educaÇÃo do campo em lentes multifocais: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf ·...

38
EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: POLÍTICAS, FORMAÇÃO E PRÁTICAS... A educação do campo, fruto das pressões dos movimentos sociais, tem permeado as pautas dos debates educacionais no Brasil principalmente no que tange às reivindicações de melhores condições de vida, de educação, de sobrevivência e de acesso aos bens culturais da população brasileira campesina. No intuito de fomentar essas discussões, serão apresentados neste painel, artigos resultantes de pesquisas desenvolvidas por mestres, doutoranda e doutora que dialogam sobre políticas públicas, formação e práticas docentes de professores que atuam em escolas do campo, no estado de Mato Grosso. As investigações tiveram como objetivo analisar e refletir sobre as influências das atuais políticas públicas para a educação do campo, principalmente as que se referem a formação de seus educadores, e se estas políticas têm impactado nas práticas de seus professores nas salas de aula. De abordagem qualitativa as pesquisas procuraram por meio de entrevistas, narrativas, análise documental, observação e estudos bibliográficos responder às seguintes indagações: Quais são os impactos das políticas públicas na gestão e no trabalho docentes nas escolas do campo? A formação dos professores que atuam nas escolas do campo tem influenciado em suas práticas em sala de aula? As práticas educacionais e as políticas de formação dos professores que atuam na educação do campo têm respondido às expectativas de aprendizagem da comunidade do campo? As investigações trouxeram como sujeitos, gestores, professores, pais e alunos das escolas do campo. Os resultados apontaram que em Mato Grosso repete-se a desvalorização da Educação do Campo do cenário nacional, uma vez que as políticas pensadas e escritas não chegaram ao campo, ainda. Palavras-chave: Educação do Campo. Políticas Públicas. Formação e Práticas Docente. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10898 ISSN 2177-336X

Upload: phungkhue

Post on 10-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: POLÍTICAS,

FORMAÇÃO E PRÁTICAS...

A educação do campo, fruto das pressões dos movimentos sociais, tem permeado as

pautas dos debates educacionais no Brasil principalmente no que tange às

reivindicações de melhores condições de vida, de educação, de sobrevivência e de

acesso aos bens culturais da população brasileira campesina. No intuito de fomentar

essas discussões, serão apresentados neste painel, artigos resultantes de pesquisas

desenvolvidas por mestres, doutoranda e doutora que dialogam sobre políticas públicas,

formação e práticas docentes de professores que atuam em escolas do campo, no estado

de Mato Grosso. As investigações tiveram como objetivo analisar e refletir sobre as

influências das atuais políticas públicas para a educação do campo, principalmente as

que se referem a formação de seus educadores, e se estas políticas têm impactado nas

práticas de seus professores nas salas de aula. De abordagem qualitativa as pesquisas

procuraram por meio de entrevistas, narrativas, análise documental, observação e

estudos bibliográficos responder às seguintes indagações: Quais são os impactos das

políticas públicas na gestão e no trabalho docentes nas escolas do campo? A formação

dos professores que atuam nas escolas do campo tem influenciado em suas práticas em

sala de aula? As práticas educacionais e as políticas de formação dos professores que

atuam na educação do campo têm respondido às expectativas de aprendizagem da

comunidade do campo? As investigações trouxeram como sujeitos, gestores,

professores, pais e alunos das escolas do campo. Os resultados apontaram que em Mato

Grosso repete-se a desvalorização da Educação do Campo do cenário nacional, uma vez

que as políticas pensadas e escritas não chegaram ao campo, ainda.

Palavras-chave: Educação do Campo. Políticas Públicas. Formação e Práticas Docente.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10898ISSN 2177-336X

Page 2: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

2

PRÁTICAS DE ENSINO NA ESCOLA NO/DO CAMPO E POSSIBILIDADES

DE PESQUISA AÇÃO

Josenilde Paniago/SEMEC /MT [email protected]

Rosenilde Nogueira Paniago/IFGOIANO [email protected]

Resumo: A investigação que ora se apresenta foi realizada em uma escola do campo em

Mato Grosso com a intenção de buscar novas alternativas para a prática de ensino na

escola, utilizando a pesquisa ação como ferramenta pedagógica. De abordagem

qualitativa, foi desenvolvida por meio do estudo de referenciais que discutem a pesquisa

na formação, na prática docente, educação no/do campo e, da realização de projetos de

ensino e pesquisas pelos dez professores participantes, a partir dos espaços verdes

horta/viveiro e recomposição pelo sistema agroflorestal. Utilizou-se como instrumentos

de coleta de dados a observação em diário de campo e entrevistas com os dez

professores para avaliar os resultados. O trabalho possibilitou estreitar as relações entre

a escola e a comunidade educativa por meio das ações que envolveram as famílias e

ressignificar a prática de ensino por meio do trabalho com a pesquisa ação a partir de

situações vinculadas a problemáticas socioambientais do contexto em que vivem as

crianças, os jovens, os adultos, enfim as famílias do campo. Os resultados apontaram

ainda, a necessidade da formação contínua teórica-metodológica, o envolvimento

coletivo dos docentes e políticas públicas que favoreçam condições adequadas de

trabalho e valorização profissional para novas práticas de ensino na escola no/do campo

pelo viés da pesquisa. Não obstante, realça-se que o interesse dos professores para se

envolverem em práticas colaborativas de pesquisa na prática docente é outro elemento

fundamental para que esta atividade se concretize no ambiente escolar. Enfim, falar em

pesquisa na prática docente sem um cenário que a favoreça é mesmo uma pura falácia.

Palavras-chave: Prática de ensino no campo. Pesquisa ação. Vida no campo

Considerações iniciais

Esta investigação teve como objetivo buscar novas alternativas para a prática de

ensino na escola no/do campo utilizando a pesquisa como ferramenta pedagógica, a

partir do que os professores consideram como desafios enfrentados na atualidade. No

caso da escola no do campo, os desafios decorreram tal como de outras escolas, dos

acelerados avanços da ciência, da tecnologia, dos meios de informação e comunicação

(TIC), das novas relações que se estabelecem no cotidiano da escola, fruto da

diversidade, das relações singulares e heterogênea, como também das situações

singulares destas escolas que se traduzem pelo trabalho com turmas de diversos níveis,

da dificuldade de se concretizar a relação teoria e prática entre os conhecimentos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10899ISSN 2177-336X

Page 3: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

3

indicados pelas diretrizes curriculares nacionais, dos sistemas de ensinos locais com as

questões socioculturais, ambientais, econômicas do cotidiano da comunidade educativa

escolar.

Realçamos que compreendemos a comunidade do campo na acepção de Caldart

(2004) ao se referir aos povos do campo, como a mulher, o homem, as famílias que

moram e sobrevivem, nos diferentes ambientes e ecossistemas que compõem esse

espaço. Ao utilizarmos o termo escola no/do campo, nos referimos a uma escola

localizada no campo, com uma proposta pedagógica específica que atenda aos aspectos

socioculturais, ambientais, econômico, as histórias de vida de quem vive neste espaço.

Não obstante, devemos ter em conta que a escola no/do campo, requer propostas

pedagógicas diferenciadas, metodologias e estratégias didáticas que contemplem e

valorizem esta diversidade, de tal forma como aponta as Diretrizes Operacionais para a

Educação Básica (2002) em seu Art. 5º: “As propostas pedagógicas das escolas do

campo [...] contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais,

culturais políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia”.

Entretanto, a inclusão no planejamento escolar de elementos da vivência do

aluno, era para nós, um grande desafio e, nessa trama complexa, a pesquisa no cotidiano

escolar se configurou como uma possibilidade importante para o trabalho com o

processo ensino e aprendizagem do aluno do campo, como alternativa de mediação

entre os conteúdos conceituais e os seus saberes, enfim, como uma estratégia de

inclusão de elementos da vivência do cotidiano das crianças, do jovem, do adulto, de

forma a tornar a sua aprendizagem mais significativa.

O exposto justifica a realização da investigação em uma escola localizada no

campo, interior de Mato Grosso com a participação de 10 professores de diferentes

áreas de conhecimento, direcionada pelas seguintes questões: como trabalhar o processo

ensino e aprendizagem da escola do campo utilizando a pesquisa como ferramenta

pedagógica de ensino? Como envolver os professores em um processo coletivo de

pesquisa no cotidiano da escola do campo?

Metodologia

No estudo de abordagem qualitativa, procuramos envolver os professores desde

o início das atividades, tendo como princípio, de que o trabalho coletivo teria mais

significado, na acepção indicada por Alarcão (2011) ao defender o trabalho coletivo e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10900ISSN 2177-336X

Page 4: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

4

uma escola reflexiva como comunidade de aprendizagem e local onde se produz

conhecimento acerca da educação. A ação inicial foi uma fundamentação teórica-

conceitual, nos momentos de formação continuada, durante os anos 2008 e 2009,

assentada em referenciais na literatura brasileira, que discutem a pesquisa na formação e

prática docente e educação no/do campo, e, em um segundo momento, adotando uma

metodologia baseada na pesquisa ação, na perspectiva apontada por Alarcão (2011), em

que a “pesquisa ação é uma metodologia de intervenção social cientificamente apoiada e

desenrola-se segundo ciclos de planificação, ação, observação”, incentivamos os

professores juntamente com os alunos a desenvolverem trabalhos por meio de projetos e

pesquisas na escola.

Utilizamos como instrumentos de coleta de dados a observação em diário de

campo e entrevistas com os professores para avaliar o resultado do trabalho. Serão

apresentadas neste texto, a fala de apenas 3 professores que serão identificados como

P1, P2 e P3, professoras que dentre o grupo, apresentaram pesquisas em eventos

científicos. A professora P1 e P2, pedagogas, trabalhavam com o 4º e 3º ano do Ensino

Fundamental respectivamente; a professora P3, licenciada em Ciências da Natureza e

Matemática na modalidade de EAD, atuava com o ensino de Ciências nas turmas dos

anos finais do Ensino Fundamental.

A interpretação e análise dos dados coletados por meio das entrevistas, foi feita

por meio de análise de conteúdo, o que Bardin (2013, 199) afirma ser: “ [...] um

conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos

sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores

(quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimento relativo às condições

de produção/recepção destas mensagens”.

As práticas de ensino por meio de projetos e pesquisa ação na escola no/do campo

A pesquisa na formação e no trabalho é apontada por vários estudiosos como

importante e necessária, tais como Diniz-Pereira (2002), Demo (1998) Ludke (2001),

André (2001), Alarcão (2011), Zeichner (1993) dentre outros. É também um assunto

incluído em programas de formação docente, como apresentado no Parecer CNE/CP

009/2001 que trata das Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial

[...] a pesquisa constitui um instrumento de ensino e um conteúdo de

aprendizagem na formação, especialmente importante para a análise

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10901ISSN 2177-336X

Page 5: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

5

dos contextos em que se inserem as situações cotidianas da escola,

para construção de conhecimentos que ela demanda e para a

compreensão da própria implicação na tarefa de educar [...] (Parecer

CNE/CP 009/2001, p.36).

Nos estudos realizados encontramos em Schön (1983) uma fértil referência da

valorização dos profissionais da educação básica como produtores de conhecimento,

com fortes contributos para a disseminação desta perspectiva formativa, ao propor uma

epistemologia da prática a partir dos elementos: a reflexão-na-acção, a reflexão-sobre-a-

acção e o conhecimento-na-acção. Alarcão (2011) nos ajuda a explicar este processo, ao

dizer que, na reflexão na ação ocorre um diálogo na ação sem interrompê-la, embora

com certo afastamento, mesmo que breve. Já a reflexão sobre a ação implica em um

distanciamento da ação para sua análise. Agora, para que a reflexão tenha valor

epistêmico, com a produção de conhecimentos para serem utilizados em outras

situações, é importante que “esse processo seja acompanhado por uma meta-reflexão

sistematizadora das aprendizagens ocorridas. É o processo de metarreflexão de que nos

fala Schön, ao pôr em destaque a relevância da reflexão sobre a reflexão na ação” (ibid,

p.54). Reconhecemos, entretanto, as limitações das proposições de Schön (1983) em

não considerar a perspectiva da coletiva e avançamos nesta proposta para um trabalho

colaborativo na comunidade escolar por meio da pesquisa ação. Ancoramos também

nossas discussões em Zeichner (1993) ao propor uma perspectiva formativa em que a

prática reflexiva é a orientada pela pesquisa. Esse autor tem-se dedicado em seus

estudos e experiência ao trabalho com a pesquisa-ação como alternativa para preparar

professores que possam atuar ativamente no contexto em que convivem.

Na discussão que permeia a pesquisa na formação e prática docente, diferentes

termos são usados, para identificar essa prática, conforme Diniz-Pereira [...] (2002,

p.12), “pesquisa-ação, investigação na ação, pesquisa colaborativa e práxis

emancipatória”. Outros termos são dados à pesquisa como recurso didático na escola,

apontados por Preti:

[...] Pedagogia de projetos, que visaria, a “re-significação do espaço

escolar, transformando-o em um espaço vivo de interações, aberto ao

real e às suas múltiplas dimensões” (LEITE, 1996). Outros preferem

falar em Projetos de Trabalho, como Hernandez e Ventura, (1998),

uma proposta vinculada à perspectiva do conhecimento globalizado e

relacional ou em Projetos Curriculares Integrados (TORRES

SANTOMÉ, 1998) ou, simplesmente, em Pesquisa na escola

(BAGNO, 2000), (PRETI, 2002, p.9).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10902ISSN 2177-336X

Page 6: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

6

Independente dos termos, processos e resultados, a nossa pretensão foi mobilizar

o trabalho com projetos e de pesquisa como uma ferramenta que permitisse articular os

saberes necessários para a solução dos problemas do ensino e aprendizagem de nossos

alunos e da comunidade educativa escolar, de modo a possibilitar um processo de ação,

análise, reflexão e intervenção na realidade. Desta forma, inicialmente dialogamos e

definimos a temática que nortearia o trabalho coletivo. Suscitamos os professores a

levantarem problemas que orientariam o trabalho, sendo apontando como tema

problema, na perspectiva socioambiental, a degradação da nascente que abastece a

localidade e a necessidade da construção de uma horta na escola para que a teoria fosse

concretizada de forma viva no ambiente escolar e que houvesse a incorporação dos

saberes dos alunos. Optamos então pela construção de um viveiro/horta na escola e a

recomposição da nascente com sistema de Agrofloresta. Segundo Armando (2003), a

Agrofloresta (SAF) é a um sistema de produção sustentável, que resulta em maior

segurança alimentar e economia, tanto para os agricultores, como para os consumidores.

A escola, campo empírico da pesquisa, possuía em 2008, 260 alunos,

distribuídos da Educação Infantil ao Ensino Médio, oriundos de dois projetos de

assentamentos, localizados em um município a aproximadamente 830 Km da capital de

Mato Grosso, Cuiabá. Alunos inseridos em uma realidade sociocultural, ambiental

diversificada, alguns com uma situação econômica favorável, outros com dificuldades

financeiras, de sobrevivência face aos desafios de residirem em propriedades de 60 a 70

há, com alto índice de improdutividade, solo árido, pedregoso e com falta de água

acessível ao consumo familiar e dos animais.

Nosso trabalho se situou, portanto, em um contexto de mobilização para discutir

a educação no/do campo e construção de novas práticas de ensino, fazendo parte de uma

luta por políticas públicas que atendam a realidade do campo, presente não somente em

Mato Grosso, mas em todo o Brasil, conforme o documento final da II conferência por

uma Educação do Campo (2004):

A nossa caminhada se enraíza nos anos 60 do século passado, quando

movimentos sociais, sindicais e pastorais passaram a desempenhar

papel determinante na formação política de lideranças do campo e na

luta pela reivindicação de direitos no acesso a terra, água, crédito

diferenciado, saúde, educação, moradia, entre outras. Fomos então

construindo novas práticas pedagógicas através da educação popular

que motivou o surgimento de diferentes movimentos de educação no

campo, nos diversos estados do país (2004, p.4).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10903ISSN 2177-336X

Page 7: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

7

A discussão acerca da Educação no/do Campo chegou ao grupo de professores

da escola, campo empírico da presente pesquisa, no início de 2008, quando Paniago

(2008) apresenta sua dissertação de mestrado, fala dos princípios da educação do

campo, da pesquisa no cotidiano escolar e motiva a discussão na escola. Imbuídas,

portanto, do desejo de realizar novas práticas de ensino, e suscitar questionamentos e

reflexões acerca da realidade sociocultural e ambiental da comunidade educativa,

iniciamos a construção da horta em 2008. Dialogicamente foi construído um projeto

mãe/guarda chuva intitulado “Pedagogia na horta escolar” e, a partir dele, os 10

professores da escola, se engajaram em frentes de trabalho por meio de projetos. Para

ilustrar, os citaremos com respectivos objetivos: 1)Plantas Medicinais Caseiras –

investigar as plantas mais consumidas pela comunidade, verificar seu uso e cultivá-las;

2)Projeto Alimentação Alternativa e equilibrada - investigar o uso de alimentos

alternativos na comunidade e incentivar seu consumo; 3) Projeto Horta Orgânica

Escolar- estudar alternativas de combate aos invasores, realizar compostagem e

estimular o cultivo. Ao falar sobre o projeto Horta Escolar Orgânica a professora P2, se

manifesta:

Tivemos uma especial atenção pelo cultivo da horta orgânica na

escola. Todas as séries zelam de um a dois canteiros e cultivam mudas

no viveiro sob a orientação dos professores. Mas no trabalho com a

minha turma, além de cuidar do canteiro, trabalhar o ensino a partir da

horta, procuramos estudar, investigar maneiras de combater as pragas

com alternativas naturais e fazer a compostagem na escola.

Praticamente os alunos comeram legumes e verduras fresquinhas

durante este ano, além de que distribuímos para a comunidade a

produção excedente. (P2, entrevista 10/2009).

A professora P2, demonstra que o trabalho na horta não se ateve à mera

manutenção, para, além disto, preocupou-se com uma pedagogia na horta escolar,

envolvendo a aprendizagem de conteúdos conceituais, questões pertinentes ao uso das

substituições de agrotóxicos por produtos naturais, utilização das sobras da merenda

escolar por meio da compostagem e partilha do excedente da horta à família dos alunos.

Foi possível observar que a professora visitava as famílias durante a realização do

projeto, como sinaliza nosso diário de campo:

Meados de maio do ano de 2008, em visita a 3 famílias de alunos do

3º ano com a professora da turma, pudemos verificar que o trabalho

com a horta na escola, transcende os seus muros e atinge a

comunidade, na medida, em que as mães foram enfáticas em

afirmarem que estavam plantando a horta em casa por influência de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10904ISSN 2177-336X

Page 8: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

8

seus filhos. Por estarem plantando na escola, achavam que também

tinham que cultivar em casa (Diário de Campo, 10/05/2008).

Conforme se observa, as intencionalidades pedagógicas do trabalho se estendiam

para além dos espaços físicos da escola, numa relação, análoga ao que pontua Brandão

(2005, p.25)“ Ao estender o” meu jardim” para além dos limites de minha propriedade,

eu estendi foi a minha própria vida e foi o meu sentido de vida até limites onde ela

própria sai de seus muros e se alarga a todo o mundo e a toda a vida que há nele [...]”.

Em 2009 foi construído o viveiro, dado continuidade ao trabalho da horta e,

replanejado o projeto mãe que foi intitulado “Pedagogia na Agrofloresta”. A partir dele

foram desenvolvidos os seguintes projetos com respectivos objetivos: 1)Sabores do

cerrado - investigar o valor nutritivo de algumas espécies nativas do cerrado; 2)

Medicina artesanal do Cerrado - investigar a utilidade medicinal e artesanal de espécies

nativas do cerrado; 3) Cantinho alegre na escola - criação de espaços ornamentais na

escola por alunos da Educação Infantil; 4) Recuperação de nascente com Sistema de

Agrofloresta - realizar a recuperação de uma nascente com plantas cultivadas no

viveiro. Os trabalhos foram sistematizados em relatórios e apresentados em mostras

culturais e cientificas, realizadas na comunidade educativa e município. Ao falar sobre

as atividades realizadas envolvendo o cerrado, as professoras afirmaram que:

No viveiro nós cultivamos algumas mudas de espécies ornamentais e

nativas. As nativas foram de sementes moles que não podem ser

conservadas, tipo mamacadela, cagaita e mangaba, pois as de

sementes duras, nós preferimos usar direto no plantio ao invés de fazer

muda no viveiro. Com a realização deste projeto que teve como

objetivo melhorar a qualidade do cardápio escolar procuramos

inicialmente buscar alternativas, estratégias para que os alunos e seus

pais percebessem a necessidade de terem uma alimentação saudável e

equilibrada sem deixar de lado o cuidado e o zelo pelo meio ambiente,

pois no projeto procuramos valorizar as riquezas do cerrado ( P1,

entrevista 11/2009).

Por essa ser uma região de assentamento agrário onde predomina o

cerrado, que está muito degradado [...] inclusive também as matas

ciliares e nascentes, nós vimos à necessidade de encontrarmos uma

forma de recuperar e preservar o cerrado de modo sustentável, ou seja,

uma alternativa em que as famílias de agricultores possam plantar para

o seu sustento e conservar a natureza [...] percebemos a necessidade

de fazermos um estudo sobre o pequizeiro, como alternativa

sustentável de produção, levando em conta também a necessidade dos

assentados se manterem economicamente (P3, entrevista 10/2009)

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10905ISSN 2177-336X

Page 9: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

9

As professoras sinalizam em seus depoimentos, as intencionalidades do papel da

escola, questões para além do ensino de conhecimentos conceituais, para conhecimentos

da vida, questões socioculturais, econômicas e ambientais, na medida, em que, além do

trabalho pedagógico vinculado ao ensino com a coleta dos frutos do cerrado, plantio de

mudas no viveiro.

A professora P1 se preocupa com a alimentação das crianças e respectivas

famílias e, para tanto, realiza oficinas de arte culinária na escola para o trabalho de

cardápios diferenciados com os frutos do cerrado. Nossos registros evidenciam o

trabalho da professora P1“[...] durante uma aula para coleta de frutos a professora

discutiu com os alunos a intenções da aula [...] destacou que não se tratava apenas de

um passeio, mas que coletariam sementes e frutos para estudarem, verificarem a época

certa da colheita e aproveitarem a polpa para a merenda da escola (Diário de Campo,

08/2008). Importa ainda salientarmos que a professora P1 sistematizou os trabalhos

realizados e apresentou os resultados em eventos científicos. Não obstante, recebeu

convites para realização de oficinas dos frutos do cerrado em municípios circunvizinhos

ao seu.

A professora P3, manifesta preocupação quanto a trabalho com o meio do aluno,

de questões econômicas de produção sustentável no campo, ao trazer o estudo das

utilidades do pequi como forma de manter o cerrado em pé em substituição da cultura

tradicional da derrubada do cerrado e matas para o cultivo de roças e criação de

bovinos. A professora P3 sob a nossa orientação teve seus alunos entre os vencedores da

Mostra Nacional de Ciências e Tecnologia em 2009, demonstrando que é possível fazer

pesquisa na escola do campo. Os professores participantes da investigação, ao falarem

sobre o trabalho com projeto e pesquisa na escola, assim manifestaram:

Trabalhar com projetos e com pesquisa significa aumentar nossos

conhecimentos, usar novas metodologias de ensino e aprendizagem

(P1, entrevista 11/2009).

O trabalho com pesquisa em sala de aula é importante, por oferecer ao

aluno uma nova metodologia, uma nova maneira de aprender,

buscando novos conhecimentos e promovendo a formação de um

aluno crítico, participativo e ativo (P2, entrevista 10/2009).

O trabalho com pesquisa é importante, pois ajuda a inovar a prática

pedagógica. Porque ao trabalhar a realidade do aluno, eles se sentem

mais motivados, tornando as aulas mais prazerosas (P3, entrevista

10/2009).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10906ISSN 2177-336X

Page 10: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

10

As falas dos entrevistados sinalizam o olhar sobre o trabalho e estabelecem uma

relação entre o trabalho com projetos de ensino e pesquisa e a motivação do aluno

quanto à aprendizagem, tornando-a, mais significativa e prazerosa. Por se tratar do

trabalho com questões alusivas ao seu meio, o aluno do campo se envolve e encontra

sentido na aprendizagem dos conteúdos conceituais. Ocorre então uma educação, um

ensino e aprendizagem, conforme aponta Arroyo (2004), ao defender os princípios da

escola do campo:

Escola sim, mas vinculada ao mundo do trabalho, da cultura, ao

mundo da produção, vinculada à luta pela terra, ao projeto popular de

desenvolvimento do campo. Nós temos que recuperar os vínculos

entre educação e terra, trabalho, produção, vida, cotidiano de

existência; aí é que está o educativo (ARROYO 2004, p. 77).

Destacamos que nos estudos teórico-conceituais, durante a formação continuada,

trabalhamos os conceitos de projeto, na acepção de Pimenta e Lima (2011), em que

projetos são ações planejadas, que podem gerar invenções na realidade educativa e, por

conseguinte, se partir de um rigor metodológico, teórico-conceitual, pode gerar a

produção de conhecimento, caminho exigido pela pesquisa científica.

Nesta perspectiva, para além da produção do conhecimento, pretendíamos com a

realização dos projetos nos espaços verdes – horta/viveiro/jardim e recomposição com

sistema agroflorestal – sensibilizar os professores quanto à vinculação do trabalho em

sala de aula com as questões do campo, da vida social, da sustentabilidade, fato

expresso na fala de P1 ao falar sobre esta questão: “conseguimos ampliar nossos

conhecimentos para melhorar a nossa relação com a natureza e meios de

sustentabilidade” e P3 quando fala sobre este aspecto enumera as possibilidades do

trabalho com projetos e pesquisa na escola do campo: aquisição de novos

conhecimentos, trabalhar em conjunto com a comunidade, conhecer e respeitar a

natureza, buscar novas alternativas de sobrevivência sustentável”. Neste sentido,

corroboram Paniago e Rocha (2012, p.409), ao realizarem pesquisa focando o ensino da

Matemática, na referida escola, afirmam que:

A construção da horta e do viveiro foi uma ação extremamente

significativa, pois envolveu a comunidade escolar. Esses espaços,

além de terem sido, um laboratório vivo para as aulas de Matemática,

foram utilizados pelos demais educadores nas outras áreas de

conhecimento.

A realização das práticas de ensino nos espaços verdes horta/viveiro/jardim e

recomposição de nascente, possibilitaram o contato com diversos tipos de sementes,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10907ISSN 2177-336X

Page 11: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

11

saberes e suscitou reflexão acerca dos aspectos biológicos e ecológicos do cerrado. Para,

além disso, foi possível trabalhar várias áreas disciplinares, valorizar os saberes dos

alunos do campo e, desenvolver pesquisa no cotidiano da escola, na medida, em que, de

alguns projetos, foram geradas pesquisas. Em 2008, dois alunos do 9º Ensino

Fundamental apresentaram a pesquisa intitulada “Agrofloresta e matemática: qual a

relação? Com a intenção de discutir o que poderiam aprender de matemática em um

sistema de agroflorestal; em 2009 outros dois alunos apresentaram a pesquisa intitulada

“O pequi: carne do cerrado para o pequeno produtor rural” com o objetivo de refletir

sobre a produção sustentável do Pequi na região. Os dois trabalhos são vencedores na

Mostra Nacional de Ciências e Tecnologia. Reafirmando que conforme Demo (1998,

p.44):

Pesquisar não é somente produzir conhecimentos, é, sobretudo

aprender em sentido criativo. É possível aprender escutando aulas,

tomando nota, mas aprende-se de verdade, quando se parte para a

elaboração própria, motivando o surgimento do pesquisador que

aprende construindo.

Os espaços viveiro, horta, jardim e a recomposição com sistema de agroflorestal,

se tornaram espaços vivos para a realização das aulas, estudo, análise, reflexão e

intervenção, ou seja, um processo de ação, reflexão na e sobre a ação, na perspectiva

apontada por Schön (1983). Assim, os professores colaborativamente experimentaram

várias situações de ensinar, aprender a elaborar e desenvolver projetos de ensino e

pesquisa a partir dos espaços verdes – viveiro, horta, jardim e recomposição com

sistema de agrofloresta.

Considerações finais

O trabalho com projetos de ensino e a prática de pesquisa na escola, são

alternativas valiosas para que os professores sejam questionadores, re(construam) novas

práticas de ensino e, suscitem nos alunos o prazer em problematizar a realidade vivida.

No caso da nossa investigação, o trabalho nos espaços verdes – horta/viveiro e

recomposição pelo sistema agroflorestal – foram fundamentais por se tratar de espaços,

situações vividas pelos alunos do campo e vinculadas à sustentabilidade. Sendo,

portanto, uma discussão atual e necessária para o homem, a mulher, o jovem, enfim as

famílias do campo. No caso dos professores do campo, oportuniza uma reflexão a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10908ISSN 2177-336X

Page 12: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

12

respeito da escolha deste ou daquele conteúdo, da formação de pessoas com

posicionamento crítico e reflexivo e sobre o seu papel na construção de sua própria

identidade profissional e da identidade do povo de sua comunidade.

Entretanto, apesar, das possibilidades do trabalho com a pesquisa na escola

serem abundantes, os desafios também o são, alguns deles vinculados a formação

teórico-metodológica e das políticas públicas que não garante condições de trabalho

para os professores, condicionam suas práticas de ensino e conhecimentos a serem

trabalhados às políticas de avaliação local e nacional (prova Brasil, IDEB), dentre

outras.

REFERÊNCIAS

ALARCÃO, I. Professores reflexivos em uma escola reflexiva. 8 ed. São Paulo:

Cortez, 2011.

ARROYO, Miguel. G. A Educação Básica e o Movimento Social do Campo. In:

ARROYO, M.G, CALDART, R.S., MOLINA, M.C (orgs.) Por uma Educação do

Campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

ANDRÉ, M. (org). O papel da pesquisa na formação e na prática dos professores.

Campinas, SP: Papirus, 2001.

ARMANDO, S. M.; BUENO, Y. M.; CAVALCANTE, C. H. Agrofloresta para

agricultura familiar. Circular técnica da Embrapa, Brasília, n. 16, dezembro, 2003.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal. Edições 70, LDA. 2013.

_____. Conselho Pleno. Parecer CNE/CP 009/2001 de 09 de maio de 2001. Institui as

Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação Básica,

em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Disponível em

http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/009.pdf>.Acesso: 20/06/2009.

BRASIL. Resolução cne/ceb1, de 3 de abril de 2002. Institui as Diretrizes para a

Educação Básica nas Escolas do Campo. Disponível

emfile:///C:/Users/rose/Downloads/rceb001_02.pdf. Acesso em: 10/04/2014.

BRASIL. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

Referências para uma política nacional de educação do campo: caderno de subsídios.

Coordenação: Marise Nogueira Ramos, Telma Maria Moreira, Clarice Aparecida dos

Santos – 2ed. – Brasília; MEC, SECAD, 2004.

BRANDÃO, C. R. Comunidades Aprendentes. In: JUNIOR, L. F.(org). Encontros e

caminhos: formação de educadoras (es) ambientais e coletivos educadores. Brasília:

MMA. Diretoria de Educação Ambiental, 2005. 358 p.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10909ISSN 2177-336X

Page 13: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

13

CALDART, Roseli. A Escola do Campo em Movimento. Campo. In: ARROYO, M.G,

CALDART, R.S., MOLINA, M.C (orgs.) Por uma Educação do Campo. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2004.

DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. 3. ed. Campinas. São Paulo. Autores

Associados, 1998.

DINIZ-PEREIRA, Julio. A pesquisa dos educadores como estratégia para construção de

modelos críticos de formação docente. In: PEREIRA, J. E e ZEINCHNER, K. M. A

pesquisa na formação e no trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 11

– 42.

LUDKE, Menga. O professor e a pesquisa. Campinas, São Paulo: Papirus, 2001.

PANIAGO, R; ROCHA, S, A. Etnomatemática e Educação do Campo: caminhos para a

aprendizagem significativa da pesquisa na formação profissional. In: GHEDIN, E (org.).

Educação do Campo: Epistemologia e práticas. São Paulo: Cortez, 2012, p 395-410.

PANIAGO, Rosenilde. Professores do Campo e a pesquisa no cotidiano escolar em

Mato Grosso.134 folhas. Dissertação (mestrado em Educação) - IE/UFMT, Cuiabá,

2008.

PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e Docência. 6 ed., São Paulo: Cortez, 2011.

PRETI, O. Seminário Temático: um exercício de teorização sobre a prática educativa.

Cuiabá: NEAD/UFMT, maio de 2002.

SCHON, D. A. The reflective practitioner: How professional Think in action. EUA:

Basic Books, 1983.

ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores: Ideias e práticas.

Lisboa: Educa, 1993.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10910ISSN 2177-336X

Page 14: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

14

EGRESSAS DA LICENCIATURA SOB A LENTE DA COMUNIDADE DO

CAMPO

Suely Maria Pires/SEDUC/OBEDUC

[email protected]

Rosimeire Cardoso Correia/ SEMED

[email protected]

Eder Carlos Cardoso Diniz/IFRO

[email protected]

Resumo: O presente trabalho foi realizado com o apoio do Programa Observatório da

Educação/CAPES/INEP/SECADI, tendo em vista ser pesquisa que compõe o projeto

maior do OBEDUC. Este estudo tem como objetivo analisar os impactos das políticas

educacionais existentes no Estado de Mato Grosso, que tenham como centralidade a

formação de professores do e para o campo, investigando que percepções possuem,

gestão, pais e alunos em relação à docência de egressas das licenciaturas que atuam nas

escolas do campo. As questões que nortearam esse estudo foram: Em que contexto essas

egressas chegou à escola? Em quais políticas educacionais de formação se apoiaram?

Essas egressas receberam orientação ou formação sobre como trabalhar em uma escola

do campo? As práticas dessas egressas atendem às propostas da educação do campo?

Esta pesquisa é de natureza qualitativa, teve como instrumento de coleta de dados às

entrevistas narrativas. O lócus da pesquisa foi uma escola estadual do campo, localizada

em um distrito no município de Rondonópolis Estado de Mato Grosso. A pesquisa

trouxe como sujeitos o gestor da escola lócus da pesquisa, dois pais e dois alunos do

ensino médio. O foco das análises são as práticas de duas professoras egressas na

educação do campo que vivem e moram na zona urbana que atuam em escolas do

campo na rede estadual de ensino. Os resultados apontaram que a ausência de uma

política de formação dos professores egressos das várias licenciaturas que se destinam a

docência no campo tem interferido para a não efetivação de uma docência de sentido

para os sujeitos que vivem, trabalham e estudam no campo.

Palavras chave: Educação do campo. Políticas Públicas. Formação de professores.

Introdução

A Educação do Campo é uma modalidade que tem ganhado espaço nos debates

educacionais nos últimos anos. Ela vem sendo escrita, discutida e debatida por teóricos,

estudiosos e pesquisadores na busca por um conjunto de políticas públicas significativas

que visem à formação humana dos sujeitos do campo em sua totalidade.

Essas discussões compreendem a Educação do Campo, como afirma Caldart

(2008) como àquela que se volta aos trabalhadores e trabalhadoras do campo, os quais

por sua vez, há muito tempo vem sendo vítimas no processo de exclusão e

empobrecimento no Brasil, por uma educação que lhes foi oferecida ao longo do tempo

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10911ISSN 2177-336X

Page 15: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

15

sem corresponder a sua realidade e que segundo Caldart (2008, p. 50) deve ser pautada

em “uma tradição que oriente a pensar a educação colada à vida real, suas contradições,

sua historicidade; a pretender educar os sujeitos para um trabalho não alienado; para

intervir nas circunstâncias objetivas que produzem o humano.”

Entretanto, apesar da significativa inserção da Educação do Campo nas

discussões educacionais, pouco se tem debatido sobre um ponto fulcral para a qualidade

desta, a formação de seus professores, pois, diante das atuais políticas para essa

modalidade no Brasil, há de se pensar uma formação específica para os docentes que

irão atuar no campo, seja este camponês ou da cidade.

Estudos têm demostrado o despreparo de professores oriundos das cidades que

vão trabalhar no campo. Embora o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra

(MST) defenda que o professor do campo tenha que pertencer a este, isto ainda não se

faz presente na realidade das escolas inseridas nesse meio, uma vez que não há uma

política que assegure ao professor do/no campo a permanência em seu vínculo, que lhe

garanta uma estabilidade só pelo fato de pertencer ao campo.

Ante o exposto, o objetivo desse artigo é analisar os impactos das políticas

educacionais existentes no Estado, que tenham como centralidade a formação de

professores do e para o campo investigando que percepções possuem a gestão, os pais e

os alunos em relação à docência de egressas das licenciaturas que atuam nas escolas do

campo no Estado de Mato Grosso. O presente trabalho foi realizado com o apoio do

Programa Observatório da Educação/CAPES/INEP/SECADI e fez parte de uma

pesquisa de mestrado concluída que investigou a formação de professores do e para o

campo e sua fixação, incluindo egressas-iniciantes, bem como professores experientes

que atuam na escola do campo, no sentido de analisar como as políticas para a educação

do campo as (des)assistem em sua formação. As questões que nortearam este estudo

foram: Em que contexto essas egressas chegaram à escola? Em quais políticas

educacionais de formação se apoiaram? Essas egressas receberam orientação ou

formação sobre como trabalhar em uma escola do campo? As práticas dessas egressas

atendem às propostas da educação do campo? Esta pesquisa é de natureza qualitativa,

tendo como foco de análise as entrevistas narrativas. A pesquisa trouxe como sujeitos o

gestor da escola lócus da pesquisa, dois pais e dois alunos do ensino médio. O foco das

análises são as práticas de duas professoras egressas na educação do campo que vivem e

moram na zona urbana, mas que atuam em escolas do campo na rede estadual de ensino.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10912ISSN 2177-336X

Page 16: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

16

A investigação procurou por meio das entrevistas narrativas apresentar as

percepções da gestão, pais e alunos acerca da formação e compromisso dessas egressas

para atuarem nas escolas do campo.

Os caminhos percorridos

O estudo ao qual nos propomos a desenvolver é de abordagem qualitativa, e tem

como instrumento de coleta de dados a entrevista narrativa. A escolha pela abordagem

qualitativa se deu pelo fato de que uma de suas características é que os pesquisadores

que adotam esse tipo de pesquisa estão mais preocupados com o processo que envolve

os fatos estudados do que simplesmente com os resultados ou produto de sua pesquisa.

Essa peculiaridade da pesquisa qualitativa é a que melhor contempla os estudos

desenvolvidos na área educacional conforme esclarece Lüdke e André (1986, p. 13) esse

tipo de pesquisa “vêm ganhando crescente aceitação na área de educação, devido

principalmente ao seu potencial para estudar as questões relacionadas à escola. ”

A escolha pela entrevista narrativa como instrumento de coleta de dados

apoiou-se conforme Jovchelovitch e Bauer (2003, p. 93) na ideia básica de “reconstruir

acontecimentos sociais a partir da perspectiva dos informantes, tão diretamente quanto

possível.” Os autores salientam que, “as narrativas são infinitas em sua variedade, e nós

as encontramos em todo lugar”. Ainda ressaltam que “através da narrativa, as pessoas

lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram

possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem

a vida individual e social (2003 p. 91). ”

A investigação se desenvolveu em uma escola pública estadual do campo

localizada em um distrito no município de Rondonópolis Estado de Mato Grosso. Por

estar localizada bem próxima a cidade a mesma tem sido procurada constantemente por

professores em trânsito que fazem concurso para o norte do Estado e conseguem através

das políticas generalistas e de arranjos políticos se removerem para esta escola onde

ficam até conseguirem vaga em escolas em suas cidades. O critério de escolha por essa

escola se deu pelo fato dos grandes transtornos que alguns desses professores têm

causado na aprendizagem dos alunos do campo, uma vez que os mesmos ingressam

nessa escola sem formação nenhuma para atuarem nessa modalidade de educação.

Adotamos como sujeitos da pesquisa o gestor da escola, dois pais de alunos e

dois alunos do ensino médio. Tendo em vista a preservação das identidades dos mesmos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10913ISSN 2177-336X

Page 17: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

17

os identificaremos como: GESTOR, pai do aluno do ensino fundamental (P1), mãe do

aluno do ensino médio (M2), aluno do ensino médio (A1) e aluna do ensino médio A2).

A intenção da investigação é analisar por meio da percepção desses sujeitos se as

políticas generalistas, a formação e o compromisso dessas egressas (egressas das

licenciaturas que atuam nas escolas do campo) têm impactado na aprendizagem dos

alunos do campo. Assim, trazemos para a discussão as narrativas desses sujeitos sobre a

docência dessas egressas. Para tal finalidade, tomamos como ponto de partida o que eles

destacam sobre a atuação profissional dessas egressas que moram na cidade e trabalham

no campo e que esperam uma vaga na cidade para pedirem nova remoção.

Para a intepretação dos dados, apoiar-nos-emos em eixos de análise, quais

sejam: Política pública para a docência do/no campo; Formação docente da Educação

do/no Campo e Práticas docentes da/na escola do campo.

A docência no campo...

As análises apresentadas neste artigo procurou proporcionar uma reflexão acerca

da formação para a docência no campo. Os dados foram extraídos de entrevistas

narrativas baseadas nas percepções de gestão, pais e alunos em relação à docência de

egressas das licenciaturas que atuam nas escolas do campo. As entrevistas foram

interpretadas em eixos de análises divididos em três momentos, sendo o primeiro o que

trata das Políticas Públicas para a docência do/no campo; o segundo que trata da

formação de professores que atuam nas escolas do/no campo e o terceiro eixo refere-se

às práticas educativas desses professores. Lembrando ao leitor desse artigo que ao se

referir as “egressas” estamos nos dirigindo a professores de diversas licenciaturas que

ingressam nas escolas do campo, que trabalham pela primeira vez nessa modalidade de

educação.

Passamos então neste primeiro momento as análises do primeiro eixo: Políticas

públicas para a docência do/no campo. Quando questionados sobre as políticas

públicas para a atuação nas escolas do campo os sujeitos assim responderam:

[...] eu desconheço qualquer política que nos favoreça enquanto

professor e morador do campo. Essas remoções que a escola vem

recebendo ultimamente só tem causado transtorno nas escolas do

campo. (Entrevista - GESTOR, abril 2014).

A professora nova tem causado muitos problemas na escola. Meu

filho não está aprendendo nada. Cada dia é um substituto. Eu

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10914ISSN 2177-336X

Page 18: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

18

enquanto mãe, estou cobrando da assessoria pedagógica uma solução.

Pois sei que foram eles que enviaram essa novata para cá. Não

podemos ficar de braços cruzados diante dessa bagunça causada por

essa professora sem compromisso. (Entrevista - M2, abril 2014).

Nossa esse ano tá tenso! Depois de mais de um mês que tinha

começado as aulas veio uma professora para nossa escola removida,

mas até agora ela não deu nenhum dia de aula, ou ficamos sem aula ou

colocam pessoas que só tem o ensino médio para dar aulas pra nós não

estou aprendendo nada. (Entrevista - A1 abril 2014).

O povo da escola quando não consegue ninguém para substituir as

professoras que faltam, colocam a gente na sala de informática e

tascam filme. Qualquer um, o último foi de terror, se chamavam

atividade paranormal. O pior é que nem gosto desse tipo de filme, mas

somos obrigados a assistir (Entrevista - A2 abril 2014).

O relato das entrevistas evidencia o transtorno que a ausência de formação e as

constantes faltas das egressas têm causado na escola nos últimos dias. Uma das egressas

(matemática) chegou à escola dois meses depois que as aulas tinham iniciado, removida

de uma escola urbana. Sua remoção aconteceu através de um arranjo político fato esse

ainda bem corriqueiro nas escolas do campo o que Arroyo (2007, p.14) chama de “jogo

de barganha política” burlando as leis para colocar seus protegidos em cargos. Nas

escolas urbanas é mais difícil esse tipo de barganha, então sobra para as escolas do

campo. O fato é que desde sua posse no dia 17 de março até o momento que essa

entrevista foi colhida já em abril a professora só apareceu na escola para apresentar

atestado médico para sair de licença.

Fatos como estes evidenciam o descaso do poder público com a qualidade da

educação oferecida aos alunos do campo, pois a assessoria pedagógica que representa o

estado mesmo sabendo que nas comunidades do campo raramente possuem professores

habilitados mandam para as escolas do campo professores que estão causando

transtornos na cidade retirando das salas de aulas professores habilitados,

compromissados com a educação do campo. Isso só comprova o que é colocado por

Arroyo quando argumenta que:

Em nossa história domina a imagem de que a escola no campo tem

que ser apenas a escolinha rural das primeiras letras. A escolinha cai

não cai, onde uma professora que quase não sabe ler ensina alguém a

não saber quase ler. (ARROYO, 1999, p. 11).

Ou seja, para os alunos do campo qualquer professor serve, nem precisa ter

formação específica na área onde atua muito menos ensinar de acordo com a realidade a

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10915ISSN 2177-336X

Page 19: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

19

qual o aluno está inserido. No passado a educação na zona rural foi estimulada para

controlar o êxodo rural e manter no campo sujeitos que poderiam provocar “desordem”

nas cidades. Hoje professores que tumultuam as escolas da cidade recebem o respaldo

da Lei para irem para as escolas do campo, pois para o poder público ainda somos um

povo ignorante e atrasado sendo assim para ensinar nossos filhos qualquer um serve.

Isso segundo Arroyo (2007, p. 160) “[...] põe em prática política para a sua negação (do

campo) e para a inserção da infância, adolescência e juventude nos centros e escolas

urbanas, para a sua socialização nos valores e na cultura urbanos. ”

Ainda nesse eixo temos as entrevistas dos pais que alegam que:

Hoje eu acredito que a escola não tá atendendo completamente a

proposta inicial por que têm as diferenças também educação do campo

e o que é proposto pela Seduc. Às vezes o pessoal do movimento

implanta uma coisa... Mas vem alguma portaria da Seduc que num

concordo então impede. [..]. Assim a Seduc às vezes atrapalha o

crescimento da educação do campo. (Entrevista - P1, abril 2014).

Hoje os professores já não são todos do campo por causa dos

concursos então vêm professores das cidades e têm os professores da

comunidade também. Como a gente não pode impedir os professores

da cidade de trabalhar na nossa escola eu acredito que esses

professores devam participar de mais qualificação, por que geralmente

se vem um professor que nunca esteve no campo ele não vai entender

a nossa realidade. ( Entrevista - M2, abril 2014).

O relato dos sujeitos demostram o quanto as políticas generalistas, impostas pelo

Estado sob a sombra da igualdade tem prejudicado o projeto de educação do campo no

país o que continua privando os sujeitos do campo ao acesso a uma educação de

qualidade garantida pelo estado brasileiro. Isso segundo Arroyo se deve ao fato de que:

Não temos uma tradição que pense em políticas focadas, nem

afirmativas para coletivos específicos. Nosso pensamento e nossa

prática supõem que as políticas devam ser universalistas ou

generalistas, válidas para todos, sem distinção. Nossa tradição inspira-

se em uma visão generalista de direitos, de cidadania, de educação, de

igualdade que ignora diferenças de território (campo, por exemplo),

etnia, raça, gênero, classe. (ARROYO, 2007, p. 160).

Outro fato levantado pelo sujeito M2 é sobre o egresso de professores da zona

urbana nas escolas do campo por meio de concursos públicos que também é uma

política generalista que não leva em conta a especificidade da atuação docente no

campo. A criação de um concurso específico para as escolas do campo constitui-se hoje

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10916ISSN 2177-336X

Page 20: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

20

numa das pautas principais defendidas pelo MST, como deixou muito claro o

coordenador estadual do Comitê Estadual de Educação do Campo num encontro com

professores do campo em uma escola do/no campo no interior de Mato Grosso. Isto

também faz parte de uma das propostas da 1ª Conferência Nacional por uma Educação

Básica do Campo.

É por isso que o MST defende uma política de firmação do professor morador

do campo nessas escolas. Vander, coordenador estadual do Comitê Estadual de

Educação do Campo alegou em uma fala pública: “Não é que somos contra a inserção

do professor da cidade no campo, é que a história já nos mostrou que esses professores

por não conhecerem a nossa realidade, nossa causa não adquirem responsabilidades com

a causa do movimento”. (Dados extraídos da comunicação oral do coordenador estadual

do Comitê de Educação do Campo - no curso A conjuntura atual da Educação do

Campo no Estado de Mato Grosso. Rondonópolis 22 de junho 2013).

No intuito de verificar se a formação das egressas tem impactado na qualidade

da educação oferecida aos sujeitos do campo passamos agora para a análise do segundo

eixo – Formação docente da Educação do/no Campo. Para saber se as egressas

possuíam alguma formação para atuar na escola do campo questionei ao gestor, se no

momento de posse as mesmas demostraram algum conhecimento do que se tratava a

educação do campo e o mesmo respondeu que foi perceptível que as mesmas nunca

tinham ouvido falar sobre educação do campo. Os pais ao serem questionados assim

responderam:

Os professores da cidade que vinha trabalhar na escola não tinham

conhecimento nenhum sobre escola do campo [...] não foi oferecido a

esses professores nenhuma formação sobre educação do campo [...] O

estudo que eles receberam era para trabalhar na cidade e não aqui na

roça. Poucos professores que vem da cidade demostram compromisso

com a aprendizagem dos alunos do campo por que a maioria está aqui

só de passagem (Entrevista - P1, abril 2014).

O professor que vem lá da cidade ele vem da cidade já com o

pensamento de dar ali as quatro ou seis aulas dele e já voltar pra

cidade não tem interesse em permanecer na comunidade [...] ele não

tem aquele compromisso com a escola do campo por que ele tem

outro compromisso na cidade. Já o professor daqui não, ele vive aqui

faz parte da comunidade então está sempre presente junto de nós.

(Entrevista - P2, abril 2014).

Nossa, as diferenças entre as aulas dos professores daqui são muito

diferentes das dos professores da cidade. Os professores daqui dão

aulas de campo, falam de nossa realidade, fazem perguntas pra gente.

Já os professores da cidade ficam toda hora olhando no relógio, dão

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10917ISSN 2177-336X

Page 21: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

21

aulas o tempo todo sentado, não nos auxiliam só fazem cobrança.

(Entrevista - A1 abril 2014).

Assim, já tivemos professores de fora, que perguntavam as coisas pra

gente sabe? Tipo o que nós gostaríamos de estudar, mas estes últimos

além de faltarem muito, principalmente essa nova professora de

matemática, mal conversa com a gente só sabe fazer cobrança. A

professora de matemática mesmo passou quase um mês sem dar aulas

e quando voltou já lascou uma prova, sem que tivéssemos estudado

nada daquilo que ela pediu na prova. Foi um arraso todo mundo tirou

zero. Deu um tremendo BO. (Entrevista – A2, abril 2014).

Observa-se nos depoimentos acima o despreparo das egressas para a docência no

campo. O fato de não possuírem uma formação para a docência no campo somado ao

de não morar na comunidade, não conhecer a realidade onde trabalham traz obstáculos à

qualidade do ensino oferecido aos sujeitos do campo. Esse fato, segundo Arroyo (2007,

p.169) prejudica a aprendizagem dos alunos do campo visto que “A maioria das

educadoras e educadores vai, cada dia, da cidade à escola rural e de lá volta a seu lugar,

a cidade, a sua cultura urbana. Consequentemente, nem têm suas raízes na cultura do

campo, nem criam raízes. ”

O fato de estarem nas escolas do campo só de passagem esperando por uma vaga

em sua cidade faz com que essas egressas não tenham compromisso com sua formação

como aponta o depoimento abaixo:

Cem por cento das egressas do último concurso não fizeram e nem

fazem sala de educador. Isso demonstra seu descompromisso com sua

formação para atuarem na educação do campo. No final do ano

passado uma dessas egressas ao preencher sua ficha de avaliação do

estágio probatório colocou no espaço reservado a sala de educador

100% de presenças, sendo que a mesma só participou de dois

encontros. Apesar da sala de educador ser uma política pública não há

nenhuma Lei que obrigue ao professor a frequentá-la. Assim sendo

quem frequenta a sala de educador acaba sendo o professor que mora

no campo, pois as egressas da cidade não têm tempo para essa

formação (Entrevista - Gestão, entrevista abril 2014).

Finalizando esse eixo de acordo com os dados das entrevistas acima se observa o

descaso dos órgãos públicos e dos próprios professores para com a formação dos

docentes que atuam nas escolas do campo. As políticas públicas universais e

generalistas que enviam ao campo um profissional da cidade, não se preocupam em

nenhum instante em oferecer a estes sequer uma formação inicial sobre como trabalhar

na realidade do campo. Alguns professores por sua vez também não se interessam pela

formação para a atuação do campo, pois esperam ansiosos por suas remoções para as

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10918ISSN 2177-336X

Page 22: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

22

cidades. No meio desse descaso todo estão às vítimas (os alunos) dessa negligência

assegurada pelas atuais e perversas políticas para as escolas do campo. (Grifo meu)

No terceiro e último eixo Práticas docentes da/na escola do campo - os

sujeitos relatam sobre as percepções que possuem sobre as práticas educativas das

egressas e seus impactos na qualidade da educação oferecida aos alunos do campo.

Nossa a professora de matemática até agora não deu as caras na

escola. A de português fica dentro da sala sentada e no facebook

quando não dá filme. Aulas mesmo só temos com os professores daqui

(Entrevista - A1, abril 2014).

Os professores que vêm da cidade não conhecem a gente. Muitas

vezes nós é que temos de ensinar alguns professores sobre as coisas

que gostamos de estudar (Entrevista – A2, abril 2014).

Pelo fato dos professores serem da cidade e trabalhar o modo deles

ensinar da cidade com os alunos, só serviu para afastá-los ainda mais

do campo [...] Esse modo de ensinar dos professores da cidade

atrapalhou muito a permanência deles aqui (Entrevista - P1, abril

2014).

O professor que é do campo ele é mais voltado pras coisa do campo,

agora aquele que é da cidade que não teve acesso ao campo aí já é

diferente, geralmente ele quer ensinar as coisas mais da cidade [...].

Como ele está acostumado lá com as coisas da cidade então ele quer

interagir mais com as coisas da cidade, se ele não tem o conhecimento

com o campo não tem como se interagir com a educação do campo. O

professor que está no campo ele é do campo não tem a dificuldade que

o professor da cidade tem pra chegar ao campo. O professor que é do

campo se interage mais com a comunidade por às vezes o professor

que mora aqui não tá junto de nós só na escola, às vezes tem uma

reunião ele está presente em outros momentos da comunidade.

(Entrevista - M2, abril 2014).

As práticas dos professores da cidade são totalmente urbanizadas. Não

existe uma lei que obrigue esse professor a desenvolver práticas

educacionais relativas ao campo. Esses professores demonstram um

imenso descompromisso com a qualidade da educação oferecida aos

alunos do campo, mal trabalham os conteúdos dos livros didáticos que

por sua vez também são bem descontextualizados da realidade do

campo. (Entrevista - GESTOR, abril 2014)

Os relatos acima demostram que as práticas educativas das egressas em

análise, são urbanas, descontextualizadas, fora da realidade dos educandos. Essa não

formação e o desinteresse para atuar na educação do campo são vistos por alguns

sujeitos como falta de compromisso do professor da cidade com a realidade do campo.

Para Caldart (2006, p.141) o educador do campo deve possuir um “vínculo direto com a

cultura camponesa” Só assim segundo a autora ”buscam um compromisso de trabalho

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10919ISSN 2177-336X

Page 23: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

23

com os sujeitos do campo, tanto nas escolas como na formação em diferentes espaços,

criados e dinamizados pela organização” (Caldart, 2006, p. 141).

A educação do campo precisa de professores que estejam inseridos na realidade

do campo como afirma Silva et.al (2006 p.145) “Ser educador dos movimentos sociais

do campo exige estar inserido em alguma atividade no movimento, se faz necessário

participar da vida da organização, no tempo real”. O professor para atuar no campo seja

este morador do campo ou da cidade, precisa assumir um compromisso de trabalho com

os educandos do campo. Precisa desenvolver uma educação contextualizada, pois na

Educação do Campo é o professor que deve se adaptar a metodologia de trabalho no

campo e não o aluno se adaptar a metodologia de ensino do professor.

Algumas considerações

Buscou-se com este estudo compreender com o auxílio da entrevista narrativa,

que percepções possuem gestão, pais e alunos em relação às práticas docentes de

egressas que atuam nas escolas do campo no Estado de Mato Grosso.

Cabe ainda neste estudo uma observação: não se trata nesse estudo de denegrir a

imagem do professor urbano, pois, alguns professores da cidade que vão para o campo,

tentam na medida de suas possibilidades desenvolverem uma docência voltada à

realidade na qual a escola está inserida.

Procuramos com essa investigação levantar os impactos que as políticas

generalizadas do Estado têm causado nas escolas do campo no que se refere à formação

desses docentes, tendo em vista que as secretarias de educação não se preocupam em

propiciar aos professores urbanos que são enviados ao campo, formação específica para

atuarem nessa área, sequer lhes questionam se possuem noção do que é trabalhar numa

escola do campo, impossibilitando assim uma maior identificação com sua nova

realidade.

Foi possível observar por meio dos relatos, que os arranjos políticos e a ausência

de uma política de formação dos professores egressos no campo têm se tornado um

gargalo na efetivação de uma política de qualidade para a população do campo.

Diante de tal perversidade sustentada pela ausência de políticas públicas

específicas para a docência no campo, fica muito difícil oferecer aos sujeitos que lá

vivem uma educação de qualidade, de sentido, pois estas escolas convivem diariamente

com uma intensa rotatividade de professores urbanos, que nada conhecem dessa

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10920ISSN 2177-336X

Page 24: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

24

realidade, oferecendo aos alunos do campo uma educação descontextualizada,

urbanizada, sem sentido.

As políticas públicas voltadas à formação e à permanência dos educadores que

vivem e trabalham nas escolas no/do campo são ainda escassas. É por isso que o MST

defende políticas de formação específicas, para os professores do campo assim como

suas permanências nele. Tais políticas devem ser efetivas assumidas pelo Estado, de

modo que afirmem uma visão positiva e não negativa do campo, isto é, políticas de

formação de professores do campo articuladas às políticas públicas que garantam

direitos a esses povos e que busquem afirmar as especificidades da vida no campo.

Enfim, ficou bem evidente nas análises das entrevistas que, uma das principais

fragilidades para a efetivação da política de educação do campo no Brasil diz respeito à

atenção dada à formação dos seus educadores a qual deveria, sobretudo, ser pautada na

realidade dos profissionais do campo e na dos seus educandos, para que ambos

pudessem ter acesso a uma educação de qualidade, que correspondesse às necessidades

dos sujeitos que vivem e se formam no campo. Historicamente o campo brasileiro e os

seus sujeitos foram sempre privados de seus direitos políticos, principalmente os

educacionais. Os mesmos modelos de educação foram ao longo do tempo sendo

implantados de cima para baixo sem levar em conta as especificidades dessa população

que sempre viu seus filhos serem educados fora da realidade de seu meio, uma educação

urbana sem sentido para os sujeitos do campo completamente desconexa de sua

cotidianidade. O pior disso tudo é o demostrado nas falas dos sujeitos que apesar de

todas as conquistas para a Educação do Campo no Brasil, ela continua com a ausência

de políticas específicas, sendo pensada ainda como uma educação para e não dos

sujeitos do campo.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel Gonzales. A educação básica e o movimento social do campo. In: A

educação básica e o movimento social do campo: Por uma educação básica do

campo. ARROYO, Miguel Gonzales; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brasília;

Vozes 1999.

______, Miguel. Políticas De Formação De Educadores (As) Do Campo. Cad. Cedes,

Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007. Disponível em

<http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 30 jul. 2012.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10921ISSN 2177-336X

Page 25: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

25

CALDART, Roseli Salete, PALUDO, Conceição, DOLL, Johannes. (organizadores). -

Como se formam os sujeitos do campo? Idosos, adultos, jovens, crianças e

educadores. Brasília: PRONERA : NEAD, 2006.

_______ Sobre Educação do Campo. In: SANTOS, C. A. (Org.). Por Uma Educação

do Campo: Campo-Políticas Públicas-Educação. 1 ed. Brasília: INCRA/MDA, 2008,

v. 7, p.67-86.

BAUER, Martin, W;JOVCHELOVITCH, Sandra. Entrevista Narrativa. In: Pesquisa

Qualitativa com Texto, Imagem e Som: Um Manual Prático/ Martin W. Bauer;

George Gaskell (editores); Tradução de Pedrinho A. Guareschi – Petrópolis RJ: Vozes,

2. ed. 2003.

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens

qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

MST. CADERNOS DE EDUCAÇÃO. Princípios da Educação no MST. Porto. Alegre,

n.8, 1997.

______. Caderno de Formação n. 18: O Que Queremos Com as Escolas dos

Assentamentos 2a. ed 1993

______. Dossiê MST escola: documentos e estudos 1990-2001. Edição especial.

S/Cidade: S/E. Caderno de educação, n°13, ITERRA, 2005.

ROCHA, Simone Albuquerque. Formação de Professores em Mato Grosso:

Trajetória de três décadas (1977-2007). Cuiabá: Edu UFMT, 2010.

SILVA, Alexandra Borba da. Formação de educadores e educadoras do e no campo. In:

Caldart, Roseli Salete, Paludo, Conceição, Doll, Johannes. Como se formam os

sujeitos do campo? Idosos, adultos, jovens, crianças e educadores. / Roseli Salete

Caldart, Conceição Paludo, Johannes Doll (organizadores). - Brasília: PRONERA :

NEAD, 2006

ZEICHNER,Kenneth M. Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito

estruturante na formação docente. Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 103, p. 535-554,

maio/ago. 2008. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10922ISSN 2177-336X

Page 26: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

26

FORMAÇÃO DE EDUCADORES DO CAMPO EM MATO GROSSO NAS

DÉCADAS DE 1980-1990

Heloisa Salles Gentil/UNEMAT

[email protected]

Ilma Ferreira Machado/UNEMAT [email protected]

Resumo: Neste artigo analisamos como se configurava o processo de formação de

professores das escolas do campo do estado de Mato Grosso nas décadas de 1980 e

1990, procurando, concomitantemente identificar em que perspectiva os principais

programas/projetos de formação existentes à época atendiam às especificidades de uma

educação do campo. Utilizamos uma metodologia de pesquisa qualitativa, tendo como

instrumentos a identificação e estudo de dissertações, teses e artigos encontrados sobre a

formação de professores em Mato Grosso; a análise de documentos como Resoluções e

Pareceres, colhidos junto ao Conselho Estadual de Educação (CEE); e entrevistas, que

foram realizadas com vinte e cinco professores que atuaram em sala de aula, assessoria

ou gestão pedagógica, contemplando as cinco mesorregiões do estado de Mato Grosso:

sudeste, centro-sul, norte, nordeste e sudoeste. O estudo valeu-se de aportes teóricos

produzidos a partir de pesquisas sobre formação de professores e educação do campo.

Foram encontrados poucos registros específicos sobre formação de professores do

campo no período em questão. Concluímos que houve no estado de Mato Grosso uma

oferta significativa de cursos de formação de professores nas décadas de 1980 e 1990,

pautados em diferentes perspectivas teórico metodológicas, entre os quais destacamos

os projetos Logos II, Homem Natureza, Inajá e Geração. Tais cursos foram ofertados

pela Secretaria de Estado de Educação, em parceria com municípios e/ou universidades;

muitos foram demandados pelos educadores e comunidades. Embora a maioria dos

cursos não abrangesse as especificidades do campo, contribuiu, mesmo em meio a

muitas dificuldades e contradições, para a habilitação e processo de profissionalização

de professores “leigos” do campo.

Palavras chave: Formação de professores. Educação do campo. Projetos.

Introdução

Desde a década de 1980, período de redemocratização do país, vêm se

ampliando os desafios e as exigências em relação à formação de professores: o processo

de ampliação de vagas para os anos iniciais de escolarização levou ao aumento do

número de estudantes e de escolas, o que gerou a necessidade de mais professores e, por

conseguinte, mais cursos de formação. Contudo, cabe indagar se os professores do

campo estavam incluídos nesse processo, uma vez que a história da educação no Brasil

é marcada por processos de dominação e exclusão dos sujeitos do campo. Durante

muito tempo a escola rural foi apenas um apêndice da escola urbana e funcionou nos

mesmos moldes, mas em piores condições, visto que só recebia o que sobrava da

cidade.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10923ISSN 2177-336X

Page 27: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

27

Os anos de 1990 foram marcados pelos efeitos da promulgação da Constituição

Federal de 1988 e, especialmente, da LDB 9394/96, que determina um prazo para a

formação em nível superior de todos os professores da educação básica no país. Além

disso, aprovou-se a Lei 9424/96 (FUNDEF), que, com intuito de valorizar a profissão,

garantiu recursos para a formação, entre outras ações. Legislações que colocaram em

destaque a formação dos professores

Com a realização de diversas discussões e ações, a educação do campo ganha

visibilidade no início dos anos de 1990. A aprovação do Programa Nacional de

Educação na Reforma Agrária (PRONERA), em 1995, o I ENERA - Encontro Nacional

de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária, em 1997 e a I Conferência Nacional

“Por uma Educação Básica do Campo”, realizada em 1998, podem ser considerados

marcos dessa trajetória (FERNANDES; MOLINA 1999). Essas discussões foram

acompanhadas de perto por educadores do estado de Mato Grosso, palco de inúmeros

conflitos de terra, tendo se constituído, nesse período, diversos acampamentos rurais,

vinculados aos movimentos sociais do campo. A pauta de reivindicação dos acampados,

além da terra, incluía, direito à educação, saúde, etc., pensado no âmbito de um projeto

de campo e sociedade antagônico ao projeto do capital.

Portanto, cabe considerar que, no período caracterizado neste artigo, educação

do campo era um conceito ainda em construção. Até então as políticas de educação se

pautavam no paradigma urbano ou apresentavam uma ideia generalista, conforme diz

Arroyo (2007). As lutas dos movimentos sociais populares por terra, trabalho e

educação levam ao rompimento com o paradigma de Educação Rural, configurando, a

partir da década de 2000, a concepção de uma Educação do/no Campo (LIMA, 2013).

O objetivo desse artigo é analisar como se configurava o processo de formação

de professores das escolas do campo do estado de Mato Grosso nas décadas de 1980 e

1990, identificando os principais programas/projetos de formação existentes nessa

época e em que perspectiva atendiam às especificidades do campo. A metodologia de

pesquisa consistiu-se de análise de documentos legais, estudo de dissertações, teses e

artigos científicos, além de entrevistas com 25 sujeitos, sendo 5 de cada mesorregião de

Mato Grosso (Norte, Nordeste, Sudoeste, Centro sul e Sudeste), que atuaram como

educadores ou formadores no período em questão, convidados para participar da

pesquisa, por meio de escolha intencional. Neste artigo, os sujeitos estão identificados

por letras seguidas da região de atuação.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10924ISSN 2177-336X

Page 28: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

28

Projetos de formação de professores em Mato Grosso nas décadas de 1980 e 1990

Preti e Alonso (1997) realizaram um diagnóstico da situação educacional do

Estado de Mato Grosso na década de 1990. Em relação à titulação dos docentes os

dados indicavam:

- Em 1991, eram 28.458 professores que atuavam no primeiro e

segundo graus da rede pública além de 2.627 na pré-escola.

- Dos 20.657 que atuavam no 1º grau, 69,1% não possuíam formação

de 3º grau ou universitária.

- Na zona rural, essa situação era ainda mais grave: de um total de

4.403 professores que atuavam nas escolas municipais, 62,2% não

tinham nem sequer o 2 º grau, 33,3% tinham formação de 2º grau e

somente 4,59% tinham formação universitária (PRETTI; ALONSO,

1997, p.40).

Segundo Rocha (2010), a habilitação dos professores aumentou

significativamente nos últimos vinte anos e muito se deve a projetos e programas

implementados a partir de políticas educacionais do Estado, o que é corroborado pelos

depoimentos de professores e documentos analisados nesta pesquisa. Pode-se afirmar

que houve no estado uma oferta significativa de cursos de formação de professores nas

décadas de 1980 e 1990, ainda que houvesse descontinuidade entre governos e

interrupção de alguns projetos, como afirma Rocha (2010). Rocha destaca, ainda, que na

década de 1990, a formação em nível universitário cresceu, especialmente a partir do

PIQD (Programa Interinstitucional de Qualificação Docente), em vigor de 1995 a 2011,

envolvendo UFMT, UNEMAT e SEDUC, cujo objetivo era a profissionalização

docente, uma entre as metas do governo do Estado de Mato Grosso 1995-2006.

Nesta pesquisa, foram encontrados poucos registros específicos acerca dos

professores da zona rural no período em foco. Estes aparecem incluídos nos números

totais apresentados, como por exemplo, quando Rocha (2010, p.69) afirma que havia

aproximadamente 3.200 professores leigos no estado na década de 1990.

Os cursos neste período foram ofertados em diferentes modalidades: regulares,

organizados em funcionamento diário nas escolas em diversos municípios do estado;

supletivos modulares semipresenciais - caso do Projeto Logos II, e cursos em

modalidade diferenciada - caso dos projetos Inajá, Homem Natureza, GerAção e

Tucum. Esses cursos

[...] foram idealizados para Formação de Professores Leigos, em nível

de 2º grau, para atuarem no 1º grau, da 1ª a 4ª séries. E se

enquadravam na modalidade Suplência, [...] de modo a atender a

realidade das regiões contempladas, assim como possibilitar ao

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10925ISSN 2177-336X

Page 29: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

29

professor/cursista ausentar-se de seu trabalho para frequentar um

curso regular, sem causar prejuízos à sua comunidade escolar

(STRENTZKE, 2011, p.49).

A seguir, apresentamos uma síntese das informações encontradas a respeito de

três dos cursos citados anteriormente, conforme ordem cronológica de ocorrência,

especialmente com base em textos já publicados e nas entrevistas realizadas, visando

caracterizá-los segundo público, objetivos, fundamentos e/ou metodologia e relação

com o campo. Não trataremos do Projeto Tucum, considerando a especificidade da

educação indígena.

O Projeto Logos II foi um curso de magistério supletivo, modular e à distância

que visava formar professores em nível de segundo grau, implementado em vários

estados do Brasil. De acordo com André e Candau (1984), os resultados dos quatro

estados participantes da fase experimental foram considerados encorajadores pelo MEC:

85% de aprovação e 15% de desistência. E Silva (2006) afirma que este Projeto,

financiado pelo MEC e realizado em parceria com estados e municípios, atendeu em

torno de 50 mil professores leigos no Brasil, de 1977 a 1991.

Em Mato Grosso, o Projeto era ligado à CESU (Coordenadoria de Ensino

Supletivo) na Secretaria de Educação e a certificação do curso Magistério ficava sob a

responsabilidade do Centro de Ensino Técnico de Brasília (CETEB). Entre os

documentos analisados, encontramos quatro resoluções do Conselho Estadual de

Educação/MT (Res. 023/1980, Res. 042/1980, Res. 064/1980 e Res. 183/1986),

aprovando cursos de magistério por meio deste projeto na década de 1980, ainda que

fontes orais indiquem a existência de muitos outros neste período.

Os municípios, juntamente com o Estado, organizavam os Núcleos

Pedagógicos, espaços que deveriam contar com um ou mais Orientador Supervisor

Docente (OSD), professor, geralmente, cedido pela rede estadual. O OSD era

responsável por organizar todas as atividades de formação, orientar os estudantes, sanar

dúvidas, supervisionar a realização das provas, conferir com o gabarito pronto e dar

notas, chamá-los a fazer nova prova, caso não atingissem a média esperada, orientar os

estudos novamente, a fim de garantir sua aprovação; registrar o histórico escolar de cada

um e dar aulas quando necessário.

Informações mais detalhadas a respeito da organização, estrutura e

funcionamento deste Projeto podem ser encontradas nos estudos realizados por André e

Candau (1984), Oliveira (2010), entre outros. Uma entrevistada, que foi OSD, afirma

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10926ISSN 2177-336X

Page 30: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

30

que foi muito importante para a formação de professores da zona rural e urbana em

Mato Grosso e diz o seguinte sobre a oportunidade de estudo e troca de experiências:

Naquela época não tinha outros cursos, não tinha como participar todo

dia da faculdade. [...] Muita gente criticava [a metodologia], mas eu

sempre vi esse curso a distância, principalmente a formação de

professor, era muito bom porque eles estudavam, sempre estudaram

sozinhos, estudou sozinho, ai vinha para [...] fazer a avaliação, quando

tinham dúvidas ai se reuniam, tiravam as dúvidas. (MN, região norte,

2015).

Um professor que colaborou com a formação no Projeto na mesorregião oeste,

afirma a exclusividade dos professores leigos de zona rural no Projeto, ainda que em

outros municípios isso não se confirme, e descreve o modo de funcionamento:

[...] era exclusivo pra rede rural, para os professores leigos que já

estavam na prática do ensino, mas que não tinham formação. Então

esse curso era as diferentes disciplinas [...]. Mas, era assim: ler um

fascículo, ter umas aulas de tirar dúvidas e fazer prova, aquelas provas

de marcar X (MA, região sudoeste, 2014).

O OSD coordenava também as atividades de caráter mais pedagógico, a

exemplo do estágio supervisionado: “[...] professores se reuniam e trocavam as

experiências, aquela aula que ele preparava, que passava e dava aula naquele encontro

pedagógico, servia também para aqueles outros, né? [...]”. (MN, região norte, 2015).

Mas grande parte desistia devido às dificuldades de leitura, de estudar sozinho,

ao isolamento em que ficavam e, muitas vezes, às dificuldades de acesso ao Núcleo, no

caso dos professores que residiam na área rural. As pesquisas de André e Candau

(1984), realizada no Piauí, e de Oliveira (2010), realizada no Paraná, também

identificaram esses problemas e a primeira ainda detectou, a partir da análise dos

módulos de ensino, a falta de relação com a realidade dos cursistas e a quase

impossibilidade de estratégias diferenciadas de aprendizagem. Como afirma Oliveira, a

expansão industrial e o avanço do capitalismo permitiram que [...] a concepção

economicista (racionalização, planejamento e produção em massa) adentrasse aos meios

educacionais; que serviços de ordem pública tivessem uma organização de base fordista,

organização essa, racionalizada e em larga escala (2010, p.34).

Camargo afirma que o Logos não conseguia cumprir sua função de habilitar a

maioria dos professores da mesorregião nordeste e nem melhorava a qualidade da

educação, uma vez que: “grande parte dos professores o abandonava sem completar os

módulos de estudo e, portanto, sem se habilitar. Em 1984, em São Félix do Araguaia,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10927ISSN 2177-336X

Page 31: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

31

por exemplo, foram 121 alunos matriculados, 52 desistentes, um transferido e 43

concluintes” (1996, p.21).

O depoimento a seguir evidencia algumas dificuldades dos cursistas, que

muitas vezes só tinham as primeiras séries do ensino fundamental, alguns haviam sido

estudantes da própria escola em que estavam lecionando e muitos eram professores de

turmas multisseriadas, como também constataram André e Candau (1984).

[...] eles recebiam os módulos das disciplinas, estudavam sozinhos,

reuniam suas listas de dúvidas e periodicamente vinham tirar dúvidas

e fazer prova no polo, [...] eu percebi que alguns deles [...] tinham

dificuldades em “o que que eu tenho dúvida”, porque eles tinham

grandes dificuldades de leitura mesmo [...] muitos tinham estudado

naquela escola; em função de ser o aluno que acabou de terminar a 4º

série e que dava aula naquela escola, ele era aluno então do Logos II,

para a formação dele como professor, [...] eu percebia que eles

tinham dificuldades de perceber qual era a dificuldade. (MA,

região sudoeste, 2014).

Mas, segundo uma professora entrevistada, alguns educadores conseguiam

driblar a rigidez da proposta, que não havia sido pensado em consonância com a

realidade dos professores locais:

Eu passei a inverter, [...], eles passavam a vir para a gente discutir o

módulo para eles levarem um roteiro de estudo e daí [...] num segundo

encontro, pra gente discutir as dúvidas, então eles já vinham fazer

provas caso tivessem condições. Mas pelo Logos II eles só podiam

fazer 2 provas, se não passasse na primeira só tinha mais uma chance.

Ai eu passei a fazer uma prova prévia, [...] eu criei provas curtas para

que eles pudessem passo-a-passo ir fazendo essas provas, inclusive,

em acertar o X no lugar certo porque era coisa básica ainda. (MA,

região sudoeste, 2014).

Ficam explícitas as dificuldades de leitura individual, sem acompanhamento;

de compreensão das questões de múltipla escolha e mesmo de conteúdos específicos;

além disso, havia a rigidez das provas prontas que não eram elaboradas sequer por quem

acompanhava os estudantes em seu processo.

Não é possível avaliar a dimensão real da contribuição deste Projeto para a

formação de professores e mais especificamente professores do campo no Estado, tendo

em vista não terem sido encontrados dados quantitativos sobre núcleos existentes ou

professores formados. No entanto, entre os 25 sujeitos entrevistados, oito (incluindo

representantes das cinco regiões do estado) foram cursistas do Logos II (entre eles, um

desistente); três foram coordenadores do Projeto em sua localidade e outros quatro

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10928ISSN 2177-336X

Page 32: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

32

fizeram alguma referência a ele durante a entrevista, tendo ouvido falar ou conhecido

alguém que tivesse cursado.

Ainda que visasse a habilitação de professores leigos no país – missão

parcialmente cumprida - e a maioria desses atuasse em escolas da zona rural, este

Projeto não se ateve às especificidades do campo. A ideia era a de uma educação em

perspectiva universalista; um curso modular e a distância, com fundamentos tecnicistas,

o ensino pautado na memorização e repetição, cujos conteúdos foram organizados sem

relação direta com nenhuma realidade concreta. Neste sentido, podemos dizer que, dado

o contexto da época, a intencionalidade da política de formação e a ainda frágil

organização em torno da ideia de uma educação do campo, um dos resultados foi a

ampliação do número de professores habilitados, mas não necessariamente preparados

para a atuação em seus espaços escolares.

O Projeto Inajá se desenvolveu na mesorregião Nordeste, ou como se dizia no

local, na região da Prelazia de São Félix do Araguaia. O Projeto consistia na formação

em nível de segundo grau com habilitação para o magistério, para professores em

exercício na rede pública de ensino, aprovado pelo Parecer nº 235/88 e Resoluções nº

309-A/88 do CEE. O Inajá contou com apoio da Secretaria de Estado de Educação e

especialmente da Prelazia de São Félix do Araguaia. Realizou-se em parceria com os

municípios envolvidos e professores da Unicamp, de 1987 a 1991, com uma segunda

edição no período de 1993 a 1996.

O modelo curricular do projeto Inajá estava calcado na própria história

das escolas: era baseado na construção do saber a partir do

conhecimento e da experiência de cada um e não na transmissão

pronta do saber universal. E o seu objetivo estava em sintonia com as

escolas da região: formar educadores que levem o aluno a

compreender a realidade, tornando-o capaz de criticar e interferir no

processo em que vive. A pesquisa e o desenvolvimento de projetos

eram os eixos metodológicos do projeto [...] (LEITE, 1993, p.29).

Um curso parcelado no tempo e de formação em serviço para professores da

zona rural e indígenas (ALBUQUERQUE, 1997), com uma proposta didático-

pedagógica fundamentada nas teorias construtivistas. Uma das professoras cursistas

explica que fazer o curso dava mais ânimo aos professores, da zona rural ou urbana,

[...] porque lá você tinha uma construção, nós não estávamos lá

para cópia, nós estávamos no Inajá para diálogo, construção. A

gente trabalhava muito, trabalhava a questão de dramatização,

trabalhava o concreto, o real, as pesquisas, não eram pesquisas

aleatórias em cima de coisas que você não a conhecia, o Inajá

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10929ISSN 2177-336X

Page 33: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

33

trazia nós para dentro da nossa realidade [...]. (MC, região

nordeste, 2015).

O curso realizava etapas presenciais simultaneamente em duas sedes (Santa

Terezinha e São Félix do Araguaia), com os cursistas dos municípios parceiros

(Ribeirão Cascalheira e Porto Alegre do Norte), incluindo os diversos distritos, vilas ou

comunidades. A variedade de comunidades participantes (posseiros, geralmente vindos

do nordeste; colonos, vindos do sul e indígenas tapirapé e karajá) trazia para o curso

uma diversidade de realidades, o que foi um grande desafio: “[...] exigia uma escola

diferente, que considerasse a diversidade cultural e as relações que os grupos sociais em

questão haviam estabelecido entre si”. (ZAMBONI e DE ROSSI, 1999, p.14).

No período letivo, os professores eram acompanhados em suas atividades por

monitores e nas etapas intensivas tinham aulas com os professores da UNICAMP e

outros, que se deslocavam até a região e trabalhavam com a colaboração dos monitores

(GENTIL, 2002). Dados oriundos das atividades de pesquisa realizadas nos municípios

no período intermediário eram trazidos para discussões e reflexões à luz dos conteúdos

estudados. Camargo (1996) argumenta ter sido uma experiência de educação formal que

fugia aos padrões convencionais de escola e valorizava a educação da/na região.

É possível afirmar que este Projeto, pautado em princípios da teoria

construtivista e utilizando uma metodologia de ensino aprendizagem que privilegiava a

pesquisa enquanto processo de conhecimento da realidade, a partir do qual se

expandiam os conhecimentos rumo ao saber acumulado e sistematizado, pôde contribuir

de modo mais concreto com a formação dos professores do campo. Albuquerque, uma

das elaboradoras da proposta, explica o pressuposto em que ela se sustentava:

[...] estratégias pedagógicas coerentes com a reflexão filosófica, sendo

a principal delas, a do Laboratório Vivencial, essa vizinhança do

observador onde estão contidos os fenômenos naturais e sociais; a

prática da observação e da experimentação era a marca do projeto.

(1997, p.16).

Professoras da zona rural, formadas pelo Inajá, relatam sobre o planejamento,

reafirmam o respeito ao conhecimento dos estudantes neste “laboratório”:

[...] você tinha uma orientação que você... uma sequência que ela

variava de acordo com a necessidade também dos nossos alunos, que

era essa a orientação do Inajá, você não tinha uma sequência

cronológica de seguir aquilo ali, não, você tinha uma orientação,

seguia a orientação, muitas vezes de acordo com a necessidade da

comunidade e dos alunos daquele local [...]. (MC, região nordeste,

2015).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10930ISSN 2177-336X

Page 34: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

34

[...] era aquilo que a gente já vinha com o propósito da [...]valorizar

aquilo que também a criança tinha como conhecimento, não era

eu chegar com conteúdo e simplesmente empurrar o conteúdo

nele, eu até podia fazer o planejamento, só que o meu planejamento ia

depender de eu cumprir ele todo, se ele tivesse condizendo com que o

meu aluno queria no momento, porque abria-se um leque para ele, que

ele também poderia dar a sugestão [...] porque o nosso curso pedia

isso pra gente, que a gente valorizasse isso daí, na intenção de

criar um cidadão crítico e construtor do próprio conhecimento

dele (VS, região nordeste, 2015)

A problematização e a pesquisa sobre a realidade local a partir de curiosidades

e inquietações, a valorização do saber popular, o respeito à cultura de cada localidade

foram elementos importantes desta proposta diferenciada de formação. Neste Projeto

não se faz presente uma intencionalidade ou uma perspectiva específica de educação do

campo, tal como a que se concebe hoje, cujo fundamento são as relações específicas

com o trabalho no campo, contudo, é possível pensar que a pesquisa como eixo

metodológico tenha contribuído com os professores e alunos para a análise de suas reais

condições de vida.

O Projeto Homem Natureza foi um projeto de formação magistério, em nível

médio, para professores leigos de zona rural, coordenado pela SEDUC/MT e realizado

em parceria com 15 municípios, aprovado pelo Parecer e 259/91 CEE e Resoluções nº

309-A/88 do CEE. Inspirado no Inajá, fundamentou-se no construtivismo e também

contou com assessoria da Unicamp (MALUF, 2000; STRENTZKE, 2011).

Quatro dos professores entrevistados participaram como estudantes e duas como

professoras formadoras neste Projeto. “Naquela época a gente recebia a formação

através do projeto. Eu participei... a escola que eu trabalhava foi escolhida escola piloto,

foram escolhidas dez escolas na época pra ser piloto e eu fiz parte. (L., região sudeste,

2015).

O curso foi organizado em etapas intensivas de estudo, nos meses de férias

escolares e etapas intermediárias, que ocorriam durante o ano letivo, sem que o

professor precisasse abandonar o trabalho na sala de aula. Mais uma vez, uma proposta

de formação em serviço. Nesse sentido, “[...] o projeto HOMEM-NATUREZA foi

concebido, preferencialmente, para professores em exercício, na zona rural, mas era

permitida a participação de professores da zona urbana, local onde se concentrava o

maior número de professores leigos, em sala de aula” (STRENTZKE, 2011, p.58).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10931ISSN 2177-336X

Page 35: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

35

Os encontros que reuniam todos os professores cursistas ocorriam uma vez em

cada município polo, em forma de rodízio. Para quem trabalhava quase isoladamente

este era um aspecto valorizado, além da metodologia da pesquisa:

Foi uma experiência assim maravilhosa porque estar lá na zona rural,

com as dificuldades de acesso, as dificuldades da secretaria para

apoiar a gente pela distância. Naquele período eles levavam até 3 a 4

meses para fazer uma visita pedagógica. Então assim, você tinha que

se virar para trabalhar. (C., região sudeste, 2015).

Nas etapas intermediárias eram realizadas atividades de pesquisa vinculadas a

temas geradores, estudos para aprofundamento de disciplinas e estágio, contando com

certo acompanhamento dos monitores.

[...] então era tudo o método da pesquisa, naquela época, esse Projeto

Homem Natureza, era a pesquisa (L., região sudeste, 2015).

[...] no Projeto Homem Natureza, com essa prática pedagógica era

voltada exatamente para a vivência do aluno naquele espaço escolar

ou no espaço da comunidade [...]. (Y, região sudeste, 2015).

[...] rompia (o Projeto) com aquela coisa encaixada, quadradinha, que

a secretaria de educação promove, promovia, na época [...] a forma de

registro, que não era aquela “formalzinha”, de formal com nota, com

prova, mas é um aproveitamento do professor, e a gente assim: “quem

é que vai ter que fazer um trabalho complementar? ”, então era o

monitor que acompanhava (M. A., região sudoeste, 2014).

Uma professora colaboradora de atividades neste Projeto, enfatiza a

importância do processo de capacitação dos profissionais que iriam trabalhar; uma

formação com base teórica, mas respeitando o conhecimento empírico e um

planejamento para todo o curso.

[...] nós tivemos capacitação para o professor e para o monitor [...]

Então, com essa vertente do etnoconhecimento que era como eles

trabalhavam, então, essa coisa da escuta sensível, das coisas do

lugar, para transformar isso em uma linguagem à luz da ciência

moderna sem que se negue este histórico anterior (MA, região

sudoeste 2014).

O Projeto Homem Natureza teve o objetivo de formar professores leigos da

zona rural e se pautou nos princípios do aprender pela pesquisa e no respeito à cultura e

conhecimentos locais. No entanto, não há uma explicitação de uma perspectiva alinhada

à educação do campo, proposta em construção no mesmo período, em nível nacional.

O Projeto GerAção teve início em 1997, foi desenvolvido pela SEE junto aos

municípios, contando com financiamento do PRODEAGRO/Banco Mundial. Buscava

suprir uma demanda de 5.000 professores leigos no Ensino Fundamental no estado e

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10932ISSN 2177-336X

Page 36: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

36

contou com a parceria de 49 municípios, habilitando 1.019 professores, com 03 anos de

duração, em seis semestres letivos (TEIXEIRA; NÉDER, 2006). No documento

intitulado “Avaliação final. Síntese dos relatórios parciais e final” do PRODEAGRO,

publicado em 2002, encontramos:

[...] verifica-se que dos cerca de 400 professores sem titulação que

deveriam ser treinados, 778 foram certificados, correspondendo a uma

efetivação positiva de 195%. [...] O projeto é digno de referência pois,

criou propiciou melhores condições aos professores, a melhoria da

qualidade de vida do educando, ingresso dos professores certificados

na carreira do magistério e a integração no plano de cargos e salários;

muitos professores, após certificados, deram continuidade e estão

cursando o nível superior. Esta ação proporcionou a formação de 46

professores no nível de pós-graduação (especialização)

(PRODEAGRO, 2002, s/p).

Como nenhum dos entrevistados nesta pesquisa cursou o Projeto Geração, nos

restringiremos a essas breves informações, cientes, porém, da importância desse projeto

para a formação de professores em Mato Grosso.

Considerações

A análise aqui apresentada não tem a intenção de ser conclusiva em relação à

política de formação de professores da zona rural de Mato Grosso nas décadas de 1980

e 1990. Os dados já analisados indicam que: a formação e habilitação de professores

tem sido uma preocupação dos governos neste estado e alvo de muitas propostas e

projetos; o atendimento aos professores do campo se deu com base nas demandas do

contexto econômico da época, na necessidade de melhoria da qualidade da educação e

na exigência da legislação no que diz respeito à formação necessária para a atuação

profissional, propiciando formação a um grande número de professores. Alguns, pelas

características de sua proposta teórico-metodológica, apresentaram fundamentos

tecnicistas e outro foram marcados pelo respeito ao conhecimento popular e relações

concretas com a realidade local, tomando-a como ponto de partida para acesso ao

conhecimento universal. Contudo, nenhuma das propostas contemplou a questão

considerada central pelos movimentos sociais populares para a educação do campo, que

é a relação trabalho/educação. Como já afirmou Arroyo (2007), a história mostra que

não temos uma tradição de formulação de políticas públicas de formação, no

pensamento e nem na prática, que focalize a educação do campo como preocupação

legítima, o que pode estar mudando nos últimos dez anos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10933ISSN 2177-336X

Page 37: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

37

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, J. G. de. Uma proposta de integração entre ensino e pesquisa.

São Paulo: Revista ADUSP, jun. 1997. p. 15-23.

ANDRÉ, M. e CANDAU, V. O Projeto Logos II e sua atuação junto aos professores

leigos do Piauí: um estudo avaliativo. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, 50. Ago.

1984, p.22-28.

ARROYO, M. Políticas de formação de educadores(as) do campo. Caderno Cedes,

Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007.

CAMARGO, D. P. de. Mundos entrecruzados: a formação de professores leigos em

Mato Grosso. Campinas, SP: Alínea, 1997.

FERNANDES, B. M; MOLINA, M. O campo da educação do campo. In: MOLINA,

M.; JESUS, S.M.S.A. (Orgs.) Por uma educação do campo: contribuições para a

construção de um projeto de educação do campo. Brasília: Articulação nacional por

uma educação do campo, 2004.

LEITE, L. H. A. "E a escola perdeu aquela rota..." recuperando o processo de

construção social da escola municipal de Cascalheira-MT. Dissertação de Mestrado.

Belo Horizonte: FAE/UFMG, 1993.

LIMA, R. F. Formação continuada de professores da escola do campo em Cáceres –

Mato Grosso: identidades em construção. Dissertação de Mestrado. Cáceres:

PPGEdu/UNEMAT, 2013.

MALUF, V. J. A terra no espaço: A desconstrução do objeto real na construção do

objeto científico. Dissertação de Mestrado. Cuiabá: IE/UFMT, 2000.

OLIVEIRA, S. C. B. de. A formação dos professores em Guaraniaçu: a capacitação em

serviço, o Logos I, Logos II e Hapront. Monografia apresentada ao Curso de

Especialização em História da Educação Brasileira. Cascavel/PR: UNIOESTE,

2010. Disponível em:

PRETTI, O.; ALONSO, K. M. Educação em Mato Grosso: desvelando estatísticas.

Cuiabá: Editora da UFMT, 1997.

PRODEAGRO - Projeto de desenvolvimento agroambienal do estado de Mato Grosso.

Avaliação final. Síntese dos relatórios parciais e final. Cuiabá/MT: Governo do Estado

de Mato Grosso/SEPLAN/GEP, 2002.

ROCHA, S.A. Formação de professores em Mato Grosso: trajetória de três décadas.

(1977-2007). Cuiabá: Ed.UFMT, 2010.

SILVA, S. B. da; PINTO, M. A. M. Historicizando a educação a distância no Mato

Grosso. Campinas/SP: Unicamp, 2006.

STRENTZKE, I. Inajá, Homem-Natureza, Geração e Tucum: Uma Análise Da

Proposta Pedagógica de 1987 A 2000. Dissertação de Mestrado. Instituto de

Educação. PPGE/ UFMT. Cuiabá, 2011.

ZAMBONI, E. e DE ROSSI, V. L. S. A formação de professores leigos nas áreas das

fronteiras agrícolas do Brasil Central. Perspectiva. Florianópolis, v. 17, n. Especia1, p.

13 - 31, jan./jun. 1999.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10934ISSN 2177-336X

Page 38: EDUCAÇÃO DO CAMPO EM LENTES MULTIFOCAIS: …ufmt.br/endipe2016/downloads/233_10833_38116.pdf · EDUCAÇÃO DO CAMPO EM ... políticas públicas na gestão e no trabalho ... o trabalho

38

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10935ISSN 2177-336X