elo entre dificuldades soluções - senac

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Ano 26 • N° 14 julho/dezembro 2019 ISSN 2238-6807 E ainda: Sítio Burle Marx Sistemas Agroflorestais Elo entre dificuldades e soluções Catadores mostram potencial da Política Nacional de Resíduos Sólidos

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Ano 26 • N° 14

julho/dezembro 2019 ISSN 2238-6807

E ainda: Sítio Burle Marx

Sistemas Agroflorestais

Elo entre dificuldades

e soluçõesCatadores mostram

potencial da Política Nacional de

Resíduos Sólidos

Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

Departamento NacionalAv. Ayrton Senna, 5.555, Barra da TijucaRio de Janeiro - RJ - Brasil - 22775-004

www.dn.senac.br

Conselho NacionalJosé Roberto Tadros

Presidente

Departamento NacionalSidney CunhaDiretor-Geral

A revista Senac Ambiental é uma publicação semestral produzida pela Assessoria de Comunicação do

Senac Nacional. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Sua reprodução em

qualquer outro veículo de comunicação só deve ser feita após consulta aos editores.

Contato: [email protected]

www.dn.senac.br/senacambiental

ExpEdiEntE

EditorFausto Rêgo

Colaboraram nesta ediçãoAna Mendes, Cristina Ávila, Elias Fajardo, Francisco

Luiz Noel e Lena Trindade

Editoração Assessoria de Comunicação

Projeto gráfico e diagramaçãoCynthia Carvalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Maria Auxiliadora Nogueira - CRB-7/3773)

Senac ambiental / Senac, Departamento Nacional. – n. 1 (1992)- . – Rio de Janeiro: Senac/Departamento Nacional/Assessoria de Comunicação, 1992- . v. : il.

Semestral. Absorveu: Senac e Educação Ambiental. A partir do n. 8 (2016) passou a ser disponibilizada no endereço: www.dn.senac.br/senacambiental. ISSN 2238-6807.

1. Educação ambiental – Periódicos. 2. Ecologia – Periódicos. 3. Meio ambiente – Periódicos. I. Senac. Departamento Nacional.

CDD 574.505

foto

de

capa

: Cris

tina

Ávila

Reciclar, reutilizar,

reviver

Editorial

A Política Nacional de Resíduos Sólidos completa dez anos em 2020, mas ainda não é cumprida integralmente. Quase metade da produção de lixo vai para lixões e o país perde anualmente cerca de R$ 8 bilhões que poderiam ser gerados com reciclagem – sem mencionar o prejuízo para catadores e suas famílias. É deles que falamos na reportagem de capa desta edição.

O ano que chega traz ainda a expectativa pela confirmação do título de Patrimônio da Humanidade para o Sítio Burle Marx, no Rio de Janeiro. Lar de um dos maiores nomes do paisagismo mundial, o espaço abriga mais de 3,5 mil espécies de plantas.

Mostramos também o sistema de reúso de águas cinzas (aquelas usadas no banho e na lavagem de roupas) em uma região que so-fre com a escassez desse recurso: o sertão pernambucano. A iniciativa “estica” o ciclo da água e permite investir em sistemas agro-florestais para criação de rebanhos.

Falamos mais sobre os sistemas agroflores-tais em outra reportagem. Você vai saber como eles contribuem para a recuperação do solo, o controle da erosão, o combate às ervas daninhas e a recuperação de áreas degradadas.

Por fim, retratamos a Festa da Boa Morte, tradição do recôncavo baiano que remonta ao ano de 1820, valorizando a cultura, o tu-rismo e o cuidado com o meio ambiente.

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Sumário

4Recursos Hídricos

Do cinza ao verdeSistema de reúso das águas de

banho e lavagem de roupas irriga plantações e mantém criação de

animais

Ana Mendes

14Turismo

Festa da Boa MorteCerimônia popular do Recôncavo

Baiano mistura o sagrado e o profano, valoriza a cultura e a

natureza

Lena Trindade

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24Capa

Catadores são parte da solução

Política Nacional de Resíduos Sólidos completa dez anos e país ainda perde R$ 8 bilhões

que poderiam ser gerados com reciclagem

Cristina Ávila

46Paisagismo

Patrimônio que floresceSítio onde viveu Roberto Burle

Marx reúne cerca de 3,5 mil espécies de plantas e pode ser

reconhecido pela Unesco

Francisco Luiz Noel

36Agroecologia

Plantando, colhendo e preservando

Sistemas agroflorestais ajudam a reduzir e recuperar áreas degradadas e beneficiam agricultores, permitindo

colheitas sucessivasElias Fajardo

34Notas

56Estante Ambiental

Sumário

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Ivone Pereira (Nona) e Evanice Pereira (Nice) regam as plantas do viveiro. São 25 espécies frutíferas e ornamentais

rEcurSoS HídricoS

Verde que nasce

da água cinza

Em Pernambuco, sistemas de reúso das águas de banho

e lavagem de roupas irrigam plantações e mantêm criação

de animais

Ana Mendes (texto e fotos)

Um oásis de plantas verdes e ali-mento farto para os bichos: esta é uma das imagens, não tão raras hoje em dia, no semiárido brasi-leiro. Associada quase sempre às agruras do período de estiagem, a região, que abrange dez estados, é, ao contrário, riquíssima e dona de um patrimônio vegetal único.

Composta por espécies de plan-tas que não são encontradas em nenhuma outra parte do mundo, tais como o umbuzeiro, a Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, é sinônimo de resistência. Tanto a flora quanto o povo que ali vive fazem jus a essa característica. Para não morrer, um umbuzeiro pode guardar até 1.500 litros de água em suas raízes. “A pessoa aprende muito com a natureza daqui. Quando se pensa que ela está morta, começa a ficar tudo verde com a primeira chuva. A gente tem de aprender com a

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natureza pra seguir em frente”, con-ta Nice, sertaneja da comunidade Gameleira, localizada no município de Itatim, no Sertão do Pajeú, em Pernambuco – quase divisa com o estado da Paraíba.

Nice e sua irmã, Nona, têm um vi-veiro com cerca de 25 espécies de plantas, entre frutíferas e ornamen-tais, que verdejam em meio aos ga-lhos secos de árvores nativas que esperam, do lado de fora do vivei-ro, a estação das chuvas, que dura de novembro a maio, para renascer outra vez mais. As duas irmãs fa-zem parte do grupo de 100 famílias do Sertão do Araripe e do Pajeú selecionadas para a implementa-ção do sistema de reutilização de águas cinzas. O RAC, como é cha-mado, reaproveita as águas usadas no banho, na lavagem de roupas e louça das casas de famílias que vi-vem da agricultura e da criação de animais. “Antes essa água era des-perdiçada, totalmente descartada. Descia aí num córrego e só juntava sapo e muita muriçoca. E hoje não, hoje eu consigo levar pra roça atra-vés do gotejamento”, conta Déa Solange, moradora da Comunidade Sítio Poço Grande, em Flores.

Assim como o umbuzeiro, os sertanejos homens e mulheres que vivem no semiárido também aprenderam a armazenar água para atravessar os momentos de estia-gem. Com a colaboração de po-líticas públicas conhecidas como tecnologias sociais de convivência com o semiárido, eles ainda con-trolam todas as entradas e saídas e coordenam os tipos de uso de cada água.

Diferentemente de outros lugares, as fontes de água de uma casa sertaneja são diversas e cada uma serve a finalidades distintas. A água das chuvas capturada dos te-lhados, limpa e potável, é utilizada para beber e cozinhar. A água de

rios, poços e olhos d’água é mais salinizada, portanto é usada para outros fins, como banhos e limpe-za. A que é capturada pelas cister-nas-calçadão, que coletam água da chuva de uma grande calçada de concreto, mata a sede dos bichos e molha as plantas. Nem todas as famílias têm acesso a toda varieda-de de água, mas a maioria tem pelo menos as duas primeiras.

Implementado pelo Centro de De-senvolvimento Agroecológico Sa-biá e pelo Centro de Assessoria e Apoio a Trabalhadores e Institui-ções Não Governamentais Alterna-tivos (Caatinga), em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecu-ária (Embrapa), o RAC está sendo usado para irrigação de plantas forrageiras que servem para ali-mentação de animais de pequeno porte. A palma, a gliricídia, a leu-cena e a moringa são plantadas em sistemas agroflorestais (os chama-dos SAFs), combinadas com plan-tas nativas da Caatinga e algumas árvores frutíferas. “O RAC tem esse desenho. Ele é desafiador porque exige diversos aspectos da tecno-logia”, conta Rivaneide Almeida, assessora técnica do Centro Sabiá, que acompanha as famílias que vi-vem no Sertão do Pajeú. “Além do sistema de reúso de águas cinzas, o sistema de filtros, a gente ainda tem o desafio de fazer a implanta-ção dos sistemas agroflorestais”, complementa.

A reutilização de águas cinzas não é inédita na região, outras iniciati-vas pequenas, tocadas por organi-zações da sociedade civil e órgãos governamentais, se repetem pelo semiárido na tentativa de amenizar a perda de cerca de 53 mil litros de água por família ao ano. A es-timativa foi calculada a partir das medições feitas por Genival Barros

Na página seguinte, moradores na barragem do rio Pajeú, na comunidade de Poço Grande

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Junior, professor de Agronomia da UFRPE de Serra Talhada, respon-sável por avaliar a eficiência do sistema de irrigação e a perfor-mance das culturas que estão re-cebendo as águas cinzas. Genival calcula que, por semana, a coleta de água cinza de uma família seja de 1.100 litros. “Isso é uma média, porque tem família que passa 11 dias pra juntar esse volume de água”, explica.

Filtragem em duas etapas

De maneira improvisada, as famí-lias sempre tentaram reaproveitar parte desse montante de água co-locando pequenos potes nas saí-das dos canos, que normalmente escoavam direto nos quintais. Mas o procedimento de recolher a água manualmente não era mui-to eficaz, porque ela continha sa-

bão, óleo, sódio e outras impure-zas. “Tinha planta que até morria, porque a gente tirava da pia e usa-va direto nas plantas”, conta Nice. Além disso, a água do semiárido é muito salina, por conta das formações rochosas da região, e os solos ou as culturas não são tolerantes a grande quantidade de sais. Para se livrar de parte dessas substâncias, portanto, o RAC é composto por duas eta-pas de filtragem. Primeiro, uma pequena caixa de gordura onde o óleo e a água são separados. Restos de alimento também fi-cam retidos ali. Depois, uma cai-xa d’água com camadas de brita, areia e carvão, na qual as outras substâncias são filtradas. Entre-tanto testes preliminares, feitos por Genival e sua equipe, apon-tam que o PH está entre 6 e 7, o que indica uma água ainda bas-tante salina.

O Sítio Poço Grande fica no município de Flores, no Sertão do Pajeú. Cerca de 30 famílias vivem na localidade. Quase todas têm cisternas. Já a água do rio Pajeú é puxada com bomba ou transportada em carroças. Durante parte do ano, o rio seca parcialmente. Uma barragem construída em 1982 deveria solucionar o problema, mas há conflitos: moradores da parte de baixo do rio reclamam que os da parte de cima não querem que a barragem seja aberta nos períodos mais secos

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O RAC está em funcionamento há quase dois anos e foi construído de modo que a sua eficácia seja analisada e os possíveis impactos minimizados. Genival conta que a baixa dispersão de água, que cai em gotas, combinada à orientação de colocação de matéria orgânica nos pés das plantas, ameniza os efeitos do sal no solo. “Diferen-temente se eu despejasse a água concentrada, porque aí estaria le-vando uma grande quantidade de sal pra um mesmo lugar”.

Genival lembra ainda as águas das chuvas, que voltam a cair no inver-no e neutralizam o sal dispersado no solo. A Embrapa está respon-sável por fazer a análise física dos solos, entretanto ainda não lançou dados, devido ao pouco tempo de implementação do sistema. Esse tipo de avaliação exige uma amos-tragem de terra que tenha sido

exposta às águas cinzas por um período maior. Tampouco a análise biológica das águas foi divulgada.

Para aferir o desenvolvimen-to agrológico e biológico das plantas que estão recebendo as águas cinzas foi necessário que duas áreas idênticas fossem plantadas paralelamente – uma recebendo água e a outra não. “Nós fizemos duas áreas paralelas, 1.250 m² irrigados e 1.250 m² em sequeiro, sem aplicação de água alguma, exatamente pra gente ter a certeza de que a entrada da água no sistema estava fazendo diferen-ça”, explica Genival. As plantas no sequeiro ficam à mercê do tempo e as outras recebem água a cada sete dias, tal como recomendara o agrônomo. “Da dó de ver umas plantas murchando e as outras re-cebendo água, mas a gente sabe que tem que ser assim”, conta Cida,

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moradora da Comunidade Sítio La-goa de Dentro.

Genival denomina o seu trabalho como uma pesquisa-ação, pois a colaboração das famílias – princi-palmente das mulheres, que são as maiores responsáveis pelos quin-tais produtivos e pela alimentação dos animais – é fundamental para o resultado das suas avaliações. A água deve ser bombeada conforme suas recomendações e a quantida-de é controlada por um hidrômetro e anotada em uma planilha, que posteriormente é recolhida e ava-liada. As famílias devem manter o sistema limpo para evitar entupi-mento. Cada planta recebe sema-nalmente 1,3 litro de água. Uma quantidade bastante tímida, dados o intenso calor e a baixa umidade dos períodos de estiagem. No en-tanto as observações preliminares

de algumas frutíferas e forrageiras apontam aumento no índice de sobrevivência: nas áreas irrigadas, sete a cada dez sobrevivem; nas áreas de sequeiro, a metade morre. Mas o que chama a atenção mes-mo é o desenvolvimento das plan-tas. “Nós tivemos taxas de cresci-mento idênticas como se estivesse em uma área convencional de irri-gação com água de qualidade. Isso demonstra que, metabolicamen-te, essas plantas responderam à água”, afirma Genival.

Uma delas, porém, apresentou re-ações distintas. “A palma teve o mesmo índice de sobrevivência tanto na área de sequeiro como na área irrigada, porém nesta ela tem taxa de crescimento positiva, ao passo que na área do sequeiro a taxa é negativa”, diz o agrônomo, explicando o ponto em que a plan-ta murcha e começa a diminuir de tamanho.

A palma é uma das forrageiras mais importantes dos sertanejos. Exis-tem ao menos seis variedades dela, todas altamente resistentes ao pe-ríodo de estiagem, pois armaze-nam muita água. A espécie é uma das prediletas dos animais, devido ao seu valor nutritivo. “Parece que a vaca dá até mais leite quando ali-mentada com a palma”, conta Tei-xeira, um sertanejo de Poço Gran-de que também está irrigando sua plantação de palma com o RAC. A palma cumpre, portanto, um papel fundamental na segurança alimen-tar sertaneja para atravessar o pe-ríodo de estiagem “A criação dos pequenos animais é estratégica para a agricultura familiar aqui no semiárido. O desafio era como ali-mentar essas criações no período de estiagem”, observa Rivaneide. Quando o verão chegava, os supor-tes forrageiros eram os primeiros a deixarem de ser irrigados. Toda a água armazenada durante o inver-

Acima, Maria Uliane Alves da Silva, 24 anos, dá banho em Emanuele Beatriz, de 1 ano e 6 meses. A água usada no banho vai irrigar as plantações de forragem que servem de alimento aos animais (foto à direita)

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no era priorizada para consumo humano e uso doméstico.

CisternasOs sertanejos costumam poupar ao máximo às águas armazena-das, pois grandes estiagens são comuns no semiárido. “Nesse úl-timo período de seca, vivemos a reafirmação da importância de ino-vações que permitam sobretudo à população da zona rural ter acesso à água por meio das tecnologias sociais de captação e armazena-mento das chuvas”, enfatiza o bi-ólogo Alexandre Henrique Bezerra Pires, especialista em extensão rural e desenvolvimento local, co-ordenador geral do Centro Sabiá e coordenador executivo da Articula-ção do Semiárido Brasileiro (ASA) em Pernambuco.

A ASA reúne mais de 3 mil orga-nizações populares do Nordeste. Alexandre se refere à seca de 2011 a 2017, que marcou quase sete

anos de dificuldades na região. Esse período, contudo, não dei-xou os sinais dramáticos de outras épocas da história recente, como mortalidade infantil e fome, tão comuns há cerca de 20 anos. Os problemas eram então enfrentados com o que se chamou de “indústria da seca”, que estimulava a migra-ção como saída para a miséria e a fome, levando o sertanejo a morar perto de grandes centros urbanos em desenvolvimento, onde se tor-nava mão de obra barata.

Parte de um conjunto de iniciativas que mudaram a vida dos serta-nejos, as cisternas são o símbolo da qualidade de vida conquistada nos últimos 20 anos no Sertão. “Temos mais de 1 milhão de cis-ternas construídas com base em processos de formação e mobili-zação para a convivência com o semiárido, o que permite às famí-lias reconstruir práticas de armaze-namento de águas, sementes, ali-

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mentos para pessoas e animais, de modo a garantir que a água dispo-nibilizada seja utilizada da melhor forma e com o máximo possível de aproveitamento”, relata Alexandre Henrique.

As cisternas foram construídas para famílias rurais de baixa renda – populações tradicionais (indíge-nas e quilombolas), agricultores e agricultoras familiares – com o pro-pósito de guardar a água das chu-vas. Os próprios usuários são trei-nados para a construção de placas de cimento que formam paredes redondas com apoio de arame galvanizado. Dois terços da cons-trução ficam enterrados, e apenas um reboco é necessário para lhes garantir a sustentação. Essas tec-nologias sociais têm tamanhos que variam conforme o uso: doméstico, em escolas ou para produtores ru-rais.

“Nestes últimos 20 anos, foram construídos marcos legais que asseguraram recursos para a im-

Déa Solange: antes do RAC, a água era descartada e só “juntava sapo e muriçoca”

O sertanejo Teixeira mostra como funciona o sistema

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plementação de iniciativas que contribuíram efetivamente para as políticas que estamos desenvol-vendo”, comenta o biólogo. Ele, no entanto, lamenta que a região se ressinta de alguns retrocessos nas políticas públicas que inquietam as famílias agricultoras e os profis-sionais envolvidos com os progra-mas de atendimento popular. “Há cortes de recursos que transfor-mam muitas ações em letra morta. Embora o povo tenha capacidade de resistência e solidariedade por meio do diálogo com setores em-presariais sensíveis, fóruns de se-cretários da agricultura familiar, o consórcio de governadores do Nor-deste e agências multilaterais, por exemplo, temos de garantir o que conquistamos com tanta luta. Não podemos voltar a figurar no mapa da fome. Vamos buscar formas para estarmos juntos em defesa do território, da água, da alimentação e dos bens comuns”, conclui Ale-xandre Henrique.

O que é a ASAA Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) é uma rede de organizações que atua nos dez estados que compõem o semiárido (os nove do Nordeste e Mi-nas Gerais). Suas ações se pautam no estoque de água e também de sementes crioulas, com base em preceitos como agroecologia, economia popular e solidária, educação contextualizada, comunicação popular, segurança alimentar e nutricional, entre ou-tros temas. Para isso, a ASA integra espaços como o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e o Fórum de Mudanças Climáticas, bem como quase todas as instâncias nacionais que debatem temas como es-ses. O programa de estocagem de sementes crioulas foi lançado pela ASA em 2015 e valorizou famílias guardiãs de importante patrimônio genético, com o resgate de costumes que já existiam por gerações em comunidades tradicionais. Uma riqueza alimen-tar, com nutrientes não modificados, como é usual nos mercados das grandes cidades do mundo. Al-guns grupos comunitários criaram bancos ou casa de sementes coletivas para resguardar e difundir es-ses alimentos.

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turiSmo

Boa Morte vive

Com sua natureza religiosa e pagã, a Festa da Boa Morte é ponto alto no calendário

turístico baiano

Lena Trindade (texto e fotos)

Durante três dias do mês de agosto, todos os anos, a atenção de milha-res de brasileiros de todas as partes do país e também de milhares de tu-ristas de vários cantos do mundo se voltam para um grupo de mulheres negras, pobres e idosas que reveren-ciam Nossa Senhora da Boa Morte. A cidade de Cachoeira, no Recônca-vo Baiano, fica pequena para a mul-tidão que chega curiosa para partici-par do evento.

Ainda hoje, as pessoas aplaudem e se perguntam: quem são essas mulheres tão altivas e cobertas de joias? De onde surgiram? E por quê? Que força misteriosa é essa que se mantém por mais de 200 anos, pas-sando de geração a geração?

Sim, a Irmandade da Boa Morte existe desde 1780! Foi fundada em Salvador e depois transferida para o Recôncavo, mais precisamente para a histórica cidade de Cachoeira, em 1820. Neste agosto de 2019, a Irman-dade completou 239 anos e se garan-te como uma das mais importantes e antigas celebrações no calendário

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tradicional religioso – e também pro-fano – do país.

Mas pode a morte ser boa? Quando? Para quem vive escravizado, talvez a morte pareça libertação.

No começo do século 18, Cachoeira era a segunda maior cidade em im-portância econômica da Bahia, de-pois da capital, Salvador, quando era maciça a importação de escravos da costa africana para o Recôncavo. Era o período do ciclo canavieiro e Ca-choeira vivia seu apogeu econômico e político. Em 1819, foi inaugurada a primeira embarcação a vapor do Bra-sil – o Vapor de Cachoeira, que ligava Salvador (no litoral) ao município (no Sertão) pelo rio Paraguaçu, levando gente, mercadorias e notícias do Bra-sil Colonial.

Os famosos naturalistas Spix e Von Martius, que viajaram por todo o

país e até hoje são referências no meio científico, chegaram a São Felix (cidade ligada a Cachoeira pela Pon-te do Imperador) em abril de 1818. De Cachoeira a expedição seguiu em canoas para Maragogipe e Salvador.

“Esta vila estende-se pela margem do Rio ao sopé de verdes colinas, cobertas com plantações de cana--de-açúcar e tabaco. É sem dúvida a mais rica, populosa e uma das mais agradáveis vilas de todo o Brasil. A maior fonte de renda é a cultura do fumo, que é exportado para a Euro-pa”, escreveu então Von Martius.

Em depoimento à pesquisadora Fran-cisca Marques, Dona Estelita, juíza perpétua da Irmandade da Boa Mor-te, revela a origem do grupo: “Foi uma promessa que os escravos fizeram na luta, no sofrimento, para que alcan-çassem a liberdade. E assim a morte desapareceria, pois a morte é o sofri-

Durante o período de festa, a alegria do típico samba de roda baiano toma conta da cidade por dias

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mento e a vida é a glória. E a glória é para sempre”.

Em Salvador, a devoção a Nossa Se-nhora da Boa Morte é exclusivamen-te feminina, registrada desde o início do século 19 e localizada na Igreja da Barroquinha. As integrantes queriam comprar a liberdade de pessoas es-cravizadas, organizar funerais dignos e ainda ajudar na fuga para quilom-bos da região. Para isso, as mulhe-res trabalhavam durante todo o ano e compravam colares em forma de elos de ouro, prata ou bronze. Cada elo significava o montante arrecada-do para a festa, funeral ou troca dos escravos. De acordo com o valor pe-dido pelo senhor, o escravo era tro-cado por um elo, que seria de ouro, prata ou bronze.

Nessa época, no Brasil Colônia e até mesmo após a abolição, prolife-raram as Irmandades, que surgiram

em Portugal muito antes (século 13) para dar assistência às pessoas que atravessavam momentos difíceis na vida. Havia a Irmandade dos Pretos, dos Pobres, dos Ricos, dos Brancos, dos Músicos etc. Sempre comanda-das por homens.

“Para que uma Irmandade existisse legalmente”, diz o historiador José Reis, “era preciso encontrar uma igreja que a acolhesse e ter apro-vados seus estatutos por uma au-toridade eclesiástica”. A Igreja do Rosário da Barroquinha acolheu a Irmandade da Boa Morte e manteve sempre estreita ligação com o povo do candomblé. Com a expansão da cidade de Salvador, nessa época, houve muitas perseguições aos ne-gros e aos cultos e rituais africanos. A cidade crescia e era preciso criar uma urbanidade que não podia co-existir com terreiros de candomblé.

A jovem sulista viajou quilômetros para conferir

de perto a beleza da Festa da Boa Morte

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Talvez essa tenha sido a razão da transferência da irmandade para Ca-choeira, onde a presença negra era imensa, mas não havia essa perse-guição.

Ao se transferir para Cachoeira, a irmandade se desvinculou do ca-tolicismo. Fixou-se na Casa Estrela, na Rua Ana Néry, 41 – conhecida por manter vínculos com sacerdoti-sas africanas. Este foi o local onde aconteceram as primeiras reuniões das irmãs. Segundo contam os his-toriadores, era a casa de Dona Júlia Gomes, a primeira provedora.

A singularidade da Irmandade da Boa Morte é que, desde o início, ela é formada somente por mulheres

negras e descendentes de escra-vos. Até então, e mesmo depois, não existiam irmandades religiosas formadas e comandadas por mulhe-res. As mulheres participavam quase sempre caladas, como companhei-ras dependentes dos maridos. Não tinham voz. A sociedade era coman-dada sobretudo por homens – em sua maioria, brancos. Uma irmanda-de composta somente por mulheres é caso único.

De acordo com a maioria dos histo-riadores, as mulheres que formavam a Irmandade da Boa Morte tinham grande poder de liderança, eram empreendedoras, empoderadas e possuidoras de bens materiais. Cui-davam desde a organização e do comando até as festividades. Eram chamadas de Negras do Partido Alto.

Segundo pesquisa do historiador Luis Cláudio Nascimento, “alguns autores acham que essa irmandade era formada por africanos nagôs e outros pensam que eram africanos jejes. O que se sabe de concreto é que ela se destacava na Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, no Pelourinho, formada por africanos angolanos. Para Moraes Ribeiro, “a Irmandade da Boa Morte é o mais representativo documento vivo da religiosidade brasileira, bar-roca e ibero-africana”.

Formação da irmandade

Nos primeiros anos de sua existên-cia, a irmandade contava com cen-tenas de mulheres. Hoje não passam de 25, mas o grupo preserva sua força e originalidade. Ainda hoje, é preciso ter entre 40 e 70 anos, ser descendente de antigos escravos e pertencer a um culto afro-brasileiro para ingressar nessa antiga confraria afrocatólica que nos seus primórdios obtinha a carta de alforria de muitos

Babado, figura popular, acompanha todas as festas religiosas da cidade

escravos. Para isso as mulheres ven-diam iguarias durante todo o ano, arrecadavam dinheiro com os nego-ciantes locais e produziam sob en-comenda para as festas da elite.

Um ano antes da festa, as irmãs se reúnem, sempre no mês de fevereiro, para a escolha da comissão do ano seguinte. Elegem, ainda hoje com caroços de milho e feijão, as irmãs que ocuparão os cargos de provedo-ra, procuradora, tesoureira e escrivã por um ano. As candidatas prestam juramento de fidelidade, que, entre outras coisas, consiste em guardar os segredos e mistérios da corpora-ção. A provedora é o cargo máximo, com a responsabilidade de cuidar da programação da festa e organizar os diversos grupos de trabalho, como os que se encarregam de pedir con-tribuições nas ruas. A procuradora geral é assessora direta da provedora e deve cuidar para que tudo ocorra de modo satisfatório, tal como pla-nejado pela provedora. A tesoureira não é, como se pensa, a responsável pelas finanças, mas sim pela lavagem das roupas. Também é ela quem ves-te as imagens nos dias de procissão. A escrivã fica submetida às ordens da provedora e da procuradora.

Com o tempo, muitas mudanças ocorreram, mas os cargos e o tempo que ocupam continuam os mesmos. Atualmente, os governos estadual e municipal entram com apoio, pois a festa alcançou um enorme prestígio e é responsável pela movimentação de hotéis, comércio e restaurantes da cidade. Até a década de 1970, ainda havia grupos de mulheres ne-gras que, para arrecadarem dinheiro para a grande festa, confeccionavam doces, bolos e demais iguarias que vendiam em tabuleiros pelas ruas de Cachoeira e arredores, cumprindo o ritual de “esmola geral”, como é co-nhecido. Nessa época, a irmandade passava por grandes dificuldades financeiras. Não tinha sede, nem despertava o desejo dos mais jovens

de darem continuidade aos antigos ritos afro-brasileiros.

Nos anos 1980, em consequência de um movimento liderado pelos escritores Jorge Amado e João Ubal-do Ribeiro, juntamente com outros intelectuais, artistas e membros do governo da Bahia, a Irmandade ad-quiriu dois imóveis – onde hoje es-tão situados a sede da Irmandade, uma capela e um espaço expositivo. Para isso foram reformados pelo go-verno do estado três casarões que estavam em ruínas.

Hoje o ritual de saírem às ruas para recolhimento de esmolas ainda exis-te, mas sem a conotação e a necessi-dade de antigamente. O evento, um dos mais fortes no calendário turís-tico baiano, atrai aproximadamente 80 mil pessoas à cidade de Cachoei-ra. Todos querem ver e participar das procissões, dos cortejos, missas, ceias, cânticos, danças e silêncios místicos, assim como das algazar-ras do samba de roda. Nem sempre foi assim, no entanto. Não foi nada fácil atravessar séculos lutando con-tra muitos preconceitos – de cor, gênero, classe social, econômico e religioso. Impressiona tamanha for-ça dessas ex-escravas, que até hoje desfilam como rainhas negras.

A tradicional fábrica de charutos de Cachoeira

é um dos pilares da economia da região

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Por toda essa força que atravessa sé-culos e constitui um evento único no mundo, a Irmandade da Boa Morte é uma instituição que sem dúvida ajudou a preservar não só o mara-vilhoso patrimônio arquitetônico da cidade como vários outros segmen-tos da cultura – a culinária, o turis-mo, a indumentária, o artesanato, o folclore, a gastronomia, a música, a dança e até o respeito ao meio am-biente, que é uma forte característica do povo do candomblé. E isso não é pouca coisa.

A tradição se manteve graças a gran-des nomes da cultura baiana, como Dorival Caymmi e Carybé, além dos já citados, entre outros que enten-deram a importância dessas negras baianas do vatapá, do acarajé, do abará, do caruru e da lavagem do Senhor do Bonfim, das negras dos balangandãs, dos torsos brancos, das saias plissadas e dos panos da costa, que nunca deixaram seus ori-xás esquecidos, mesmo que pra isso tivessem de aderir ao culto católico dos brancos, fazendo nascer assim o

sincretismo religioso.

Na situação de dominação pelos brancos, os negros “fingiam” acei-tar os símbolos religiosos do catoli-cismo, sem nunca deixar de cultuar seus orixás. Essa adaptação foi a forma encontrada para amenizarem o conflito social e perpetuarem seus santos. Segundo Carlos Nascimento, “a Irmandade da Boa Morte talvez seja a única instituição religiosa ne-gra que permite fornecer subsídios à história, pois preserva o modelo, a forma, a organização e o rigor das ir-mandades católicas negras da Bahia oitocentista”. Respeitadas mulheres que passaram a ser símbolos da re-sistência cultural negra.

Como é a festaDesde sua criação, o roteiro da Festa da Boa Morte mudou muito pouco. Seu impacto, assim como o fascínio que exerce, sempre foi grande. São muitos dias de festa, mas alguns são reservados somente para o povo do candomblé. Para a população em geral, são três dias de festejos – de

O rio Paraguaçu separa as cidades de Cachoeira e São Félix

Senac ambiental n.13 20

13 a 15 de agosto. O primeiro é de-dicado às irmãs falecidas. A roupa é toda branca, como é o luto na cul-tura africana. Não carregam joias. Às 18h30 dá-se o traslado do esquife com o corpo de Nossa Senhora da Boa Morte da Capela da Ajuda para a capela da própria irmandade (nos primórdios, ia rumo à Igreja Matriz de Cachoeira).

Esse cortejo pelas ruas do Centro é silencioso e à luz de velas (anti-gamente se ouvia apenas o arrastar de suas sandálias brancas nas ruas; hoje, devido à multidão que acom-panha curiosa e à presença da mídia, não há mais silêncio nem escuro). Às 19h30, missa-velório pelas almas das irmãs já falecidas. Às 21 horas, ceia branca, comida sem carne nem pratos feitos com azeite de dendê. Apenas pão, vinho, frutas e frutos do mar.

Dia 14 de agosto, às 19h30, é cele-brada missa de corpo presente. Em seguida, a procissão do enterro de Nossa Senhora. O traje usado é de gala: sandálias brancas, saias pretas plissadas, pano da costa, um lado preto e outro de cetim vermelho, blusa branca do mais puro linho e torso branco bordado. Originalmen-te, o traje vinha da Europa (provavel-mente de Portugal), o que mostrava a autoridade e a distinção dessa cor-poração de mulheres. E joias, muitas joias: colares de elos de ouro, brin-cos e anéis que até a construção da própria sede ficavam guardados no Museu das Alfaias. Esse cortejo é vivamente acompanhado por uma multidão de fiéis e curiosos de todas as partes do Brasil, além de muitos turistas africanos e afrodescenden-tes que chegam dos Estados Unidos, Canadá, Portugal etc.

Momento de grande emoção é ver essas mulheres idosas, depois de um dia anterior exaustivo, subirem e descerem as velhas ladeiras da cida-de em seus pesados trajes de muitas saias e pesadas joias. A banda de

música se encarrega dos hinos reli-giosos cantados por todos, o que dá um clima de maior devoção. A juíza perpétua atual tem 98 anos e, em muitos momentos, precisou ser am-parada pelas irmãs mais novas.

Dia 15, às 5 horas, alvorada com fo-gos. Às 10 horas, missa solene em homenagem à assunção de Nossa Senhora, seguida de procissão festi-va durante a qual as irmãs carregam flores e cantam, agora com uma fi-sionomia alegre e descontraída. É o fim do recolhimento. Nesse dia, é feita ainda a transferência dos car-gos para a comissão encarregada da festa do próximo ano.

Após a procissão, e já na sede da irmandade, dançam valsa e samba de roda, marcando bem a passagem para a fase profana da festa. Este ano a música que deu entrada na fase profana foi Cordeiro de Nanã, dos Tincoãs, grupo de músicos negros de Cachoeira, famoso nos anos 1960 e 1970 pelos lindos cantos africanos. Em seguida, um farto almoço para convidados e pessoas da comunida-de. À tarde, no Largo d’Ajuda, sem hora pra acabar, começa o samba de roda. A alegria e a irreverência dão o tom. Na roda, unicamente mulheres dançam com batas brancas e saias coloridas, conhecidas como saias de crioula. Agora é o momento em que todos são convidados a comer, cantar e dançar. Festa de todas as alforriadas.

A irmandade, na sociedade de hoje, tem a função de levar cultura e edu-cação para a comunidade. Para isso, em sua sede, no Centro de Cachoei-ra, são oferecidas várias oficinas.

Cachoeira ontem e hojeDurante os séculos 17, 18 e 19, o mu-nicípio de Cachoeira foi destaque na economia e na cultura da Bahia. Era a segunda em importância, depois de Salvador. A cana-de-açúcar e, mais tarde, o fumo foram os responsáveis

Dona Cadu, de Coqueiros. Aos

quase 100 anos, é a mais famosa

ceramista da região do Recôncavo

julho/dezembro 2019 21

pela importância econômica, pelo desenvolvimento social e arquitetô-nico da cidade. Nos séculos 16 e 17, Cachoeira é considerada a vila mais rica de Portugal fora da Europa. Isso por causa do alto preço do açúcar, que a grande massa de escravos em Cachoeira e São Félix produzia sem parar, gerando poder e prestígio. O movimento no porto às margens do rio Paraguaçu era intenso de gente e mercadorias.

Mais tarde, já nos séculos 18 e 19, foi a vez de o fumo acelerar a economia e atrair grandes nomes do cenário cultural para o Recôncavo, sobretu-do a cidade de São Félix. Sob o co-mando de Dom Pedro II, o governo constrói em 1885 a ponte que une essas duas cidades, para presente-ar a bravura do povo baiano. Toda a estrutura metálica da Ponte do Imperador, que tem 365 metros, foi importada da Inglaterra e até hoje é atração turística para os visitantes das duas cidades. Grandes fábricas da indústria fumageira ali se instala-ram (Dannemann, Suerdieck, Vieira de Melo, Pimentel e outras), produ-zindo charutos de altíssima qualida-de que eram exportados pra todo o continente europeu.

A arquitetura refletia toda essa ri-queza, e tanto Cachoeira como São Félix possuem um rico patrimônio arquitetônico em estilos barroco e

Ao centro: a baiana tem saia florida, guias, colares e muitos balangandãs

As Irmãs da Boa Morte no importante ritual de preparo da comida que será ofertada à população

neoclássico. Infelizmente, preciosas construções desse período glorio-so se encontram em ruínas e muito pouco é feito com empenho por parte das autoridades governamen-tais para sua preservação – mesmo Cachoeira tendo sido tombada, em 1971, pela beleza e importância da sua arquitetura. É pena, pois cidades como Ouro Preto, Mariana e Paraty já mostraram que o turismo pode ser alavancado apenas pelo patrimônio arquitetônico.

No Recôncavo Baiano, além da arquitetura, temos grandes mani-festações culturais que fortalecem ainda mais o apelo turístico, como a Festa da Boa Morte, a gastronomia, os inúmeros terreiros e a música, o samba de roda. Talvez se alguns dos importantes intelectuais brasileiros não tivessem alertado para a impor-tância da preservação da Irmandade da Boa Morte, todos esses outros patrimônios (arquitetura, festas re-ligiosas e juninas, samba de roda e terreiros) já tivessem acabado e terí-amos agora somente o passado em ruínas para visitar.

Cachoeira, hojeCachoeira é hoje uma cidade histó-rica reconhecida não só pelas suas belas casas, igrejas, conventos e demais peças da arquitetura de in-fluência barroca, como pelo alto

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Laís, integrante do grupo A Corda Samba de Roda,

dança na Praça d’Ajuda

valor de suas manifestações cultu-rais. Mas nem sempre foi assim. Ca-choeira e São Félix viveram realmen-te um grande apogeu econômico e cultural até a metade do século 19, quando o porto era conectado à fer-rovia que fazia a ligação de Salvador à Região Sudeste do país, irrigando a comunicação de várias localidades ao longo desse trajeto. Esse intenso movimento teve enorme importân-cia na construção da urbanidade do Recôncavo.

Mas na segunda metade do século 20 conheceu a decadência. Em par-te, pela expansão da rede rodoviária nacional, mas sobretudo, segundo o historiador Santos, “o início da exploração petrolífera causou forte impacto sobre aquela velha região de origem colonial e território de produções fumageira e açucareira de teor tradicional”.

Cachoeira e São Félix não fazem par-te do grupo de municípios produto-res de petróleo do Recôncavo. Inicia--se intensa migração para Salvador ou para os municípios que tinham petróleo. Esse período foi de desem-prego e empobrecimento geral.

Somente no fim do século 20 e início do 21 tem início a retomada do cres-cimento econômico, já não mais ba-seado na indústria, mas no turismo cultural, sobretudo após a implanta-

ção do programa Monumenta, que vem valorizar e restaurar o patrimô-nio arquitetônico do município. Im-portante também foi a implantação do campus da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que trouxe um novo tipo de consumidor à cidade e assim impulsionou o co-mércio local, além de trazer moder-nização e um público jovem.

É bom lembrar que, durante todo o período de decadência econômica que viveu o Recôncavo, os terreiros de candomblé permaneceram ativos e unidos.

Hoje a Irmandade da Boa Morte já não tem as funções que teve origi-nalmente, claro. Por isso oferece à população uma série de oficinas e outras atividades culturais na sua sede, na Rua 13 de Maio, 32. Essa sede é formada por um conjunto de três sobrados do século 18 restau-rados pelo Instituto do Patrimônio Cultural. Lá há uma exposição per-manente de vestes, objetos e até da imagem de N. S. da Boa Morte. A vi-sitação ocorre durante o ano inteiro, mas é muito intensa nos meses de junho e agosto, época das festas de São João e de N. S. da Boa Morte.

De um grande sofrimento do tempo da escravidão herdamos a memória viva de um povo que transformou dor em força e alegria.

julho/dezembro 2019 23

capa

Elo entre dificuldades e soluções

Atuação de catadores mostra potencial da Política Nacional

de Resíduos Sólidos, que chega aos dez anos ainda com

muitos desafios

Cristina Ávila (texto e fotos)

A Vila Pinto é uma comunidade de 11 mil pessoas trabalhadoras po-bres situada entre zonas nobres de Porto Alegre. Tem todos os pro-blemas das periferias, o que inclui crianças na prostituição e jovens dependentes do tráfico e do con-sumo de drogas. Mas uma espé-cie de salva-vidas torna este lugar especial: o Centro de Educação Ambiental (CEA), associação de catadores constituída por um gal-pão de triagem de 130 toneladas de materiais recicláveis por mês, uma creche e um centro cultural que atendem 500 famílias. Esse complexo é exemplo do potencial estimulado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que em dez anos de criação tem mui-tos excelentes resultados, mas está longe de terminar a tarefa que se propõe.

Catadores e catadoras de mate-riais recicláveis estão no centro da PNRS, estabelecido pela Lei 12.305, homologada em 2010, que prevê entre seus princípios básicos o que se chama de logística rever-sa, idealizada não apenas como

No galpão da Cooperativa Viamonense de Catadores, um

acervo digno de museu com objetos achados no lixo

julho/dezembro 2019 25

meio de proteção ambiental, mas de desenvolvimento econômico e social, na medida em que os ma-teriais descartados após consu-mo voltam como matéria-prima para a industrialização de novos produtos. Para isso, a legislação criou como instrumento jurídico a formalização de acordos setoriais entre poder público, empresas e cidadãos, distribuindo a cada um o que se chama de responsabilidade compartilhada.

O CEA Vila Pinto faz parte do gru-po de 802 organizações de catado-res e catadoras de materiais reci-cláveis no Brasil que receberam, de 2012 a 2017, o apoio de alguma das 4.487 ações realizadas no âmbito do acordo setorial criado em 2015 pela Coalizão Embalagens. Trata--se de uma aliança formada por 22

entidades de produtores, impor-tadores, usuários e comerciantes apoiadas pela Confederação Na-cional do Comércio de Bens, Ser-viços e Turismo (CNC) e pela Con-federação Nacional das Indústrias (CNI). Elas recebem assessoria técnica da associação Compromis-so Empresarial para a Reciclagem (Cempre), outra organização criada pelo setor empresarial em 1992, em consonância com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92).

O Cempre Review 2019, estudo so-bre resultados do acordo setorial [disponível em http://cempre.org.br/upload/CEMPRE-Review2019.pdf ], relata que hoje 65,3% das embala-gens são recicladas no Brasil, em 732 municípios, abrangendo 63% da população, especialmente em regiões metropolitanas – resultado da primeira fase de implantação e desenvolvimento da logística re-versa, entre novembro de 2015 e novembro de 2017, com R$ 2,8 bi-lhões de investimentos em 858 in-dústrias recicladoras, 802 coopera-tivas de catadores e na criação de 2.082 estações de coleta.

Ana Paula Medeiros (de blusa rosa, ao centro) é presidente do Centro de Triagem Vila Pinto. O espaço mantém um centro cultural que oferece uma série de atividades. Muitas crianças e adolescentes participam

Senac ambiental n.13 26

Tudo isso representou 26,8% de aumento na recuperação de em-balagens. Entretanto, embora os municípios brasileiros com coleta seletiva de resíduos tenham passa-do de 81 (1994) para 1.227 (2018), apenas 17% do povo ainda tem esse benefício, de acordo com le-vantamento feito até o ano passa-do. E o Brasil perde muito dinheiro pelo descarte incorreto.

“A logística reversa teria potencial de gerar benefícios econômicos da ordem de R$ 1,1 milhão por dia (dados de 2014), caso 90% da po-pulação fosse atendida por coleta seletiva de resíduos nas cidades--alvos das ações”, ressalta o Cem-pre Review, dando como exemplo um estudo do Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre perdas no Brasil de aproxi-madamente R$ 8 bilhões por ano ao enterrar materiais que poderiam ser reciclados.

Existem ainda 3 mil lixões no país, com sérias contaminações de solo e lençóis freáticos. Já deveriam ter sido aterrados quando a PNRS completasse cinco anos. O maior deles teve solução no ano passa-

do. Era o lixão da Cidade Estru-tural, um dos maiores do mundo, nascido junto com o Distrito Fe-deral, nos anos 1960, cerca de 15 quilômetros distante do Palácio do Planalto e na divisa com o Par-que Nacional de Brasília, unidade de conservação ambiental federal. Alcançava então 40 milhões de to-neladas de detritos, com 55 metros de maciço, a parte central mais alta. E havia decisão do Tribunal de Justiça para que fosse aterrado desde 2007.

Mas a história do CEA é anterior mesmo à homologação da PNRS. “Tudo isso foi inventado”, resume a presidente do Centro de Triagem Vila Pinto, Ana Paula Medeiros, que também é secretária do Fórum de Unidades de Triagem e Catadores de Porto Alegre. Com 43 anos, ela mora na Vila Pinto desde os seis meses de vida, em uma casa até hoje em construção, mas que tem quatro andares – um para a famí-lia dela e os outros para cada uma das famílias de seus irmãos. A obra inacabada foi feita pela mãe, Marli Medeiros, que morreu aos 65 anos, em 2018, e foi responsável – com outras lideranças do bairro – por

Segundo o estudo da Cempre Review,

65,3% das embalagens são

recicladas no Brasil

Nascido em Alegrete, no interior gaúcho, Luiz Henrique foi para Porto Alegre trabalhar como garçom. Hoje é catador

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uma verdadeira revolução. A famí-lia teve bom padrão de vida, com loja no centro da cidade, mas faliu com o Plano Collor, nos anos 1990.

“Marli era uma líder”, diz Ana Pau-la. “Na luta comunitária, criou-se a ideia de geração de renda para as mulheres, que na época eram ainda mais vítimas do machismo, principalmente dos homens do tráfico”, conta. “Hoje a vila ainda tem problemas, mas nem se com-para. Esse lugar era de desova do crime. Carros roubados, cadáveres, tudo...”

A família Medeiros tinha chegado de Alegrete, oeste do estado, e Marli acabou descobrindo, com o curta-metragem Ilha das Flores, de Jorge Furtado, que do lixo também se podia tirar renda.

Uma coisa veio atrás da outra. Marli passaria a ter uma cadeira nas reuniões do orçamento parti-cipativo da Prefeitura. Começariam então a chegar água encanada, luz,

asfalto e organização popular. E o CEA nasceu e cresceu. “Tivemos derrotas e conquistas. Por isso pertencemos tanto a este espaço. É um lugar de transformações e oportunidades. Somos um elo en-tre as dificuldades e as soluções”. Ana Paula conta que muita gente chega sem ter rumo, em busca de alternativa de vida, e encontra sa-ídas.

A estimativa é que 70% das famí-lias da Vila Pinto vivam em situação de risco social e garantam minima-mente o sustento com venda de material reciclável. Inclusive crian-ças e adolescentes. O crescimento da prostituição infantil é acelerado, como também o índice de conta-minação por HIV é superior ao restante da população de Porto Alegre. O Rio Grande do Sul ocupa hoje o segundo lugar nas estatísti-cas de casos de Aids no Brasil, com 32,8 para cada 100 mil habitantes.

O Centro de Triagem é tocado por 45 associados, que recebem um salário mínimo mensal por carga de oito horas diárias e processa-mento das 130 toneladas por mês de resíduos sólidos. O Centro Cultural James Kuliz, com 40 fun-cionários, foi fundado em 2002, faz 2.500 atendimentos por mês e oferece 200 refeições por dia. Tem quadra de esportes e, por meio de 12 diferentes projetos, oferece cultura, lazer, educação ambiental, assistência jurídica e psicológica a uma população que vai de crian-ças a idosos. Foi criado a partir da necessidade das associadas com os filhos que ficavam sozinhos, expostos aos riscos que a rua ofe-recia. E tem ainda creche para 120 bebês e crianças menores de 6 anos, com 15 funcionários. A ins-tituição se mantém desde 2008 em convênio com a Secretaria Munici-pal de Educação e foi construída com a colaboração de uma empre-sa de engenharia.

foto: 123RF

Senac ambiental n.13 28

Linha do tempo

2002Categoria de catadores de

materiais recicláveis é reco-nhecida como profissão.

2006Decreto 5.940 implementa a coleta seletiva solidária em órgãos federais, com des-tinação de resíduos para

cooperativas e associações.

2007Lei 11.445 permite ao poder público a contratação sem licitação de cooperativas e associações de catadores

nos serviços de coleta sele-tiva nos municípios.

2010Decreto 7.217 considera cooperativas e associa-

ções como prestadoras de serviço público de manejo

de resíduos sólidos.

Lei 12.305 institui a PNRS, que inclui catadores como

agentes essenciais no trata-mento de resíduos sólidos.

Decreto 7.404 regulamenta a PNRS.

Decreto 7.405 institui o Programa Pró-Catador e

um comitê interministerial para inclusão social e eco-

nômica dos catadores.

As perspectivas, porém, são pre-ocupantes. “Hoje somos mais um negócio social do que uma or-ganização social”, ressalta Ana Paula. “Entramos em uma época diferente no relacionamento com a gestão pública com relação a de-veres e cumprimento de regras. É um momento de muitas mudanças jurídicas às quais precisamos nos ajustar”.

Ela diz que, após 20 anos de tra-balho baseado em convênios, as relações com o município passam a ocorrer por contratos. As prefei-turas pagam valores muito altos para empresas privadas fazerem a coleta seletiva e entregarem nos galpões de reciclagem, ao passo que os catadores fazem esse traba-lho de graça. “É injusto, e tende a piorar. Agora a tendência em todo o Brasil é que os convênios entre prefeituras, cooperativas e asso-ciações de catadores sejam trans-formados em contratos”, sobre os quais incidem tributos como ISS e INSS. É uma agressão aos serviços sociais e ambientais dos trabalha-dores”, reclama.

São 16 unidades de reciclagem em Porto Alegre, cidade que já foi referência em reciclagem para o país, seguindo os passos de capi-tais como Belo Horizonte, que tem longo histórico de sucesso. “Não

lamento essas mudanças. Para nós é um desafio. Mas uma das unida-des de reciclagem aqui na capital já fechou e duas estão quase fe-chando. É desumano, visto que são unidades muito pobres, tem uma que funciona embaixo da pon-te do [lago] Guaíba. É um trabalho social que míngua”, observa Ana Paula. Além disso, há ações que o movimento nacional de catado-res classifica como “higienização” e que envolvem a destruição das moradias dos catadores para tirar do cenário urbano as “cenas que incomodam”.

Abrem-se, assim, brechas no país para empresas que estão de olho nesse mercado há bastante tempo. Deixar organizações de trabalha-dores à míngua pode dar margem a justificativas para a incineração como solução para os problemas do lixo. O próprio Ministério do Meio Ambiente dá indícios de ex-clusão do trabalho de catadores. Em Porto Alegre já houve tentati-vas de incluir na pauta da Câmara Municipal e da Assembleia Legisla-tiva projetos para abertura à quei-ma desses resíduos, descaracteri-zando os objetivos da PNRS, que foi homologada pela luta de cata-dores e ambientalistas, depois de tramitar por cerca de 20 anos no Congresso Nacional.

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Perfil dos catadoresO Movimento Nacional de Catado-res de Materiais Recicláveis estima que existam atualmente de 800 mil a 1 milhão de pessoas nessa ati-vidade. “Somos 70% da categoria. Somos negras e chefes de família”, enfatizou a catadora Marilza Apa-recia de Lima, com base nas esta-tísticas das instâncias de debate dos trabalhadores, contestando dados oficiais, em 2013.

O Anuário da Reciclagem 2017-2018, publicado em 2019 pela As-sociação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais (Ancat), inclui estudo realizado pelo Ipea que informa a existência de 388 mil catadores no Brasil, a maio-ria homens (72%), pretos, pardos ou indígenas (74%), distribuídos principalmente no Sudeste (40%) e Nordeste (30%), 47% com idade média de 43 anos, mas com 24% entre 50 e 60 anos, com renda de um salário mínimo e escolaridade máxima de ensino fundamental.

Esses dados têm base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-lios (PNAD 2017/2018). A diferença para as estimativas do MNRS se justifica porque o levantamento leva em conta a autodeclaração das pessoas, que muitas vezes exercem atividades profissionais

paralelas. Há uma grande parcela que também não está nas estatísti-cas por morar nas ruas, sem ende-reço fixo, o que pode modificar ou-tras características do perfil, como nível de escolaridade e rendimen-tos. O próprio Ipea reconhece essa diferença.

O anuário da Ancat chama a aten-ção ainda para outra particularida-de: a necessidade de mudança nos hábitos de consumo, para evitar materiais jogados no lixo. Antes da reciclagem, deve-se pensar no reúso, como recomenda a pró-pria Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ou seja, não é preciso transformar materiais em novas matérias-primas para a indústria. Antes, é preciso cuidar do reapro-veitamento.

A relação descomprometida das pessoas com o consumo provocou uma importante iniciativa em rea-ção da Cooperativa Viamonense de Catadores e Recicladores (Coovir), na avenida mais movimentada de Viamão, município da Grande Por-to Alegre, com 260 mil habitantes. Um enorme galpão locado pela entidade surpreende os visitantes com o monte de coisas curiosas e chamativas que saem do lixo. Um bote emborrachado de quase dois

Adão Baltezam (acima) trabalha no Ecoponto, onde o técnico em eletrônica Elson Marques (ao centro) faz velhos equipamentos voltarem a funcionar

Senac ambiental n.13 30

metros sobressai ao lado de ele-troeletrônicos, bonecas, roupas, bicicletas, impressoras, rádios e vitrolas antigas.

“Isto aqui não é um brique”, adver-te Joaquim Reis, um dos respon-sáveis pelo espaço, com o termo consagrado pelos gaúchos para denominar as lojas de antiguida-des ou usados. Ele se refere ao Ecoponto criado pelos catadores para expor o ideal de um mundo mais sustentável, onde o reúso e a não geração de resíduos são tam-bém prioridade, como recomenda a própria PNRS.

Junto ao Ecoponto eles criaram uma área de integração, educa-ção e conscientização ambiental, inaugurada em novembro de 2019: o Multiespaço, que se integra a di-versas propostas, como os micro--ondas consertados, campeões nas prateleiras. Todo dia chega um. “Aqui morrem oito e nascem seis por dia”, brinca o técnico em eletrônica Elson Marques, respon-sável por “ressuscitar” os equipa-mentos. “Às vezes só falta ligar um fiozinho”, conta Adão Baltezam, que trabalha no local ajudando a organizar e reparar eletrônicos, móveis e bicicletas.

Em setembro, o espaço Sala Verde que também funciona ali, ganhou reforço com a contratação da bió-loga Michelli Vargas, que trabalhou três anos no Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universi-dade Católica, no laboratório de botânica e no atendimento a es-tudantes. “Sempre quis trabalhar com reciclagem”, explica. O local tem uma biblioteca ambiental den-tro de uma sala feita com reciclá-veis e recebe adultos, crianças e adolescentes. Em novembro, a bióloga estava em campo, em um evento no Parque Estadual de Ita-puã, localizado no município, para incentivar e orientar escolas sobre a destinação correta dos resíduos orgânicos.

A Coovir tem duas unidades de triagem que juntas reciclam 120 toneladas de resíduos mensais, além do Ecoponto e do Multiespa-ço, que funciona em parceria com a Associação dos Recicladores. Viamão tem 100% de cobertura do serviço de coleta seletiva, com 85% dos bairros da zona urbana aten-didos pela cooperativa em sistema de coleta porta-a-porta, por esfor-ço e iniciativa dos catadores des-de 2016. São 117 cooperados, com uma média de 46 famílias ativas

A bióloga Michelli Vargas: “Sempre

quis trabalhar com reciclagem”

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Microempresária na Vila Planetário“Fui bater na lixeira louca de vergonha. Naquele tempo, não era profissão. Pra ninguém me reco-nhecer, eu me vestia de homem. Tinha sido de-mitida grávida, já com três filhos”, conta Neusa Teresinha Machado, 59 anos, moradora da Vila Planetário, em Porto Alegre. Passados quase 20 anos, ela inventou para si um novo elo na cadeia da reciclagem. Compra de catadores e revende para uma empresa de reciclagem em Canoas, na região metropolitana. “Abri minha microempresa. Faço tudo. Contabilidade, anotações de forne-cedores e de clientes. Separo material e arrasto bag”, diz ela, referindo-se às grandes sacolas que ficam na porta de casa e no corredor por onde passam vizinhos.

trabalhando efetivamente, forne-cendo até mesmo certificação de destinação de resíduos ambiental-mente adequada a empreendimen-tos.

São seis anos de trabalho de uma entidade de catadores que trans-formou Viamão em um município de referência para reciclagem po-pular no Rio Grande do Sul. Ao chegarem ao trabalho, todos os as-sociados da Coovir têm garantidas as refeições do dia na mesa, além de uniformes, equipamentos de

proteção individual, recolhimen-to de contribuição à Previdência Social, seguro de vida, descanso remunerado, prevenção de saúde, controle de vacinação e treina-mento. Ninguém ganha menos do que um salário mínimo. O resulta-do da reciclagem organizada pro-move, além do protagonismo dos catadores, a geração de renda e a preservação ambiental. “Viamão é uma cidade onde os catadores or-ganizados lutam e demostram que a PNRS pode dar certo”, enfatiza Joaquim Reis.

Neusa Teresinha, microempresaria da reciclagem

Senac ambiental n.13 32

Acordo setorial de lâmpadasLojas, supermercados e comércio em geral destinaram pelo menos 6,5 mi-lhões de lâmpadas à reciclagem nos últimos quatro anos. “Mensalmente, co-letamos aproximadamente 900 unidades”, revela Everton Barros, coordenador de Vendas da Realcenter Materiais e Equipamentos Elétricos, situada em um bairro referência em materiais de iluminação na capital gaúcha.

Para se encaixar na logística reversa, Everton conta com a Associação Brasi-leira para a Gestão da Logística Reversa (Reciclus), que tem 1.724 pontos de coleta em 26 estados e no Distrito Federal. O agendamento do recolhimento é feito via internet. Em até 24 horas, a transportadora licenciada está em sua porta, com todos os cuidados necessários, pois as lâmpadas fluorescentes são consideradas produtos perigosos pela constituição por mercúrio, metal que pode contaminar solo e água, com riscos à saúde.

A Reciclus foi criada pelo setor empresarial para cumprimento da logística reversa de lâmpadas domésticas fluorescentes compactas e tubulares, de vapor de mercúrio, sódio ou metálico, e as de luz mista. A primeira revisão desse acordo está prevista para 2020. O principal ponto será a adequação ao crescimento do consumo de lâmpadas de tecnologia LED (Diodo Emissor de Luz, em português). Assim como este, a Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê acordos setoriais também para pilhas, baterias, óleos lubrificantes para veículos, pneus etc.

O acordo setorial das lâmpadas foi desenhado em um grupo de trabalho for-mado pela CNC, pela Associação Brasileira da Indústria da Iluminação, 24 em-presas fabricantes, importadoras, comerciantes e distribuidoras, Ministérios da Indústria e Comércio (Mdic) e do Meio Ambiente (MMA), Associação Brasi-leira de Importadores de Produtos de Iluminação e Instituto Nacional de Me-trologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). O resultado foi uma minuta levada à consulta pública e aprovada pelo Comitê Orientador liderado pelo MMA e constituído também pelos Ministérios da Agricultura, Fazenda e Saúde.

Desafios: erradicação da pobreza

e novos padrões

O sucesso da gestão integrada dos resíduos urbanos, que inclui a logística reversa das embala-gens, representa oportunidades na economia verde. Segundo o Cempre Review 2019, o desafio requer políticas públicas, justiça tributária e segurança jurídica para novos investimentos em inovação e na infraestrutura do parque reciclador, ao mesmo tempo que são necessárias mu-danças nos padrões de produ-ção e consumo.

Segundo o Cempre 2019, o de-senvolvimento do modelo bra-sileiro de reciclagem está de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, lançados pela Organização das Nações Unidas, com metas am-bientais, sociais e econômicas para 2030 – uma agenda que se integra ao planejamento e às es-tratégias empresariais.

O documento aponta como me-tas a erradicação da pobreza, a igualdade de gênero, a redução das desigualdades, água potável e saneamento, trabalho decente com crescimento econômico, cidades e comunidades sus-tentáveis, consumo e produção responsáveis, ação contra a mu-dança global do clima e parce-rias para implementação dessas novas realidades.

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notaS

COP-25: clima péssimo

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Mais preocupação no ar

Principal causador do efeito estufa, o dióxido de carbono alcançou um nível recorde de concentração na atmosfera em 2018, segundo a Or-ganização Meteorológica Mundial (OMM), agência especializada da Organização das Nações Unidas. Se-

gundo os cientistas, o índice regis-trado foi de 407,8 partes por milhão, quase 150% maior do que o do perío-do pré-industrial e sem sinais de de-saceleração. China e Estados Unidos são os principais emissores. Para o secretário-geral da OMM, Petteri

Tallas, em comunicado à imprensa, a última concentração de dióxido de carbono semelhante ocorreu entre 3 e 5 milhões de anos atrás, quando a temperatura média do planeta era de 2ºC a 3ºC superior à atual.

A Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP-25), realizada em Madri, Espanha, em dezembro, foi frustrante. Segundo o secretário--geral da ONU, António Guterres, perdeu-se uma grande oportunidade para demonstrar maior ambição no enfrentamento da crise climática. Os países não chegaram a um acordo sólido. Mantiveram apenas um ape-lo vago sobre a necessidade de es-forços de redução das emissões de

carbono e, na prática, postergaram o problema para a próxima conferên-cia, em Glasgow, Escócia, em 2020.

A participação do Brasil foi consi-derada decepcionante por grande parte da comunidade internacional (ouça o comentário do jornalista es-pecializado em meio ambiente André Trigueiro em: www.bit.ly/andretrigueiro). O país ainda recebeu o “prêmio” Fós-sil do Dia. É uma brincadeira criada

pela organização não governamental Climate Action Network (CAN) com o objetivo de atrair atenção mundial para quem permanece na contramão da sustentabilidade. Na justificativa, a CAN menciona o desmatamento e as queimadas, lembrando também que o governo brasileiro tem trata-do organizações da sociedade civil como “bodes expiatórios” da des-truição da floresta amazônica.

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O campus da Universidade Federal do Pará em Altamira sediou, nos dias 17 a 19 de novembro, o evento Amazônia Centro do Mundo. Mais de 300 pessoas participaram de de-bates, atividades culturais e rodas de conversa. O evento foi realizado pelo Instituto Ibirapitanga, pelo Ins-tituto Socioambiental, pela Asso-ciação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Iriri e pela jornalista Eliane Brum. Indígenas, ribeirinhos,

agricultores, quilombolas, movi-mentos sociais, ativistas ambientais e cientistas.

O encontro reuniu líderes indígenas, ribeirinhas e quilombolas como Davi Kopenawa, Socorro de Barcarena, Raoni e Chico Caititu, além de ati-vistas dos movimentos internacio-nais Fridays for Future, Extinction Rebellion e Pussy Riot. Eles se jun-taram a intelectuais como o cientista

Antonio Nobre, o arqueólogo Edu-ardo Neves, o engenheiro florestal Tasso Azevedo e as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze.

Foi produzido um manifesto que pretende mobilizar a sociedade em torno da luta pela floresta e contra a extinção das vidas no planeta. Para ler e assinar, acesse www.abaixoassina-do.org/abaixoassinados/48467.

Três meses após seu primeiro registro, a mancha de pe-tróleo cru que se espalhou por todo o litoral nordestino e já começava a alcançar o Sudeste permanecia com origem não identificada pelas autoridades brasileiras. Re-portagem da Agência Pública (www.apublica.org) publi-cada em 3 de dezembro mostrou ainda outro problema: a destinação dos resíduos coletados nas praias era, em muitos casos, inadequada, o que pode provocar novos impactos ambientais.

Segundo a Pública, a desarticulação das ações – que acabaram executadas isoladamente por cada estado – levou a situações como a que ocorre na Bahia. Nos municípios de Canavieiras e Maraú, por exemplo, o óleo

estava sendo depositado em locais impróprios, como um lixão a céu aberto e uma escola abandonada.

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O SAF do Sítio Semente, em Sobradinho (DF), tem árvores, abóbora e milho

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agroEcologia

Plantando, colhendo e preservando

Sistemas agroflorestais vêm sendo ampliados. Seus

defensores garantem que a prática beneficia agricultores

e o meio ambiente

Elias Fajardo (texto e fotos)

Os sistemas agroflorestais (conheci-dos como SAFs) são formas de uso ou manejo da terra que combinam árvores frutíferas ou madeireiras com cultivos agrícolas ou criação de animais e ajudam na redução da erosão e na recuperação de áreas degradadas. É uma forma de produ-ção que imita o que a natureza faz, com o solo sempre coberto pela vegetação e técnicas naturais que evitam pragas e doenças, dispen-sando o uso de aditivos químicos. Eles favorecem a diversificação da produção, permitindo colheitas su-cessivas ao longo do ano.

Espécies diferentes são plantadas na mesma área: árvores junto com roça. As culturas de ciclo curto (milho, abóbora, mandioca e ou-tras) preparam o ambiente para bananeiras, palmeiras e árvores. As plantas são cultivadas em con-sórcio e dispostas em linhas pa-ralelas, intercalando espécies de portes e características diferentes para aproveitar ao máximo o ter-reno e favorecer a manutenção e a introdução de espécies nativas.

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O material gerado pela poda de árvores e arbustos retorna ao solo como adubo.

Os SAFs vêm sendo praticados há décadas no Brasil, mas nos últi-mos anos sua implantação vem se ampliando em diferentes ecossiste-mas. Eles exigem mais mão de obra e um número maior de processos do que a agricultura convencional, mas seus defensores afirmam que beneficiam os produtores rurais, a região onde se situam e o meio am-biente como um todo.

Um pioneiro na implantação da agrofloresta no país é o suíço Ernst Götsch, que veio para o Brasil na década de 1980 e se estabeleceu no sul da Bahia. Comprou uma fazen-da degradada que rebatizou como Olhos d’Água. Quando chegou, a propriedade tinha três nascentes. Atualmente tem 17, graças às técni-cas de conservação que emprega. E os riachos que costumavam desa-parecer nos períodos de seca hoje correm o ano inteiro. “Água se plan-ta”, afirma Ernst sorrindo. Segundo ele, todas as noites, as árvores go-tejam e, mesmo sem chover, a ser-rapilheira (uma camada de restos de folhas, caules, ramos, flores, frutos e sementes) que cobre o solo per-manece úmida.

Ernst introduziu entre nós a agricul-tura sintrópica, que investe no uso de dinâmicas naturais para enrique-cer e recuperar o solo. O conceito de sintropia envolve a organiza-ção, o equilíbrio e a preservação da energia no ambiente. “É preciso constituir sistemas de integração permanente, que permitam ao agri-cultor produzir melhorando o solo e criando um ecossistema mais prós-pero”, afirma.

No coração do BrasilNo Núcleo Rural Lago Oeste, em Sobradinho, Distrito Federal, o Sítio Semente tornou-se uma referência em agrofloresta, com cultivos per-manentes, palestras, aulas e visitas guiadas sobre o tema. Visto de cima, lembra um oásis no meio da aridez da seca. A região fica no Planalto Central e tem suaves ondulações de terreno com algumas montanhas altas bem no fundo. Nas bordas do planalto podem ser encontrados vales profundos. A vegetação é de Cerrado, segundo maior bioma bra-sileiro e um dos mais ameaçados pela ocupação intensiva e pela mo-nocultura. Apresenta árvores bai-xas, esparsas, de troncos retorcidos

Com cursos e palestras, o Sítio Semente tornou-se uma referência em sistemas agroflorestais

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e casca e folhas grossas para resis-tir às queimadas, além de arbustos e gramíneas. As raízes das árvores são profundas para captar a água, o que leva alguns estudiosos a di-zerem que o Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo.

O proprietário do Sítio Semente é o biólogo Juã Pereira, que fez um curso com Ernst em 2004 e ficou encantado com a possibilidade “de plantar florestas de comida”. Tornou-se produtor orgânico cer-tificado e o sítio participa hoje de 11 feiras em Brasília. O Semente começou suas atividades em 2006 e tem seis hectares de SAFs, onde são cultivados de 30 a 40 produ-tos agrícolas. “Uma das vantagens”, continua Juã, “é que não lidamos com pragas e ervas daninhas. Isto não existe aqui, é algo criado na monocultura. Elas são chamadas de daninhas, mas só estão cumprindo seu papel na natureza”.

O biólogo afirma também que “a agricultura convencional deixa como resultados o deserto, a falên-cia e a morte. Os venenos usados nas plantações vão para a água, contaminam o solo e o lençol fre-ático. Já os SAFs deixam como re-sultados as florestas. Parte delas é derrubada, utilizada e depois re-plantada. A mata não é um museu de ambientalistas, é algo que se pode usar harmoniosamente”.

A etnobotânica Nathalia Mughet, companheira de Juã, considera a floresta uma grande mestra. “Ela é uma professora que nos ensina como captar a vida. Os processos e dinâmicas que estão nela já exis-tiam antes e vão continuar muito depois de nós. Por meio da fotos-síntese, a floresta sintetiza a energia de fora do sistema, transforma a luz em vida e em matéria – as plantas, que são a base da cadeia alimentar”.

Nathalia é crítica com relação ao que chama de monocultura da

Nathalia Mughet: a floresta é uma mestra

Visita guiada a um SAF

mente: “A gente tende a classificar as coisas em boas e ruins, mas na natureza não existe isso. Precisa-mos romper com a monocultura da mente, com toda essa lei da escas-sez e do medo, e trazer à prática propostas que levem em conta que a natureza é holística, integrada, circular, biodiversa. E nós, huma-nos, devemos nos inspirar em seus processos”.

Dentro desta compreensão, ela acha que as chamadas doenças das plantas ajudam a mostrar al-

julho/dezembro 2019 39

guma coisa errada que o produtor rural estaria fazendo. “Se surge um bicho, ele indica um desequilíbrio na plantação. Devemos, então, ir mais fundo para descobrir a origem desse desequilíbrio e tratar suas causas. O que se considera erva da-ninha, na verdade, são plantas que vão cuidar para que o sistema de ra-ízes aumente, trazendo mais bacté-rias para ter mais vida. São plantas enfermeiras que vêm curar o meio ambiente, entre elas podemos citar o capim, a lobeira (também chama-da de fruta-de-lobo) e o barbatimão (usado para tratar feridas, queima-duras e lesões na pele). A gente ten-de a importar plantas curativas de outros países, mas esquece que no nosso próprio ambiente temos ve-getais nativos que nos curam”.

Num galpão no Sítio Semente, Na-thalia e algumas moças estão sepa-rando folhas de oliveira para serem usadas como remédios. Entre elas está Mayara Côrtes, que considera este trabalho uma forma de apren-dizagem. “Me sinto feliz em traba-lhar nisto. O conhecimento de ervas medicinais é muito importante para todos nós. Vivemos da natureza e temos de cuidar dela, plantando

sempre e não queimando. Devemos procurar a cura na própria natureza e não nos produtos químicos”.

Eric Lassmann, administrador e mestrando em meio ambiente e de-senvolvimento rural na Universida-de de Brasília, faz parte da equipe do Sítio Semente e tem uma visão muito particular sobre a agroflores-ta: “A gente aprende que a natureza funciona por meio do amor condi-cional, um amor por tudo, sem exi-gir algo em troca, respeitando os princípios naturais, dos quais um dos mais importantes é a colabora-ção. As plantas não competem, elas colaboram entre si. A gente trabalha a abundância e todos os vegetais vão crescendo juntos”.

Uma postura importante, segundo Eric, é respeitar as necessidades de sol de cada planta e pensar a agricultura como atividade holísti-ca. “O que vemos nos SAFs é uma mudança de paradigma. Estamos evoluindo, procurando entender o meio ambiente sob outro olhar, perceber que somos parte dele, não superiores. A natureza é um siste-ma inteligente e complexo que tem muito a ensinar. Em vez de destruir, precisamos manejar os elementos Plantação de alho-

poró, aipim e banana

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naturais para plantar, colher, vender e conservar”.

A experiência de Rômulo e Sofia

O agrônomo Rômulo Araújo, a agro-ecóloga e produtora rural Sofia Car-valho e sua filha, a pequena Maria, vivem no Sítio Raiz, vizinho ao Sítio Semente. O SAF do Raiz começou a ser implantado em 2013 e tem dois hectares com hortaliças e árvores.

Segundo Rômulo, o distúrbio e a transformação estão associados à floresta, ocorrem naturalmente pela ação de seres não biológicos. Os ventos e as tempestades derrubam uma árvore, cria-se uma clareira e começa um processo de sucessão natural, o que também acontece com os animais.

“Também somos animais”, explica o agrônomo, “e estamos inseridos em sistemas florestais. Então precisa-mos atender nossas necessidades seguindo a dinâmica dos ecossis-temas. Nisto está incluído derru-bar uma área de floresta, e nela há muitas sementes que vão reiniciar o processo com um patamar de ferti-lidade sempre superior”.

O que um SAF faz, segundo Rômu-lo, é mimetizar esse processo, ou melhor, fazer parte dele: “O dese-nho agroflorestal está sempre mu-dando, estamos sempre pensando em como garantir os princípios bá-sicos que devemos seguir”.

Os princípios básicos presentes num SAF são a sucessão natural (em que uma comunidade vegetal se transforma com o decorrer do tempo), a estratificação (distribui-ção dos vegetais desde o solo até os que alcançam maior altura) e a retroalimentação (em que a área plantada produz seu próprio ali-mento). Segundo Rômulo, se um desses princípios falha, a área plan-tada vai apresentar problemas. Ele mantém uma postura crítica com relação aos resultados de um SAF: “Temos colhido muitos erros, al-guns acertos e, acima de tudo, mui-ta reflexão. Nossas áreas de plantio interagem com a questão econômi-ca local, o tamanho dos imóveis e tudo o que temos aqui. Não gosto de fazer alarde nem oba-oba com relação à agrofloresta. Há uma sé-rie de dificuldades para adotar esse sistema e as áreas têm relação com todas as operações que são neces-

Ao centro, o agrônomo Rômulo, a agroecóloga Sofia

e a filha do casal

Alho-poró e morangos plantados em consórcio

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sárias e acabam encarecendo nos-sos produtos”.

Ele considera a mão de obra a maior dificuldade, pois um SAF precisa constantemente de poda, cobertu-ra do solo com matéria orgânica e outras atividades que exigem muito trabalho: “A agricultura convencio-nal busca obter um produto com menor valor e menos mão de obra. Para conseguir tais objetivos, cria erosão e salinização do solo pelo uso intenso de adubos químicos que prejudicam o lençol freático e provocam assoreamento dos rios. Tais prejuízos são compartilhados com toda a sociedade. O contrário acontece com quem faz a agroflo-resta: temos um custo maior e uma lucratividade menor, mas criamos benefícios para o produtor e toda a sociedade. Hoje muitos produto-res acham bonito filosoficamente criar um SAF, mas, quando vão bo-tar tudo na ponta do lápis, acabam vendo que os custos são altos, daí desanimam”.

Apesar das dificuldades, Rômu-lo acha que vale a pena trabalhar com a agroflorestal. “Nosso ob-jetivo nunca foi simplesmente ter uma atividade econômica, ganhar dinheiro e depois ir gastar em ou-tro lugar. O que estamos fazendo é refletir, buscando respostas para um problema muito complexo na nossa sociedade: o habitar, ou seja, o que vamos fazer no local onde estamos inseridos”.

Sofia também desenvolve suas próprias reflexões, enquanto a pe-quena Maria dirige à mãe um olhar curioso: “Trabalhar com agroflo-resta acrescenta muito à minha perspectiva pessoal e me leva a indagar qual função tenho a cum-prir no planeta. É preciso estudar como funciona a floresta, como a vida se organiza para ir criando condições de abundância a partir de situações muito simples e de

contextos às vezes áridos. Então, ao estudar a floresta, entendemos como funciona a vida”.

Quanto aos resultados da expe-riência, ela afirma que o solo are-noso do Sítio Raiz está se trans-formando em terra preta e fértil, ajudando os ciclos de água a se manterem. “Estamos produzin-do alimento enquanto as árvores que plantamos se desenvolvem. Quando chegamos aqui, gastamos muita energia combatendo o fogo na época da seca. Agora o fogo já não é tão constante, a água que as plantas acumulam faz com que o fogo tenha menos facilidade de se expandir. Além disso, temos me-nos problemas com insetos e pató-genos do que a agricultura conven-cional. No ano passado tivemos um ataque de lesmas nos brócolis, mas acabamos entendendo que a presença delas nos mostrava onde o trabalho estava equivocado e fo-mos mudando”.

O maior desafio, segundo Sofia, é continuar plantando e lutar para que o poder público apoie os SAFs como uma iniciativa capaz de pro-duzir alimentos e, ao mesmo tem-po, preservar os recursos naturais.

Elias e Yolanda nos assentamentos

Elias de Souza Pereira trabalha no sítio de sua família no Assenta-mento da Chapadinha, onde está implantando um SAF há quatro anos. O assentamento tem 42 fa-mílias numa área da União ocu-pada por um fazendeiro que fazia monocultura com uso intensivo de aditivos químicos. As famílias de sem-terra acamparam em barra-cas no local e iniciaram uma luta que durou anos, até que o Insti-tuto Nacional de Reforma Agrária (Incra) lhes desse a posse. Ele re-sume assim sua experiência: “Se a gente fizesse plantio convencional

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Batatas orgânicas

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e viesse uma praga, morria tudo. Mas plantando vários produtos juntos, se morrer um, ficam ou-tros. No SAF não temos muita per-da. Na linha da banana, fazemos outras culturas que vêm mais rá-pido, como mandioca e couve. Na medida em que se vai manejando, temos sempre vários produtos di-ferentes. E com a vantagem de não usar adubos químicos. Adubamos com cama de frango, farinha de osso e calcário, e os restos das plantações vão sendo colocados nos canteiros. Para mim está dan-do muito certo. Vou continuar com SAF e aumentar cada vez mais nossa produção”.

Yolanda Landim é produtora rural no Assentamento Betel, no Lago Oeste, nos arredores de Brasília. Seu SAF de um hectare produz 15 hortaliças, além de banana e li-mão. Dos seus quatro filhos, três trabalham na roça com ela.

“Eu queria produzir e, ao mesmo tempo, ajudar a terra”, diz sorrin-do. Ela fez um curso de controle biológico para lidar com as pragas. “Na época de seca tem muito pul-gão na couve. Então a gente dá um banho de sabão neutro e algumas gotas de água sanitária nos pés de couve. Elas reagem bem”.

O trabalho é duro e as dificuldades são muitas, mas Yolanda é otimista: “O dinheiro que se usaria pra com-prar veneno e adubo químico pra botar na roça você investe em mu-das de árvores como o eucalipto, que é podado, volta pra terra e vira adubo. E quando precisa de madei-ra, a gente corta e replanta o euca-lipto. É possível ter renda com a con-servação do meio ambiente”, atesta.

Na chácara de Yolanda, além de seus filhos, trabalham também sua mãe, uma filha e uma sobrinha. As mulheres se ocupam da produção, higienização e comercialização. Duas vezes por semana, levam os

produtos para vender em feiras de Brasília.

O vento sacode as folhas das ba-naneiras e Yolanda, mais uma vez, sorri ao declarar: “A gente, como mulher e mãe, vê a terra também como uma mãe e percebe essa necessidade da terra de não estar nua, mas estar coberta e bem cui-dada”.

O hotel e a horta de Anelize

Anelize Regina Schuler é produtora rural, panificadora artesanal e dona de um eco-hostel no seu Sítio Pé no Chão, no Núcleo Rural Lago Oeste, em Sobradinho, Distrito Federal. Seu SAF tem um quarto de hectare. Aos 14 anos, começou a participar de uma ONG no Rio Grande do Sul, onde morava, e desde então tem desenvolvido seu conhecimento so-bre questões ambientais.

“Vim morar aqui para tentar mi-nimizar meu impacto no planeta. Depois vi que dava para comercia-lizar o excedente da horta com os vizinhos, fazendo trocas. Troco ce-bola por tomate, batata por outros produtos, e hoje temos mais de 20

A produtora rural Yolanda

Landim exibe seus produtos

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agricultores trabalhando com SAFs nesta região”.

Segundo ela, o primeiro beneficia-do com a agroecologia é o solo, que vai recuperando sua biodiversidade. O segundo ganho é a produção de água limpa. “A produção agroecoló-gica economiza água, usa irrigação por gotejamento ou aspersão. O terceiro ganho é evitar o desperdí-cio, pois os resíduos, como ramos, palha e folhas, são reincorporados ao terreno. Eu ponho no meu mi-nhocário, mas pode-se ainda abrir buracos no chão e colocar as so-bras da agricultura em volta das ár-vores, pois viram adubo orgânico”.

Duas coisas chamam atenção na propriedade de Anelize: a horta circular, em forma de mandala, e a casa de adobe. Ela se entusiasma ao explicar: “Aproveitar o desenho original do terreno é uma técnica muito antiga e faz a energia circular. A horta não deve ser só produtiva, precisa ser bonita e agradável. O produtor não é uma máquina que produz comida e despeja na ci-dade. Ele tem de ter qualidade de vida, trabalhar num ambiente limpo,

agradável e com sombra. Por isso ter árvores frutíferas é importante”.

A casa foi construída com a técni-ca do superadobe, utilizando terra e materiais do próprio local. Foram empregados muito pouca madeira e vidros reutilizados, que valorizam a iluminação natural e economizam energia elétrica.

Um SAF no sul de Minas

Biólogo, mestrando em Desenvolvi-mento Sustentável e Extensão pela Universidade Federal de Lavras, agricultor orgânico e secretário da Rede de Agroecologia e Economia Solidária do Sul de Minas, Rubens do Monte Silva Scatolino está im-plantando um SAF na propriedade de sua família, a Fazenda dos Co-xos, em Varginha, com quatro mó-dulos: café, horta, reflorestamento e frutíferas. A experiência começou em janeiro de 2017, seguindo o mo-delo praticado no Sítio Semente, após Rubens ter feito um curso com Juã Pereira.

O SAF é direcionado para gerar ren-da em intervalos regulares. A horta dá renda mais rápido, mas precisa de muita mão de obra. O café de-mora três a quatro anos, mas seus rendimentos são mais expressivos que os da horta. O SAF da fazen-da tem dois hectares de café, meio hectare de fruticultura, 0,3 de reflo-restamento e 0,2 de horta. A planta-ção de eucalipto é consorciada com abacate, banana, mandioca e feijão--de-porco, uma leguminosa usada para fazer adubação verde.

Segundo Rubens, mesmo sendo um SAF novo, já é visível uma melhoria no solo, o que gerou uma mudança na cor da terra: formou-se uma fina camada escura acima da superfície. “Dá pra ver também”, acrescenta, “que o local tem atraído a fauna. Aves como jacus e saracuras e ma-

Anelize Schuler colhe cebolas, batatas ervas e feijão

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míferos como saguis vêm para cá e se abrigam por perto”.

A fazenda, anteriormente muito de-gradada pelo plantio do café, teve sua biodiversidade melhorada. E a cada ano aumentam o plantio e a produção de café orgânico. “Na re-gião, o plantio alternativo ainda é incipiente”, continua Rubens, “pois o agronegócio é muito forte aqui”.

Ele afirma também que há uma grande procura de saídas para a cri-se do café, pois o preço está baixo e os insumos são caros. “Por outro lado, na agrofloresta, é a lavoura que produz os próprios insumos. Gasta-se menos. Além disso, usa-mos um biofertilizante líquido à base de esterco e açúcar”.

Rubens trabalha com certificação orgânica participante, fazendo visi-tas aos produtores e estimulando a responsabilidade compartilhada. “A gente visita, garante a fiscalização e todos se mantêm no mesmo barco”. O Sistema de Participação Orgânica

do Sul de Minas tem 14 associações de produtores filiadas. A maior difi-culdade tem sido harmonizar o mo-delo SAF às condições da região. “Precisei estudar a agrofloresta para tentar adaptá-la à produção de café. A segunda dificuldade é con-seguir mudas e insumos orgânicos. A terceira, fazer o novo sistema ser aceito. No início, muita gente acha-va que não ia dar certo, mas essa mentalidade começa a mudar com os resultados obtidos”.

“E a minha maior alegria”, confessa Rubens, sorrindo, “é quando rece-bo uma visita de um produtor rural que deseja plantar agrofloresta. Se o preço de uma plantação estiver baixo, o outro pode não estar. Não é como na monocultura, em que quando o produto principal baixa todo o sistema produtivo sente”.

Rubens sempre contou com o apoio familiar. “Meu pai acredita nas mi-nhas propostas e ajuda a investir nelas. Ele está pagando pra ver e dando apoio aos novos plantios”.

Rubens Scatolino: implantando um SAF na fazenda da família fo

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Patrimônio que ainda floresceSítio onde viveu o paisagista

Roberto Burle Marx reúne cerca de 3,5 mil espécies e pode ganhar título de

patrimônio mundial

Francisco Luiz Noel Fotos: Iphan/SRBM

Ao pé do Maciço da Pedra Branca, remanescente da Mata Atlântica na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o paisagista Roberto Bur-le Marx se dedicou por mais de 40 anos ao manejo da flora de diversas regiões do Brasil e do exterior. De uma área rural com 405 mil metros o artista fez um laboratório de ex-periências e uma linha de produ-ção de mudas para seus projetos, estrelados por espécies nacionais a que o paisagismo nunca dera valor. Fruto dessa dedicação de uma vida inteira é um acervo de jardins e vi-veiros com 3,5 mil espécies – parte de um patrimônio nacional que pode tornar-se também mundial em 2020.

O Centro Cultural Sítio Roberto Burle Marx (SRBM), no bairro de Barra de Guaratiba, é bem público dos brasi-leiros desde 1985, quando foi doado pelo paisagista à Fundação Nacional Pró-Memória, precursora do Institu-to do Patrimônio Histórico e Artísti-co Nacional (Iphan). Sua coleção de espécies tropicais e semitropicais, uma das mais importantes do pla-neta, está disposta em jardins ao ar

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livre e viveiros cobertos, a que se so-mam obras arquitetônicas, coleções de arte e biblioteca. O paisagista vi-veu no lugar até a morte, em 1994. Seis anos depois, todo o conjunto foi protegido por tombamento pelo instituto.

A elevação do SRBM à condição de patrimônio mundial na categoria cultural é a grande expectativa bra-sileira para o próximo encontro da Agência das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unes-co), na cidade chinesa de Fuzhou, em 2020. No evento, o Comitê do Patrimônio Mundial da agência vai dar a chancela, em sua 44ª reunião, a novos bens culturais e naturais de importância global, que vão aumen-tar uma lista que já inclui 1,1 mil relí-quias de várias partes do mundo. No Brasil estão 22, como as fluminenses Paraty e Ilha Grande, eleitas em julho de 2019, no Azerbaijão.

Antigo Sítio de Santo Antônio da Bica, a 50 quilômetros do Centro carioca, o lugar abrigava bananais, casa-grande e uma capela histórica quando foi adquirido por Burle Marx, em 1949. Assentada a coleção de

plantas iniciada em sua chácara, no Leme, zona sul do Rio, o paisagis-ta agregou ao sítio duas áreas vizi-nhas e formou um acervo paisagís-tico-botânico em que se destacam exemplares raros de famílias como Araceae, Bromeliaceae, Cycadaceae, Heliconiaceae, Marantaceae, Palmae e Velloziaceae. Pelo menos 65 espé-cies, coletadas em expedições país afora, estão sob ameaça de extinção em seus habitats.

A diretora do SRBM, Claudia Storino, assinala que a atividade do paisagis-ta na propriedade teve papel decisi-vo em sua trajetória criativa. “O fio condutor da candidatura à Unesco é o fato de o sítio ter sido o local onde Burle Marx reuniu sua coleção de plantas e realizou experimentos que lhe deram base para criar o jardim tropical moderno”, diz. Essa criação, ela sublinha, foi uma mudança de paradigma no paisagismo mundial, singularizada pela interação com a arquitetura moderna em projetos de parques e jardins, públicos e priva-dos, realizados no país e no exterior.

A candidatura a Patrimônio Mundial foi apresentada à agência da ONU

Capela Santo Antônio da Bica

Casa principal do sítio e lagos (à direita)

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em janeiro, com a entrega de dossiê elaborado pelo Iphan. O SRBM vi-nha sendo preparado para o pleito desde 2015, ano em que foi apresen-tado pelo país à Unesco, numa lista indicativa de vários bens culturais e naturais com potencial para a con-quista do título global. Por conta dessa preparação, o sítio recebeu R$ 5,4 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So-cial (BNDES), via Lei Rouanet, para melhoria das instalações e projetos de museologia, sustentabilidade e comunicação.

Passo decisivo rumo ao esperado título da Unesco foi, em setembro, a visita de missão técnica do Con-selho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) ao SRBM, que re-sultará na elaboração de relatório a ser apreciado pelo Comitê de Patri-mônio Mundial, na China. Além dos jardins, viveiros, casa de fazenda e capela, dedicada a Santo Antônio, o sítio abriga riacho, cinco espelhos d’água construídos por Burle Marx e acervo museológico e artístico com mais de três mil itens. Entre eles, obras de artes plásticas criadas pelo

paisagista, além de cerâmicas, car-rancas e imagens barrocas.

Como requisito para a titulação, o Sí-tio Roberto Burle Marx está forman-do um comitê gestor integrado por instituições com atuação ambiental na região e personalidades, visando à formulação e execução de um pla-no de gestão do lugar e de seu entor-no. Limítrofe ao Parque Estadual do Maciço da Pedra Branca, com 12,5 mil hectares de serras formadas por morros e costões rochosos, gerido pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), o SRBM também é vizinho da Reserva Biológica Estadual de Gua-ratiba, outra unidade do instituto, que protege, em 3,3 mil hectares, remanescentes de manguezais da parte leste da Baía de Sepetiba.

Artista pluralRoberto Burle Marx foi o quarto dos seis filhos do judeu alemão Wilhelm Marx, comerciante de couros, e da pernambucana de origem francesa Cecília Burle. Nascido em 4 de agos-to de 1909, em uma casa na Aveni-da Paulista, na cidade de São Paulo, Roberto mudou-se com a família aos

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4 anos para um casarão no Leme, zona sul do Rio, onde passou a se interessar por plantas, influenciado pela mãe. A família, que convivia com as artes por iniciativa de Wi-lhelm e Cecília, viajou a Berlim em 1928 para uma estada de ano e meio durante a qual o futuro paisagista despertou para a riqueza plástica da flora de seu país.

A descoberta da diversidade exube-rante das plantas do Brasil brotou em Roberto Burle Marx ao frequen-tar, na cidade alemã, as estufas da

coleção tropical do Jardim e Museu Botânico de Dahlem, no subúrbio de Lichterfelde. Recolhidas em expedi-ções de naturalistas desde o século 19, as amostras da flora estrangeira haviam sido agrupadas por região geográfica pelo diretor da institui-ção, Heinrich Gustav Adolph Engler. Dahlem é um santuário ecológico de 43 hectares, com mais de 22 mil espécies de várias partes do mundo.

Mais de seis décadas depois, Burle Marx recordaria como foi marcante o contato com as plantas brasileiras em solo alemão. “Foi ali que pude apreciar pela primeira vez, de for-ma sistemática, muitos exemplares da flora típica do Brasil. Eram espé-cies belíssimas quase nunca usadas em nossos jardins”, ele contaria, em 1992, à paisagista Ana Rosa de Oliveira, que o entrevistou para sua tese de doutorado. Antes dos jar-dins de Burle Marx, o paisagismo praticado no país desdenhava a flora nacional em favor de concepções e plantas europeias.

Nos 18 meses vividos em Berlim, Burle Marx também foi presença as-sídua nas salas de concerto e expo-sições de arte, além de ter estudado canto e pintura. Na música, impres-sionou-se com óperas em cenários luxuosos, ouviu sinfonias de Ludwig van Beethoven e Richard Wagner e conheceu o vanguardismo atonal de Alban Berg, Arnold Schoenberg e Paul Hindemith. Nas artes plásticas, encantou-se em mostras de contem-porâneos como Pablo Picasso e Paul Klee e de nomes consagrados como Vincent van Gogh.

O interesse pelas artes e a ideia de que o paisagismo deve dialogar com outras formas de expressão foram resumidos por Marx na entrevista a Ana Rosa de Oliveira, publicada na revista eletrônica de arquitetura Vi-truvius. “Detesto essa ideia de que o paisagista só deva conhecer plantas. Ele tem que saber o que é um Piero

Fachada da loggia (galeria coberta e vazada para uma área exterior)

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de la Francesca, mas também com-preender o que é um Miró, um Mi-chelangelo, um Picasso, um Braque, um Léger, um Karl Hofer, um Renoir, um Delaunay”, disse, em reverência a mestres da pintura europeia.

De volta ao Brasil, Burle Marx ma-triculou-se no curso de pintura da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, e estreou no paisagismo, inte-grado à arquitetura moderna. Em 1932, criou um jardim no terraço da primeira casa modernista da cidade, pertencente à família Schwartz, em Copacabana, convidado pelo co-autor do projeto, o amigo arquiteto Lucio Costa, que mais de duas dé-cadas depois projetaria Brasília. O segundo jardim, em 1933, também foi criado para uma residência con-cebida por Costa, já demolida, como a dos Schwartz.

As primeiras criações públicas de Burle Marx, incorporando plantas brasileiras, tiveram lugar no Reci-fe, onde ele foi diretor de Parques e Jardins da Prefeitura de 1934 a 1937. Alternando estadas na capital pernambucana e viagens ao Rio, o paisagista projetou jardins para 19 praças recifenses, dos quais 15 são preservados pela Prefeitura, incluí-dos seis que foram tombados pelo Iphan em 2015. Um dos mais famo-sos – o primeiro, em 1935 – é o da Praça de Casa Forte, no bairro ho-mônimo, na zona norte da cidade.

Em 1938, no Centro do Rio, Burle Marx iniciou a criação dos jardins do Palácio Gustavo Capanema, tendo auxiliado também o pintor Cândi-do Portinari na execução do grande mural de azulejos desse marco mo-dernista – projeto coordenado por Lúcio Costa, com Oscar Niemeyer na equipe de arquitetos. Cada vez mais requisitado, Marx também concebeu para Niemeyer, em 1940, na capital mineira, o cenário verde do Conjun-to Moderno da Pampulha, tombado pelo Iphan e titulado pela Unesco,

em 2016, como Paisagem Cultural do Patrimônio Moderno.

Burle Marx era artista renomado, por conta de seus jardins tropicais e mo-dernos, quando adquiriu com o ir-mão mais novo, Guilherme Siegfried, o Sítio Santo Antônio da Bica, em Barra de Guaratiba, no ano de 1949. A fartura de água e a vizinhança com a floresta do Maciço da Pedra Bran-ca, que seria protegida como parque estadual em 1974, foram determi-nantes para a escolha da área. Mon-tanhosa, cultivada com lavouras de banana, típicas na região, a proprie-dade era abrigo ideal para as plantas nacionais e estrangeiras que o novo dono colecionava havia anos.

Acima, a sala de música; abaixo, a sala

de cerâmicas

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“O terreno foi escolhido depois de uma busca relativamente longa, feita por ele e pelo irmão. Tinha que ser como ele queria, para que pudesse fazer o que pretendia, com topogra-fia acidentada, rochas e muita água. O primeiro objetivo era colocar a co-leção de plantas e começar a usá-la, aprendendo com botânicos como elas se associavam na natureza”, diz a diretora do SRBM, Claudia Storino. “A coleção era a palheta dele, que começa a formar grupos de plantas aproveitando as rochas, desníveis do terreno e cursos d’água e fazen-do lagos”.

Para criar seus jardins tropicais, Bur-le Marx organizou no sítio uma ativa

linha de reprodução de espécies de seu acervo, além de ter promovido a reforma da casa-grande e o restauro da capela, do século 17. Lançou-se também à ampliação da coleção, por meio de viagens que passou a fazer a várias regiões do Brasil, acompa-nhado por botânicos, para coletar e catalogar plantas que fariam de seu trabalho uma amostra da riqueza florística do país. Para ter espécies de outros países, Marx permutava mudas com produtores estrangeiros e jardins botânicos da Inglaterra e Estados Unidos.

De arbustos do Cerrado a cactos da Caatinga, de árvores da Amazônia a folhagens da Mata Atlântica, a di-versidade da flora brasileira era dis-posta nos projetos de Burle Marx em grupos por espécie, para realce de cores e tons conforme as estações do ano. Embora não fosse botâni-co, ele estudava as características de cada espécie que utilizava, a fim de compor os jogos de massas com verdes variados – marca nos mais de dois mil jardins e parques que levam a assinatura do paisagista, da déca-da de 1930 à de 1980.

No legado de Burle Marx, que abran-ge jardins particulares em diversos lugares do país, os destaques são as criações públicas. Esse acervo incluí projetos paisagísticos como os do Eixo Monumental de Brasília, do Mu-seu de Arte Moderna do Rio de Ja-neiro e do Parque do Flamengo. Este e outros trabalhos entre 1955 e 1964 tiveram colaboração dos arquitetos Maurício Monte, Júlio Pessolani, Fer-nando Tábora e John Stoddart, na Burle Marx & Arquitetos Associados, formada para fazer frente ao volume crescente de encomendas.

Desfeita a sociedade, o paisagis-ta criou o escritório Burle Marx & Cia. Ltda., com o irmão. Guilherme Siegfried cuidando da execução e manutenção de jardins e parques, valendo-se também da multiplica-

Acima, quarto de Burle Marx, com itens pessoais dele. Abaixo, varanda da casa do sítio

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ção de plantas da coleção cultivada no sítio de Guaratiba. O calçadão de Copacabana, com seu ondulado em pedras portuguesas e canteiro central, construído nos anos 1970, é um dos cartões-postais da empresa. Na década de 1990, após a morte de Burle Marx, ela foi legada a seu par-ceiro criativo de quase 40 anos, o ar-quiteto e paisagista Haruyoshi Ono. Com seu falecimento, em 2017, o es-critório passou à direção dos filhos.

Em muitas obras paisagísticas de Burle Marx, os aglomerados de plan-tas da mesma espécie – ora dese-nhados com traços sinuosos, ora com contornos geométricos – com-partilham o espaço com painéis de azulejos e mosaicos, pedras e areias de diversos tons e peças arquite-tônicas resgatadas em demolições de prédios antigos, como colunas e pórticos. O sítio preservado em Bar-ra de Guaratiba abriga vários exem-plos, com destaque para muros de pedras de cantaria e a reconstrução parcial de um antigo armazém de café.

Burle Marx passou a morar no sítio em 1973. No lugar, entre a casa e o ateliê, deu asas à criação de forma intensa, indo muito além do pai-sagismo e levando ao pé da letra a ideia de que o artista deve ser plural. “O que eu acho muito importante na vida é não se circunscrever a uma coisa só”, diria na entrevista de 1992 a Ana Rosa de Oliveira. Respeitado também como pintor, escultor, cera-mista e tapeceiro, foi serígrafo e litó-grafo, desenhista de joias e vasos de cristal, criador de ambientes e peças de luminária, além de cantor lírico e pianista.

O sítio tornou-se patrimônio públi-co, doado em março de 1985, por-que Roberto Burle Marx sonhava ter preservados o lugar e seus jardins, acervos botânicos e artísticos, a fim de que pudessem servir ao aprendi-zado das novas gerações. O uso do

espaço para estudos de paisagismo foi uma das condições impostas por ele para a doação, junto com outras duas: a manutenção do emprego de colaboradores dedicados e o direito de residir na propriedade até falecer. Roberto Burle Marx morreu em 4 de junho de 1994, dois meses antes de completar 85 anos.

SítioDa coleção de plantas preservada no SRBM, o arquiteto e paisagista Jose Tabacow, que trabalhou 18 anos com Burle Marx, destaca a famílias das aráceas, que inclui filodendros e antúrios, e a das velosiáceas, repre-sentadas por espécies coletadas em

Ateliê em duas imagens: acima, a fachada;

abaixo, o salão

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incursões a matas de estados como Bahia, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “São pelo menos 150 espé-cies de velosiáceas”, diz Tabacow, acrescentando desconhecer o cul-tivo dessas plantas em outras cole-ções privadas.

O paisagista salienta a importância do sítio para a sobrevivência de es-pécies ameaçadas na natureza. “O lugar é a representação concreta do esforço de uma vida inteira, fei-to por Burle Marx, para aproveitar a flora autóctone em paisagismo e preservar espécies brasileiras, indo buscá-las, muitas vezes, em locais que estavam sendo devastados”, afirma Tabacow, que participou de várias incursões lideradas por Marx em busca de espécies com potencial paisagístico.

Algumas dessas viagens, recorda, possibilitaram o salvamento de plan-tas durante a construção, na déca-da de 1970, da rodovia Rio-Santos – obra da ditadura militar num tem-

po em que não havia estudos nem ações para mitigação do impacto ambiental de grandes empreendi-mentos. “A técnica de construção da rodovia foi altamente predatória do meio ambiente. Fizemos diversas ex-pedições ali, tirando e levando para o sítio muitas plantas arrastadas pelas lâminas dos tratores ou joga-das nas praias que eram aterradas”, conta.

Nas muitas viagens a biomas como a Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia, Burle Marx, seus auxiliares e botâni-cos encontraram mais de 30 plantas nunca antes catalogadas. Descritas por ele e por botânicos, essas espé-cies ganharam denominações alusi-vas ao paisagista, incorporando as expressões burle-marxii, robertiana ou burleana, ao passo que um gêne-ro foi nomeado como Burlemarxia. Algumas plantas tiveram nomes in-dicados por ele, como a Pleurosty-ma fannyi e a Heliconia adeliana, em homenagem à cunhada Fanny e ao Lago sob pergolado

e espelho d’água da cozinha de pedra

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motorista Adélio da Rocha, partici-pante de várias expedições.

O jardineiro Sinval Augusto Pereira Filho, 54 anos, que trabalha no sítio desde 1985 e cuida do viveiro de ará-ceas, participou de expedições com Burle Marx a matas da Bahia, Espí-rito Santo e Goiás. “Muitas bromé-lias que temos aqui vieram de Porto Seguro”, diz. Nessas incursões, ele relata, as plantas eram coletadas por ele e outros jardineiros e levadas ao paisagista e aos botânicos, que as examinavam antes de serem coloca-das em um caminhão. “Enquanto ele não estava cheio, a gente não vinha embora”, recorda.

O cultivo de plantas no SRBM mu-dou o perfil econômico de Barra de Guaratiba, onde muitos agricultores aderiram ao plantio de espécies or-namentais. “O sítio ficava lotado de caminhões, que saíam carregados com mudas. Aqui trabalhavam qua-se 80 pessoas”, o jardineiro Elias Verdan Moreira, 67 anos, 45 de casa,

lembra o movimento até meados dos anos 1980. “Muita gente por aqui que nem conheceu Burle Marx tira das plantas o sustento da família”. Como parte dessa mudança, a Es-trada de Barra de Guaratiba ganhou o nome de Roberto Burle Marx, em honra do antigo morador do número 2.019.

O Sítio Roberto Burle Marx, com 80 empregados e terceirizados, recebe em torno de 11 mil visitantes por ano, incluído o público de visitas guiadas, mediante agendamento. Como centro cultural do Iphan, pro-move também concertos musicais, exposições e cursos, nos jardins e no ateliê que Burle Marx usava. Em 13 de junho, Dia de Santo Antônio, o lugar é palco de procissão religio-sa em que moradores de Guaratiba sobem pela alameda principal até a capela, onde uma missa é celebrada e as crianças representam a coroa-ção do santo, mantendo uma tradi-ção local.

Ao centro: loggia onde Burle Marx fazia pinturas de grande escala. Abaixo,

detalhe dos jardins

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EStantE ambiEntal

Ideias para adiar o fim do mundoAilton Krenak Companhia das Letras, 64 páginas

O líder indígena Ailton Krenak critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza. Essa premissa estaria na origem do de-sastre socioambiental de nossa era. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Re-conhecer a diversidade e recusar a ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear a marcha em direção ao abismo.

Sustentabilidade: a legitimação de um novo valor (3ª edição)José Eli da VeigaEditora Senac SP, 164 páginas

Como definir o que é sustentabilidade e favorecer a prevenção de crimes contra o meio ambiente? São muitas as variáveis em jogo, e sempre haverá uma brecha em que se apoiar para cometer atos ilícitos. Nesta obra, o autor afirma que a falta de uma definição clara não pode – e nem deve – impedir a adoção de medidas restritivas por parte do poder público.

Amazônia – por uma economia do conhecimento da naturezaRicardo AbramovayEditora Elefante, 112 páginas

O autor contesta a visão frequente de que o crescimento econô-mico na Amazônia supõe a substituição de áreas florestais (em geral ocupadas por populações indígenas e ribeirinhas) por ativi-dades agropecuárias tradicionais. Mostra ainda que a destruição florestal priva o Brasil e o mundo de serviços ecossistêmicos in-dispensáveis à vida, apoia-se em atividades ilegais e, com frequ-ência, no banditismo.

Cercos e resistências: povos indígenas isolados na AmazôniaFany Ricardo e Majoí Gongora (organizadores)Instituto Socioambiental, 254 páginas

A publicação traça um panorama abrangente dos povos isolados de diversos territórios e regiões do Brasil. Além de artigos de pesqui-sadores, conta com a perspectiva dos indígenas contatados de ou-tras etnias que compartilham o território com os grupos isolados. O objetivo é sensibilizar o poder público para conter a invasão e o desmatamento nesses territórios.

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