra e que saíram duas cobrinhas da barriga, a gente vai para os livros estudar que são ovíparos, o que é isso, como fazem.... Mas eu não larguei essa linha. Foi um pai analfabeto que me deu e vou por aí. Não fico só nessa. Incrementei levando meu aluno a pensar, porque não posso fazer tudo sozinha com ele, porque é muita coisa. Agora, se questiono, levo-o a raciocinar, a ver outras formas, se quero uma outra solução dentro do 3x2, estou ganhando muito.(...) Eu aprendi uma palavra chamada “fio-condutor”, que era uma palavra bonita. Toda a matéria que eu dava na quarta eu ia até a alfabetização. Com o mesmo tema. Isso surgiu efeito. (Bel – séries iniciais) A realidade desses professores faz lembrar que a aprendizagem do professor

está no fato de ele estar “condenado a reconstruir no dia a dia, à sua escala, de

maneira mais ou menos intuitiva: a) uma política de educação; b) uma ética da

relação; c) uma epistemologia dos saberes; d) uma transposição didáctica; e) um

contrato pedagógico; f) uma teoria da aprendizagem” (Perrenoud, 1993, p.178).

Ainda, a fala de Bel revela vários aspectos do estilo da professora unidocente.

Primeiro, ela mostra sua aprendizagem do ofício no próprio exercício, em novas

tentativas de realizá-lo de uma maneira nova e mais eficaz, podendo ser percebida

como uma professora que é “prática”, mas também que busca “incrementar” e “levar

os alunos a pensar”. Outro efeito de posição é de alguém que conhece e considera os

saberes acadêmicos (refiro-me à “bonita palavra” “fio-condutor”), mas que sabe usá-

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los na prática (lembro que a professora nunca freqüentou uma faculdade), trabalhando

em forma de projetos, “em cima do que eles queriam”, e integrando a escola.

Esta maneira de exercício do ofício docente implica em reconhecer a docência

como uma profissão complexa, em que os saberes do cotidiano são

competências que permitem articular constantemente a análise e a acção, a razão e os valores, as finalidades e os constrangimentos da situação. Reflectir, antecipar, planificar, avaliar, decidir no momento, no stress, na incerteza, na ambigüidade , navegar à vista sem perder o norte, ter o outro em conta conservando uma identidade, são práticas, (...). Mas em todos os casos, trata-se de fazer, de empregar esquemas de acção no sentido amplo, incluindo a decisão, a avaliação, a planificação, o julgamento, a realização de um projecto, a negociação, a comunicação, etc (Perrenoud, 1993, p.178)

Por último e igualmente importante, chamo a atenção também para o fato que a

professora Bel constrói um perfil de escuta para a demanda das famílias de seus

estudantes, ao receber de um pai a indicação do caminho a seguir.

O que nos faz admitir que alguns professores aprendem o seu ofício com seus

estudantes e pais, levando a cultura escolar para fora dos limites da escola e trazendo

sua cultura cotidiana (e extra-escolar) para dentro dela. Este é um efeito de posição de

outros professores estudados, como esta fala de Jéferson sobre suas experiências

iniciais revela:

Porque aquilo lá se formou uma comunidade muito integrada na escola rural de primeira à quarta. Naquela época era assim: eles te olham com uma certa desconfiança; depois que vêem que você é uma pessoa que tem integridade, que quer trabalhar, eles te dão todo o apoio. Águas Claras passou a ser um segmento da minha casa. Eu consegui fazer um grupo de alunos, assim... às vezes saía para jogar bola com as crianças e deixava minha carteira sobre a mesa e ninguém mexia. Eu acabei com as brigas de rua, na estrada, que eram muito comuns. Virou realmente uma parte de minha vida. (Jéferson - história)

Cabe observar que também impregnam estas experiências docentes o

comprometimento dos professores e uma relação de afeto entre eles, estudantes e

famílias:

No final das contas eles [seus estudantes] vinham dormir aqui em casa aos finais de semana! [risos] E quando foram embora, foram chorando e eu fiquei chorando.(...) uma coisa é certa: eu sempre fui muito carinhosa com meus alunos, sempre muito próxima deles! (Iara – ciências)

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Fiz amizade, nunca tive problema com pai de aluno, nem com aluno. Sempre procurei fazer da melhor maneira possível. Eu não era professora de faltar, de chegar atrasada, de sair cedo. Eu podia fazer isso, porque trabalhava sozinha. Mas sempre tive muita preocupação com a responsabilidade de fazer as coisas direitinhas. (Pilar - matemática) Aqueles docentes que, mesmo sem terem lecionado em escolas rurais,

exerce(ra)m cargos ligados à gestão escolar ou à coordenação de disciplina (história e

educação física), nomeadamente William, Aquiles e Isaura (esta também atuou como

professora de escola multisseriada), igualmente contam da “tragédia” no início da

carreira e os modos que usaram para irem se aprimorando, que não foram muito

diferentes daqueles encontrados pelos outros professores: o estudo do conteúdo a

partir do currículo escolar e a experimentação no cotidiano, também a partir da

relação com os estudantes, como é o caso de Aquiles, para quem “Você aprende

muito com os alunos. Eu me escorei muito neles. (...) E até hoje é assim: você tem

que sentir os alunos para poder trabalhar. Só que naquela época eu não tinha a

experiência de 24 anos!”.

Mas o que quero ressaltar aqui é que o aprendizado da profissão para eles

também se deu quando assumiram as posições do que Aquiles nomeou de

“extraclasse”:

Aí eu vi um outro lado do magistério que ainda não tinha visto. Normalmente, o professor critica o extra-classe, mas este é tão necessário quanto o professor. E o Estado não valoriza nem um nem outro. O lado burocrático, de cumprimento de obrigações, de cobrar dos colegas. Saí da direção e fiquei 2 anos fazendo a orientação pedagógica da disciplina. De 1983 a 1990 houve muito crescimento profissional porque eu fui atrás de pesquisar, de ler, principalmente a parte pedagógica. (Aquiles – educação física) E a escola, quando passei pela direção, nós mudamos muita coisa (...), a nível pedagógico e físico, (...) foi o período em que eu mais acreditei na educação, que as coisas iam realmente mudar. (Isaura – língua portuguesa e literatura) Uma formação prática que, como para o outro grupo de professores

pesquisados, envolve a vivência e o aprendizado da complexidade da instituição

escolar, da possibilidade real de recriação no cotidiano de uma política educacional,

de uma ética da relação, de uma epistemologia dos saberes, tendo que refazer

igualmente o contrato pedagógico e criar teoria(s) da aprendizagem, como analisa

Perrenoud (1993).

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William assumiu há quatorze anos a disciplina de história de um colégio

particular, substituindo um professor antigo e muito respeitado na cidade, e lembra de

esta experiência o fez aprender muito mais do que quando estava na faculdade:

Sem dúvida nenhuma. Na faculdade, os conhecimentos são muitos específicos. Fui aprender coisas que nem de perto alguém mencionou na faculdade. Na faculdade você trabalha autores, textos, mas você não tem uma panorâmica geral da História não. Eu só tive essa panorâmica porque fui trabalhar da quinta ao terceiro ano. Pega todo o conteúdo! Aprendi na prática mesmo, pegando os livros, metendo a cara nos livros. (William - história)

A “visão panorâmica” a que se refere o professor foi uma perspectiva também

tida por Sofia, de uma maneira ampliada, uma vez que a professora atuou como

formadora de professores em uma escola Normal particular antes de ir trabalhar na

escola-da-dona-Clair e viver a experiência de ministrar aula de todas as disciplinas

(“menos religião”), em todos os níveis.

Acredito que tal vivência na complexidade da escola faça esses docentes serem

cada vez mais capazes de adequar as estratégias de ensino à especificidade dos seus

alunos. Um perfil generalista do ofício pode lhes dar a competência de adotarem

mecanismos de diferenciação pedagógica. E tal flexibilidade permite atender às

diferenças individuais.

Esta análise da complexidade e da flexibilidade do ofício docente, presente na

literatura sobre o magistério, fez-me lembrar da entrevista com Isaura (língua

portuguesa e literatura). Quando lhe perguntei o que de sua vida ela considerava

fundamental para ter o estilo de ensinar que tem hoje, ela respondeu sem duvidar:

Tive boas influências, bons professores (...).a seriedade de fazer o trabalho, de querer realmente que o aluno entenda qual é o objetivo (...), a importância que aquilo vai ter para a vida dele. (...) Não que isso tenha sido a coisa mais importante, porque seu estilo você vai moldando de acordo com a situação, de acordo com sua experiência, de acordo com aquilo que o ambiente te oferece. Você acaba tendo um estilo de trabalhar, um jogo de cintura para fazer a coisa. (Isaura – língua portuguesa e literatura)

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6.2.2 A força da escola-da-dona-Clair

Gosto muito dessa coisa de história: eu gosto de falar que aprendi a ler no Viola, que me formei no Viola, que trabalho no Viola, que meu filho estuda no Viola. Eu gosto desse ambiente, dessa

história, desse contexto (Iara - ciências)

Ao analisar as identidades do professores da escola-da-dona-Clair, conclui que,

naquela escola, há professores que atuam mais freqüentemente no espaço da “casa”,

outros, no da “rua”, e ainda alguns que vêem a escola com a perspectiva de quem está

no espaço do “quintal”. Essas diferentes posições condicionam o acesso a diversas

informações e diferentes efeitos de perspectiva, com pontos de vista múltiplos. E

estes parecem modificar os modos de trabalhar. Para um primeiro grupo de professores, a escola representa uma continuação de

sua casa, dona Clair é considerada a mãe, e o estudante, um membro da família. Nesta

perspectiva, o pai apresenta-se como o Estado-patrão, omisso e responsabilizador14.

Outro grupo de professores não usou a comparação da escola com a casa e a

família ao se referir à escola-da-dona-Clair, mas fala de seu local de trabalho como

um espaço de convívio agradável, cujo “pessoal é espetacular”, mas “só se relaciona

naquele local”, onde “não se fala de problemas pessoais, apenas de trabalho”, nas

palavras de Aquiles. Isso me fez levantar a hipótese de que estes professores

trabalham majoritariamente como se a escola fosse o espaço do público, ou seja, do

trabalho profissional, do “mundo da rua”.

Por fim, um terceiro conjunto de professoras vive a profissão na escola-da-

dona-Clair mais como uma realização de experiências no “quintal” da casa, de um

espaço intermediário entre a casa e a rua, entre o privado e o público.

Acontece que o professor penetra em um ambiente de trabalho constituído de

interações humanas, sendo estas consideradas o núcleo do trabalho docente, e, assim,

determinam a própria natureza dos procedimentos (Tardif, 2002). Por este motivo,

balizo minha análise fundamentalmente na relação entre professores e estudantes, e

nas posições que aqueles assumem frente a estes.

14 Como desenvolvido no capítulo 5.

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Desnecessário dizer que estas não são categorias estáticas e que os professores

“circulam” de um espaço para o outro. Sofia, por exemplo, tem um pé na “casa” e

outro na “rua”. Busco desenvolver aqui apenas as diversas posições que ocupam

majoritariamente e como narram seu jeito de trabalhar, quando estão em um ou em

outro “mundo”.

6.2.2.1 Na escola como na “casa”

Professor tem que gostar, tem que vibrar com aquilo que seu aluno faz. Tem dia que a gente fica igual a um bobo: ‘Ah, fulano fez isso! Foi tão engraçadinho!’ (Mariana - geografia)

No meio rural brasileiro, o espaço privado da casa, o espaço doméstico, sempre

coube à mulher, uma espécie de gestora e também executora do lar. Para dona Clair,

exercer a função docente nesses cinqüenta anos significou menos se enquadrar no

espaço público do mundo do trabalho e mais no espaço privado e íntimo das vidas

das pessoas da comunidade de Vista Alegre.

Neste período, o mundo privado da casa e o mundo público da profissão docente

têm sido representados de modo inseparável, para ela, sua filha Mariana, mas também

para a professora (e sobrinha) Sofia (todas as séries e disciplinas) e ainda para as

professoras Maria (sociologia e filosofia), Carmela (séries iniciais), Iracema (língua

portuguesa) e Pilar (matemática). Devo recordar que para esta última professora a

posição de alguém que está “em casa” foi sendo criada desde que nasceu,

literalmente. E contar de como ela se emocionou e chorou durante nossa conversa, ao

lembrar do possível afastamento da “mãe”, com a aposentadoria de dona Clair.

Essas professoras dizem que consideram seus alunos como filhos ou parentes,

sendo que sentem por eles orgulho (percebido na fala de Mariana que inicia este

segmento), carinho e até pena:

Faz um carinho, passa a mão na cabeça, valoriza ele, porque às vezes ele está precisando é de ser valorizado. Eu acho que funciona muito o carinho, a atenção particular, eles perceberem que você está fazendo, procurando fazer uma coisa legal, que você não está ali preenchendo o tempo. (Maria- sociologia e filosofia)

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Eu gosto dos meus alunos, tenho carinho por eles, tenho pena deles, pela situação de uma escola pública, na roça. (Iracema - língua portuguesa)

Fica, assim, explicitado que a profissão é realizada com muito afeto e emoção.

Um modo de exercício do ofício até certo ponto ligado a uma idéia do desempenho de

uma missão, como fala Maria, que se considera uma “mãe amorosa e exigente” para

seus alunos e que diz gostar de dar aulas porque “é bom trabalhar com as pessoas,

conversar, estar com as pessoas e procurar ajudá-las”.

Ou, igualmente, para Mariana, que afirma que seu objetivo é “de formar o ser

humano quase na totalidade”. Por isso, “não adianta ser um excelente professor de

matemática, saber ensinar aos alunos todas as operações, se não conversar com ele

sobre ser ético, ser cidadão”. Ou seja, oferecer uma formação moral. E religiosa.

Todas as professoras do grupo rezam antes de iniciarem as aulas.

Para essas professoras, a função da escola também é de ensinar conteúdos.

Embora a crença na “missão” muitas vezes se confunda com a função materna,

Carmela e Mariana dizem ter cuidado para tentar separar as funções:

Meu dia começa com “Bom dia!”, porque “bom dia” levanta todo mundo! Cara feia na minha sala não existe. Se eu tenho algum tipo de problema, isso não chega lá na escola; aliás, acho que nem sai daqui da minha porta. (Carmela – séries iniciais) Mamãe15 sempre falou isso e acho que ela tem razão: você procurar, na escola, não levar problema de casa. Apesar de ser um ser humano, se você vai para a escola, seu aluno não tem nada a ver se você brigou com seu marido, se brigou com seu filho, ou que você está sem dinheiro, se está ganhando pouco. Ele não tem nada com isso não, coitado. Ele está ali para aprender. Eu acho que ser bom professor é procurar não levar os problemas de casa. (Mariana - geografia)

Mas logo a seguir, Mariana confessa que

a gente é ser humano, mas, quando pensa que está fazendo isso, tem que dar uma segurada, dar uma avaliada. E também sou assim: quando eu brigo demais, eu peço desculpas (‘ih, gente, fui mal. Hoje não estou muito bem!’). Ou aviso logo: ‘gente, hoje estou meio aborrecida! Não esquentem muito minha cabeça não!’. Porque a gente se sabe humano e nem sempre chega lá ‘livre, leve e solta’. (Mariana - geografia)

15 Lembro que a mãe é a dona Clair.

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154

Deste modo, apesar de estas professoras serem uma espécie de encarnação da

instituição escolar, enquanto imbricação escola-família, exercendo as funções de

homogeneizar e tratar a todos os “filhos” igualmente, os modos como as docentes se

relacionam e se comunicam pedagogicamente não podem ser separados de suas

personalidades.

Em outras palavras, tais atitudes maternais desse conjunto de professoras diante

do aluno e de sua profissão impactam o contrato pedagógico que estabelecem com

seus estudantes, o denominado clima da sala de aula por Perrenoud (2001), para quem

uma maior ou menor adesão dos alunos às tarefas propostas, o uso do tempo, a

tomada da palavra, em resumo, a construção de um clima propício às aprendizagens

depende diretamente do tipo de comunicação instaurada em sala de aula.

E, a fim de cumprirem sua missão com este grupo de pessoas com as quais

estão tão vinculadas socialmente, as professoras criam situações didáticas que vão

desde o uso majoritário de computadores e da Internet até um estilo de aula mais

tradicional. Porque, frente a este modo de se relacionarem com seus estudantes e

apesar de terem um estoque homogêneo de identidades e valores (um ou mais papéis

e uma função na instituição), elas criam suas próprias estratégias.

Para Carmela, o exercício do ofício demanda, além do respeito ao aluno,

planejamento e flexibilidade:

Não adianta querer impor se não é aquilo que eles estão querendo. Às vezes a gente resolve levar um filme em que eu vou trabalhar isso, assim, assim, assado. Aí, depois de assistir ao filme, não era aquilo que as crianças estavam esperando ver. O que você faz? Você pega aquele filme sobre o qual você havia construído todo o seu planejamento, dá uma pincelada e decide deixar para uma outra oportunidade, para quando o interesse retornar para aquilo ali. Parte muito do interesse. Se o aluno não estiver interessado no que você fez, não dá. (Carmela – séries iniciais) Esta importância do interesse do aluno também é valorizada por Maria, que

busca trabalhar com um conteúdo próximo, “nada distante que ele tenha que decorar,

fazer prova e nunca mais. Pelo menos eu tento fazer esse elo de ligação, tento trazer

para o dia a dia deles. Esbarrar com aquela realidade e parar para refletir”. E tudo

acontece no laboratório de informática, sua sala de aula atualmente:

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Eu não consigo mais trabalhar da maneira que eu trabalhava antes. (...) Eu acho interessante para eles. (...) Eles vão ler sites, são obrigados a ler de uma forma diferente, manuseando o computador, é uma leitura diferente. E têm que jogar em outra linguagem, por exemplo, em powerpoint. O caminho para chegarem onde eu quero é um aprendizado. (...) é um recurso a mais. Mas que a gente usa com excelência. Mas não deixa de abrir mão dos outros recursos, entendeu? A gente traz a revista para trabalhar no computador. (...) A gente procura abranger ao máximo (...) Você amplia o universo. É uma ida sem volta. Eles têm que ser inseridos nessa era digital, melhor ainda na escola. Eu sinto que eles gostam, sabe? Eles ficam encantados. A gente vai mostrando os recursos e eles ficam super interessados, entendeu? Acho muito bom, muito bom! Melhorou muito a qualidade do trabalho da gente. (...) Eu não descanso um minuto! Porque eu estou ensinando como eles vão fazer o que eu quero. Eu abro as páginas, dou os caminhos para eles (já deixo tudo engatilhado. É só eles darem um clique) e dou atendimento individual, ou em dupla. Computador por computador, o tempo todo. Eu vou dando dicas (‘Faz assim. O que você acha? Está errado!’). Na hora de escrever eles têm muitos erros. É o tempo todo junto, em cima, com eles. Não dá para liberar não. Porque é o tipo de trabalho que, como eu procuro ampliar, a gente sempre cobra mais um pouco. Aquele que foi pode sempre ir mais além. Sem conteúdo fechado. (Maria – sociologia e filosofia) Maria procura, assim, ampliar o espaço da sala de aula para o ciberespaço, este

espaço e tempo nem sempre possível de ser claramente definido. Ao adotar essa nova

maneira de trabalhar, percebe que propicia a seus estudantes a oportunidade de “ler

de uma forma diferente”. De fato, a linguagem audiovisual é uma perfeita mixagem

entre sons, imagens, movimentos. Nela, segundo Pierre Levy, misturam-se as funções

de leitura e escrita, pois, com o hipertexto, “o navegador participa da redação do texto

que lê” (apud Kensky, 2000, p.134), de modo original: “uma ida sem volta”, nas

palavras da professora Maria. E, nas palavras da especialista: “Linguagem muito

distante do discurso linear e seqüenciado presente nos textos escolares, na

organização didática das aulas, na lógica que preside a organização das disciplinas e

da maioria das atividades vivenciadas no espaço escolar” (Kenski, 2000, p.131).

Outra professora especialista em informática escolar é Sofia, que também faz

uso sistemático da sala de computadores da escola. Mas o que ela acha que realmente

funciona no processo ensino-aprendizagem é procurar sempre trabalhar o aluno nas

três vertentes: a sensibilização, o raciocínio lógico e a expressão. Em suas palavras:

(...) a sensibilização, que é você sensibilizá-lo, torná-lo uma pessoa receptiva, capaz de observar tudo, de aumentar a capacidade de absorver as coisas todas do mundo; em segundo lugar, o raciocínio lógico, que é ele ter pensamento, fazer ele indagar (...) É perguntar, não é buscar respostas, mas perguntar: “quem sou eu?” “para onde vou?”. É o pensamento, fazer com que o aluno saiba pensar, da própria cabeça, questionar os

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valores, a formação dele como pessoa; e, por último, expressão, que é você se comunicar com o outro, mostrar o que aprendeu, você se doar. Toda a ação sua é você fazendo alguma coisa com o que você conhece, lidando com seu próprio conhecimento. (Sofia)

Por sua vez, Mariana diz buscar variar constantemente, mas admite não

conseguir ficar longe do tradicional (“até porque os alunos não gostam!”). Alterna

leitura e exercícios em livros, discussão com mapas, DVDs, seminários em que os

alunos estudam e apresentam o assunto, pesquisas na Internet. Ela define assim o seu

jeito de ser e de trabalhar:

Eu não sou muito carrasca, muito exigente demais. Acho que ‘cada um tem seu cada um’, e eu procuro respeitar isso no aluno. Mas eu tenho pavio meio curto. Tem hora que eu brinco sem necessidade e depois me arrependo. (...) depois, eu descasco. (...) Eu não faço nada de extraordinário dentro daquilo que eu tenho que trabalhar. Mas eu procuro ser bem organizada na sala, dinâmica naquilo que eu faço. (...) Eu não sou muito de enrolar. Tem gente que fica com um assunto toda vida. Eu sou prática nessas coisas. Minhas aulas têm muita praticidade. (...) Muito dentro dos parâmetros normais. Não faço nada diferente não! Todo mundo sentadinho, normal. Faço, às vezes, umas aulas em círculo. (Mariana - geografia)

As irmãs Pilar (matemática) e Iracema (língua portuguesa), que estudaram

juntas toda a vida, descrevem seus estilos de trabalhar como tradicionais: usam

quadro negro, cópias, exercícios mimeografados, além de seguirem um livro didático

e gostarem de silêncio e concentração. A diferença pode ser observada apenas na

relação com os estudantes, pois, em que pese o fato de que ambas os considerem

alguém da família, Iracema se considera uma professora “muito exigente”, “brava”,

“meio tradicional”, e que acredita ser vista por seus estudantes como uma professora

“muito chata”, “que não gosta de barulho”. Confessa, ainda, ameaçar os estudantes

com castigos, como a cópia. Sua irmã Pilar, por sua vez, se considera uma “mãe”

mais tranqüila, calma, pontual e séria. Gosta de explicar a matéria no quadro-negro

antes de chegar ao livro. Vai introduzindo o assunto novo e escrevendo exercícios no

quadro aos poucos, sempre procurando “fazer tudo com eles”. Ela acredita na

necessidade de mostrar aos estudantes a importância do aprendizado da matemática,

“mesmo para quem vai fazer uma coisa muito simples, como tirar uma carteira de

motorista”. Uma “mãe” que, diante de estudantes de escola rural (alguns vindos de

locais mais distantes, para os quais tudo é novo), diz que “costuma explicar sobre as

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157

disciplinas que vão ter, que são vários professores, pessoas diferentes, que eles têm

que aprender a conviver com cada um e seu jeito de ser, de trabalhar, de cobrar”.

Postas essas práticas docentes, uma das conclusões a que se pode chegar a

respeito dos tipos de ação dessas professoras é que trata-se de uma “esfera de ações”

(Tardif, 2002): elas agem conforme as normas, conforme os afetos, conforme os

papéis, conforme os fatos. Em outras palavras, as posições estão pautadas nas

tradições do ofício, nas afeições, nos comportamentos de seus alunos, na interação

com eles. Neste sentido, ainda segundo este autor, a personalidade do professor passa

a ser um elemento evidente de seu trabalho: “cada um tem seu cada um”, como disse

a professora Mariana.

6.2.2.2

Na escola como na “rua”

Eu sou rigoroso porque eu não acho que meu aluno seja um coitadinho, mas alguém que está ali para aprender. (Jéferson - História)

A fala acima do professor é ilustrativa do modo predominante como este grupo

concebe os seus alunos: eles são aprendentes na escola e trabalhadores em casa, a

maioria, filhos de lavradores. E são encarados mais como alunos e menos como

crianças ou adolescentes. E tidos como “respeitosos, com uma educação mais

religiosa e controlada” típica da criança de roça (Aquiles – educação física),

“disciplinados” (Henrique – língua inglesa), “obedientes e muito interessados”

(Isaura - língua portuguesa e literatura brasileira).

Neste grupo estão todos os homens participantes da pesquisa (William, Aquiles,

Jéferson e Henrique) e duas mulheres (Isaura e Maísa), além de Sofia16. Eles

assumem uma perspectiva de ser a escola-da-dona-Clair um local de trabalho,

majoritariamente, ainda que acolhedor e amigável. Se o espaço privado está associado

16 A lógica do exercício da profissão de Sofia é a mais polissêmica. Embora ela assuma uma posição clara de escola como “casa” (foi ela quem cunhou a expressão “escola-família”), ela faz a crítica à gestão e ao sistema, e concebe seus alunos como aprendentes “brilhantes”.

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ao individual, à intimidade, à afetividade, à casa, do mesmo modo, em oposição, o

público tem a ver com os negócios, com a liberdade, com a rua (DaMatta, 1997).17

O mundo público é entendido como o próprio mundo, a rua. O espaço público é

o social. E a escola, como instituição moderna, é o lugar organizado e especialmente

preparado para realização do processo de aprendizagem das crianças e adolescentes.

Ela tem a função primordial de socializar e instruir, de oferecer uma educação distinta

da familiar e comunitária (Canário, 2005; Tardif & Lessard, 2005).

Para esse grupo de professores que se posicionam mais da perspectiva “da rua”,

dona Clair é representada como uma senhora “maravilhosa”, “admirável”, “calma”,

mas, antes e acima de tudo, uma diretora, que “tem dificuldade de se impor” e “trata

os professores com diferenças”, que “se recolhe na parte burocrática”, que “parece

cansada” e “desanimada”, e que “não está tão mais presente como antes”. Uma

gestora, uma profissional.

Dentro deste ponto de vista, o ofício docente estaria mais ligado a um

desempenho de função e adesão a valores e a papéis específicos. O trabalho de

ensinar conteúdos, de moralizar e de promover a socialização escolar é feito através

de um sistema de práticas codificado (exercícios, repetições, deveres, provas),

endereçado à coletividade e com caráter impessoal e regulamentar, a denominada

“forma escolar” (Canário, 2005). E tais práticas prescrevem diversas atitudes e

comportamentos tanto dos estudantes como dos professores.

Esse grupo docente acredita (e realiza seu ofício) no planejamento, na

disciplina e no exercício da autoridade, características básicas para a existência da

sala de aula, “um dos ambientes sociais mais controlados de todos” (Tardif &

Lessard, 2005, p.64). Aquiles (educação física) considera o planejamento o item mais

importante de um trabalho docente bem sucedido: “você tem que saber quando

começa, para onde vai e como chegar. Eu tenho planejamento”, por ano, bimestre e

mês.

17 Lembro que tais condições não são exclusivas desses espaços e que tudo é relacional. Deste modo, embora concebam a escola como um espaço do trabalho (do público, em princípio, portanto, no “mundo da rua”), por outro lado eles sentem este local como familiar, de “brincadeiras entre os colegas” onde há “professores espetaculares e sérios”, “comprometidos”, “integrados” etc. Ou seja, uma vivência na perspectiva do “mundo da casa”. Para efeito desta análise, foco minha interpretação no que é mais determinante na visão do grupo.

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Idéia que coincide com uma reflexão de Perrenoud (1993), para quem o

planejamento docente tem como objetivos primeiros não perder tempo e avançar no

programa, e manter a ordem, favorável à comunicação e ao trabalho. Aquiles procura

também

mostrar que há regras, um ritual, uma hierarquia, uma técnica a ser aprendida, exigência, cobrança. Não tenho 100% de sucesso. Educação é assim mesmo. Mas a grande maioria sabe do ritual, da escolha do time, da prova escrita, que é com pesquisa (brinco com eles com aquela história de quem não cola não sai da escola é verdade), porque ao pesquisar eles estão aprendendo. (Aquiles – educação física)

Jéferson precisa de silêncio para dar aula de história (caso contrário tem dor de

cabeça) e diz que se o aluno quiser bagunçar, ele não consegue porque “ele o tira do

sério fácil”. Além disso, tem um planejamento anual de avaliação, descrito assim:

Eu faço prova por objetivos formulados por mim. A correção é mais difícil. Eu cheguei ao cúmulo de fazer um mapão com todos os objetivos que o aluno acertou ou errou e, ao final do ano, eu fazia uma prova individual de recuperação anual. Coisa de louco, não é? Depois, fazia uma prova só, mas pesquisava no mapão de objetivos bimestrais e liberava o aluno de responder às questões cujos objetivos ele já tinha atingido. (Jéferson – história)

Uma vez que reconhece que a língua estrangeira é muito diferente para seus

estudantes do meio rural, Henrique tem um ritual metódico de apresentação de textos

em inglês: geralmente ele faz uma contextualização (para “buscar as informações que

eles têm”), depois uma pré-leitura (com a “identificação de palavras transparentes”), a

partir de quando os estudantes discutem o tema com os colegas e terminam o trabalho

com uma fase escrita. Já a gramática normativa é “trabalhada do modo tradicional”,

ou seja, uma apresentação seguida de exercícios individuais de fixação, com

autonomia, segundo ele: o aluno deve “mostrar para ele mesmo que está sabendo

fazer, sem ajuda de ninguém”.

Importante destacar que uma especificidade da instituição escolar é a presença

de um docente para ensinar a mesma coisa no mesmo tempo e da mesma forma a um

grupo de alunos (Canário, 2005; Tardif & Lessard, 2005). Henrique parece cumprir

essa função instituída, pois ressalta a sua presença constante para mediar a

aprendizagem: “durante as aulas não sou de sair de sala toda hora, pois quero que o

aluno possa contar comigo e não levar dúvida para casa. ‘Vamos entender agora o

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que estamos fazendo’. Minhas aulas rendem muito”, o que significa que elas

“correspondem ao planejamento, feito uma vez por semana”, para todas as turmas da

escola-da-dona-Clair.

Outra atitude que reflete o estilo de trabalhar comum ao grupo é a crença na

seriedade e no cumprimento da palavra dada. Esses professores dizem que combinam

no início do ano regras de disciplina e de avaliação, e que vão cumprindo item por

item, sem hesitação. Uma prática que se alinha ao fato que, historicamente, os

professores tendiam a manter uma autoridade de modo a lhes garantir o poder de

impedir a diversidade, a possível contestação, o conflito e a incerteza.

Como as relações entre as gerações mudaram e trouxeram uma diversificação

de valores, formas de viver e de pensar na família e na escola, o professor tem cada

vez mais dificuldades de dispor de meios de coerção e se vê obrigado a conviver com

incertezas e dúvidas (Perrenoud, 1993 e 2001; Dubet, 2002).

O fenômeno do “mal-estar docente”18 aparece em maior ou menor grau entre

todos professores deste grupo (menos na narrativa de Henrique). Lembro que ele se

manifesta como uma crise do poder do professor, além de uma visão social negativa

da profissão, uma desvalorização do estatuto social (Nóvoa, 1995a). Na verdade, uma

crise de identidade profissional, expressa deste modo:

(...).Eu acreditava realmente que as coisas podiam melhorar, que alguém tinha que levar a educação a sério. Mas estou vendo que cada governo que passa as coisas não mudam, mas, pelo contrário, pioram. (...)Estou desestimulada? Estou! Gostaria de estar fora da sala de aula? Gostaria! Não pelo aluno e pela função de ensinar, mas pela engrenagem toda que temos vivido na escola: desvalorização, falta de material, de incentivo, de reciclagem, de tudo que a gente gostaria de poder fazer e não tem condições de fazer, até porque o salário não permite. (Isaura – língua portuguesa e literatura) Você tem que ser responsável por tudo: educação ambiental, sexual, tem que falar sobre drogas, educação de trânsito. Tudo é você! Tudo é a escola! A escola é que tem que cumprir esse papel. E a principal função, que é de ensinar o conteúdo, está se perdendo, porque a gente fica com pouco tempo para isso. (Maísa – artes)

18 Trago no capítulo 2 que o fenômeno é definido como “o conjunto de reacções dos professores como grupo profissional desajustado à mudança social.” (Esteve, 1995, p.97). Entretanto, mais do que apenas reações, ele pode ser reconhecido como um processo de crise identitária dos professores.

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Maísa se refere ao excesso de culpabilização e complexificação de tarefas do

professor, a que se soma o fato de que estão tirando o direito de ele exercer sua

autoridade, pois, segundo a professora, ela “recebe alunos totalmente sem educação e

não pode fazer nada, (...) não pode mais tirar o aluno de sala de aula”. E a professora

Maísa continua: “eu acho isso ruim, porque nós não estamos preparados para isso. A

minha escola não me preparou para isso. E, ao mesmo tempo, eles jogam as coisas

assim e a gente tem que dar conta disso. E se não vai bem a culpa é do professor”.

Esta última opinião é compartilhada por Perrenoud (1993), para quem quase todas as

críticas ao sistema escolar toma o professor e sua formação como bode expiatório,

esta considerada curta, inadequada, inadaptada, insuficiente, antiquada.

Para a professora Maísa, o problema aumenta pelo fato de artes ser uma matéria

que não reprova, o que faz com que ela tenha que mostrar a importância do estudo,

pois, caso contrário, “os estudantes não fazem nada, acham que estão na hora do

recreio”. Ela diz que alterna momentos de teoria sobre as artes em geral com

atividades práticas, quando os alunos têm que produzir uma “obra”.

Segundo a professora Sofia, os momentos de desencanto com a profissão são

muitos e os professores “todo tempo têm que estar engolindo sapo e fazendo de tudo

para não serem afetados e continuar nossa luta”. No âmbito interno, Sofia reclama da

classe docente, já “que cada um quer se livrar o melhor que puder para sobreviver”,

“fica querendo dar um jeitinho na vida”, sem pensar no coletivo, o que enfraquece a

luta por melhores condições de trabalho.

Vale ressaltar que é dentro deste grupo de professores que se posiciona mais

freqüentemente no “mundo da rua” que se encontra a percepção de que estão frente a

problemas inéditos e de difícil solução, com a chegada de novos e heterogêneos

públicos, como apresentam Tedesco e Fanfani (2002). Ainda que os estudantes da

escola-da-dona Clair sejam considerados os mais interessados e disciplinados que

têm19, esses professores percebem que eles são cada vez menores e em mais

quantidade por turma (Aquiles); mais “ligados e por dentro das coisas” (Henrique);

cada vez menos interessados em aprender (Isaura, Sofia, Jéferson e Maísa).

19 Como apresentado no capítulo 5.

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Sofia lembra que também o que muito afeta negativamente o trabalho docente é

a falta de sentido e praticidade para os estudantes dos conteúdos trabalhados pela

escola, como ficar por quatro horas sentado diante de um professor, ouvindo falar

sobre a Europa. Segundo ela, o aluno perde a motivação e tende a estudar para fazer

uma boa prova e passar de ano. Lembro que tal constatação vai ao encontro da idéia

de Canário (2005) da falta de sentido e de legitimidade da instituição escolar na

atualidade. Para minimizar essa realidade, ela gosta de trabalhar em projetos e trazer

novidades, para aumentar a curiosidade, embora acredite que “para a criança do meio

rural qualquer coisa é o máximo”.

Uma outra saída que esses profissionais da sala de aula buscam é revelar o

sentido para a sua atividade junto aos alunos, um critério de eficácia para o trabalho

escolar de professores e estudantes, segundo Canário (2005). Ao dar aulas de língua

portuguesa e literatura, Isaura diz que procura fazer o aluno “ter consciência de que

ele está estudando a sua própria língua” e que, “tendo domínio, se ele quiser, vai ser

um profissional bem sucedido”. Em outras palavras, trata-se de ter “uma preocupação

de fazer com que o professor atenda não só a língua, a matéria em si, mas que ele

ajude o estudante a se formar para a vida mesmo”. O segredo, continua ela, é que

“quando você mostra para o aluno o por quê daquilo ali que ele está aprendendo, a

aplicabilidade que aquilo vai ter na vida dele, ele vai ter mais vontade de aprender,

ele dá mais importância àquilo que ele está aprendendo”20.

Para Perrenoud (1995), dentro do sistema educacional obrigatório, com poucas

possibilidades de escolha, no qual os alunos estão fadados a utilizarem estratégias de

“atores dominados”, a quem se impõem muitas e impressionantes “coisas absurdas,

incompreensíveis ou penosas que não correspondem, de uma maneira geral, aos

desejos do momento”, o professor pode tentar facilitar este trabalho, concedendo ao

20 Por isso, Isaura, ao abordar um novo conteúdo, procura começar por alguma coisa fácil de os estudantes entenderem, usando exemplos próximos da realidade deles. Deste modo, se tiver que construir uma frase ou oração para ensinar determinado assunto, ela costuma usar os nomes dos alunos, uma situação que aconteceu na escola, alguma coisa vivida por eles. Dali, ela parte para a explicação da matéria em si, de modo simplificado, geralmente no quadro, por falta de outros recursos (o que lamenta profundamente). Não gosta de ficar lendo direto em livro didático, porque acha que não se aprende assim, embora o use como apoio, já que aproveita os textos cujas xeroxes seriam caríssimas e, portanto, inviáveis.

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aluno um “espaço de iniciativa, de autonomia, de negociação, de indecisão, de sonho”

(Perrenoud, 1995, p.191).

A atividade de estímulo à autonomia e à iniciativa é uma forte característica da

prática docente de William (história), que costuma “abrir para o debate”, para o qual

pede que os alunos do ensino médio leiam um texto de antemão. Isso porque acredita

que, para aprender, o aluno “tem que saber relacionar o que ele está vivendo agora

com coisas que já aconteceram no passado. (...) E através dessa relação eu gosto que

o aluno reflita. Fico buscando a participação dele na aula, querendo que eles falem,

(...). Eu preparo, entro e relaciono” (William – história). E, a fim de atingir o objetivo

de explicar o sentido da História, ele completa dizendo: “Eu tento entrar no mundo

dos alunos, (...) busco relacionar, porque a televisão está muito presente na vida deles.

Passou na televisão, eu procuro jogar na aula também, para fazê-los relacionar com

alguma coisa que estou ensinando”21.

Fica entendido, assim, que embora haja uma realidade da estrutura

organizacional que é estável (e até certo ponto externa ao professor) em relação à

“natureza” da ordem na sala de aula, o que impõe uma prática mais rigorosa e

planejada (do “mundo da rua”), há também uma outra realidade sistemática do

docente, que exige dele uma intervenção constante, e que, de certo modo, está mais

ligada à pessoa do professor (do “mundo da casa”).

Nesta posição, esses professores atuam tanto numa lógica do ator que

desempenha papéis, como na lógica do sujeito, que possui reflexividade, que é capaz

de fazer a crítica e perceber as mutações da instituição escolar e de seu trabalho,

sendo este também uma realização pessoal (Dubet, 2002).

Do ponto de vista da subjetividade dos atores em atividade, o “professor de

profissão” não somente usa conhecimento produzido por outros, mas é alguém que

assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo constrói e mobiliza no

fazer cotidiano (Tardif, 2002). Desta maneira, em que pese o fato de ser um professor

rigoroso, que busca seguir um estatuto de quem “quer uma escola pública de

21 Para entrar no mundo dos alunos, William diz ver “Malhação (enquanto anda em uma esteira de caminhada que eu preciso fazer): “Na aula, eu posso puxar um assunto que estava lá e eles viram e jogar aquilo para a aula. Relacionar. Não vejo sempre, mas vejo novela também”.

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qualidade”, Jéferson (história) tenta criar um “ambiente de concórdia e brincadeira”,

porque acredita que está “formando seres eternos, para quem a vida tem um sentido

especial” e que, por isso, têm que ser sérios e saber pesquisar a história (como ele

próprio). Esta função doente faz lembrar de outra, esta sugerida por Gilberto Freyre,

ainda em 1957, que ao se dirigir aos professores rurais nordestinos afirmou que

“Tanto quanto o padre, eles têm que lidar com almas” (Freyre, 1957, p. 43).

Assim também, apesar de valorizar o planejamento, Aquiles reconhece da

mesma forma que “a aula nunca é a mesma. Só o conteúdo. Não há estabilidade”. Por

isso, adota um estilo de ensinar teatral, com as seguintes palavras: “eles são a minha

platéia!”22. Este estilo também é adotado por Sofia, para quem o professor tem

sempre que encarnar um personagem, do autoritário ao afetuoso. A personagem Sofia

(adotada para este estudo) foi definida assim:

(...) muito de minha mãe e outro tanto de mim mesma. É doce, mas sabe colocar limites. É criativa, (...) tem sempre uma atitude ecológica, pois não tolera desperdício. Ama seus alunos, se desdobra para fazer o melhor (...). Tem preocupação com o social, sem cair na cilada do assistencialismo ou demagogia. Respeita seus alunos (...). Enfim, reconhece que para educar é preciso amor, fé e confiança (Sofia).

Volto a lembrar da “esfera de ações” proposta por Tardif (2002), a partir de

quando acredito que os professores desse grupo têm majoritariamente uma prática

tradicional, normativa, instrucional e estratégica. Mas também vivem seu trabalho

como uma atividade dramatúrgica, comunicacional, expressiva de si mesmos e

afetiva. Mais no “mundo da rua”, mas também no “mundo da casa”.

6.2.2.3 Na escola como no “quintal” da casa

Eu gosto de livro, porque acho que o aluno precisa ver como o autor explica, como aquilo vem registrado, além do eu tento passar para ele e do que ele passa para mim. Porque o pessoal da

roça sabe muita coisa! (Iara – ciências)

22 Lembro que a justificativa para o nome escolhido pelo professor nesta pesquisa é porque ele significa “o que quer ser lembrado por gerações e gerações, apesar da morte”.

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Eles [os estudantes] têm muitos conhecimentos que o povo da cidade maior banaliza. E são coisas com que eu me identifico. (Bel – séries iniciais)

Uma atividade apontada como inerente à identidade docente é a ação mediadora

no processo ensino-aprendizagem, quando o professor é tomado como um ator social

que circula entre vários contextos socioculturais e que estabelece comunicação entre

diferentes grupos sociais (Loureiro, 2004; Arroyo, 2007; Pimenta, 1997). Como já

trouxe no capítulo anterior, em uma escola situada em meio rural, como a escola-da-

dona-Clair (“espaço para se comunicar com o mundo”, segundo o professor William,

de história), a grande ponte construída pelos professores é entre a cultura social rural

de referência dos estudantes e a cultura escolar, “urbana” e estranha ao cotidiano dos

estudantes, mas valorizada como a que deve ser por eles conhecida e interiorizada,

como apontam pesquisas sobre a escola rural.

Retomo a questão porque, ao contrário, para um último grupo de professoras da

escola-da-dona Clair, nomeadamente Bel (séries iniciais), Tarsila (séries iniciais) e

Iara (ciências), essa ponte parece edificada entre duas culturas tidas por elas como

equânimes, o que fica explicitado nas falas que abrem esta seção, e que não aparecem

nas narrativas do outros professores (embora alguns até dizem gostar deste trabalho,

pelo “contato com a natureza”).

Do ponto de vista dessas professoras, o exercício do ofício parece implicado

com uma relação próxima e íntima com seus estudantes, de muitas trocas de

experiência. Sabemos que parte importante do sucesso escolar vem do domínio da

distância cultural, o que acontece via comunicação (verbal ou não-verbal), aceitação

do outro, afetividade, afinidades de gostos e de modo de vida, a fim de que o aluno

encontre seu lugar na aula e entre em contato com o professor (Perrenoud, 1993).

Desta forma, embora reconheça que seus alunos são “pessoas humildes, que,

por uma questão cultural, costumam baixar a cabeça”, Tarsila (séries iniciais) também

acredita que todos eles devam ser valorizados e respeitados em suas particularidades,

porque todos são diferentes e todos sabem algo, desde o filho do lavrador até o filho

do médico:

Tem até uma história de Chico Bento que fala isso: a professora sabia tudo, tudo, tudo. E ele achava que ele não sabia nada. Só tirava zero, zero, zero. Quando a professora

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começou a perguntar para ele sobre galinha, horta, essas coisas, ele só tirava 100, 100, 100. Claro, era o que ele tinha para dar. E a professora do Chico Bento naquela história valorizou isso. Eu lembro disso direitinho, eu recortei e guardei (Tarsila – séries iniciais). Idéia semelhante a de Gilberto Freyre que (no já citado discurso) afirma: Os velhos, as mulheres, os analfabetos rurais, todos guardam conhecimentos folclóricos sobre aspectos regionais de natureza e de vida, que, quando gerais, antigos e persistentes, nunca devem ser sistematicamente desprezados, mas cuidadosamente examinados por agrônomos, zootécnicos, veterinários, médicos, professores rurais, farmacêuticos, sacerdotes que cheguem a um meio rural, com a sua ciência em flor adquirida em academias ou escolas apenas urbanas (Freyre, 1957, p. 44). Como já colocado, as representações sobre a escola desta professora e de sua

irmã Iara apresentam-se carregadas de familiaridade, uma vez que ambas são ex-

alunas e a escola era o local de trabalho com que elas sonhavam desde o curso

Normal23. Tarsila foi quem criou a categoria “quintal”, um lugar intermediário entre

“a casa”, e “a rua”, onde acontecem situações que fogem do controle da “mãe” e do

“pai” e que são ligadas ao prazer, ao lazer e ao encontro:

Olha, a escola era uma coisa interessante. Não sei como a gente conseguiu aprender (...) minha tia morava perto da escola e você sabe que eu saía da sala de aula, ia à casa de minha tia, com minha prima, fazia suco, cozinhávamos ovo, comíamos e voltávamos para a escola? [risos]. (...) íamos na casa da outra ver a casinha de boneca dela e voltar (...) A escola era o point: era na escola que eu encontrava as pessoas, na escola que a gente via de quem a gente gostava na época(...) Brincava de tudo quanto é coisa. Não tinha eletricidade: nós nem a escola tinha geladeira. Às vezes, a gente levava suco em garrafa, fazia um buraco no chão e fechava. Nem sei se refrescava, mas a gente colocava. Depois desenterrava na hora do recreio. Era muito bom, muito bom![risos] (Iara – ciências)

(...) Eu morava em frente à escola. Aí no dia que acabou a obra, eu levei a Isabela [a filha mais velha] lá, as merendeiras lavando, eu fui ajudar a lavar, porque ia começar a usar o prédio. Todo mundo descalço, com a calça arregaçada. Eu tirei um retrato da Isabela brincando naquela água, entendeu? É por isso que é bom. Aquela escola é como se fosse minha também. (Tarsila – séries iniciais)

As narrativas apontam para a existência de um espaço da sociabilidade, a

“forma lúdica da socialização”, “o mais puro, transparente, atraente, tipo de

interação”, forma esta que depende totalmente das personalidades entre as quais

23 Nas palavras de Iara: “tudo o que eu queria era vir! Eu sonhava, no segundo grau, em dar aula naquela escola. Para mim, a referência de escola que funcionava com mais alunos, a mais interessante, no centro, era essa. Queria dar aula aqui”.

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ocorre (Simmel, 1978, p.169). E que na escola-da-dona-Clair acontece explícita,

majoritária e diariamente durante o recreio e em algumas aulas, no pátio.

Esta última professora conta sobre suas atividades docentes nesse local,

atualmente:

Eles [os estudantes] gostam de ir lá para fora, brincar um pouco, pegar sol. Essa semana a gente fez bolha de sabão. Levamos detergente, cano, copo. Brincaram... (..), depois, cada um escreveu sobre aquilo. Fizeram desenho e tal. Aí, por um acaso, (...) abro um livro e está um poema de Cecília Meireles, ‘As bolhas’. Mais um recurso. Aí estudamos o lh, entendeu? Aparece. Engraçado, toma curso!”. (Tarsila -séries iniciais)

Vale destacar que aquilo que “toma curso” é mais um projeto de trabalho da

professora, que apresenta um modo de exercer o ofício que se aproxima da chamada

pedagogia ativa. O que aconteceu apesar da resistência inicial dos pais e de dona

Clair, que queriam cadernos escritos e desconfiavam da professora que fazia bolos de

chocolate e construía petecas com seus alunos: "mas fulano hoje não levou dever para

casa, não sabe a palavra bola ainda e já está escrevendo a palavra chocolate, farinha,

trigo"!!! Quando todos começaram “a aprender a ler e escrever, felizes”, “isso foi

ficando bem aceito e entendido por todo mundo”, narra Tarsila. Que completa

lembrando que, para aliviar a angústia do início da carreira, às vezes “enganava todo

mundo” e reservava uma parte da aula para escrever o que “os mais velhos queriam

nos cadernos, quando também passava um dever de casa”.

Apesar de esse fato revelar um aspecto transgressor, de quem atua no “mundo

do quintal”, Tarsila também crê que funcionam algumas práticas mais tradicionais,

como cópias e ditados, dependendo do jeito que são feitos: “tudo depende do

contexto e tem que fazer sentido para as crianças”, além de que “o assunto tem que

ser interessante todo dia e o eixo do interesse tem que partir do convívio”.

A crença na importância do sentido do trabalho diário se realiza na forma de

projetos que nascem na sala de aula e a professora vai adaptando os conteúdos

curriculares àquilo que os estudantes criam. Ela cita o desenho que um aluno fez no

dia da nossa entrevista, uma árvore e um passarinho, tema de onde saiu uma história

coletiva, o trabalho de diferenciação dos tipos de letras (cursiva, manuscrita e caixa

alta), as características típicas dos ovíparos (que passou a ser assunto da pesquisa),

sua alimentação básica de frutas (que veio a ser tema gerador do próximo estudo

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sobre as principais vitaminas). E “o que estava planejado para o dia ficou de lado”,

porque ela acredita que o professor tem que ter essa flexibilidade. E nesta parte da

narrativa aparece mais uma transgressão, porque ela confessa que, apesar de ser

obrigada, não consegue separar os cadernos de português, matemática, ciências e

estudos sociais.

Isso implica em pelo menos três observações acerca dos modos de trabalhar

desse grupo. A primeira é que elas trabalham na resolução de problemas e por

projetos, concebendo, adaptando e regulando situações de aprendizagem, ao modo de

um bricoleur. Esta caracterização foi adaptada de Lévi-Strauss por Perrenoud (1993),

que, transpondo-a para a escola, concebe o professor como alguém que cria

atividades, situações de aprendizagem, jogos, problemas, projetos etc., usando, para

isso, os materiais disponíveis (alunos, textos, equipamentos técnicos, o meio

ambiente humano e material, a atualidade e as informações), somados ao desejo de

inventar, ao desafio de encontrar o bom tom entre uma atividade vaga e uma

totalmente estruturada, à opção de partir de propostas e interesses dos alunos, de suas

vivências, o mais freqüentemente possível (Perrenoud, 1993, p.48).

Outrossim, Bel (séries iniciais) acredita nas perguntas curiosas como ponto de

partida para o trabalho de pesquisa, que começa com o diagnóstico da turma e as

necessidades dos alunos, a partir de onde ela inicia o trabalho coletivo de

investigação: “antes que eu fique uma semana com os alunos, eu não tenho

planejamento.(...). Eu preciso saber com quem eu vou trabalhar”. No início do ano,

ela passa um tempo fazendo um diagnóstico da turma, no que se refere aos modos de

comportamento, às habilidades e aos conhecimentos disciplinares que têm (em

relação à língua portuguesa, à matemática, aos chamados estudos sociais, e a

ciências). Só depois ela traça metas de trabalho e faz os “combinados” de boa

convivência com a turma24.

24 Aqui vai uma parte de seu longo relato sobre o início do ano letivo de 2007:

Nesse ano, a primeira semana de aula ficou muito à la vonté e eu fiquei contando até mil para permitir a coisa muito solta. Porque eu queria que eles vissem o que incomoda. ‘Ah, não pode conversar!’ generaliza uma regra. Eu quero conversa! O que não posso permitir são conversas paralelas sobre um assunto que não estamos tratando (porque se forem sobre o assunto é para crescer, é para enriquecer. Ou é uma dúvida, ou é para onde eu tenho que ir). Pela experiência dos anos anteriores, eu resolvi não fazer uma lista do que pode ou não pode. Porque o não pode virar demais e a gente acaba se perdendo (igual castigo de um mês) e o negócio vira bagunça.

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A segunda observação acerca da prática das professoras desse grupo refere-se à

existência de uma atitude interdisciplinar e generalista em relação aos conteúdos

disciplinares. Uma prática docente interdisciplinar é descrita por Fazenda (1994,

p.85) como baseada na parceria com os estudantes, com os teóricos, com outros

professores, “na tentativa da construção de um conhecimento mais elaborado”. Além

disso, o professor interdisciplinar é transgressor, promove uma nova ordem e um

novo rigor ao “contrato pedagógico”, e sua autoridade é conquistada junto a seus

estudantes. E, ainda, que “o professor interdisciplinar traz em si um gosto especial

por conhecer e pesquisar, possui um grau de comprometimento diferenciado para

com seus alunos, ousa novas técnicas e procedimentos de ensino, porém, antes,

analisa-os e dosa-os convenientemente”. (idem, p.31). Este comprometimento

diferenciado possibilita a consolidação da intersubjetividade, de que um pensar venha

a se complementar no outro.

O que pode ser verificado igualmente no estilo de trabalhar de Iara, que, ao

abordar um conteúdo, procura reunir e sistematizar os saberes dos estudantes, a partir

de comparações com o já conhecido. Só depois dessa prática é que a professora

costuma conduzi-los à leitura coletiva do livro didático. Ademais, ela busca se dirigir

ao aluno considerando cada um deles como um indivíduo, mesmo. Ela acredita que

não funciona quando ela “fala no geral”:

Quando eu falo de mim, de você, pergunto ao aluno pelo nome (‘e você, o que acha disso, já ouviu falar nisso?’), eu vejo que eles ficam mais presos no que está acontecendo ali no momento. Vou dar um exemplo: a gente está falando sobre a composição do ar. Daí, eu pergunto: ‘do que vocês acham que o ar é feito?’ Eles já sabem alguma coisa, (...) Daí, eu falo: ‘o que mais pode ser encontrado?’ (...) Eles não sabem, pois não dá para ver. Aí, eu dou mais uma dica, o outro fala mais alguma coisa e eu vou anotando aquilo. Quando vemos, já está pronto. Uma coisa que eles me ajudaram. (Iara – ciências)

Para Iara, esta produção conjunta de conhecimento e completada com a crença

de que uma importante função do professor é transmitir conhecimento, porque, às

vezes, o estudante não o tem em nenhum outro lugar (caso da comunidade de Vista

Então, colocamos sobre a arrumação da sala. Todo dia tem que arrumar, pois eu não sei trabalhar com cadeira para um lado e para o outro, de modo que você não possa passar, ou o aluno tem dificuldade de levantar. (...) Ninguém precisa fazer xixi dentro da sala, só que não sai 10 vezes para ir ao banheiro. A gente tem que educar o corpo.

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Alegre), e, assim, pode comparar com outros conhecimentos que tem: “É ajudar a

construir e a expressar esse saber, a conviver com outras pessoas, respeitar o limite,

respeitar a posição de aluno e de professor”. Ela acha interessante “deixar uma marca

positiva no aluno”. E vibra quando imagina que ele pensa assim: “foi com ela que eu

aprendi isso. Ou com quem eu passei a raciocinar dessa forma. Ou com quem passei

boa parte da minha infância ou juventude. E que me ensinou isso. Junto aprendemos

aquilo”.

Tanto para Dubet (2002) como para Tardif e Lessard (2005), é nesse trabalho

com/sobre/para o outro que reside, em grande parte, a complexidade do trabalho

docente. A existência de um “objeto humano” modifica profundamente a própria

natureza do trabalho e a atividade do trabalhador, nesse caso, o professor. O trabalho

interativo que caracteriza o magistério transforma dialeticamente não apenas o

estudante, mas igualmente o professor. Ele levanta as questões complexas de poder,

afetividade e de ética, que são inerentes à interação humana, à relação com o outro,

relação esta que se torna elemento estruturante da profissão docente e sobrepõe os

próprios conteúdos ensinados25. Ela implica em mediações lingüísticas e simbólicas

entre as pessoas e exige dos trabalhadores competências reflexivas de alto nível e

capacidades profissionais para gerir melhor as interações humanas na medida em que

vão se realizando.

A última observação a ser destacada do modo de ensinar dessas professoras é a

presença da alteridade. Elas realizam seu trabalho especialmente a partir do contato

com seus estudantes, e com suas diferenças, estas tidas, simultaneamente, como a

base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito, por Gilberto Velho

(2003). A noção de interação está calcada no reconhecimento do outro como alguém

que possui perspectivas, interesses e valores, implicando o fato de que a realidade

tenha que ser constantemente negociada.

O foco na relação professor-aluno aparece claramente na visão que Bel tem

sobre a avaliação. Para ela, embora saiba que “tem que avaliar o conteúdo”, “o

objetivo mais importante é a relação”, é perceber como aquele ser social é no dia a

dia, porque ela procura “ver como ele vai crescer, como ele vai viver, o que pensa,

25 Como destaca Boing (2008) em sua recente tese de doutorado.

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mesmo na terceira série”, completa ela. Acredita, também, que, ao avaliar que não

houve um aprendizado desejado, o melhor caminho é voltar e recomeçar por outro,

mesmo que mais longo e que possa parecer “aos olhos de quem está fora de minha

sala” perda de tempo: “Uma coisa é que aprendi a refletir e aprendi a avaliar. E a

avaliação que faço do meu trabalho só pertence a mim.(...) ela serve para eu trabalhar

melhor no ano que vem, para eu sofrer mais. Porque vou ter que procurar mais,

conviver mais com o novo. (...) não tenho nada pronto” .

Uma forma de avaliar que se alinha com algumas idéias de estudiosos como

Perrenoud (1999) e Esteban (2001). Num capítulo nomeado “Não mexa na minha

avaliação! Uma abordagem sistêmica da mudança”26, o autor francês desenvolve o

conceito de “avaliação formativa”, uma avaliação “a serviço das aprendizagens e da

regulação das ações pedagógicas”, ou seja, que resulta numa transformação do

ensino, da gestão da turma e da regulação individualizada das aprendizagens. Deste

modo e ao buscar uma abordagem sistêmica, a avaliação formativa coloca à

disposição do professor informações mais precisas e amplas sobre os processos de

aprendizagens de seus estudantes.

Para a pesquisadora brasileira, a avaliação deve ser uma “prática de

investigação” típica de professores comprometidos com uma escola democrática, que

consideram seus alunos como parceiros e que prevê a interrogação constante: “uma

investigação capaz de dialogar com a complexidade do real, com a multiplicidade de

conhecimentos, com as particularidades dos sujeitos, com a dinâmica

individual/coletivo, com a diversidade de lógicas, dentro de um processo costurado

pelos múltiplos papéis, valores e vozes sociais, perpassado pelo confronto de

interesses individuais e coletivos (...)”. (Esteban, 2001, p.25).

Bel acredita que o que realmente faz seu trabalho funcionar, em suas palavras,

“é que eu tenho muita vontade que eles sequem as asas lá na minha sala. Sabe a

borboletinha, que vai secar a asa para voar?”. Um trabalho voltado para a construção

da autonomia dos estudantes, que parece reconhecer que “não há docência sem

discência” e que “ensinar não é transferir conhecimento”, como nos trouxe Paulo

26 Publicado simultaneamente em PERRENOUD, P. Avaliação. Porto Alegre: ARTMED, 1999 e em NÒVOA, A. & ESTRELA, A. Avaliações em Educação: novas perspectivas. Porto: Porto Editora, 1999.

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Freire (1997) em sua Pedagogia da Autonomia.

Concluindo, pode-se dizer que no “mundo do quintal” daquela escola, os

professores se relacionam com seus estudantes majoritariamente do lugar da

possibilidade real de troca com eles. Esta interação inspira uma outra forma de ver o

aluno, de valorizar a sua experiência, os seus saberes, encarando-o como uma

“comunidade dentro da escola” (Canário, 2005).

Implica, ainda, na existência de um processo de aprendizagem coletivo, em que

o poder da fala do professor é substituído pela troca de conhecimento e pela

colaboração grupal, a fim de se garantir a aprendizagem. Fortalece-se o diálogo e as

trocas de informações, quando as aprendizagens e o desenvolvimento do pensamento

lógico e científico realizam-se através da interação comunicativa, o que possibilita a

construção social do conhecimento, ao modo das idéias de Vygotsky (1988).

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7

Conclusão

Somos indivíduos mortais, criaturas finitas, realidades singulares fugazes. Será que, no entanto, algo de nós (algo do que nós fazemos) pode se incorporar a um movimento coletivo e

ter, assim, uma continuação, um prosseguimento na história? (Leandro Konder, 1996)

O propósito do estudo de caso que agora concluo foi conhecer o exercício do

ofício de professores que atuam em meio rural brasileiro, mais especificamente em

uma “escola feliz”, “bem plantada, bem centrada junto a uma ‘comunidade’ rural”

(Lüdke, 2006) ou em uma escola eficaz1. Com ele, procurei compreender quais os

sentidos os professores dão àquela escola, qual a imagem que têm de si e de sua

profissão, assim como quais os estilos de ensinar desenvolvem. A leitura que procurei

fazer aqui privilegia a dimensão política da rede escolar, vista sob uma ótica menos da

eficácia e mais de sua eficiência e do sentido do trabalho escolar, a fim de não

acentuar o caráter interno da escola e omitir a sua dimensão social.

Instigada por tal realidade, parti da idéia de Rui Canário de que o ofício docente

é o resultado do cruzamento da história pessoal com o contexto de trabalho,

articulando, assim, as dimensões organizacional e pessoal. Apesar dessa idéia

estrutural, assumi no estudo uma lógica da descoberta, sem, portanto, ter hipótese

anteriormente assumida, ou querer provar alguma teoria pré-estabelecida.

Optei por uma abordagem sistêmica da escola, o que implicou na valorização

também dos atores e de suas subjetividades. Acredito que tanto a pesquisa acadêmica

como, principalmente, a formação docente devam ser encaradas na lógica do

reconhecimento da organização como um local de interação de sujeitos que buscam

1 Os estudos que buscam os fatores escolares que podem equacionar o efeito dos resultados dos alunos estão situados no âmbito da perspectiva das escolas eficazes. Embora tenham crescido na última década, tais estudos ainda são incipientes, e não foram discutidos nesta pesquisa, embora minha motivação maior inicial para sua realização tenha sido o sucesso dos estudantes. Ressalto apenas os seguintes fatores que, de forma integrada, deveriam ser encontrados numa boa escola, segundo Soares (2007), apenas dois dos quais não pareceram presentes na escola-da-dona-Clair (estes são um ensino estruturado com base num projeto político pedagógico sólido e o envolvimento dos pais no aprendizado dos filhos): legitimidade e participação da direção; visão e metas compartilhadas pela comunidade escolar; ambiente de aprendizagem; concentração no processo de ensino/aprendizagem; altas expectativas sobre todos os agentes escolares; reforço positivo; monitoramento e avaliação da escola; direitos e responsabilidades dos alunos; organização voltada para a aprendizagem.

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coletivamente a aprendizagem. Em outras palavras, trata-se da percepção da

ineficácia da formação dos professores com tempos e espaços diferentes da prática

cotidiana e, concomitante, do favorecimento da formação docente centrada no

estabelecimento escolar e na singularidade das histórias dos sujeitos docentes. E, nas

palavras de Perrenoud (1993, p.180), “fazer face à complexidade e à relação exige,

pois, muito mais que representações e esquemas.(...) A formação de professores é,

portanto, necessariamente uma formação global da pessoa.”.

Nessa perspectiva, entende-se que as dimensões do ofício docente podem ser

explicitadas tanto do ponto de vista da formação do professor como de sua atuação

profissional. Concordo com os estudiosos que acreditam que o saber profissional dos

professores é essencialmente produzido nas escolas, a partir de um processo de

socialização que combina processos de conhecimento simbólico com processos de

conhecimentos da experiência.

De todos os aspectos explicitados neste estudo que definem a identidade da

escola-da-dona-Clair, destaco alguns que considero melhores indicadores do bom

funcionamento da escola, “as razões do improvável” (Lahire, 1997), todos ligados

entre si:

Por considerarem a escola como o espaço da sociabilidade e do encontro

(além de acesso à cultura acadêmica), os estudantes gostam e as faltas

são raras, em que pesem os aspectos penosos do trabalho escolar;

Os professores respeitam e/ou valorizam o mundo rural, consideram o

ambiente bom e o público escolar interessado, e esta visão positiva

motiva-os ao trabalho;

O quadro de professores mantém-se estável, apesar da distância da

escola em relação às residências;

A direção gere a escola pública como se ela fosse particular (com

diluição das fronteiras entre a casa e a escola), não economizando

esforços e “jeitinhos”. De fato, a escola está situada em duas dimensões

simultaneamente: no mundo público, enquanto espaço de socialização, e

no mundo privado, enquanto espaço de sociabilidade. Ademais, a

direção transgride o regime burocrático da organização escolar,

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aproximando-o de um modelo anárquico de organização, o que, por sua

vez, libera os professores, que têm autonomia para realizarem seu ofício.

No processo social público, os professores, independentemente da série

lecionada, têm perfil tanto de professores das séries iniciais como do secundário.

Além de gozarem de certa autonomia para exercerem o ofício, desfrutam de um bom

status social, dizem respeitar seus estudantes e procurar dar o máximo de si para o

trabalho. A atribuição revela uma lógica identitária de construção da experiência

docente baseada na relação pessoal e afetiva com os estudantes, o que os alinha a uma

identidade tradicional do antigo professor primário. Por outro lado, outra

característica do processo social público do grupo é a valorização do conhecimento

da disciplina a ser ensinada, o que os aproxima os professores do perfil dos

professores secundários.

Três características identitárias marcam o processo social privado dos docentes

da escola. Apesar da consciência dos problemas profissionais, o grupo desfruta de

alta auto-estima, fez a escolha profissional possível (mais por uma questão de

localização de moradia do que em decorrência do gênero ou classe social) e tem uma

formação na prática iniciada majoritariamente em escolas rurais unidocentes ou

multisseriadas e continuada em experiências múltiplas nas escolas em que trabalham.

Importante destacar que, além de uma visão positiva de seus estudantes, os

professores percebem a escola-da-dona-Clair como “a casa”, “a rua” e o “quintal”,

respectivamente, como uma família, como um local de trabalho e como um espaço de

criação, este situado entre a “casa” e a “rua”.

A análise das posições dos docentes, isto é, dos modos diversos que os

professores percebem seu trabalho e concebem a escola e o seu estudante revela que

também há estilos diferentes de trabalhar. Foram observados pelo menos três

diferentes tipos de estilos de trabalho, que resumo ao modo de um esboço, pois não

tenho a pretensão neste momento de elaborar tipos-ideais de professores, ao modo de

Max Weber, já que sei que uma análise tipológica requer uma interpretação

macrossociológica ou histórica (Schnapper, 2000)2. 2 O que demandaria um novo estudo.

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Para um primeiro grupo de professores, a escola é uma continuação de suas

casas, uma família, e ela tem como missão menos ensinar conteúdos escolares e mais

formar seres humanos moral e religiosamente. Essas professoras tomam seus

estudantes como filhos ou parentes, e, apesar da certa uniformidade da sua “missão”,

criam estratégias didáticas múltiplas e pessoais, desde o uso de computadores com

Internet até um estilo de aula mais tradicional (uso de quadro negro, cópias, exercícios

mimeografados, adoção de livro didático, exigência de silêncio e concentração). As

ações destes docentes estão pautadas nas tradições do ofício, mas também nas

afeições, nos comportamentos de seus alunos, na interação com eles. Com este grupo,

pode-se perceber a personalidade do professor como elemento evidente de seu

trabalho3.

O grupo de professores que concebe os estudantes prioritariamente como

aprendentes e a escola-da-dona-Clair como um espaço de trabalho público atua numa

dinâmica mais ligada a um desempenho de função e a adesão a valores e a papéis

específicos. O mundo público é entendido como “a rua” e a escola, uma instituição

moderna, é o lugar destinado à realização do processo de ensino-aprendizagem das

crianças e adolescentes. Ensinar conteúdos, moralizar e promover a socialização

escolar (distinta da familiar e comunitária) a um coletivo (até certo ponto) impessoal

requer um sistema de práticas codificado (exercícios, repetições, deveres, provas).

Deste modo, esse grupo realiza seu ofício no planejamento, na disciplina e no

exercício da autoridade, assim como no cumprimento de um plano de trabalho.

Por tudo isso e frente às mutações da instituição escolar4, os professores que

atuam “na rua” sentem o fenômeno do mal-estar docente, ou seja, têm uma visão

negativa da profissão e notam uma desvalorização do estatuto social. Também se

encontram no grupo os docentes que percebem que, apesar de serem os melhores que

3 A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.1 Na escola como na “casa”). 4 O fenômeno foi detalhado no capítulo 2.

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têm, os estudantes da escola-da-dona-Clair estão mudados, menos interessados nas

aulas5.

Entretanto, a maior parte dos professores estudados não tem a sensação de uma

crise do ofício, porque de algum modo reconhecem o seu trabalho como sua própria

obra (Dubet, 2002). Com a experiência e os materiais disponíveis, construíram seus

próprios métodos, seus modos pessoais de atuar e de fazer funcionar.

Um último grupo de professoras percebe a escola como o “quintal” e atua ao

modo de um bricoleur, alguém que (re)constrói cotidianamente o seu saber

profissional, com especial disposição em considerar seus estudantes como parceiros a

quem buscam ajudar a construir atitudes autônomas. Elas apresentam uma atitude

interdisciplinar (Fazenda, 1994) e generalista em relação aos conteúdos

disciplinares6.

Tais práticas educativas afirmam a escola como uma instituição de produção e

comunicação de saberes significativos para os estudantes, promovendo a cultura local

e o desenvolvimento comunitário: “comecei a me colocar no lugar dos alunos e dos

pais. Comecei a enxergar de fora da escola. E a colocar aquilo como objetivo dentro

da escola”, disse a professora Bel em seu relato. Ao fazer o estudo dessas práticas,

lembrei das antigas, embora atuais, palavras de Gilberto Freyre (no já citado discurso)

dirigidas às professoras rurais nordestinas em 1957:

Para sermos nós mesmos, os brasileiros, como cultura, como civilização, como conjunto de valores em que os elementos intelectuais, artísticos, éticos não se tornem insignificâncias ao lado dos técnicos, materiais, mecânicos - vários deles simplesmente importados do estrangeiro - temos que procurar valorizar o que é entre nós esforço vindo da terra, da gente telúrica, do trabalho cotidiano em circunstâncias peculiares ao Brasil - trabalho em grande parte rural - das grandes inteligências e das grandes sensibilidades que têm sabido interpretar essa terra e essa gente ou procuram resolver problemas peculiares ao Brasil dentro das condições brasileiras de espírito e de ambiente; dentro da diversidade regional brasileira; e não arbitrariamente, ou favorecendo-se uma região contra as demais; protegendo-se uma atividade - no momento a indústria urbana - contra as outras. (Freyre , 1957, p.47)

5 A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.2 Na escola como na “rua”). 6 A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.3 Na escola como no “quintal”).

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Bel, Tarsila e Iara trabalham por projetos que defendem o que resta do

“ambiente” rural tradicional fluminense. Mais do que somente respeitar a cultura de

seus estudantes, elas valorizam e mobilizam seu trabalho com esse “espírito” rural.

Será que ao trabalharem desta forma não oferecem um contraponto à sociedade

industrial e do mercado, contrariando uma visão determinista de que só há um futuro

possível ?

Seria também pertinente interpretar o conjunto da experiência profissional dos

professores da escola-da-dona-Clair sob a ótica de Dubet (1994), para quem a ação

social não tem unidade e a identidade é fruto de uma construção, de uma experiência7.

E, desta forma, dizer que eles trabalham ora como numa comunidade familiar (dentro

da nomeada “lógica da integração”), ora como numa hierarquia concorrencial (na

“lógica da concorrência”) e, ainda, tomam a escola como o lugar do encontro e da

(re)invenção de diferentes papéis do professor (na perspectiva da subjetivação).

O certo é que deixei de lado não somente várias interpretações, mas também

temas e problemas do ofício docente, como, por exemplo, a influência da

considerável femilização do magistério na desvalorização profissional da categoria.

Ou, ainda, a questão da profissionalização e do profissionalismo docentes. As notas

dos estudantes da escola continuam melhorando e me pergunto se não haveria uma

ligação entre este fato e as mudanças nas percepções dos professores sobre os novos

alunos e/ou a chegada de inovações, como os computadores e a Internet à escola.

Depois desta compreensão e descrição do trabalho desses professores, arrisco

dizer que o ofício docente na escola-da-dona-Clair pode ser definido como o

resultado dos modos de ser e fazer, difusos, entre o âmbito da “casa”, da “rua” e do

“quintal”, este entendido como um espaço entre os outros dois. Admito, desta

maneira, que o ofício docente supõe a coexistência de combinações variáveis destes

três elementos.

7 Para Dubet (1994, p. 107), a experiência é “uma combinação de lógicas de acção, lógicas que ligam o actor a cada uma das dimensões de um sistema.”. A subjetividade do ator e sua refletividade são constituídas pela dinâmica de articulação dessas lógicas diferentes de ação, cada uma ligada a um sistema: o primeiro sistema é o da integração, quando o ator é definido pelos seus vínculos na comunidade; o segundo, da competição, em que o ator é definido por seus interesses num mercado; e o terceiro, o da criatividade humana, no qual o ator passa a um sujeito crítico frente a uma sistemática de produção/dominação, de alienação.

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E lembro que a longa história do ofício docente é povoada por imagens, como a

do socrático-platônico ou a do sofista (Fernandes, 1998), ou a do mestre-sacerdote-

apóstolo, o do trabalhador-militante, o do mestre-profissional (Tedesco e Fanfani,

2004)8. Mas, segundo Lelis et al (2008), na definição do ofício de professor, hoje,

combinações variadas desses elementos podem ser encontradas. No caso desta

pesquisa, foram.

De todos estes modos, por ser um profissional das relações entre pessoas e

saberes, o professor (re)constrói constantemente seu saber profissional e busca criar

sentido para as ações educativas que empreende. Ademais, acredito, como Canário

(1998), que a função do professor também é a de um analista simbólico, que

equaciona e resolve problemas.

Em que pese o fato de que as análises feitas neste trabalho não sejam passíveis

de generalizações, uma vez que se trata de um estudo de caso, desejo que ele possa

1) ajudar a compreender melhor a dinâmica da construção do conhecimento

profissional de professores e de suas identidades sociais;

2) alargar o entendimento sobre o conhecimento educacional brasileiro,

especialmente no meio rural;

3) trazer elementos para novos questionamentos, para a teoria social,

suscetíveis de aprofundar a reflexão sobre o exercício do ofício docente no Brasil.

Afinal, como escreveu Guimarães Rosa, ainda em Grande Sertão: Veredas,

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores

perguntas” (Rosa, 1967, p.312).

8 Como discutido no capítulo 2.

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9 Anexos ANEXO 1

Distribuição das notas de desempenho dos estudantes do Viola, do município e do Brasil

Anos 2005 2007 Brasil UF Município COLËGIO

VIOLA Brasil UF Município COLËGIO

VIOLA Média da

Prova Objetiva

32,151 33,046 39,415 39.68

43,919

44,278

57,510

60.88

Média Total (redação e

prova objetiva)

41,424 41,364 50,720 52.92

48,162

47,975

59,200

60.08

Média da Prova

Objetiva com

correção de participação

31,608 32,553 39,140 39.67

43,333

43,686

57,275

60.41

Média Total (redação e

prova objetiva)

com correção de participação

39,809 39,779 48,975 51.57

47,731

47,547

59,050

59.78

Fonte: INEP (Brasília, 2006, 2007, 2008) Obs: em 2006 a escola não atingiu o mínimo de estudantes para obter conceito no ENEM, o que parece mostrar a realidade de que poucos estudantes conseguem chegar ao final do processo.

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ANEXO 2

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ANEXO 3

Quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização com os itens do questionário dos alunos

Conceito Especificação Operacionalização com o item de questionário (I)

Capital cultural Recursos culturais disponíveis

e/ou incorporados

I.9; I. 10; I.11; I.14; I.15

Capital econômico Indicadores de renda I.5; I.13

Capital social Envolvimento da família com a

escola

I.17

Idade I.2;

Escolaridade dos pais e dos

responsáveis

I.8; I.9

Composição familiar I.6; I.7;

Caracterização

sociodemográfica

Gênero I.3

Trajetória escolar I.1; I.4; I.16; I.18; I.19

Práticas de estudo Dever de casa I.12

I: item do questionário

Quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização com os itens do questionário dos professores

Conceito Especificação Operacionalização com o item de questionário (I)

Recursos culturais disponíveis

e/ou incorporados

I.13; I.14; I.15; I.16; I.17; I.18;

I.19

Capital cultural

Religião I. 4

Capital econômico Indicadores de renda I.5; I.8; I.9; I.10; I.23

Capital social Envolvimento com a escola I. 21

Idade I.2;

Composição familiar I.6; I.7

Gênero I.3

Classificação social I. 11

Caracterização

sociodemográfica

Classificação étnica I.12

Trajetória escolar/profissional I.16; I.20; I.21; I.22

I: item do questionário

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ANEXO 4 Roteiro de entrevista com os professores

Trajetória familiar

Fale um pouco de sua família de origem: onde você nasceu? 1) Onde morava na infância? 2) Que faziam seus pais e avós? 3) Durante a sua infância e juventude, que experiências em sua vida familiar foram importantes para a escolha da profissão? 4) Houve influência de pessoas chaves para essa escolha da profissão? 5) Algum professor na família? 6) E fora da vida familiar, que outras experiências foram importantes? Por quê?

Formação/ trajetória escolar Fale um pouco de sua trajetória escolar: 1) Em que escolas estudou? Como era a escola? 2) Ao longo de sua escolarização básica há fatos, situações e pessoas que 2.1) influenciaram sua escolha profissional ou 2.2) marcaram o seu jeito de ser professor? 3) Normal ou faculdade (Onde e quando se graduou? Pública ou privada?) Como era o curso?O que foi mais positivo e mais negativo? 4) Dessa experiência de formação, o que você acha que mais marcou a sua prática profissional? 5) Pós-graduação? Cursos de formação continuada? (quais? Onde? Periodicidade)

Experiência/ trajetória profissional 1) Disciplinas que leciona 2) Regime de trabalho: Carga horária (aula/ outras atividades) 3) Há quanto tempo leciona? 4) Trabalha em outras escolas? (Quais?) CICLOS DE VIDA: fale um pouco do atual momento de sua carreira. Como se sente? 1) E o início? 2) Considera que em algum momento de sua vida houve mudanças na trajetória profissional? 3) Houve momentos de maior investimento pessoal na carreira? Se sim, quando? 4) Algum momento se pôs em questão, achou monótona a vida cotidiana da sala? Ou sentiu-se desencantado (a) frente a momentos difíceis? INTEGRAÇÃO NA ESCOLA COMO ORGANIZAÇÃO: Por que trabalha no Colégio Viola? Como se deu a sua entrada? 1) Que dificuldades enfrentou? 2) Quanto tempo trabalha aqui? 3) Você conhece/participou da criação do Projeto Político Pedagógico? (se sim, como?) 4) Quais são os aspectos positivos e negativos da escola?

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5) Como é a direção/ coordenação. Ela interfere em seu trabalho? (se sim, como?) Há diferenças desde a sua chegada? 6) Há oportunidades de interação com os demais profissionais da educação (conselho de classe, reuniões)? Como são? Qual a freqüência? MODOS DE ORGANIZAÇÃO E PLANEJAMENTO DO TRABALHO: Conte-me um dia de seu trabalho. 1) Você acha que tem um estilo próprio de ensinar? 2) O que você acha que foi fundamental para seu estilo de docência? 3) Como acontece a comunicação com os alunos (deslocamentos freqüentes, olhar

para todos, intervém imediatamente frente a problemas disciplinares, dá claramente instruções, acompanha as mudanças de atividades): Na comunicação com os alunos, o que você acredita que faz funcionar?

4) Quais são as estratégias para motivar os alunos em relação à aprendizagem de saberes: na transposição didática, aparece a preocupação com a motivação, o nível, a heterogeneidade dos alunos etc?

5) A gestão de classe: como estabelece rotinas, define regras de convívio coletivo, expectativas, como são as formas de trabalho (em grupo, individual etc);

6) Como tem lidado com a novidade da sala de computadores? E com a chegada da Internet à escola?

7) Fale um pouco do impacto do Programa Nova Escola no desenvolvimento do trabalho (expectativas, preocupações e reações)

8) Como avalia? 9) Como é um bom professor? PERSPECTIVAS SOBRE A EDUCAÇÃO E SOBRE A PROFISSÃO DE PROFESSOR 1) Por que educamos em escolas? Qual a finalidade da educação neste início de século? 2) Como se vê com relação ao trabalho que realiza? Como crê que é visto pelos outros (colegas, direção, alunos e pais)? 3) Acha que há diferenças entre os professores de 1ª. À 4ª e de 5ª. À 8ª.? Quais são? 4) Quais são os aspectos positivos do trabalho docente? E os negativos? 5) Dificuldades e desafios: quais são e como você tem tentado resolvê-los?

6) Como concilia a vida profissional com a profissão? Um interfere na outra? Leva trabalhos para casa?

7) Sente-se sobrecarregado de trabalho? 8) O que você acha que estará fazendo daqui a 10 anos? 9) Quais são os teus sonhos? 10) Se não fosse professor(a), qual seria a sua profissão? RELAÇÃO COM OS ALUNOS E REPRESENTAÇÕES SOBRE OS ALUNOS

1) Como vê o seu aluno? (do ponto de vista econômico, social, cultural, do desempenho na aprendizagem etc)

2) Quais relações estabelecem com eles? (satisfações, dificuldades e expectativas).

3) Sente alguma diferença na forma que se relaciona com eles, com o passar do tempo? (ciclo de vida)

4) Que significa formar/instruir gente? Quais são 5.1) as exigências e 5.2) as características inerentes a um trabalho que tem esse objetivo e esse “objeto”?

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ANEXO 5

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ANEXO 6 Histórias: quinze percursos de formação, quinze trajetórias profissionais

A primeira história a ser narrada é a de Sofia, que tem dupla identidade na

pesquisa, pois, além de sujeito, atuou como minha colaboradora1, “abrindo” as portas

da escola para a pesquisa, dando-me dicas e servindo de ponte entre mim e os sujeitos

estudados. Depois desta narrativa, a ordem de apresentação das histórias segue a

mesma da realização das entrevistas.

Sofia: a doce, amorosa e subversiva mestra-amiga

Sofia2 nasceu no centro urbano da região de Vista Alegre, em 1955, e é

professora há dezenove anos, dos quais 17 completados na escola-da-dona-Clair.

Mora sozinha (é viúva há quatro anos e sua filha única realiza estudos superiores em

Niterói) na fazenda de café que pertenceu aos admirados avós maternos, e onde o avô

dividia seu tempo entre a política e o ofício de “tratador”, nome dado ao paramédico

do lugar. Morou com eles até os 9 anos de idade, porque a mãe, professora casada

com um comerciante da cidade e com muitos filhos, foi deixando-a na fazenda

“passar dias, que viraram anos”.

Sofia estudou no colégio Viola e teve dona Clair, sua tia, como primeira

professora. Destaca como foi bem alfabetizada, pois, ao voltar na segunda série para a

cidade, era a única da turma que sabia ler, escrever e fazer conta com facilidade.

Daquela época, lembra do hábito de rezarem o Pai Nosso, “que é universal”, antes de

começar as aulas, atividade que faz com seus alunos atualmente.

Sofia tem lembranças boas de suas professoras primárias que diz ter amado e a

1 Tínhamos um contato anterior quando ela era tesoureira da Associação de Moradores, Produtores Rurais e Artesãos de Vista Alegre. Esta Associação participava de um trabalho comunitário em parceria com a Organização Não Governamental da qual eu fui coordenadora geral de 1999 até 2005. 2 Encontrei-a para a entrevista me esperando na varanda da enorme casa de fazenda onde mora atualmente sozinha. Impressionei-me com o silêncio do lugar cujo adjetivo anotado no caderno de anotações foi simplesmente “total”. Éramos nós e os bichos. Sofia comenta que tem um casal de preás que mora no teto da antiga casa, seus “inquilinos”, que apareceram algumas vezes durante nossa conversa.

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quem credita uma grande influência no exercício do ofício, porque eram pacientes,

afetuosas e, mais importante, porque uma delas escolheu sua turma para trabalhar por

causa de sua presença nela, uma aluna “brilhante”. Nomeia Silvia, com quem

aprendeu a encapar os cadernos dos alunos com papel de revistas velhas. Há apenas

uma lembrança negativa de uma professora que a beliscou injustamente e a humilhou,

e que usa como o “antiexemplo”. Sofia diz que compensava a timidez com o

empenho nos estudos, que ocuparam grande tempo de sua vida, pois, depois de parte

do curso primário no Viola, foi para a cidade, onde fez o antigo segundo grau (em

escolas particulares) e, então, faculdade de Psicologia na Universidade Federal

Fluminense, seguida de uma especialização em Psicanálise e uma capacitação em

tecnologia educacional.

Ao terminar a faculdade e voltar para a terra natal, em 1982, a psicóloga Sofia

deparou-se com a falta de emprego, e resolveu fazer o então curso Normal e virar

professora. Começou como formadora de professores em um colégio particular,

dando aulas de psicologia, antes de fazer o concurso público e ir trabalhar no Viola.

Ela atualmente trabalha como professora primária, mas já deu aulas de todas as

matérias, menos religião (“Mas eu acho que daria conta!”, disse ela entre risos), para

todas as séries, pois sempre que a “tia Clair” tinha problemas de falta de professor

apelava para a sobrinha: “era a ‘professora tapa buraco’. Faltava professor, bota a

Sofia!”.

Além disso, Sofia agora atende em consultório particular e faz um trabalho de

“melhoria da auto-estima” com um grupo de pessoas carentes da terceira idade. Sobre

essa clara e assumida dupla identidade profissional, ela diz que não saberia dizer qual

a preferida, porque todas a gratificam muito, pois elas “formam pessoas” para

transformar o mundo3.

A maioria dos estudantes do Viola é considerada como brilhante (alguns dos

quais “ficariam muito bem numa universidade”), muito interessada, tem orgulho da

escola, valoriza, junto com as famílias, os diplomas recebidos, pois sabe que eles

3 Em suas palavras:

Aí é que a Educação se encontra com a Psicanálise, pois ambas têm como ferramenta primordial provocar o questionamento que propicia a mudança. Tanto o aluno quanto o analisando são convidados à reflexão sob uma nova forma de olhar o mundo e a si mesmo, numa relação sempre dialética com o conhecimento.

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representam uma melhoria na qualidade de suas vidas, mesmo que continuem na

lavoura. Sobre a atual turma, de alunos repetentes, e, portanto, com problemas de

aprendizagem, ela diz: “quando eu fui pegá-los nas suas turmas, eles pareciam que

estavam indo para a forca. Falavam na hora do recreio: “estou aqui porque sou burro

e não aprendo”. Depois falaram: “tia, explica para ela, porque ela disse que estamos

com você porque somos burros”. Eu disse; “Não! Vocês estão comigo porque foram

escolhidos!” [risos]. Agora eles falam: ‘eu sou escolhido!’”.

Essa capacidade de subverter a ordem foi citada por ela como uma das

exigências para o exercício do ofício docente na atualidade, porque “a gente quer que

o indivíduo tenha mecanismos de dar um sentido pessoal à sua vida, enquanto a

sociedade está pedindo para a gente formar massa produtiva, que produz, consome e

não questiona. A gente está querendo o indivíduo, o sujeito, que ele tenha

instrumentos dentro dele para dizer não a essa loucura do mundo”. Outra exigência

do trabalho docente é acreditar. Acreditar que se pode realmente ajudar o outro.

Sofia rejeita a forma “tia” comumente dada pelos alunos mais novos, afirmando

que tem muitos sobrinhos, os filhos dos irmãos, mas que ali é professora, como pede

para ser chamada. Essa distinção é curiosa, porque a professora considera o colégio

Viola como uma família, em que funcionários e alunos, têm um parentesco real ou

então intimidade pelo longo tempo de conhecimento, o que propicia muito respeito e

afetividade. Ela exalta o fato de a escola não ter casos de agressão e, embora “uma

vez ou outra tenha alguma confusão, de uma maneira geral nossas crianças brincam e

não têm problemas”.

A professora tem interesses pessoais variados: gosta de atividades como

costurar, ver filmes na TV, viajar, ler livros (principalmente científicos,de Psicologia

e Pedagogia) e escrever. Em 2007, lançou o primeiro de sua autoria sobre a

intimidade de algumas mulheres de sua família, na Bienal do Livro, no Rio de

Janeiro, realizando, assim, um dos três sonhos que disse ter na vida. Os outros dois

são ter um neto e encontrar um novo amor.

Como nos anos de 1980 o colégio Viola estava vivendo o seu momento de

expansão de oferta de vagas, havia uma demanda de professores de todas as áreas e a

“professora tapa-buraco” foi desviada de função, passando a dar aulas de várias

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matérias de quinta-série em diante, o que diz ter feito com grande prazer. Havia,

também, nesta mudança, algumas vantagens externas, porque ela passou a trabalhar

apenas três dias na semana, o que era um duplo alívio para a mãe de uma criança

pequena e para quem tinha que vencer 23 km de estrada de chão empoeirada por dia,

pois na época, morava na cidade.

Em 2007, Sofia fez “uma volta na carreira”, já que recomeçou a trabalhar com

uma série inicial, dando aulas diariamente, o que é mais fácil porque ela agora mora

perto da escola. Ela reconhece duas diferenças importantes nas duas experiências: a

primeira é que com o professor das séries iniciais o “relacionamento aluno-professor

é mais estreito, por conta de estar no dia a dia”; depois, as crianças são mais afetivas e

sinceras que os adolescentes, o que facilita muito o trabalho segundo ela. Pergunto

sobre o conteúdo disciplinar e a forma de transmiti-lo, mas ela responde que não é

isto que determina mudanças no jeito de trabalhar.

A “volta na carreira” se deveu a um fato de ordem externa: depois de terminar

um curso de capacitação em Orientação Tecnológica (OT), o que a permitiu trabalhar

com os estudantes na sala de computadores e fazer muitos planos para a inclusão

digital da comunidade, a Secretaria Estadual de Educação extinguiu o cargo de

orientador tecnológico em março, uma semana depois de o governo federal ter

instalado a internet na escola (como relatei no capítulo 4).

Peço-lhe que me conte um dia típico de trabalho. Depois de rezar, ela começa a

aula escrevendo no quadro o cabeçalho, com o nome do colégio, espaço para o nome

do aluno e da professora, o local e o dia, mesmo “sem saber se isto está certo de

acordo com Emília Ferreiro”, mas que a tia Clair fazia e ela acha que deu certo para

ela e porque os alunos se situam. Em seguida, ela pede para ver e corrige o dever de

casa, coloca uma música (geralmente clássica)4, faz uma revisão dos conteúdos dados

e inicia um novo, numa proposta escrita, a partir da qual ela passa o dever de casa. A

partir daí, ela lê uma história para eles e inicia um segundo momento em que diz

trabalhar a expressão de cada um, através da arte (desenho, pintura, recorte, colagem,

4 Sofia considera a música, ouvida e cantada (individual e coletivamente), como uma “forma muito interessante” de sensibilizar, além das cores dos desenhos da versão de cada aluno. Ela diz que eles “ficam doidos” para chegar a “hora da expressão”.

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dobradura, massinha, teatro de fantoches etc...). Ao final da aula, quando dá tempo,

oferece um momento de recreação, seguido de uma música de relaxamento.

A avaliação do trabalho acontece no dia a dia, com alguns pontos reservados ao

comportamento5, assiduidade, compromisso com os trabalhos. Mas para medir o

conhecimento aplica mesmo a tradicional prova, “sempre buscando valorizar o que o

aluno faz”.

Por último, Sofia revela que depois de dar aula de todas as matérias para todos

os grupos, a sua forma de se relacionar com os alunos mudou e que agora ela está

mais afetuosa: “estou aprendendo a ser mais, a me dar mais nesse relacionamento de

corpo-a-corpo”. Porque a sala de aula é um teatro e o professor tem sempre que

encarnar um personagem, do autoritário ao afetuoso. Para a pesquisa, ela encarnou a

personagem “Sofia”, que definiu como “(...) muito de minha mãe e outro tanto de

mim mesma. É doce, mas sabe colocar limites. É criativa, (...) tem sempre uma

atitude ecológica, pois não tolera desperdício. Ama seus alunos, se desdobra para

fazer o melhor (...). Tem preocupação com o social, sem cair na cilada do

assistencialismo ou demagogia. Respeita seus alunos (...). Enfim, reconhece que para

educar é preciso amor, fé e confiança”.

Tarsila: a pintora guerreira e inquieta

Tarsila6 tem três filhos, uma adolescente de 17 anos, uma menina de 12, e um

bebê de um ano, que amamentou uma vez durante nossa longa conversa, de duas

horas e meia, período em que Tarsila se emocionou, chorou e riu várias vezes. Nasceu

em Vista Alegre há 37 anos, é neta de portugueses e alemães, sendo que seus avós

maternos tinham grande poder aquisitivo, pois o avô era escrivão de cartório, e o

casamento da mãe, servente da escola-da-dona-Clair, com um caminhoneiro parece

5 Em relação ao comportamento, Sofia costuma usar a seguinte técnica: todos os estudantes começam a semana com cinco estrelas que vão perdendo caso desrespeitem as regras combinadas, e, na sexta-feira, quem tiver mais estrelas tem direito a escolher primeiro as prendas (como livros, motos, carrinhos, vaquinhas, cavalinhos, boneco do Chico Bento). 6 O nome Tarsila foi escolhido junto com ela, que tem, como atividade predileta, nas horas vagas, pintar a óleo, e adoração pela pintora modernista. Se não fosse professora, ela gostaria de ter sido uma pintora.

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ter ocasionado um declínio no status econômico da família. Esta situação não foi

colocada explicitamente como ela fez em relação a sua própria realidade financeira,

pois se declara de classe média baixa, conta que morou na casa da sogra até sete anos

atrás e que o curso de pintura teve que ser interrompido pela chegada dos filhos e pela

obra da construção da casa nova, onde ainda “falta um monte de coisa que eu não

consegui comprar”, em suas palavras.

Tarsila é professora há 17 anos, 16 dos quais trabalha nas séries iniciais no

colégio Viola, onde se formou e estudou por toda a sua vida, só se ausentando

durante a quinta-série, porque o segundo segmento do ensino fundamental só foi

implantado no ano seguinte. Foi aluna da Lúcia, aquela professora que, durante a

expansão do colégio, assumiu todas as disciplinas da quinta-série, e que Tarsila

considera “uma guerreira”, uma professora muito exigente, com quem aprendeu

muito7.

O colégio era “o quintal de minha casa. Eu conheço cada palmo”, razão

primeira citada quando perguntei a ela sobre os aspectos positivos da escola-da-dona-

Clair, como ela chama o colégio, quando não usa o termo “nossa escola”. Ela se

preocupa com as torneiras vazando, com o desperdício dos alimentos pelas

merendeiras, conhece e participou de cada obra realizada na escola, tem fotos da filha

pequena brincando na água com que ela e as serventes lavavam a escola depois de

uma obra de expansão, nos anos de 1980. E completa: “É por isso que é bom. Aquela

escola é como se fosse minha também”. Diz que mesmo que tivesse dinheiro não

colocaria seus filhos em escolas particulares porque “é a nossa escola e acho que a

gente tem que lutar por ela”. 8

7 Também Tarsila é uma “guerreira”, pois concilia a maternidade com o trabalho escolar e atualmente não conta com a ajuda de uma empregada doméstica todo o dia. Logo, tem que se virar (e/ou “deixar rolar”) para cuidar de um bebê, limpar a casa e cozinhar para as filhas. Costuma trazer trabalho da escola para casa e, às vezes, tem que deixar para fazê-lo no fim de semana. Nas suas palavras:

Eu me sinto sobrecarregada e muito. Tem dia que eu vou deitar e parece que... parece que só minha cabeça está funcionando, que o corpo não obedece. Você já sentiu isso? Aí você deita e você não consegue dormir. O braço dói, a coxa, a carne parece que está doendo. Já aconteceu de deitar e não conseguir dormir, ter que me levantar e tomar um remédio para dor. E de acordar de madrugada e deixar tudo ajeitado antes de sair para o trabalho.

8 E Tarsila tem consciência da qualidade de algumas escolas particulares do município, tanto que pede os cadernos dos filhos da secretária emprestados para conferir se os conteúdos trabalhados por ela na escola-da-dona-Clair estão a contento.

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Além do forte afeto com a escola, Tarsila comenta que sempre se relacionou

muito bem com os professores, mas que tinha uma admiração especialíssima por uma

professora de História9, “a professora que eu tinha vontade de ser”, a “professora

padrão”, porque ensinava bem os conteúdos, mas sabia escutar as jovens (“a gente era

mocinha e muita coisa a gente não podia conversar em casa. Aí, no outro dia, ela ia às

forras” com o conteúdo). Tarsila se recorda do cheiro fresco do seu perfume, do

sorriso, do seu jeito de chegar, de sentar, de como relevava as bobeiras das

adolescentes; enfim, de como era alguém em que se podia confiar. E completa,

admirada, a lembrança da professora com quem percebe, durante a entrevista, ter

aprendido um pouco o seu ofício, afirmando que ela “tratava cada aluno como se fosse

único. E eu faço isso com meus alunos. Cada aluno deve ser tratado como único. Não

ser tratado como boi. Boi tem um monte lá”.

Mas essa característica a professora aprendeu também com sua tia Pilar10, que

costumava acompanhar, a passeio, ainda quando menina, ao trabalho docente em uma

escola multisseriada longínqua, e sobre quem declara que “costumava se abaixar pra

ouvir a criança que estava falando com ela”, mostrando sua importância, o que

“levanta a auto-estima da criança”. Hoje, Tarsila senta na carteira de seus alunos para

juntos fazerem as leituras. Sobre aquele tempo de menina, ela comenta que adorava o

passeio, que “tinha fissura por aquilo”, pois “parecia que já sabia fazer”. Recorda que

gostava do convívio com as crianças cujos cadernos tinham figurinhas11.

Sobre o percurso de estudante, Tarsila se recorda de mais um professor, o

Roberto, que “não deixava a peteca cair” e que também tinha uma relação muito

pessoal com seus alunos: um “companheiro, que não era de dar aula e ir embora”12.

9 Entrevistei a agora ex-professora da escola, a mesma que aparece referida no capítulo “A escola-da-dona-Clair”. 10 A professora é sujeito desta pesquisa. 11 Interessante observar que, quando cheguei à escola e conheci Tarsila, ela pediu-me para arrumar-lhe figurinhas diferentes para ela colar nos cadernos e trabalhar a escrita de palavras diversas com seus estudantes. 12 Este professor levou seus alunos para conhecerem o Rio de Janeiro e o mar, visitar seu apartamento na Avenida Atlântica e seus filhos, que matriculou anos depois na escola. Era presente em vários momentos da comunidade, chegando a comparecer ao enterro do pai de Tarsila. Devo lembrar que foi

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Apesar de acreditar que sua formação acadêmica tenha tido muitas limitações,

pois só fez o curso Normal (ela gostaria de ter feito faculdade de Biologia, mas era

longe), Tarsila reconhece que aproveitou ao máximo, até porque as turmas naquela

época eram bem menores e ela foi colega de turma e de profissão, durante toda a sua

vida, de sua irmã Iara, outra professora participante desta pesquisa. Associado a isso,

nos primeiros anos de formada, ela fez todos os curso de alfabetização que

apareceram na região. Durante 16 anos, Tarsila trabalhou com alfabetização, turma

que “ninguém gosta, ninguém quer, porque é muito difícil”. No primeiro ano, antes

de fazer o concurso para professora do estado e escolher a escola-da-dona-Clair,

lecionou como professora contratada da prefeitura, em uma escola rural

multisseriada, período “dramático” em que teve “que se virar em duas”, professora da

classe de alfabetização e da primeira série, em uma escola onde só tinha giz e papel.

É com lágrimas nos olhos que conta do sofrimento dos cinco anos iniciais na

escola-da-dona-Clair, que ela credita ao choque entre a formação tradicional e a

novidade da introdução do construtivismo na prática pedagógica. Mas que traz

implícita uma mudança radical de identidade, uma vez que a até então estudante

Tarsila voltava àquele espaço agora como professora. E tinha que (se a) provar, mais

uma vez. Era “abraçar a causa, enfrentar o problema e correr atrás ou desistir”.

Ela estudou muito, procurou todas as pessoas de fora que poderiam ajudar, e

hoje ela diz que se sente “mais segura e mais questionadora”, procurando aprofundar

mais nas questões cotidianas13.

Por outro lado, a professora procura manter uma rotina diária, que começa com

uma reza do Pai Nosso, da Ave Maria ou de improviso (um pedido para que tenham

graças a ele que o professor Darcy Ribeiro, então Secretário Estadual de Educação, concedeu autorização para o funcionamento do segundo grau no colégio. 13 Entretanto, percebo que ainda há uma certa mágoa em relação à dona Clair, referida como alguém que “não evoluiu” e que discrimina sobremaneira alguns professores, dentre as quais ela e sua irmã Iara. O maior ressentimento aparece em relação ao fato de que Tarsila perdeu, no ano passado, a gratificação que recebia do Programa Nova Escola porque engravidou do último filho e tirou licença maternidade, como relato no capítulo 4. Isso aconteceu e ela não foi avisada pela direção de que corria este risco, o que transtornou a sua vida financeira e causou um efeito negativo no seu ofício, pois ela reconhece que “não conseguia nem olhar para seus alunos” e que realizou um péssimo trabalho, fator que mudou a sua carreira, pois a fez pedir para não mais trabalhar com a alfabetização no ano corrente e que foi aceito a custo pela direção.

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uma boa aula). Depois, ela escreve a data no quadro e faz a leitura da história do dia,

selecionada no início do ano e compilada numa lista a que todos têm acesso. A seguir,

apresenta a proposta do planejamento curricular do dia, e compartilha com eles a

responsabilidade de cumpri-lo, depois da qual eles podem ir lá fora tomar sol, correr

no pátio, brincar.

Seus alunos, ela considera pessoas humildes, que, “por uma questão cultural,

costumam baixar a cabeça”. Por isso, ela se preocupa em formar pessoas atuantes na

sociedade, que saibam respeitar os direitos dos outros, mas que também saibam

reivindicar os seus. Para isso, acredita que todos os estudantes devam ser valorizados

e respeitados em suas particularidades, porque todos são diferentes. Contudo, todos

sabem alguma coisa, desde o filho do lavrador até o filho do médico e esses

conhecimentos têm que estar a serviço da turma. Ela acredita que os estudantes a

consideram uma professora exigente, pois ela não deixa de cobrar os trabalhos

acadêmicos.

Quando lhe perguntei como ela acha que exerce seu ofício, ela pediu

autorização para tecer um elogio a sua própria pessoa e respondeu: “eu me inquieto

com as coisas. Questiono e corro atrás, estudo, procuro e tento acertar. Eu não me

acomodei de fazer só o que eu sabia. Eu quero fazer mais, para mim e para quem está

passando por mim”.

Mas reconhece que essa qualidade de questionadora é muitas vezes percebida

como uma “chatice”, especialmente pela direção, porque ela questiona e critica, por

exemplo, a forma de avaliação imposta pelo Estado, que instituiu o item Não

adquiriu: “Como a criança não adquiriu uma coisa? Ou não foi dada, ou ainda está

adquirindo, é o mínimo. (...) O que você não aprendeu na sua vida? Não existe uma

coisa que você não tenha aprendido. Você não desenha tão bem. Eu pinto melhor que

você. (...). É uma questão de oportunidade, de habilidade”.

Ainda no que diz respeito à avaliação das crianças, a professora aproveita o erro

e dá importância ao processo de aprendizagem, mais do que ao resultado. Assim:

“Conheço a letra deles. E quando a criança erra, eu analiso o erro. Qual foi o caminho

que essa criança percorreu, para botar 8 mais 3 igual a 15? Porque, às vezes, você

percorrendo o erro, você acha a saída. Aí, ‘vamos fazer de novo, para você perceber o

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que fez de errado?’ (...) Eu sou muito cri-cri com isso, sabe? Eu gosto do erro, eu

acho que o erro abre portas. Você não acha que o erro abre portas? Abre portas”.

Para terminar, Tarsila fala de seus sonhos: quer continuar trabalhando como

professora, mas também fazer uma faculdade e pintar quadros a óleo com o tema

principal marinas, uma paixão. Para quem mora na região serrana, ela vai ter que “se

inquietar” muito.

Carmela: a professora-mãezona, pau-para-toda-obra

Carmela é uma mulher de 42 anos, bem apessoada e cuidada: está sempre de

unhas pintadas, longo cabelo penteado, salto alto e roupas elegantes. Nasceu em Vista

Alegre e atualmente mora na parte mais alta do loteamento próximo à escola, em uma

casa ampla e tão arrumada como sua dona14. Ela tinha um irmão que se suicidou, é

filha de uma costureira e um peão, ambos analfabetos. Morou no município vizinho

com a mãe até os 21 anos quando voltou para Vista Alegre, já separada do primeiro

marido, e grávida do primeiro filho. Desde os 15 anos trabalhava fora para se

sustentar, primeiro como office girl, depois como secretária de um dentista, antes de

ser professora

A professora entende que “desde muito cedo aprendeu a se virar com pouca

coisa”, como no tempo da escola Normal, única vez na vida em que estudou em uma

escola particular, freqüentada à noite. Ela diz que “faltava tempo e dinheiro” e a

futura professora preparou uma aula-prova sobre sinônimos e antônimos no intervalo

de recepção de um cliente e outro, com recortes de revista. Tirou nota 10 na aula e

ouviu o seguinte comentário do professor-formador: “a sua aula foi uma das melhores

que tive. Professor ganha pouco. Você está fazendo o trabalho que vai fazer aí fora.”.

Embora ainda trabalhe muito, a vida melhorou. Carmela é casada com um

comerciante de gado e tem duas matrículas como professora, uma no estado e outra

no município, ambas conquistadas por concursos prestados apenas alguns meses

depois de formada no Curso Normal, e recém mãe, aos 22 anos. Além do Normal, fez

dois cursos adicionais que a habilitavam a dar aulas até a sexta-série de ciências, mas 14 Realizamos a entrevista na sala de estar e, embora um de seus três filhos (19, 12 e 10 anos) estivesse em casa, não fomos incomodadas por ele.

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ela nunca quis sair das séries iniciais. Atualmente, cursa o quinto período de

Pedagogia em uma faculdade particular via satélite de Palmas, no Tocantins.

Dos professores antigos, Carmela se recorda de Carmela, a primeira, por quem

“tinha adoração”: ela era “muito humana, muito mãezona”, o “jeito Carmela” de ser

professora. Ela não vê ou trata seus alunos como crianças quaisquer, mas, sim como

se fossem da família. Por isso, “dizem que eu passo muito a mão (...). Mas (...) se eu

tiver que dar uma bronca eu dou, se passar na rua e estiver aprontando eu dou uma

bronca (não interessa que não é meu filho, não é meu parente)”.

Carmela “sempre quis ser professora”. Sua mãe brincava dizendo os antigos

falavam que de acordo com o que se faz com seu umbigo vem a sua profissão e que

Carmela tinha o umbigo enterrado com uma letra A: “desde que eu me entendo por

gente, quando falavam ‘o que você vai ser quando crescer?’, eu respondia:

‘professora’”.

A atividade fazia parte de suas brincadeiras infantis, e no quintal de sua casa

funcionava a “escolinha da professora Carmela”: “Não tinha muito material e a gente

escrevia no chão, na areia.(...). Caderno e lápis nunca tiveram sobrando, (...). Eu era a

professora, quem ensinava...”

Quando assumiu uma turma de estudantes de verdade, aos 23 anos, Carmela

não teve problema algum. Era uma turma multisseriada de segunda à quarta-série,

“muito boa mesmo, nota 10”, na qual havia muita colaboração: as meninas da quarta

ajudavam-na com os estudantes menores, muito interessados, e todos aprendiam e

ensinavam juntos. Desta experiência, além da satisfação, a constatação de que no

começo se “acha que vai fazer tudo o que planejou (...). E depois, esbarra de lá e de

cá, e começa a se podar aquilo que sonhou e procurar novos sonhos. Porque a gente

tem que sonhar com outras coisas”.

Mas se o início de carreira foi satisfatório, o mesmo não se pode dizer quanto às

condições de transporte para chegar às escolas, situadas muito distantes uma das

outras e, na maioria dos percursos, sem meio de condução além dos próprios pés15.

15 Carmela conta que andava das 5h30 da manhã até às 7h15, de casa até a primeira escola, voltava e pegava um ônibus até metade do caminho para a outra, e seguia a pé. E foi assim que emagreceu oito quilos em um mês. E que ela teve que mentir ao médico do Estado que fazia o exame de admissão, ao ser perguntada se “ela tinha um helicóptero para trabalhar”, ao que ela mentiu que tinha carro.

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Por ser mais perto de casa, há quatorze anos atrás, Carmela escolheu trabalhar na

escola-da-dona-Clair, com quem tem uma postura conciliadora. Entretanto, conta que

nos dois primeiros anos teve problemas de ordem pessoal com ela, e virou “joguete

na escola: escolhia uma turma, mas se faltasse professor eu era tirada e jogada em

outra. Eu era o “tapa-buraco” na escola”. Até que teve um confronto direto com a

diretora, reclamou de uma nova mudança e, desde então, tudo mudou, e ela passou a

se sentir mais segura, acreditando, hoje, que a direção da escola confia em seu

trabalho.

Outra experiência importante foi com uma comunidade da periferia do centro

urbano onde trabalha, pois as crianças e suas famílias eram muito pobres, com

problemas de saúde e higiene, a escola era localizada na parte baixa de um morro e

considerada o quintal das casas das crianças; portanto, tudo que acontecia na escola

era acompanhado pelas mães, que gritavam de casa mesmo. Para Carmela, o maior

desafio foi conquistar aquelas mães e a comunidade, ao fazer com que a escola

ficasse mais agradável para os alunos, mas também para os pais. Então, conseguiu

introduzir um curso de alfabetização para os pais à noite, no qual passou também a

dar aulas.

Mas essa foi a única experiência como alfabetizadora, pois Carmela só escolhe

as turmas a partir da segunda série, porque “não tem paciência”. A imagem

profissional que Carmela tem de si mesma é, além de “mãe”, da “amiga” (como

acredita que os pais a vêem) e de pau-para-toda-obra. Ela chega a verbalizar que não

acha “que os alunos a vêem como professora”. E sobre a função social da profissão,

acredita que é “tornar o aluno um ser pensante, questionador, embora a maioria não

seja”, pois lembra que “têm muitas crianças que engolem aquilo que o professor deu,

digere, aquilo vai embora e acabou”.

Para formar um “ser pensante”, Carmela crê que o professor deve ter respeito

ao seu aluno, domínio do que faz, precisa estudar para dar a aula, sem esquecer de

fazer um planejamento, mas já estando preparado para o “extra” que pode acontecer.

E que “sempre acontece”, porque ela busca trabalhar de acordo com o interesse de

seu aluno: “não adianta querer impor se não é aquilo que eles estão querendo hoje,

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pois sem o interesse do aluno nada funciona”.

A professora, que afirma que nunca “chega de cara feia na escola”, conta de

uma atividade que não falta na sua sala: a hora da leitura da história, que acontece

logo à chegada, com o objetivo de relaxar e, ao mesmo, tempo, concentrar os alunos

para o trabalho escolar. Carmela diz usar várias estratégias durante essa leitura, como

alterar a voz, andar pela sala, contar e mostrar, apagar a luz, fechar a porta, como

forma de manter a atenção das crianças.

Carmela acha que daqui a dez anos estará “em sala de aula”, embora tenha

problemas nas cordas vocais e varizes. Pensa que a profissão a ajuda a “entender um

pouco mais das outras pessoas e fazer diferença nas suas vidas”. Entretanto, embora

afirme que seu maior sonho é ter uma boa aposentadoria, quando lhe perguntei o que

ela considerava como fundamental para ter esse modo de trabalhar, ela respondeu que

apesar da insatisfação com seu salário ela se sente realizada no que faz: “Eu não me

vejo fora da escola”, diz ela.

Iara: a cientista curiosa

Iara mora em Vista Alegre, onde nasceu em 197116. Traz muitas lembranças de

seus avós maternos, ainda vivos. O avô, atualmente com 90 anos, é português

“legítimo” que imigrou para trabalhar na lavoura de café e que mais tarde virou o

escrivão do lugar. Moravam numa casa grande, uma das poucas com telefone, na qual

albergavam as professoras de fora que chegavam para dar aula na escola. Iara se

recorda que foi através dessas professoras que teve os primeiros contatos com livros

infantis. Uma delas, chamada Iara, de longos e admirados cabelos negros, trazia,

ainda, uma bolsa de palha “maravilhosa”, cheia de livros de histórias e de ciências.

Foi quem lhe deu o primeiro que teve na vida, e que guarda até hoje, Os Irmãos

Bichanos, onde ela escreveu pela primeira vez o seu nome. Mas os livros de ciências

eram os mais admirados, pois ela sempre teve curiosidade sobre o corpo humano, as

16 Iara mora perto da escola-da-dona-Clair, numa ampla casa com muitas plantas e um grande lago à frente, situada dentro do mesmo sítio em que reside sua mãe e sua irmã Tarsila. Nossa entrevista foi realizada na sala de jantar e seu filho de 6 anos esteve por perto, tomando banho, brincando de carrinho, jantando e depois dormindo ao colo da mãe, cansado, pois nossa conversa aconteceu das 18h às 2030h.

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doenças, como se proteger e evitá-las, o cuidado com a natureza.

A atual professora de ciências das quintas e sextas séries lembra que quando

entrou para estudar na escola-da-dona-Clair, aos cinco anos e meio de idade, já sabia

escrever o nome de todos da família, e que, no início, achou a escola “um pouco

chata”, porque não tinha desafios. Mas fala emocionada da primeira professora,

Auxiliadora, que contava com a ajuda da nova estudante para ajudar os outros alunos

na aprendizagem. Iara afirma que até hoje gosta de desafios e novidades, e que “Se

chegar num lugar e perceber que já sei sobre aquilo, (...)eu fico para baixo. Eu gosto

de crescer. Eu não assisto à novela repetida, não assisto a filme duas vezes, eu não

leio duas vezes o mesmo livro. Jamais. Eu não me ocupo com o que eu já sei”.

Iara continuou adiantada no percurso escolar, pois aos 8 anos e meio tinha

terminado as séries iniciais do ensino fundamental e teve que ir fazer a quinta série no

centro urbano mais perto, no ano em que o colégio Viola ainda não tinha a série, que

foi implantada no seguinte. Sobre a escola-da-dona-Clair naquela época, onde

estudou toda a vida, ela narra com alegria como brincava muito e de tudo, e como a

escola era interessante: “Não sei como a gente conseguiu aprender, porque lembro

que a gente saía da escola, (...) ia à casa de minha tia, com minha prima, fazia suco,

cozinhávamos ovo, comíamos e voltávamos para a escola [risos]. (...) íamos na casa

da outra ver a casinha de boneca dela e voltar (...). A escola era o point: era na escola

que eu encontrava as pessoas, na escola que a gente via de quem a gente gostava na

época (que achava que namorava, paquerava). (...) Era muito bom, muito

bom![risos]”.

Iara se lembra de dois professores: Roberto e Jô. Aquele, de matemática,

porque a desafiava, acreditava no potencial dos alunos e dominava os assuntos que

ensinava, o que fazia Iara sentir segurança. Esta porque era “apaixonada e profunda

conhecedora de História”, fazendo com que os estudantes também gostassem do

conteúdo. Como se não bastasse, ela sentia que o professor gostava muito de seus

alunos. É assim que Iara diz se sentir na escola hoje, pois afirma, várias vezes durante

sua narrativa, amar seus alunos. Por isso, é muito exigente com o desempenho

acadêmico, acompanhando-os sempre: “se não gostasse, deixava a vaca ir para o

brejo”.

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Como o antigo professor, Iara costuma dialogar com os trabalhos de seus

estudantes, deixando bilhetinhos, uma forma de deixarem explícitos seus critérios de

avaliação e ajudar o estudante a se conscientizar de seu desempenho. A atitude é

conhecida em toda a escola, pois ela se lembra que uma colega ironizou recentemente

durante um Conselho de Classe que se o aluno “ficou com azul” com ela significa que

vai passar com o resto: “Porque eu realmente sou exigente, e o aluno só vai tirar azul

comigo se ele mostrou conhecimento e se expressou bem”.

Ainda sobre os dois ex-professores, Iara diz ter aprendido um modo essencial

de exercer o ofício, que é buscar se dirigir ao aluno considerando cada um deles como

um indivíduo mesmo.

Se com dezessete anos de profissão ela concebe como “algo natural ter domínio

sobre aquilo que está falando”, também lembra, com honestidade, que a prática veio

mesmo com o tempo. No início da carreira, “chegava, mandava abrir livro, ler o

texto, de onde tirava perguntas para o aluno responder”. Atualmente, ela procura ler

livros, “colocar para eles a experiência sobre uma coisa que vi, que sei como

funciona”. Atitude de quem tem um saber.

Antes de fazer concurso para o estado (e ser “muito bem colocada”) e trabalhar

no colégio Viola, há dezesseis anos, e, portanto, tornar-se colega de trabalho dos

queridos ex-professores referidos antes, Iara trabalhou em uma escola municipal

distante (para onde ia de carona em caminhão de leite e depois seguia a pé), como

diretora e única professora de três alunos filhos de lavradores imigrantes nordestinos.

Recebeu de presente o contrato de trabalho do então prefeito municipal no dia de sua

formatura 17. Iara ainda lecionou em outra escola multisseriada por uns meses,

enquanto esperava por uma vaga no Viola, onde desde o Normal sonhou em

trabalhar: “a referência de escola que funcionava com mais alunos, a mais

interessante”. Lembra de como tinha vergonha de ter uma aula ouvida pelas “outras

17 O papel de diretora ela considera que foi “o fim da picada”, porque “queria dar aula” e não sabia sequer como fazer o “mapa da merenda”. Como professora, o desafio foi conquistar os alunos, porque ela foi considerada por eles, no início, como uma “estrangeira”. Desafio vencido desta forma: “Uma coisa é certa: eu sempre fui muito carinhosa com meus alunos, sempre muito próxima deles! Acho que essa coisa de o professor morar no lugar é muito bom, porque quem faz para o lugar faz por amor, faz para quem conhece, de quem gosta. Acho isso muito interessante”.

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professoras mais velhas, que sabiam mais” e de como custou a aprender a fazer e a se

situar.

Para ajudar, começou a fazer vários cursos adicionais, de português, inglês,

estudos sociais e matemática, aproveitando o momento de recém-casada e sem filhos.

Com eles, além de “apreender demais”, teve muito prazer e que, portanto, “nunca

faltava às aulas”. E que depois voltou para a escola “cheia de idéias”18, que costuma

transformar em projetos.

Sobre isso, Iara afirma que se ressente de não ter atualmente apoio da direção

para tocar seus projetos, pois dona Clair parece não dar importância a eles, “não

contribuindo nem no aspecto material”19. Acredita que ela até que gosta do seu jeito

de trabalhar, “porque levo a sério, porque não falto, porque tenho domínio sobre

minha turma e nunca levo aluno para a secretaria, nunca expulso”.

E a crítica à direção se estende a outros aspectos. Apesar de considerar “a

importância fundamental de dona Clair para o Viola”, Iara reclama do jeito que ela e

a filha, a professora Mariana20, tratam com desrespeito os alunos com problemas de

aprendizagem, com “pouco caso os pais dos alunos, às vezes nem os recebendo”, de

como dão tratamento diferente aos funcionários mais humildes, lanches diferenciados

aos professores dos dois turnos em dia de Conselho de Classe (com melhores lanches

para os do turno da tarde, ao qual Iara pertence, deve-se dizer). E resume: “o jeito de

falar é cheio de autoritarismo, aquela coisa de donos de fazenda e de cafezal,

acostumados a mandar nos empregados”. “E quanto mais humilde, menos respeito

têm”.

18 A primeira vez que ouvi falar da professora Iara foi antes de começar a pesquisa e ela me foi referida como “a professora dos projetos”. Ela participa de todos, inclusive do Projeto Político Pedagógico, que sabemos, não conta com a participação do coletivo da escola. Iara alega que “professor de ciências tem mais facilidade para tocar projetos”, mas, embora eu concorde com esta opinião, considero que a prontidão está para além da disciplina e tem a ver também com uma atitude pessoal de gostar de desafios, de estudar e pesquisar. 19 E relata a última tentativa, no ano passado, de realizar um projeto em parceria com a Petrobrás para a criação de uma mini-estação de tratamento de água na escola, que se constitui como um problema local, e que serviria como tema gerador dos trabalhos escolares. Sobre tal projeto dona Clair comentou que precisavam “amadurecer a idéia” e que Iara completa: “E a idéia está amadurecendo até hoje”. 20 Que tem duas matrículas no estado, atuando na escola como professora de Geografia e sujeito desta pesquisa, e, ainda, como auxiliar de secretaria, uma espécie de vice-diretora de fato.

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O momento atual, iniciado em 2000, quando seu filho nasceu, é considerado o

melhor. Antes, durante dez anos, Iara trabalhou “dobrado” no Viola e em outra

escola, porque precisava de dinheiro: “meu pai tinha morrido há pouco tempo, e as

roupas, os sapatos, tudo que eu sempre quis ter na minha juventude, eu via ali essa

possibilidade”21. Outra tentativa de melhorar o poder aquisitivo foi a abertura de uma

confecção de moda íntima, que durou um ano. Iara percebeu que estava atrapalhando

seu trabalho na escola e diminuindo demais seu tempo com o filho.

Iara nunca pensou em sair do Viola, mesmo quando morou em uma cidade

situada a 50 Km de Vista Alegre. Também não gostaria de trabalhar em escola

particular, porque gosta de pessoas simples, humildes, “dessa coisa tranqüila, rural”.

Acredita que o melhor é que a maioria das crianças tem o mesmo estilo que ela, é

mais tranqüila e simples. Para esses “alunos da roça”, a escola continua sendo o point,

pois eles são pessoas “que ficam mais isoladas, filhos de lavradores, crianças que

andam muito a pé”, “vivem no seu mundinho silencioso”. Depois de trabalharem

diariamente na roça de segunda a sábado, eles dedicam os domingos ao ócio, andam à

toa, de bicicleta ou a cavalo, visitam amigos e parentes, e, ainda, revêem os cadernos

e livros escolares. Apesar deste aparente interesse pelo estudo, para Iara, eles acabam

“dando mais trabalho para se expressar, colocar a opinião, desenvolver uma resposta

àquilo que você quer”.

Entretanto, Iara reconhece que há novos alunos chegando à escola22, gosta de

todos os tipos (“eu gosto da emoção, do calor do aluno”), embora afirme preferir os

“falantes”, que participam e que contestam uma afirmação de conteúdo ou até uma

nota baixa. Acredita que eles a vêem como uma amiga (muitos costumam ir a sua

21 A experiência foi uma decepção em todos os sentidos, porque além de o salário de regime de contrato ser pior que o de professor concursado, a escola tinha uma péssima direção, os alunos, péssimo desempenho, e alguns professores discriminaram a professora Iara, “porque cheguei querendo trabalhar”, diz ela. 22 Como escrevi no capítulo sobre a escola-da-dona-Clair, a professora nos fornece uma classificação e descrição para ele, o aluno de “beira-de-rua”:

mora no loteamento, a mãe trabalha fora o dia todo e ele fica sozinho até a hora de ir para o colégio, e só vão se ver à noite. Esse aluno anda à vontade, não tem muito compromisso, chega com atividade sem fazer, tenta colocar o estojo em cima e tenta dar uma desculpa. Por outro lado, ele tem uma cultura geral (entre aspas) maior um pouco, porque vem mais à quadra de esporte, vai mais à igreja, lida com pessoas de fora que se mudaram para o loteamento, ele se mistura com pessoas diferentes, de diferentes lugares, vê mais televisão, faz mais pipoca, come mais hambúrguer no “Toninho”, sai mais final de semana na rua, anda mais de bicicleta.

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casa tirar dúvidas de várias matérias, enquanto ela está lavando roupa pela manhã),

embora “não faça questão disso”, uma vez que acha “interessante essa coisa de

professor e aluno”, que cada um tenha sua postura.

Iara desejava ter feito faculdade de Biologia ou Enfermagem, mas “não queria

sair de Vista Alegre nem podia financeiramente”. Sobre o exercício da profissão que

afirma ter “escolhido” por falta de opção, ela diz: “tem que gostar, ter segurança e um

carisma que faça com que os alunos gostem daquele momento e sintam que aquele

momento está fazendo crescer, está trazendo novidade. Não vou repetir aquilo que se

ele for procurar no livro ele vai encontrar sozinho”.

Há um lamento sobre o modo de exercer o ofício dos professores do sexto ano

em diante que é que o professor interfere menos na vida dos (pré)-adolescentes do

que faz com crianças: “Eu não consigo (...) fazer cada um ir andando no seu tempo,

respeitando a etapa de cada um. (...) Eu tenho o tempo curto, duas vezes por semana,

e um certo programa que eu acho até interessante (...)Eu paro e penso: ‘muita gente

ainda não conseguiu. Aí, paro e dou aquela explicada. Tento fazer de uma forma

diferente, mas com todo mundo, adiantando quem já conseguiu.”

Para finalizar, destaco duas características da professora Iara, expressas em

duas falas: “Eu tenho muita sinceridade com meus alunos”; e “gosto muito dessa

coisa de história: eu gosto de falar que aprendi a ler no Viola, que me formei no

Viola, que trabalho no Viola, que meu filho estuda no Viola. Eu gosto desse

ambiente, dessa história, desse contexto”.

Isaura: a profissional séria (mas brincalhona) e encantada (mas desestimulada)

A professora de língua portuguesa e literatura do colégio desde 1988 me

recebeu em sua simples casa, onde nasceu há 42 anos, situada em um bairro pobre na

zona urbana central do município23.

Isaura é filha de uma mulher negra, semi-analfabeta e mãe de oito filhos, que

23 A principio, com uma certa cerimônia, sugeriu que ficássemos na pequena sala de estar, mas logo mudou de idéia e nos transferimos para a cozinha, por podermos ficar sentadas em uma mesa e acomodar melhor o gravador.

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enviuvou grávida de 4 meses da professora, e que teve que lavar roupa para fora a fim

de sustentar todos, pois a pensão deixada pelo marido, funcionário da extinta Rede

Ferroviária Federal, nos anos de 1960, não bastava. Todos os irmãos tiveram acesso

ao estudo e só não se formou em escola “quem não quis”.

A avó materna, com quem, ao contrário do pai que nunca conheceu, Isaura teve

uma longa convivência, pois morreu com quase 100 anos, era uma “grande mulher,

muito forte, muito sábia, muito inteligente, apesar de praticamente não ter tido

nenhum estudo na vida”. Ela ajudou Isaura na sua formação moral e profissional, pois

insistia, junto com a mãe, para que ela estudasse, que “fosse alguma coisa na vida”.

Isaura sempre gostou de estudar e de várias disciplinas, tanto que na hora de

escolher o curso na universidade particular em uma cidade próxima fez vestibular

para Matemática, matriculou-se em História e, com uma semana de aula, transferiu-se

para o Departamento de Letras. A escolha final se deveu ao fato de ter sempre tido

ótimas professoras de português. Mas este foi o único curso que fez em uma escola

particular, pois freqüentou a vida inteira as (na época) boas escolas públicas da

cidade, numa das quais eu mesma estudei até a quinta-série.

Já antes de cursar a faculdade, Isaura, que desde adolescente sonhava em ser

repórter de televisão, percebeu que a formação na escola Normal poderia garantir-lhe

um trabalho em curto prazo. Foi quando Isaura descobriu que “acompanhar o

crescimento de uma criança é uma “coisa que encanta” e que muito a satisfaz. O

professor pode “promover mudanças no aluno, na pessoa. A pessoa não sabia nada e

de repente começa a saber um monte de coisa. Esse conhecimento. Acho isso

maravilhoso!”, relata ela emocionada.

Por outro lado, a professora, que leciona a partir da quinta série até o curso

Normal, também na escola pública onde nós estudamos, vive um momento de

desencanto com a profissão, porque acreditava “realmente que as coisas podiam

melhorar, que alguém ia levar a educação a sério. Mas estou vendo que cada governo

que passa as coisas não mudam; mas, pelo contrário, pioram”. Apesar do desânimo,

Isaura conta que tem dia que eu sai de casa

(...) bem desanimada para dar aula, mas eu consigo fazer uma coisa bem feita, vejo que o aluno acompanhou bem (...) o que me propus a fazer. E volto para casa tão satisfeita! (...)Achei que com 22 anos eu já ia empurrar com a barriga. Mas eu não consigo ainda.

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Estou desestimulada? Estou. Não pelo aluno e pela função de ensinar, mas pela engrenagem toda que temos vivido na escola: desvalorização, falta de material, de incentivo, de reciclagem, de tudo que a gente gostaria de poder fazer e não tem condições de fazer, até porque o salário não permite.

O momento é de pouco investimento no ofício, mas nem sempre foi assim. A

longa carreira se iniciou em uma escola rural multisseriada, como unidocente.

Lembra que quase ficou “doida”, mas que, embora desgastante, foi uma experiência

interessante, porque o professor primário tem a responsabilidade de “ensinar ao aluno

a decodificar, a ler, a escrever, a aprender a sua língua realmente”. Hoje, como

professora das séries mais adiantadas, ela só tem que “lapidar” o que foi trabalhado.

Além de longa, a carreira de Isaura é rica, pois já exerceu, ainda, durante cinco

anos, o cargo de vice-diretora na outra escola em que trabalha, período em que diz

“mais ter acreditado na educação” e, ainda, o único em que esteve afastada do colégio

Viola.

Das antigas professoras lembradas, uma com quem se “identificava muito com

o jeito de trabalhar”, muito amiga, muito aberta, que “brincava, ria, ensinava de uma

maneira que você não via o português como aquela coisa maçante, difícil (...) Eu acho

muito importante essa identificação do aluno com o professor, para ele ter mais

vontade e facilidade para aprender a disciplina”.

Embora seja aberta e brincalhona com seus alunos, Isaura é tida como uma

profissional séria (“não sou do tipo que enrola, que vai para lá bater papo” diz ela).

Acha que os alunos a consideram “linha dura”, reclamam que ela não passa nenhum

filme, ao que ela responde: “ filme só se for de acordo com a matéria. Se não, vamos

ao cinema juntos no sábado”. Atividade, aliás, que ela gosta muito de fazer, além de

ler, bater papo com os amigos, viajar pelo Brasil e conhecer pessoas novas, atividades

que pretende fazer quando aposentada.

Ao falar da faculdade, lembra-se de uma professora de literatura portuguesa, “o

exemplo de professora” que tentou imitar, que “amava o que fazia”, preocupava-se

com a escrita do aluno, com quem sentava individualmente. Contudo, a faculdade é

considerada a “instituição onde mais se decepcionou em relação à aprendizagem”,

embora reconheça que o período abriu seus caminhos.

Isaura costuma dizer que aprendeu português ao começar a dar aula, ainda na

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faculdade, no colégio Viola. Teve as professoras Tarsila e Iara como as primeiras

alunas, numa turma pequena, de alunos muito bons, a quem podia dar um

atendimento individualizado24. Ela se recorda que “(...) pegava o conteúdo que eu

tinha que trabalhar no dia seguinte, chegava na faculdade fazia as perguntas que não

sabia como abordar, e estudava”. Aprendeu não somente a abordar o conteúdo, mas

o próprio conteúdo.

Quando lhe perguntei o que de sua vida ela considerava fundamental para ter o

estilo de ensinar que tem hoje ela respondeu que teve “boas influências, bons

professores (...).a seriedade de fazer o trabalho, de querer realmente que o aluno

entenda qual é o objetivo (...), a importância que aquilo vai ter para a vida dele. (...)

Não que isso tenha sido a coisa mais importante, porque seu estilo você vai

moldando de acordo com a situação, de acordo com sua experiência, de acordo com

aquilo que o ambiente te oferece. Você acaba tendo um estilo de trabalhar, um jogo

de cintura para fazer a coisa”.

Mais do que estudiosos, os estudantes do Viola são vistos como “muito

interessados” pelo trabalho escolar, e, portanto, disciplinados, que não causam

problema. Até porque Isaura estabelece os limites da convivência logo no primeiro

dia de aula e os segue com rigor. E fala com orgulho da atual turma do terceiro ano

do ensino médio, e também de como dentre os 50 alunos do ensino médio que atende

neste ano apenas 5 são difíceis de lidar, pois “têm as notas muito baixas, não fazem

quase nunca as tarefas e você tem que ficar em cima cobrando”.

Entretanto, Isaura atesta que a realidade do Viola mudou de uns cinco anos para

cá, em vários aspectos, inclusive no que se refere ao alunado, agora em maior

número, mais disperso e desinteressado, ainda que continue sendo o melhor que ela

tem, tanto que não se incomoda em viajar mais de 50 km, duas vezes por semana,

para lecionar lá. Essa atual realidade, associada à miserabilidade de recursos da

escola pública, faz com que o professor também tenha que mudar:

Porque se você precisar fazer dessa maneira e o colégio onde você trabalha não te dá essas possibilidades e você insistir que quer dessa maneira você não vai a lugar nenhum. Tem que ter jogo de cintura, saber que pode no futuro ultrapassar, mas que

24 Segundo ela, este tratamento que faziam com os alunos do ensino médio (todos os professores) fez com que o colégio tivesse um rendimento bom, que os alunos tivessem um bom desempenho nas avaliações externas.

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nesse momento não dá. Tem que ter essa maneira de rever a situação. Com certeza a preocupação maior ainda tem que ser o aluno. Tem gente que diz: “não esquenta a cabeça, não. Não quer, não quer”. Eu acho que a gente tem que buscar uma maneira de fazer ele querer!

Para ela, falta material e uma gestão mais atuante no colégio: “os professores

têm sentido dificuldade, porque as salas são pequenas e vivem sujas, o mobiliário não

é adequado (as carteiras são duplas, e não permitem um trabalho individual)”, não há

material visual (como fotos, retroprojetor) para enriquecer e estimular, por exemplo,

as aulas de literatura. Isaura exalta a chegada dos computadores à escola. Conta que

para os estudantes foi maravilhoso, porque ela começou a desenvolver aulas com

redação, redação comercial, ofício, currículo etc. e que planejou, com a internet neste

ano, fazer um trabalho com mais pesquisa. Mas aí faltou o orientador tecnológico.

E conclui que o que falta principalmente é direção, pois se ela, com vinte e dois

anos está desestimulada, o que dizer da dona Clair?: “Vista Alegre está precisando de

sangue novo, não desmerecendo o trabalho dela, pois ele é muito bom. Dona Clair é

uma mãe e não uma diretora. (...). Tem que haver uma reestruturação (espaço físico,

pedagógico, direção, servente), porque o colégio vem caindo”

Isaura ainda atesta o excesso de funções da escola hoje, o que traz para o

professor a responsabilidade da formação de caráter, de encaminhamento do aluno

para a vida, além de ensinar conteúdos. E diagnostica, com muito discernimento, que

a escola “está desestruturada para assumir tanta responsabilidade”. Ao final da nossa

entrevista, a professora, que acredita “já ter sido muito melhor que hoje”, alerta: “A

escola tem que mudar e rápido, porque, se não mudar, é uma instituição falida,

falida! Não vamos daqui a pouco ensinar nem o que os livros trazem, nem para a

vida. Porque está muito difícil fazer! Muito difícil!”.

Bel: a pesquisadora franca e necessária Bel tem 47, três filhos (23, 19 e 16 anos) e é casada com um caminhoneiro, que

ela considera “um parceiro”, pois respeita seu espaço25. Nasceu em Santo Antônio,

25 A conversa com a professora aconteceu no mês de abril de 2007, na varanda da casa do sítio dos meus pais, situado no mesmo município e próximo à zona urbana, local escolhido por ela em detrimento de sua casa, que alegou estar com hóspedes. Começou às 9 e meia da manhã e durou até às 11h40, com um pequeno intervalo de vinte minutos.

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lugarejo perto de Vista Alegre. A família é de agricultores que moram até hoje nas

terras que possuem desde o início do século passado, embora Bel resida desde que se

casou no centro urbano. O avô materno é lembrado como “uma pessoa

empreendedora”, muito “avançado” e “ousado” para sua época, tendo introduzido,

por exemplo, a lavoura de tomate na região. No entanto, ele “não era um bom

administrador, administrava com o coração”, característica pessoal com a qual ela

parece se identificar, pois tece o mesmo comentário sobre si quando fala sobre as

finanças, que parecem ser, contudo, boas.

O pai, além de lavrador, era motorista, produzia e vendia os alimentos na feira,

trazendo produtos da cidade para comercializar numa vendinha próxima de casa. A

mãe de Bel, “que tinha sido uma excelente aluna numa escola de Vista Alegre,

conseguiu, por coisa política, dar aula”, pois era filha do então prefeito municipal,

que montou uma pequena escola em um dos muitos cômodos de sua antiga casa de

fazenda: “A escola era mamãe”diz ela. E ficava ao lado da casa onde moravam seus

pais, dentro da fazenda do avô, atendia a mais de 40 estudantes, a maioria

“marmanjos”: “aquilo ali era o nosso metier, era o ambiente em que a gente vivia”,

reflete ela.

E foi no dia-a-dia desse ambiente “família-escola” que ela diz ter sido

alfabetizada. Na época de ir para uma escola, a mãe quis que ela tivesse outro

professor e mandou-a para uma distante, para onde ia de bicicleta. Estudou sempre

em escolas públicas até o curso Normal, que teve que ser pago, mas Bel já trabalhava

como comerciante na cidade quando fez magistério, escolhido, em primeiro

momento, pela facilidade em arrumar trabalho. Contudo, cursando o magistério, ela

descobriu que se identificava mais com outro trabalho, “com a criança, mais voltado

para a criança”. E completa: “eu achei que por ali eu ia ser feliz e que aquilo ia me

satisfazer”.

Ao final, anotei no diário de campo que Bel “sabe propor uma conversa franca”, frase produzida

por ela durante a entrevista, em relação ao seu trabalho. Escrevi, ainda, que a nossa conversa pareceu-me “catártica”, pois ela por diversas vezes se questionou, assim: “Como é que eu nunca parei para pensar como eu me sentia como professora? Por que eu nunca questionei isso?”. Além de ter rido e chorado várias vezes. Por fim, observei que ela parece ter se sentido muito íntima de mim, assumindo uma posição de simetria durante a entrevista, uma vez que repetia, quase em cada frase, meu nome e parecia muito à vontade.

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Iniciou imediatamente sua carreira docente, colocando-se à disposição para

“quebrar um galho” e substituir as professoras na escola pública estadual, onde havia

estudado, a mesma onde eu e Isaura estudamos. Do curso Normal, as professoras

lembradas são Leilá e Isabel, a primeira porque não ficava só no conteúdo, mas “tinha

uma visão de que o seu aluno seria um professor amanhã”, e, com quem aprendeu a

organizar seu pensamento, pois ela cobrava que se registrassem e sistematizassem as

idéias. Isabel, considerada “um espelho”, ensinou-lhe o jeito de dar o conteúdo, como

cumprir o currículo, mas principalmente a ouvir o que o aluno tinha de necessidade.

Ainda, ela lamenta de não ter dado mais importância aos estudos quando menina, e

seu desejo é poder voltar a estudar, que espera acontecer quando se aposentar,

momento em que planeja, ainda, viajar26.

Embora reconheça a importância dos aprendizados acadêmicos, que foram

acontecendo de acordo com as necessidades do ofício27, Bel acredita que o exercício

da profissão, por 28 anos, seja o maior aprendizado que tem tido: “é a minha

faculdade”, diz ela. Se lhe faltam os conhecimentos teóricos, a compensação vem na

troca com seus alunos, no saber fruto da lapidação das informações que os estudantes

trazem e desejam aprender.

Este é o principal motivo que levou Bel a ir trabalhar na escola-da-dona-Clair,

distante 23 Km de sua casa, como professora das séries iniciais, há 11 anos atrás:

“Por isso é que não quero sair da escola, porque quanto mais você trabalha com esse

povo mais afastado da cidade... Eu acho o ambiente muito mais rico, porque eles são

26 Ela recorda de como aprecia um passeio que costuma fazer uma vez ao ano à cidade do Rio, quando viaja para “outro mundo” e toma “um banho de civilização”: vai ao cinema, teatro, visita galerias de pinturas (a professora pinta nas horas vagas), levada por uma amiga carioca, com quem aprendeu também a andar de elevador. 27 Assim, quando foi chamada para trabalhar em uma escola municipal com uma turma de alunos especiais e repetentes, a professora começou a freqüentar oficiosamente um grupo de estudo de casos oferecido pela Secretaria de Educação de Darcy Ribeiro em uma cidade próxima, e ministrado pela UFF. Foi quando voltou a estudar e “quando criei força”, nas suas palavras. Nesta época, com 10 anos de profissão, conheceu (e se encantou com) o trabalho de Heloisa Villas Boas, que a orientou por um tempo, chegando a receber Bel em sua casa por cinco vezes, e cujo livro ainda é uma “guia de trabalho até hoje”, mais “porque a presença dele ali me faz voltar atrás e ver como eu sofri, acho que muito por falta de estudo”, lembra ela.

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voltados para as raízes. (...)Eles têm muitos conhecimentos que o povo da cidade

maior banaliza. E são coisas com que eu me identifico”28.

Se ela percebe que “as formas de vida dos alunos a enriquecem”, também

lamenta que “os alunos estão cada vez mais urbanos”, pois as famílias, por falta de

incentivo, estão largando a lavoura própria e se empregando como assalariados, cujo

retorno é pequeno, mas certo29. Dos conteúdos trazidos pelo alunado do meio rural,

ela reconhece que “muita coisa é crendice que passa de pai para filho”, mas que ela

aproveita para trabalhar os conteúdos acadêmicos. Ela ouve as histórias e, então, os

convida a “procurar, a fazer pesquisa, a descobrir, por exemplo, como a cobra vive,

do que ela se alimenta, como se reproduz, se anda em par realmente...”. Ao ser

perguntada como faz pesquisa com os tão poucos recursos da escola, Bel afirma que

vai à biblioteca, agora aos computadores, mas costuma muito ir à vizinhança30.

Em relação ao dever de casa, aparece o maior problema citado pela professora,

pois ela reclama da falta de troca entre a escola e os pais, a maioria analfabeta. E

conta de um menino que nunca acerta os deveres de casa: “A mãe no outro dia esteve

na escola e eu pedi ajuda para acompanhar. Mas ela não tem condições. A 28 E narra, a título de exemplificação, a história de um alimento comum na região, a farinha de cachorro: “Você conhece? Aquilo é um alimento super nutritivo. A avó de um aluno me contou que os pais e avós torravam o fubá, (...) misturam com o amendoim, para saírem para as caçadas. Aprenderam com os índios. Isso me identifica, eu gosto. Aí, eu tenho vontade de sair, de procurar, de saber o por quê, o por quê. Eu com a criança”. 29 Em suas palavras:

a cada ano é um aluno que deixa cada vez mais a raiz dele para vir para o mais fácil, que é o Arraial. A mesma história de quem sai daqui para a cidade grande. Eu acho que isso é uma pena: vivem na roça, mas não vivem da roça! Enquanto um agricultor que se preocupa em plantar (fazer uma lavoura de aipim, de inhame, de feijão, de banana, de abobrinha, tem sempre o milho em volta de casa, tem muita criação de galinha e porco) fortalece o lado econômico e complementa de uma maneira mais saudável, esse que vive na lavoura e vive do salário mínimo come super mal. Neste ano, por exemplo, dos meus doze estudantes, apenas três trabalham a terra e assim mesmo dois são produtores de flores, usando uma quantidade tão grande de veneno, que chega a arder a garganta. Os pais dos outros alunos trabalham em confecção, no comércio local, e um outro “tira madeira no mato, que eu falo que é o inimigo da natureza”, brinca ela.

30 E traz um exemplo de uma recente realizada sobre o lixo produzido: Eles levam para casa uma série de perguntas para fazer aos vizinhos: onde põem o lixo quando mata uma galinha, descasca uma banana, vai tudo misturado com o papel higiênico? Perguntinhas bem “inocentes”. Vem as respostinhas, que a gente vai tabelando em forma de gráfico. Tem gente que joga lixo no meio de um pedregulho, dizendo que lá não mora ninguém. (...) E a gente começa a questionar a duração dos lixos. Eu trabalho muito em cima de linha do tempo, Eloiza.(...) A gente começa nesse meio e eu vou por aí.

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matemática que ela aprendeu não dá. Ela só decorou que 3x2=6, e eu quero levá-lo a

pensar que também pode ser 1+1+1+1+1+1=6. E não decorar apenas. Todos os

deveres que ele levou essa semana estavam errados!”. A isso se acrescenta que

muitos pais têm pouco tempo de comparecer à escola, neste sentido, assumindo uma

postura meio “toma que meu filho é teu”.

Sobre a escola-da-dona-Clair, onde já atuou em todas as séries iniciais e

também por meses como vice-diretora, Bel queixa-se da direção, que, segundo ela

vem piorando, pois dona Clair “é muito mãezona e não cobra”, mas depois vira a

carrasca. Ainda, ela se diz irritada com o fato de dona Clair lidar com a escola como

“a patroa, a dona da fazenda”, que faz política em detrimento da escola, citando para

justificar o fato que ela deixou que o estado retirasse o pré-escolar neste ano para

favorecer a entrada de uma nova escola municipal nas redondezas, para “dar asas ao

prefeito”, seu aliado. “Como o Estado quer acabar com nosso ensino de primeira à

quarta, nós estamos ‘colaborando’ dessa maneira”, diz ela. E completa: “isso é um

efeito cascata e, no ano que vem, o número de alunos da alfabetização é menor”.

Bel também reclama da falta de oportunidades formais de planejamento

coletivo, porque este pode dar a visão do todo da escola, promover a integração e

ajudar a resolver os problemas dos alunos. Ela exalta a coordenação pedagógica e a

insistência da mesma em realizar planos de trabalho com metas semestrais do grupo

de professores. Sobre o Projeto Político Pedagógico, ela comenta que até se discute,

mas apenas para cumprir uma ordem.

Ainda sobre a “faculdade” da professora Bel, aos 21 anos de idade assumiu

uma escola rural como a única professora e diretora numa comunidade próxima de

onde nasceu. Reconhece que sua “formação não ajudou nada naquele momento”, pois

era tudo “muito adverso”. “Comecei a ver que eram tantas as minhas atribuições que

eu não ia dar conta: era mapa de merenda, diário, organizar toda a escola, dar aula,

lidar com o pai que vinha chegando, com o aluno que nunca tinha visto nada junto

com outro que já estava lá”, relata ela. Após o período inicial em que dizia “Eu vou

morrer”, Bel pediu ajuda a uma colega mais experiente sobre a alfabetização (“resolvi

começar do começo”, lembra ela), separou os alunos por série e adotou uma cartilha

(“como se aquilo fosse tudo que eu precisava para formar um aluno, um leitor”). Em

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novembro daquele ano, “meu pára-quedas arrebentou e bati de bunda no chão”, fala

ela, ao ler um aluno escrever “Xico, xiscondeu o xinelo. Assim mesmo: tudo com x”.

Ela acha que se “saiu dessa” pelo sofrimento, pessoal e dos alunos, mas

acredito que uma outra razão esteja nestas palavras que seguem o relato anterior:

“Como eu achava que não tinha dado nada certo, eu mudei tudo! Comecei a brincar

de pique bandeira, comecei a integrar a escola, porque eram duas realidades que eu

havia criado no primeiro ano, e sofri para diluir aquilo. Botei tudo numa sala só e

comecei a trabalhar dentro do meu instinto.”

Indispensável, já nesta época, também a ajuda dos alunos e, mais uma vez, o

sentido do trabalho escolar em suas vidas, como ela relata:

Eles [os alunos] eram muito compromissados, já eram maiores do que hoje (eles estão a cada ano mais novos), os de terceira me ajudavam com os de segunda e os de quarta me ajudavam com os de segunda e terceira. Os de alfabetização limpavam, varriam e eu era uma professora de dar muita coisa no quadro. Mas eu me afinei com a comunidade com um jogo de pique bandeira, porque eles ficaram mais espertos, mais atentos. Viram que a brincadeira tinha sentido, que a gente jogava e fazia registro com ela, o que tinha problema na perna marcava o tempo. Aquilo ali foi minha bola 7: eu marquei todos os pontos! Deu certo!

Bel tem consciência que “deu certo” basicamente, em suas palavras, “porque eu

comecei a me colocar no lugar dos alunos e dos pais. Comecei a enxergar de fora da

escola. E a colocar aquilo como objetivo dentro da escola”.

Depois de lecionar para mais de mil alunos (cujos nomes estão em uma lista),

era de se esperar que Bel estivesse cansada. Mas ela diz que não, e que nunca sentiu

monotonia, mesmo depois de 28 anos no exercício da profissão. Acredita que seus

colegas de escola e os alunos a consideram brava, mas ela se tem, principalmente,

como franca e honesta: “mesmo sendo brava, enérgica, eu sinto, eu percebo, eu me

aborreço, eu me entristeço, eu fico feliz. Eu não me sinto anormal na escola”. Ela se

diz, ainda, “necessária”, pois dá limites e nunca nega aos seus alunos uma

informação, mesmo que isso possa lhe causar algum problema com a direção, com os

colegas ou com as famílias: “Eu não minto, eu não minto”. E se defende

argumentando que em sua sala “não é tudo permitido, nem tudo é proibido”, mas que

apenas sempre busca cumprir o que planejou com seus alunos.

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Bel tem uma rotina de trabalho que começa com uma conversa informal de dez

minutos sobre o que eles fizeram no dia anterior ou no fim de semana. Ela escreve no

quadro uma agenda das atividades planejadas, mas logo emenda que às vezes começa

a rotina do fim para o começo, outras do meio, porque sua proposta não é fechada e

todos, coletivamente, podem mexer. A seguir, há sempre uma leitura de uma história,

curta ou mais longa (esta empreendida em capítulos diários), feita até o meio do ano

por ela, e a partir do segundo semestre, pelos alunos, individualmente ou em par,

atividade que eles prepararam em casa, com antecedência. Para ela, ler diariamente

tem dois objetivos: funcionar como um pano de fundo para o trabalho; e, também,

melhorar a escrita, pois ela vai “deixando com eles uma série de arquivos e numa

hora que ele vai precisar escrever ele vai buscar nesses arquivos”. À atividade de

leitura, segue-se um momento de interpretação com comentários dos alunos, e,

depois, ela lê o título da história ou capítulo a ser abordado no dia seguinte, porque

gosta de “levantar as possibilidades do que eles acham que pode acontecer”. Em

seguida, a professora corrige individualmente os deveres de casa, porque acha

importante descobrir “os caminhos pessoais percorridos por cada um para chegar às

respostas dos problemas”. Para isso, ela faz uma atividade paralela com os outros

alunos, que trabalham em grupo ou em pares, um ajudando ao outro.

A introdução de um conteúdo disciplinar novo é feita com gravuras (“sempre

algo bem ilustrativo”, diz ela), mas em forma de desafio: “primeiro eu faço um

levantamento de hipóteses sobre qualquer assunto. Geralmente eu uso muito jornal,

porque é uma coisa diferente. (...) Eu acho que desequilibro aquilo que é muito

certinho nele. Quando eu me proponho a esse tipo de desequilíbrio, eu quero uma

resposta sobre que caminho eu vou seguir. Ali eu vejo muitas dúvidas deles”.

A estratégia de motivação comumente usada por ela é a do “por exemplo”. E os

exemplos são sempre assuntos ligados diretamente à vida das crianças, têm, portanto,

um sentido. Entretanto, Bel acredita que o que realmente faz seu trabalho funcionar,

em suas palavras, “é que eu tenho muita vontade que eles sequem as asas lá na minha

sala. Sabe a borboletinha, que vai secar a asa para voar?”.

Quando lhe perguntei o que ela considera fundamental para seu estilo de

ensinar, ela respondeu com outra pergunta: “Tem certeza que já não respondi isso?”

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Mas gentilmente, completa: “Uma coisa é que aprendi a refletir e aprendi a avaliar

(...).ela serve para eu trabalhar melhor no ano que vem (...) sou muito ansiosa e não

tenho nada pronto. Até viver, me angustia e não me dá prazer. Só quando eu vejo que

a coisa está acontecendo me dá prazer.”

Aquiles, o personagem corredor, inesquecível e individualista

Aquiles é professor de educação física há 24 anos, sendo que há vinte e dois

trabalha na “escola da Clair”, como ele se refere ao colégio31. Tem 52 anos e é o

único dos professores que não nasceu na região. Ele é baiano de Feira de Santana e

foi trazido para a periferia da cidade do Rio bebê, pela mãe costureira que fugia da

pobreza, que era tanta que outros dois irmãos foram entregues à antiga FUNABEM,

atual Fundação da Infância e da Adolescência (FIA).

Aquiles viveu quando garoto na Baixada Fluminense, “andando descalço,

jogando pelada” e, é claro, estudando, sempre em escola pública. Ao terminar o

antigo segundo grau, serviu à Marinha, mas, por ser atleta, ganhou uma bolsa de

estudos e foi fazer faculdade particular, na Gama Filho, onde se formou professor em

1980, quando descobriu “que professor ganha muito mal”. Assim, aos 25 anos,

resolveu ser marítimo e viajou durante dois anos pelo mundo como taipeiro, sua

segunda profissão.

Dos tempos de estudante, Aquiles se lembra do professor de inglês,

“espetacular”, pois conseguia despertar o interesse, e, assim, fazer com que o aluno

gostasse da matéria: “porque é uma troca, você tem que gostar do professor e da

matéria. Se você não consegue chegar ao aluno, nem você nem a matéria vão dar

certo”. Outra professora inesquecível era uma de português, que o fazia parar para

ouvi-la “recitar poemas”, o que ele achava “lindo”: “o tom, a entonação, a métrica, a

impostação. O jeito de falar”. E completa: “o professor é um personagem

importantíssimo em qualquer lugar e, por mais que queiram trocá-lo pelo

computador, ele vai sempre existir. Tudo bem que foi minha mãe quem me criou, mas

foram os professores que me ajudaram a me moldar”. 31 Nossa longa conversa, de mais de duas horas, ocorreu na casa do sítio dos meus pais, situado próximo à residência do professor, que, no entanto, preferiu ir se encontrar comigo.

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Se hoje reconhece que esses antigos professores32, mas também o “sargentão”

da Marinha, influenciam no seu jeito de dar aula hoje, lembra que acabou se tornando

professor por ser atleta, esta escolha influenciada por outro professor, que era

corredor. Foi quando “descobriu a corrida que tem uma vantagem: todos são

vencedores, quando conseguem completar. Três meses depois eu estava ganhando a

competição da escola e daí não parei mais”, afirma ele.

A última grande aprendizagem como aprendiz de corredor, na faculdade, foi a

técnica da competição, cuja base é a “sensibilidade de saber o momento de

incentivar”. E hoje, quando leva seus alunos do meio rural para jogarem na cidade,

ele diz ter que “usar a tática para saber como vamos jogar, já que estamos vindo de

um lugar longe, e quando chegamos na cidade somos discriminados: é ‘chuchu’ para

lá e ‘inhame’ para cá. E a gente tem que superar isso”, ensina ele.

Outro ingrediente de sua experiência que considera fundamental ao ofício

docente é a participação em competições, pois estas lhe “mostraram que você sempre

tem algo a melhorar e se superar”. Além de reconhecer os limites, o que só chegou

em um curso de especialização em fisiologia do esforço, quando percebeu que ele não

era o modelo de atleta, mas apenas “um esforçadinho”. Contudo, reconhece “que fez

a sua parte” e chegou a ser o campeão brasileiro nos jogos estudantis33.

Aquiles não escolheu a profissão, ela que o escolheu. Formado em educação

física, mudou-se para o interior por ter passado em concurso para magistério do

estado. Estava trabalhando como marítimo, e, entre uma viagem e outra, numa parada

no porto do Rio, recebeu o telegrama de chamada ao trabalho. De estalo, resolveu

largar o ofício de taifeiro e a possibilidade de ser técnico de corrida para “virar

professor”. Mudou-se, gostou do clima agradável, “de correr pelos campos”, e, então,

conheceu a Maria. Mas ainda hoje se sente mexido ao pensar que poderia estar

morando na cidade grande e trabalhando como técnico. Por outro lado, ao perguntar- 32 Nesta escola, havia um programa especial extracurricular de teoria musical, canto orfeônico e educação física. Aquiles se recorda que, apesar de não ter habilidade nenhuma, ele se metia a aprender tudo, porque gostava de participar. Por não ter voz para cantar (“ainda mais naquela época da voz trocando”, lembra ele), e ter achado a leitura de partitura muito difícil, acabou “descobrindo a corrida”. 33 Este curso de especialização foi escolhido porque ele queria compreender melhor a corrida (“penso em corrida 90% do meu tempo”, confessa ele) e, neste momento da conversa, percebo um único sinal de dúvida sobre a escolha profissional e de vida.

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lhe o que vai fazer daqui a cinco anos, quando irá se aposentar, Aquiles responde que

vai continuar a estudar e a “ser professor, sempre”.

Apesar da segurança atual, o início da carreira foi “uma tragédia”, já que ele não

possuía preparação, nem condições mínimas de trabalho, “porque o estado só dá os

diários, as turmas e, quiçá, uma bola”. Para dar conta do conteúdo, recorreu aos

cadernos da faculdade, mas diz que quem lhe ensinou o ofício foi “por incrível que

pareça, os alunos. Você aprende muito com os alunos. Eu me escorei muito neles (...).

E até hoje é assim: você tem que sentir os alunos para poder trabalhar. Só que naquela

época eu não tinha a experiência de vinte e quatro anos”.

Um período de grande investimento foi quando se tornou, além de professor

(jamais largou as turmas), diretor de escola e atuou, depois, como orientador

pedagógico de disciplina, quando viveu “um outro lado do magistério”, época de

grande crescimento, o extraclasse, “tão criticado pelos professores, mas tão

necessário”, porque teve que pesquisar, ler, “principalmente a parte pedagógica”.

Aquiles foi convidado por dona Clair para dar aula no Viola, de onde nunca

mais saiu (apesar de morar no centro da cidade, e, portanto, longe da escola), porque

se sente muito bem no ambiente e considera os professores excelentes profissionais e

ótimos colegas. Os seus alunos são “pessoas esforçadas, religiosas, que valorizam

muito a escola, por ser este o único local de convívio social que têm fora da igreja”.

O professor tem uma avaliação muito ampla de seus alunos. Além dos anos de

convívio, Aquiles realizou para a monografia da especialização um estudo fisiológico

dos estudantes da escola-da-dona-Clair34. E diz considerar todos esses fatores na

avaliação acadêmica dos alunos, que consiste em uma avaliação prática, uma

avaliação escrita e uma avaliação diária 35.

34 E conta como eles, por iniciarem o trabalho de educação física apenas a partir da quinta-série (“pois o estado não cumpre a lei e fornece esse ensino antes”), não recebendo, assim, uma formação de base (“o rolamento, a cambalhota, a preensão, o passar a bola, aprender a receber, alongamento, flexibilidade”), têm dificuldades com a coordenação fina (“a apreensão, o toque e até dificuldade para escrever”). Além desse déficit escolar, a maioria das crianças trabalha desde cedo (alguns com “foice, enxada, facão”): dos 94 que responderam ao seu questionário, apenas cinco não têm outra atividade fora da escola e 70% deles trabalha na lavoura. Nesse total, ele verificou que as crianças de Vista Alegre estão “muito fora do padrão”, pois apresentam uma defasagem grande entre o peso e a altura, com a existência de “muitos nanicos e peso-leves. Se der um vento, carrega”, brinca ele. 35 Tive acesso a esses critérios de avaliação ainda em 2005 quando fui convidada por Aquiles para assistir a uma aula, uma das poucas ministradas por ano dentro da sala de aula, e confesso que me

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Aquiles se considera uma pessoa “individualista”, “um chato”, característica

pessoal aprendida, segundo ele, com a corrida, que o “ensinou a fazer sozinho”.

Comenta “que não sabe como a Maria e os colegas o agüentam”. Estes, aliás,

costumam brincar muito com Aquiles, pois o acham responsável, mas, ao mesmo

tempo, engraçado36.

Paradoxalmente, Aquiles critica a direção “da Clair” por ela se “recolher muito

na parte burocrática da escola” e não acompanhar o trabalho dos professores,

deixando-os com muita autonomia: “prefiro uma direção que me guie”, declara a

mesma pessoa que acabou de afirmar que gosta de trabalhar sozinho. Ele lamenta,

ainda, o pouco espaço e tempo de interação entre os colegas professores, e afirma

categoricamente ter participado da elaboração do Projeto Político Pedagógico da

escola, que diz seguir até hoje, ainda que sozinho.

Contradições à parte, e apesar de ter intimidade, “muito carinho, respeito,

admiração e reconhecimento ao longo trabalho da Clair pela educação”, Aquiles é

incisivo ao qualificar o trabalho da direção como “fraquíssimo”: “A escola funciona,

mas principalmente por causa dos professores. (...). E o corpo docente é muito bom!

Acho que o grande mérito é dos professores. Podemos reclamar, mas no trabalho

somos muito sérios! Mas muito sério mesmo! O pessoal é espetacular”.

Aquiles crê que “a mudança de comportamento e a transmissão da cultura dos

mais velhos para os mais jovens” é a finalidade da educação e da escola, mas também

reconhece que a educação não está atingindo a todos. Por isso, ele se diz “fã do

Programa Especial de educação do Brizola e do Darcy, porque foi a primeira vez que

se pensou em um programa geral de mudança de comportamento da classe pobre (...).

diverti muito, como relato no capítulo IV. Assisti a mais duas aulas de Aquiles, sempre convidada. Na última, em outubro de 2006, dividi a cadeira na quadra com uma estagiária de Educação Física em uma universidade da cidade próxima que se preparava para filmar e que, ao ser perguntada por que estava fazendo estágio tão longe de casa, respondeu que ele era um professor de Educação Física “muito bem conceituado no meio, porque sabe unir a teoria com a prática”, não deixa ninguém sem jogar (por coincidência, uma aluna grávida e sem um braço assistia interessada à aula), tem (e impõe) respeito a seus alunos; enfim, “parece gostar muito do que faz”. 36 Ele se recorda, durante a entrevista, de uma gozação que costumam fazer com ele (e que eu mesma presenciei) sobre o fato de ele sempre “andar com uma bolinha debaixo do braço” e usar um “chapéu emprestado da Maria”, para protegê-lo do sol quente (já que a escola não possui quadra de esportes coberta).

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Enquanto isso não for resolvido, o problema socioeconômico não terá solução”.

Embora credite à educação um papel de motor das mudanças necessárias a uma

sociedade mais informada, e, portanto, mais igualitária, Aquiles reconhece que

muitos de seus alunos “não vêem objetivo na escola. A escola não consegue mostrar o

aqui, o agora e o futuro. É um pecado nosso. Por isso planejamento é tudo: tem que

saber onde sai e onde chega. Muitos não sabem onde vão chegar. Aquele universo é

uma reprodução do status quo: nasceu pobre vai morrer pobre”. Ele considera o

planejamento o item mais importante de um trabalho docente bem sucedido: “você

tem que saber quando começa, para onde vai e como chegar. Eu tenho planejamento”,

por ano, bimestre e mês.

Apesar disso, também reconhece que “a aula nunca é a mesma. Só o conteúdo.

Não há estabilidade”. Por isso, adota um estilo de ensinar teatral: “eles são a minha

platéia!”, afirma Aquiles, cuja justificativa para o nome escolhido nesta pesquisa é

porque ele significa “o que quer ser lembrado por gerações e gerações, apesar da

morte”.

William: o comunicador tímido

William tem dois filhos, de 4 e 14 anos, e é casado com uma professora37. Mora

numa região rural próxima de Vista Alegre, local onde nasceu há 42 anos. Escolheu

se chamar William como uma homenagem ao personagem do frade franciscano, do

livro O Nome Da Rosa, de Umberto Eco. Este personagem da Idade Média “usa a

razão e a lógica”, como o professor, que se qualifica como “curioso”, tanto que se

tivesse tido a chance de escolher livremente, gostaria de ter sido jornalista

investigativo: “eu gosto de investigar e de escrever”.

Apesar do uso da razão, paradoxalmente, William se emocionou várias vezes

durante a entrevista, ao falar de sua relação com os alunos e de se lembrar da mãe,

uma professora leiga do meio rural nos anos de 194038. Também a avó materna foi

37 A conversa com o professor de História William aconteceu no restaurante de uma fazenda, num domingo de manhã. O local era silencioso e só fomos interrompidos por sua filha Lara, de 4 anos, que às vezes vinha até onde estávamos sentados e falava com o pai. 38 A cerca de hora e meia em que durou nossa conversa parece ter sido um período de revelações

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professora leiga em uma região rural “onde quem sabia ler ensinava”. O pai era

lavrador e analfabeto, e um sério problema de saúde o impediu de trabalhar, o que

forçou a família a vender suas terras e migrar para uma cidade maior, na busca de

emprego, época em que sua mãe trabalhou de empregada doméstica e William, de

ajudante de açougueiro e operário de fábrica. Ele, filho mais novo entre seis irmãos,

conta como viviam mal em uma casa de dois cômodos que abrigava oito pessoas.

William sempre estudou em escolas públicas e parou no ensino médio39. Ao ser

questionado pela namorada, atual mulher, por que uma pessoa tão inteligente como

ele não continuava estudando, lembrou-se do conselho para que fizesse História, dado

por um antigo professor de cultura religiosa, em cujas aulas, apesar de ser muito

tímido, ele “se soltava muito porque o professor abria para discussão”.

Da faculdade, particular, cursada no município vizinho onde morava, em 1980,

William se recorda dos tempos difíceis iniciais, quando quase desistiu, pela timidez e

pela linguagem, “muito complicada”. Mudou porque gostou de política e do debate.

E, ainda, porque se envolveu nos protestos de rua dos anos de 1980, ao final da

ditadura, de quando ficou a “idéia de que se a gente não sair para conquistar a gente

não vai conquistar. Os tempos são outros e a maneira de protestar é diferente. Mas

isso marcou bastante”.

O professor se recorda também de dois ex-professores do ensino médio, que

“abriam para o debate” e que cobravam trabalho, como influências marcantes no seu

modo de ser hoje professor. A professora de literatura levava músicas, uma paixão, e

Arcadismo nunca foi esquecido porque ela levou a música da Rita Lee que falava ‘se

Deus quiser, um dia quero ser índio (...).

E o professor conta como gosta de trabalhar com música e “abrir para o

pessoais. Ao final, William confessou:

agora é que eu parei para pensar nisso: a única coisa que acho interessante nessa trajetória, já que você me lembrou de coisas nas quais eu não pensava há muito tempo, é que acho curioso (isso já é um lado mais sentimental) o fato de eu ter optado pelo magistério, com a história de minha avó e minha mãe. Foi curioso. E é claro que a maior incentivadora foi minha mãe, que conseguiu bolsa, que me incentivou a entrar na faculdade. Acho que ela talvez já soubesse disso, já tivesse isso na cabeça, com relação à educação. Eu sou o mais novo e o único formado no ensino superior.

39 Apenas no primeiro ano do ensino médio sua mãe arranjou-lhe uma bolsa de estudos em uma escola particular, que repetiu, “por falta de vergonha na cara, pois caí na farra e não ia à aula, que era à noite”, lembra ele.

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debate”, para o qual pede que os alunos leiam um texto de antemão, o que

infelizmente a maioria não faz. Acredita que, para aprender, o aluno “tem que saber

relacionar o que ele está vivendo agora com coisas que já aconteceram no passado”.

Em suas palavras: “Eu entro na aula destacando questões fundamentais que envolvem

o assunto e o que faço muito é relacionar. (...). Seja lá na Idade Média com o que está

acontecendo agora. (...). E através dessa relação eu gosto que o aluno reflita. Fico

buscando a participação dele na aula, querendo que eles falem, (...). Eu preparo, entro

e relaciono”.

O professor parece valorizar a importância de o aluno entender o sentido da

História no seu presente, e gosta de “trabalhar com a idéia de que a História não é

matéria do passado”, mas que é “o estudo do passado para entender o mundo à nossa

volta, para melhorar o futuro”.

William afirma não ter nenhum problema de indisciplina, pois seus alunos o

respeitam, uma vez que ele intimida muito, porque é quieto, além de que o que

combina no primeiro dia de aula vai cumprindo item a item: “Na escola pública, está

muito fácil de trabalhar para quem não quer trabalhar. Se você não quiser fazer, não

faz nada. Eu combino na escola pública as mesmas regras que tenho na escola

particular”, conclui ele.

Além das regras de disciplina, o professor “combina” um programa de

conteúdo e as formas de avaliação. Estas consistem em três instrumentos, a saber:

uma prova individual, escrita, discursiva; uma outra, objetiva (“estilo vestibular”); e

um trabalho em grupo, que ele considera “fundamental, porque acha que é “a hora

que vou ouvi-los melhor”, um trabalho de “apresentação”, quando todos se reúnem

em um círculo e ele “abre para o debate”, como diz gostar muito de fazer. Ainda

sobre este último, ele afirma, solidário com os alunos: “valorizo mais quando o aluno

se preparou mesmo. No trabalho em grupo, não dou nota vermelha, porque eu estou

forçando a barra com ele para falar e sei como é ser tímido”.

William tem, também, um outro modo de trabalhar herdado da época de

estudante: começa o ano fazendo uma revisão do conteúdo do ano anterior, revisão

esta que dura geralmente um mês e meio e para o qual usa um “gráfico-mapa” criado

por ele. Do mesmo modo, começa toda aula fazendo uma revisão da anterior. Isto

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porque acha importante os alunos se situarem sobre o assunto, embora aconteça de

durante essa revisão ele perceber que muitos não entenderam e ele tem “que dar a

aula de novo”.

William diz que é bom ser professor porque é a sala é um dos poucos lugares

em que ele se “solta mesmo”, “às vezes, até demais”:

eu ando para cá e para lá, não fico parado não. Vou lá no meio, falo alto. Paro. Eu sou tímido, mas dando aula eu falo bastante. Conto piada. Estou sempre provocando os alunos para ver se eles participam. Às vezes, ele não está nem atento e eu pergunto: “o que acabei de dizer?” Fico provocando e, às vezes, falo uma besteira no meio da aula para ver se alguém percebeu . Quando ninguém percebe, eu brinco: “então, podia ter mandado todo mundo sentar a cabeça na parede do lado de lá que todo mundo ia”. Faço essas coisas assim.

E completa, entusiasmado: “Eu gosto do contato direto com o aluno. (...) Quando

você pega uma turma que se envolve, é muito bom!”. Trabalho dinâmico, nada

repetitivo, bem diferente, recorda-se ele, do antigo trabalho monótono na fábrica.

Mas nem sempre foi fácil assim. Dois anos depois de formado, foi convidado

para assumir todas as turmas de História de um colégio particular na zona urbana,

onde está até hoje (além de ter três matrículas no estado). A dificuldade inicial esteve

relacionada à timidez, e ele “lia quatro ou cinco vezes a mesma coisa antes de dar

aula, à noite, em casa”. E reconhece que foi nessa época que aprendeu todo o

conteúdo de História, que “aprendi muito mais dando aula que na faculdade. (...) Na

faculdade os conhecimentos são muitos específicos. Fui aprender coisas que nem de

perto alguém mencionou na faculdade”, reflete o professor. Na faculdade, segundo

ele, “você trabalha autores, textos, mas você não tem uma panorâmica geral da

História não”.

Isso no que se refere ao conteúdo, mas também à metodologia, embora esta ele

acredita ter aprendido também consultando a mulher: “na verdade, foi a questão

prática mesmo. Eu comecei a dar aula de um jeito, fui me adaptando, tentando

melhorar, porque acharam que não estava bom. Na escola particular tem muita

pressão dos pais. Eu fui mudando”.

Com cinco anos de formado, William diz ter aprendido muito de história do

Brasil, em um curso de pós-graduação oferecido pela UFF na cidade vizinha, quando

“pessoas que eu tinha como ídolos, os autores, vieram e eu pude conhecê-los de

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perto” recorda-se emocionado, ao concluir que esta foi a época de maior investimento

na carreira docente. Do orientador da monografia ganhou, além de uma boa nota,

também o conselho para que fizesse mestrado, um sonho que hoje acompanha sua

vida de professor. Além deste, o professor deseja poder um dia ministrar apenas aula

sobre história do Brasil para ensino médio.

Atualmente, ele se sente sobrecarregado, com catorze turmas a partir da quinta

série. E acha “massacrante” quando tem que falar a mesma coisa em três quintas

séries seguidas, ou, ainda, quando dá aulas das 7 da manhã às 5 da tarde: “em pé o dia

inteiro e falando. Às vezes, atrapalha, e a cabeça da gente dá aquele nó”, desabafa

William.

Entretanto, o pior da profissão é citado como extraclasse, mas, na continuação

da reflexão, William faz uso da “estratégia do relacionar”, e conclui que:

O desencanto tem a ver com a desvalorização profissional e o corre-corre para se ter um salário melhor. Tem dia que o corpo não está mais obedecendo e você tem que...eu não sou de me entregar à toa, então, eu vou, mesmo sem ter condição estou trabalhando, não sou de faltar. (...) O ideal seria ter salário razoável para trabalhar em uma escola só, porque aí até o envolvimento seria maior. Aí, eu já não acharia tão chato ir às reuniões, ter que trabalhar numa festa (porque eu acho chato). (...) Se eu trabalhasse numa escola só, era uma festa só, uma reunião só.

William foi trabalhar no colégio Viola com as turmas a partir da sétima série, há

dez anos atrás, por indicação de sua mulher, então professora lá. Afirma ter uma

relação muito boa com seus colegas, que o consideram “caxias” (sempre ele cumpre

horários e regras), e também com dona Clair, por (e de) quem sente muito respeito,

apesar de achá-la muito desanimada nos últimos anos, uma vez que sempre que os

professores sugerem alguma coisa ela diz: “não, meu filho, é assim mesmo.”.

William lembra que a maioria dos seus alunos são pobres, filhos de

agricultores, com quem eles pouco conversam sobre a escola, pois “o homem do

campo, o homem rural, tem dificuldade de ser expressar emocionalmente, de viver a

afetividade”, o que torna a comunicação da escola com os pais “muito precária”. O

professor, ainda, crê que os alunos o consideram exigente, têm-lhe muito respeito e,

alguns, simpatia “porque consigo entrar mais no mundo deles”. E completa que “ (...)

a garotada de lá é muito boa, porque o Viola tem uma coisa que outras escolas não

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têm: a escola é o ponto de encontro deles. Por causa das distâncias, eles não têm

muita diversão. Aquela escola parada, para eles é uma monotonia. É o ponto de

encontro e (...) eles respeitam mais a escola. E conseqüentemente o professor”.

Além do lugar do encontro, o Viola aparece, para a maioria dos alunos, como o

“espaço para se comunicar com o mundo”, pois eles vivem numa pequena

comunidade, em casas distantes, e onde não se tem muito que fazer, além de

trabalhar: “Onde ele teria contato com o computador, se não fosse lá? Onde alguns

teriam contato com filme (não os de massa, que passam na TV)?”, conclui ele.

Entretanto, pensa que o perfil do alunado está mudando, pois eles estão

passando a descumprir regras essenciais para o funcionamento da escola,

apresentando alguns problemas de indisciplina. Sem citar nomes, William

responsabiliza alguns professores que não cumprem com seus alunos o que foi

tratado. A mudança se refere, ainda, à quantidade cada vez maior de alunos, mesmo

nas séries finais do Viola, e o professor diz ter dificuldade em lidar e “entrar no

mundo” de pessoas muito diferentes.

Para William, a finalidade principal da escola e do professor, mais do que

ensinar conteúdos é formar cidadão, este um ser humano com valores éticos e

religiosos, um comportamento de solidariedade com as outras pessoas, porque “num

país como o nosso se não for solidário...”.

Ao exercitar a memória, William se lembrou de uma lenda existente na região

de Vista Alegre, que é a história da Chica Cebola, uma andarilha do início do século

passado, que enlouqueceu após o parto de sua filha, e vivia pelas pedreiras da região

carregando a criança num balaio. Atualmente, quando os pais querem assustar uma

criança dizem: “se você aprontar, a Chica Cebola vem te pegar”. William descobriu,

depois de muito “usar a razão e a lógica”, que a criança do balaio, criada depois da

morte de Chica Cebola por uma família do local onde ele nasceu e mora atualmente,

era a sua avó. E é com lágrimas nos olhos que me conta, com orgulho, que costuma

se apresentar às crianças do colégio Viola como “o bisneto da Chica Cebola”. E

finaliza a nossa conversa dizendo: “Tenho esse vínculo com Vista Alegre, essa

história da Chica Cebola”.

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Jéferson: um rigoroso na contra-mão Jéferson tem 52 anos, é professor há trinta, metade dos quais na escola-da-

dona-Clair40. Embora tenha nascido no centro urbano do município em uma família

de classe média, ele morou em um sítio em Vista Alegre, depois que o irmão gêmeo

morreu atropelado aos 4 anos de idade, em frente à casa onde ainda mora. A mãe, que

Jéferson também perdeu aos 13 anos, é considerada uma “pessoa maravilhosa”, de

quem ele “angariou” tudo que tem de bom, toda a sua formação moral e ética:

“dignidade, honradez, verdade, ser justo”. Além disso, é descrita como uma pessoa

muito culta, que falava francês fluentemente, e que trabalhou por um ano como

professora em Vista Alegre, ainda que, por problemas financeiros, tenha tido que

“aprender a ser dona de casa, cozinhar e a cuidar dos filhos pequenos”.

Foi também por problemas financeiros que Jéferson resolveu ser professor,

porque, ao terminar o ginásio, não sabia o que estudar e fez o curso Normal, como

algo provisório, porque o magistério era uma “profissão que era vista naquela época

como uma profissão feminina. O homem destoava neste aspecto, principalmente de

primeira à quarta”, narra ele. Entretanto, ao se iniciarem as aulas práticas, ele

conseguiu “manter a turma em silêncio, sob controle”, quando, então, descobriu que

“tinha alguma queda para a profissão”. Usou naquele dia “a tática do Pedrinho, um

professor de Matemática que era competente, mas tinha um controle de classe que era

uma coisa fantástica”.

Com essa experiência, Jéferson viu “que era capaz”, e “por essa capacidade eu

passei a ter gosto, porque a gente só gosta daquilo que sabe fazer”, reflete ele. O

professor revela de cara o “estilo Jéferson” de ensinar, pois até hoje diz precisar de

silêncio para dar aulas e só permite conversas entre os alunos sobre a matéria. E

continua a narrar que o “professor-espelho” tinha “ (...) a questão da autoridade.

Competência em administrar a aula e controle da classe que ele possuía de saber o

que estava acontecendo e não deixar que houvesse tumulto, conversa paralela.

Conseguia manter a atenção, porque ao mesmo tempo em que ele era carinhoso ele

40 O professor Jéferson me recebeu na sala de estar de sua antiga e silenciosa casa de muitos cômodos no centro da cidade, construída no início do século passado, onde morou com seus pais e irmãos toda a vida, e onde reside atualmente sozinho com sua mulher, a professora Pilar, tia das professoras Tarsila e Iara.

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não deixava a coisa partir para alguma coisa que estivesse fora daquele contexto que

ele estava ensinando. Isso me influenciou muito”.

Mas o estilo de ensinar foi adquirido em várias “sínteses” durante a longa

carreira de professor (“é uma coisa curiosa: a gente é uma síntese de tudo que vai

passando”, reflete ele), iniciada após concurso público, em uma escola rural distante

(cujo transporte de acesso tomava metade de seu salário), na qual dividia com mais

uma professora as turmas mutisseriadas e a direção.

Ao ser “jogado na escola” com tantas funções para as quais não estava

preparado, Jéferson fala da óbvia dificuldade inicial, de como a comunidade rural era

“muito integrada à escola”, mas “desconfiada” no início da relação, tendo passado a

lhe dar apoio quando percebeu que ele era uma “pessoa com muita integridade e que

queria trabalhar”. E essa escola rural “tornou-se um segmento de casa”, um ambiente

que se transformou em “uma parte de minha vida”, conta ele. Aqui, mais um

ingrediente pessoal se mistura, que é o fato de Jéferson ter se casado com a professora

Pilar, que levou para trabalhar na escola quando a outra professora se aposentou:

“ficou uma coisa muito boa, porque além de ter a integração com a comunidade,

houve uma integração óbvia e clara entre os professores”, comenta ele, entre risos.

Uma experiência que durou até Jéferson terminar a faculdade de História41 e ir

trabalhar com o segundo segmento do ensino fundamental, na escola-da-dona-Clair.

A carreira profissional corre paralela à formação acadêmica. Já trabalhando na

primeira escola, ele resolveu fazer a faculdade, porque “desde cedo tinha uma queda

para a História”, disciplina em que sempre teve as melhores notas. Aliás, ter boas

notas foi uma realidade da sua vida escolar: conta, orgulhoso, como passou em

primeiro lugar no vestibular, para o qual se preparou cursando todo o antigo científico

novamente.

Além da faculdade, iniciada aos 28 anos, Jéferson passou em um segundo

concurso para o magistério estadual e assumiu uma nova matrícula em outra escola

também rural, muito mais distante de sua casa42. Conseguiu conciliar porque fez a

41 Na mesma instituição particular onde Isaura e William se formaram. 42 A rotina deste período era descrita como de muito sacrifício, pois ele ia de ônibus e a pé para uma localidade durante a manhã, onde almoçava, de onde partia para a outra escola de condução paga,

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faculdade devagar e, mais, porque não tem preguiça, o que costuma sempre contar

aos seus alunos, com orgulho. Há dois anos, cursou, ainda, uma especialização em

História numa outra faculdade particular do centro norte fluminense, que, entretanto,

deixou muito a desejar não somente em termos acadêmicos, mas também porque até

hoje o Estado não incorporou a subida de nível ao salário do professor (“o Estado é

muito moroso na hora de pagar, embora seja rápido na hora de descontar”, comenta o

professor).

Jéferson chegou ao colégio Viola para ser colega da (já conhecida da pesquisa)

professora Jô, de História, que lecionava às turmas mais adiantadas. Depois que esta

saiu da escola, ele assumiu todas as turmas até a chegada do professor William, com

quem faz uma dobradinha atualmente também em outra escola pública43. Jéferson

prefere dar aulas para as turmas de sétima e oitava, preferência para a qual tem duas

justificativas. A primeira tem a ver com um jeito “rigoroso” de ser, que dificulta o

relacionamento inicial com alguns alunos (“passo mais a idéia de meu rigor do que de

minha amizade”). A segunda relaciona-se com o despreparo acadêmico dos alunos de

quinta e sexta-série para lerem e interpretarem a História, cujo conteúdo é história

antiga, medieval e brasileira (até a colonização): “como vão aprender História, se

História é interpretação? Não é ‘decoreba’. É você estudar o fato e ter uma análise

crítica sobre aquilo que estudou”, acredita ele.

Jéferson já usa a sala dos computadores para realizar pesquisas na internet e

costuma buscar fazer o aluno entender como “a História é uma matéria muito

dinâmica e atual, que está sempre em evolução”, pois um fato antigo pode ser

transportado, em uma circunstância diferente, para a atualidade.

Apesar de acreditar que é “uma síntese de tudo que vai passando” pela vida,

contraditória e complementarmente, Jéferson também afirma que, desde adolescente,

aonde chegava “a tempo de colocar as crianças para dentro” e dar mais 4 horas de aula. Ao fim do dia, voltava para a cidade, de onde pegava um ônibus para uma outra cidade a fim de cursar a faculdade. 43 Neste período, fez novo concurso para o magistério estadual e, por ter sido “muito bem colocado, modéstia à parte, o terceiro lugar na região serrana”, pode transformar a matrícula mais nova em professor I, e, ainda, escolher onde ia trabalhar, quando optou por dar aula de quinta à oitava também nessa outra escola. Ele diz que não queria ter que fazer planejamento de quinta até segundo grau, como estava fazendo em Vista Alegre com a saída da professora Jô. Atualmente, leciona às quintas e sextas séries na escola-da-dona-Clair, e de quinta à oitava na outra escola.

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foi fazendo as suas opções por si mesmo: “sempre fui uma pessoa muito fechada, de

poucos amigos, adoro ficar sozinho, em casa”. Ele se autodefine como “sério,

exigente e rigoroso”, mas que também sabe criar um “ambiente amigável, de

concórdia” na sala. Resumindo, “eu brinco, mas na hora de falar sério, vamos falar

sério”.

E ele fala a sério de como é “daqueles que ainda querem (...), contra tudo e

contra todos, uma escola séria. Que ensine, que cobra e que forma. Que dá o mesmo

conteúdo de uma escola particular”, em que pese o fato de que “o Estado tenha

perdido a vontade de fazer uma escola pública de qualidade”. E se sente na

“contramão do ensino atual” e pensa que aqueles colegas de trabalho que procuram

passar o aluno independente do conhecimento não lhe vêem com bons olhos. Acredita

que está formando pesquisadores de História e diz usar freqüentemente com os

estudantes mais avançados o antagonismo da sua própria figura (sério e amigo), para

fazer-lhes entender a importância de “ouvir várias fontes”, “analisar a particularidade

de opiniões”, antes de se formar uma idéia.

A escola tem como função formar o cidadão, “aquele que sabe dos seus

direitos, que sabe que vive em uma sociedade injusta e que vai lutar, dentro do

contexto democrático, para transformar essa sociedade. Esse é meu ideal do projeto

de formação de cidadania.”. Além da possibilidade de formar cidadãos, para ele é

bom ser professor porque pode aproveitar sua profissão “para formar espiritualmente

a pessoa”. E completa: “eu não estou querendo que ele seja o católico apostólico

romano. Eu quero que ele dê valor, no sentido que a vida dele vai continuar (...). Eu

quero tirar da criança a visão materialista, de que o mundo foi, o mundo acabou.

Porque eu creio na ressurreição”.

E diz crer, ainda, que a importância de ser professor é exatamente porque ele

“lida com seres humanos, seres eternos, que são os mais importantes da face da

Terra”. Assim, a exigência do trabalho é grande e está diretamente relacionada aos

valores que o professor tem. Os seus próprios, alguns dos quais aprendidos com a

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mãe e já citados no início, passam pela honestidade no trato com os alunos e no

cumprimento dos deveres, este adquirido na relação com o pai, segundo ele44.

E é esta pessoa inteira que entra para dar aula. E que afirma não conseguir

deixar despercebida a falta de atenção ou de respeito de um aluno: “se o aluno quiser

bagunçar, ele não consegue porque ele me tira do sério fácil, fácil”. E adiciona que,

embora cobre do seu aluno, que ele considera não um coitadinho, mas alguém pronto

a aprender, ele procura “fazer a coisa direita”. E completa: “no magistério, você sabe,

quando se faz com dedicação, se perde muito tempo, se trabalha muito”.

Por isso, ele se sente sobrecarregado de trabalho, embora lembre que já foi pior,

porque já esteve mais rigoroso45, quando queria mostrar aos alunos que pode exigir

porque faz a sua parte: “Têm até pessoas que não cobram dento do magistério, porque

não têm o que cobrar. O meu rigor da cobrança é justificado pelo meu empenho”.

Jéferson faz três avaliações diferentes, prova escrita, teste, debates, e acredita

que “o aluno que estuda para pelo menos duas avaliações vai se sair bem". Diz

valorizar o trabalho em grupo, mas acredita que a avaliação tem que ser individual, e

que se “conhece pela prática que a gente tem quem é bom e quem não é, quem estuda

e quem não estuda”. E também é pela prática que “você vê até o que gosta de você e

o que não gosta”. Ainda em relação à avaliação dos seus estudantes enquanto pessoas

e às maneiras de sua socialização, o professor crê que o aluno “é forjado na escola,

mas principalmente em casa” e que é raro se ter o ideal de aprender quando a família

não valoriza.

O professor fala de como Vista Alegre “é uma comunidade muito fácil de se

trabalhar, coesa, pequena”, mas destaca uma mudança no perfil do alunado e da

comunidade, ocorrida “com o progresso”. Quando chegou na escola, há 15 anos atrás,

Vista Alegre tinha luz, mas a estrada não era asfaltada e as pessoas que moravam na

vilazinha costumavam se visitar à noite. Com a chegada do asfalto, em 1998, e, 44 Ainda sobre a influência dos pais em sua formação ética, Jéferson afirma: “sou uma pessoa por parte de pai (...) e por parte de mãe (...). Meu temperamento tem essas duas características: ao mesmo tempo em que tenho tranqüilidade, também tenho pavio curto. Eu sou muito explosivo”. 45 Ele lembra que chegou “ao cúmulo de fazer um mapão com todos os objetivos que o aluno acertou ou errou e, ao final do ano, fazia uma prova individual de recuperação anual”, liberando o aluno de responder às questões cujos objetivos ele já tinha atingido. Agora já não há mais essa prova cumulativa do ano inteiro, que ele reconhece ter sido “uma coisa de louco”.

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depois, com o loteamento, vieram muitas pessoas de fora, o que muda a “mentalidade

da formação da própria escola”: “antes era mais fácil, mais prático”, pois havia mais

integração, disciplina e coesão” entre alunos e professores segundo ele.

Jéferson reclama que dona Clair “devia ter procurado manter a integridade e a

união”, mas que ela “não é de tomar muito as rédeas da escola”, não consegue manter

a disciplina, embora a escola “seja fácil em termos de disciplina”: quando há aulas

vagas, os estudantes ficam do lado de fora fazendo barulho, o que atrapalha muitas

vezes sua aula e lhe dá dor de cabeça. Embora o professor acredite que não é “o tipo

ideal para ela, porque ela vê o aluno como um coitadinho que tem que ser aprovado”,

pensa que dona Clair o considera uma pessoa séria, um professor que raramente falta

ao trabalho. O professor admira a calma da diretora, uma pessoa “que nunca fica

preocupada se tem muita coisa para fazer e sempre mantém sua autoridade”.

Quanto ao momento atual da carreira, Jéferson se sente desencantado, pois “vê

a educação caminhando cada vez mais para uma maior penúria, com pouco

investimento, de não se saber o que se fazer na escola (...)a gente quando começa

sonha que um dia vai melhorar. Eu comecei a dar aula a gente estava no regime

militar. Eu achava que de uma forma ou de outra a nossa profissão ia melhorar”.

Ele não se refere apenas ao salário, mas principalmente à formação do

professor, ao acompanhamento e à avaliação pelo Estado. Sobre esta, critica a falta de

critérios do Programa Nova Escola e comenta: “Eu falo para o meu aluno: ‘eu fecho a

porta aqui e eu posso fazer o que eu quiser, até brincar de roda com vocês’. Eloiza, eu

queria viver num país onde o cara que te pagasse te cobrasse”.

Em relação à formação, Jéferson lembra que “a profissão é injusta”, uma vez

que até para ler o professor tem pouco tempo, porque a preparação de aulas tira um

tempo de investimento na própria formação. Por isso, ele diz que “lê em partes: levo

muito tempo para ler um livro. Jornal, eu não tenho assinatura (...) mas meu irmão

tem. Eu chego lá, dou uma folheada e já acabou o tempo. (...) E na época de prova,

nada de sítio”, cuja visita (para “mexer com mato”, fazer atividade física,

“extravasar”) é atividade favorita. Ele também gosta de ler e de “mexer com

máquinas antigas”: “eu sou metido a consertar as coisas”, revela ele.

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Apesar do desânimo, o professor revela: “queria, aos 30 anos de profissão, é

estar aposentado de uma matrícula e ficar com uma só. Seria muito mais prazeroso,

eu investiria muito mais na formação, poderia me aplicar mais, além de fazer as

outras coisas que eu gosto”.

Termino com uma idéia recorrente na narrativa de Jéferson: a afirmação de que

investe diariamente no pensamento de que está fazendo um trabalho que está cada vez

mais em desuso, mas que ele está fazendo o que acha justo.

Henrique: o amigo sério e organizado

Henrique é o nome de batismo do professor de inglês de todas as turmas a partir

do sexto ano da escola, conhecido por todas as pessoas por um apelido, o que o fez

escolher apresentar-se na pesquisa “simplesmente pelo nome de batismo”. Nasceu e

mora no centro urbano do município há 46 anos, foi contador da prefeitura municipal

por sete anos antes de se tornar professor, há 22 anos, 16 dos quais completados na

escola-da-dona-Clair. Apesar da distância, o professor diz que vai para Vista Alegre

muito satisfeito, pois sente muito carinho por dona Clair, uma pessoa muito

conciliadora (e que acredita vê-lo como um filho) e gosta muito do corpo docente e

discente da escola, que considera muito comprometido, porque faz a coisa com

seriedade: “nosso professor tem esse perfil da tranqüilidade de dona Clair, de estar

sempre lá. Eu vejo histórias de professores fora que faltam muito. Lá a coisa funciona

direitinho. Lá uma vez ou outra falta professor”. Só reclama um pouco das reuniões

dos professores da escola, porque, embora reconheça a importância desses momentos

de interação para a visualização do todo, acha que eles acabam sendo desnecessários,

já que “a gente perde esse espírito e acaba falando muito em nota”, reflete ele.

Henrique afirma nunca ter sentido monotonia durante o exercício do ofício e

reconhece ainda estar investindo na profissão. Não se sente sobrecarregado de

trabalho, pois vive atualmente com sua mãe viúva, uma senhora idosa que saiu da

roça para trabalhar como empregada doméstica na zona urbana, onde se casou com

um motorista do supermercado da cidade, e virou dona de casa. Ambos os pais

estudaram até a terceira-série primária. A infância foi “super tranqüila”, e o professor

dividia as brincadeiras na rua (“não tinha essa de ficar em casa, não tinha televisão e

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o que tinha que se fazer era brincar muito, de manhã, de tarde, de noite” recorda-se

ele), com os estudos, feitos até a oitava série em escolas públicas e completados com

a freqüência a escolas particulares, tanto no curso de contabilidade, como no Normal

e, depois, na faculdade de Letras.

Henrique conta que detestava Matemática e Física, motivo que dá para

justificar não ter passado para o vestibular de Medicina, momento a partir do qual

começou a trabalhar e a sustentar seus estudos, inclusive de línguas (inglês, francês,

espanhol e alemão), pois tinha esperanças de ser comissário de bordo, desejo que

acalentava desde menino, para poder “viajar, conhecer outras pessoas, outras

culturas”, lembra ele. Nesta época, embora já formado no curso Normal, costumava

dizer que não queria ser professor. Entretanto, ao perceber que a carreira de

comissário era inviável para um rapaz do interior que tinha que trabalhar para se

sustentar, resolveu abandonar o emprego de contador, com um bom salário, e passou

dois anos dando aulas particulares. Até que fez o concurso público para o magistério

municipal, em 1989, e foi trabalhar no colégio Viola, como professor de terceira e

quarta-séries, conveniado com o estado. Em suas palavras:

Parece que eu tinha nascido para aquilo: adorei! De imediato, adorei. (...)Tudo era bom: o contato com as crianças todos os dias, aquela coisa. (...) Eu não fiz o concurso como o sonho de minha vida. Eu fui gostar do magistério depois que comecei a trabalhar. (...) O que me encanta até hoje em ser professor é o fato de você ter o contato com o aluno diário e você saber que um dia é diferente do outro. E você ter o retorno: você sentar, preparar um exercício, uma prova, uma atividade, pensando naquela sua turminha, naquele seu aluno. Você pensa nele, faz pensando neles, e o retorno é imediato. Você fez e voltou satisfeito. Foi bom e valeu a pena ter ficado preparando isso. Um ano depois, já transferido para uma outra escola rural municipal nas

imediações de Vista Alegre, Henrique conta da dificuldade de acesso (uma hora de

caminhão de leite em estrada de chão, somada a hora e meia de subida a pé) e do

medo que tinha de cobras (diariamente, “fazia uma oração para são Bento e subia”,

lembra ele emocionado). Mas o maior desafio foi assumir nove alunos em uma turma

multisseriada de alfabetização e primeira série, vencido com a “busca de livros e

aconselhamento de outros colegas de fora”.

Dois anos mais tarde, e com mais uma aprovação em concurso público para o

magistério estadual, Henrique estava de volta ao Viola, chamado pessoalmente por

dona Clair, desta vez como professor de Inglês, pois já estava cursando a faculdade.

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Lembra que mesmo antes de trabalhar lá tinha ouvido falar que os “alunos eram

diferentes, mais interessados, mais prontos para receber informação. Disciplinados

até”. Acha que, com o passar do tempo, “alguma coisa mudou”, pois eles “estão

chegando na quinta série mais novos” e é “como se já estivessem na escola há um

tempão”, o que os fazem menos “retraídos”. Percebe também mais uma mudança no

alunado, que “está mais crítico, mais ligado, mais por dentro das coisas”. Entretanto,

apesar das mudanças, eles “estão sempre interessados, prontos. Tudo que se propõe

eles fazem, numa boa. Gostam do que fazem. Você não vê expressão de desagrado”,

reconhece ele.

Isso porque a escola é um local importante para a maioria dos estudantes, “um

lugar em que eles se encontram, fazem amigos, arrumam namoradinhos e

namoradinhas. (...) Eles não têm outra opção: ‘estou aqui e é aqui que quero estar’.

(...) Acho muito bonitinho ver nosso aluno do ensino médio chegando quinze para

meio dia (...) todo arrumadinho, de uniforme direitinho”, completa Henrique.

Acredita que os estudantes o reparam muito e o consideram bastante

organizado. Ele se reputa, ainda, “muito metódico” (sempre cobra prova assinada

pelos responsáveis) e “muito bem humorado”, características que reconhece ter

herdado de alguns “ótimos professores” que teve durante seu percurso escolar, muito

exigentes, com quem aprendeu muito e “que pareciam gostar muito do que faziam”.

Henrique sempre começa a aula dando uma volta pela sala e arrumando-a (não gosta

de aluno encostado na parede, nem de quadro sujo, e gosta de trazê-los o mais para

frente possível), momento em que também cumprimenta os estudantes e faz

brincadeirinhas. Depois, reza uma oração, o que o fez ouvir a brincadeira do

estudante de que “reza um terço por dia”.

Uma vez que reconhece que a língua estrangeira é muito diferente para seus

estudantes, Henrique tem diversos métodos de abordagem do conteúdo: trabalha

“muito com texto, com vocabulário e com autoditado para os mais novos”;

geralmente faz uma contextualização (para “buscar as informações que eles têm”),

depois uma pré-leitura (com a “identificação de palavras transparentes”), a partir de

quando os estudantes discutem o tema com os colegas e terminam o trabalho com

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uma fase escrita; a gramática normativa é trabalhada do modo tradicional, com

apresentação e exercícios individuais de fixação com autonomia.

Henrique ressalta a sua presença constante para mediar a aprendizagem:

“durante as aulas não sou de sair de sala toda hora, pois quero que o aluno possa

contar comigo e não levar dúvida para casa. ‘Vamos entender agora o que estamos

fazendo’. Minhas aulas rendem muito”. Pergunto-lhe o que isto significa ao que ele

responde que sente que a aula rende quando corresponde ao planejamento, feito uma

vez por semana, para todas as turmas da escola-da-dona-Clair, para a outra escola

estadual e para a escola particular em que também leciona.

Quanto à avaliação, o professor afirma buscar aferir “a questão do estar

aprendendo, sabendo fazer” e levar seus alunos a viverem o “momento prova” da

forma mais agradável possível. Para isso, proporciona várias oportunidades de

encontro com a língua, antes de realizar um exercício valendo nota.

O cuidado na relação com os estudantes é explicitado em outros momentos,

especialmente quando ele fala dos laços de amizade e de afetividade que cria com

seus alunos, mais fortes do que os que tem com muitos parentes. Porque se não

podemos escolher os parentes, os estudantes, ao contrário, são pessoas com as quais

nos identificamos no convívio diário, que passam a se conhecer e de quem nos

tornamos amigos: “essa é a satisfação de ser professor, de estar no magistério. Gosto

demais!”.

Adiciona, também, que embora o professor tenha uma formação acadêmica,

um. plano de curso a cumprir, toda a burocracia de escola, ele cria laços de

afetividade e de cumplicidade com a turma, o que o faz entrar na sala com sua

matéria e com o seu jeito de ser. Segundo Henrique, as exigências do exercício do

ofício são “acima de tudo, a verdade, a transparência, nunca mentir para o aluno. Ser

você mesmo”. E ser capaz de “sacar o aluno”, saber o que ele está sentindo e

precisando. Ele lembra que os antigos alunos primários dos anos de 1980 eram mais

dóceis e recebiam como o máximo qualquer atividade proposta. Atualmente, com os

estudantes mais velhos, o professor tem prazer em contar suas experiências, e que o

adolescente gosta de ouvi-las: “você vê que o aluno ainda te vê como aquele que está

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ali te ensinado uma coisa, que ele pode perguntar, que na medida do possível a gente

pode bater um papo legal”.

Se diz se sentir valorizado pelos alunos e seus pais, afirma também não sentir o

mesmo em relação ao “patrão”, o que não chega a incomodar, mas que reconhece

“que não faz bem”. Além de um processo de enquadramento profissional que se

arrasta por dez anos na Secretaria Estadual de Educação, Henrique reclama da falta

de reajuste salarial e da injustiça da comparação entre colegas professores promovida

pelo Programa Nova Escola, embora acredite que este não teve nenhum impacto no

seu trabalho:“acho que não é uma avaliação tão séria a ponto de eu me preocupar com

essas notas”.

Henrique vê o papel do professor na atualidade de modo duplo. Por um lado, há

o trabalho acadêmico, o cumprimento o programa, a passagem de informações dentro

da área do conhecimento. Mas, embora ele mesmo considere “meio utópico”, pensa

que o “papel principal é justamente este aspecto humano, de ser um formador de

pessoas dignas”. E exemplifica desta forma: “Eu sou o tipo do professor que se o

aluno vê um erro de correção meu na prova eu dou o ponto para ele. E se ele vê que

eu corrigi errado e é para diminuir eu não diminuo, porque o que vale é a

honestidade”.

Maísa: a professora enérgica e carinhosa

A professora Maísa tem 39 anos, dezoito de profissão, dez dos quais exercidos

na escola-da-dona-Clair, onde já ministrou aulas de Artes para todo o segundo

segmento do ensino fundamental até o ensino médio. Como é professora de nível II e

estava desviada de função, perdeu a vaga para uma professora concursada que chegou

há alguns anos, e atualmente dá aula de Artes apenas para o sexto e sétimo anos do

ensino fundamental na escola46.

Maísa começa me contando sobre sua infância vivida no centro da cidade e em

46 Nossa conversa aconteceu durante uma aula vaga da professora, no pátio da escola, longe de todos. Apesar da condição meio improvisada, considero que foi muito proveitosa, pois Maísa foi se soltando durante a entrevista, passou a rir e a alargar suas memórias, além de que fez comentários sobre as perguntas formuladas (“tuas perguntas são muito difíceis!” ou “que pergunta, hein? Você é muito esperta!”).

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um sítio próximo, onde seu pai trabalhava como lavrador, e sua mãe, como dona de

casa. Ambos estudaram muito pouco, assim como seus irmãos, que cedo

abandonaram os estudos. Ela é a única pessoa da família que cursou até a faculdade.

Revela que sempre desejou estudar, porque é uma atividade de que gosta muito, e se

recorda dos antigos professores com muito carinho. Depois de completar o ensino

médio e o curso Normal em uma escola pública, ficou um tempo sem freqüentar

escola até optar por cursar a Faculdade de Artes, em uma universidade particular aos

fins de semana, em Niterói, seguida de uma pós-graduação em artes plásticas, esta

feita “apenas para constar”. A faculdade, por outro lado, “ajudou muito” no acesso

aos materiais de trabalho, livros, e esta época é considerada como de maior

investimento na carreira. Entretanto, ela acredita que o curso não tenha contribuído

muito para a sua prática na sala de aula, experiência que Maísa tem desde os 18 anos

de idade.

A entrada na profissão se deu por falta de opção e porque Maísa precisava

ganhar dinheiro. Se pudesse escolher, teria sido nutricionista, já que diz que “a

alimentação é tudo nesta vida”. Começou dando aulas na escola-da-dona-Clair, para

uma “maravilhosa turma de alunos gracinhas” de segunda série. Depois, já

concursada e com uma segunda matrícula, trabalhou em outras escolas rurais. Fala

com empolgação de como era cheia de sonhos com melhores condições de trabalho

docente. E completa, frustrada, sobre o atual momento da carreira: “com o tempo,

com a desvalorização, a gente vai perdendo o encanto. (...)A gente vê que o

profissional que faz não tem valor, o que não faz também não tem. A gente acaba

desanimando. Eu ainda não desanimei de trabalhar ainda não”.

Das professoras que teve, lembra-se especialmente de duas, com quem se

identificou pelo “modo enérgico”, mas ao mesmo tempo amigo dos alunos; pelo

“jeitinho organizado e calmo”, de que nunca se esqueceu. E completa que acha que às

vezes é exigente até demais, mas que é uma forma de valorizar o que trabalha, porque

Artes é matéria que não reprova e se não insistir e mostrar a importância, os

estudantes não fazem nada, “acham que estão na hora do recreio”. Ao mesmo tempo,

afirma ser carinhosa e acolhedora com seus estudantes, que considera, entretanto,

muito mudados nos últimos cinco anos. Para ela, que está na escola há muito tempo e

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que já foi professora de todos eles, “agora, eles não têm mais empolgação”, “fazem

de qualquer jeito”. Segundo ele, “os [alunos] de antigamente te encontravam na rua

(...) A relação que existia era de amizade mesmo: eles te cumprimentavam,

valorizavam o professor. Hoje isso não acontece, porque há coisas muito mais

interessantes do que vir à escola. Antes, a escola era um ponto de encontro. Acho que

isso não está acontecendo mais. Vir à escola está sendo uma coisa chata, enjoada”.

“Enjoada” para todos os sujeitos envolvidos no processo educacional, pois

Maísa considera que “a escola está assoberbada” e que sua principal função, que é de

ensinar conteúdos, está se perdendo: “Você tem que ser responsável por tudo:

educação ambiental, sexual, tem que falar sobre drogas, educação de trânsito”. Isso

para não falar da falta de autoridade do professor, que não pode sequer tirar um aluno

inconveniente da sala.

O quadro desanimador se completa com as condições atuais da escola-da-dona-

Clair, referida como desorganizada e largada, sem material suficiente para o trabalho

escolar. Maísa diz “respeitar dona Clair”, mas se sente injustiçada e sem apoio por

parte da direção, que escolhe alguns professores e passa a mão na cabeça dos

estudantes. Este é o motivo que ela dá para o aumento da falta de respeito e de

disciplina por parte do alunado, que parece pensar: “eu posso fazer o que quiser, que

não vai acontecer nada comigo”, reflete ela.

Por outro lado, Maísa gosta de trabalhar na escola de Vista Alegre, situada a

mais de 20 km de sua casa, porque seus estudantes ainda são os mais interessados que

ela tem e porque os professores são amigos, se preocupam um com o outro, ou seja,

mantêm entre si uma relação “muito diferente das outras escolas” em que ela trabalha.

A professora não considera ter um estilo pessoal e único de ensinar. Mas dá

algumas dicas de como se preocupa em fazer do ensino das Artes algo sério, que tem

um conteúdo importante, que vale ser conhecido. Para isso, é exigente nas avaliações

(produções artísticas dos estudantes), tenta atrair a atenção com muitas fotos de obras

de artes, procura dar atenção a todos durante as tarefas práticas, que são mescladas ao

conteúdo mais teórico.

Maísa revela durante a entrevista que desenha com lápis e que, no futuro, quer

estudar pintura a óleo. Sente-se muitas vezes realizada com as produções de seus

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alunos do Viola, elemento, aliás, destacado entre outros como a parte boa do ofício

docente, cuja narração termina assim: “o lado bom de ser professor é esse contato

com o aluno, de você sentir o seu trabalho ali. Você saber que está levando alguma

coisa de novo para ele. Coisa que ele nunca (ainda mais esses daqui, que têm menos

acesso), nunca poderia imaginar que você está ali para mostrar isso. Isso é bom!”.

Pilar: a comportada, cujo umbigo está enterrado na escola

A professora Pilar47 se apresenta como a pessoa que “tem o umbigo enterrado

na escola-da-dona-Clair”, já que nasceu no cômodo onde hoje é a cozinha da escola,

em 1962, época em que seus pais eram zeladores da instituição e lá moravam. É

professora há vinte e cinco anos, quinze dos quais trabalhados na escola de dona

Clair. Depois desta, é a funcionária que mais tem vínculos familiares com os outros

professores da escola: é tia e ex-professora das professoras Iara e Tarsila, irmã da

professora Iracema e mulher do professor Jéferson.

Além disso, é ex-aluna da escola, onde estudou até a quarta-série, a última que

a escola oferecia no início dos anos de 1970. Lembra com emoção de como foi para

lá aos 5 anos, ainda “como ouvinte”, acompanhando uma das professoras que

moravam na sua casa48. De como já sabia escrever o aeiou e de como gostava muito

de estudar: “Tinha paixão! Fui para escola feliz da vida. No primeiro dia, tinham até

umas visitas lá em casa, mas eu nem quis saber delas. Quis saber de ir para a escola”.

Da época de estudante, recorda-se da dona Clair ensinando-lhe contas de dividir e de

uma professora de Geografia, carinhosa, mas exigente no comportamento. E ela diz

ter sido sempre “uma aluna comportada, que gostava muito de estudar”.

A menina, que queria ter estudado Direito “porque achava bonito”, mudou-se

com a mãe e a irmã para o centro da cidade, onde completou seus estudos até o curso

Normal na única escola particular então existente. Conta com orgulho de como sua

turma era coesa, “muito boa e elogiada pelos professores” e foi pioneira no ensino

47 Pilar me recebeu na copa da casa em que mora com o marido, o professor Jéferson, no centro do município, para uma conserva de hora e meia. 48 Nesta época, o pai já era escrivão da localidade e puderam comprar uma casa, onde abrigavam as professoras vindas de fora, fato já narrado pelas professoras Iara e Tarsila sobre a casa dos avós.

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médio da escola, ocupando o andar mais alto do prédio novo. No ano de formatura no

magistério, foi chamada pelo diretor para dar aulas para a turma da quarta-série da

escola, quando passou para o concurso público estadual e foi destacada para uma

escola na roça, ainda no final do ano, época em que se recorda ter sido obrigada a

“tirar a única licença de toda sua carreira profissional”, pois teve catapora.

No ano seguinte, lecionava às tardes na escola particular, no centro da cidade, e

ia dormir na casa de um morador de uma localidade na roça, onde era a diretora e

única professora de mais de quarenta crianças da escola local. Recorda-se de ter feito

várias experiências, separando e unindo as mais diversas turmas da escolinha e até

hoje não sabe muito bem como “deu conta”, mas credita o sucesso ao fato de gostar

daquele trabalho e de ser jovem. Logo depois, emenda que sua “preocupação com a

responsabilidade de fazer as coisas direitinhas, da melhor maneira possível” também

ajudou neste processo, além de que o professor deve “acreditar no que está fazendo e

fazer”.

Ainda esteve em outras escolas rurais com turmas muiltisseriadas e direção, às

vezes dividindo as turmas com outros professores, inclusive com o já então marido, o

professor Jéferson. Com “6 ou 7 anos de exercício”, considera que se sentiu

“aprovada”, pois ganhou uma turma única de vinte e dois alunos na classe de

alfabetização, que acompanhou até a segunda série com 100% de aprovação.

Em 1992, foi trabalhar na escola-da-dona-Clair, como professora de matemática

das quintas e sextas séries, por ter feito um curso adicional, o que aliviou sua carga

horária, em que pese a distância entre a escola e sua casa. Pensa que o clima de

trabalho da escola é muito agradável, que “todo mundo é legal com todos. (...) todos

se respeitam”. Ainda, acha o alunado da escola bom, com crianças “educadas”, que

não lhes dão problemas com comportamento e com quem se consegue “trabalhar

bem”. Confessa procurar ver seus alunos como se fossem os filhos (que ela não teve)

e que, apesar da responsabilidade de lidar com pessoas, percebe a experiência docente

como boa, porque “a gente leva e traz” conhecimento intelectual e humano. Acredita

que os estudantes a acham tranqüila e calma, e a direção, pontual e assídua ao

trabalho. Por sua vez, ela sente dona Clair como “parte da família” e emenda, aos

prantos, que não consegue ver o Viola sem dona Clair, pois “vai ficar um vazio muito

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grande” com sua aposentadoria em 2008.

Ao ser pedida a comparar a docência de um e outro segmento, Pilar afirma que,

além da carga horária mais intensa, o trabalho como professora primária era mais

difícil, especialmente com as crianças da zona rural, que vêm para a escola sem saber

sequer pegar no lápis.

Atualmente, Pilar acumula duas matrículas, uma delas como secretária, função

que diz dar-lhe grande satisfação. Embora não se sinta sobrecarregada de trabalho, ela

confessa um certo cansaço da sala de aula: “É uma coisa psicológica, pois, com 25

anos com turma, só tirei aqueles 15 dias de licença da catapora”, justifica.

A professora acredita na necessidade de mostrar aos estudantes a importância

do aprendizado da matemática, “mesmo para quem vai fazer uma coisa muito

simples, como tirar uma carteira de motorista”. Ela inicia suas aulas “rezando um Pai

Nosso, a reza universal”, vê individualmente quem fez o dever de casa e os corrige

coletivamente. Gosta de explicar a matéria antes de chegar ao livro, o que geralmente

faz no quadro negro. Vai introduzindo o assunto novo e fazendo exercícios no quadro

aos poucos. Resume seu trabalho mais ou menos assim: “procuro sempre fazer tudo

com eles”.

E dá a receita do bom professor: dedicação ao trabalho (que significa fazer da

melhor maneira possível), honestidade, planejamento das aulas (mesmo com 25 anos

de exercício docente), assiduidade e amor ao trabalho.

Iracema: a professora nostálgica e sistemática

Iracema nasceu em Vista Alegre, tem 47 anos, vinte e cinco de profissão, sendo

que doze deles exercidos na escola-da-dona-Clair49. Atualmente divide seu tempo

como secretária de uma escola estadual numa comunidade rural próxima de Vista

Alegre. Tem uma filha de 19 anos, universitária, com quem diz gastar todo o seu

49 Cheguei à casa de Iracema, onde conversamos na sala de estar, pouco depois de terminar a entrevista com sua irmã Pilar, pois elas moram na mesma rua no centro da cidade. O clima de nostalgia de um passado glorioso e de valorização da profissão docente pode ser sentido durante todos os minutos das quase duas horas de nossa conversa. Anotei no diário de campo que perdi a conta da quantidade de vezes que Iracema repetiu “estou cansada. Tenho que me aposentar”. Ela me pareceu desesperada e terminou com essas palavras nossa conversa: “Em educação, nada você vê resultado. Só pedem nossa opinião, mas não a respeitam”.

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salário. Julga pertencer à classe pobre e faz questão de colocar que nunca conseguiu

ter nada com os ganhos provenientes do magistério, lembrando que o carro, a casa e o

sítio que possui foram presentes de seus pais.

Apesar de considerar desnecessário contar os fatos da sua infância por ela ser

irmã da professora Pilar, vou narrar as impressões por ela destacadas. Ela tem poucas

lembranças cognitivas da infância e apenas conta que “gostava muito de hospedar as

professoras em sua casa”, o que não faria hoje, porque é “muito sistemática”. Sobre

estudar no Viola, recorda-se que ia descalça para a escola e lembra com saudades da

professora Clair, por quem tem muito “respeito e carinho” e que é considerada como

alguém da família. Iracema conta, rindo, como dona Clair uma vez “deu uns tapas”

para disciplinar seu filho, colega de turma de Iracema, e de como costuma brincar

dizendo : “dona Clair batia em aluno na sala de aula!”

A carreira profissional iniciou-se aos 20 anos, já casada com um administrador

de sítio e motorista, unidocente e diretora em uma escola rural de sala única e dois

banheiros, “igual a uma casinha de boneca”, com cerca de vinte alunos, sobre os

quais ela comenta: “Eu adorava aquelas crianças.” Trabalhou como professora

primária em várias escolas rurais por treze anos até ser chamada por dona Clair para

dar aula de língua portuguesa no Viola para todas as turmas de quinta e sexta série,

por ter feito um curso adicional.

Sobre este novo momento, Iracema afirma: “Me senti em casa. Sempre me senti

em casa lá. Apesar de tudo, dessa revolta com a situação de trabalho, lá me considero

em casa, entendeu? Eu tive oportunidade de sair de lá, mas eu gosto, eu gosto”. Isso

porque “lá eu conheço todo mundo. Os funcionários da escola, mais antigos, é tudo

gente minha. Tem minha irmã que trabalhou de servente e se aposentou, meu irmão

que morou lá, as minhas sobrinhas estudaram e trabalham lá. Têm os alunos. Já dei

aula para os pais dos alunos. Tenho muita raiz, muita ligação. Eu não gosto que falem

mal da escola”.

Em relação aos alunos, por quem ela diz ter paixão e carinho, ela afirma estar

achando-os “mais frios na relação” (“durante o período que dou aula para eles não.

Mas quando estão na oitava [série], eles não se lembram mais de você”), “cada vez

pior”, “menos interessados em estudar e menos competentes, apresentando cada vez

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mais problemas de leitura e interpretação. Ela credita este fato à falta de perspectiva

de futuro, pois os alunos comentam: ‘os pais da gente nunca estudaram e estão

melhores que a gente. Então, para que estudar?’”.

Se, por um lado, percebe que a maioria dos estudantes vê a escola “como o

momento de lazer” e vão até lá para encontrar os amigos, por outro lado Iracema se

considera uma professora “muito exigente”, “brava”, “meio tradicional”, que tem

compromisso de que seus alunos saibam “pelo menos ler e interpretar mais ou

menos”. Portanto, os estudantes a vêem como uma professora “muito chata”, “que

não gosta de barulho”.

As práticas usadas na sala de aula são condizentes com os objetivos e seu jeito

pessoal, pois Iracema costuma usar muito o quadro negro e cópia, e exercícios

mimeografados, além de seguir um livro didático (ainda que preferisse usar textos

avulsos, cujas cópias a escola não dispõe). Na hora de disciplinar, estabelece no início

do ano as regras e segue-as à risca. Confessa, ainda, ameaçar os estudantes com

castigos, como a cópia. E lembra que esse jeito “funcionou todo esse tempo”.

Mariana: a dinâmica professora-diretora Mariana é a professora de Geografia do Viola, como se refere à escola, onde

acumula, com a segunda matrícula que possui no estado, a função oficiosa de vice-

diretora, auxiliando diretamente sua mãe, dona Clair, nos trabalhos de gestão. Em

2008, com a aposentadoria de dona Clair, assumiu a direção da escola. Deseja,

quando aposentada, fazer uma faculdade de gastronomia e abrir um restaurante50.

Mariana nasceu há 46 anos na casa onde atualmente mora sua mãe e que antes

pertencia ao avô paterno, um dono de cafezal que era “tratador” (cuidava da saúde

das pessoas) e que gostava de fazer hortas. Dispensável dizer que Mariana foi muito

influenciada pela mãe Clair na “escolha profissional pela área humana”. Tentou

cursar Serviço Social (“porque gosto de lidar com as pessoas”) antes de não passar

no vestibular e resolver fazer Ciências Sociais, pois “tinha uma carência muito grande

50 Nossa conversa, de hora e meia, aconteceu na sala de estar de sua ampla casa de fazenda, onde mora com o marido, empresário e sócio, e atual Secretário Municipal de Meio Ambiente, e com dois dos três filhos de 20, 19 e 15 anos (a filha mais velha cursa faculdade de relações internacionais em Niterói).

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de professor de Geografia e quem fazia Ciências Sociais tinha direito a dar aula de

Geografia”. E completa a influência da escolha: “Mamãe sempre professora e a gente

vivia muito dentro de escola. Nem sei se isso influencia. Sei que convivi muito dentro

de escola. Mamãe sempre trabalhou, levava a gente quando éramos pequenos, porque

não tinha com quem deixar”.

Do Viola, onde estudou até a quarta-série e foi colega de turma da professora

Pilar, recorda-se de como a escola era bem menor, de como se “brincava muito,

pulava muita corda, essas brincadeiras, futebol”. Lembra da professora Dora Beatriz,

que “era muito boa, e que vinha arrumada para a escola, era muito dinâmica,

explicava muito a matéria, gostava de brincar com a gente. E ela fazia Odontologia.

Eu achava aquilo o máximo”.

O percurso escolar foi completado em escolas particulares no centro da cidade e

na cidade mais próxima, onde terminou o ensino médio e freqüentou a mesma

faculdade particular que os professores William, Jéferson, Henrique e Isaura. Dessa

época, lembra-se do professor Eraldo, “muito amigo, companheiro”, “mas com muita

facilidade de passar os conteúdos e se expressar”, além de ser exigente. E, ainda, da

Susi, de Sociologia, “pessoa atualizada” que possuía muito um material didático

“antigo, tradicional. Material bom”. Por fim, cita João, professor de História no

ensino médio e na faculdade, “ótimo no conteúdo e pessoa alegre”, cujo modo de

introduzir o conteúdo parece ter influenciado muito Mariana, ainda que ela não

tivesse consciência disso, o que foi percebido por mim, que também fui aluna deste

professor por três anos durante o ensino médio: ambos fazem um resumo no quadro

com os principais pontos a serem abordados e vão desenvolvendo-os em conversas

com os estudantes.

Além dessa estratégia, Mariana diz variar constantemente, fazendo leitura e

exercícios em livros, discussão com mapas, DVDs, seminários em que os alunos

estudam e apresentam o assunto, pesquisas na Internet. Ela define assim o seu jeito de

ser e de trabalhar:

Eu não sou muito carrasca, muito exigente demais. Acho que ‘cada um tem seu cada um’, e eu procuro respeitar isso no aluno. Mas eu tenho pavio meio curto. Tem hora que eu brinco sem necessidade e depois me arrependo. (...) depois, eu descasco. (...) Eu não faço nada de extraordinário dentro daquilo que eu tenho que trabalhar. Mas eu procuro ser bem organizada na sala, dinâmica naquilo que eu faço. (...) Eu não sou

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muito de enrolar. Tem gente que fica com um assunto toda vida. Eu sou prática nessas coisas. Minhas aulas têm muita praticidade. (...) Muito dentro dos parâmetros normais. Não faço nada diferente não! Todo mundo sentadinho, normal. Faço, às vezes, umas aulas em círculo.

Acredita que “não consegue ficar muito longe do tradicional”, até porque “o

aluno não gosta muito”. Para diminuir a distância dos alunos a certos conteúdos,

Mariana faz estudos dirigidos, pois também os obriga a ler, além de que “depois retira

dos textos as coisas mais importantes e vai explicando”.

Com toda a sua carreira construída no Viola (trabalhou apenas alguns meses em

uma outra escola da redondeza e em uma particular no centro da cidade), afirma que a

profissão docente não é sacerdócio e pensa que o bom professor tem que ser bem

informado, ter carisma, gostar da profissão e “vibrar com o que o aluno faz”, “se

envolver emocionalmente”, além de “procurar, na escola, não levar problema de

casa”, como lhe ensinou sua mãe. Mas também tem que ser ético, com boa conduta

(não ser alcoólatra, drogado, nem prostituta, nem corrupto), e um cidadão, “aquele

que tem direitos e deveres”: comida, emprego, lazer, bens materiais, uma vida digna.

Mariana crê que tem uma relação de amizade com seus alunos (“nada de mãe

ou tia não”), que a vêem entre “boazinha” e, contrariamente, “muito ruim, ignorante,

estúpida, brigona”, imagem esta possivelmente mais ligada à de diretora. Por um

lado, os colegas consideram-na “meio diretora” e ela faz questão de passar uma

imagem de uma “diretora mais participativa”, “que não tenta impor as coisas”,

embora em outro momento reconheça que “nem sempre muita democracia resolve

não e nem sempre a propaganda é a alma do negócio”, quando contou que

“convocou” e não “convidou” os estudantes para uma atividade de fim de semana na

escola e, também, que a decisão de agendar uma palestra com um convidado de fora

da escola durante o horário de aula fora tomada sem comunicação prévia aos

professores do dia, porque “não ia dar tempo”. Por outro lado, ela crê que eles a

acham brincalhona e muito franca.

A identidade diretora pensa que trabalha “do mesmo jeito que mamãe trabalha:

com seriedade, sem enrolar”. O que faz com que todos se sintam “bem dentro da

escola”, que segundo ela, “tem uma química difícil de descrever”, mas tentada assim:

“não sei se é porque a gente trabalha na simplicidade nossa ali, sem se preocupar

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muito com as outras escolas. (...) Ou se as pessoas confiam muito em mamãe(...).

Para Mariana, a química está no modo como dona Clair administra “o contato com

ser humano”, feito sem desconfianças : “as pessoas confiam nela (...), de muitos

anos, muitos já foram alunos dela”. Apenas uma reclamação é feita à gestão da mãe,

que “precisava exigir mais dos professores”, “convocar mais todos da escola”,

completa ela meio chateada.

Mariana acredita que a função da escola é dar suporte à família na formação das

crianças para que elas sejam felizes. Para os estudantes do Viola, “alunos de grande

conteúdo”, a escola é “o momento de eles saírem um pouco de casa, descansar do

trabalho, se aprontar para ir para lá (...). Eles nunca estão sujos. E se a gente não

bater o pé eles não querem ir de uniforme não. E vão sempre arrumados”.

Tirando a questão do salário, “que é meio enjoada” e “dá frustração”, Mariana

afirma gostar muito de dar aulas, que se sente “sempre melhorando” e compara o

dinamismo do magistério com a própria vida, que muda muito, o que lhe dá prazer.

Diz gostar também porque “gosto muito de lidar com gente (apesar de, de vez em

quando, aborrecer). Você sempre conhece muitas pessoas, muitas novas pessoas”.

O jeito de exercer o ofício ela diz ter aprendido com a criação que teve dos pais,

que a fizeram a pessoa que é hoje. Com o pai, aprendeu a ser verdadeira (fala o que

pensa e sente) e impetuosa (“estar muito bem e dar vontade de ir embora”). Com a

mãe, não consegue descrever o que aprendeu e se indaga: “O que eu herdei de

mamãe? Eu falo tanto que sou igual a ela! [silêncio] O jeito, o jeito de ser”, completa.

Maria: a que tem preocupação com o ser humano

Maria é filha do maior produtor de café do estado do Rio, é formada em

Pedagogia, tem 39 anos, dezessete de profissão dos quais dezesseis exercidos na

escola de Vista Alegre, sua única matrícula no magistério51.

51 Maria, cuja justificativa do nome escolhido é “a que tem preocupação, amor ao ser humano”, foi minha última entrevistada, pois manifestou pouca disponibilidade para o encontro, chegando a desmarcar um primeiro agendamento. Fui recebida numa das muitas salas de estar de sua cobertura duplex localizada no centro da cidade, onde mora com o marido, empresário e fazendeiro do café, e três filhos, de 17, 16 e 11 anos, que nos interromperam algumas vezes. Ela era uma das professoras por quem cultivava especial curiosidade em conhecer a história pessoal, por ela pertencer à classe alta e ser professora numa escola pública rural afastada de sua residência.

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Maria me conta que queria se psicóloga, mas que seu pai, muito severo, não

permitia que as filhas saíssem do interior para estudar na cidade grande, onde havia a

faculdade. O desejo era porque ela gosta “muito de trabalhar com as pessoas, de

conversar, de estar com as pessoas e procurar ajudá-las”, o que ela acaba fazendo

hoje no magistério e no “movimento de igreja”, às vezes, até “alcançando um maior

número de pessoas dentro daquilo que me proponho” do que se tivesse feito

psicologia. Ela diz que “compreende o erro, passa por cima do erro, pelo zelo” do pai

e que em sua casa sempre “teve muito carinho, muito amor”.

O percurso escolar inclui o curso Normal e a faculdade de Pedagogia, com uma

pós-graduação em informática educativa, e foi todo feito em escolas particulares.

Dele, Maria se lembra de uma professora de biologia do ensino médio que parecia

preocupada com o que o aluno estava vivendo, não se ocupava só com a matéria, mas

ensinava também valores humanos, que o aluno pudesse aplicar na vida dele. Esta

formação humana é reconhecida como fundamental para o jeito pessoal de ser da

professora Maria hoje.

Assim que se formou, trabalhou alguns meses em uma escola rural, mas logo

escolheu trabalhar no Viola, porque se identifica com as pessoas que lá trabalham,

pois elas “têm essa coisa de querer fazer o melhor que pode”. Em suas palavras: “eu

me identifico com a realidade rural. Eu gosto de sítio, adoro essa realidade! A gente

tem contato com a natureza, vou para Vista Alegre passeando. Acho gostoso pegar o

carro e ir até lá estar com as pessoas. (...) Lá é tipo uma grande família”.

Acredita que dona Clair a vê como “uma pessoa com quem ela pode sempre

contar” e que seus colegas a percebem como “uma pessoa responsável, que procura,

dentro do que pode, fazer mais do que deveria”. Isto, entre outras coisas, se deve ao

fato de que Maria é a autora do Projeto Político Pedagógico da escola e de suas

atualizações nos últimos anos. Ainda, se pensa como uma profissional que tem

preocupação com sua formação acadêmica (“nunca parei de estudar”, diz ela) e com o

aluno, procurando diversificar sua prática, “porque o mundo hoje está muito

dinâmico e se a gente não procurar passar esse dinamismo o aluno não agüenta, nós

não agüentamos mais”. Os estudantes do Viola a consideram “amorosa, carinhosa e

exigente”, e é assim que ela busca estabelecer a relação com eles, uma “profissional

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carinhosa e preocupada”.

E eles são vistos por Maria como pessoas “mais humildes em termos de posses”,

que “ainda têm aquela coisa da roça, são alunos mais educados”, para quem “a escola

é tudo, é o momento em que eles param de trabalhar (...). É uma tentativa de melhorar

a sua situação social. É o momento de estar com os amigos, porque não tem programa

lá, é o momento de sair um pouquinho da realidade deles”.

Maria reluta um pouco a levantar os dados negativos relativos à escola (“eu não

sou de olhar aspecto negativo (...) O que é negativo eu jogo para trás”), mas depois

lembra do ambiente físico precário, da falta de boa formação do professor, e, por

último, declara que a realidade pública brasileira, como a falta de respeito e

consideração com os professores por parte do Estado, é desestimulante: “Eu não

penso no que eu recebo nem para quem eu trabalho. Porque, se eu pensar, eu vou ser

uma péssima profissional!”, arremata ela. Maria era, junto com Sofia, uma

orientadora tecnológica da escola que perdeu seu cargo no início de 200752. Deu um

jeito e, apesar de ministrar oficialmente as matérias de Sociologia e Filosofia, além de

Atividades Complementares, continua trabalhando no laboratório de informática, “um

recurso a mais. Mas que a gente usa com excelência”, “sem abrir mão dos outros”:

trabalha pesquisa, a parte artística, com português na produção de resumos, por

exemplo.

O dia de trabalho continua sendo planejado aula por aula e descrito como

“intenso, para dar conta de tudo: eu não descanso um minuto!”. Ela começa abrindo

as páginas da Internet previamente selecionadas para a navegação, de acordo com o

assunto estudado (“mas sem conteúdo fechado”), e vai orientando individualmente ou

em par, procurando “ampliar e cobrar mais daqueles que podem ir além”, embora

reconheça que “gosta de ter o domínio total, de estar todo mundo junto”. Quanto à

avaliação, os critérios escolhidos são “o trabalho realizado, o interesse e a

participação”.

Maria diz que é bom ser professora (“muito gostoso!”) , porque é “a

oportunidade que a gente tem de conhecer o outro, de fazer o outro se conhecer. É a

hora de botar um ponto de pergunta na cabeça do aluno”. Acredita que a finalidade do

52 Como detalhadamente retratado no capítulo sobre a escola e na história de Sofia.

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trabalho do professor na atualidade seja a de “formar um cidadão melhor, consciente.

Tentar prepará-lo para esse mundão”. O cidadão é definido como aquele que tem um

sentido na vida: “Ele tem que saber o que ele quer como pessoa, ter conhecimento da

realidade em que ele vive, para não ser levado de qualquer jeito com as amizades,

com os ambientes. Ele tem que saber o que quer da vida, mesmo que não saiba tudo”.

Em outras palavras, o professor deve “ajudar o aluno nesse processo de auto-

conhecimento. Porque conhecimento não é só fora. (...). Quando ele se conhece, ele

pode fazer melhor as escolhas. Ajudar não no sentido de direcionar, mas de

percepção, respeito próprio, com o outro. Auto-conhecimento”.

Pergunto-lhe se com seus anos de experiência ela não acha que é muita tarefa

para um professor, ao que ela responde que sim, mas que ele acredita que “se todo

mundo tentar, todo mundo puxar um pouquinho, a coisa acontece”. Ainda segundo

ela, o segredo do professor é ter carinho pelo aluno e valorizá-lo, dando-lhe uma

atenção particular e fazendo com que ele reconheça “que a gente está procurando

fazer um trabalho legal”.

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