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Revista ELO 21, Educação com Sentido(s), Centro de Formação Francisco de Holanda, 2014

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ELO 21

Educação com sentido(s)

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Revista do Centro de Formação Francisco de Holanda

Centro de Formação Francisco de Holanda

Escola Secundária Francisco de Holanda

Alameda Dr. Alfredo Pimenta

4814-528 Guimarães

[email protected]

www.cffh.pt

253 513 073

Page 5: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

FICHA TÉCNICA

Diretora Lucinda Palhares Coordenação Lucinda Palhares

Armanda Gomes Conselho Redatorial Jorge Nascimento António Oliveira Sousa Agostinho Ferreira Manuel Barbosa Revisão Lucinda Palhares Agostinho Ferreira Capa Salgado Almeida

Maquetagem Henrique Fernandes João Freitas Propriedade e edição Centro de Formação Francisco de Holanda

Escola Secundária Francisco de Holanda Alameda Dr. Alfredo Pimenta 4814-528 Guimarães [email protected] - www.cffh.pt - 253 513 073

Depósito Legal 377399/14 ISBN 972-96465 Impressão Gráfica Diário do Minho, Braga Número Revista ELO 21 - julho de 2014 Tiragem 300 Exemplares Apoios Escolas Associadas do Centro de Formação Francisco de Holanda

Todos os artigos que integram a ELO 21 são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Respeitando a opção individual dos seus colaboradores, a ELO 21 apresenta, em simultâneo, a ortografia portuguesa com e sem o

acordo ortográfico aprovado.

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ÍNDICE

NOTA DE ABERTURA ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 07 Lucinda Palhares Diretora do CFFH

CRISE E DESLEGITIMAÇÃO DO SENTIDO DA EDUCAÇÃO Algumas notas sobre o fim do projeto iluminista de escolarização universal ------------------------------- 11

Eusébio André Departamento de Psicologia e de Educação da Universidade Portucalense

O SENTIDO QUE O GOVERNO ATRIBUI À EDUCAÇÃO NACIONAL -------------------------------------------- 19 Santana Castilho Escola Superior de Educação de Santarém

ÉTICA E EDUCAÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 25

Francisca Abreu Professora Aposentada (ex-vereadora da Educação, Juventude e Cultura)

OS FUNDAMENTOS DO SUCESSO ESCOLAR ------------------------------------------------------------------------ 31 Gil Santos e Lídia Santos Escola Secundária de Caldas das Taipas

EQUIDADE, COMPROMISSO, COOPERAÇÃO E QUALIDADE NA EDUCAÇÃO ------------------------------- 47 Adosinda Oliveira Educadora de Infância – Mestre em Avaliação

O(S) SENTIDO(S) DA LIDERANÇA Lideranças curriculares intermédias --------------------------------------------------------------------------------- 57 José Pinheiro Diretor do Agrupamento de Escolas Fernando Távora

EDUCAR COM SENTIDO(S): APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA ------------------------------------------ 65 Adelina Moura Agrupamento de Escolas Carlos Amarante (Investigadora em Tecnologia Educativa)

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CONSTRUÇÃO DE E-PORTEFÓLIOS DE APRENDIZAGEM -------------------------------------------------------- 71 José Salsa Agrupamento de Escolas de Fafe

O SENTIDO LÚDICO DA EDUCAÇÃO O jogo digital em contexto de sala de aula ------------------------------------------------------------------------- 77 Anabela Martins, Ana Rita Peixoto Agrupamento de Escolas Santos Simões e Agrupamento de Escolas Gonçalo Sampaio

DA REALIDADE VIRTUAL À VIRTUALIDADE DA EXISTÊNCIA O projeto de promoção da leitura “Ao sabor dos livros” ------------------------------------------------------- 85 Manuela Aguiar, Maria José Oliveira, Isabel Bessa, Carlos Machado Escola Secundária de Caldas das Taipas

TEATRO PARA CRIANÇAS, EM QUE SENTIDO(S)? ----------------------------------------------------------------- 91 Elisabete Paiva Responsável pelo Serviço Educativo d´A Oficina

A ESCOLA (AINDA) TEM SENTIDO(S) --------------------------------------------------------------------------------- 99 Nuno Mata Agrupamento de Escolas D. Afonso Henriques

À MANEIRA DO ZÉ POVINHO… --------------------------------------------------------------------------------------- 103 Teresa Portal Agrupamento de Escolas das Taipas

O(S) SENTIDO(S) DA ESCOLA ------------------------------------------------------------------------------------------ 109 Aníbal Ruão Agrupamento de Escolas de Caldas de Vizela

PENSAR A CIDADANIA -------------------------------------------------------------------------------------------------- 113 Gioconda Gregório Agrupamento de Escolas de Briteiros

OS CENTROS DE FORMAÇÃO DE ASSOCIAÇÃO DE ESCOLAS FAZEM SENTIDO -------------------------- 119 Jorge Cardoso Doutorando da Universidade Aberta

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NOTA DE ABERTURA

Lucinda Palhares

Mais um ano de atividade, mais um número da revista ELO, o vigésimo primeiro, intitulado Educação com

sentido(s)!

Porque foi um ano marcado, mais uma vez, pelo trabalho notável dos professores pelo contributo quotidiano

que dão na educação dos jovens, numa sociedade em condições de alguma desorientação institucional1, optou-

se por um tema aberto propiciando aos seus colaboradores um espaço de oportunidade para expressarem a sua

opinião, questionarem e refletirem sobre o sentido da educação, que tanta discussão e desassossego tem gerado

no seio das escolas e das comunidades educativas.

Aliás, esta temática abrangente foi também tratada pelo CFFH, ao longo do ano letivo, num ciclo de dez

seminários destinado a docentes, por onde passaram reputados investigadores que deixaram o conhecimento,

o estudo, as ideias e as tendências relativas às suas áreas de investigação e/ou ação e que instigaram, desafiaram

e sensibilizaram a atenta plateia para o que à educação, à escola e aos professores diz respeito, de forma a injetar

alma à profissão esvaziando-a, tanto quanto possível, do caráter funcionalista para que constantemente parece

ser empurrada.

Também se realizaram umas Jornadas com esse mesmo objetivo para pessoal não docente, onde os vários

sentidos da educação foram explorados (educação para o conhecimento, para a integração, para o bem estar,

1 Como afirmou Carlos Gomes em seminário “Educação interpares: os jovens enquanto agentes de mudança e a ‘perda’ de influência dos

adultos”, promovido pelo CFFH, no dia 06/01/2014.

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para a convivialidade, para a resiliência, para os comportamentos de vida saudáveis) de forma a envolver estes

atores, fundamentais e insubstituíveis, na construção de uma escola pública de qualidade.

O tema culmina, agora, com a edição da revista ELO. Ao longo destas páginas os leitores vão poder constatar que

faz todo o sentido falar hoje da escola, inspirando-nos em tudo o que por ela, com ela e nela foi feito ou

construído para prosseguir, com sucesso, o caminho ainda a percorrer – caminho de transitoriedade de

paradigma, por isso de alguma insegurança. Isto porque há significativas mudanças em diversos ambientes:

Na estrutura parental - havendo cada vez menos esse “porto seguro” que a família2 constituía;

Nos alunos - novos e diferentes públicos, fruto de uma sociedade mais eclética, do prolongamento da

escolaridade, da integração da “diferença”, mas também de uma juventude mais exigente, para a qual “os

computadores já não são tecnologia” e a “realidade não é real”, em que o “fazer é mais importante que o

saber”. Por isso, genericamente, estes alunos querem uma outra escola, um outro conhecimento (que

julgam na “ponta dos dedos”). São crianças e jovens em que o “multitasking é a forma de estar” e que

relativiza a “zona de tolerância”3;

Nas ferramentas de ensino e aprendizagem que as tecnologias trouxeram para a escola, aportando maior

velocidade de informação, mais interação, mais ‘ruído’, novas linguagens, maior premência de atualização;

Na instabilidade do percurso desta escola pública como “instituição” garantida para todos, com curriculum

adaptado ao contexto e a resposta adequada às necessidades dos alunos - uma escola focada na confiança,

na cooperação e no compromisso, para que todos os alunos tenham a resposta que necessitam;

No corpo docente cada vez mais reduzido, cada vez mais assoberbado por múltiplas funções, subjugado ao

peso de um conjunto de normativos suscetíveis de pôr em causa a sua profissionalidade;

No ambiente de aprendizagem que requer maior acuidade na pedagogia dos valores, do diálogo, da

afetividade, da amizade, mas também da firmeza e do respeito mútuo, porque se assume, e bem, uma

cidadania ampliada, multicultural que deve ser exercida numa escola que reconhece as diferenças, as

conhece e com elas sabe lidar4;

No ambiente geral de intranquilidade evidenciada pela inquietude dos números, mostrando uma visão

prospetiva da educação ‘deprimida’ pelo definhar do índice populacional (via aumento de esperança de vida

útil conjugado com a falta de natalidade) que, consequentemente, resultará em grandes alterações sociais.

2 Tendo em conta a própria alteração do conceito de família. 3 Ana Côrte-Real, em seminário “Liderança(s), comunicação e marketing”, promovido pelo CFFH, no dia 23/05/2014. 4 Almerindo Afonso, em seminário “A educação para a cidadania: as dimensões da cidadania”, promovido pelo CFFH, no dia 11 /03/2014.

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Os artigos que compõem este número da ELO não trazem ensinamentos nem fórmulas mágicas para resolver os

problemas que os atores educativos encontram na sua área de intervenção. Trazem sobretudo reflexões

pessoais, muitas delas de desencanto, mas também de alerta para nos tornarmos mais ativos e participantes de

uma escola que englobe o(s) sentido(s) da educação de todos e com todos. Um sentido que tem de ser agora

construído à medida das necessidades, sempre plurais e multiculturais, dos alunos que chegam à escola e que

nela devem encontrar uma resposta para a sua marca identitária, para a sua diferença, para a sua expetativa,

numa instituição plural, pública e democrática.

De salientar que alguns dos textos insertos neste número da ELO são produto de trabalhos realizados para o ciclo

de seminários “Educação com sentido(s)”: Pensar a cidadania; O(s) sentido(s) da escola; Equidade, compromisso,

cooperação e qualidade na educação. Um outro artigo, O sentido lúdico da educação: o jogo digital em contexto

de sala de aula, é o resultado de um trabalho de investigação que duas ‘formandas’ realizaram, tendo como

amostra a própria turma e como assunto um dos temas do ciclo de seminários, Educação pelo Prazer: as

tecnologias emergentes e a construção de um recreio digital, cuja dinamizadora, Adelina Moura, também

colaborou com um artigo. Ou seja, criaram-se ao longo do ano algumas sinergias essenciais para a partilha de

ideias e desenvolvimento profissional, com valor acrescentado e redução de esforços.

Os textos são, maioritariamente, de professores de escolas associadas que gentilmente contribuíram com as suas

experiências/projetos desenvolvidos nos respetivos locais de trabalho (Os fundamentos do sucesso escolar e Da

realidade virtual à virtualidade da existência: o projeto de promoção da leitura ‘Ao Sabor dos Livros’, ambos da

ES Caldas das Taipas, e Construção de e-portefólios de aprendizagem, da autoria de José Salsa, AE de Fafe) ou

deram o seu contributo com artigos de opinião e/ou reflexão (professores do AE Taipas, do AE Fernando Távora,

do AE D. Afonso Henriques….). A todos um público agradecimento, pois é sobretudo com eles e para eles que a

ELO perdura no tempo, sempre com este inquestionável desiderato.

Ao longo das vinte e uma edições da revista ELO tivemos o privilégio de contar com muitos, bons e reputados

colaboradores a quem quero, em nome da Comissão Pedagógica, manifestar um público rasgado e sentido

elogio, especialmente aos membros do seu Conselho Científico, que durante anos esgrimiram forças,

conhecimento e partilha para imprimirem à revista o cunho de qualidade que já lhe é reconhecido.

Não negligenciando a sua primordial missão de dar resposta formativa aos docentes e não docentes, via ações

de formação acreditada, normalmente concebidas e dinamizadas nas próprias escolas5 e/ou via ações de menor

duração onde são tratados assuntos inovadores e emergentes, o CFFH continua fortemente empenhado em

5 Ações que fazem parte dos ‘planos de formação das escolas/AE’, com os quais o CFFH elabora o seu ‘plano de ação’.

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promover, via cursos de formação para públicos heterogéneos, espaços amplos de debate e reflexão que

instiguem os profissionais à reflexão, à participação e à corresponsabilização.

Pela via editorial, numa visão de ‘grande angular’, tenta agregar a pluralidade de vontades, a voz dos professores,

aproximar as escolas e os seus atores, promover a partilha e desenvolver a interação entre profissionais da

educação, revitalizando as pessoas-professores e criando sinergias de modo a tornar a escola uma ‘comunidade

de aprendizagem’, de relação, de ajuda, de criação/difusão de conhecimento onde seja refletida uma visão

positiva da educação e dos seus profissionais.

E, porque a educação precisa de ser pensada e debatida, numa lógica de apropriação e de intervenção partilhada,

esta ELO vem dar um contributo na procura do seu sentido, na construção de sentidos, como incita António

Nóvoa.

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CRISE E DESLEGITIMAÇÃO DO SENTIDO DA EDUCAÇÃO ALGUMAS NOTAS SOBRE O FIM DO PROJETO ILUMINISTA DE ESCOLARIZAÇÃO UNIVERSAL

Eusébio André Machado

Paradoxalmente, ao longo do século XX, à medida que se concretiza com pleno sucesso o projeto iluminista de

escolarização universal, a tal ponto que hoje se pode considerar a existência de um “sistema educativo mundial”

(Azevedo, 2007), consolida-se no mundo ocidental a ideia de “crise” da educação e da escola no quadro, muitas

vezes, de uma concomitante “crise” civilizacional. Na esteira de autores como Eliot (1962), Arendt (2006) ou

Steiner (2004), as raízes profundas desta “crise” da educação acabam por ser, justamente, o outro lado da moeda

das dinâmicas de escolarização: a inclusão massificadora de todos os cidadãos representa, ao mesmo tempo, um

processo de barbarização da educação. Descida de nível, perda de autoridade, indisciplina e desprezo pelo

próprio valor da educação constituem as componentes invariáveis de um discurso sobre a educação e sobre a

escola, cada vez com mais adeptos radicais até em setores insuspeitos, cuja principal consequência já não é tanto

a procura de uma educação com sentido (s) (é ideia da reforma educativa como panaceia recorrente nos últimos

50 anos), quanto a necessidade de justificar o próprio sentido da educação, isto é, do projeto iluminista da

escolarização universal.

Convém lembrar que, nos últimos três séculos, assistimos a uma radical mudança no processo de socialização da

“espécie” humana, no qual os sistemas educativos passam a ter um papel central. Como refere Candeias do

século XVIII em diante, “a educação transita de ‘um bem privado’ do qual os indivíduos e as famílias podem fazer

o uso que querem, para um ‘bem público’ condicionada pela noção de ‘bem comum’, ou seja, será em nome do

desenvolvimento da ‘nação’ que a educação passa da tutela da Igreja, da Comunidade e dos privados, para a

tutela do Estado” (2009, p. 9). Assim, sob a égide do Estado, num processo de homogeneização identitária das

“nações”, a configuração dos sistemas educativos nacionais assentará num conjunto de processos que, a pouco

e pouco, se transforma numa matriz universal (Viñao, 2007):

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- a consideração da educação como uma competência quase exclusiva dos poderes públicos (monopólio

estatal da educação);

- a transferência do controlo e da inspeção da atividade educativa (seja privada ou pública) para os

organismos públicos;

- a configuração de uma administração de gestão, execução e inspeção da educação, sobretudo de natureza

central;

- a renovação e a introdução de processos de uniformização curricular e de progressão vertical no sistema

educativo através de planos de estudo, disciplinas, métodos, avaliações e organização do tempo escolar;

- finalmente, a laicização e profissionalização dos docentes encarados como “servidores públicos”.

Esta mudança nos processos de socialização da “espécie” humana, não obstante as dinâmicas de consolidação

do Estado-Nação, é o resultado do projeto iluminista que enforma a Modernidade e que assentou num

“contrato” que legitimou a escolarização universal e obrigatória das sociedades. Para tal, o Iluminismo

desenvolveu com extrema eficácia um dispositivo de legitimação da educação tão forte que, em certo sentido,

se tornou um adquirido “natural” de todos os Estados, independentemente da natureza, regime ou orientação

ideológica: embora com ritmos e graus de abrangência diferentes, explicáveis também por razões históricas e

culturais, o que é certo é que, em todos os países ocidentais e agora em todos os países do mundo, se considera

que todos os sujeitos devem ser obrigatoriamente escolarizados. A narrativa iluminista produziu uma espécie de

teleologia emancipatória, através da qual a humanidade deveria libertar-se da sua “menoridade”, como assevera

Kant, tornando-se capaz de “servir a si mesmo sem a orientação de outrem” (1988, p. 11). A exaltação da

liberdade como valor absoluto (Berlin, 2005), como acontece em Rousseau, terá como contrapartida a

necessidade da educação: só o homem educado pode agir livremente e para agir livremente é preciso que o

homem seja educado. Deste ponto de vista, a narrativa construída pela Modernidade assenta neste valor

intangível da liberdade e da emancipação, pelo que o projeto de escolarização universal pressupõe um horizonte

de cidadania participativa e crítica através da formação de “cidadãos esclarecidos, capazes de debater e decidir

com conhecimento de causa” (Lyotard, 1993, p. 49).

O projeto iluminista de escolarização das sociedades sustenta-se, pelo menos, em dois princípios fundamentais

de natureza antropológica, cuja inspiração é claramente de índole rousseauniana: por um lado, um princípio de

educabilidade universal, ou seja, todos os seres humanos são constitutivamente educáveis; por outro lado, um

princípio de desejo universal de educação, isto é, todos os seres humanos desejam naturalmente ser educados.

A projeção desta antropologia traduziu-se, desde logo, sob o influxo do protestantismo, no movimento de

metodização do ensino ao longo dos séculos XVI e XVII (Doll, 2004), cuja crença fundamental residia na ideia,

como pretende Coménio (1976), de “ensinar tudo a todos”, organizando o saber a transmitir (curricularização) e

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adotando os métodos mais adequados (pedagogização). Por outro lado, o desejo natural da educação foi levado

até às últimas consequências na procura do autodidatismo absoluto representado pela figura de Joseph Jacotot,

o “mestre ignorante”, que configurou o escândalo segundo o qual “é possível ensinar o que se ignora desde que

se emancipe o aluno” (Rancière, 2012, p. 21). No limite, o projeto emancipatório da humanidade poderia ser

levado a tal ponto que o desejo intrínseco de aprender, desde que devidamente potenciado pelo Mestre,

permitiria a cada um libertar-se de qualquer forma de sujeição pedagógica: querer aprender é condição tão

natural do ser humano como querer ser livre.

O dispositivo de legitimação do contrato educativo da Modernidade apresenta, ainda, um outro argumento que

se tornará um recurso retórico por excelência: a relação entre educação e “progresso”. Neste sentido, a

emancipação do Estado-Nação, do ponto de vista económico, científico e social, estaria diretamente indexada à

aposta na educação: quanto mais o Estado apostasse na educação, mais garantia haveria de desenvolvimento

económico e criação de riqueza. Não estamos ainda perante a redução da educação ao seu valor performativo,

como veremos mais adiante, mas a construção de uma narrativa – tão popular que, hoje em dia, é o topos de

qualquer discurso sobre educação – segundo a qual sem escolarização massiva não há progresso para as

sociedades. Curiosamente, esta relação de causalidade entre educação e economia tem sido objeto de um claro

ataque argumentativo, muitas vezes com base em estudos empíricos, embora, como mostra um estudo recente

de Barro (2013), seja uma evidência a relação entre “capital humano” e “crescimento económico”. De resto,

como sabemos, em sociedades que começam a levar a cabo processos de desestraficação social, democratizando

o acesso às profissões e aos cargos do Estado, a educação estará também comprometida com a promessa de

mobilidade social, a qual, aliás, se torna a base da motivação individual e coletiva para a construção de

sociedades mais coesas e justas.

Mas, em concomitância com este dispositivo de legitimação, o projeto de escolarização das sociedades só foi

possível devido à invenção de uma tecnologia poderosa e eficaz, constituída sob a forma de uma “gramática”,

que permitia “ensinar a muitos como se fossem um só” (Barroso, 2001). Tal como aconteceu noutros domínios

da sociedade (Foucault, 1983), ao longo dos séculos XVI/XVII, a escola será objeto de um processo de distribuição,

serialização e homogeneização dos sujeitos cujo modelo é a “classe”, isto é, um conjunto de indivíduos da mesma

idade, em princípio do mesmo sexo, que aprendem ao mesmo ritmo os mesmos conteúdos ministrados por um

só “mestre”. Esta organização dos alunos por “classe” assentou também na fragmentação do saber em disciplinas

e do tempo em blocos uniformes, com os quais foi possível criar uma organização do tempo e dos espaços

escolares que rapidamente foi sustentada numa “arquitetura” que transformou a escola numa espécie de

“mónadas” pedagógicas: um tempo para uma disciplina dada por um professor a uma turma com alunos da

mesma idade.

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Ora, sem a invenção desta “gramática escolar”, que se inscreveu geneticamente e fisicamente nas escolas, o

projeto de escolarização da modernidade não teria alcançado o sucesso que claramente obteve, pelo menos, do

ponto de vista quantitativo. No entanto, para muitos autores, como é caso de Barroso (2001), é justamente este

sucesso da “forma escolar”, que, de resto, se expande como uma espécie de a priori cultural para todos os setores

da sociedade, que constitui o principal obstáculo à reformabilidade da escola. Não obstante, é curioso constatar

que os setores mais críticos da educação e da escola – e a fortiori do próprio projeto iluminista – insistem na

ideia de que a solução não está no abandono da “forma escolar”, procurando outras gramáticas para a escola,

mas, paradoxalmente, no retorno à “forma escolar” na sua forma mais arcaica e ortodoxa: hoje em dia, para

muitos, reformar não é mais do que retornar.

Ora, assistimos, há alguns anos a esta parte, a um processo lento mas consistente de “denúncia” (leia-se também

no sentido jurídico) do “contrato” educativo da Modernidade, sobretudo no que respeita a essa ambição

desmesurada e prometeica de escolarização universal, isto é, de uma escola de sucesso para todos, mesmo não

esquecendo que os sistemas educativos encontraram sempre formas de segregar verticalmente (por exemplo:

limitando a escolaridade obrigatória) ou horizontalmente (por exemplo: criando percursos escolares

diferenciados e com diferentes valores educativos, sociais e profissionais). Esta “denúncia”, que vem de setores

e de interesses diversificados e até antagónicos, baseia-se, pelo menos, em três vetores fundamentais de

argumentação: a deslegitimação da narrativa emancipatória; a introdução de lógicas gestionárias nos

sistemas educativos; e a barbarização da sala de aula e da relação pedagógica.

A deslegitimação da narrativa emancipatória é um processo que remonta, pelo menos, ao período subsequente

à II Guerra Mundial, a partir do qual, como assinala Day, se impõe uma “visão mais funcional caracterizada pelo

ensino baseado na competência e nos resultados obtidos, pelo salário em função do mérito e pelas formas de

regulação indireta a partir do centro” (2004, p. 88). A sinalização da “crise das metanarrativas” do saber e da

educação deve-se, em larga medida, à obra polémica de Lyotard, A Condição Pós-Moderna, publicada em 1976.

Neste relatório, feito sob encomenda do Conselho das Universidades do Governo do Quebeque, Lyotard

diagnostica uma situação de incredulidade e, consequente, deslegitimação das principais narrativas fundadoras

da Modernidade (“a narrativa especulativa” e a “narrativa emancipatória”), as quais passam a ser substituídas

por um regime generalizado de performatividade: “A questão, explícita ou não, posta pelo estudante

profissionalista, pelo estado ou pela instituição de ensino superior já não é: é verdadeiro?; mas: para que serve?

No contexto de mercantilização do saber, esta última questão significa frequentemente: é vendável? E, no

contexto do aumento de poderio: é eficaz?” (Lyotard, 1985, p. 101).

A atual hegemonia da legitimação performativa teve implicações profundas, desde logo, no fim do mito segundo

o qual, como refere um ex-Ministro da Educação, “todo o dinheiro aplicado na educação é boa despesa que só

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peca por escassa e bom investimento que o futuro se encarregará de fazer florescer” (Justino, 2010, p. 65). No

contexto da crise do Estado Social e do recuo da tentativa frustrada de neokeynesianismo, a performatividade

afirma irrevogavelmente que o dinheiro aplicado na educação constitui uma “despesa pública” que reclama, por

um lado, novas lógicas de gestão e de racionalização e a introdução de um regime de omniavaliação (Machado,

2013). Em ambos os casos, estamos perante um conjunto de processos de regulação e de gestão do sistema

educativo que consolida a tendência para pôr cobro a um dos principais pressupostos da configuração dos

sistemas educativos modernos: o monopólio estatal da educação. Assim, e muitas vezes em nome de uma crítica

ao “centralismo” e à “burocracia”, o discurso que ganha força é o da devolução da educação aos “utentes” (os

alunos, as famílias, as autarquias, as associações de pais, as empresas, etc.) e da privatização da gestão de

subsetores do sistema educativo ou do “serviço público de educação”, o que, aliás, tem sido feito, alegadamente,

em prol da “liberdade de ensino” (Guinote, 2014)6. As recentes ondas de obsessão avaliativa (alunos, professores

e escolas) não são mais do que o outro lado da moeda de uma lógica de regulação da educação centrada nos

“resultados” e no aumento de capacidade competitiva da economia.

Finalmente, embora não seja recente e tenha sido objeto de vastíssima sociologia da educação, um dos vetores

que mais têm contribuído para o fim do projeto de escolarização universal é a ideia de barbarização da “sala de

aula”. Com a abertura da escola a todas as classes sociais, tantas vezes destituídas de processos básicos e

elementares de “socialização primária”, bem como a crescente multiculturalização das sociedades ocidentais,

tem trazido para a “sala de aula” das escolas públicas (a “indisciplina” e a “violência” parecem ser fenómenos

absolutamente inexistentes nas escolas privadas), segundo um discurso cada vez mais prevalecente (Mónica,

2014), uma horda de “bárbaros” totalmente resistente a qualquer esforço educativo e pedagógico e, na lógica

meritocrática vigente, cada vez menos merecedores da “despesa pública” em educação. A criação de vias

alternativas ou paralelas de escolarização começa a ser, hoje em dia, uma das formas mitigadas que sustentam

a mesma ideia de segregação interna do sistema educativo e de que, num dos países mais atrasados da Europa

como é Portugal, devemos controlar o excesso de diplomas (é o célebre topos temos “doutores” a mais).

No fundo, o que começa a ruir é, sobretudo, a crença antropológica iluminista da educabilidade universal

indissociável, no âmbito da grande narrativa emancipatória da Modernidade, de uma sociedade justa, coesa e

livre, em relação à qual, hoje mais do que nunca, teremos muitas razões para duvidar. Por isso, para muitos,

implícita ou explicitamente, escolarizar universal e obrigatoriamente todos os sujeitos é um projeto que deixou

6 No caso de Portugal, não deixa de ser curioso constatar esta inflação da luta pela “liberdade de ensino” quando o nosso país tem um peso

da oferta privada de estabelecimentos de ensino que é dos mais altos da Europa Ocidental e mesmo na América do Norte (Guinote, 2014, p.

62).

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de ter sentido. Mas, antes de qualquer disputa filosófica ou política, trata-se de uma mudança tão profunda e

radical que se exige, para os próximos tempos, que nos interroguemos sobre o que queremos para a realização

do projeto de socialização da espécie humana e qual o papel que devem ter os sistemas educativos.

Seguramente, é uma questão verdadeiramente política, urgente e inevitável.

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O SENTIDO QUE O GOVERNO ATRIBUI À EDUCAÇÃO NACIONAL

Santana Castilho

As mudanças sociais e económicas que varrem a vida dos portugueses colocam à Educação problemas novos e

emprestam uma dimensão maior aos problemas de sempre. Mas o maior de todos é político e como tal

ideológico e intencional. A Educação nacional está a ser confrontada com caminhos que desprezam a sua

natureza axiológica e procuram impor-lhe o modelo de mercado. Trata-se de apresentar a Educação como um

simples serviço, circunscrito a objectivos utilitários e instrumentais e regulado apenas por normas de eficiência

e eficácia. Trata-se de impor o acto educativo transformado em produto e a escola transformada em empresa

de serviços, realizando o sonho de alguns, que já não escondem uma ideologia marcada pela sede de

desinstitucionalizar e pela pressa de privatizar. Se procurarmos coerência para muitas das medidas tomadas pelo

Governo em matéria de Educação encontraremos uma estratégia de asfixia da escola pública e de transformação

da escola inclusiva numa escola mínima para os pobres e numa escola privada, cofinanciada pelos impostos de

todos, para os ricos.

Recentemente foi tornado público um relatório de actividade das comissões de protecção de crianças e jovens

em risco. Esse documento qualifica como muito significativo o aumento das situações que comprometem o

direito à Educação. E quantifica o fenómeno: 22,2% dos casos registados no primeiro semestre de 2013 foram

violações dos direitos dos menores à Educação. O absentismo e o abandono escolar já são a segunda maior

ameaça a menores na tipologia adoptada pela Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco.

O ano lectivo que agora vai entrar no terço final está marcado, pobremente marcado: pelo afastamento da

profissão de muitos e dedicados professores; pela redução, a régua e esquadro, sem critério, de funcionários

indispensáveis; pela amputação autocrática da oferta educativa das escolas públicas, para benefício das privadas;

pela generalização do chamado ensino vocacional, sem que se conheça qualquer avaliação da anterior

experiência limitada a 13 escolas e agora estendida a 300, como modo expedito de limpar o sistema de

repetentes problemáticos, já que se pode concluir o 3º ciclo num ano ou dois, em lugar dos três habituais; pela

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imposição arbitrária de decisões conjunturais de quem não conhece a vida das escolas, de que as metas

curriculares, a eliminação de disciplinas, o brutal aumento do número de alunos por turma e as alterações de

programas são exemplos; pelo medo do poder sem controlo, que apaga ao dobrar de qualquer esquina contratos

de décadas e compromissos de sempre; pela selva que tomou conta da convivência entre docentes; pelo

utilitarismo e imediatismo que afastou a modelação do carácter e a formação cívica dos alunos; pela paranoia

de tudo medir, registar e reportar, para cima, para baixo, para o lado, uma e outra vez, numa vassalagem burlesca

à burocracia sem sentido.

Trinta alunos por turma, 300 alunos por professor, mais horas de trabalho lectivo, mais horas de trabalho não

lectivo, menor salário, carreiras e progressões congeladas, obrigatoriedade de deslocação a expensas próprias

entre escolas do mesmo agrupamento, exercício coercivo a centenas de quilómetros da residência e da família,

pérfida prova de ingresso na carreira, desmotivação continuada e espectro do desemprego generalizado, são

realidades que afectam os professores. Em exclusivo? Não afectam os alunos? Não importam aos pais? Ao futuro

colectivo?

A diminuição do financiamento dos serviços de acção social escolar, quando o desemprego dos portugueses

dispara e a fome volta às nossas crianças, bem como a remoção sistemática, serviço após serviço, das respostas

antes existentes para necessidades educativas especiais, é problema corporativo dos professores ou razão para

que a comunidade civilizada se mobilize?

A drástica diminuição dos funcionários auxiliares e administrativos, a redução das horas de apoio individualizado

aos alunos, o aumento do preço dos manuais e dos passes e a deslocação coerciva de crianças de tenra idade

para giga-agrupamentos são problemas exclusivos dos professores?

Na mesma altura em que a falácia da “liberdade de escolha” foi o argumento para um passo determinante na

privatização do ensino e para a ampliação sem peias das parcerias público-privadas na Educação, que outra coisa

não são os contratos de associação já vigentes, cerceou-se a liberdade de escolha relativamente às escolas

públicas, quando se proibiu o funcionamento de turmas constituídas em função das decisões dos alunos e das

famílias. A engenharia social e económica que o Governo operou com a aprovação do novo estatuto do ensino

particular não se afasta daquela que protege as rendas escandalosas dos sectores energéticos, bancários, das

rodovias e outros.

A agenda escondida com o objectivo de fora deste Governo é a substituição do Estado social possível,

laboriosamente construído em 40 anos de democracia, por um Estado neoliberal, redutoramente classista. Para

o conseguir, e a coberto do fantasma da falência, o Governo tem-se encarniçado em reduzir o Estado a funções

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mínimas de obediência aos titereiros do regime, privatizando o resto. Importa pois que diga algo sobre a

decantada dicotomia público/privado, designadamente a recuperação da ideia do cheque-ensino.

A Constituição da República fixa ao Estado, no seu artigo 75º, a obrigação de criar “uma rede de estabelecimentos

públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. O artigo 3º do DL 108/88 mandou que a

referida rede se fosse desenvolvendo começando por construir escolas em locais onde não existissem escolas

privadas. Assim, o legislador protegeu, e bem, as escolas privadas já instaladas, numa lógica de economia de

meios. Através de “contratos de associação”, o Estado tem vindo a pagar integralmente o custo do ensino que

as escolas privadas ministram a alunos que habitam em zonas não cobertas pela rede pública. E continua a pagar,

desta vez mal, em zonas onde a rede pública é suficiente, delapidando recursos públicos para proteger interesses

privados.

O sistema de ensino português tem dois subsistemas: um público, outro privado. Cerca de 20% da sua rede é

privada. Querer agora tornar estes dois sistemas indiferenciáveis, por via da falsa questão da liberdade de

escolha, é uma subtileza para fazer implodir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino. Os

cidadãos pagam impostos para custear funções do Estado. Uma dessas funções, acolhida constitucionalmente,

é garantir ensino a todos. Quando pago impostos não estou só a pagar o ensino dos meus filhos. Estou a pagar o

ensino de todos. Se escolho depois uma escola privada, sou naturalmente responsável por essa escolha. Mas

importa recordar que a diversidade também se cumpre permitindo que as escolas públicas se diferenciem umas

das outras, por via autonómica efectiva.

Vejamos agora o cheque-ensino e comecemos por relembrar que Nuno Crato disse cedo ao que vinha, em

entrevista à RTP, em Setembro de 2011. Disse que o cheque-ensino seria aplicado em Portugal, depois de estudar

experiências internacionais. Esta é, talvez, uma questão crucial a debater: podem os factos sociais surgir da

importação/imposição de políticas alheias ou, outrossim, devem ser construídos socialmente, respeitando a

realidade local, por maior que seja o novelo de dúvidas que a caracterize? A investigação abundante sobre a

exportação/importação de políticas educativas alerta-nos para a recorrente invocação de modelos estrangeiros,

como simples argumento de autoridade subserviente para validar decisões já tomadas. Mas nas circunstâncias

actuais, só um cidadão ensandecido acreditará que cresça a despesa consignada à Educação. O financiamento

em regime experimental do cheque-ensino, com 19,4 milhões de euros consignados em OE para 2014, significa

mais desinvestimento no ensino público. A decantada “escolha” não deixa escolha à alternativa: não é público

mais privado; é privado contra público.

A liberdade de escolha que o cheque-ensino proporcionaria não pode ser dissociada de variáveis que ultrapassam

a questão ideológica e perverteriam de imediato o seu fundamento. Com efeito, 80% dos estabelecimentos de

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ensino privado situam-se nas grandes cidades e litoral, nos concelhos com os maiores índices de

desenvolvimento. Onde ficaria a liberdade de escolha para as famílias do interior? E mesmo nos grandes centros,

que aconteceria se todos os alunos, de cheque-ensino na mão, demandassem o melhor colégio do seu bairro? O

que a lei da oferta e da procura determina: esse colégio poria em prática um mecanismo de selecção dos

candidatos, entrando os “melhores” e ficando à porta os “piores”. Caberá ao Estado fomentar e pagar esta

“liberdade de escolha”, marcada à partida pela certeza da não entrada?

O direito à Educação, que o Estado deve proteger, e o dever de cumprir o ensino obrigatório, que o cidadão deve

satisfazer, não cabem, em minha opinião, na lógica económica da simples prestação de serviços. Reclamo para

o Estado um papel social e de soberania que o obriga a cooperar com cada estabelecimento de ensino, por mais

recôndita que seja a sua localização, na missão constitucional de responder às necessidades de desenvolvimento

das pessoas e das regiões em que vivem. A “liberdade de escolha” tem, constitucionalmente, que ser precedida

pela garantia da igualdade de oportunidades.

Os cortes em cascata e a exclusão continuada passaram ultimamente a ser justificados com a diminuição da

natalidade. Importa então olhar para os números, sem os martelar.

As estatísticas disponíveis permitem concluir que tínhamos no sistema público de ensino não superior, em 2000,

1.588.177 alunos para 146.040 professores. Em 2011 passámos a ter 1.528.197 alunos para 140.684 professores.

Ou seja, o sistema perdeu, de 2000 a 2011, 59.980 alunos e 5.356 professores. Sendo certo que a invocada

diminuição da natalidade não pode provocar imediatos resultados entre 2011 e 2013, que aconteceu ao número

de professores nesse período? Tínhamos, em 2013, cerca de 111.600. Em dois anos, apesar do aumento da

duração da escolaridade obrigatória, perdemos 29.084 professores. Diminuição da natalidade? Sejamos

honestos: exclusiva preocupação com a redução de custos, sem nenhuma sensibilidade para o futuro. Porque

temos 3.500.000 portugueses com mais de 15 anos, que não têm qualquer diploma ou apenas concluíram o

ensino básico. Porque temos 1.500.000 portugueses, entre os 25 e os 44 anos, que não concluíram o ensino

secundário. Porque, apesar dos progressos, persiste uma Taxa de Abandono Precoce de 27,1% e uma Taxa de

Abandono Escolar de 1,7%. Estes dois indicadores, expressos em números absolutos, significam,

respectivamente, 220.472 e 11.417 indivíduos excluídos do sistema.

É lançando na selva do mercado de trabalho jovens sem as qualificações básicas exigidas pela Europa, que

combatemos a sua taxa de desemprego, a rondar já os 50%? É cruzando os braços ante mais de dois milhões de

activos, que não concluíram o ensino secundário, que melhoraremos a competitividade da nossa economia?

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Resolveremos o défice e a dívida cortando, sem critério nem visão, no essencial, a Educação e a formação de um

povo? Obliterados pela pressão do urgente, continuaremos a regredir no importante?

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ÉTICA E EDUCAÇÃO

Francisca Abreu

(...) “Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou

pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a

experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano

no exercício educativo: o seu carácter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino não pode

dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substancialmente formar.” (...)

Paulo Freire (2000, p 37)

1. Contexto

A democratização do acesso à escola, a que muitos designam de massificação da escola, seguida da mais recente

medida de alargamento da escolaridade obrigatória, fizeram convergir e cruzar na escola em geral, e na sala de

aula em particular, diversidades culturais, étnicas, sociais, religiosas. No espaço escolar coabitam diferentes

valores e princípios, diferentes perspectivas e anseios, diferentes expectativas e comportamentos, percursos

diferenciados. Na escola sentem-se as tensões sociais e a “tensão entre a fragmentação dos saberes e a

multidimensionalidade da vida real”, nas palavras de Alarcão. Diversidades e diferenças que exigem da escola e

dos seus agentes, os professores e outros profissionais que a servem, um outro olhar e, sobretudo, uma outra

prática, nova e inovadora, que respeite todos, num processo de ensino aprendizagem dialogante e aberto à

alteridade.

Vivemos tempos de mudanças e de crise. Mudanças de valores, de heróis, de conceitos, em que as diferenças já

não assentam no “ter” em oposição ao “não ter”, antes se verificam no “conhecer” em oposição ao “não

conhecer”. A globalização, os media, o acesso generalizado às novas tecnologias, fonte inesgotável de todos os

saberes, homogeneizaram formas de estar, de viver, de ver o mundo, de vestir; homogeneizaram os gostos, os

heróis, os desejos de felicidade, de ser bem sucedido. A crise que o mundo ocidental e os países emergentes

enfrentam, mais do que uma crise financeira, é uma crise de valores e de princípios. Uma crise marcada pela

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imprevisibilidade, geradora de angústia(s), de desassossego(s), de insegurança. Uma crise resultante da

ganância, do individualismo feroz, da falta de escrúpulos, da falta de respeito e consideração pelo outro, da falta

de solidariedade, de transparência e de rigor, da falta de verdade, de moral e de ética. Uma crise que desvaloriza

o trabalho, apouca o trabalhador, e lança na pobreza e na miséria milhões se seres humanos, maioritariamente

mulheres e crianças. Uma crise que não responde aos anseios, antes prometidos, sustentados e legitimados, dos

mais jovens, de toda uma geração, em muitos países, a mais bem preparada geração, a mais talentosa, a mais e

melhor informada. Uma geração, a quem tudo foi “prometido” e agora tudo é “negado”: a possibilidade de

exercer uma profissão, que a enobreça, que lhe dê prazer, que contribua para o seu crescimento e que dê sentido

à sua realização pessoal, ao mesmo tempo que contribua para o bem do coletivo em que se insere e de que faz

parte. Uma crise que se debate em todos os meios e círculos formais e informais, em que, muitas vezes, o papel

da escola pública é esgrimido, ora como responsável, ora como panaceia para todos os males de que a sociedade

enferma. Uma escola sobre a qual impendem todas as culpas e recaem todas as obrigações de correção dos

males sociais. E todos (ou quase) têm um argumento, uma palavra a dizer sobre a escola. Uns com o saudosismo

de que “no meu tempo é que era”, clamam por uma escola autoritária e elitista. Outros culpam a escola pela

“desordem” social, responsabilizam os professores pelos insucessos e apelam ao autoritarismo, ao reforço das

regras e da autoridade. Uns e outros abrem as portas a uma visão demagógica de que os poderes políticos se

apropriam e que, por ser tão básica e demagógica, a opinião pública tão bem colhe. E, assim, legitimam as

políticas e medidas ideológicas para “repor” a escola nos trilhos da escola seletiva, elitista, para desvalorizar o

papel e o trabalho do professor, para sobrecarregar os professores de tarefas burocráticas, em detrimento do

trabalho pedagógico, para que foi preparado e que é o cerne da sua missão na escola. É verdade que a educação

diz respeito a todos, mas também é verdade que se trata de uma matéria que poucos sabem debater com

conhecimento e lucidez. Na medida em que é um instrumento fundamental para suporte e desenvolvimento de

um modelo de sociedade, todos os comentadores, políticos, candidatos a comentadores e a políticos se acham

capazes e todos têm algo a dizer sobre a educação, a escola e os professores.

Porque a escola não é as paredes que a suportam, mas é as pessoas que a habitam, em particular os alunos e os

professores. Mas são, sobretudo, estes que a fazem, e é sobre eles que recai uma carga imensa, destruidora da

autoestima, da nobreza da sua missão, do brio, da sensibilidade e carga afetiva que o seu trabalho requer e exige

e que determina, tantas vezes, a passagem da responsabilidade do insucesso e do fracasso do desempenho

educativo para as famílias e alunos.

Esta nova realidade, a diversidade sociocultural que se sente e vive na escola de hoje impõe novas exigências e

significa um enorme desafio para os professores, para os órgãos de gestão e administração. Desde logo, porque,

apesar das inúmeras mudanças operadas, a organização e estrutura da escola são, basicamente, herdeiras da

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escola de outro tempo. Uma escola, cuja missão era preparar toda uma elite social e cultural, que haveria de

assumir o comando do destino de um povo e de uma nação e não uma escola de todos e para todos. Por outro

lado, a desvalorização, real e simbólica, do trabalho dos professores na escola, exige deles uma tomada de

consciência, uma lucidez, um pensamento aberto e crítico sobre a manipulação, a demagogia e opressão a que

estão sujeitos, para não sucumbirem e se deixarem tentar pela mediocridade. Pelo contrário, os professores têm

de sair da sua zona de conforto, relevar e revelar a nobreza, a exigência, a qualidade, a importância, a excelência

de que se reveste o seu trabalho na escola pública: uma escola de todos e para todos.

2. Ética na educação

A moral e a ética são, muitas vezes, usadas como palavras sinónimas. De facto, não são. A moral é relativa à

conduta em sociedade, aos comportamentos, aos costumes, às regras, às convenções pré-estabelecidas. A moral

está associada à cultura, ao que é certo e\ou errado, justo e\ou injusto, moral e\ou imoral. A ética está associada

ao estudo, à reflexão dos valores morais que orientam o comportamento humano em sociedade. Por sua vez, a

educação significa o ato de educar, de instruir, a transmissão do conhecimento e dos saberes, dos costumes, dos

valores, dos hábitos, dos símbolos de uma comunidade. Educar é um processo que começa na família, passa pela

escola e estende-se a toda a comunidade. Para Vygotsky (1988), a educação é considerada como fonte de

desenvolvimento. Educar e aprender devem significar a abertura do eu aos outros, às diferenças e ao mundo, a

tomada de consciência e de respeito pelas divergências, o desenvolvimento da criatividade. Fatores que

estimulam o pensamento crítico e o comprometimento social, político e ético com uma mudança conducente à

consideração da subjetividade, ao respeito pelo outro, à participação cívica na comunidade a que pertence e em

que se insere.

De acordo com os Relatórios de Desenvolvimento Humano, publicados nos últimos dez anos, pelas Nações

Unidas, a Educação é um instrumento poderosíssimo de combate às assimetrias sociais e de democratização de

oportunidades. As políticas e medidas educativas adequadas promovem a capacitação dos cidadãos, o

desenvolvimento de competências e talentos, fatores de potenciação do combate às assimetrias sociais. O

investimento no capital humano é gerador de benefícios sociais e económicos, na medida em que potencia e

favorece o desenvolvimento de um projeto pessoal e coletivo gratificante e participativo.

Por sua vez, os dois últimos estudos e relatórios PISA demonstram que, por exemplo em Portugal, os jovens de

15 anos têm um nível de conhecimento e desempenho aproximado dos níveis dos jovens dos países mais

desenvolvidos (v.g. Estados Unidos da América, Finlândia). E os resultados do desempenho dos alunos dos três

ciclos do Ensino Básico, nas provas nacionais, nos últimos três anos, em Guimarães, estão acima da média

nacional, bem como as taxas de sucesso educativo, o que ilustra a justeza e adequação das políticas e medidas

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adotadas nas últimas décadas, a nível local e nacional. Mas, ao mesmo tempo, revela a excelência do trabalho

dos professores, a qualidade e nível de exigência e rigor dos órgãos de gestão e administração, o empenho, o

envolvimento e as expectativas das famílias, das autarquias, da comunidade em geral e o trabalho dos próprios

alunos.

A complexidade do mundo atual exige a adoção de padrões de conduta ética para a valorização do ser humano,

na sua vida pessoal, social e profissional. Educar para a cidadania é um dos objetivos da educação, constante nos

projetos educativos das escolas, o que significa que a escola se propõe trabalhar a ética, formando cidadãos

conscientes, críticos, autónomos, capazes de intervir no meio em que vivem.

Na escola pública convergem e se cruzam diversidades culturais, étnicas, religiosas, sociais, de que decorre a

premência de fomentar e assumir o compromisso de solidariedade e de respeito pelo outro, trabalhar as

diferenças, dialogar, fomentando a discussão sobre temas diversos, por forma a favorecer a reflexão crítica e a

valorização das relações interpessoais. A abertura e o fomento do diálogo são o caminho para a solução de

problemas em contexto escolar, trabalhando e discutindo as diferenças, no garante da igualdade de direitos e

deveres para todos. Ser ético em contexto escolar é, pois, criar e proporcionar espaços de diálogo para melhor

resolver os problemas educativos e as tensões que se vivem na escola pública, plural e diversa, uma vez que o

diálogo é um instrumento poderoso para a formação de cidadãos críticos, abertos e disponíveis para o outro e

para o novo, cidadãos responsáveis, participativos, criativos, livres e respeitadores da liberdade de cada um. Ser

ético é recusar as vias individualistas e autoritárias e optar por um comportamento de abertura e de diálogo,

norteador das ações e atitudes no contexto escolar, abrindo espaço à expressão de todos, baseado na liberdade

e no respeito pelas diferenças individuais. Ser ético significa assumir a obrigação e o compromisso com todos e

com cada um, reconhecendo a todos e a cada um em particular, a responsabilidade da problematização das

ações e dos saberes instituídos e a resolução dos problemas e tensões que se revelam e/ou espelham na escola

pública. O diálogo, a solidariedade, a equidade, a responsabilidade, a justiça, o respeito mútuo são, assim, os

pressupostos associados à ética no contexto escolar, que favorecem a melhor resolução dos problemas

educativos e, sobretudo, favorecem a construção da felicidade humana, baseada na liberdade, no respeito pelo

outro, no respeito pelas diferenças individuais.

Uma escola norteada pela ética no comportamento de todos, nas decisões, nas atitudes, nas ações é uma escola

aberta ao diálogo, onde a sensibilidade, o modo de ver o outro e o mundo, os sentimentos de cada um têm lugar

e espaço de manifestação, em liberdade e no respeito mútuo. É uma escola mais humanizada, onde existe

transparência, convivência mais livre e harmoniosa, com lugar para o rigor e a consciência do papel de cada um

no processo de ensino aprendizagem.

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3. Visão crítica

A crise que atravessamos é propícia à discussão demagógica e básica do papel da escola pública e favorece a

defesa e definição de políticas e a aplicação de medidas educativas contrárias à defesa de uma escola pública de

qualidade de todos e para todos. De facto, se a ética em educação passa, sobretudo, pela criação e existência

de espaços de diálogo, reconhecendo a todos responsabilidades pela problematização das ações, das atitudes,

dos comportamentos que uns e outros praticam em contexto escolar, como forma de melhor resolver os

problemas e formar cidadãos livres, responsáveis, críticos, intervenientes na sociedade, as medidas

recentemente tomadas são absolutamente avessas a este conceito e visão da escola pública. A fúria

centralizadora não deixa espaço, nem margem de decisão à escola, aos respetivos órgãos de gestão e

administração, aos professores. Tudo está previsto e condicionado em normativos que não cuidam das

particularidades de cada escola, nem de cada caso, num claro desrespeito e desconsideração pela capacidade de

discernimento dos gestores, dos órgãos de gestão e dos professores, pela autonomia das escolas. Coloca-se o

acento consciente na importância suprema dos conteúdos cognitivos, na instrução, e desvalorizam-se as

componentes sociais, afetivas, de desenvolvimento de competências criativas, críticas, de responsabilidade, de

liberdade, de autonomia dos educandos. Constituem-se mega agrupamentos, afastando, assim, os órgãos de

decisão dos professores, dos alunos, das famílias, dos espaços de tensão e de problemas, curvando-os com o

peso de uma carga burocrática, sempre em mudança. Aumenta-se o número de alunos por turma, eliminam-se

os pares pedagógicos, elimina-se o desdobramento de turmas nas disciplinas de natureza prática, impõe-se uma

sobrecarga de responsabilidades burocráticas aos professores, impossibilitando a criação e existência de espaços

de diálogo uns com os outros e destes com os alunos e as famílias. Políticas e medidas que não cuidam nem

consideram a urgência das decisões que, com frequência, se coloca na ação educativa, no espaço escolar, quer

no espaço da sala de aula quer fora dele. Políticas e medidas educativas que retiram espaço e tempo à

observação, à análise, à reflexão e ao diálogo, à compreensão das identidades presentes no espaço escolar, que

não consideram a importância da relação humana entre professor e aluno e destes com o saber. Sendo que é

desta relação e da cumplicidade real e simbólica que se constrói, que se favorece e potencia o processo de ensino

aprendizagem, e se garante o sucesso do desempenho educativo. Obrigam-se as escolas a privilegiar os saberes

duros sobre os outros saberes que contribuem para o desenvolvimento harmonioso e saudável da pessoa

humana. Pretende-se que as escolas comecem, quase do berço, a injetar os conhecimentos científicos que levem

ao ingresso triunfante nos cursos que a sociedade, ingenuamente (ou não), apelida de cursos nobres para poder

ter meios que sustentem o consumismo desenfreado do mundo moderno.

Orquestra-se uma campanha miserável de desvalorização do trabalho docente, ataca-se sem escrúpulos a auto

estima, o brio e a competência dos professores, que serve como justificação demagógica para desempregar

milhares de professores e forçar a fuga da escola de todos aqueles que podem. Quando, na verdade, o que está

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em causa é um conceito neoliberal da escola pública. Uma escola que sobrevaloriza os aspetos cognitivos, uma

escola elitista, uma escola para alguns, uma escola que favorece a exclusão social, em vez de estar ao serviço da

inclusão. Definem-se políticas e aplicam-se medidas educativas que visam a formação de cidadãos subservientes,

sem pensamento crítico, nem autonomia. Estas políticas e medidas educativas e que têm um impacto enorme

sobre a educação, sobre a qualidade do trabalho docente e sobre a visão que os professores têm sobre si

próprios, sobre o seu próprio trabalho, a sua importância na construção de uma sociedade mais democrática,

mais solidária, mais inclusiva, mais justa, plural e aberta e, por isso, mais rica e competitiva, no contexto global.

Estas políticas e medidas educativas que lembram tempos de má memória, que comprometem o futuro. Porque

é no presente que se constrói o futuro.

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31

OS FUNDAMENTOS DO SUCESSO ESCOLAR

Lídia Santos Gil Santos

A teoria da reprodução social na senda de Pierre Bourdieu

Até meados do pretérito século, atribuía-se à instituição escolar a dupla missão de contribuir para o crescimento

económico e para a construção de uma sociedade mais justa, mais democrática e mais moderna. Acreditava-se

que uma escola para todos, pública e gratuita promoveria, de per si, a igualdade de oportunidades e que a

competição, no seio do sistema educativo, destacaria os mais dotados em termos individuais. Este fenómeno

induziria, de forma natural, a mobilidade social ascendente, proporcionando o acesso, por mérito próprio, aos

patamares mais elevados da hierarquia social. Por isso, a escola era tida como uma instituição neutra, promotora

e difusora de um conhecimento objetivo e isento, potenciadora, portanto, de uma seleção orientada por critérios

racionais. Contudo, os acontecimentos dos anos sessenta, comprometeram esta conceção de escola. À visão

otimista, de inspiração funcionalista, sucedeu uma pessimista, baseada num duplo movimento social que trouxe

uma visão nova à coisa da educação: um desses movimentos teve origem numa série de pesquisas quantitativas

realizadas em Inglaterra, França e Estados Unidos da América. Enfatizando “o peso da origem social sobre os

destinos escolares” (Nogueira & Nogueira, 2002: 16)7, este movimento minou a confiança na propalada

igualdade de oportunidades, patrocinada pela escola dita democrática. Assim, seria legítimo concluir que “o

desempenho escolar não dependia, tão simplesmente dos dons individuais, mas da origem social dos alunos”

(ib. ibid.: 17); o outro movimento, originado pelos efeitos inesperados do fenómeno da massificação, trouxe,

7 C. Nogueira & M. A. Nogueira, 2002, desenvolveram, na obra citada (cf. referência bibliográfica), estudos aturados sobre a obra de Pierre

Bourdieu.

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sobretudo aos franceses, um “progressivo sentimento de frustração […] com o caráter autoritário e elitista do

sistema educacional e com o baixo retorno social e económico auferido pelos certificados escolares no mercado

de trabalho” (ib. ibid.: 17).

Efetivamente, o movimento de contestação de 1968, criticando com veemência o sistema educativo da época,

bebeu a inspiração no inconformismo e na deceção da “geração enganada” (Bourdieu, 1999b: 161). O autor, a

partir da década de sessenta, encontrou uma resposta alternativa, global, teórica e empiricamente sustentada,

para a questão das desigualdades escolares. Contestando o paradigma funcionalista, propôs uma nova fórmula

de leitura do fenómeno. Defendeu a existência de uma forte correlação entre o desempenho escolar e a origem

social dos estudantes. De facto, como nos referem Nogueira & Nogueira nos seus estudos sobre o autor:

“onde se via igualdade de oportunidades, meritocracia, justiça social, Bourdieu passa a ver

reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educação, na teoria de Bourdieu, perde

o papel que lhe fora atribuído de instância transformadora e democratizadora das sociedades

e passa a ser vista como uma das principais instituições por meio da qual se mantêm e se

legitimam os privilégios sociais.” (2002: 17)

A sua tese principal, em matéria de sociologia da educação, passou a considerar que os alunos não eram seres

abstratos e por isso não competiam em condições relativamente igualitárias na escola. Eram antes indivíduos

dotados de um património social diferenciado. Por isso, o nível de sucesso alcançado por cada um, não deveria

ser explicado tanto pelas suas capacidades pessoais, mas antes pela sua própria origem social, que favoreceria

mais uns do que os outros, face às exigências da escola. Por outro lado, e no que respeita ao papel da escola na

reprodução das desigualdades sociais, defendia que a instituição não era neutra nem imparcial, isto é, não

premiava o talento a partir de unidades de medida objetivas, mas antes, como reforçam Nogueira & Nogueira:

“representa e cobra dos alunos […] os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos grupos

dominantes [….] mais do que isso, ela cumpriria o papel fundamental de legitimação dessas

desigualdades, ao dissimular as bases sociais destas, convertendo-as em diferenças

académicas e cognitivas, relacionadas aos méritos e dons individuais.” (ib. ibid.: 18-19)

Desta forma conclui-se que o autor nega o “caráter autônomo do sujeito individual” (ib. ibid.: 20). Defende que

o indivíduo é portador de um património objetivo, externo a si próprio, constituído pelo conjunto de bens e

serviços a que ele tem acesso e que podem ser colocados ao serviço do seu sucesso escolar. É aquilo a que chama

“capital económico”. Por outro lado, cada um é igualmente portador de um conjunto de relacionamentos sociais

e de influências familiares a que chamou “capital social”. Por outro, ainda, cada indivíduo detém um “capital

cultural” com origem nos títulos académicos das pessoas que constituem o contexto social mais próximo, a sua

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própria família. Bourdieu defende ser o “capital cultural” o elemento que pressupõe um maior impacto na

definição do percurso escolar de cada um, pois facilita a aquisição dos conteúdos, dos códigos e das linguagens

escolares. Como bem nos dizem Nogueira & Nogueira:

“A posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a

aprendizagem dos conteúdos e códigos escolares. As referências culturais, os conhecimentos

considerados legítimos (cultos, apropriados) e o domínio maior ou menor da língua culta,

trazidos de casa por certas crianças, facilitariam o aprendizado escolar na medida em que

funcionariam como uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar. A educação escolar,

no caso das crianças oriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de

continuação da educação familiar, enquanto para as outras crianças significaria algo estranho,

distante, ou mesmo ameaçador. A posse de capital cultural favoreceria o êxito escolar, em

segundo lugar, porque propiciaria um melhor desempenho nos processos formais e informais

de avaliação.” (ib. ibid.: 21, parêntesis no original)

A ênfase, colocada por Bourdieu, na relação com o saber, constitui-se como uma das caraterísticas principais da

sua teoria. Considera-a tão importante que chega a afirmar que:

“Os educandos provenientes de famílias desprovidas de capital cultural apresentarão uma

relação com as obras de cultura veiculadas pela escola que tende a ser interessada, laboriosa,

tensa, esforçada, enquanto para os indivíduos originários de meios culturalmente privilegiados

essa relação está marcada pelo diletantismo, desenvoltura, elegância, facilidade verbal

‘natural’.” (Bourdieu, 1999b: 9, aspas no original)

Explica, deste modo, que a desigualdade no desempenho escolar dos alunos oriundos de diferentes estratos

sociais se correlaciona, diretamente, com a distribuição igualmente desigual do “capital cultural” específico das

classes sociais, contrariando, assim, o determinismo, antes conferido às aptidões individuais naturais e às teorias

do capital humano.

Considera também que o “capital cultural” é herdado, integrando a possibilidade de se transformar noutros tipos

de capital. Aliás, “o capital económico e o social funcionariam, na verdade, na maior parte das vezes, apenas

como meios auxiliares na acumulação do capital cultural” (Nogueira & Nogueira, 2002: 22).

Bourdieu introduz também outro conceito complexo, o do habitus, que concretiza o entendimento acerca da

relação que se estabelece entre o indivíduo e a sociedade. A este propósito Nogueira & Nogueira sublinham que:

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“cada grupo social, em função das condições objetivas que caracterizam sua posição na

estrutura social, constituiria um sistema específico de disposições para a ação, que seria

transmitido aos indivíduos na forma de habitus.” (2002: 22)

Este conceito permite ponderar a mediação entre os condicionamentos sociais e a subjetividade dos indivíduos

(Setton, 2005)8. Contribui, igualmente, para superar a oposição existente entre o indivíduo e a própria sociedade.

O habitus permite fazer escolhas, decidir e orientar a ação sem que disso se tenha devida consciência.

Materializa-se através de um complexo de perceções e valores que ajudam o indivíduo a circular, física e

simbolicamente, no seu espaço social. Aplicado ao fenómeno da educação, este conceito, ajuda a perceber como

é que os grupos sociais, partindo dos exemplos de (in)sucesso dos seus membros no contexto escolar, passam,

inconscientemente, a adaptar as suas estratégias para o sucesso, em função dessas mesmas leituras. Estarão,

então, disponíveis a investir um maior ou um menor esforço no percurso escolar, conforme sejam capazes de

perceber serem maiores ou menores as probabilidades de êxito.

Pese o préstimo e o largo alcance da teoria sociológica da educação de Bourdieu, constituindo, mesmo hoje, um

dos principais paradigmas utilizados na interpretação sociológica do fenómeno social da educação, ainda assim,

não podemos deixar de a reconhecer eivada de algumas limitações e críticas. As objeções mais significativas,

referenciadas a Bernard Charlot e Bernard Lahire, situam-se, justamente, sobre as formas de transmissão do

capital cultural e por conseguinte do habitus.

A origem social e o género na senda de Christian Baudelot e Roger Establet

Christian Baudelot e Roger Establet são dois sociólogos franceses, preocupados em desenvolver uma conceção

crítica sobre a educação na escola francesa, inserida num contexto capitalista. Os autores, numa das suas obras

de referência: L´École Capitaliste en France (1971), na perspetiva de Filomena Mónica perseguiam o objetivo da:

“crítica da concepção reformista da escola como uma instituição tendencialmente única,

progressiva e hierárquica, cujos limites e deficiências resultariam de pretensos desvios a um

ideal que, embora difícil, seria sempre susceptível de realização.” (1981: 67)

Muito influenciados pelo contexto vivido numa França em guerra com a Argélia, preocupam-se com o papel da

origem social que consideram absolutamente decisivo para o sucesso escolar do aluno. Integravam um grupo de

pensadores que seguiam e aprofundavam as ideias de Karl Marx, no que à educação respeita. Foram, também,

8 Setton, 2005, desenvolveu, na obra citada (cf. referência bibliográfica), estudos sobre o conceito de capital cultural.

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decisivamente influenciados por Bourdieu, Passeron e Althusser. Os dois primeiros influenciaram mais Baudelot,

o terceiro influenciou sobretudo Establet.

Para os autores, o processo educativo, que tem lugar na escola, é desigual, pois a instituição é controlada pela

classe dominante e portanto reprodutora de desigualdades sociais. A escola é segregadora por excelência, uma

vez que divide e marginaliza parte dos alunos em ordem à reprodução de uma sociedade de classes. Concluem

que existem duas redes na escolarização: uma destinada à classe empresarial, a elite dominante, a outra

destinada aos membros da classe trabalhadora, a dominada. A primeira teria acesso às melhores escolas, ao

tempo e aos recursos necessários, incluindo atividades complementares de formação e educação que, para lá

do currículo, contribuiriam para o sucesso, enquanto os outros seriam vítimas da escassez de recursos e da

ausência de contextos favoráveis àquele mesmo sucesso. A escolarização da classe dominante teria como

objetivo a perpetuação dos seus privilégios; a da classe trabalhadora a manutenção do seu estatuto de

dominada. Sendo assim, o processo de escolarização seria diferenciado para cada classe social, pese embora a

ideologia defender o contrário.

A linguagem, na retórica do docente; nos currículos e programas; nas regras formais e informais da escola, é,

para os autores, um fator determinante do sucesso/insucesso. Aliás, consideram-na mesmo semelhante e

familiarizada com a linguagem da classe dominante. Por isso, entendem a escola como um prolongamento da

vida dos filhos da classe empresarial. Para os filhos da classe operária, a escola é estranha, distante do seu

quotidiano, ameaçadora e inibidora. Assim, as causas do fracasso escolar assentariam muito mais na escola e nas

suas linguagens do que nas caraterísticas do aluno enquanto pessoa, ou no seu legado cultural, veiculado pelo

grupo social a que pertence.

Muito preocupados em explicar as transformações da realidade social como um todo, consideram os fenómenos,

com origem na escola, capazes de potenciar a perceção dessa mesma transformação. Daí terem-se interessado,

particularmente, pela inserção das meninas na instituição escolar, por considerarem a dimensão do género,

particularmente o feminino, “importante [por ser] certamente a transformação social mais forte que podemos,

registrar” (ib. ibid.: 194). Desta forma, podemos encontrar na sua obra Allez les Filles (1992), um fio condutor

que confronta a correlação sucesso escolar/género com a correlação sucesso escolar/origem social. Como

afirmam:

“On peut trouver un fil directeur à notre synthèse en confrontant la corrélation réussite

scolaire-sexe avec la corrélation beaucoup mieux connue réussite scolaire-origine sociale.”

(Baudelot & Establet, 1992: 141)

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Na mesma linha de Bourdieu e Passeron, consideram determinística a origem social para o sucesso escolar e

defendem que “si l’origine sociale n’explique pas toute la réussite scolaire, elle fournit le cadre nécessaire de

l’investigation sur toute autre variable” (ib. ibid.: 141). Aliás, adiante afirmam mesmo que “les différences entre

filles et garçons n’auraient aucun sens si elles ne s’observaient à classe sociale identique” (ib. ibid.: 142). Na

análise, quando cruzam o género com a origem social, concluem que a superioridade do sexo feminino se observa

em todas as classes sociais, apesar de cada vez mais debilmente quando se ascende na hierarquia social. Como

bem afirmam:

“la supériorité des filles s’observe dans toutes les classes sociales. Faible parmi les enfants de

cadres supérieurs, l’écart tend à se creuser à mesure qu’on va vers les cadres moyens, les

employés et les ouvriers.” (ib. ibid.: 146)

Concluem, igualmente, que o efeito da origem social no desempenho escolar dos estudantes é mais notório no

género masculino do que no feminino. Não sendo possível, por parte das raparigas, a anulação completa do

efeito da sua origem social, ainda assim, e relativamente aos rapazes, elas conseguem minimizá-lo, o que

representa “une avancée sociale considérable” (ib. ibid.: 146).

Para Baudelot e Establet, tentar perceber e medir os efeitos do género no sucesso escolar exige revisitar, embora

com base num novo olhar, as principais teorias da sociologia da educação, desde Durkheim a Bourdieu. Para

Émile Durkheim a escola “n’est pas un simple lieu d’apprentissage, mais une véritable société” (ib. ibid.: 147)

cumprindo as funções de inculcação dos valores dominantes, da socialização dos agentes e da organização da

competição para o posicionamento social. A fim de explicarem a desigualdade social perante a escola e na linha

de Bourdieu, os autores defendem que:

“le travail pédagogique scolaire consiste à inculquer des formes et des contenus sociaux

proprement arbitraires du fait de la relation privilégiée que ces derniers entretiennent avec la

culture des classes dominantes. Les conversions à la culture scolaire sont donc plus fréquentes

et profondes quand elles s’opèrent chez des individus qui y sont préparés par leur culture

familiale. Cette connivence entre la culture scolaire el la culture des classes dominantes permet

à l’inculcation de fonctionner sur un mode largement implicite. Le public auquel le message

scolaire est naturellement destiné se reconnaît spontanément dans la pédagogie invisible de

l’école, qui n’est pour les autres qu’un discours codé malaisément déchiffrable.” (ib. ibid.: 147-

148)

Defendem ainda que é no contexto escolar que os indivíduos aprendem a situar-se uns em relação aos outros, a

decifrar as suas expetativas e a integrar as regras que orientam as interações. No que a esta matéria respeita, as

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meninas levam vantagem, explicando-se pela educação tradicional de subalternismo e de submissão a que ainda

estão sujeitas. De facto:

“les filles partent avec un notable avantage, qu’elles tiennent de l’éducation traditionnelle qui

leur est aujourd’hui encore donnée. On attend davantage de la petite fille qu’elle mette sa

fierté à donner à autrui une image presentable.” (ib. ibid.: 150)

e continuando, afirmam que:

“une esthétique de l’ordre préside au rangement des bureaux, à la tenue des cahiers, aux

attitudes correctes. Alors qu’on encourage le garçon à définir sa personnalité dans le contact

avec les choses, la fille est préparée plutôt à se définir dans le regard des autres.” (ib. ibid.: 150)

Assim, acabam por concluir que os estereótipos sociais preparam melhor as raparigas do que os rapazes em

ordem à integração no mundo social da escola, pese embora a “loi non écrite de la compétition scolaire” (ib.

ibid.: 154) conferir vantagem aos rapazes.

Baudelot e Establet, na sua obra Allez les Filles, (ib. ibid.: 156-158) acabam por concluir genericamente que:

depois da origem social, está no género a segunda dimensão mais importante da arquitetura de qualquer sistema

educativo; como a origem social, o sexo toma vantagem na acumulação da eficácia escolar para as raparigas; a

igualdade de acesso das raparigas a um determinado nível, acontece sempre no respeito pelas desigualdades

sociais existentes; na escola as desigualdades sociais entre as raparigas, revelam-se menos do que entre os

indivíduos do sexo oposto; os desvios entre os géneros diminuem à medida que aumenta o estatuto social e a

riqueza; o efeito da origem social sobre o sucesso escolar é idêntico em todos os países, porém, a sua ação varia

com o aumento dos escolarizados. Assim, nos países pobres os escolarizados verificam o domínio dos rapazes

sobre as raparigas. Nos países ricos a “retraduction9 scolaire” efetua-se segundo uma relação cruzada entre os

dois sexos, cada um deles com vantagens e desvantagens na situação social de domínio; às raparigas foram

reconhecidas, publicamente, as suas competências em todos os níveis do sistema escolar; as raparigas,

ancestralmente excluídas (pela sua formação inicial) da cultura escolar de competição, veem hoje criado um

novo estado de compensação escolar que tende a colocá-las em vantagem relativamente aos rapazes.

9 [Conceito sociológico de Bourdieu que] designa um fenómeno como prática institucional que simultaneamente valoriza o capital cultural

gerado pelo trabalho pedagógico primitivo das classes dominantes e coloca de fora o capital cultural gerado pelo trabalho pedagógico

primitivo das classes dominadas. Consultado em 23/01/2012 no sítio: http://fastef.ucad.sn/Lien10/liens10a9.pdf. (tradução nossa).

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Estes autores, num esforço de compreensão do papel da escola enquanto agente de reprodução social, concluem

na sua obra L’école Capitaliste en France que o “objectivo da escola não é unificar mas dividir” (Mónica, 1981:

67, itálico no original).

A relação com o saber na senda de Bernard Charlot

Bernard Charlot, francês, nasceu em Paris em 1944, no seio de uma família humilde operária, que mais tarde

ascendeu à classe média. Foi muito influenciado pelas expetativas elevadas que a mãe colocava no seu projeto

escolar. Aliás, segundo ele a “mãe teve um papel preponderante na [sua] formação” (Rego & Bruno, 2010: 147).

Alfabetizado pela progenitora, na escola, “sempre pública” (ib. ibid.: 147) Charlot:

“era bom aluno mas […] perdoado pelos amigos. […] vivia […] dois mundos [ser o melhor da

turma e ter amigos entre os piores]. [Era] um aluno um pouco complicado para os professores:

muitas vezes o melhor da turma, mas participante de um grupo que gostava de rir e, às vezes,

resistia à escola. Mais tarde, isso [ajudou-o] a entender [as] coisas nesses dois mundos.” (ib.

ibid.: 147)

Charlot é um filósofo, sindicalista de esquerda (ib. ibid.: 149) que se dedica ao estudo dos fenómenos da

educação, particularmente os que respeitam à teoria da relação com o saber. Este gosto não deixa de ser curioso,

pois “como todos os filósofos tinha bastante desprezo pela pedagogia” (ib. ibid.: 148). Esclarece que a sua

“questão da relação com o saber está na encruzilhada da questão do sujeito, da desigualdade social e do saber”

(ib. ibid.: 155). Confrontado, em França, com a mesma preocupação que o ocupou na Tunísia: “a diferença

[enorme] entre a realidade e a teoria10” (ib. ibid.: 148), procurou decifrar a relação que os alunos de diferentes

classes sociais, particularmente das mais humildes, a que chama populares, estabelecem com a escola e o saber.

Baseado num estudo, cujo objeto se debruçava sobre a relação que os alunos dos meios populares das escolas

dos subúrbios de Paris têm com o saber, publicado sob o título Le rapport au savoir en milieu populaire, Charlot

questiona o facto dos sociólogos da reprodução concluírem que a escola contribui para a reprodução das

desigualdades sociais, por existir uma correlação estatística entre os resultados escolares e a categoria

socioprofissional dos progenitores. Convocando as teorias de Bourdieu e os seus conceitos de habitus e de capital

cultural, Charlot, na perspetiva de Madeira, defende que:

10 que chegou mesmo a despoletar a ideia de ser o discurso pedagógico “uma mistificação porque não fala da situação real” (ib. ibid.: 148),

enfatizando até na sua obra “A mistificação pedagógica” o desfasamento “entre o discurso teórico pedagógico e a prática, a realidade social”

(ib. ibid.: 150).

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“os jovens não só são dotados de habitus diferentes como recebem por transmissão familiar

um capital cultural quantitativa e qualitativamente diferente. Mas […] herda-se um capital

cultural socialmente diferenciado mas não se herda o sucesso escolar, que pressupõe um

trabalho intenso de valorização desse capital.” (Madeira, 2003:167, itálico no original)

Assim sendo, o sucesso e o fracasso não poderão ser explicados pelo capital cultural recebido, não sendo mesmo

possível compreendê-los pelo conhecimento da origem social dos jovens. Madeira conclui ainda que:

“o universo das aprendizagens dos jovens […] é dominado pelas relações com os outros [sendo

que] para a maioria destes jovens, [origem popular] as expectativas giram à volta do triângulo:

estudos, diploma, trabalho, ou seja, ir à escola para obter um diploma que lhe permita mais

tarde ter um emprego.” (2003:169-170)

Efetivamente os “jovens dos meios populares pensam a escola em termos de futuro mais do que de saber e que

aprender não apresenta um sentido unívoco” (Charlot, 1996: 47). Portanto, o sucesso ou o fracasso escolar dos

alunos não se explica definitivamente pela sua classe social de pertença e em consequência pelas facilidades ou

dificuldades inerentes à respetiva origem social. Deve, antes, suscitar uma reflexão sobre o efeito de uma maior

ou menor atratividade que as atividades escolares possam representar para cada um. Em função da

significatividade e do prazer que aquelas possam proporcionar, assim o aluno decide emprestar-lhes um maior

ou um menor esforço intelectual para apropriação dos saberes veiculados pela escola. Charlot, na entrevista

realizada por Rego & Bruno, refere que:

“só aprende quem estuda, quem tem uma atividade intelectual. Mas só faço um esforço

intelectual se a atividade tem sentido para mim e me traz uma forma de prazer. Portanto, a

questão da atividade, do sentido e do prazer é central.” (Rego & Bruno, 2010: 151)

Charlot propõe que a visão determinística da origem social, sobre a qual assentou a explicação do fenómeno do

sucesso/insucesso escolar nas décadas de 60/70, seja substituída por uma outra mais positiva, com base no

indivíduo, particularmente na sua história de vida, nas suas motivações e interesses e nas suas atividades do

quotidiano. Inquietam-no as contradições entre as formas de aprender no mundo exterior à escola e aquelas

que o êxito escolar reivindica. As formas de aprender são para o autor heterogéneas e defende que “há coisas

que só se podem aprender na escola” (ib. ibid.: 151) pese embora muitas outras, significativas, se aprenderem

fora dela. Para Charlot o ser humano nasce incompleto, porém, nascendo num contexto humano ele tem acesso

a um determinado património cuja apropriação, através da educação, lhe cria a condição que o distingue dos

irracionais. Sendo a “essência do ser humano […] o conjunto das relações sociais” (ib. ibid.: 151) ou seja, tudo

aquilo que o homem construiu ao longo da sua história e que lega aos vindouros através da obrigação de

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aprender, exige um movimento inacabado de apropriação do mundo preexistente. Essa apropriação (educação)

desencadeia três processos complexos: um de humanização (tornar-se homem), um outro de subjetivação

(tornar-se único) e outro de socialização (tornar-se parte da comunidade). Ora, como afirma: “na pesquisa em

educação, devemos considerar o aluno como um ser humano indissociavelmente social e singular” (ib. ibid.: 152).

Muito influenciado pela psicanálise, para “entender quais são as raízes do desejo de aprender e saber” (ib. ibid.:

152), Charlot acredita que o ser humano nascendo, como já se disse, incompleto, tem necessidade de se

completar, através da apropriação do saber. Afirma: “por nascer incompleto, o ser humano vive procurando o

que lhe permitiria completar-se” (ib. ibid.: 152) devendo, no entanto, manter o seu corpo biológico para que essa

apropriação seja possível através de uma dialética de dominação e de exploração permanentes.

Charlot, na sua obra Da relação com o saber. Elementos para uma teoria (2000), questiona-se sobre as razões

que estarão na origem de alguns alunos fracassarem na escola. A probabilidade disso acontecer é maior com

crianças originárias de meios sociais mais débeis, pese embora o paradoxo de algumas delas serem capazes de

alcançar sucesso. Refere que “a expressão ‘fracasso escolar’ é uma certa maneira de verbalizar a experiência, a

vivência e a prática e, por essa razão, uma certa maneira de recortar, interpretar e categorizar o mundo social”

(Charlot, 2000: 13, aspas no original). Porém, tratando-se de uma noção extremamente complexa:

“que recobre tantas coisas e que remete a tantos processos, situações e problemas, ainda por

cima tão diferentes entre si, deveria aparecer como confusa e vaga. Na verdade, não é assim:

cada manifestação do ‘fracasso escolar’, por mais diferente que seja das outras, tende, ao

contrário, a confirmar o caráter de evidência dessa noção.” (ib. ibid.: 14, aspas no original)

Ainda assim, não deixa de ser útil, enquanto chave, para perceber o que acontece na escola. Contudo, os

discursos sobre o fenómeno do fracasso escolar parecem incapazes de se libertar do espartilho imposto pelas

sociologias da reprodução de Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet, que atribuíam à origem social a causa

principal do insucesso. A Charlot interessa mais estudar a relação dos alunos com o saber, do que propriamente

o fracasso escolar, uma vez que do seu ponto de vista “o ‘fracasso escolar’ não existe; o que existe são alunos

fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal” (ib. ibid.: 16, aspas no original). Para

Charlot, o insucesso escolar não pode ser explicado pela origem social, pese embora considerar que tem alguma

correlação com as desigualdades sociais. Isto é, defendendo que “a origem social não produz o fracasso escolar”

(ib. ibid.: 25) chega mesmo a afirmar que “os alunos em situação de fracasso não são deficientes socioculturais”

(ib. ibid.: 25). Aliás, se assim fosse, como explicar que certas crianças de meios populares obtenham sucesso na

escola?

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O discurso da deficiência sociocultural proporciona “importantes benefícios ideológicos aos docentes” (ib. ibid.:

29) e por isso aderem massivamente às teorias da reprodução, uma vez que os libertam da obrigação de explicar

o insucesso pelo fracasso das suas práticas. Convém então que desta leitura negativa da realidade social se

evolua para uma outra leitura mais positiva ligada “à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à

sua atividade” (ib. ibid.: 30). Assim, para Charlot “procurar compreender o fracasso como uma situação que

advém durante uma história é considerar que todo o indivíduo é um sujeito, por mais dominado que seja” (ib.

ibid.: 31, itálico no original).

Na perspetiva do autor, o fracasso escolar deve ser explicado em termos de relação com o saber, pelo que propõe

a construção de uma sociologia da relação com o saber, porém diz que:

“construir [essa sociologia] implica a transgressão de um tabu: tal sociologia deve ser, de

maneira deliberada e sem envergonhar-se, uma sociologia do sujeito. Ao construir-se como tal,

ela encontrará outras disciplinas [ex: psicologia, psicanálise, filosofia, antropologia, ciências da

educação etc] que também trabalham sobre a questão do sujeito ou a do sentido. Uma

sociologia da relação com o saber não pode pretender construir, sozinha, a teoria da relação

com o saber, hoje em um estágio embrionário.” (ib. ibid.: 87)

Os percursos escolares atípicos na senda de Bernard Lahire

Bernard Lahire, sociólogo francês, nascido em 1963 em Lyon, oriundo de uma família humilde dos bairros

operários da cidade, refere na entrevista concedida a Setton que:

“[chegou] à universidade com os questionamentos e as inquietações próprias [da sua] situação

de trânsfuga de classe, e nela [encontrou] a sociologia, que começou a [trazer-lhe] respostas

satisfatórias. Rapidamente [começou] a viver a sociologia como uma vocação e de forma

apaixonada.” (2004: 315)

Admirador crítico da sociologia de Bourdieu e ao arrepio da maioria dos sociólogos franceses que se “esfalfam

negando as contribuições desse autor ” (ib. ibid.: 317), preocupa-se “sobretudo [em] afrontar essa sociologia, de

[se] apropriar dela e de transformá-la do interior” (ib. ibid.: 317). Isto é, inventando uma nova forma de “pensar

o mundo social segundo uma escala individual” (ib. ibid.: 317). As suas interrogações “são originárias da

superação crítica […] da teoria do habitus” (ib. ibid.: 317, itálico no original).

Crítico daquela teoria bourdesiana que fazia assentar sobre a base estável do habitus familiar o sentido da

aquisição das experiências ulteriores, Lahire defende que as crianças na actualidade, desde muito cedo,

convivem com uma grande diversidade de contextos socializadores pelo que “os patrimônios individuais de

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disposições raramente são muito coerentes e homogêneos” (ib. ibid.: 318). Assim, fala “de pluralidade e de

heterogeneidade de disposições incorporadas por cada agente nas sociedades com forte diferenciação social,

nas quais a família não tem mais o monopólio da educação legítima das crianças” (ib. ibid.: 318, itálico no

original).

Os primeiros trabalhos do autor desenvolveram-se à volta dos fatores que fazem variar as performances dos

alunos da escola primária, oriundos de meios menos favorecidos. Procura explicá-las pela natureza da cultura

escolar e pelo “tipo de contribuição à linguagem […] que a escrita tornou possível” (ib. ibid.: 317). Depois, tentou

perceber as causas que estariam na origem do sucesso escolar em crianças que estatisticamente deveriam

fracassar. Tentar “compreender, mediante quais processos, um aluno tem bom desempenho na escola, quando

todos os indicadores são desfavoráveis a sua escolarização” (Zago, 2000: 71) é uma das questões sobre as quais

assentam as preocupações do seu estudo sobre o sucesso escolar. O objetivo central é tentar encontrar

explicações de natureza sociológica para esses percursos atípicos, assim considerados por se apresentarem

contrários às tendências estatísticas.

Na sua obra Sucesso escolar nos meios populares - as razões do improvável, o autor aprofunda as diferentes

configurações familiares que define como sendo “o conjunto dos elos que constituem uma ‘parte’ […] da

realidade social concebida como uma rede de relações de interdependência humana” (Lahire, 2008: 39-40, aspas

no original) de forma a perceber as caraterísticas gerais que explicam o sucesso escolar dos alunos daqueles

meios desfavorecidos. O objetivo do “estudo foi compreender as diferenças dos resultados escolares (fracasso e

sucesso) no cruzamento das configurações familiares específicas e do espaço escolar, dando visibilidade aos

fenômenos de consonância e de dissonância entre essas duas instâncias” (Zago, 2000: 71, itálico no original).

Para análise das diferenças dos resultados escolares “apoia-se no estudo de 26 casos, a partir de cinco temas

fundamentais: as condições e disposições econômicas, as formas familiares de cultura escrita, a ordem moral

doméstica, as formas de exercício da autoridade familiar e os modos familiares de investimento pedagógico” (ib.

ibid.: 71):

1- As condições e disposições económicas, surgem como “condições necessárias, mas seguramente não

suficientes” (Lahire, 2008: 24) para o sucesso escolar “e que em muitas das famílias dos meios populares

onde se verificam as singularidades do sucesso escolar, estão presentes o cálculo racional e disposições

ascéticas (opostas ao ‘deixa-andar’)” (Teixeira, 2008: 5, parêntesis e aspas no original);

2- Quanto à relação que as famílias têm com a escrita, sendo a escola uma espécie de “universo de cultura

escrita” (Lahire, 2008: 20), torna-se necessário saber que tipo de experiências é que essa cultura, ou a

ausência dela, suscita na criança. Relativamente a isso Lahire diz que:

Page 45: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

43

“a familiaridade com a leitura, particularmente, pode conduzir a práticas voltadas para a

criança, de grande importância para o ‘sucesso’ escolar: sabemos, por exemplo, que a leitura

em voz alta de narrativas escritas, combinada com a discussão dessas narrativas com a criança,

está em correlação extrema com o ‘sucesso’ escolar em leitura.” (ib. ibid.: 20, aspas no original)

Observou também “uma extraordinária divisão sexual das tarefas domésticas que envolviam a escrita” (Setton,

2004: 317), isto é, verificou que as mulheres na família escreviam muito mais do que os seus parceiros;

3- Boa parte das famílias dos meios populares, incapazes de concorrer diretamente para o sucesso escolar de

seus filhos, pela via da ajuda pedagógica, inculcam-lhes “a capacidade de submeter-se à autoridade escolar

[respeito à autoridade do professor], comportando-se corretamente, aceitando fazer o que lhes é pedido, ou

seja, serem relativamente dóceis” (Lahire, 2008: 25) o que vai no sentido do aluno ideal que a escola cultiva.

De facto numa “configuração familiar relativamente estável [o aluno] adquire, sem o perceber, métodos de

organização, estruturas cognitivas ordenadas e predispostas a funcionar como estruturas de ordenação do

mundo” (ib. ibid.: 26-27);

4- “As diferentes formas de exercício da autoridade familiar dão relativa importância ao autocontrole, à

interiorização das normas de comportamento” (ib. ibid.: 28) por isso sempre que exista uma contradição

entre a forma como se exerce a autoridade na família e na escola, a probabilidade do fracasso é maior pelo

que é “importante estar atendo a fenômenos de dupla coerção em alguns alunos: eles podem estar sendo

submetidos a regimes disciplinares, familiar e escolar, diferentes ou opostos” (ib. ibid.: 28);

5- Relativamente aos modos familiares de investimento pedagógico e na impossibilidade da ajuda das famílias,

por ausência de competências de literacia, esta materializa-se através da “organização da ordem moral

doméstica e na gestão da economia do lar” (Teixeira, 2008: 6). Muitas vezes e para algumas famílias a

escolaridade pode tornar-se mesmo uma “obsessão familiar” (Lahire, 2008: 29), “os pais ‘sacrificam’ a vida

pelos filhos para que cheguem aonde gostariam [eles] de ter chegado ou para que saiam da condição

sociofamiliar em que vivem” (ib. ibid.: 29, aspas no original).

Na sua obra, Lahire atribui ao elemento feminino da família um papel fulcral, uma vez que são as mães que “na

maior parte das vezes, se encontram no polo racional, enquanto que os pais se encontram no polo do

espontâneo, do hedonista que, […] não se coaduna com a racionalidade solicitada pela escola” (Teixeira, 2008:

6). Chega mesmo a afirmar que “as mães ou, mais raramente, os pais cuidam da escolaridade, controlam as

tarefas, explicam quando podem, fazem repetir em voz alta as lições, compram cadernos de exercícios durante

as férias escolares de verão para que os filhos continuem a se exercitar” (Lahire, 2008: 334).

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Lahire conclui genericamente na sua obra que o tema da omissão parental é um mito. “Os pais não são

indiferentes aos comportamentos e aos desempenhos escolares” (ib. ibid.: 334-335) dos filhos. Efetivamente

este discurso da omissão parte dos professores que, muitas vezes, ignorando as caraterísticas das diversas

configurações familiares, expurgam as suas próprias capacidades invocando este argumento de fácil uso. O facto

de um pai ou uma mãe não irem à escola e não participarem nela, não é motivo de insucesso dos filhos ou vice-

versa. Lahire afirma que:

“mesmo que a ida dos pais ao espaço escolar pareça ser desejada por uma grande parte dos

professores, isso não está desprovido de ambigüidade. Os pais podem ser vistos como que se

intrometendo um pouco demais num domínio pedagógico considerado reservado e, assim,

despertar reações de defesa.” (ib. ibid.: 337)

Conclui ainda não haver correspondência direta entre o capital escolar das famílias e o rendimento escolar das

crianças uma vez que isso depende da capacidade de colocar esse capital cultural “em condições que tornem

possível sua ‘transmissão’” (ib. ibid.: 338, aspas no original). Muitas vezes isso não acontece, pois

“com [um] capital cultural equivalente, dois contextos familiares podem produzir situações

escolares muito diferentes na medida em que o rendimento escolar desses capitais culturais

depende muito das configurações familiares de conjunto. […] a herança cultural nem sempre

chega a encontrar as condições adequadas para que o herdeiro [a] herde.” (ib. ibid.: 338)

De facto, não existem famílias desprovidas, completamente, de quaisquer objetos culturais, podem, no entanto,

ser “letra morta” (ib. ibid.: 342, itálico no original) porque não há na família quem os faça viver. Por conseguinte

uma biblioteca familiar relativamente rica só é útil se os livros estiverem acordados e sendo usados ultrapassem

o mero estatuto decorativo.

Mesmo até, nas famílias, com fracas qualificações escolares, é possível observar que “o que é feito na escola tem

sentido e valor” (ib. ibid.: 343).

Relativamente à relação entre o capital escolar das famílias e a sua experiência escolar e à influência que isso

possa representar no sucesso/insucesso dos alunos, Lahire afirma que:

“do ponto de vista da escolaridade da criança, é sem dúvida preferível ter pais sem capital

escolar a ter pais que tenham sofrido na escola e que dela conservem angústias, vergonhas,

complexos, remorsos, traumas ou bloqueios.” (ib. ibid.: 344-345)

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45

Por fim Lahire fornece alguns contributos no sentido de tornar mais clara a oposição que existe entre o indivíduo

e a sociedade, entre o ator e a estrutura, entre a subjetividade e a objetividade, introduzindo o conceito da

antropologia da interdependência. Afirma que “os seres sociais não se encontram diante das ‘estruturas sociais’

ou das ‘estruturas lingüísticas’, mas se constituem enquanto tais através das formas que suas relações sociais

adquirem” (ib. ibid.: 349, itálico e aspas no original) “ou seja na e pela interdependência” (Teixeira, 2008: 6,

negrito no original).

Refere ainda que:

“cada ser social particular não apenas se forma enquanto tal nas múltiplas relações de

interdependência que estabelece com o mundo e com o outro desde o seu nascimento, como

também nas relações que mantém com outros homens, ‘passam pelas coisas’, isto é, pelos

produtos objetivados das formas de relações sociais passadas ou presentes.” (Lahire: 2008:

350, aspas no original)

Os estudos sociológicos recentes sobre o fenómeno em apreço, centram-se muito mais nos elementos

responsáveis pela construção das trajetórias bem-sucedidas, como são por exemplo as “práticas familiares de

escolarização” (Zago, 2000: 71) e não tanto nas variáveis clássicas que tinham como hegemónicas as variáveis

ligadas às teorias da reprodução com o meio social de origem. Atualmente, atende-se muito mais ao

“reconhecimento explícito da heterogeneidade das camadas populares e [a] uma análise não-determinista da

realidade social” (ib. ibid.: 71).

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EQUIDADE, COMPROMISSO, COOPERAÇÃO E QUALIDADE NA EDUCAÇÃO

Adosinda Maria de Sousa Oliveira

Nota introdutória

A preocupação com a educação tem sido uma constante ao longo de toda a história da sociedade. Muitas têm

sido as deliberações políticas em torno da missão educativa das organizações escolares ao longo dos tempos. As

orientações nem sempre foram iguais, modificando-se e ajustando-se consoante os períodos vividos e as

ideologias políticas e governativas da época.

Nos primeiros anos do século XXI, assistimos a um novo paradigma educacional em que a escola surge, no

entender de Torres e Palhares, “vergada ao peso de uma dupla responsabilidade social, que paulatinamente vem

gerando certezas sob o impulso da ideologia de mão-de-obra suficientemente qualificada, adaptável e flexível

face às necessidades reais do mercado de trabalho” (2009, p. 79). Acrescentam os mesmos investigadores que,

se sobre ela recaem “os desafios de preservação das estruturas e das relações sociais do mercado capitalista,

será necessário assumir-se a reorganização das instituições educativas à luz das necessidades de uma sociedade

cada vez mais global e competitiva” (2009, p. 79). E, deste modo, Apple em tom de crítica salienta que “[...] a

educação converte-se num produto, tal como o pão ou os carros, e a única cultura que vale a pena abordar é a

“cultura empresarial” e as destrezas flexíveis, conhecimentos, disposições e valores, necessários para a

competição económica” (1999, p. 47).

Mesmo reconhecendo os avanços notáveis em algumas escolas nos domínios pedagógico e organizacional,

persistem ainda dificuldades, ao nível dos professores, em desenvolver um trabalho colaborativo, em alterar as

rotinas pedagógicas instituídas, em pensar e trabalhar a escola como agência multicultural, com equidade,

compromisso, cooperação e qualidade.

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1. Valorização do “Etos” das organizações escolares para ensinar melhor e melhor aprender

De facto, na conjuntura das políticas educativas atuais, as organizações escolares11 são confrontadas nos planos

curricular, pedagógico e organizacional, face às transformações do meio social em que vivemos, decorrentes

sobretudo, do impacto das “tecnologias da informação e da comunicação”, da globalização e da emergência de

novas lógicas de participação na vida política e social12. Torna‐se cada vez mais evidente que as escolas procuram

gerir as desigualdades e a exclusão dentro dos constrangimentos impostos pelo sistema que as produz.

A condição socioprofissional dos professores torna‐os naturalmente nos principais veículos do processo

democrático nas escolas, com mais ou menos autonomia democrática. Por isso, o sentido das suas práticas

(sociais, políticas, educativas, pedagógicas), ou seja, a forma como utilizam os espaços limitados de autonomia e

como recontextualizam as próprias imposições centrais, acabam por ser determinantes no desenvolvimento da

cidadania democrática da instituição escolar.

Num mundo em que a informação, o conhecimento, a capacidade de aprendizagem, de adaptação e inovação

crescem de forma galopante, a principal aposta das organizações escolares terá de ser “cuidar do seu etos”

valorizar os bens relacionais sendo o seu ideal ensinar melhor e fazer aprender melhor.

Contudo, nem sempre foi assim, pois não eram reconhecidas às instituições escolares especificidades políticas e

organizacionais que as distinguissem das organizações empresariais 13. No decorrer do tempo vai deixando de

11 Têm sido diversas as teorias e sistematizações concretizadas por diversos investigadores, sob diferentes perspetivas que, recorrendo a

metáforas, pretendiam interpretar o funcionamento das organizações enquanto realidades sociais com alguma complexidade. O conceito

de organização remete, na maioria das vezes, para células sociais propositadamente erigidas, com o propósito de obtermos objetivos

específicos. Na ótica de Fridberg (1993) a definição de organização acompanha, de certa forma, a evolução da teoria das organizações,

paralelamente a uma complexificação da noção de organização, que passa pela designação de um objeto social particular até a uma visão

mais ampla, que se preocupa mais com o processo de construção de uma ordem local relacionada com a ação coletiva dos homens. 12 A propósito Azevedo refere que várias questões se têm colocado, com respostas muito diferentes, segundo os países, as suas histórias, os

seus tecidos sociais, os diversos modelos de articulação entre escolarização, certificações e modelos produtivos, bem como as racionalidades

pedagógicas que prevalecem nas políticas educativas (Azevedo, 2007). 13 A este propósito, Torres e Palhares referem que esta crescente e redobrada pressão exercida sobre a escola, compelindo-a a adotar

modelos de administração e gestão tipicamente empresariais, “arrastou consigo todo um movimento investigativo que passa a colocar no

centro das suas prioridades o estudo das dimensões culturais da escola, fundamentalmente numa perspetiva gestionária e instrumental. Se

bem que as dimensões culturais da escola tenham constituído um objeto de estudo privilegiado na década de oitenta do século XX, o certo

é que o quadro político-axiológico emergente encetou o deslocamento dos interesses investigativos para as dimensões mais instrumentais,

tecnicistas e pragmáticas da administração da educação” (2009, p.80). Ao imputar-se ao sistema educativo “a responsabilidade exclusiva

pela fabricação de competências úteis, adaptáveis e mobilizáveis no mercado de trabalho, […], criaram-se as condições para infiltrar no

mundo escolar as mesmas lógicas e valores que enformam o mundo económico” (2009, p. 80).

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49

fazer sentido para Lima (2007), a ingénua visão da escola que espelha lógicas e valores que evocam a

produtividade de sucessos escolares pré-formatados e globalmente definidos, traduzidos principalmente por

competências para competir, face a uma maior aquisição nos alunos de eficácia e de excelência escolar.

Enquanto profissionais, não podemos ter apenas um papel de indutores de iniciação à escrita e organizadores

de conteúdos pré-curriculares que porventura são um excelente móbil à reflexão sobre a democracia e a

cidadania.

Tal como recomenda Barbosa, devemos adotar uma clara noção de que aprender na cidadania “não pode ser a

fabricação de indivíduos socialmente preparados para assumirem mecanicamente as normas, regras e valores

da sua comunidade política” (2001, p. 89). Não pode ser simplesmente como referem Delors et al, “ensinar

preceitos ou códigos rígidos, acabando por cair na doutrinação” (1996, p. 61). Cidadania deve ser sinónimo de

participação, liberdade, valores, direitos, deveres e consciência cívica. A cidadania está presente em inúmeros

discursos e são cada vez mais aqueles que pensam que todos – pais, sociedade e escola - devem (com) partilhar

desta educação, mas são cada vez mais aqueles que, na incapacidade de o fazer convenientemente, confiam (só)

à escola a educação do cidadão.

É importante sermos na sociedade atual, enquanto profissionais críticos e responsáveis, indutores de

organizações escolares mais democráticas, mais participativas, cívicas e reflexivas. E isso é conseguido também,

com a nossa abertura à formação. Corroborando do pensamento de Perrenoud, o professor empenhado na

educação do século XXI não pode simplesmente “dar” aulas e depois ignorar a vida escolar, bem antes, pelo

contrário, deve envolver-se numa educação multidimensional que vá mais além da transmissão de conteúdos,

em que os docentes tenham de adquirir e desenvolver novas competências e como sublinha, assumir uma “nova

identidade profissional” e uma nova “relação com o saber e com os alunos” (2005, p. 42).

Refletindo, percebemos que a escola não deverá enaltecer um saber codificado, vertiginoso e irrelevante, mas

dar primazia a um clima de exigência e de trabalho, cujos princípios assentem na promoção da equidade14,

confiança, cooperação e compromisso. A promoção da equidade em educação escolar requer que as escolas

sejam fortes e institucionalmente apoiadas pelo conjunto da sociedade, a começar pelas famílias e pelas

comunidades onde se inserem (Levin, 2003).

O enfoque da atividade da escola deve privilegiar o saber melhor de cada um, onde cada individuo deve estar no

centro de toda a atividade educativa. Em cada aluno e em cada profissional, com que deparamos, mora sempre

14 “A promoção da equidade na educação não deve ser confundida com a promoção de políticas igualitaristas, no sentido em que pretendem tratar todos os cidadãos em pé de igualdade, mas como se todos fossem um só” (Azevedo, 2007).

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uma pessoa única, com uma dignidade inalienável e inviolável, que está acima e antes de qualquer

enquadramento institucional ou função social.

Os alunos não podem ser portanto, considerados peças da máquina educacional mas seres únicos que merecem

o maior acolhimento e a melhor hospitalidade. Na verdade, o “currículo uniforme pronto‐a‐vestir” tal como

refere tantas vezes Formosinho (1998), seja de “tamanho único” ou de “tamanhos estandardizados” decidido

centralmente que arrasta consigo uma pedagogia uniforme, que se traduz nos mesmos conteúdos, a mesma

extensão dos programas e limites estreitos para o ritmo de implementação, a grelha horária semanal uniforme,

as cargas horárias determinadas por disciplina, não serve o interesses e necessidades dos alunos da escola atual.

Concordando com Formosinho entendemos que, atualmente, o “etos das organizações escolares” de hoje deve

privilegiar uma pedagogia de participação procurando “responder à complexidade da sociedade e das

comunidades, do conhecimento, das crianças e das suas famílias, com um processo interactivo de diálogo” (2007,

p. 15) confrontando crenças, saberes e práticas, numa interação entre os demais contextos envolventes.

Neste seguimento, relembramos que os principais fatores que devem motivar as dinâmicas educativas das

escolas devem ser: a organização/gestão efetiva da sala de aula; o clima/dimensão relacional e o

desenvolvimento de papéis interativos entre o aluno e o professor. Concordando com Freire (2005), o professor

deve saber respeitar os interesses dos seus alunos e aproveitar as suas vivências para produzir conhecimento.

Muitos saberes são construídos nessa prática diária e como tal devem ser respeitados. O professor deve estar

disposto a ouvir, a dialogar, a fazer das suas aulas momentos desafiantes de liberdade para falar, para debater e

para compreender as reais necessidades e aspirações dos discentes.

A qualidade da relação interpessoal professor/aluno, o clima de humanidade/cooperação, o compromisso e a

segurança que se deve viver na escola, são fatores motivadores e promotores de sucesso educativo mas,

infelizmente, ainda hoje nos deparamos com uma escola muito fechada sobre si. A propósito, para Torres e

Palhares (2009) a dinâmica da escola deve assentar na convergência de lógicas e aprofundamento dos valores

democráticos, cabendo às organizações escolares a difícil missão de reinventarem fórmulas de mobilização local

dos atores e de reposição quotidiana do sentido cívico e democrático.

Corroborando do pensamento de Sanches, a construção de uma “escola como oficina de cidadania democrática”

(2007, p. 151) exigirá, entre outros aspetos, a interiorização da ideia de que qualquer processo de organização e

administração educacional comporta inevitavelmente uma pedagogia implícita (Lima, 2000), que exprime

determinados valores e princípios ético-políticos e, nesta ótica, Estêvão salienta que mais do que se desenvolver

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como uma “especialidade técnica”, a liderança das escolas “deve emergir como uma prática social, incorporando

uma dimensão ética e crítica, e instituir-se como uma ‘especialidade educacional’” (2001, p. 87).

Na verdade, as escolas continuam a ser hoje organizações sociais que, na prática, estão bastante separadas do

mundo e das pessoas, fechadas sobre um funcionamento muito normalizado e burocratizado. O currículo

escolar, o tipo de disciplinas, as organizações horárias, as estruturas pedagógicas, o modelo de direção e de

gestão das escolas, tudo isto se enreda no maior dos formalismos, no emaranhado de normas e de discussões

tecnocráticas infindáveis e inúteis, num quadro de grande desorientação. Deveria antes, portanto, reconhecer-

se mais o potencial das pessoas valorizando o seu melhor saber, num clima de interação positiva.

Presenciamos ainda hoje, em vários documentos legislativos e mesmo em investigações educativas a definição

do conceito de escola como entidade ou organização educativa e os professores como profissionais de educação.

Mas, o certo é que em pleno século XXI, as escolas continuam a viver sem ou com uma autonomia relativa e isso,

por si só, a literatura as limita à definição de quase organizações e aos professores de quase profissionais. Temos

de cuidar, como referimos atrás, do etos da escola e contrariar o saber codificado.

Assistimos nesta era de pós modernidade a uma progressiva irrelevância da educação escolar, regida por um

modelo muito fabril e cada vez mais vertiginoso e formal sendo necessário investir na criação de redes de

cooperação ativa. Percebemos, por vezes, as consequências do isolamento e “fechar sobre si” das escolas. É

urgente perceber que para que a missão da escola seja cumprida, todos temos de contribuir com um bocadinho

de nós – aprendermos a prestar cuidados. Ajudarmos a escola a cuidar dos seus objetivos, valorizando os seus

bens relacionais para atingir o seu objetivo central – ensinar melhor e aprender melhor. Ou seja, como refere

Afonso, a qualidade da educação, “constrói-se principalmente a partir do interior das escolas, através de um

trabalho reflexivo e crítico de todos os actores envolvidos” (2005, p. 14-15).

Devemos lutar por uma escola caraterizada por um modelo pedagógico que permita a flexibilização e

diversificação dos percursos educativos dos alunos, bem como uma aprendizagem autocentrada, assente num

acompanhamento pedagógico personalizado e no primado da dimensão formativa da educação e avaliação. Para

a obtenção de uma escola com estas qualidades, o professor/educador deve estabelecer uma dinâmica relacional

junto dos alunos e comunidades (escolar e educativa) aberta e facilitadora da aprendizagem.

A atitude do professor pode fazer a diferença na aprendizagem e no sucesso escolar. Não podemos deixar de

lembrar a firmação de Onrubia ao referir que devido à peculiar natureza social e cultural dos saberes que os

alunos têm de aprender, esse processo ativo, na escola, “não pode ficar entregue ao acaso, nem desligado de

uma actuação externa, planificada e sistemática, que o oriente e conduza na direção prevista pelas intenções

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educativas que constam no currículo” (2001, p. 120). Não pode haver nas escolas mais percursos-não, pelo

simples facto de que em educação não há percursos-não (só como deseducação).

A criação de percursos educativos de qualidade, compromisso, confiança e cooperação para cada um e para

todos deve constituir o grande desafio da missão escolar em pleno século XXI. Mas, todos sabemos que embora

seja esse o grande desejo de todos, o certo é que as instituições educativas continuam numa espiral negativa de

sucesso.

Na verdade, é que percebemos que as sociedades atuais se preocupam muito com o sucesso escolar dos alunos

e pouco com o seu real sucesso escolar. Isto remete o nosso pensamento para a vivência de uma sociedade

espetáculo dominada pelos média que evidencia sucessos e dificuldades, mais do que conhece e compreende

esses sucessos e essas dificuldades, condição, em nosso entender, essencial para celebrar ou enfrentá-los. Mas,

pouco ou nada se faz na sequência, seja para sustentar os sucessos nos resultados obtidos, seja para ultrapassar

as dificuldades tão brilhantemente evidenciadas. Interrogamo-nos, perante tal realidade pois, se em vez de

fugirmos para a frente, diante das múltiplas dificuldades de conciliação de uma escola de massas com

aprendizagens de qualidade para cada um e para todos, não estamos a insistir freneticamente em mais exames

e mais produção estatística?

Não seria mais oportuno continuar a enfrentar, em cada escola concreta, os problemas contextuais que

representam o desafio maior de desencadear as condições precisas que criam percursos educativos de qualidade

para cada aluno?

Enquanto quase profissionais temos o dever de nos continuar a preocupar com as políticas pedagógicas e as

práticas escolares de que também somos responsáveis (Azevedo, 2008). Continuar a pensar, que essas políticas

se revelam porventura mais eficazes ao tomarmos consciência de que temos muita influência na aprendizagem

dos alunos e na gestão da turma/sala de aula.

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53

Concluindo

Num tempo de mudanças aceleradas, tal como refere Azevedo (2007), é o professor que mais ajuda (ou não) o

aluno a aprender, pelo que podemos e devemos falar, do seu valor acrescentado, além do efeito escola, dando

ocasião aos alunos de demonstrar as novas competências adquiridas. Sabemos que a aprendizagem é uma

atividade multidimensional que não deve deixar de lado nada que diga respeito a cada aluno.

A este propósito Freire relembra que educar é criar possibilidades para a produção de novos saberes e

conhecimentos, pois na ótica do pedagogo, “formar é muito mais do que puramente treinar o educando no

desempenho de destrezas” (2005, p. 14). Parte-se do princípio que todos os docentes devem nortear as suas

práticas por princípios de ética universal, que não se deve dissociar da atividade educativa e a melhor forma de

lutar por esta ética é vivê-la e testemunhá-la na prática educativo-crítica, como sabiamente o pedagogo faz notar.

Neste caso, a escola como instituição educativa antes de mais (sem abandonar as suas funcionalidades

tradicionais), deve enriquecer a sua missão, o seu etos reordenando-se em torno do eixo central do

desenvolvimento humano e solidário de cada um dos alunos que acolhe. Neste sentido Azevedo (2008) relembra-

nos que o sucesso escolar é uma construção social, centrada sobre a escola, em que interferem

predominantemente, para além do professor/educador, os ambientes seguros, pacíficos e relações afetuosas

entre alunos e professores, em que a diferenciação pedagógica seja vista como uma estratégia de otimização de

aprendizagens.

A nossa mensagem final e principal consiste em sublinhar que um dos maiores erros em educação consiste em

criar percursos-não. Para isso,

- O que será preciso que o nosso sistema escolar faça? De que forma podemos oferecer um percurso educativo

de qualidade, compromisso, cooperação e qualidade para cada e todos os alunos?

- Que fazer para valorizar o “Etos” das organizações escolares de forma a obtermos um melhor ensino e uma

melhor aprendizagem?

A escola pública não pode continuar a ser considerada a escola dos portugueses de segunda. Ficam como reflexão

estas questões.

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54

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57

O(S) SENTIDO(S) DA LIDERANÇA: LIDERANÇAS CURRICULARES INTERMÉDIAS

José Pinheiro

Este texto pretende focalizar as lideranças curriculares intermédias como fatores de mudança na escola, com

vista a um melhor sucesso.

A escola das sociedades contemporâneas tem sofrido mudanças muito significativas, embora se continuem a

procurar hoje políticas educativas e organizacionais que viabilizem uma efetiva melhoria da qualidade do ensino

que aí é ministrado. Tal insistência deve-se ao facto de a escola continuar a manifestar dificuldades em resolver

questões fundamentais, quer do ponto de vista organizacional, quer ao nível do seu funcionamento. Um dos

aspetos mais relevantes têm a ver com a forma como os professores se organizam e trabalham. É uma questão

importante, uma vez que as culturas colaborativas que se implementam na escola intervêm diretamente nas

questões curriculares e permitem uma verdadeira transformação ao nível da cultura escolar.

O texto que aqui se apresenta enquadra-se no âmbito dos estudos sobre lideranças curriculares intermédias, um

terreno em torno do qual muito se pode ainda refletir e mudar. Todos temos consciência de que o sistema de

ensino em Portugal é mais centralizado e burocratizado do que noutros países, o que deixa pouco espaço de

manobra aos diretores de escola, aos coordenadores e demais professores para decidirem com autonomia e

liberdade. No entanto, é ao nível das estruturas intermédias que se podem alterar as práticas pedagógicas, no

sentido de desenvolver estratégias facilitadoras de lideranças participadas e de dinâmicas de colaboração, de

trabalho coletivo e de inovação.

O termo líder, palavra com origem na língua inglesa, está na raiz da palavra liderança, mas continua afastado da

terminologia usada no contexto escolar, isto é, falamos de lideranças fortes ou fracas, a ausência ou excesso de

liderança, mas nunca nos referimos a quaisquer elementos da comunidade educativa como bons ou maus

líderes.

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58

Nas escolas não há a tradição de cultivar lideranças exercidas por uma só pessoa, argumento que tem servido

nos últimos anos para justificar posições políticas que defendem ser essa a razão de todos os males da escola

pública. Para Lima (2003), esta orientação tem sido defendida em Portugal por ideologias ligadas à “Nova gestão

pública” e à “Administração pública empresarial” e ficou conhecida por “gerencialismo”, cuja ideia principal é a

defesa de que só uma liderança (preferencialmente unipessoal) regida por critérios de racionalidade técnica e

por conceitos de eficiência de inspiração empresarial poderá resolver os problemas da escola pública.

Ora, sabemos que as organizações educativas são bem diferentes das organizações empresariais. As escolas

necessitam de lideranças especiais, pois os profissionais escolares nem sempre reagem calorosamente a um tipo

de liderança de comando baseada em hierarquias, que caracteriza muitas destas organizações. De um modo

geral, os professores:

“demonstram também muito pouca tolerância relativamente a rituais burocráticos. Embora o

controlo esteja sempre na mão dos líderes escolares, os melhores deles têm perfeita

consciência de que os professores, que eles próprios supervisionam, têm mais consciência

daquilo que deve ser feito e de como deve ser feito. Esta realidade cria grandes falhas nas

competências de autoridade, falhas estas que devem ser ultrapassadas” (Sergiovanni, 2004b:

173).

As reformas profundas e constantes dependem de muitos e não apenas de um pequeno número, mesmo que

excecional. Para que as escolas se transformem em organizações de aprendizagem, onde a colegialidade e a

colaboração entre docentes sejam parte integrante de um aperfeiçoamento contínuo e sustentado, tem de haver

lideranças eficazes (Fullan, 2003).

As tentativas de mudança da escola que não consigam mudar a sua cultura ou a sua gramática, como refere

Morgado (2005), isto é, o conjunto de regras que governam e determinam o que acontece no seu interior,

nomeadamente as experiências dos indivíduos que nela interagem, serão infrutíferas. Porém, não se trata de

uma tarefa fácil:

“Reconhecemos que se trata de um processo que não está desprovido de dificuldades,

sobretudo se tivermos em conta que qualquer alteração a esse nível passa não só por

conseguir ruturas com determinadas rotinas instaladas, mas também por substituir

determinados esquemas tradicionais que aí existem há muito tempo” (Morgado, 2005: 277).

É no trabalho coletivo e colaborativo que está a solução para as mudanças que se deseja implementar no nosso

sistema de ensino, o que requer que os professores mudem atitudes e formas de agir. Para isso, têm de se criar

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condições nas escolas e fomentar a existência de um clima impulsionador dessa mudança, transmitindo essa

vontade ao nível das direções executivas e ao nível dos órgãos intermédios - departamentos curriculares e

conselhos de turma.

As relações profissionais colaborativas são consensualmente consideradas como um requisito essencial para o

desenvolvimento curricular e para a implementação eficaz da mudança.

Compreendemos que no contexto de mudança do atual modelo de gestão, as lideranças desenvolvidas pelos

coordenadores nas diferentes estruturas intermédias influenciam as dinâmicas curriculares da escola;

percebemos, ainda deste modo, que as diferentes lideranças das estruturas curriculares intermédias podem

contribuir para a mudança da escola e do ensino.

1. Liderança em contexto escolar

O termo liderança, relacionado com a organização da escola, surge, diretamente ligado à ideia de eficácia e

sucesso educativo. A autonomia, a participação, a colegialidade e a cultura colaborativa são apresentadas como

fatores fundamentais de uma visão estratégica conducente à mudança e à inovação das práticas educativas,

promovendo uma cultura de qualidade, de exigência e de responsabilidade na escola.

Segundo Sergiovanni (2004b), o contexto desempenha um papel preponderante no processo de decisão,

permitindo também, aferir se determinadas abordagens de liderança são, ou não, eficazes.

A liderança, associada ao contexto escolar português, surgiu recentemente, fruto de fatores que passam, entre

outros, pelo elevado grau de centralização e burocratização a que o sistema de ensino esteve votado e pela

instauração e manutenção de um modelo de gestão democrática e colegial que permitisse diluir esse

centralismo.

Tem sido um processo pejado de dificuldades, sobretudo por causa de não existir neste contexto a tradição de

cultivar lideranças exercidas por uma só pessoa.

O mesmo autor (2004b: 10) reforça igualmente esta ideia, ao afirmar que a eficácia da escola requer uma

liderança autêntica, uma liderança que seja sensível aos valores, crenças, necessidades e desejos únicos dos

profissionais e cidadãos locais, que são quem melhor conhece as condições necessárias para um dado grupo de

estudantes num contexto específico.

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60

Uma abordagem que nos parece muito interessante trazer à colação é a reflexão realizada por Cunha (2001), em

que apresenta o termo negociação como sendo de grande utilidade quando nos referimos às relações entre

todos aqueles que estabelecem um qualquer tipo de interação. Sendo sinónimo de resolução de problemas de

forma dialogante, o autor (idem) considera a negociação um imperativo nas sociedades atuais, com organizações

em que as partes implicadas possuem diferentes graus de poder mas nunca um poder absoluto sobre os outros.

A autoridade negociada não é para Perrenoud (2002) uma prática simples: passa pela busca de um meio-termo,

sempre improvisado e instável, entre a organização formal dos poderes e o alargamento real dos processos de

decisão. No entanto, para este autor (idem), o cerne do problema não está aí, pois o principal desafio é o de

influenciar a parte das práticas pedagógicas que escapa em larga medida a qualquer decisão, mesmo

participativa.

Assim se compreende que, entendimento consensual ou poder partilhado sejam, para Sergiovanni (2004a),

aspetos fundamentais na relação entre os líderes e os seus seguidores em contexto escolar, ao contrário do que

acontece nas organizações empresariais. É um processo de influência entre líderes e seguidores que envolve

responsabilidades morais, uma vez que nas escolas deve imperar o interesse público e não interesses económicos

ou de competência técnica, como nas organizações empresariais.

2. Estruturas intermédias de liderança

Um traço distintivo importante no domínio da liderança em escolas eficazes é a partilha das responsabilidades

de liderança com outros membros da equipa diretiva da instituição e o envolvimento da generalidade dos

professores nos processos de tomada de decisão (Lima 2008: 196). Mortimore et al. (1988, citado por Lima, 2008:

196) destacaram, por exemplo, o envolvimento do subdiretor na definição das grandes decisões políticas, a

participação dos professores na gestão e planificação curricular e a realização de consultas ao corpo docente

sobre decisões relativas à realização de despesas e a outros aspetos ligados às políticas da escola. A existência

de uma abordagem participativa nas decisões tomadas na escola está intimamente ligada a um outro fator de

eficácia que é a existência de uma cultura colaborativa na instituição.

Para que a escola funcione de forma colaborativa é necessário que haja lideranças colaborativas ou coletivas.

Uma liderança colaborativa implica que todos os elementos do corpo docente de uma escola possam dar o seu

contributo na tomada de decisões que dizem respeito à instituição.

Comparando estudos mais recentes com outros que fizeram alguma tradição no âmbito dos estudos da liderança,

reparamos que aqueles abordam a liderança numa perspetiva partilhada ou distribuída. Sanches (2000) defende

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61

uma descentralização do poder que origine múltiplas lideranças, não concorrentes mas complementares, e

Bolívar (2000: 203) assegura que pelo facto de uma liderança ser coletiva não significa que não haja liderança.

Pelo contrário, isso aumenta o nível de empenhamento e de responsabilização dos diversos agentes educativos

e contribui para melhorar a qualidade do serviço educativo. É nesta ordem de ideias que Fullan e Hargreaves

(2001: 89) garantem que as escolas “caracterizadas por culturas colaborativas são, também, locais de trabalho

árduo, empenhamento forte e comum, dedicação, responsabilidade coletiva e um sentimento especial de

orgulho na instituição”.

As culturas colaborativas contribuem para que a diversidade seja mais apreciada e acessível, pois as pessoas

aprendem umas com as outras, identificam preocupações comuns e trabalham conjuntamente na resolução dos

seus problemas. No entanto, não é fácil desenvolver este tipo de culturas, pois como asseguram Nias et al., (1989,

citados por Fullan e Hargreaves, 2001: 92), “para funcionar bem, elas precisam de um grau elevado de segurança

e de abertura entre os seus membros. As culturas colaborativas são, muito claramente, organizações sofisticadas

e delicadamente equilibradas, razão pela qual são muito difíceis de criar e ainda mais difíceis de manter”.

A existência de uma cultura colaborativa, implicando a partilha das responsabilidades de liderança, pode

configurar um significativo fator de eficácia, tal como argumenta Lima (2008: 196):

“Nas instituições de maior dimensão e no ensino secundário, a delegação das

responsabilidades de liderança pode ser ainda mais importante do que nas outras,

concretizando-se através da instituição de estruturas intermédias actuantes. A este respeito,

a intervenção dos coordenadores de departamento na liderança e na gestão da escola pode

ser particularmente importante. Isto implica o reconhecimento de que a eficácia depende,

também, da existência de papéis de liderança aos diferentes níveis da organização.”

A possibilidade de uma maior capacidade de decisão por parte dos docentes, relativamente à organização

pedagógica intermédia, origina, na opinião de Formosinho e Machado (2009: 62), uma “melhor aferição das suas

decisões e monitorização das suas ações, permite potenciar as capacidades e apetências individuais de cada

membro da equipa e possibilita uma melhor integração dos professores recém-chegados à escola”.

Em síntese, são mudanças que implicam ações de coordenação e a afirmação das lideranças intermédias, o que

no entender de Fullan e Hargreaves (2001: 111) estimula as “culturas de trabalho colaborativas, (…) novas ideias,

(…) desenvolvimento individual e pessoal (…) e uma maior competência, eficácia e satisfação na profissão

docente” proporcionando condições para um verdadeiro profissionalismo interativo.

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62

Para além das circunstâncias empíricas em que o ensino e a organização escolar se desenvolvem, numa

sociedade democrática a escola deve aspirar a ser, também ela, uma comunidade democrática, contribuindo

para reforçar a natureza democrática da própria sociedade. Para Guerra (2002), a participação é o princípio

básico da democracia, neste caso da democracia escolar, mas melhorar a estrutura de participação pode não

significar uma melhoria da dinâmica democrática das escolas, já que para que a realidade se transforme (e não

fique tudo na mesma ou até pior) é preciso modificar o discurso que nos aproxima de uma compreensão

diferente das atitudes dos intervenientes e das práticas por eles realizadas. Daí a nossa intenção e a necessidade

de compreender os mecanismos comunicacionais e discursivos desenvolvidos no interior das estruturas

intermédias da organização escolar, de modo a poder agir sobre eles, otimizando as suas potencialidades

democráticas.

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Page 67: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

65

EDUCAR COM SENTIDO(S): APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA

Adelina Moura

“O professor trabalha para a eternidade:

ninguém pode predizer onde acabará a sua influência.”

H. B. Adams (1838 – 1918)

Introdução

A criação de sentido(s) faz parte da aventura humana, pois o homem tem procurado, ao longo dos tempos, um

sentido para a sua existência. Atualmente, a vertigem tecnológica, que tem vindo a tomar conta do quotidiano

de cada um, e a velocidade a que as coisas mudam dificultam o processo de interiorização e criação do sentido

das coisas. Neste turbilhão, a educação vê-se sujeita a grandes tensões, entre permanência e mutação,

conservação e inovação. É então imperativo uma procura de sentido(s) para a educação e para a cultura,

cultivando a humanidade. E quem melhor o poderá fazer, senão o professor que é o pilar do cultivo da

humanidade junto das jovens gerações.

As teorias construtivistas de aprendizagem (Vygotsky, Piaget, Rescnick) reconhecem que o conhecimento é

construído por cada indivíduo e que a aprendizagem se alicerça na construção de sentido(s). A aprendizagem

duradoura é tanto mais rica e com sentido, quanto maior é a intensidade relacional da pessoa com o contexto

de aprendizagem que o rodeia. Através das tecnologias digitais e das redes sociais a educação está a mudar. Vive

um momento disruptivo, ao permitir que alunos e professores possam trabalhar colaborativamente e aprender

a desenvolver estas práticas dentro e fora da sala de aula, dando sentido às aprendizagens, enfrentando novos

desafios e adquirindo novas competências.

Os contextos em que os sistemas educativos se encontram não deixam de se transformar e de se tornar cada vez

mais complexos. Vivemos num mundo em rápida transformação que exige das pessoas, independentemente da

situação, a necessidade de se formarem ao longo da vida. A aprendizagem ao longo da vida diz respeito à

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66

aprendizagem em todas as idades e modalidades (formal, não formal e informal), com vista ao estabelecimento

de sociedades mais equitativas. O conceito de aprendizagem ao longo da vida vem forçar as instituições

educativas a promover oportunidades dos alunos entrarem e saírem do sistema educativo, em qualquer idade,

e combinar educação com experiências de trabalho. Assim, é necessário repensar as aprendizagens

fundamentais sobre as quais assenta a sociedade da informação e do conhecimento e as competências

necessárias para enfrentar os desafios sociais e do mundo laboral.

Flipped Classroom: um modelo para a aprendizagem permanente

O conceito Flipped Classroom ou aula invertida, tem vindo a ganhar destaque na educação. Trata-se de uma

metodologia desenvolvida, em 2007, por dois professores americanos, Jonathan Bergman e Aaron Sams, que

encontraram benefícios, quando criaram vídeos e outros recursos e os disponibilizaram online para apoiar os

alunos no estudo em casa. Com base neles e nas novas aprendizagens, os alunos passaram a realizar atividades

e a solucionar problemas na aula. Esta abordagem diminui a importância dos conteúdos e do professor na sala

de aula, em prol da resolução de exercícios, de trabalho de grupo e de atividades criativas na aula, estimulando

a diferenciação. O método popularizou-se, em 2011, numa conferência TED, em que Salman Khan, fundador da

Khan Academy, propunha a utilização de vídeos educativos para inverter as aulas.

Esta metodologia muda o conceito de trabalhos de casa (TPC), ao levá-los para dentro da aula. Ora, numa época

em que o divertimento está tão acessível e atinge níveis de qualidade tão elevada, parece tarefa difícil os alunos

concentrarem-se para fazer os TPC. Então, é preciso motivá-los e dar-lhes vontade de aprender e as tecnologias

educativas podem ajudar a atrair o seu interesse e atenção. Segundo Bergmann & Sams (2012), a aula invertida

transforma radicalmente a sala de aula e aumenta a interação entre os alunos. Mas, o trabalho individual deve

estar sempre presente, na medida em que o aluno tem de ver ou ouvir as aulas em casa e colocar na sala as

dificuldades, para ser ajudado pelo professor ou pelos colegas.

Num estudo realizado por Pierce & Fox (2012) notou-se um aumento de 3,9% nos resultados finais do grupo que

seguiu o método da aula invertida. Todavia, serão necessários mais estudos empíricos que mostrem as suas

potencialidades e fragilidades e ajudem a construir um quadro teórico que sustente o desenho instrucional da

aula invertida.

Uma das críticas mais comuns relativamente à sociedade atual é a sua dependência da tecnologia, em especial

de dispositivos móveis (telemóvel/smartphone ou tablet). Todavia, estas tecnologias podem transformar-se em

ferramentas de aprendizagem com alto potencial educativo, nomeadamente na aula invertida. O aumento

significativo de dispositivos móveis, nas mãos dos alunos, vem potenciar a sua integração em contexto educativo

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67

(Moura, 2010, Wang & Smith, 2013), porque permite estender as possibilidades da aula na busca de informação,

interação e colaboração. Para Bergmann & Sams (2012) as tecnologias educativas e as atividades de

aprendizagem são duas componentes chave da aula invertida.

Esta metodologia ao conceber uma abordagem individual e objetivos específicos é ideal para que os alunos

possam aprender ao seu ritmo e conveniência. Ao transferir a responsabilidade da aprendizagem para os alunos,

promove a autonomia e o autocontrolo sobre a aprendizagem, capacitando-os para a aprendizagem ao longo da

vida.

O quadro 1 apresenta algumas aplicações que podem ajudar os professores a implementar o conceito de aula

invertida, tirando partido dos dispositivos que os alunos levam para a escola, mas estão impedidos de os usar.

Aplicação Descrição Sistema Operativo

iOS Android

http://www.nearpod.com/

O professor pode usá-la para criar aulas atrativas que os alunos podem seguir em casa.

X X

http://www.educreations.com/

Ferramenta para criar vídeos com edição de texto, imagem e narração. Permite transformar o iPad num quadro branco.

X

https://www.goclass.com

Permite criar aulas e avaliar o que os alunos aprendem em tempo real. Os alunos podem visualizar as aulas em casa e aprender ao seu ritmo.

X X

http://www.techsmith.com/ask3.html

Permite também transformar o iPad num quadro branco gravável, para criar aulas guiadas com edição de texto, desenho e narração.

X

http://theanswerpad.com/

Aplicativo de avaliação final, para aferir a aprendizagem dos alunos.

X

Page 70: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

68

http://www.knowmia.com/ Aplicação para criar e procurar vídeos para a aula.

X

Quadro 1. Aplicações para a aula invertida

Para se adaptar às exigências da sociedade do século XXI, a educação enfrenta hoje enormes desafios, visto que

a comunidade educativa está cada vez mais interconectada, através dos seus dispositivos móveis. Daqui decorre

também a necessidade de uma aprendizagem contínua.

O e-portefólio como instrumento para a inovação educativa

As prioridades na educação europeia são a criação de um sistema de ensino e aprendizagem que favoreça a

formação integral dos alunos, capaz de cobrir as exigências sociais e laborais, a formação ao longo da vida e a

criação de metodologias centradas no processo de aprendizagem tendo como protagonistas os alunos (Redecker

et al., 2011).

A adoção de e-portefólios como instrumento de aprendizagem, possibilitará a mudança da estrutura tradicional

da aula, atribuindo ao aluno novos papéis na construção da sua aprendizagem. Nesta abordagem, o papel do

professor também muda, pois descentraliza-se e passa a assumir o papel de guia e orientador dos processos de

aprendizagem e avaliação dos alunos. Com os portefólios digitais desenvolve-se um novo conceito de avaliação,

tornando o aluno num agente ativo no seu próprio processo de avaliação. Este instrumento beneficia a

autorreflexão, promove o desenvolvimento de competências cognitivas e o pensamento complexo. Para

Almenara et al. (2013) os portefólios educativos são instrumentos para a inovação docente.

O e-portefólio é uma coleção de trabalhos do aluno que mostra os seus esforços, progressos e fracassos, em

diferentes áreas ao longo de um determinado tempo (Abrami & Barrett, 2005). Os portefólios eletrónicos podem

contribuir para fortalecer os processos de inovação metodológica, a avaliação e a investigação educativa. Através

do e-portefólio, com uma variedade de registos acumulados e comentários do professor, o aluno pode

apresentar um instrumento que espelha todo o processo de aprendizagem.

O e-portefólio pode também motivar o aluno, pois ao fomentar hábitos de revisão, ajuda-o a melhorar a sua

aprendizagem. Este instrumento de avaliação é um processo educativo em si mesmo e o seu desenvolvimento

transforma-se em momentos de aprendizagem contínua. É um meio através do qual o aluno pode mostrar

evidências do seu processo de aprendizagem contínuo e estimular o crescimento metacognitivo. Há autores

Page 71: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

69

(Abrami & Barrett, 2005) que concordam com o potencial do e-portefólio como instrumento inovador no

processo educativo, por proporcionar um processo de reflexão da aprendizagem autêntica.

O aluno pode criar o seu portefólio digital num blogue (Blogger, Wordpress), num website (Wix; Google Sites,

Weebly, Webnode, Wirenode), ou numa wiki (Wikispace, PBWorks, Google Drive, Zoho Sites) e partilhá-lo com

a comunidade educativa.

Conclusão

A aprendizagem ao longo da vida é um desafio essencial para moldar o futuro. Mais do que uma possibilidade é

uma necessidade da sociedade digital e todas as pessoas deveriam interiorizar este hábito. A aprendizagem

permanente requer a integração de novas abordagens, sistemas, práticas e avaliação, que possibilitem torná-la

numa parte importante da vida humana e criem condições para que indivíduos, grupos ou organizações, usem a

sua criatividade e imaginação para explorem formas alternativas de aprendizagem.

As mudanças operadas na sociedade obrigam a um forte debate sobre o futuro da aprendizagem e sobre a

necessidade de mudanças nas instituições educacionais, seja para novos modelos organizacionais, seja propondo

novos modelos pedagógicos. Ensinar e aprender com tecnologias exige um conjunto de mudanças que geram

rotura com modelos mais tradicionais, ao mesmo tempo que supõe avanços e inovações, capazes de promover

a qualidade do processo educativo. O aumento exponencial de utilização de aplicações baseadas na Web, vem

consolidar o seu potencial na educação, bem como acrescentar novas funções à ação educativa. Neste sentido,

as escolas devem inovar, centrando os seus processos educativos nas características e necessidades dos alunos,

com a incorporação de cenários educativos flexíveis e abertos, configurados com a escola 2.0 e a aprendizagem

através de dispositivos móveis.

A sobrevivência da espécie humana tem a ver com a inteligência social, em que todos contribuem para o bem

comum, e as redes sociais estão a mostrar o poder da colaboração, comunicação e partilha globalizada no

coletivo. Para o desenvolvimento de projetos complexos é preciso a inteligência coletiva, onde todos podem

participar como é exemplo a Wikipédia. Isto abre a discussão sobre o vínculo social e intercâmbio de

conhecimentos e sobre o papel dos conteúdos baseados na inteligência coletiva nos processos de aprendizagem

formal, não formal e ao longo da vida.

Page 72: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

70

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CONSTRUÇÃO DE E-PORTEFÓLIOS DE APRENDIZAGEM

José Salsa

Enquanto autor de manuais escolares, nomeadamente em relação ao Projeto CienTIC, da Porto Editora®, tenho

procurado incentivar a realização de e-Portefólios de aprendizagem. O desenvolvimento de e-Portefólios de

aprendizagem pelos alunos é uma sugestão metodológica com enormes potencialidades pedagógicas em

qualquer disciplina do ensino básico ou do ensino secundário. Importa, por isso, detalhar com algum pormenor

a sua natureza e implicações.

1. O que é um e-Portefólio?

A maioria dos autores refere-se ao Portefólio do aluno como um conjunto planeado e organizado de evidências

que retratam o seu percurso escolar ao longo de um período de tempo. Estes registos resultam de ações do

aluno e podem ser apresentados em diferentes formatos (texto, imagem, som, vídeo, etc.) e, muito importante,

devem ter sempre associada uma componente pessoal e reflexiva. Quando estes materiais são apresentados em

formato digital, recorrendo-se às potencialidades dos computadores em termos de armazenamento,

relacionamento e atualização da informação, passamos a ter um portefólio digital ou e-Portefólio. A organização

dos registos deve estar indexada com o enunciado de objetivos de aprendizagem ou de competências a

desenvolver, pelo que o e-Portefólio deve partir de uma estrutura previamente planeada e sempre sob a

orientação do professor. O contexto e a duração do e-Portefólio podem ser, respetivamente, uma dada disciplina

e um dado ano letivo. Assim, esta metodologia deve obedecer aos seguintes princípios:

a) A conceção e desenvolvimento do e-Portefólio pelo aluno deve ter sempre um propósito subjacente,

como seja a promoção do desenvolvimento de capacidades ou a avaliação da consecução de objetivos

programáticos da disciplina.

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b) A recolha e seleção dos materiais a incluir no e-Portefólio não deve ser exaustiva nem sistemática. Deve

ser representativa do percurso de aprendizagem do aluno em termos de conteúdos programáticos e

capacidades em desenvolvimento.

c) A reflexão pessoal e a autoavaliação devem estar sempre associadas às evidências selecionadas para o

e-Portefólio.

2. O que incluir no e-Portefólio?

Reflexões sobre notícias, que devem ser resumidas, recolhidas na comunicação social, preferencialmente

alusivas a temas em estudo nas aulas (referindo sempre a fonte da informação), sínteses de trabalhos realizados

nas aulas ou em casa, experiências realizadas nas aulas práticas, relatos sobre visitas de estudo ou aulas de

campo, glossário de termos científicos, sugestões de websites ou outras fontes informativas interessantes,

reflexões sobre os seus resultados escolares no âmbito da disciplina e comentários de professores, pais ou

encarregados de educação, são exemplos do que o aluno pode fazer representar no seu e-Portefólio. Tudo o que

o aluno fizer, nas aulas ou fora delas, por obrigação ou por livre iniciativa, sozinho ou em colaboração com

terceiros, é passível de ser selecionado para o e-Portefólio, mas, como já foi referido, nem tudo deve ser incluído.

As secções do e-Portefólio podem ser sugeridas pelo professor ao aluno. Uma breve apresentação do autor, uma

caixa de hiperligações, um glossário de termos científicos, um espaço para notícias e outro para trabalhos são

alguns exemplos. No entanto, o aluno deverá ter alguma liberdade na estruturação do seu e-Portefólio.

3. Quem participa no desenvolvimento do e-Portefólio?

Naturalmente, o aluno e o professor. Com o e-Portefólio estabelece-se um elo adicional na relação entre ambos

com vantagens de parte a parte. Do trabalho colaborativo entre colegas podem resultar contributos pertinentes

para a construção do e-Portefólio do aluno. Também os pais e encarregados de educação podem ver no e-

Portefólio uma oportunidade para apoiar os seus educandos.

4. Aspetos a considerar

O desenvolvimento de e-Portefólios com os alunos envolve questões que devem ser devidamente equacionadas

antes de se decidir avançar com a metodologia. Os e-Portefólios só podem acrescentar valor aos processos de

ensinar e de aprender se forem enquadrados conceptualmente numa visão mais ampla dos papéis do professor

e dos alunos que funcione como referência à sua implementação. Os benefícios dos e-Portefólios prendem-se,

entre outros, com a criação de um contexto apelativo ao desenvolvimento de competências diversificadas pelos

alunos, nomeadamente no que se refere à utilização de recursos TIC, ao incremento do gosto pela disciplina e

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pelo conhecimento científico, ao desenvolvimento do espírito crítico em relação a si e em relação aos outros, à

transparência das atividades escolares para a comunidade e com o facto de poderem funcionar como fonte

diversificada de informação atual e complementar sobre as matérias em lecionação.

No entanto, também implicam cuidados, dado o risco de sobrevalorização, pelo professor e pelo aluno, do e-

Portefólio, em relação a outras atividades ou a exigência de um trabalho e dispêndio de tempo que podem ser

consideráveis, sobretudo quando se é demasiado ambicioso ou pouco realista em relação à metodologia.

5. Como envolver os alunos?

O e-Portefólio não deve ser apresentado aos alunos como uma finalidade mas sim como um meio para os ajudar

a construir o seu saber. A abordagem aos alunos pode começar por uma discussão sobre as vantagens de uma

reflexão e autoavaliação sobre o trabalho que desenvolvem, da necessidade de uma constante atualização do

conhecimento e das vantagens da partilha de informação. Então, pode sugerir-se a criação de um e-Portefólio

como forma de dar resposta a essas necessidades. Deve ficar claro que o e-Portefólio não representa,

forçosamente, um acréscimo de trabalho para os alunos, dado que será alimentado com muitos conteúdos que

resultam do normal desenrolar das atividades escolares ainda que, numa fase inicial, possa exigir um esforço de

aprendizagem e adaptação a novas ferramentas de trabalho.

A fase seguinte passa por definir a metodologia de trabalho, estabelecer regras e critérios claros de avaliação e

explicar os procedimentos básicos para criar um e-Portefólio. Os alunos também devem ser alertados para os

cuidados na linguagem, na estética e salvaguarda dos direitos de autor.

Numa fase de concretização importa acautelar dificuldades individuais e fazer alguma coordenação do trabalho

dos alunos em relação ao e-Portefólio.

6. Que papel desempenha o professor?

O professor é, naturalmente, um agente central em todo o processo. Para além de apresentar e negociar a

metodologia e orientar os alunos no desenvolvimento dos seus e-Portefólios, o que implica alguma

disponibilidade, o professor deverá criar um espaço organizador como, por exemplo, um blogue central, com

sugestões, informações úteis, e ligações para recursos e para os e-Portefólios dos alunos. Deve acompanhar

regularmente o trabalho dos alunos e, eventualmente, deixar comentários, bem como avaliar os e-Portefólios

com base nos critérios estabelecidos, dando conhecimento da sua avaliação aos alunos.

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Uma vez compreendida e implementada, a metodologia não exigirá um grande dispêndio de tempo, mas esta

pode ser a maior limitação. O e-Portefólio pode e deve funcionar como um motor das aprendizagens,

acrescentando valor aos processos e evidenciando um forte retorno face ao investimento do professor e do

aluno na metodologia. O tempo investido não será tempo perdido. No entanto, o professor deve ponderar a sua

disponibilidade antes de avançar e pode, inclusive, decidir começar devagar, propondo um ensaio mais

abrangente, organizando uma espécie de e-Portefólio coletivo que resulte do trabalho colaborativo de um grupo

e que cumpra, tanto quanto possível, os princípios subjacentes à metodologia.

7. Que suporte escolher para o e-Portefólio?

O recurso a portefólios digitais apresenta claras vantagens em relação aos suportes tradicionais. Desde logo, a

grande facilidade em armazenar, atualizar, relacionar e distribuir a informação.

Um processador de texto (como o Word®, da Microsoft®, ou o Writer®, do OpenOffice®) ou um apresentador

eletrónico (como o PowerPoint®, da Microsoft®, ou o Impress®, do OpenOffice®) servem para criar um e-

Portefólio. No entanto, estes suportes não facilitam a adição de comentários ou opiniões de terceiros pelo que

terão de ser objeto de recolha prévia antes da sua inclusão no e-Portefólio.

Uma forma mais poderosa, mas igualmente simples, de construir e manter um e-Portefólio passa pela criação

de um blogue. Existem diversos operadores que oferecem a possibilidade de criação gratuita de um blogue, como

o Blogger® (serviço de criação de blogues do Google). A criação de um e-Portefólio suportado num blogue

permite um acesso condicionado, já que o e-Portefólio pode ser visto apenas pelo seu criador, partilhado com

utilizadores selecionados ou ficar aberto a todos. O armazenamento de ficheiros, caso não seja permitido pelo

serviço de criação de blogues, fica resolvido com o recurso a um serviço gratuito de armazenamento e partilha

de ficheiros como a Dropbox®, Box.net® ou SkyDrive®. Basta hiperligar os posts do blogue aos documentos aí

armazenados.

O Moodle® é uma plataforma eletrónica de apoio ao ensino e à aprendizagem, disponível em todas as escolas

públicas portuguesas. A plataforma é alojada num servidor da Internet, pelo que pode ser acedida, a qualquer

hora, a partir de um qualquer computador com acesso à Internet. O acesso é condicionado por senha e,

eventualmente, por chaves de inscrições associadas a certas páginas que constituem as diferentes “disciplinas”

definidas na plataforma. O Moodle® oferece ferramentas básicas de edição de documentos e pode ser utilizado

como suporte à construção e desenvolvimento de e-Portefólios, cumprindo as funcionalidades necessárias a um

sistema deste género: acesso condicionado, armazenamento e gestão de ficheiros, criação e edição de

documentos e ações colaborativas.

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8. Como avaliar o e-Portefólio?

O trabalho desenvolvido pelo aluno no seu e-Portefólio é avaliado pelo professor que terá em consideração os

pontos de vista do aluno e a sua autoavaliação. Os colegas podem ser chamados a pronunciar-se sobre o e-

Portefólio. Na sua avaliação, o professor poderá ter em conta parâmetros como:

Adequação do conteúdo aos objetivos do e-Portefólio;

Quantidade e qualidade da informação publicada;

Organização geral do e-Portefólio;

Existência de informação reflexiva da sua autoria;

Indicação das fontes de informação;

Regularidade de publicação ao longo do tempo;

Ligações para outros e-Portefólios e páginas web relacionadas;

Registo, quantidade e qualidade, dos comentários realizados aos e-Portefólios dos colegas;

Autonomia e responsabilidade demonstradas;

Progressão revelada ao longo do tempo;

Apresentação do e-Portefólio à turma no final do ano.

9. Onde obter mais informação sobre e-Portefólios?

Apresento uma bibliografia, que também serviu de base ao presente texto, sugerida pelo Centro de Competência

em TIC da Escola Superior de Educação de Santarém, instituição que desenvolveu o módulo REPE e formação

especializada em e-Portefólios de aprendizagem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Engagement. Retirado de http://electronicportfolios.org/reflect/whitepaper.pdf

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PAULSON, F.L., & PAULSON, P.R. & MEYER, C.A. (1991). What Makes a Portfolio a Portfolio? Educational

Leadership.

SANTOS, L. (2002). Auto-avaliação regulada: porquê, o quê e como? In P. Abrantes e F. Araújo (Orgs.), Avaliação

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75 – 84. Retirado de http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/msantos/textos/DEBfinal.pdf

SILVÉRIO, C. (2006). Portfolios na disciplina de Ciências Naturais no 3.º ciclo do ensino básico. Um estudo de

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Ciências Naturais (Ciências da Terra), Universidade de Coimbra.

VILAS BOAS, B. (2005). O portfólio no curso de pedagogia: Ampliando o diálogo entre professor e aluno. Retirado

de http://www.scielo.br.pdf

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O SENTIDO LÚDICO DA EDUCAÇÃO: O JOGO DIGITAL EM CONTEXTO DE SALA DE AULA

Anabela Martins Ana Rita Peixoto

Resumo:

Este artigo apresenta uma avaliação das perceções dos professores acerca da utilização de jogos e outras

aplicações interativas como meio de estimular as aprendizagens em ambiente escolar, sob uma perspetiva

construtivista.

Participaram 52 professores, que frequentaram o ciclo de seminários: “Educação com sentido(s) ou em busca

dos sentido(s) para a educação”, no Centro de Formação Francisco de Holanda. A metodologia utilizada neste

estudo é de natureza quantitativa e descritiva e consubstanciou-se na aplicação de um inquérito por

questionário.

Os resultados revelam que cerca de metade dos inquiridos não utilizam os jogos digitais como ferramenta

pedagógica e que a maioria (85%) não tem formação nesta área, no entanto consideram que a utilização de jogos

digitais pode ser extremamente benéfica para potenciar o processo de ensino/aprendizagem.

Palavras-Chave: Jogos didáticos, aplicações interativas, aprendizagem.

1. Introdução

Progressivamente, o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) tem vindo a potenciar as

possibilidades de ampliação de acesso à formação, tornando-se parte integrante de projetos educacionais. Essas

mudanças têm proporcionado inúmeras possibilidades de práticas docentes, contribuindo para a melhoria da

qualidade do processo educativo (Elias, 2011).

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A prática docente que recorre aos jogos digitais como uma ferramenta de apoio ao processo de aprendizagem

possibilita a integração de diferentes áreas do conhecimento e, simultaneamente apresenta benefícios como

ludicidade, cooperação, participação, prazer e motivação. Os jogos digitais utilizados como ferramentas

educacionais, podem contribuir para o desenvolvimento de conhecimento e habilidades cognitivas, como a

resolução de problemas, o pensamento estratégico, a tomada de decisão, entre outras, favorecendo uma

compreensão mais profunda de certos princípios fundamentais de determinadas temáticas (Brom, Preuss e

Klement, 2011).

O aumento do uso social dos jogos de entretenimento em dispositivos móveis, aliado à utilização de novas

técnicas de imersão no ensino-aprendizagem corrobora a premissa de que a aprendizagem alicerçada em jogos

educativos móveis se consubstancia numa abordagem válida para apoiar abordagens formais de aprendizagem

(Freitas e Maharg, 2011).

2. Concetualização de Gamification15

O surgimento do termo gamification com o objetivo concreto de descrever uma nova indústria que se dedica ao

desenho de serviços e aplicações inspiradas em jogos interativos teve lugar em 2008, quando a empresa

Bunchball adotou este conceito como representativo da sua intervenção. No entanto, este termo apenas foi

popularizado em conferências e por grandes indústrias, em 2010. Tornou-se alvo de muitos debates e

indefinições, o que levou alguns designers a criar os seus próprios termos para definir as suas práticas (Sebastian

e colaboradores, 2011). Lee e Hammer (2011) definem gamification como o uso da mecânica, dinâmica e

estruturas de jogo, para promover comportamentos desejados.

Deterding e colaboradores (2011) propõem a seguinte definição de Gamification: “is the use of games design

elements in non-games contexts”. Estes autores distinguem gamification de abordagens análogas, como playful

interaction design e serious games, através dos eixos de análise jogo inteiro vs elementos de jogo, e brincadeira

ou comportamento lúdico (play) vs jogo (game) (Figura 1).

A Figura 1 posiciona a gamification entre dois eixos. O eixo horizontal transmite a ideia de um jogo (no caso,

game) completo até as suas partes (elementos) e o eixo vertical relaciona a brincadeira (espontânea e

15 Gamification trata-se de um termo recente, que tem vindo progressivamente a ser introduzido nas escolas e que, de uma forma muito

genérica, se relaciona com a necessidade premente de as escolas se socorrerem de novas ferramentas digitais, com as quais os alunos se

identifiquem e que, em última instância contribuam para aproximar os alunos da Escola e, assim contribuir para a melhoria do processo de

ensino/aprendizagem.

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descontraída) com o jogo (de caráter mais formal). Desta feita, a gamification implica a utilização de elementos

dos jogos digitais, sem que o resultado final seja um jogo completo, e também se distingue do design lúdico na

medida em que este pressupõe apenas um aspeto de maior liberdade, de forma lúdica, quanto ao contexto em

que está inserido. Ou seja, a gamification procura conciliar a abordagem de um problema com objetivos

específicos seguindo uma vertente mais lúdica.

Figura 1 – Adaptado de “Contextualização da Gamification” (Deterting et al., 2011).

Atualmente, a gamification encontra na educação formal uma área bastante fértil para a sua aplicação, pois lá

encontra os indivíduos que carregam consigo muitas aprendizagens advindas das interações com os jogos

digitais. Kapp (2011) considera que tem vindo a denotar-se um grande aumento no recurso à gamification ao

nível da aprendizagem e instrução, porque os projetos de gamification oferecem a oportunidade de

experimentar com as regras, novas emoções e papéis sociais.

Ludicidade

Jogo

Elementos

Brincadeira

Completo

Gamification

Brinquedo

Jogos digitais

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Apesar do valor inegável da gamification, um dos aspetos mais deficitários prende-se com a confusão entre jogar

e brincar16. O ato de jogar rege-se por regras bem organizadas e definidas e com objetivos determinados, que

podem ser lúdicos ou não. Outro dos aspetos preocupantes consubstancia-se no facto de poder absorver muitos

recursos dos professores, ou ensinar aos alunos que eles devem aprender exclusivamente quando recebem

recompensas externas (Klopfer, Osterweil & Salen, 2009).

Importa que os professores tenham uma formação sólida sobre a utilização de jogos digitais, pois a sua aplicação

na educação pode ter repercussões não esperadas no processo de ensino/aprendizagem. Também pode ser

empregue de forma incorreta ou equivocada, agudizando alguns dos problemas presentes no sistema de ensino

atual como, por exemplo, o facto de ocorrer uma valorização maior das notas obtidas do que da aprendizagem

em si mesma (Lee & Hammer, 2011).

3. Perceção dos professores sobre a utilização de jogos digitais em contexto de sala de aula

O estudo que aqui se apresenta, de forma abreviada, procurou compreender as perspetivas dos professores

relativamente à adoção destas ferramentas em contexto de sala de aula. Este artigo tem como objetivo

apresentar a perceção dos professores acerca das potencialidades do jogo e outras aplicações interativas em

contexto educativo como meio de estimular as aprendizagens em ambiente escolar, sob uma perspetiva

construtivista.

Para a consecução do estudo, optou-se por uma metodologia de natureza quantitativa e descritiva. Para o efeito

utilizou-se como instrumento investigativo específico o inquérito por questionário a professores da zona de

Guimarães e arredores que frequentaram o ciclo de seminários: “Educação com sentido(s) ou em busca dos

sentido(s) para a educação”, no Centro de Formação Francisco de Holanda.

No presente estudo foi utilizada uma amostra de conveniência constituída por um grupo de 52 professores. A

maioria da nossa amostra é constituída por docentes com idades compreendidas entre os 43 e os 50 anos, uma

vasta experiência de serviço (mais de 25 anos de serviço). Estes docentes lecionam em diversas áreas, sendo que

a maioria se encontra a lecionar ao nível do pré-escolar e ensino básico – 1º ciclo com formação na área das

novas tecnologias (81%). No que diz respeito a formação mais específica, ou seja, na área da utilização de jogos

16 Cf. “Playing and Gaming”, de Bo Kampmann Walther, no site da revista científica Game Studies – The International Journal of Computer

Game Research. Disponível em: http://www.gamestudies.org/0301/walther/. Acesso a 1 abril de 2014.

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digitais em contexto escolar, os resultados foram opostos, ou seja, a maioria não possui formação na área (85%),

ou por desconhecimento, oferta formativa inexistente, ou mesmo por indisponibilidade do inquirido.

A versão final deste questionário é constituída por 26 questões. O inquérito por questionário encontra-se

estruturado em duas partes. A primeira parte diz respeito às questões sociodemográficas, em que se avaliaram

variáveis como a idade, o género, formação e experiência e a segunda prende-se com questões relacionadas com

o recurso aos jogos digitais em contexto de sala de aula.

De acordo com os resultados obtidos, cerca de metade dos inquiridos utiliza os jogos digitais em contexto de sala

de aula como ferramenta pedagógica, apenas casualmente.

Os jogos digitais são “adquiridos” através de pesquisa prévia (37%), material fornecido pelas editoras (32%),

material fornecido pelos colegas (15%), material fornecido pelos alunos (5%) e material construído pelo próprio

inquirido (1%).

Os docentes inquiridos socorrem-se do computador (70%), do tablet (16%) ou mesmo do telemóvel (6%) como

ferramenta para utilizar os jogos digitais na sala de aula.

A esmagadora maioria é da opinião que a utilização de jogos digitais no contexto escolar pode constituir-se como

ferramenta educacional (100%). Enunciam como principais vantagens por ordem decrescente: motiva os alunos

(97%); fornece momentos agradáveis (97%); incita o clima de entusiasmo e alegria (97%); estimula a imaginação,

criatividade e autonomia (95%); fomenta a interação entre grupos de trabalho (94%); possibilita a aprendizagem

de diversas matérias (94%); é motivante para os professores (89%); facilita o ensino aprendizagem (93%);

funciona como um auxílio para que os alunos mantenham a concentração (79%); contribuiu para as

aprendizagens efetivas (78%); constitui-se como uma boa alternativa ao ensino tradicional (74%) e favorece,

também, a aprendizagem das regras (88%).

A questão onde houve maior discordância foi em relação ao barulho, onde só 42% dos inquiridos são da opinião

que a utilização dos jogos digitais favorece um ambiente de trabalho barulhento e confuso.

Os resultados demonstram que ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à rentabilização dos

jogos digitais como ferramenta educativa. Por um lado, cerca de metade dos docentes não utiliza jogos digitais

e, os que os utilizam, apenas o fazem de forma casual e não continuada. Por outro lado a esmagadora maioria

dos professores inquiridos revela falta de formação nesta área. Esta realidade é deveras preocupante, pois tal

como afirmam Lee e Hammer (2011), uma incorreta aplicação dos jogos digitais pode contribuir para agudizar

alguns dos problemas presentes no sistema de ensino atual.

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É de salientar que, apesar de só metade dos inquiridos utilizarem, em contexto de sala de aula, os jogos didáticos

digitais como ferramenta pedagógica, a esmagadora maioria é da opinião que esta utilização é de todo benéfica

para a promoção do processo ensino/aprendizagem.

Estes dados corroboram os de Brom e colaboradores (2001), Freitas e Maharg (2011) e Elias (2011), autores que

enfatizam as mais-valias desta ferramenta pedagógica ao serviço do processo de ensino/aprendizagem. No

entanto, os professores inquiridos apontam como desvantagens o facto de se potenciar um ambiente barulhento

e confuso.

Considerações finais

Atualmente, as escolas enfrentam diversos problemas, nomeadamente a questão da promoção do envolvimento

e motivação dos alunos para a aprendizagem. A gamification, ou seja, a incorporação de elementos de jogo em

configurações não-jogo, apresenta-se como uma possibilidade de “conquista” dos alunos, na educação do século

XXI.

Este artigo aponta para a importância da utilização dos jogos digitais e outras aplicações interativas em contexto

educativo. A gamification é um conceito relativamente recente, no mercado, bem como na investigação, mas

revela um grande potencial em diversas áreas, nomeadamente na educação, na medida em que a pode tornar

mais divertida e envolvente, sem pôr em causa a sua credibilidade. A gamification pode constituir-se ainda como

um poderoso impulso para a aprendizagem de regras e aumento da concentração dos alunos.

Em termos de limitações deste estudo, talvez o aspeto mais saliente diga respeito ao nível de lecionação de

muitos dos professores inquiridos (pré-escolar e 1º ciclo) e à circunstância de termos uma amostra residente

numa área circunscrita do país – Guimarães e arredores. Neste sentido, os resultados devem ser interpretados

tendo em consideração as caraterísticas sociais e culturais da região, sugerindo-se algum cuidado na

generalização dos mesmos.

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83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROM, C., PREUSS, M. E KLEMENT, D (2011). Are educational computer micro-games engaging and effective for

knowledge acquisition at high-schools? A quasi- experimental study. Computers & Education, 57(3), 1971-1988.

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“Gamification”. In: Proceedings of the 15th International Academic MindTrek Conference: Envisioning Future

Media Environments (MindTrek '11). ACM, Nova Iorque, EUA.

FREITAS, S., MAHARG, P. (2011). Digital Games and Learning. Continuum International Publishing Group.

ELIAS, T. (2011). Principles for Mobile Learning. International Review of Research in Open and Distance Learning,

12(2), 143-156.

KAPP, K. (2011) Predictions For E-Learning In 2011, http://elearnmag.acm.org/featured.cfm?aid=1925057

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SEBASTIAN, D., RILLA, K. LENNARTE, E., N. DAN, D. (2011). Gamification: Toward a Definition. CHI 2011

Conference. Vancouver, BC, Canada.

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DA REALIDADE VIRTUAL À VIRTUALIDADE DA EXISTÊNCIA: O PROJETO DE PROMOÇÃO DA LEITURA ‘AO SABOR DOS LIVROS’17

Manuela Aguiar Maria José Oliveira

Isabel Bessa Carlos Machado

Parte 1: Desafios contemporâneos à promoção da leitura

Os docentes dedicados à promoção da leitura encontram, nesta era tecnologicamente dominada pelos meios

informáticos e audiovisuais, obstáculos muito fortes que dificultam de modo inequívoco a sua ação. Os

obstáculos surgem tanto dentro como fora da instituição escolar e são de natureza muito diversa. De facto, no

que diz respeito aos entraves extraescolares, os professores deparam-se com alunos maravilhados por processos

muito fortes de criação de realidades virtuais, que exigem por períodos muito prolongados toda a sua atenção e

que envolvem meios tecnológicos capazes de explorar, de forma sofisticada, as potencialidades atrativas do som,

da imagem e da conjugação animada destes dois elementos. Estes processos excluem quase na totalidade o

discurso verbal, escrito e oral, circunscrevendo-o ao domínio de um léxico básico, relacionado com as instruções

de funcionamento das aplicações informáticas utilizadas.

Em consequência das prolongadas exposições a semelhantes instrumentos e da sujeição regular às suas

subsequentes lógicas de pensamento (forçosamente rápido e fugaz, funcionando por impulsos breves, que

solicitam respostas imediatas), é fácil verificar uma tendência nos públicos escolares para a resposta a estímulos,

17 Desenvolvido na escola secundária de Caldas das Taipas.

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numa lógica behaviorista, que, desenvolvendo competências de descodificação visual muito próprias, impedem,

contudo, o desenvolvimento da capacidade de formular raciocínios mais complexos e estruturados.

O exercício da leitura tem, aqui, uma posição difícil, dado tudo aquilo que implica em termos de mediação entre

realidade exterior e verdade do discurso, que obriga o sujeito a posicionar-se criticamente face ao mundo em

que se integra e à imagem que tem de si mesmo. Contudo, apesar de o panorama já ser suficientemente negro,

a verdade é que os obstáculos à promoção da leitura também se encontram dentro da instituição escolar.

Em primeiro lugar, porque a atividade da leitura, no espaço da aula, vê em grande parte anulada a sua margem

de liberdade, sendo esta uma condição essencial do seu poder de atração e do seu fascínio. Com efeito, a

imposição de textos de leitura com caráter obrigatório funciona, muitas vezes, como um entrave à didática da

leitura e da literatura, independentemente da grandeza e da importância estético-literárias dos objetos

selecionados e integrados no cânone escolar. A imposição de textos de leitura obrigatória vê-se complementada,

na sua ação manipulatória dos processos de constituição canónica, com a obediência a modelos de leitura e a

grelhas de interpretação, implícitos ou explícitos, que, postos ao serviço da instrumentalização pedagógica do

objeto textual, servem na perfeição os desígnios avaliativos de um sistema educativo que pretende a regulação,

aferição e quantificação de todos os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos. Assim sendo, a relação

livre de sujeito leitor com o objeto texto nunca chega a manifestar-se, visto que a relação constituída se encontra

sempre orientada pela atividade dos docentes como mediadores. Estes, por sua vez, avaliando o processo,

implicam nesse mesmo impulso a estruturação hierarquizada e formal dos laços sociais discente-docente.

Parte 2: Apresentação dos objetivos e metodologias previstas no projeto

Quando o projeto “Ao Sabor dos Livros” foi criado na Escola Secundária de Caldas das Taipas, a intenção explícita

das suas dinamizadoras foi a de promover experiências de leitura invulgares e heterodoxas junto de públicos

escolares frequentemente refratários às dinâmicas de análise textual promovidas no espaço das aulas. De facto,

um dos fundamentos básicos do projeto era o de que as práticas que o constituíssem deveriam ser avessas às

rotinas escolarizantes com que os alunos desde há anos se confrontavam e, nessa medida, deveriam funcionar

como um espaço motivador de liberdade, em que a surpresa fosse constante. Assim, em definitivo, o caráter de

obrigatoriedade das participações, a sujeição a práticas formais de avaliação, a definição de um horário fixo a

cumprir escrupulosamente, a estabilidade do núcleo de participantes e a hierarquização tradicional das relações

entre professores e alunos, seriam realidades a abolir.

A participação dos alunos neste projeto é, desde o início, voluntária e está sempre dependente da sua

disponibilidade de tempo, em função das suas obrigações escolares. A regra que impera é a da responsabilização,

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87

dado que o que conta é o compromisso assumido pelos participantes de se envolverem realmente na atividade

até ao fim do tempo de vigência da mesma.

Conclui-se, portanto, antes do mais, que a motivação conseguida junto dos alunos para a sua participação nas

múltiplas atividades constitutivas do projeto é assegurada desde o início por esta informalidade das relações

estabelecidas entre os intervenientes e pela vivência de situações de aprendizagem que estão, em simultâneo,

mais dependentes do envolvimento e da responsabilização de cada elemento participante do que da imposição

de regras externas de funcionamento.

Por outro lado, o suplemento de motivação é concretizado pelo caráter das próprias experiências de leitura que

constituem a razão de ser do projeto. A primazia é concedida à leitura, em sentido lato, ou seja, como momento

privilegiado de interpretação do texto, entendendo-se o termo como tendo um duplo sentido. Em primeiro lugar,

como atividade geradora de sentido pela desconstrução dos múltiplos signos formadores de um texto e pela sua

posterior reconfiguração num todo coerente, que constitui a mensagem textual.

Esta atividade de mediação entre signo e significado pela intervenção de um sujeito que se apresenta como

agente descodificador surge em paralelo com outra, representativa da segunda aceção do termo interpretação.

Esta é a mais comummente usada no domínio da musicologia, aparentando-se com o conceito de execução ou

atualização e demonstração pública das potencialidades expressivas contidas numa determinada partitura,

entendendo-se esta última como metáfora do texto e, por conseguinte, também do discurso.

A interpretação como execução prática das potencialidades expressivas dos textos alicerça-se, então, numa

promoção de experiências de leitura em que a oralidade assume o privilégio. As docentes dinamizadoras do

projeto procuram, assim, favorecer a criação de contextos novos para a apresentação dos textos e, ao mesmo

tempo, tentam levar os alunos participantes a reabilitarem o sentido filosófico forte da experiência, pelo seu

confronto pessoal com as realidades textuais enunciadas face a um público que nunca sabe o que deve esperar.

O texto literário assume, aqui, um lugar importante, mas nunca exclusivo e privilegiado, dado o seu carácter

proteiforme e a sua superior disponibilidade para a participação em jogos de linguagem e para o desbravar de

múltiplos caminhos exegéticos.

O aluno, colocando-se no centro da atividade, tal como um ator num palco, põe-se a si mesmo à prova,

submetendo nesse mesmo gesto o texto, reconhecendo-o como elemento fundador de realidades novas.

Page 90: ELO 21 - Educação com Sentido(s)

88

Parte 3: Descrição das atividades práticas realizadas no âmbito do projeto

Como já foi referido, as finalidades do projeto são múltiplas e, para as concretizar, esta componente

extracurricular funciona obrigatoriamente de modo flexível, dado que a participação dos alunos é voluntária e

independente de anos e cursos frequentados, e, na medida do possível, em articulação com outras estruturas da

Escola Secundária de Caldas das Taipas, desde a Biblioteca/Centro de Recursos Educativos, pelo Departamento

de Línguas e, inevitavelmente, por questões de ordem logística, até chegar à Direção.

A desierarquização das tipologias textuais, capaz de demonstrar que o texto literário não é o único a revelar-se

polissémico, proteiforme e poliédrico, só é conseguida pelo favorecimento do hibridismo das variedades

genológicas, tal como sucedeu numa atividade realizada no ano de 2007, aquando da leitura e dramatização de

textos de Natal. Nesta ocasião, todo o tipo de textos foram apresentados ao público, desde os mais tradicionais

e conhecidos contos até às mais heterodoxas e iconoclastas poesias do heterónimo sensacionista de Fernando

Pessoa, que se dá a conhecer pelo nome de Alberto Caeiro. O confronto de mundividências e de ideologias

patentes nesta sessão tornou-se mais visível pelo facto de os textos serem todos apresentados como se a sessão

fosse uma performance poética.

Esta incursão pelos domínios teatrais da performance é uma outra característica marcante do projeto, visto que

este procura simultaneamente o desvanecimento de barreiras epistemológicas no campo da estética, pelo

cruzamento do texto verbal com outras formas de expressão e experimentação criativas. Com efeito, semelhante

a priori explica por que razão, na comemoração do Dia Mundial da Poesia de 2006, os alunos foram convidados

a produzir textos e desenhos (graças à colaboração prestimosa dos docentes de Educação Visual e Tecnológica)

para posterior distribuição pública e afixação nos mais variados locais da escola, desde vitrinas a portas, passando

por árvores e postes. A simbólica invasão da vida pela poesia – um objetivo assumido das vanguardas artísticas

da primeira metade do século XX, com vista a uma esteticização global da existência – foi também concretizada

pela criação de piquetes que se deslocavam de sala em sala, declamando poemas ao maior número de alunos e

de turmas, numa experiência que se repetiu este ano, com a celebração do quadragésimo aniversário da

Revolução do 25 de abril.

A encenação pragmática de discursos em contextos diferenciados foi também realizada através da realização

regular e frequente da “Hora do Conto”, em que múltiplas turmas foram convidadas a participar, ouvindo e lendo

textos, num espaço mais informal da Biblioteca/Centro de Recursos Educativos, em que os alunos se podiam

sentar no chão, em sofás com uma disposição específica para o acontecimento ou, até, esticar-se ao comprido,

por cima de almofadas deixadas pelo chão, sobre um tapete. A diversificação dos textos e a participação do maior

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89

número de turmas e de alunos é uma condição essencial desta atividade, para que a mesma tenha sempre um

cunho diferente e original.

Para além disso, a escola, com o apoio de “Ao Sabor dos Livros”, mas por iniciativa do Departamento de Línguas,

organiza anualmente a Maratona da Leitura, como forma de promover a leitura em contextos diversificados.

Para o efeito, requisita-se uma sala específica, que é decorada de forma original todos os anos com motivos

associados à leitura (jornais, revistas, livros, versos soltos, etc…) e organiza-se uma escala de visitas, de forma

que a totalidade dos alunos da Escola Secundária das Caldas das Taipas possa participar, e contando com a visita

de elementos que, não participando da vivência quotidiana da escola, tenham ligações à comunidade educativa.

Assim, nas cerca de catorze horas ininterruptas de funcionamento da Maratona da Leitura, cerca de mil pessoas

– considerando alunos, professores, funcionários e representantes de organismos culturais e autárquicos – são

convidados a frequentar o espaço e a colaborarem com a sua leitura, numa atividade de grande sucesso e

aceitação.

Finalmente, a título de exemplo de atividades realizadas, esta encenação de textos pode ser levada a cabo pela

criação de contextos invulgares e inusuais, desfamiliarizando espaços quotidianos. Este tipo de enunciação

esteve na base da “Via Sacra Torguiana”, em 2007, em que os alunos, numa forma sui generis de procissão,

circularam pelos espaços da escola, convidando os restantes membros da comunidade educativa a acompanhá-

los, de forma a poderem visitar três estações, que representavam três temas fulcrais da poesia de Miguel Torga,

a saber: a problemática religiosa, o sentimento telúrico e o desespero humanista.

A criação de comunidades de leitores, em que todos os participantes são convidados a partilhar e discutir as suas

propostas de leituras de obras literárias contemporâneas, é outra das formas de manifestação do projeto. Com

efeito, nestas sessões, a pluralidade de pontos de vista afigura-se como uma evidência do carácter multifacetado

das realidades textuais percecionadas, demonstrando o poder e a importância dos sujeitos nos processos de

constituição do sentido. Em 2011, por exemplo, a tertúlia centrou-se na obra romanesca de José Saramago.

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Considerações finais

Em conclusão, como se depreende do exposto, múltiplas são as possibilidades que se oferecem no espaço de

uma escola para promover o hábito e o gosto pela leitura, podendo passar grande parte desse trabalho para o

tempo extra-aulas. A criação artificial de contextos inusitados para a leitura de textos em voz alta, pela

experiência singular que oferece a um leitor de dar a conhecer enfaticamente a sua forma de interpretação

perante um público, apresenta-se como uma experiência privilegiada das possibilidades semânticas que o jogo

textual das derridianas différances oferece: a errância do sentido, a sua precariedade e instabilidade, depende

em grande parte do contexto situacional que assiste à sua atualização e verbalização. A organização lúdica de

atividades deste género, que promovem um relacionamento inter pares diferente do habitual, desierarquizando

relações e promovendo um relativo grau de informalidade, reforça a possibilidade do reconhecimento da

importância do texto como instrumento modelizador do real.

A abertura a novas experiências de leitura vem demonstrar, assim, que os livros, apresentados em contextos

diferenciados, podem ter outro sabor e esse é, sem margem para dúvidas, o sabor da liberdade.

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TEATRO PARA CRIANÇAS, EM QUE SENTIDO(S)?

Elisabete Paiva

O teatro para crianças constitui um objeto complexo e problemático, cuja definição e especificidade é

precisamente um dos tópicos centrais de discussão. Ele encerra ainda, ao longo de uma curta história

documentada de pouco mais de cem anos, um conjunto nuclear de discussões, nomeadamente: a sua relação

com a educação e, consequentemente a sua relação com a escola; a representação teatral feita por crianças,

desde conceções mais instrumentais, como a ideia da criança-ator, a preocupações psicopedagógicas, sobre as

condições de realização da expressão dramática e do jogo teatral; as temáticas a abordar, sobretudo a dicotomia

entre realidade e fantasia; e ainda assuntos que se vêm desenvolvendo mais recentemente, como as

especificidades do texto dramático e do teatro enquanto fenómeno comunicativo específico (discussão

transversal ao teatro em geral); o confronto entre a liberdade de expressão dos autores/ criadores e a adequação

aos destinatários; a função educativa em articulação com a função de divertimento.

A partir da história do teatro para crianças em Portugal, e sobretudo da produção mais recente, procuraremos

concentrar-nos em particular nos sentidos que a criação teatral para este público específico vem desenhando na

sua relação com a educação, quer numa perspetiva mais ampla, quer de um ponto de vista mais específico, de

uma educação para o teatro e para as formas teatrais.

As primeiras manifestações teatrais conhecidas nas quais participaram crianças não atribuíam a estas nenhum

papel particular, antes as incluíam em práticas que eram de todos e para todos, num teatro da participação e da

inscrição social: as crianças podiam estar quer entre os atores quer entre os espectadores, ao mesmo nível que

os atores e espectadores adultos. Falamos, por exemplo, do teatro medieval e do teatro renascentista.

Só por volta do século XVIII a infância começou a emergir como uma etapa reconhecida no processo de

desenvolvimento dos indivíduos e é por isso natural que, apenas a partir desse momento, se tenha constituído

um conjunto de intencionalidades dirigidas a este grupo populacional. Na mentalidade do homem do século XIX,

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mercê do ideário republicano, que dava máxima importância à educação dos cidadãos enquanto ferramenta de

construção da nacionalidade, a criança e a educação surgem como um binómio fundamental - deste facto não

ficou alheio o teatro, que se tornou essencialmente um instrumento pedagógico ligado à escola.

Ao longo do século XX, a dimensão pedagógica do teatro para crianças continuaria a ser privilegiada mas, em

Portugal, fruto da longa duração do Estado Novo, a dissociação entre teatro e pedagogia haveria de chegar mais

tardiamente do que no resto da Europa. Durante o período da ditadura, e salvo raras exceções, este teatro foi

tomado como mais um dos instrumentos de propaganda e de instrução do povo. Seria após o 25 de abril de 1974

que o teatro produzido para públicos mais jovens encontraria um terreno de expansão propício e mais liberto de

uma função pedagógica, a par do desenvolvimento similar da literatura infantil. Investindo em temas mais

fantasiosos e em estratégias discursivas mais experimentais, dar-se-ia lugar a outra ideia de infância e a outra

ideia de teatro, em que a imaginação passaria a andar de mão dada com a indagação, a possibilidade do livre

pensamento e a constituição da individualidade.

O teatro para crianças escrito e representado em Portugal entre os séculos XIX e XX tinha a instrução num plano

central, e a escola adotou-o, naturalmente, como um veículo privilegiado no processo de algumas aprendizagens

sociais. O reportório era bastante uniforme e desenvolvia-se em torno de dilemas relativos à conduta das

crianças dentro do seu universo social – obediência, honestidade, caridade, educação – um teatro de pendor

realista cujo objetivo era consolidar a boa formação moral dos cidadãos e exaltar os valores patrióticos. Pode

mesmo encontrar-se, em alguns documentos da época, uma certa condenação da fantasia aplicada neste âmbito,

por se acreditar que não servia aquele fim essencial.

Privilegiavam-se estratégias de identificação entre personagens, atores e público - eram peças escritas por

adultos para serem representadas no âmbito de atividades sociais ou escolares, por crianças, para um público

de crianças. Também os protagonistas eram crianças e as personagens secundárias adultos ligados ao seu

universo social, ora à família, no caso do período pré-republicano, ora à escola, durante a I República. A base das

peças era quase sempre um confronto entre o “bom exemplo” e o “mau exemplo”, passando-se ao longo da

ação de uma aparente dicotomia para uma uniformização – os pequenos protagonistas destes dilemas

quotidianos mostravam-se desde o início moralmente conscientes dos conflitos e concluíam o drama

invariavelmente do lado da razão, da verdade.

Paradoxalmente, a par deste teatro empenhado na educação, era comum e muito apreciada a existência de

companhias de crianças-atores profissionais. Em Lisboa, por exemplo, existiu o Teatro do Rocio, espécie de teatro

de revista totalmente representado por crianças, com textos e encenações de adultos, para um público adulto.

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Esta companhia, que existiu entre 1909 e 1915, e foi tão aplaudida quanto criticada, tinha um fim puramente

comercial e de entretenimento.

Na passagem da I República para o Estado Novo, um novo fenómeno teve lugar. Apesar de o teatro escolar

continuar a ter um espaço próprio, cumprindo a ação pedagógica que lhe era destinada numa escola que se

pretendia que contribuísse para formar cidadãos ordeiros e disciplinados, foi no âmbito do teatro profissional

que se desenvolveu a maioria da criação teatral para crianças dessa época, inclusive com uma produção

significativa de textos. O Teatro Nacional D. Maria II e o Teatro do Gerifalto (provindo do Teatro da Mocidade)

foram os protagonistas desta época e, apesar de estarmos perante um teatro limitado pela censura, num caso,

ou de um teatro do regime, no outro, a qualidade dos textos e das interpretações era razoável, podendo

encontrar-se entre os dramaturgos, os encenadores e os atores alguns nomes de relevo do teatro da época.

A ficção dramática privilegiava, tal como no período anterior, a ligação com a realidade (ou com uma certa versão

da realidade), bem como se notava uma predominância de certos temas: a escola enquanto baluarte da verdade,

a pátria e os valores a ela associados, tais como a ligação à terra e a exaltação de heróis nacionais, a beleza da

pátria e a grandeza do passado histórico. Predominava uma clara orientação para a transmissão e manutenção

de verdades imutáveis e um fechamento a outras eventuais referências, culturas e modos de pensar. Os temas

dominantes eram sugeridos como temas universais, de todos os tempos, reforçando a imobilidade das ideias.

A pobreza, tal como no anterior período, era um tópico presente, mas não surgia questionada nas suas razões

mais profundas, antes se associava a características como o asseio, a educação e a humildade, enfatizando o

valor da resignação. A educação, neste contexto, em vez de ser uma possibilidade de ascensão social era

encarada como um dever a cumprir e os desejos de eventual mobilidade social eram mesmo criticados. Os

acontecimentos, desenvolvidos de forma maniqueísta, em que os “maus” faziam um percurso de progressão

para o bem, enfatizavam a coesão social e impunham o discurso coletivo sobre o individual.

Neste período assistiu-se a uma espécie de institucionalização do teatro infantil, já que ele se tornou uma

ferramenta de propaganda política, com “uma forte componente de doutrinação, moral e social”. Em muito

menor número surgiram algumas obras com preocupações de ordem social e política não vinculadas ao sistema

dominante mas, como resultado da censura, poucas destas produções foram a palco. Essencialmente

desenvolveu-se um teatro com preocupações pedagógicas, tomando-o como instrumento didático ao serviço de

outras disciplinas e não o libertando para o papel que o teatro poderia em si mesmo encerrar. Do mesmo modo,

as tendências do teatro para adultos nessa época, embora o país, muito fechado, não participasse em tempo

real das revoluções estéticas do século XX, foram encontrando o seu lugar, nomeadamente no teatro

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universitário e no teatro amador, ao passo que no teatro para a infância esses sinais de inovação são escassos, o

que revela uma forma particularmente limitada de o encarar.

A partir de 25 de abril de 1974 o sentido é o da abertura e dá-se um crescimento exponencial do teatro infantil,

tal como aconteceu no campo da literatura. O discurso unívoco e “prescritivo” do Estado Novo deu lugar a uma

multiplicidade de vozes e, do ponto de vista estético, vingou a exploração de novos recursos, quer ao nível da

linguagem quer ao nível dos dispositivos cénicos. Foi nesta fase que se deu uma transformação determinante,

de uma preponderância da representação do real em prol de uma representação do mundo a partir da fantasia,

desenvolvendo o espaço interpretativo dos espectadores.

As narrativas lineares e o enquadramento mais naturalista vão ser substituídos por uma diversidade de recursos

que exigirão do público um papel mais ativo na interpretação dos espetáculos, mas finalmente o teatro para

crianças conhecerá uma atualização estética e estará na linha da frente da experimentação teatral. Ações

paralelas, “teatro dentro o teatro”, desmontagem da ilusão teatral e interpelação direta do público foram alguns

dos recursos mais significativos. Mas também o humor e um trabalho minucioso sobre a linguagem, estendendo

o léxico, desconstruindo-a e questionando-a, colocando-a mesmo como subtema em algumas peças, ligada à

ideia de construção de um mundo novo.

Um dos grandes temas passou a ser a “construção da identidade”, contrastando com a anulação do indivíduo

em relação à ordem social que no período anterior vigorava, bem como, em particular nos textos de Manuel

António Pina, o binómio identidade/alteridade. Por outro lado, os temas sociais estiveram durante muito tempo

ligados, sobretudo, aos valores da liberdade e da tolerância, bem como a uma crítica transversal da sociedade

industrial e a uma valorização da vida em harmonia com a natureza.

O teatro na escola conheceu duas realidades paralelas e complementares. Por um lado, foi introduzida nos

currículos das Escolas do (então) Magistério a disciplina de Movimento e Drama, pelo que a formação dos

professores passaria a integrar a expressão dramática, assinalando o reconhecimento da sua importância na

formação psicossocial dos indivíduos. Por outro lado, vários artistas e companhias se interessaram por, a par da

criação de espetáculos, fazer formação de professores e de animadores socioculturais, caso de João Mota, de

José Caldas ou do Centro Dramático de Évora através da Unidade-Infância.

Durante os anos ‘70 e ‘80 surgiram companhias intensamente ou exclusivamente dedicadas à criação para a

infância, consolidando propostas estéticas características que influenciariam depois novas gerações de criadores.

O Teatro O Bando (1974) é um caso notável, que apresenta 40 anos de produção ininterrupta e de qualidade

assinalável, conhecido por incluir no reportório temas ditos inadequados para a infância, como a morte, e de

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estreitar a relação entre o real e o simbólico. A companhia Pé de Vento (1977), cujos textos levados à cena são

maioritariamente de Manuel António Pina, tornou-se igualmente um marco pela valorização da palavra poética

e pela abertura e complexidade temática. O Teatro Art’Imagem (1981), tal como a Pé de Vento sediado no Porto,

enquanto responsável pelo emblemático Fazer a Festa, um dos festivais de teatro mais antigos do país, cuja

maior fatia da programação se destinava à infância e juventude. Em Lisboa, o TIL – Teatro Infantil de Lisboa

(1976), que investiu num teatro musical, em boa parte baseado na adaptação de contos tradicionais, os Papa-

léguas (1976) e o Teatro Joana (1978). Ou ainda A Comuna (1972), que hoje apenas pontualmente inclui no seu

programa peças para crianças, mas que conta no reportório inicial com duas peças representativas deste novo

ciclo de criação para a infância: Bão (1975) e As Viagens Fabulosas de Simão e Zacarias (1978).

Se num primeiro momento a produção de textos dramáticos e a produção de espetáculos explodem a par, a

partir dos anos ‘90 assistimos a uma diminuição dos textos dramáticos originais e ao recurso a outras fontes para

criação dos espetáculos – improvisações, textos não dramáticos, contos tradicionais, imagens, bem como à

introdução de outras linguagens em cena, como o vídeo e a dança. O teatro na escola continuou a desempenhar

o seu papel, nem sempre de mão dada com o teatro profissional, mas com a inclusão de alguns textos dramáticos

nos programas de Português e com a introdução da disciplina de Expressão Dramática, sob diferentes

designações e com cargas horárias diversas, em vários ciclos de ensino, deram-se alguns passos em frente.

Mais tarde, no final da década de ‘90, com o aparecimento de novos ou recuperados teatros e cineteatros pelo

país e a diversidade de festivais de teatro, tornou-se possível dotar muitas cidades com condições para

apresentar ao pequeno público uma enorme variedade de produções teatrais. A par deste aumento de

infraestruturas aumentou, em paralelo, a circulação de espetáculos de cariz comercial, alguns dos quais pouco

inovadores mas muito populares, e a difusão de produções de grande qualidade, muitas delas resultantes de

coproduções entre diferentes teatros e cidades. Neste âmbito, o CPA – Centro de Pedagogia e Animação do CCB,

dirigido por Madalena Victorino entre 1996 e 2008, tornou-se uma referência e contribuiu para formação de

uma nova geração de artistas e de programadores a trabalhar na área das artes performativas para crianças.

A grande mudança que se verificou após o 25 de abril está essencialmente na criação de um produto cultural

menos “protetor” e mais inovador face aos seus destinatários, o que configura “um novo itinerário de formação

literária e teatral para a infância e juventude”, pela libertação do teatro para assumir a sua natureza artística. Os

melhores exemplos de criação teatral para crianças da atualidade aproximam-se desta linha e incluem propostas

de artistas que se especializaram em pensar neste público específico bem como propostas de alguns criadores

mais conotados com públicos adultos. Podíamos citar, apenas para dar alguns exemplos, Vassilissa ou Grão-de-

bico, do Teatro O Bando, Hamlet sou eu, do Teatro Praga, Uma Aventura no Espaço, do Teatro de Ferro,

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Catabrisa, de Joana Providência, Sopa Nuvem, de António-Pedro e Caroline Bergeron, Tropeçar, do Teatro do

Vestido ou A Caminhada dos Elefantes, de Inês Barahona e Miguel Fragata.

Convivemos, no entanto, com exemplos que prolongam paradigmas de outras épocas, seja ao nível dos temas e

dos modelos sociais apresentados, seja a nível estético. A nível profissional ou amador, abundam as peças de

teatro para público escolar que se limitam a dar resposta direta a temas curriculares, recorrendo ao teatro como

ferramenta pedagógica “inovadora” quando falham outras estratégias e esquecendo que esta solução, com mais

de cem anos, é pouco representativa quer da evolução do teatro quer da evolução da pedagogia. É também o

caso da maioria das produções comerciais que, recorrendo a adaptações de clássicos da tradição oral ou da

literatura infantil enquanto estratégia de sedução, reproduzem visões muitas vezes moralistas e obsoletas da

sociedade.

Atendendo à sua longa história, não é difícil observar que o teatro foi muitas e diferentes coisas, de acordo com

um conjunto de necessidades próprias de cada época. No que respeita a relação entre teatro e educação,

obviamente o teatro foi sempre reconhecido como um instrumento poderoso: pela sua capacidade de

materializar ideias e acontecimentos reais ou imaginários, permitindo re-ver o mundo, pela sua capacidade de

interpelar e de emocionar, de envolver os sentidos e de intervir na perceção do tempo, pelo seu potencial

mobilizador.

O teatro, na sua origem contemporâneo da filosofia e da democracia, estará para sempre ligado à história das

cidades ocidentais, ao pensamento sobre a humanidade, às utopias sobre o viver em comum, a um diálogo

intenso com o presente. Isto não tem, no entanto, de fazer do teatro refém de fins pedagógicos, quer estejamos

a falar de espectadores adultos ou crianças. Face às condições atuais, apesar de tudo propícias ao acesso a uma

grande diversidade de bens culturais e de discursos, o teatro é livre para ser aquilo que é, uma forma de arte, e

os espectadores livres para reclamar a presença das formas poéticas nas suas vidas - guardiãs da dimensão

simbólica da nossa existência. Este deveria ser motivo suficiente para que a escola zelasse pelo teatro, educando

as crianças para as formas teatrais, não só através do exercício da expressão dramática, fazendo teatro, mas

através da regularidade da experiência de ser espectador, vendo teatro.

O teatro para a infância é antes de mais nada teatro. Especificando embora o destinatário, a infância não delimita

uma categoria menor – antes configura uma experiência de criação e de relação muito mais complexa e exigente.

Um desejável e necessário teatro para a infância será talvez um que edifique, não no sentido moral ou da

aquisição de conhecimentos, mas que seja constituinte e revelador de individualidades pensantes, sensíveis,

luminosas e independentes.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, GLÓRIA. O teatro para crianças em portugal – história e crítica, Coleção Universitária, Lisboa, Editorial

Caminho, 2006.

DUARTE, TERESA. Teatro para Crianças, Teatro para Todos – Um Percurso Histórico sobre o Teatro para Infância

em Portugal, Lisboa, edição de autor, 2013.

GUÉNOUN, DENIS. A Exibição das Palavras – Uma Ideia (Política) do Teatro, Trad. Fátima Saadi, «Coleção Folhetim

– ensaios», Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

GUÉNOU, DENIS. O Teatro é Necessário? Trad. Fátima Saadi, «Coleção Debates», São Paulo, Perspectiva, 2004.

RANCIÈRE, JACQUES. O Espectador Emancipado, Trad. José Miranda Justo, Lisboa, Orfeu Negro, 2010.

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A ESCOLA (AINDA) TEM SENTIDO(S)

Nuno Mata

Eis que de repente as salas de aula perdem o crucifixo e a fotografia do chefe e passam a estar engalanadas com

quadros de branco virginal e de pomposa designação, ligados a caixas pretas assentes na secretária que já não

se ergue do estrado e, saídos do tecto, como se saídos do Céu, projectores de últíssima geração… À nossa espera,

tabeletes modernaços que, dizem, substituem perfeitamente os pesados e aborrecidos manuais escolares, as

canetas, lápis e borrachas e os coloridos cadernos diários. E há escolas onde já andam os catraios de tecnologia

em riste, dedando desenfreadamente em escolas virtuais.

É assim a nova escola: Modernaça, tecnológica e virtual. Uma espécie de Telescola mas sem as emissões do

segundo canal.

A esta escola faltam os cheiros, os tactos, os sons do folhear, a poeira branca do quadro negro, as letras

desenhadas para a ocasião e as fórmulas matemáticas que provocavam arrepios.

Há uns meses, entrei numa das muitas escolas primárias encerradas no também encerrado interior de Portugal.

O tempo tinha parado. No quadro, ainda se lia a última data escrita. As liliputianas cadeiras desalinhadas. Num

canto, uma caixa métrica, daquelas em que se sentiam as formas, os tamanhos, as arestas e as curvas. Noutro,

uma salamandra que ainda exalava o cheiro do último pinho queimado. Na parede, o mapa de Portugal, ainda

sem bandeira azul com estrelinhas amarelas, desgastado pelo tempo e pelos milhares de pontas de dedos que

apontaram as cidades, os rios e as serras. Fechados os olhos, viam-se as crianças à volta dos cadernos. Ouviam-

se os gritos dos que andavam no recreio. Sentia-se o calor da fogueira. Sacudia-se o pó de giz das mãos. A escola

tinha sentidos.

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100

Agora é tudo muito para a frente. Tão para a frente que um dia destes o ministério do ensinar e a dádiva do

aprender se farão desde casa e para casa, através de uma minúscula câmara agarrada a uma máquina. As dúvidas

serão gogladas ou wikipediadas e as visitas de campo passarão a ser youtubadas.

Faltarão os sorrisos, as conversas segredadas, as entradas de rompante na sala de aula e as saídas intempestivas

após o toque. Também se extinguirão as faltas de material e não haverá mais problemas com a não realização

dos trabalhos de casa.

A sociedade de consumo (e esta é uma visão pessoalíssima) impinge-nos os windows e linuxes com o argumento

de que os nossos interlocutores ficarão mais interessados e atentos… Só que não ficam! O interesse e a atenção

acontecem quando alguém fala para eles, quando alguém lhes diz o que tem de dizer-lhes. Quando alguém usa

e abusa dos sentidos que a sua existência enquanto pessoa lhe confere: ouvir, falar, ver, sentir, degustar. E não

há máquina nenhuma que o faça!

Se questionamos os facebuques, os tuiteres, os sms e tudo o que de tecnológico arrasta a nossa miudagem do

salutar convívio pessoal, ao ar livre, sem espaços fechados, por que carga de água andamos a defender

acerrimamente as tecnologias?

Se queremos que aprendam a nossa língua, por que razão os deixamos usar uma máquina que corrige os erros

sem que se perceba que o faz?

Se queremos que sejam criativos, por que deixamos que façam cópia e colagem de um texto ou de uma imagem

de outrem?

Se queremos que tenham destreza física e intelectual por que permitimos que se limitem a usar os indicadores

e os polegares?

Ao mundo, ao nosso mundo e à nossa vida, faltam as cartas que o carteiro trazia, os postais recebidos no Natal,

os abraços entregues nos aniversários. Faltam-nos as palavras e os olhares.

Aos alunos, aos nossos alunos, faltam os professores. Aqueles que recordamos para o resto das nossas vidas, de

quem temos saudades e por quem nutrimos respeito… Acham que um professor que só manda carregar num

botão e que só liga um aparelho ficará nalgum recanto, por mais pequeno que seja, da memória de um aluno?

E que acham do abjecto nome de “escola virtual” a fazer lembrar aquela quinta agrícola tão bem cuidada e alvo

de tantas preocupações que só o era porque não existia na realidade?

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101

E os alunos, gostam de tecnologias? Olha que pergunta! Mas não é da que estamos a pensar. Eles gostam do

telemóvel para contactar os colegas, do computador para postar mensagens nas suas páginas pessoais e dos

tabeletes para jogar o desafio da moda. Word, Excel, fichas de trabalho… Está bem, está! Por isso se admiram

pais e mães, quando a criança não tem 5 ou 20 a TIC. “Mas ele gosta tanto de computadores, anda sempre

agarrado a ele…”. Pois anda. Só que não é para estudar. “Ela quer muito seguir um curso que tenha

computadores”… Pois quer, para jogar Angry Birds…

Uma coisa vos digo: com tanta petição e manif, que venha depressa uma e outra a defender o quadro negro e o

giz branco!! Estamos urgentemente a precisar de apanhar pó! Porque a escola ainda tem sentido(s).

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103

À MANEIRA DO ZÉ POVINHO…

Teresa Portal

Atribuir Sentidos à Educação é fácil e, simultaneamente, difícil, atendendo a que todo o docente, atualmente, se

vê com dificuldade em detetar o Norte. Não há Estrela Polar que o salve, pois, hoje, exara-se a pés juntos, como

lei, o que ontem era considerado como um grande disparate ou um contrassenso.

E em todas as vertentes da dita Educação, os sentidos andam baralhados! As mudanças são tantas e a um ritmo

tão frenético, que nunca se pode saber, com certeza absoluta, se o dia de amanhã se segue ao de hoje ou se a

musa Clio18 confundiu alguns fios da teia da História e, de repente, nos vemos numa sala de há quarenta ou

cinquenta anos, ainda no tempo da Dita que durou quarenta anos, como alguns ainda sabem e a maioria não

sabe (porque a História com H maiúsculo não lhes agrada!) ou já esqueceu (o caso dos nossos governantes,

principalmente do nosso ministro Crato!), com um professor de óculos de aros de tartaruga a comandar o ditado

e uma régua de madeira na mão, que não era para marcar o compasso. O respeito eivado de medo pelos

professores, os castigos, a menina dos cinco olhinhos (para o bem e para o mal!) a régua ou a cana (que chegava

ao fundo da sala e punha lume nas orelhas dos desatentos ou dos ignorantes!), os retratos dos nossos

governantes na parede… os trabalhos de casa, os exames, a tabuada cantada (alguns só sabiam a música!), as

cantilenas, as brincadeiras: a macaca, o arco, o mata, a cabra-cega, o pião, as escondidas, a apanhada, as

cadeiras, o eixo, as caricas, a corda queimada, o bom barqueiro, minha mãe dá licença… era o dia a dia das

crianças de antanho.

A memória é curta, infelizmente.

18 Clio - Musa da História

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Nos tempos que correm, o trabalho dos docentes transformou-se num pesadelo, numa autêntica “missão

impossível”, em que nenhum Tom Cruise nos vem dar uma mãozinha nem uns cêntimos dos milhões que ganha.

O passado foi apagado (como se tudo estivesse errado!) e o presente foi-se construindo aos poucos, com muito

esforço, com muita investigação, com muita inovação. E lá fomos e vamos “teimando” por manter a escola

pública no patamar para onde a tínhamos guindado, à custa de tantas lutas e tanto esforço após a Revolução dos

Cravos. Foi preciso vir uma Troika e vários (des)governos, para que o muro da educação, que pensáramos ter

solidamente construído e bem cimentado, ameace desabar como um frágil castelo de cartas. A questão é mesmo

essa: Por quanto mais tempo se vai aguentar de pé?

O Sistema Educativo levou e a cada passo volta a levar novas machadadas e, no momento, voltou à estaca zero,

com umas metas curriculares que se implementaram em alguns dos anos escolares, mas nos outros não. Depois,

as orientações contraditórias que recebemos não fazem augurar nada de bom para o futuro da Educação em

Portugal. A “Educação foi a paixão de alguns governos socialistas” e, na verdade, obteve alguns resultados. Os

bons resultados que íamos arrecadando do PISA foram trucidados, mandados para as urtigas, menosprezados.

Portugal melhorou consistentemente nos resultados dos testes internacionais PISA e, em 2012, os alunos

portugueses ultrapassaram os suecos e, a matemática, Portugal foi o país onde houve maior evolução positiva

quer na média, quer nos alunos mais fracos, quer na produção de pequenos génios. Como a Educação (e não só)

deixou de ser uma paixão deste Governo (ainda gostava de saber qual é a paixão destes! Deve ser o limpar-nos

os bolsos e pôr-nos a pagar a fatura dos seus despautérios), resta-nos a velha mania portuguesa de nunca se

acabar o que se começa e de não se avaliar o que se fez para mudar apenas o que está mal. Não! Nós adoramos

começar do zero! Mas isso é culpa dos nossos governos. Sempre que um deles vai para o ‘poleiro’, passa uma

esponja sobre tudo quanto foi feito e, iluminado como é (tem de ser, porque todos os nossos governantes são

uns iluminados!), impõe o seu próprio sistema e vai exigindo modificações e dá voltas e reviravoltas com a

legislação e todos os normativos de modo a construir o que temos presentemente – o CAOS educativo. Venha o

diabo e procure descobrir o fio da meada para a enrolar e fazer um belo novelo.

A Educação levou uma tal reviravolta que até a Escola Pública está em risco e os professores têm precariedade

do emprego, ordenados flutuantes conforme a vontade do governo e as contas que apareçam para ser pagas,

turmas com um número mais elevado de alunos, aumento das horas de trabalho (andaram a contar cinco

minutos aqui e acolá que dão mais dois tempos) e consequente redução do número de lugares nas escolas e por

aí adiante…

Educar para quê? Para gastar milhões e ainda nos enrascarmos mais para encontrarmos uma saída para as

medidas troikianas. Só um povo com graves problemas funcionais e mentais investiria milhões nos seus jovens

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para depois os mandar emigrar (conselho sensato e muito ponderado do senhor Primeiro Ministro!) e “render”

e “dar lucro” aos países que os recebem de braços abertos, já que de parvos não têm nada. É, pois, a chamada

emigração de mão de obra de qualidade, que, pelos vistos, não faz falta ao nosso país, segundo os nossos sábios

ministros, uma bela cambada de bonifrates19 (eles e nós que os aguentamos!). É que nada é feito por mal, é tudo

por ignorância e ganância e mais algumas – ‘âncias’ que não enumero.

E atrevia-me a falar em Educação para a Governação. Sempre me inquietou pensar que a mesma pessoa possa

exercer qualquer das pastas que compõem o Governo sem dificuldade nenhuma, sem do assunto perceber

patavina ou, percebendo, que só faça sujeira. No topo, não se fala em incompetência. As bases é que são

formadas pelos incapazes que dão o corpo ao manifesto e tentam levar o barco a porto seguro, apesar dos tais

que tentam forçosamente atirá-lo contra o cais e levar tudo na frente.

Falar em Educação Parental é como falar numa “camisa de onze varas”, em que tudo é permitido e,

simultaneamente, proibido, em que as funções são de tal maneira alienadas, que já não se sabe quem é quem.

Não há regras e os filhos mandam nos pais e exigem-lhes constantemente o que podem e não podem dar. E os

pais, ocupados em conseguirem arrecadar o mínimo para os sustentar, culpabilizam-se pelo pouco tempo

disponível, procurando compensá-los, deseducando-os e criando uma juventude autoritária, intransigente,

obstinada, detentora da verdade única e culpabilizam a escola (onde os descarregam!) de não lhes dar a

educação que devia.

E são tantos os pelouros atribuídos de mão beijada à escola sem lhe serem dadas as condições mínimas para o

seu desenvolvimento: a Educação para a Saúde, a Educação para a Segurança e Bem-Estar, A Educação para o

Ambiente, A Educação para a Cidadania, a Educação para as TIC, a Educação para o Consumidor, a Educação para

a Solidariedade, a Educação para a Interdisciplinaridade, a Educação para o Trabalho Colaborativo, … e mais

alguns de que não me lembro. Ah! Já me esquecia de mencionar a Educação Financeira, que foi uma das

novidades deste ano letivo de 13-14 e ainda a Educação Literária! Só não há uma Educação para a Boa Educação,

ou… até há, porque se não formos nós a inculcar nos alunos as regras de estar em sociedade, aquilo que,

antigamente, se chamava “Regras de Cortesia”, não sei onde iremos parar.

Todas estas vertentes da educação se inserem na Educação e Formação ao longo da vida. “A escola prepara para

a vida”, dizia-se. Agora, ela dá algumas ferramentas que permitem a cada um fazer autoformação de um modo

contínuo e que meta pés a caminho e não cruze os braços. Um dos problemas da escola atual é que não “arranja

19 Palhaços, fantoches

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emprego”, como no antigamente. A motivação tem de ser descoberta de outra maneira e tem de ter múltiplos

agentes a incentivá-la. O trabalho tem de começar em casa e acabar na escola ou vice-versa, mas os alunos têm

de sentir que estão a fazer algo de útil, algo de que vão precisar na sua vida adulta. Infelizmente, o currículo

oculto continua a guerrear com a escola mais do que nunca e se, durante muito tempo, a escola foi vista como

única fonte de saber, capaz de assegurar prestígio e posição social, hoje, embora continue a ter um papel

importante, ela já não tem o "monopólio" do saber exclusivo, pois, atualmente, há outras fontes de informação

igualmente credíveis como as novas tecnologias que são excelentes meios para a construção do conhecimento

que não estagna.

O papel do professor é primordial como elemento de ligação entre os conteúdos programáticos onde as várias

“Educações” têm de convergir e dar-lhes saída de maneira a que nem os adultos nem os alunos deem um nó

mental. Não é fácil ser o executor de tantos papéis, nomeadamente no caso do professor titular (1º ciclo) ou do

diretor de turma (2º e 3º ciclos). Os tempos letivos, já considerados uma sobrecarga para os alunos portugueses,

não chegam para se abordarem todas estas perspetivas que se poderiam sintetizar num Educar para a Cidadania.

Ser cidadão, exercer a cidadania é ter direitos civis, políticos e sociais, é ter plena consciência da sua existência,

é ser EDUCADO COMO UM TODO.

A Educação para a Inclusão era “a menina dos olhos” de uma escola que pretendia incluir todos os jovens e

permitir-lhes o acesso à educação, apesar das necessidades educativas ou outros défices quaisquer que

pudessem demonstrar. De repente, estes jovens foram postos de lado e, nas escolas onde a prática inclusiva era

e é uma realidade, continuaram a ser acarinhados e a terem uma educação adaptada a cada uma das suas

necessidades. Nas outras, que olham só para o umbigo, para os rankings e para as médias, estes miúdos foram

abandonados à sua sorte, inseridos em turmas normais e com um currículo praticamente igual ao dos outros

jovens.

E que dizer das várias medidas implementadas que visavam elevar os níveis de habilitação escolar e profissional

da população portuguesa adulta - RVCC, EFA, Ensino Recorrente - que, de repente, deixaram de ter os favores

do governo que foram abandonadas sem explicações plausíveis? Se, entre 2000 e 2010, tinha havido resultados

visíveis para ultrapassar o atraso de décadas nos anos de escolaridade, (alunos com mais de 25 anos com a

escolaridade secundária completa subiu de 8,6% para 13% e adultos entre os 50 e os 54 anos de 5,5% para 9,6%),

agora voltamos para trás, regredimos, com a eliminação de tais medidas.

Atribuir sentidos à Educação… tarefa multifacetada, pois “cada cabeça, sua sentença” e todos temos um sentido

diferente para lhe dar. Provavelmente, é por isso que ninguém se entende agora… nem sequer o Ministério da

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Educação e Cultura, porque decidiu pôr a Educação de lado e dar importância à questão financeira, ao peso que

esta tem ou poderá ter no orçamento de estado e, como é necessário cortar “a torto e a direito”, como é

necessário poupar para arrecadar os milhões que devemos, então vamos colocar em risco o futuro do país e

procurar o dinheiro fácil, pois os resultados só serão visíveis daqui a uma década ou mais. É roubar o país sem

ninguém ver e, para agravar, com a opinião pública contra os famigerados professores que tanto ganham e nada

fazem.

Gostava de ver os nossos governantes à frente de uma daquelas turmas “especiais” que todas as escolas têm e

que nos põem os cabelos em pé e nos colocam nas filas para os psicólogos e os psiquiatras.

Mas… alguém ouviu falar de algum governante que alguma vez tivesse tido um esgotamento? Claro que não…

Isso fica para os tais que não fazem nada…

E, como coloco a Educação acima de tudo, não posso falar livremente com uma linguagem “à Zé Povinho” como

me apetecia. Como sou professora, já me habituei a andar ao sabor da corrente e a nunca perder a esperança.

Só espero que os 40 anos do 25 de abril continuem…

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O(S) SENTIDO(S) DA ESCOLA

Aníbal Ruão

Partindo do ciclo de seminários “EDUCAÇÃO COM SENTIDO(S)”, promovido pelo centro de formação Francisco de

Holanda, este texto teve como base a intervenção de Ariana Cosme: “Escola pública e democracia: do caminho

percorrido ao caminho a percorrer” e está dividido em duas partes.

Parte 1 - Factos

Se prestarmos um pouco de atenção sobre o que se passou em Portugal nos últimos 40 anos, concluímos que a

escola pública foi consolidada mas, relativamente ao funcionamento de outros serviços, nomeadamente a justiça

e a saúde, isso não se verificou. No que respeita ao ensino superior, este passou a ser mais democrático, bastando

comparar o número de licenciados em 1974 com os atuais números. Estudos internacionais dão como certo que

em 2020, 35% dos empregos serão ocupados pelos licenciados e, daí, a importância da existência de um esforço

por parte dos profissionais do ensino em focar a atenção em criar metodologias de grande impacto, com vista a

manter os alunos entusiasmados e empenhados na escola até ao 12.º ano para, a partir daqui, estarem em

condições de “dar o salto” para o ensino superior.

Em 1970, só cerca de 12,3% dos portugueses possuíam habilitações académicas básicas (ao que hoje se chama

1º CEB). Com o 25 de abril, constata-se a necessidade de promover o nível de habilitações académicas da

população portuguesa. Era grande o desafio da democratização das escolas e da necessidade urgente de

expandir o sistema educativo ao maior número de pessoas. As dificuldades e constrangimentos para tal tarefa

eram muitos e os registos dos atrasos no nosso sistema eram esclarecedores (cerca de 30% de analfabetos;

residual o número de licenciados; praticamente inexistente a educação pré-escolar …).

É, pois, pertinente analisar o percurso efetuado na educação, comparando alguns dados do pré e pós-25 de abril:

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Em 1961, o nº total de alunos a frequentar todos os graus de ensino no ensino público e privado era de 1.086.115.

Em 2012 passou para 2.231.869 (mais 1 milhão de alunos a estudar) (PORDATA – 2013-10-29).

No mesmo ano, o nº de professores no pré-escolar, básico e secundário rondava a casa dos 36.000 para, em

2012, passar para os cerca de 160.000 docentes (PORDATA – 2013-10-29).

Criou-se um sistema nacional de Educação Pré-Escolar (Decreto-Lei n.º 542/79 de 31 de Dezembro). A taxa de

analfabetismo decresceu, em 1991, para valores próximos dos 5% contra 25,7% em 1970 (PORDATA - 2013-05-

27).

No início dos anos 90, a taxa de abandono escolar precoce dos alunos era de 50%, passando para 19,2% em 2013

(PORDATA - 2014-02-06). Mesmo assim, nos nossos dias, Portugal continua a estar ainda longe da meta nacional

de 10% de taxa de abandono do ensino secundário pretendida para 2020.

Mais recentemente, em 2008, são criados os Centros de Reconhecimento e de Validação de Competências (e

ainda mais recentemente, abandonados – 2012) que foram valorizados como instituições de referência em

relatórios internacionais.

Em 2010 Joaquim Azevedo escrevia: “A «seleção natural» produz-se porque a escola vai abandonando os alunos

à sua sorte (os mais pobres, os mais tristes, os mais desintegrados, os que obtêm piores resultados académicos)

e estes acabam por abandonar a escola que os tinha abandonado. Por vezes, até por necessidade de defesa da

dignidade pessoal, (…) não é fácil permanecer obrigatoriamente numa instituição que te diz sistematicamente

«não és capaz!». O que seria interessante aprofundar (e é o que algumas escolas já fazem e bem) é o modo como

as escolas básicas e secundárias, em democracia, promovem todos os alunos, com qualidade”.

Parte 2 - Reflexão

«Toda a comunidade é pouca para educar uma criança»

provérbio africano.

Não é tarefa simples, para um professor nos dias de hoje, manter uma criança “normal” na escola: é preciso

motivá-la, tentando criar ambientes de alegria na sala de aula dado que este é, com certeza, um grande fator de

motivação, embora não possamos ignorar que “aquilo que lhe interessa” está fora da sala de aula. Mas, por outro

lado, o professor tem de a formar/ensinar, ou seja, ficar com a “pior parte”, pois tem de “vender o patinho feio”

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que consiste em convencer o aluno do papel que lhe cabe (a ele, aluno) demonstrando que o esforço é necessário

e é individual; trata-se da construção do “caminho” de cada aluno e que cada um terá obrigatoriamente de fazer

mas, também no final, grande vai ser a satisfação na sua chegada ao fim desse caminho. Para o conseguir, o

professor deverá desenvolver um esforço criativo capaz de motivar a criança, enfeitiçando-a com o

conhecimento, com as coisas novas que ainda não sabe e que até são interessantes e importantes, apresentando-

as como uma forma subtil de aprender brincando, evoluindo sucessivamente para conceitos mais difíceis, com

estratégias elaboradas de motivação, sempre com base no prazer de aprender. Lentamente, a criança, mesmo

revoltada, inadaptada, pode afeiçoar-se ao clima da sua sala de aula, sentir-se segura, corajosa, realmente

“especial e única” e já não pensará tantas vezes que “aquilo que interessa” está do lado de fora.

Mas, e como poderá o professor lidar com os alunos “diferentes”? Temos de compreender que mesmo nos

momentos mais dolorosos há espaços para um caderno e um lápis – e essa realidade deveria estar sempre

presente no pensamento do professor na sala de aula - por mais heterogénea que seja a turma com “casos

difíceis”. «Cada criança é única» – lembra-nos o pedagogo João dos Santos - e, particularmente nesse contexto,

para lidar com os alunos “diferentes”, o trabalho em equipa deveria ser fundamental, para que se partilhassem

e avaliassem os sucessos e insucessos, angústias, dúvidas, certezas e incertezas.

Certamente que o combate ao abandono escolar passará por prestar uma atenção mais cuidada aos “candidatos

ao abandono” e, nessa medida, garantir as condições adequadas aos docentes para estes poderem fazer o

necessário acompanhamento (às vezes individualizado). No fundo, garantir que os docentes possuam

verdadeiras condições de organização e gestão de tempos para tão grande e importante tarefa e,

fundamentalmente, não esquecer nunca de envolver os encarregados de educação em todo o processo.

Trabalhar com crianças e jovens com necessidades educativas especiais, défices cognitivos, desarmonias

evolutivas, distúrbios da personalidade, perturbações emocionais e outras “disfuncionalidades” obriga a uma

atitude muito diferente por parte de todos os atores do processo educativo; é então que, nestes contextos, o

trabalho colaborativo e cooperativo se torna absolutamente essencial sendo, também excelentes oportunidades

para se criar laços de partilha e de motivação entre todos. Como refere a Dr.ª Isabel Beirão, na Conferência “João

dos Santos no século XXI” proferida a 6 de Setembro de 2013, «conter as angústias, lidar com a depressão, a

agitação e a irrequietude, a agressividade verbal e física, os medos, dar significado às emoções, criar sentido no

caos, organizar o que está destruturado» deverão ser fatores determinantes para fazer com que a equipa de

docentes se mantenha unida e coesa para que, no final, se obtenha o sucesso que todos esperam e desejam, no

fundo, que todos os alunos que entram numa escola se sintam bem e sejam felizes, de tal modo que queiram lá

estar até ao fim do ciclo.

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Quantas vezes, me pergunto, nas reuniões de conselhos de turma, se “os diagnósticos” e as “terapias” a aplicar,

a determinados alunos, não foram já tantas vezes identificadas? Se não são um déjà-vu? – Certamente que todos

nós já fizemos esses “diagnósticos”. Contudo, também todos nós constatamos que a verdadeira “solução”

raramente aparece e isso acontece porque, na maioria das vezes, nos esquecemos de olhar (com olhos de ver)

para aquela criança que, provavelmente não consegue estar parada, não sossega um minuto, não está atenta, …

apenas porque, v.g., “tem uns sapatos pequenos para o seu tamanho” e ninguém reparou nisso. Como pode uma

criança fazer abstrações, estar concentrada, estar atenta e “portar-se bem” se o seu cérebro está

permanentemente ocupado com alguma espécie de incómodo que o mantém absorvido nessa condição? Penso

que a nossa acuidade poderá e deverá ser um dos sentidos a apurar! Toda a criança espera que algum de nós

“olhe” para ela e “cuide dela” e que a trate como qualquer criança merece ser tratada. Depois disto, SIM, então

sim, depois virão os estudos, as aulas, o “portar bem” na escola, porque essa criança passou a gostar de estar na

escola, porque a escola passou a ser um local seguro, confortável e acolhedor. Não tenho dúvidas de que,

provavelmente, com esta abordagem mais realista e mais positiva, mais próxima dos interesses daquela criança,

as taxas de “abandono zero” (meta que qualquer professor poderia e deveria assumir para consigo próprio)

poderão ser finalmente conseguidas. Assim eu penso, assim eu acredito!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PORDATA. http://www.pordata.pt/ Acesso em 14/04/2014 e 12:30h.

AZEVEDO, J. (2010) em http://www.cffh.pt/userfiles//files/Ariana.pdf

SANTOS, J (2013) em http://joaodossantos.net/contributos/os-nos-e-os-lacos. Acesso em 1/04/2014 e 10:01h.

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PENSAR A CIDADANIA

Gioconda Gregório

No Estado não democrático, autoritário, a escola pública torna-se um dos pilares fundamentais da construção

da ideia de cidadão. Em Portugal, existem inúmeros indícios históricos de que a escolarização funcionou, ao longo

dos processos de formação do Estado Moderno, não só como fator de apertado controlo social, mas desde logo

como forma mais regulada de acesso específico ao poder político. É de salientar a elegibilidade atribuída, no

sistema eleitoral liberal, aos detentores do 5º grau de escolaridade secundária sobre a grande maioria dos

detentores de capital económico quando estes não possuíam aquele modicum de capital cultural, equivalente à

atual escolaridade obrigatória. É importante registar esta precedência política da literacia sobre o censo

económico desde os primórdios do Estado Liberal em Portugal.

A cidadania não seria mais do que um produto de exclusão do que inclusão. É um conceito fortemente articulado

pelo Estado como forma de controlo social. É uma prerrogativa arbitrária dos Estados, quem tem ou não o

estatuto de cidadão, sendo que nesta definição de cidadania são mais os indivíduos excluídos do que os incluídos.

A cidadania era um conceito restrito à lógica do Estado Nação. Uma cidadania restrita é monocultural e qualquer

ideia de expressão da diferença não faz sentido e é aqui que surge a violência simbólica. Tudo o que é resultado

de uma imposição é uma violência e é simbólica porque não é percecionada. À medida que os indivíduos vão

tendo essa perceção esbate-se a violência simbólica. A escola pública foi utilizada para a construção da cidadania

monocultural, passando a mensagem do Estado, a denominada identidade nacional. Naturalmente, com a

institucionalização do sistema de ensino formal, os dois capitais - económico e cultural - tendem a convergir

sendo raro os capitais económicos de alguma dimensão não obterem algum capital escolar, mas o inverso é

menos verdadeiro.

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Enquanto se mantêm os dispositivos de escolarização restrita, até metade do século XX, tal convergência de

capitais apenas reforça o carácter oligárquico das elites e na sua falta de diferenciação funcional. Até metade do

século XX em Portugal, a maioria da população portuguesa permanecia excluída de escolarização.

Nos tempos de hoje fala-se em democracia ampliada, onde os direitos básicos são o principal vetor da cidadania

democrática. O Estado de Direito é a eliminação do arbítrio no exercício do poder público com a consequente

garantia dos direitos dos indivíduos perante esses poderes. A ideia de Estado de Direito alicerçou-se nos Estados

Ocidentais. Num Estado de Direito, em primeiro lugar, adota-se um processo justo, legalmente regulado, quando

se pretende julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua liberdade ou propriedade.

Em segundo lugar, a regra de direito impõe prevalência das leis e costumes do país perante a discricionariedade

do poder real. Em terceiro, a sujeição de todos os atos do poder executivo à soberania dos representantes do

povo (parlamento). Por último, a regra de direito significa direito de igualdade no acesso aos tribunais por parte

de qualquer indivíduo a fim de aí defender os seus direitos, segundo os princípios do direito comum e perante

qualquer entidade pública ou privada.

Estado de Direito e Democracia correspondem a dois modos de ver a liberdade. No estado de Direito concebe-

se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma liberdade de defesa ou distanciamento em relação ao

Estado. Ao Estado Democrático associa-se a ideia de liberdade positiva, isto é, a liberdade do exercício

democrático do poder. É a liberdade democrática que legítima o poder. A lógica específica, escondida nestas

duas liberdades, leva a duas atitudes divergentes e irreconciliáveis, sacrificando-se uma dimensão face a outra.

O Estado Constitucional carece de legitimidade do poder político e da legitimação desse mesmo poder. O

elemento democrático não foi apenas introduzido para travar o poder, foi também reclamado pela necessidade

de legitimar esse mesmo poder. Saber se o “governo de leis” é melhor do que um “governo de homens”, ou vice

- versa, é uma falsa questão: o governo dos homens é sempre um governo sob leis e através de leis. O Estado de

Direito pressupõe uma sociedade civil onde desabrochem as potencialidades da inovação e da criatividade.

O Estado de Direito reclama o indivíduo autónomo e não o indivíduo submisso à máquina estatal. Se por

estabilidade social se entender o grau de intervenção do Estado na esfera do bem-estar das populações, então

pode afirmar-se que o Estado é de Direito Social. As tentativas de recriar um Estado Absentista, numa época de

agressividade social e de globalismo ideológico, escondem a razoabilidade e justiça do Estado Social de Direito.

O Estado de Direito só será social se não deixar de ter como objetivo a realização da democracia económica,

social e cultural e só será democrático se mantiver firme o princípio da subordinação do poder económico ao

poder político.

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O capitalismo e o Estado Moderno, tal como o conhecemos, evitaram ao máximo que o direito pleno, que tanto

apregoavam, fosse de facto universalizado. Um dos vetores do capitalismo é a exploração com a consequente

acumulação de capitais, onde surge a desigualdade. A democracia se for pensada com mais direitos não se pode

conciliar com o capitalismo. A democracia jamais foi condição sine qua non para o capitalismo. É uma relação de

fachada, uma farsa encenada pelas classes políticas e pelos grupos económicos dominantes, que asseguram o

lucro e a sua maximização sendo, em última instância, os donos dos mandatos políticos. O Estado Moderno

capitalista foi abertamente concebido para a defesa dos interesses privados. O interesse da população, e em

geral dos trabalhadores, foi sempre visto como um mal que destabiliza a economia e o mercado.

Em tempo de crise, a luta democrática foi para amenizar a exploração, torná-la mais legítima, como se o

capitalismo e a democracia pudessem andar de mãos dadas.

A universalização da educação, a garantia de acesso a todos, foi fundamental para a construção de uma cidadania

ampliada. Porém, a garantia de acesso à educação não conseguiu garantir uma escola inclusiva. A escola continua

a excluir um enorme contingente de alunos, só que agora, a exclusão dá-se no seu interior e não se dá mais no

acesso aos muros. A cidadania é um conceito fortemente articulado com o Estado que detém o controlo social.

Se no passado a escola era elitista, e por isso o seu interior muito homogéneo, é fácil supor que os conflitos que

existiam no seu interior eram menores e de outra ordem. Os professores não precisavam lidar com certos

choques culturais porque os discentes eram oriundos das classes sociais dos educadores, partilhavam os mesmos

códigos culturais e de valores. Também não existia muito espaço na sociedade para a aceitação dessas

diferenças, elas seriam tamponadas, ignoradas ou mesmo não contempladas. Todos seriam heterossexuais e

cristãos! Os negros deveriam obedecer aos brancos e as mulheres aos homens!

O que significa verdadeiramente a cidadania na era pós moderna?

Quem é o cidadão de hoje a quem se convencionou chamar “cidadão moderno”? O que distingue as suas

práticas? Os seus valores? A sua relação com os órgãos de soberania e com o poder em geral? O cidadão que é

resultado da criação e da evolução do estado moderno é um híbrido na sua identidade e que reivindica o seu

direito à diferença e à lealdade.

O conceito de cidadania ressurge numa nova versão, pela qual o indivíduo, detentor de direitos de participação

pública, é chamado a reencontrar-se com a esfera pública para nela participar como "legislador" efetivo.

Na era moderna, a relação entre a cidadania e a nacionalidade não só é decisiva para a cidadania no tempo

moderno, mas também reveladora do inerente espaço legal de direitos. Atualmente, surgem propostas no

sentido de alternativas aos discursos dominantes da modernidade no que diz respeito ao tema da cidadania.

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116

Fala-se da possibilidade de uma cidadania que funcione como espaço de proteção e efetivação dos direitos para

lá dos limites físicos e discursivos do Estado. Esta proposta assenta no indivíduo, independentemente do grupo

a que possa pertencer. A cidadania deverá afirmar-se singular na identidade da própria humanidade, garantida

pela presença de um direito internacional comprometido com a efetiva proteção jurídica dos direitos humanos

e pela partilha em escala planetária no sentido do dever de solidariedade para com o outro.

Refletir sobre o paradigma nacional da cidadania e nos crescentes desafios em face dos multi-perfis das

sociedades, grande diversidade cultural e étnica, em boa parte resultante dos fenómenos migratórios em que se

veem envolvidas.

O Estado lida com fenómenos decorrentes do próprio processo de globalização em que se envolve, criando, por

vezes, tensões que perturbam a sua relação com os cidadãos, com a crescente pluralidade humana, o

reposicionamento da soberania económica, jurídica, militar e política em atuais cenários de liderança multi-nível,

que chegam a limitar a ação do próprio Estado devido ao forte envolvimento com o capitalismo global. O

exercício da cidadania quer-se tanto a nível global como local, sendo esta última garante do real sucesso da

primeira.

Na atualidade, a escola precisa de equacionar a toda a hora os processos de identificação, com a finalidade de

coesão social, onde todos têm a mesma igualdade de direitos e onde se eliminam preconceitos.

As dificuldades da escola pública são hoje inúmeras: professores mal pagos, exauridos por jornadas semanais de

muitas horas, infraestruturas que impossibilitam a utilização de uma série de recursos, falta de pessoas, de salas,

enfim, uma série de coisas que tornam o dia a dia das escolas num grande desafio à sanidade mental de todos

os seus integrantes.

Uma proposta mais democrática e inclusiva na construção dos direitos humanos teria que passar por uma

postura mais construtivista na educação moral, que contemplasse as ideias de todos os envolvidos. Compreender

a cidadania como participação social e política, assim como o exercício de direitos e deveres políticos, civis e

sociais, adotando no dia adia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio pelas injustiças, respeitando os

outros e exigindo para si o mesmo respeito. Posicionar-se de forma crítica, responsável e construtiva nas

diferentes situações, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e tomar decisões coletivas,

posicionando cada um de nós contra qualquer discriminação baseada nas diferenças culturais, de classe social,

religião, raça ou etnia, sexo ou outras caraterísticas sociais ou individuais. Que cada indivíduo se perceba

integrante, independente e agente transformador, capaz de desenvolver conhecimento ajustado a si mesmo,

confiante nas suas capacidades físicas e cognitivas, de relação pessoal, ética, estética e de inserção social. Agir

com determinação e perseverança na busca do conhecimento e no exercício da cidadania. Cabe a nós

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117

professores, saber expressar e comunicar as ideias, saber utilizar e construir conhecimento, questionar a

realidade, tentando resolver problemas utilizando o pensamento lógico, a criatividade, a intuição e a capacidade

de análise crítica.

Existem autores que defendem, que a ampla conceção da cidadania assenta, independentemente das teorias

preconizadas ao longo dos tempos, em três pilares basilares: ideia de autonomia do sujeito; ideia de lealdade do

sujeito (para com a comunidade que não tem de ser restrita ao seu local nem ao espaço nacional) e, a ideia de

discernimento do sujeito (a sua capacidade de decisão). E acrescentam que é da dinâmica destes três pilares,

sempre presentes e indissociáveis, que resulta a possibilidade do sujeito se afirmar como cidadão. Uma cidadania

ampliada é fundada nos valores do respeito, da dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade,

do Estado de Direito e do respeito pelos direitos humanos. Estes valores são comuns aos estados membros,

numa sociedade caraterizada pelo pluralismo, tolerância, justiça, solidariedade e não discriminação. A cidadania

global acresce à cidadania nacional, não a substituindo. A dignidade do ser humano é inviolável. Deverá ser

respeitada e protegida.

Por isso, trabalhar os direitos humanos é de extrema importância para que a escola possa cumprir o seu objetivo

social. Estará a escola preparada para ser uma instituição que fomente e garanta os direitos humanos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ISABEL ESTRADA CRAVALHAS, “Cidadania no pensamento político contemporâneo”, Estoril, Principia, dezembro

de 2007.

IVA CARLA VIEIRA, JOSÉ HENRIQUES, OLÍMPIO CASTILHO, “Manual de direito e cidadania”, Coimbra, Almedina

2009.

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OS CENTROS DE FORMAÇÃO DE ASSOCIAÇÃO DE ESCOLAS FAZEM SENTIDO

Jorge Cardoso

Introdução

Ao longo de mais de duas décadas de existência dos Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE), têm-

se verificado que estes nem sempre foram ao encontro das expetativas dos docentes devido a múltiplos

constrangimentos, bem evidenciados nos vários estudos realizados desde 1992.

Contudo, apesar dos vários obstáculos, a relevância que sempre lhes foi atribuída justifica a sua utilidade e

sentido no atual contexto do sistema da formação contínua, sendo de destacar o seu importante percurso desde

o início.

Percurso dos centros de formação das associações de escolas

Os centros de formação de associação de escolas iniciaram o seu funcionamento no ano letivo 1992/93, após a

publicação do decreto-lei n.º 249/92, de 9 de novembro. Os centros de formação apareceram como uma

inovação organizacional no sistema educativo português a nível do “aparelho administrativo que regula as

relações entre a Administração Central e os estabelecimentos de ensino”, existindo nesta inovação aspetos

contraditórios “que dificultam a interpretação do sentido desta mudança e que condicionaram a sua aplicação

prática” (BARROSO e CANÁRIO, 1999, p. 37). Estas contradições entre a obediência à administração central, o

controlo da tutela e, por outro a autonomia, a iniciativa local e as práticas dos centros de formação, levaram

estes a gerir aquela dicotomia: centralização das decisões – iniciativa local (autonomia). Ou seja, cada CFAE é

visto não só como uma agência desconcentrada da administração central, mas também como uma emanação

das Escolas e um serviço de apoio à resolução de problemas das Escolas e dos professores (ibid., p. 48).

Neste contexto, entre 1992 e 1997, os CFAE deixaram uma imagem muito aquém das expetativas iniciais, como

demonstraram os estudos efetuados por alguns investigadores que permitiram concluir que neste período estas

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120

entidades formadoras eram “… instrumentos de execução de programas financeiros…” (ibid., p. 149), detinham

uma “… oferta formativa descontextualizada…” (RUELA, 1999, p. 265), e “… raramente se assumindo como

instituições autónomas, colegiais, com projectos próprios…” (ROLDÃO et al, 2000, p. 134), mas que “…dificilmente

poderia ter evoluído para direções substancialmente diferentes…” (SILVA, 2001, p.329).

Importância dos CFAE

Saliente-se que “a relevância atribuída …” aos CFAE “… parece estar bem patente nos treze artigos que lhes são

dedicados no decreto-lei n.º 207/96 de 2 de Novembro, o qual estabelece o Regime Jurídico da Formação

Contínua de professores do Ensino não Superior (RJFCP). Ou seja, cerca de 24% do total dos artigos inseridos neste

documento legal referem-se, exclusivamente, àquelas entidades formadoras” (CARDOSO,2000, p.133).

Um estudo efetuado no ano letivo 1999/2000 no concelho de Coimbra, com uma amostra de 711 professores,

permitiu concluir que a entidade formadora com mais competência para desenvolver ações de formação é o

CFAE (CARDOSO,2000, pp. 286-287). No mesmo sentido, um outro estudo realizado por LOPES (2011, p. 167),

que envolveu o período 1992 – 2007, permitiu concluir que os CFAE “vêem-se como a estrutura promotora da

formação contínua mais adequada, porque mais próxima das escolas, mais flexível e mais leve”.

Com a publicação da nova versão do Estatuto da Carreira Docente (Decreto-lei nº 1/98, de 2 de Janeiro) e com o

enquadramento legal da autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de ensino (Decreto-lei nº 115-

A/98, de 4 de Maio), o qual permitiu a criação dos agrupamentos de escolas, podemos afirmar que se iniciou

uma nova fase no percurso dos CFAE, reforçando-se a atividade destes em articulação com o projeto educativo

e o plano de formação das escolas associadas. Ou seja, privilegia-se a formação contextualizada centrada na

escola e nos seus profissionais (docentes, assistentes operacionais, assistentes administrativos e técnicos-

psicólogos/peritos e outros).

Nos anos de 1999, 2000 e 2001, uma equipa de investigadores do ISCTE (Instituto Superior de Ciências do

Trabalho e da Empresa) /CIS (Centro de Investigação e Intervenção Social), coordenada por CAETANO (2003)

avaliou a atividade realizada por 11 centros de formação da Península de Setúbal, tendo concluído como pontos

fortes, a implementação de redes associativas entre escolas, a iniciativa individual na escolha e decisão na

frequência de ações de formação, a informação e o modelo organizativo e gestão dos CFAE. Como pontos fracos,

o estudo destacou a gestão de recursos humanos a nível docente, a passividade da escola, a formação como

obrigação formal, a discricionariedade individual como direito e, a falta de coordenação integrada da formação

com as escolas. (cf. CAETANO, 2003, pp. 139-140).

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Para FORMOSINHO (2011), assiste-se após o ano de 2003 “ … a uma deriva da identidade…” dos CFAE para “…

agências locais de gestão da formação centralmente concebida e estruturada”.

Em 1992/1993 a rede nacional era constituída por 202 CFAE (192 no Continente) e “… eram mais de 53% das

entidades formadoras acreditadas …” (LOPES, 2009, p. 626). E, em 31 de dezembro de 2004 existiam 177 CFAE,

cerca de metade das entidades formadoras com acreditação válida em Portugal.

A partir de 2007, com o novo estatuto da carreira docente, surgiu a avaliação de desempenho docente e duas

categorias: professor e professor titular. Estas alterações foram seguidas de outras, como por exemplo, as que

foram introduzidas no RJFCP e que culminaram no pretérito dia 11 de fevereiro com a sua publicação.

Alterações introduzidas ao Regime Jurídico da Formação Contínua de Professores

Com a publicação da alteração ao estatuto da carreira docente (Decreto-Lei nº15/2007, de 19 de janeiro) foram

introduzidas alterações no RJFCP, aprovado pelo Decreto-Lei nº 249/92, de 9 de novembro, e alterado pelo

Decreto-Lei nº 207/96, de 2 de novembro, designadamente, nos seguintes aspetos:

- A adequação das ações de formação às necessidades do sistema educativo, das escolas e dos docentes

(artigo 4º, alínea d) do RJFCP);

- As ações de formação relevam para efeitos de apreciação curricular e para a progressão na carreira

docente, desde que concluídas com aproveitamento (artigo 5º, ponto um, do RJFCP);

- As ações de formação também incidem sobre formação ética e deontológica (artigo 6º, alínea d) do RJFCP);

- Os procedimentos administrativos a ter em consideração na elaboração, entrega dos certificados de

formação e na creditação das ações de formação (artigos 9º, 13º e 14º do RJFCP);

- O diretor do centro de formação é um docente com a categoria de professor titular (artigo 27º, ponto um,

do RJFCP);

- Os docentes devem escolher as ações de formação que mais se adeqúem ao seu plano de desenvolvimento

profissional, contabilizar créditos e beneficiar de dispensas de serviço não letivo para frequentá-las (artigo

33º, alíneas a), d) e e) do RJFCP).

Também, no dia 4 julho de 2008, com a publicação do Despacho nº 18 038/2008 foram definidas novas regras

para o funcionamento dos centros de formação de associações de escolas procedendo-se a uma profunda

reestruturação destes, com as seguintes consequências: extinção dos CFAE existentes até 4 de julho de 2008;

procedimentos concursais tendentes à seleção de novos diretores para os CFAE a criarem-se, desde que

cumpram referenciais mínimos (formados por 2000 docentes para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto,

1000 docentes para as áreas de fraca densidade populacional ou 1500 docentes para outras áreas), maior

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intervenção e decisão das escolas e agrupamentos de escolas, através dos respetivos presidentes dos conselhos

executivos ou diretores, na criação de novos CFAE e redução significativa no número de centros face à nova

reestruturação na rede destes.

Deste modo, verificou-se que em 31 de dezembro de 2010, para um total de 305 entidades formadoras

devidamente acreditadas existiam 102 CFAE, ou seja, cerca de 33 % e em 31 de dezembro de 2013 eram 92 CFAE,

cerca de 32 % das entidades formadoras validamente acreditadas (287). Mas esta redução foi acompanhada no

terreno com uma maior área geográfica de intervenção, com um aumento significativo de número de escolas,

professores, pessoal não docente e alunos afetos a cada CFAE. Paralelamente, aos CFAE foram legalmente

cometidas mais responsabilidades, nomeadamente, na formação do pessoal não docente das escolas associadas

e no processo de avaliação de desempenho docente (ADD) em que o diretor do CFAE assume funções de

coordenação e gestão da bolsa de avaliadores externos (despacho nº 24/2012, de 26 de outubro).

Finalmente, a recente publicação do novo RJFCP, Decreto-Lei nº 22/2014 de 11 de fevereiro, o qual define o

respetivo sistema de coordenação, administração e apoio, considera no seu artigo 11º que “os CFAE são

entidades formadoras com estatuto, competências, constituição e as regras de funcionamento estabelecidos em

decreto-lei” próprio. Por sua vez, o preâmbulo daquele enquadramento legal destaca os CFAE como estruturas

que dão “… maior inteligibilidade aos elementos estruturantes do regime jurídico da formação contínua de

docentes” e “ … em consequência do papel que deles se espera são objeto de diploma próprio”.

Conclusão

Os centros de formação de associação de escolas são estruturas organizacionais que tomam decisões a nível

individual (consultor de formação e diretor do centro); a nível organizacional (centro de formação) e a nível

grupal (comissão pedagógica, conselho de acompanhamento de gestão administrativo-financeira). Todos estes

níveis de tomada de decisão permitem aos CFAE desempenhar o seu principal papel que é o de gerir a formação

contínua.

A importância e utilidade dos CFAE podem ser sinteticamente analisadas através do esquema em «Vê» da figura

1, que mostra os aspetos do domínio concetual (filosofia; teorias; princípios e conceitos) e os aspetos do domínio

metodológico (registos; transformações, juízos cognitivos e juízos de valor) que justificam o sentido da relevância

destas entidades formadoras no contexto atual da formação contínua. Entre os ramos esquerdo e direito do

«Vê» existe interação.

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123

FIG. 1 – SÍNTESE SOBRE A IMPORTÂNCIA, UTLIDADE E SENTDO DOS CFAE.

Vê de Gowin

DOMÍNIO CONCETUAL QUESTÃO-CHAVE DOMÍNIO METODOLÓGICO FILOSOFIA

Os CFAE têm como missão gerir a formação contínua (FC)do pessoal docente e não docente por forma a concretizar os princípios e objetivos deste Sistema.

Os CFAE têm como missão que a liderança dos seusdiretores torne possível que as expetativas dosprofessores e do pessoal não docente, face à FC, sejamcoerentes com a sua motivação para a adesão; com a suaparticipação ativa no campo das mudanças; com asatisfação pessoal e profissional; com a mudança deatitudes e de dinâmicas; com a sua decisão na carreira epara a segurança nas práticas.

TEORIAS: Motivação - MASLOW Participação – BAJOIT Satisfação - HERZBERG Mudança - THURLER e M. ALVES Decisão - SIMON; LAROCHE Liderança - BOLIVARPRINCÍPIOS: Os CFAE devem adequar-se às necessidades e prioridades

de formação das escolas e dos docentes Os CFAE devem contextualizar os projetos de formação e

da oferta formativa; Os CFAE devem ter autonomia científico-pedagógica e

adequar a oferta à procura de formação.

Os CFAE devem fomentar o intercâmbio e a divulgaçãode experiências pedagógicas;

Qual a importância, utilidade e sentido dos

CFAE?

JUÍZOS DE VALOR: Os CFAE são as entidades formadoras com mais

competência para implementar o sistema da formaçãocontínua.

Os CFAE fazem sentido porque estão mais próximos dasescolas, dos professores e do pessoal não docentepromovendo uma FC consentânea com a motivação doformando, a respetiva participação, a sua satisfaçãopessoal e profissional, para a aceitação da mudança e paraa decisão nas suas práticas.

Os CFAE são importantes e úteis como verdadeiros centrosde recursos de apoio às escolas, aos professores, aopessoal não docente e restante comunidade educativa.

JUÍZOS COGNITIVOS: Um formando satisfeito está mais recetivo à mudança e à

participação, e decisão na sua formação contínua. Os CFAE podem incentivar à participação dos

intervenientes no processo educacional, no campo dasdecisões.

Os CFAE podem facilitar a tomada de decisão nasdinâmicas individuais.

A liderança dos diretores dos CFAE e a motivação pessoale profissional dos formandos ajudam a formação contínuaa concretizar os seus objetivos.

Os CFAE são estruturas organizacionais que fazem sentidono contexto da formação contínua.

A formação contínua e os CFAE ajudam a construir e aconcretizar a mudança desejada.

TRANSFORMAÇÕES: Análise das fichas de leitura. Artigo sobre a utilidade e sentido dos CFAE. Novo RJFCP.

REGlSTOS: Fichas de leitura com os conceitos-chave da formação

contínua e CFAE. Decreto-Lei nº 22/2014, de 11/02. Enquadramento legal da formação contínua.

Investir na mudança significa que os CFAE tomemdecisões consentâneas com aquela pretensão, procurando ir ao encontro dos principais destinatários –docentes e não docentes.

CONCEITOS: Motivação; Participação; Satisfação; Mudança; Decisão; Lideranças; Formação contínua.

OBJETO DO ESTUDO:

Análise da importância, utilidade e sentido dos CFAE.

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124

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, J. e CANÁRIO, R. (1999), Centros de Formação das Associações de Escolas: das expectativas às

realidades, Lisboa, I.I.E.

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CARDOSO, J. M. R., (2000), As percepções dos Professores sobre as Acções de Formação, no actual modelo de

Formação Contínua, Dissertação de Mestrado em Administração e Gestão Educacional, Lisboa, Universidade

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CARDOSO, J. M. R., (2003), As percepções dos Professores sobre as Acções de Formação, no actual Modelo de

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organização, Lisboa, Ministério da Educação – Instituto de Inovação Educacional.

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