educaÇÃo intercultural crÍtica: entre sujeitos,...
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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL CRÍTICA: ENTRE SUJEITOS, SABERES,
CURRÍCULOS E PRÁTICAS
Os artigos que integram este painel buscam oferecer subsídios para ampliar o
conhecimento e o debate em torno da reinvenção da escola na contemporaneidade,
quando seus sujeitos, saberes pedagógicos, currículos e práticas, envoltos nos processos
de ensino e aprendizagem,estão desafiados à lida com as desigualdades sociais, mas
também com as diferenças culturais, religiosas, raciais, de gênero, dentre outras. Têm
como eixo central o norte da Educação Intercultural Crítica para a conquista do direito à
educação para todos, implicado em novos paradigmas epistemológicos e éticos, em 3
pesquisas qualitativas. O primeiro artigo,Função social do professor de ciências e
biologia: educação ambiental, direitos humanos e interculturalidade, investigou a
formação inicial de professores de Ciências e Biologia com o objetivo de conhecer e
problematizar os sentidos presentes nestes cursos sobre a função social dos professores
na educação básica. Foram investigados 6 cursos de licenciatura oferecidos pelas UFRJ,
UERJ e UNIRIO. O segundo, Os grupos de trabalho da ANPED e a produção de uma
educação intercultural (2009-2013), objetivou analisar os textos de 9 Grupos de
Trabalho-Currículo, Didática, Formação de Professores,Educação Popular, Movimentos
Sociais, Educação e Relações Étnico-Raciais, Gênero, Sexualidade e Educação,
Educação Ambiental e Educação e Arte- das Reuniões Anuais da ANPED, espaço
privilegiado de discussão sobre as principais questões e investigações que mobilizam o
campo educacional, procurando detectar em que medida as preocupações interculturais
vêm sendo neles incorporadas.O terceiro,O ensino da Educação Física e as diferenças
culturais: produções da ANPED (2010-2015), buscou conhecer e analisar quais são os
sentidos, ênfases e silenciamentos das diferenças que transitam no campo da Educação
Física escolar e, para tal, recorreu aos textos apresentados em 10 GTs da ANPED nos
últimos 5 anos.
Palavras-chave: Educação Intercultural Crítica. Escolas. Diferenças Culturais.
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FUNÇÃO SOCIAL DO PROFESSOR DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA:
EDUCAÇÃO AMBIENTAL, DIREITOS HUMANOS E
INTERCULTURALIDADE
Natália Tavares Rios Ramiarina
PUC-Rio
CAp/UFRJ
Este trabalho é parte das investigações do doutorado sobre as temáticas da Educação
Ambiental e dos Direitos Humanos na formação inicial de professores de Ciências e
Biologia.O recorte aqui adotado tem como objetivo discutir o entendimento presente
nestes cursos sobrea função socialdos professores das referidas disciplinas na educação
básica.Para tal, a metodologia utilizada foi a triangulação de dados, composta pelos
seguintes instrumentos de pesquisa: análise dos Projetos Políticos Pedagógicos dos
cursos, entrevista com seus coordenadores e entrevistas com professores. Foram
investigados seis cursos de licenciatura oferecidos pelas instituições UFRJ, UERJ e
UNIRIO.As investigações mostraram que são atribuídas duas funções principais para o
professor de Ciências e Biologia. Uma relativa à formação científica e outra relativa à
formação humanística e social dos alunos. Apesar de, em alguns momentos, ficar
explícito o conflito entre os conteúdos tradicionais das disciplinas e as novas demandas
sociais que se apresentam para escola e, consequentemente, para estes profissionais,
estas duas funções sociais não são pensadas de forma separada e sim, de forma
complementar pelos formadores de professores.Assim sendo, o conhecimento científico
é usado para abordar questões ambientais, sociais e culturais. A discussão sobre a sua
hierarquização se mostrou como um importante tópico que aglutina potencialmente
reflexões sugeridas pelos campos da interculturalidade, dos direitos humanos e da
educação ambiental, sobretudo no que se refere ao modelo antropocêntrico e à visão
utilitarista da relação homem e natureza. Destacam-se assim, as possíveis contribuições
das disciplinas Ciências e Biologia na construção de uma cultura de democracia, justiça
e sustentabilidade como projeto educativo de sociedade.
Palavras-chave: Formação de Professores; Educação Ambiental; Direitos Humanos.
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FUNÇÃO SOCIAL DO PROFESSOR DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA:
EDUCAÇÃO AMBIENTAL, DIREITOS HUMANOS E
INTERCULTURALIDADE
Natália Tavares Rios Ramiarina
PUC-Rio
CAp/UFRJ
Este trabalho está inserido na pesquisa de doutorado sobre a inserção das
temáticas dos direitos humanos e educação ambiental nos cursos de formação inicial de
professores de Ciências e Biologia das Universidades da cidade do Rio de Janeiro,
sendo elas UNIRIO, UERJ e UFRJ. Foram investigados seis cursos, sendo dois deles da
UFRJ (Licenciatura noturno e diurno); um da UERJ e três da UNIRIO (Licenciaturas
em Ciências Biológicas, em Biologia e em Ciências Naturais).
Neste recorte, o presente texto buscou discutir a categoria função social do
professor de ciências e biologia a fim de caracterizar que papel os formadores de
professores atribuem a estes profissionais no contexto da Educação Básica. Com isso,
objetivou-se auxiliar na reflexão sobre as potencialidades das temáticas da educação
ambiental e dos direitos humanos com aportes da interculturalidade, neste componente
curricular para a construção de uma cultura de cidadania plena, justiça, democracia e
sustentabilidade.
As expressões educação ambiental e direitos humanos foram historicamente
construídas e apropriadas em diversos contextos culturais, políticos e econômicos,
muitas vezes servindo a propósitos conservadores da estrutura social, sendo
questionados por especialistas em sua validade epistemológica para lutas por justiça
social e ambiental. Considerando a polissemia dos termos e as disputas ideológicas que
marcam suas definições, a formação de professores é um complexo desafio para o
campo educacional, conforme apontam o documento das Diretrizes Curriculares
Nacionais de 2013 (BRASIL, 2013) e Sacavino (2009). Ao investigar a função social
atribuída pelos formadores de professores aos profissionais que estão formando, em
suas dimensões relativas a discussões dos direitos humanos, educação ambiental e
interculturalidade, este trabalho objetiva contribuir para a construção de uma cultura de
participação plena, seja ela individual ou coletiva, em processos decisórios a fim de
promover direitos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais.
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A construção desta cultura de participação plena objetiva essencialmente a
superação daquilo que O´Donnell chama de “democracia de baixa intensidade”
caracterizada pelo autor pela ênfase nos procedimentos eleitorais, tendo a democracia
como um valor e uma prática de âmbito político, mas a regulação e articulação da
sociedade se deslocam progressivamente para a esfera econômica (SACAVINO, 2009).
Assim, instaura-se uma “sociedade do mercado” (BORÓN, 2003 apud SACAVINO,
2009) na qual os direitos dos cidadãos também são pautados nesta lógica mercantil,
numa cidadania concretizada, sobretudo, no consumo. A sociedade assim estruturada
tem provocado a violação de direitos humanos, a degradação ambiental e
homogeneização de culturas, tais processos quase sempre ocorrendo de forma
associada.
A metodologia adotada foi a triangulação de dados, composta pela análise do
Projeto Político Pedagógico, entrevistas com os coordenadores e entrevista com os
professores dos cursos. A seleção dos trechos do documento e das entrevistas ressaltou
reflexões sobre os objetivos do curso de formação inicial, sobre habilidades e
capacidades esperadas dos egressos da licenciatura e reflexões presentes nestes textos
sobre o papel do conhecimento Científico e das disciplinas escolares de Ciências e
Biologia na formação dos alunos da Educação Básica.
Resultados e discussões
Embora o PPP seja um documento pouco acessado ou a sua discussão e
elaboração tenha sido restrita a alguns profissionais nas instituições pesquisadas, por ser
um documento oficial, tem importância nas disputas curriculares no interior das
universidades, sendo reflexo delas, mas também as orientando. Este documento nos
indica, portanto, as concepções oficiais e as intenções de formação.
Posto isso, foram percebidas duas tendências principais no que se refere à
função do professor de Ciências nestes documentos. Seriam elas: auxiliar na formação
cidadã e humanística dos alunos da Educação Básica; e atuar na formação e transmissão
do conhecimento científico. O trecho abaixo ilustra objetivos para o curso que trazem
alguns aspectos sobre a função social do professor de Ciências e Biologia, que foram
comuns aos cursos investigados:
“Esta formação promove ainda o entendimento do processo histórico de
construção do conhecimento na área biológica, contemplando o significado
das Ciências Biológicas para a sociedade e sua colaboração responsável como
educador nos vários aspectos de sua atuação, desenvolvendo competências e
habilidades humanas voltadas para os aspectos sócio-políticos e para o
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desenvolvimento sustentável do país.” (PPC do curso de Ciências Biológicas –
UNIRIO, p. 8. Grifos meus)
As habilidades e competências esperadas do profissional que egressa destes
cursos, citadas no trecho acima, e que também se articulam com a concepção da função
social do professor de ciências e biologia, foram descritas como: exercer na plenitude a
cidadania, formar cidadãos conscientes e críticos; compreensão cultural e social;
contribuir para melhoria da qualidade de vida da comunidade; desenvolvimento social
da coletividade entre outras...
Assim, espera-se do professor articulação com a comunidade e capacidade de
comunicação para elaboração coletiva de projetos. Também é esperada criatividade em
sua prática pedagógica e até mesmo a interlocução e mediação para transformar a
realidade do entorno e atender demandas da sociedade.
Nestes termos, a atuação docente ultrapassa os limites da escola, incorporando as
potencialidades e demandas da comunidade do entorno nos seus projetos pedagógicos.
Assim, o papel social esperado para o professor é ampliado, para além de
responsabilidades com o aprendizado de seus alunos, a fim de trabalhar com a
comunidade, contemplando as demandas da coletividade do entorno.
Desta forma, a função do professor das disciplinas de Ciências e Biologia
ultrapassa o limite do tratamento do conhecimento científico ou da formação científica e
ganham espaço, pelo menos discursivo, temáticas ligadas a demandas sociais, tais como
discussões sobre cultura, cidadania, sustentabilidade, ética e coletividade, buscando uma
formação humanitária e cidadã.
A relevância dada à formação humanitária e cidadã presente nos textos pode ser
percebida na alta frequência de verbetes que suscitam a discussão de aspectos sociais e
políticos, tais como cidadania, sócio-político e cidadãos conscientes e críticos. No
entanto, estes verbetes não aparecem acompanhados de explicações dos seus
desdobramentos práticos ou da maneira como devem ser inseridos e trabalhados na
formação de professores.
Loureiro (2007, 2015) discute a imprecisão de termos como estes nos discursos
em Educação ambiental, uma vez que eles têm sido amplamente utilizados, com
diversos sentidos, sejam eles oriundos de governos, de empresas ou de movimentos
sociais, com intencionalidades essencialmente contraditórias. O próprio termo
“educação ambiental” está presente no PPC do curso da UERJ, no entanto, estando
desacompanhado de discussões sobre o seu significado e objetivos, não explicita os
propósitos de formar em “educação ambiental” os futuros professores de Ciências e
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Biologia. Desta maneira, não é possível inferir quais concepções sobre este termo estão
sendo referidas neste documento, nem tão pouco como tais concepções se articulam
com a função social do professor de Ciências e Biologia.
Neste contexto, a ausência de explicitações dos entendimentos adotados ou
referências a discussões na área deixam “em aberto” o significado destes objetivos e não
permite determinar posicionamentos políticos e ideológicos que representem propósitos
contra-hegemônicos de transformação social ou propósitos hegemônicos de adequação e
manutenção da estrutura social.
De maneira semelhante, também é importante destacar a presença dos verbetes
sustentabilidade e desenvolvimento sustentável sem nenhum desdobramento ou
localização nas discussões e disputas que são travadas no campo ambiental e da
educação em relação ao significado destes termos. Leher (2015) faz uma importante
ressalva para pensar o termo desenvolvimento sustentável e seu uso:
“(Desenvolvimento sustentável) (...) que, a rigor, não é um „conceito
científico‟, mas, sobretudo, uma „ideologia‟ penetrante e indispensável ao
capital, em um contexto em que os problemas sócio-ambientais alcançaram
perigosa escala planetária e as resistências se ampliam”. (LEHER, 2015,
p.19)
Sendo assim, o uso do termo nos documentos orientadores de princípios e
objetivos dos cursos, sem qualquer discussão de seu significado, não orienta as práticas
docentes no que se refere ao sentido a ser buscado para tais termos. Não explicita assim
qual ideologia assume. Santos (2013) também auxilia nesta reflexão, pois problematiza
o uso atualmente predominante do termo “desenvolvimento sustentável” como um
apagamento de outras culturas e racionalidades ambientais que propõem uma alternativa
a própria ideia de desenvolvimento. Estas racionalidades questionam a própria ideia de
crescimento indefinido contida no termo desenvolvimento (ainda que acompanhado de
adjetivos como ecológico, eco ou sustentável) e colocam em pauta alternativas de
“acrescimento” ou até mesmo de “decrescimento” econômico, elucidando assim outros
referentes culturais, não ocidentais, para pensar a relação homem-natureza.
Desta forma, a incorporação das dimensões social e política nos propósitos de
formação inicial nos textos dos PPCs dos cursos analisados é uma tendência dominante
e, interessante para a inclusão das discussões do campo da EA, dos DDHH e da
interculturalidade no currículo das Ciências e Biologia. No entanto, esta tendência se
mostra imprecisa no que se refere à explicitação de implicações políticas e ideológicas
das quais a prática pedagógica não pode prescindir de refletir.
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A outra tendência verificada nos objetivos para formação de professores se
refere ao propósito de formação científica, seja ela voltada para formação do próprio
graduando, quanto para a formação de seus futuros alunos da educação básica. São
citados como objetivos dos cursos: reconhecer o sentido histórico e humano da
construção científica; construir bases sólidas conceituais e de compreensão do método
científico; a iniciação científica e a publicação de artigos.
Os trechos acima destacam os propósitos de formação do licenciando referente a
propósitos acadêmico-científicos, buscando construir neste aluno uma visão
contextualizada histórico e socialmente da produção do conhecimento científico e a
capacidade de produzir este tipo de conhecimento. A formação científica dos
licenciandos também é vista como ferramenta para articulação com demandas sociais,
no sentido de que estes profissionais devem ser capazes de equacionar questões sociais
e ambientais e basear sua conduta profissional em critérios humanistas e de rigor
científico.
No que se refere aos propósitos das disciplinas de Ciências e Biologia na
Educação Básica, os documentos também trazem trechos abordando a formação
científica como objetivo e ferramenta pedagógica deste futuro professor: interpretar o
currículo de forma criativa; divulgar o conhecimento científico; estimular os alunos em
suas curiosidades científicas etc. Os objetivos de formação que se concentram neste
aspecto do ensino têm o conhecimento científico como fim da ação pedagógica, quando
é focalizada a sua produção ou contextualização, e como ferramenta para tratamento de
outras questões referentes a aspectos sociais e ambientais.
A função de formação humanística e social pensada para o professor e para as
próprias disciplinas Ciências e Biologia presente nos documentos também apareceu nas
falas dos coordenadores dos cursos e pôde ser analisada de maneira mais aprofundada.
Em seus depoimentos os professores trouxeram o entendimento da escola como espaço
político de organização da comunidade, da coletividade, e o professor como importante
ator deste processo. O professor teria uma função de motivador de ações dentro da
comunidade escolar, auxiliando-a a refletir sobre suas demandas e necessidades. A
escola, e dentro dela o próprio professor de Ciências e Biologia, funciona como um
local de articulação e organização de diferentes agentes sociais. As atividades
pedagógicas planejadas pela escola e professores articulados com a comunidade seriam
motivadores para ações que possam pleitear políticas e ações governamentais na
comunidade.
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Dois dos cinco coordenadores entrevistados falam sobre a necessidade de
problematizar e contextualizar o conhecimento científico, tal como sinalizam Figueiredo
e Tozoni-Reis (2013). Os autores destacam o papel das Ciências nas sociedades atuais
de repensar o papel do conhecimento científico que dicotomiza homem e natureza,
numa relação que é conivente com a estrutura social de exploração e degradação do
meio ambiente. Neste sentido, há um movimento de incorporar às discussões das
Ciências, questões provocadas por diferentes campos teóricos ou áreas curriculares. Esta
incorporação e articulação de questões de cunho social, cultural e humano nas reflexões
científicas servem ao propósito, segundo os depoimentos destes coordenadores, de
humanizar suas práticas pedagógicas e buscar práticas pedagógicas transformadoras.
Os depoimentos dos professores entrevistados trazem aspectos importantes para
a análise no que se refere ao papel da formação científica na prática docente dos
professores de Ciências e Biologia: mudança cultural que depende da educação; passar
informações que vem da ciência; conhecimento cientifico como reflexão para o apelo
consumista dirigido a juventude etc. A Fala a seguir ilustra este último aspecto:
“Isso para mim é um desafio na formação porque na verdade eu continuo
achando que ensinar ciências e biologia para juventude é muito importante
para que não sejam dominados por bobagens de consumo, coisas do gênero,
mas como é que a gente vai fazer isso? É minha grande questão agora
enquanto formadora. (Branca, Professora de Prática de Ensino e Didática
Especial)
A formação científica como ferramenta para discussões sociais, culturais e
ambientais apareceu como uma tendência dominante nas falas dos professores. Nos
depoimentos acima, é possível verificar uma defesa da formação científica como
ferramenta para a problematização de questões sociais, culturais e ambientais. Nestes
depoimentos, os professores ressaltam a importância de formar professores
conhecedores da ciência e capazes de utilizar estes conhecimentos para refletir sobre a
realidade e estrutura social. Com isto, estes professores devem ser capazes de fazer com
que seus alunos da educação básica reflitam a partir de uma formação científica
proporcionada pelo currículo de Ciências e Biologia, por exemplo, sobre seus hábitos de
consumo e sobre a condição atual de degradação do ambiente.
Desta forma, os depoimentos revelaram que os professores enxergam as
disciplinas de Ciências e Biologia, como disciplinas que têm o potencial de articular em
seus conteúdos reflexões de diferentes áreas dos conhecimentos para contribuir com
uma formação cidadã dos alunos de educação básica, abordando aspectos sociais,
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culturais e ambientais. Assim, as formações científica, humanística e social aparecem
como objetivos associados nos discursos dos formadores de professores.
O depoimento a seguir traz uma interessante reflexão sobre a inserção das
temáticas sociais e culturais na formação dos professores de Ciências e Biologia:
“Nós éramos professores de Ciências. E por mais que a gente tenha avançado
nas discussões da didática, do currículo e relativizado isso, as ciências ainda
eram nosso ponto. Era o que nos dava a base daquilo que nos íamos ser como
profissionais do Ensino, como professores de. Eu acho que isso está mudando.
Por vários motivos. Porque estas questões todas (violência, sexualidade) que
eu estou te falando que envolvem a questão ambiental, adentraram a escola e
não querem mais sair. Elas estão lá, elas fazem parte deste lugar chamado
escola. Antes elas até podiam fazer, mas ou a gente jogava para escanteio, ou
escondia em algum lugar e mantinha ali nossa tradição de que a ciência era o
que era mais importante para o professor. E na formação a gente investia
nisso.” (Branca, Professora de Prática de Ensino e Didática Especial)
A professora percebe ao longo dos seus quase 30 anos de docência na Educação
Básica e Superior, uma mudança na formação inicial de professores motivada pelas
novas demandas que a escola tem recebido, referentes a questões de violência,
sexualidade e ambientais. Segundo a professora, neste processo, a formação inicial de
professores vem se modificando e buscando inserir aspectos sociais, culturais e
ambientais. Terreri & Ferreira (2014) entendem que a formação docente nas
universidades vem sendo historicamente ressignificada e hibridizada com a
incorporação de inovações curriculares, que refletem estas novas demandas da
sociedade. Esta modificação parece ainda estar em curso, ora utilizando os
conhecimentos científicos como ferramenta para a formação humanística e social, ora
disputando espaço dentro dos objetivos do componente curricular.
“O professor tem um papel muito importante nisso, empoderar seus alunos no
exercício de sua cidadania e aí entram várias temáticas, e a nossa área de
Ciências e Biologia pode ajudar tanto os alunos nisso, e muitas vezes não
ajuda porque a preocupação foi passar o conteúdo para decorar para prova,
não foi entender aquela situação dentro de um contexto, não foi aproximar
aquele conteúdo da vida dele, que tem a ver isso. (Glória, Professora de
Estágio Supervisionado)
O depoimento acima ilustra este conflito para os professores de Ciências e
Biologia na Educação Básica entre lecionar sobre o conteúdo científico em si, que é
cobrado e avaliado de forma mais sistemática e estruturada por avaliações externas, ou
tratar questões das relações sociais e ambientais. Loureiro (2015) pode auxiliar na
reflexão sobre esta “escolha” forçada, no sentido de que estes conteúdos curriculares
tradicionalmente abordados são alvo de maior fiscalização e medições por políticas
públicas de avaliação escolar. Enquanto que estes outros propósitos do Ensino de
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Ciências e Biologia são discursivamente reconhecidos e valorizados, mas chegam à
escola como “educações” diversas (educação ambiental, sexual, para o trânsito etc) que
também precisam ser contempladas além de tudo aquilo que será avaliado, porém não
são avaliados da mesma maneira que os conteúdos do currículo tradicional e acabam
por não ser contemplados.
Alguns depoimentos destacaram aspectos políticos da formação de professores e
da atuação docente na educação básica que auxiliam a pensar esta formação científica
associada a discussões sociais, culturais e ambientais e o papel do professor de Ciências
e Biologia: o aspecto político inerente ao ato de ensinar; a escola como aparelho
ideológico do Estado; reflexões sobre a relação homem e natureza em seus aspectos
cultuais, econômicos e políticos; a expectativa diferenciada em relação a alunos de
diferentes classes etc. Destaca-se assim, o caráter político da educação, no sentido de
que qualquer prática pedagógica traz intrínseco um posicionamento político, uma
postura política perante o aluno e deles não pode se eximir. Os professores não se
posicionam da mesma maneira sobre as possibilidades da escola e da universidade na
transformação da sociedade, mas reconhecem o caráter político do fazer pedagógico.
Tais reflexões trazidas pelos professores são importantes para justificar a
necessidade de discutir de forma mais contundente os propósitos e objetivos da
formação inicial. No que se refere a temáticas como a educação ambiental e os direitos
humanos, temáticas apropriadas por diversos discursos e posicionamentos políticos
antagônicos, esta discussão e localização teórico-metodológica são essenciais para
orientar um projeto político de formação, seja na licenciatura ou na educação básica.
A função de formação de cientistas também foi citada, como ilustra o
depoimento a seguir:
“Eu acho que um papel importante é formar cientistas, vamos supor, é formar
uma postura científica, que é tirar do que Paulo Freire chama de curiosidade
ingênua e produzir a tal da curiosidade epistêmica que é uma curiosidade que
você se aprofunda e busca etc.” (Professor José)
Este, no entanto, foi um registro pontual, uma vez que apenas um professor a
mencionou no conjunto dos discursos do grupo entrevistado no que se refere à função
social do professor de Ciências e Biologia na Educação Básica.
Conclusões
Os instrumentos de produção de dados (análise de documentos, entrevista com
professores e coordenadores) demonstraram de forma complementar que predomina a
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concepção em que o professor de Ciências e Biologia tem duas funções principais: a
formação científica e a formação humanística e social de seus alunos. Estas funções não
são pensadas de forma separada, sendo uma, instrumento da outra. Esta relação de
complementaridade entre as funções do professor de Ciências Biológicas pode ser
exemplificada pelo uso do conhecimento científico para problematizar e analisar
questões ambientais e sociais e por outro lado, na alusão a questões econômicas, sociais
e culturais para pensar o conhecimento cientifico.
Os objetivos de formação científica parecem se articular com os objetivos de
formação cidadã e crítica, no sentido que o conhecimento científico é entendido nos
textos e falas com uma ferramenta de emancipação individual. E por outro lado, a
ampliação do entendimento da realidade, incorporando discussões sociais, políticas e
culturais, contextualiza o conhecimento científico e fomenta abordagens de maneira
interdisciplinar.
É interessante destacar também as reflexões sobre a natureza do conhecimento
científico entendido como produção humana, inserido dentro da sociedade, para pensar
as transformações da sociedade e as relações sociais ao longo dos tempos. A presença
destas reflexões num curso de formação de Professores de Ciências e Biologia é
importante porque possibilita, no momento que contextualiza a produção científica na
estrutura da sociedade atual, que outros conhecimentos sejam valorizados e
reconhecidos, contribuindo para a construção de uma cultura de reconhecimento e
legitimação de diferentes grupos sociais e de suas demandas (CANDAU, 2010),
auxiliando na construção de uma perspectiva intercultural de educação.
A incorporação de demandas sociais representa sem dúvida um avanço na
maneira de pensar a atuação e formação de professores de ciências para a escola básica,
recontextualizando os propósitos do conhecimento científico e ampliando as fronteiras
dos conhecimentos biológicos na busca por soluções de problemas ambientais que
envolvem dimensões sociais e políticas (MARANDINO, SELLES & FERREIRA, 2009
apud SILVA, 2013). Alves & Carvalho (2015) também apontam para a formação para a
cidadania como uma ampliação dos objetivos das disciplinas de Ciências e Biologia e
citam diversos trabalhos que destacam esta tendência:
“No campo do ensino de ciências, alguns autores identificam que mudanças
ocorridas, tanto com a evolução científica e tecnológica quanto nas relações
entre política e ciência, impactaram significativamente as sociedades,
comunidades e indivíduos, contribuindo para que a formação para a cidadania
fosse incluída como um dos objetivos centrais da educação em ciências
(VILANOVA, 2011). Este processo deu origem a uma gama de estudos que
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buscam distinguir as características do ensino de ciências relacionadas à
participação democrática e aos modelos e discursos de cidadania e construção
da democracia presentes no meio social, reconhecendo aptidões, valores e
conhecimentos específicos atrelados às estratégias e práticas pedagógicas
(VILANOVA, 2011; VILANOVA, BANNEL, 2011; LEVINSON, 2010)”
(ALVES & CARVALHO, 2015 p.3)
Este reconhecimento foi predominante entre os entrevistados. Também esteve
presente em todos os PPCs dos cursos. Este fato, relatado no depoimento de alguns
professores, foi considerado como uma mudança no currículo e na formação inicial dos
professores por demanda das escolas. No entanto, a importância dada à formação
humanística e social proporcionada pelo professor das disciplinas de ciências e biologia
não parece resultar de uma reflexão sistemática e coletiva de seus propósitos. A
formação científica que o professor de Ciências e Biologia deve, tradicionalmente,
oferecer aos seus alunos está pautada e direcionada pela lista de conteúdos a serem
ensinados. Porém, a formação humanística e social parece se articular àquela de forma
não sistemática, na contextualização, na exemplificação cotidiana, mas não como
conteúdos discutidos e assumidos como parte do currículo. Tal ausência de reflexão e
sistematização pode fragilizar esta função do professor de ciências e biologia? No
cotidiano docente estas são questões adiadas por pressão de um currículo extenso de
conteúdos científicos? Estas perguntas provocam uma profunda reflexão a cerca do
currículo em Ciências e Biologia no que se refere à definição de conhecimentos
mínimos essenciais a formação básica e à incorporação de demandas sociais colocadas
em cada contexto escolar. Tal disputa é cara ao projeto de educação transformadora que
se almeja construir, na medida em que indica caminhos para construir a emancipação e
empoderamento político de grupos sociais desprivilegiados.
Por outro lado, há um aspecto que inspira cautela: a ampliação das pretensões da
atuação docente, dos seus objetivos enquanto professor e de sua atuação política podem
ganhar um caráter perverso se as suas condições de trabalho, como carga horária,
salários, estrutura escolar e segurança, não são adequadas. Este cenário dificulta uma
atividade mais estruturada que envolva a comunidade escolar, resultando em mais
angústia para o cotidiano e prática docente.
Esta é uma discussão que extrapola os propósitos deste trabalho. Mas seu
apontamento é necessário para não fortalecer um discurso que sobrecarrega e
responsabiliza centralmente o professor, descolando a qualidade da educação de uma
análise estrutural das determinações externas que influenciam a atuação docente.
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Em resumo, a função social do professor de Ciências e Biologia parece ter sido
ampliada incorporando demandas sociais que promovem discussões relativas a uma
educação que pense as temáticas dos direitos humanos, da educação ambiental e da
interculturalidade. Apesar do lugar hegemônico historicamente assumido pelo
conhecimento científico, a formação destes professores busca problematizar este lugar e
avançar nestas discussões, mostrando um potencial papel destas disciplinas na
construção de uma educação intercultural, de valorização de diferentes culturas e
sujeitos, buscando neste diálogo cultural outras lógicas para pensar caminhos de
superaração da degradação ambiental e das situações de violação de direitos humanos
associadas a ela. Apesar da escola não ser capaz de mudar a estrutura social sozinha,
não é possível eximi-la de qualquer papel. Então é importante pensar como os
profissionais que vão atuar e pensar a escola estão sendo formados para além dos
aspectos técnicos e dos conhecimentos científicos, mas em sua função social na
coletividade, política e socialmente, de forma a auxiliar numa mudança cultural,
desconstruindo o senso comum e contemplando narrativas diversas de desenvolvimento
e de relação do homem com a natureza, buscando assim a auxiliar na criação, a que
chamou Santos (2014), de zonas libertárias do capitalismo.
Referências Biológicas
ALVES, B.T; CARVALHO, L.M. Sentidos construídos na relação entre as
experiências políticas e as práticas de educação ambiental de professores de
ciências da natureza. VIII EPEA - Encontro Pesquisa em Educação Ambiental. Rio de
Janeiro, Julho de 2015.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Conselho Nacional da
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Ministério da Educação. Secretária de Educação Básica. Diretoria de Currículos e
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CANDAU, V.M.F. Educação, direitos humanos, currículo e estratégias
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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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OS GRUPOS DE TRABALHO DA ANPED E A PRODUÇÃO DE UMA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL (2009-2013)
Daniela Frida Drelich Valentim
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ
Este artigo é um recorte da pesquisa Direitos Humanos, Educação, Interculturalidade:
construindo práticas pedagógicas, desenvolvida no período de março de 2013 a
fevereiro de 2017, que teve dentre seus objetivos rever e analisar a literatura sobre a
temática da educação intercultural, atualizando o mapeamento dos textos apresentados
nas Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, espaço privilegiado de discussão sobre as principais questões e investigações
que mobilizam o campo educacional, procurando detectar em que medida as
preocupações interculturais vêm sendo neles incorporadas. Para tanto, teoricamente,
utilizamos um Mapa Conceitual (Candau, 2012) que explicita o sentido que damos aos
princípios, elementos e as características de uma Educação Intercultural.
Metodologicamente realizamos análise de conteúdo dos textos relativos ao período de
2009 a 2013 nos Grupos de Trabalho (GT). Optamos por 9 dos 24 existentes utilizando
um duplo critério: GTs que tratam de questões gerais inerentes aos processos
educacionais- Currículo, Didática e Formação de Professores- e GTs que abordam
temáticas específicas, em princípio, mais sensíveis às diferenças culturais- Educação
Popular, Movimentos Sociais, Educação e Relações Étnico-Raciais, Gênero,
Sexualidade e Educação, Educação Ambiental e Educação e Arte. Num universo de 699
textos, apenas 40 (5.7%) foram identificados como aqueles em que a perspectiva
intercultural estava sendo tratada com uma intensidade central, ou seja, artigos que
apresentavam questões e foco explícitos relativos à temática em pauta. Esse pequeno
número de artigos sugere fragilidade na incorporação da interculturalidade na Educação.
Identidades, protagonismos, diferentes linguagens, pluralidade epistêmica,
reconhecimento cultural, redistribuição das riquezas, visibilização de sujeitos e grupos
subalternizados, ação afirmativa, educação diferenciada aparecem como vocabulário
semântico e horizonte nos textos que reconhecemos de grande contribuição ainda que
quantitativamente exíguos.
Palavras-chave: Educação Intercultural; Diferença Cultural; ANPED.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
11024ISSN 2177-336X
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OS GRUPOS DE TRABALHO DA ANPED E A PRODUÇÃO DE UMA
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL (2009-2013)
Daniela Frida Drelich Valentim
Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ
Introdução
O presente artigo se situa no contexto da pesquisa intitulada Direitos Humanos,
Educação, Interculturalidade: construindo práticas pedagógicas, que vem sendo
desenvolvida desde março de 2013 e terá seu termo final em fevereiro de 2017, por um
grupo de pesquisadores, dentre os quais me incluo na condição de pesquisadora
associada.
Dentre os objetivos dessa grande pesquisa está a atualização da revisão da
literatura sobre a temática da educação intercultural e, com esta finalidade, demos
continuidade ao levantamento realizado na pesquisa anterior Interculturalidade e
Educação na América Latina e no Brasil: saberes, atores e buscas, desenvolvida no
período de março de 2009 a fevereiro de 2012, acerca da produção dos Grupos de
Trabalho (GTs) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, no
período de 2003 a 2008, procurando identificar em que medida e em que sentidos seus
textos contribuem para a temática da educação intercultural.
Entendemos que a produção acadêmica posta em relevo nas Reuniões Anuais da
ANPEd, espaço privilegiado de discussão sobre as principais questões e investigações
que mobilizam o campo educacional, é potente o bastante para que nela procuremos
detectar qualitativa e quantitativamente, os princípios e características de uma Educação
Intercultural.
Decidimos analisar a produção de 9 GTs, 24 que existiam no momento desse
levantamento, utilizando um duplo critério: GTs que tratam de questões gerais inerentes
aos processos educacionais- Currículo, Didática e Formação de Professores- e GTs que
abordam temáticas específicas, em princípio, mais sensíveis às diferenças culturais-
Educação Popular, Movimentos Sociais, Educação e Relações Étnico-Raciais, Gênero,
Sexualidade e Educação, Educação Ambiental e Educação e Arte. Estes dois últimos
GTs, de criação mais recente, foram adicionados por considerarmos que apresentam
potencialidades interessantes para aprofundar a temática da educação intercultural, não
tendo sido incluídos no levantamento anterior.
Ao todo foram analisados 699 (seiscentos e noventa e nove textos).
Aporte teórico-metodológicos
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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17
Interculturalidade e educação intercultural são termos polissêmicos e têm
diferentes acepções, daí a importância de ressaltarmos que dialogamos nesse texto com
os sentidos da interculturalidade crítica proposta por Candau (2006, 2009, 2012). A
interculturalidade crítica é concebida como um processo e uma estratégia ética, política
e epistêmica que se coloca em confronto à geopolítica hegemônica, monocultural e
monorracional de construção do conhecimento e de distribuição do poder, que se
constrói de “baixo para cima” exigindo uma articulação em suas propostas dos direitos
de igualdade com os direitos da diferença.
Para a autora a Educação Intercultural é uma opção assumida dentro do universo
plural do multiculturalismo, concebendo-a como:
Um enfoque que afeta a educação em todas as suas dimensões,
promovendo a interação e comunicação recíprocas, entre os diferentes
sujeitos e grupos culturais. Orienta processos que têm por base o
reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas
de discriminação e desigualdade social. Tenta promover relações
dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a
universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a essa
realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações
sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos, procurando
as estratégias mais adequadas para enfrentá-los. Situa-se em confronto
com todas as visões diferencialistas que favorecem processos radicais
de afirmação de identidades culturais específicas. Rompe com uma
visão essencialista das culturas e das identidades culturais. Parte da
afirmação de que, nas sociedades em que vivemos, os processos de
hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de
identidades abertas, em construção permanente. É consciente dos
mecanismos de poder que permeiam as relações culturais (CANDAU,
2006, p. 31 e 32).
Tendo presente tal perspectiva, como instrumento para análise, utilizamos um
Mapa Conceitual da expressão educação intercultural (Candau, 2012). A questão focal
que orientou a construção do Mapa foi: em que consiste a educação intercultural?
O Mapa com que operamos concebe quatro categorias, assim explicitadas:
- Sujeitos e atores socioculturais (individuais e coletivos). Diz respeito à
promoção de relações mais igualitárias. O que significa: questionar uma visão
essencializadora das identidades; fortalecer a construção de identidades dinâmicas,
abertas e plurais; valorizar processos de empoderamento; estimular processos de
construção da autonomia e emancipação social.
- Conhecimentos. Refere-se à proposta de romper com a hierarquização entre os
conhecimentos que estariam relacionados aos conceitos, ideias e reflexões
sistematizadas, considerados científicos, universais e monoculturais e os saberes que
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seriam os reconhecidos como produções dos diferentes grupos socioculturais,
relacionados às suas práticas cotidianas, tradições e visões de mundo, concebidos como
particulares e assistemáticos, assumindo todos enquanto conhecimentos sem negar os
conflitos que emergem da tensão entre universalismo e relativismo.
- Práticas socioeducativas. Relativa à proposta de se favorecer dinâmicas
participativas; promover processos de diferenciação didático-pedagógica; incentivar a
utilização de múltiplas linguagens e a construção coletiva, questionando, portanto,
dinâmicas padronizadas e desvinculadas dos contextos socioculturais dos sujeitos que
delas participam.
- Políticas públicas. Diz respeito às relações entre os processos educacionais e os
contextos político-sociais em que se inserem; ao reconhecimento dos diferentes
movimentos sociais presentes na sociedade brasileira; à defesa da articulação entre
políticas de reconhecimento e de redistribuição, bem como dos processos de construção
democrática que têm como horizonte a consolidação de uma democracia radical.
As reuniões da Anped abarcam diferentes atividades: conferência, sessões
especiais, sessões de conversas, trabalhos encomendados, sessões de grupos de trabalho,
minicursos, entre outras. Optamos por focar nossa análise nos GTs, por considerar que
estes constituem o principal espaço para o qual a comunidade acadêmica envia sua
produção e que esta passa por uma seleção do Comitê Científico.
A análise dos textos, objetos de nosso estudo, foi realizada em três etapas. Na
primeira, fizemos uma leitura dos resumos, das introduções, das conclusões e das
referências bibliográficas de todos os artigos disponíveis em cada um dos 09 GTs, a fim
de, a partir desta aproximação inicial, selecionar aqueles que pareciam apresentar um
potencial de diálogo com a perspectiva da Educação Intercultural. Os critérios para esta
primeira seleção foram bastante amplos e flexíveis: os objetivos ou questionamentos
explicitados, o campo semântico e os interlocutores privilegiados foram considerados
como alguns indicadores de um possível diálogo com a perspectiva intercultural.
Já na segunda etapa de nossa análise, classificamos os textos quanto à sua
natureza discursiva, ou seja: relato de experiência, pesquisa, reflexão conceitual e
outros, bem como quanto à intensidade da incorporação da temática relacionada à
interculturalidade, levando em conta três categorias: central (apresentavam questões e
um foco explícito que se referia à temática focada), secundário (as questões
interculturais apareciam como derivadas ou como consequência da temática central) e
indícios (apresentavam algum aspecto que se relacionava com a interculturalidade, mas
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11027ISSN 2177-336X
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sem desenvolver, limitando-se a uma simples enunciação). Na terceira e última etapa,
buscamos identificar, somente nos textos classificados como centrais, as ênfases
priorizadas, analisando-as em diálogo com as categorias do mapa conceitual.
Vale dizer que, de um universo de 699 artigos apresentados nos GTs analisados,
181 foram pré-selecionados na primeira etapa do nosso trabalho, mas somente 41 foram
considerados, como tratando de modo central as questões relacionadas à Educação
Intercultural.
A Educação Intercultural em 09 GTS da Anped: alguns apontamentos
Neste item, vamos apresentar um pequeno recorte da nossa análise. São algumas
reflexões e/ou contribuições que reconhecemos presentes nos artigos centrais, ou seja,
aqueles mais “afinados” com a perspectiva intercultural, tendo lançado sobre eles um
“olhar informado” pelo mapa conceitual da Educação Intercultural e pelas categorias
que o configuram.
Para começar, podemos dizer que, no caso do GT Didática, dos 68 trabalhos
apresentados, 7 indicavam aspectos que podem ser considerados como uma
contribuição à construção de uma Educação Intercultural, mas apenas 5 foram
reconhecidos como centrais.
Dada a crescente preocupação dos professores com as questões das diferenças
culturais no cotidiano escolar, a presença desta temática nas pesquisas apresentadas no
GT de Didática é muito pequena, o que evidencia que ainda não tem sido assumida de
modo significativo pelos pesquisadores da área.
Chama a atenção nos textos analisados que a perspectiva das diferenças culturais,
seu reconhecimento e valorização, começam a questionar o ensino de diversas áreas
curriculares - língua estrangeira, biologia e história, promovendo assim a discussão de
aspectos epistemológicos importantes para a preocupação por desenvolver a educação
intercultural. Consideramos este componente fundamental para se trabalhar a
perspectiva da justiça cognitiva (Santos, 2004) e, a partir do conceito que adotamos, é
básica para a educação intercultural. Convém salientar que os textos estão centrados nas
concepções dos professores, não tendo a preocupação de trabalhar o universo dos
alunos. Esta é uma lacuna para nós significativa. Aprofundar no universo de referência
dos alunos, seus processos de identificação e construção como sujeitos individuais e
coletivos, constitui um componente fundamental dos processos de educação
intercultural. O desenvolvimento de projetos e a perspectiva da diferenciação
pedagógica são componentes de relevância abordados pelos textos. Problematização e
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dialogicidade parecem ser as abordagens mais enfatizadas, superando-se, assim, uma
visão de conhecimentos prontos, fixos, atemporais e inquestionáveis.
No que se refere ao GT Currículo, de um total de 97 trabalhos apresentados, 21
foram pré-selecionados e apenas 2 foram indicados como centrais, expressando,
também no acaso deste GT, a pouca frequência de artigos que enfatizassem a
perspectiva intercultural, apesar de praticamente todos eles operarem com diferentes
sentidos de cultura.
Os textos centrais tratam da educação em ciências e a da educação indígena
ambos evidenciando a educação como possível espaço de subversão e descolonização
do conhecimento escolar, assim como de afirmação e fortalecimento identitário embora
valorizem o desenvolvimento de relações entre as diferentes culturas e conhecimentos
produzidos pelos grupos culturais historicamente excluídos. Apontam a necessidade de
“outros” conhecimentos para além dos científicos/ocidentais. A importância de políticas
públicas voltadas ao reconhecimento da diferença cultural aparece toda vez em que a
educação indígena é tratada, são trazidas as diferentes legislações que possibilitaram o
tratamento da educação para os grupos indígenas, sob novos paradigmas, desde a
Constituição Federal de 1988.
Por sua vez, dos 104 trabalhos apresentados no GT Formação de Professores, 7
foram pré-selecionados e apenas 1 classificado como central, permitindo reiterar a
mesma constatação feita nos dois GT acima apresentados: também nesse caso a
presença de trabalhos sobre a temática da educação intercultural é quase zero o que
confirma os achados de LEITE, 2006 e Koff, 2012.
O único texto que selecionamos traz contribuições e questões que nos remetem à
complexidade política e pedagógica da educação intercultural. Trata-se de uma pesquisa
que teve como objetivo estudar as práticas pedagógicas de professores Guarani e
Kaiowá no âmbito da comunidade e de como essas práticas e seus efeitos estão
envolvidos (são perpassados pela) na dinâmica do poder social da comunidade e o seu
entorno, através da percepção dos próprios professores, dos alunos e das mães, sujeitos
mais diretamente envolvidos na dinâmica escolar e, portanto, das tensões existentes no
espaço escolar. Tendo como horizonte uma pedagogia intercultural problematiza o
direito à escola específica, diferenciada, intercultural e bilíngue. O reconhecimento do
protagonismo e das “vozes” historicamente silenciadas e recusadas dos sujeitos
indígenas é a marca do texto, todavia entrelaçado com a valorização das identidades
étnicas notamos também o reconhecimento e a valorização de conhecimentos,
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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epistemologias e cosmologias próprias das etnias focalizadas e. nesse sentido pensa a
formação inicial e continuada dos professores indígenas. Defende a autonomia dos
professores para a elaboração e invenção de projetos pedagógicos e materiais didáticos
próprios, particularizados, reinventando a didática.
No que diz respeito ao GT Educação Popular, de um universo de 58 artigos, 17
foram pré-selecionados e 4 categorizados como centrais.
Aqui a análise dos textos considerados centrais põe em evidência alguns aspectos
significativos como, por exemplo, os diferentes sentidos semânticos e políticos da
interculturalidade, a importância das epistemologias do Sul, especialmente as da
América Latina comprometidas que são com a transformação social, a ênfase na
utilização de métodos de pesquisa como investigação-ação participativa, pesquisa
participante, pesquisa-ação, e mais recentemente, a sistematização de experiências, a
produção de pedagogias de resistência e insurgência como a experiência do Exército
Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) de Chiapas (México), assim como, a
inspiração de José Martí (Cuba) e do peruano Mariátegui na desconstrução dos
conhecimentos coloniais impostos pelo Norte, As populações indígenas voltam a
aparecer nesse GT com suas demandas por protagonismo, currículos
diferenciados/específicos e respeito aos saberes tradicionais em confronto com um
currículo comum, padronizado, de inspiração universalista em que todos tenham
oportunidade de acesso e de sucesso na aquisição de conhecimentos considerados
“válidos” ou “poderosos” (Young, 2007). Paulo Freire é autor citado e seus conceitos de
dialogicidade e leitura do mundo são trazidos e trabalhados num contexto de defesa da
pluralidade cultural que é tensionada por perspectivas assimilacionistas.
No caso GT Movimentos Sociais, dos 59 textos que compõem o universo
analisado, 17 foram pré-selecionados e 3 indicados como centrais. É importante
destacar que uma parte significativa desses artigos tende a centrar sua atenção na ação
ou organização de grupos específicos. No período 2009-2013, o GT privilegiou temas
relacionados a experiências educativas realizadas por movimentos sociais do campo e
relativas às juventudes, suas trajetórias, identidades e aspirações. Outros temas como os
relacionados a grupos indígenas e afrodescendentes também aparecem. Note-se que os
três trabalhos selecionados como centrais foram apresentados na mesma Reunião Anual
da Anped (35ª), realizada em 2012 e fazem referências aos jovens indígenas amazônicos
sateré-mawé, ao movimento dos trabalhadores rurais sem terra e ao movimento negro
afrocolombiano.
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Consideramos pouca a presença da educação Intercultural nos trabalhos do GT o
que nos surpreendeu, pois, a temática deste parece propiciar esta interlocução com
maior intensidade. Foram discutidas as práticas educativas do MST na Amazônia
paraense, para jovens e adultos, num assentamento, que pretende o trabalho político
com as classes populares na reinvenção do seu mundo que difere do mundo urbano do
consumo. Aqui também temos a presença de Paulo Freire como teórico chamado ao
diálogo. Quanto à educação de jovens indígenas as contradições, conflitos e tensões
próprias da lida com a diversidade cultural são notados quando a cultura indígena é
confrontada com a cultura ocidental em seus valores, ritmos, língua, conhecimentos e
práticas.
No entanto, os textos analisados focalizaram questões de especial importância
para o desenvolvimento da educação intercultural, tais como, o diálogo entre diferentes
conhecimentos, os conflitos culturais, identidade juvenil, os processos de mediação
cultural, as dificuldades da escola para lidar com as diferenças culturais, as lutas dos
grupos afrocolombianos por reconhecimento, o enfrentamento do racismo e a
construção de políticas públicas específicas, a construção de categorias como
etnoeducação e educação própria e a problematização da branquitude que Castro-
Gómez (2010) chama de “dispositivo de blancura” com o qual devemos romper.
Noventa e dois (92) textos constituem o universo do material analisado no GT
Educação e Relações Étnico-Raciais, sendo que 63 foram pré-selecionados e 18
alocados na categoria central sendo que a totalidade deles é voltada ao protagonismo e
empoderamento dos sujeitos, portanto, há um destaque da categoria “sujeitos e atores”
do Mapa Conceitual com qual vimos operando. No entanto, nesse GT os trabalhos
alcançam as quatro categorias do Mapa.
A maioria dos trabalhos centrais lida com a “identidade negra” de crianças, jovens
e adultos em suas interrelações dentro e fora dos espaços formais de educação, mas a
“identidade indígena” também é trabalhada nesse GT. Os artigos trazem para o centro
do debate a interface da valorização de identidades subalternizadas histórica e
socialmente com o caráter da insurgência de sujeitos sociais, bem como a abordagem de
diferentes perspectivas epistemológicas e políticas. Esta dimensão não apenas
valorativa, sobretudo, de reconhecimento dos sujeitos Outros (Walsh, 2012), enquanto
sujeitos epistêmicos perpassam todos os trabalhos do GT. Neste sentido, chamam
atenção para os diferentes processos de subjetivação e para as lutas protagonizadas nas
esferas públicas e sociais. É possível dizer que o GT opera o tempo todo com a noção
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de cultura em seus diferentes sentidos, a noção de cultura tende a ser considerada como
uma das categorias centrais indispensáveis para dar inteligibilidade ao mundo desde a
“virada cultural” (Hall,1997), o que se reflete no âmbito das políticas públicas
educacionais, trazendo implicações políticas e epistemológicas, tal como podemos
observar nos trabalhos, tanto na análise da categoria políticas públicas quanto na
categoria conhecimentos. Os textos explicitam a hierarquização dos conhecimentos ao
refletirem sobre a lógica ocidental na qual a escola foi/é pensada, os saberes
privilegiados em seus currículos, as diferentes nuances dos processos de exclusão e
invisibilidade de tudo aquilo que é produzido do outro lado da linha abissal (Santos,
2010). Os trabalhos destacados, de forma geral, apontam para a necessidade de
rompermos com uma lógica monocultural e homogênea de educação e fazer
pedagógico. Problematizam as práticas docentes pautadas na uniformização e
padronização dos conhecimentos. Afirmam a importância do cotidiano, da leitura de
mundo dos diferentes sujeitos sociais e de um repertório pedagógico contra-
hegemônico, que vise combater todo tido de preconceito e discriminação, valorizando e
respeitando as diferenças.
Koff em trabalho apresentado no ENDIPE de 2012 fez observações acerca dos
trabalhos centrais deste GT ainda plenamente válidos:
Vários autores presentes neste GT ressaltaram as contribuições do
multiculturalismo crítico/intercultural para a formação de professores,
a construção de novos saberes e para se pensar em um currículo que
valorize os diferentes conhecimentos, saberes, vivências e
experiências dos diferentes grupos culturais. Assinalaram também a
sua importância na perspectiva da desconstrução do enfoque
monocultural da prática educacional e na construção de uma
abordagem que reconheça e valorize a diversidade cultural, as
diferentes identidades e a construção de uma educação justa,
democrática e que luta contra todas as formas de discriminação e
desigualdade social (Koff, 2012, 002170).
Dos 76 trabalhos apresentados no período objeto de nossa análise, no GT Gênero,
Sexualidade e Educação 15 foram pré-selecionados (2– enfoque secundário e 13-
indícios) e nenhum trabalho foi interpretado/categorizados como central. Pudemos
perceber que o diálogo, a relação que marca a perspectiva da interculturalidade esteve
pouco presente nos trabalhos analisados. Em geral, os textos focalizam a necessidade de
reconhecimento de identidades específicas referidas às questões de gênero e
sexualidade, assim como ao enfretamento de processos de discriminação e preconceito.
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Todavia, não trabalhavam as relações entre os diferentes sujeitos como foco central de
suas reflexões.
Foi somente nessa pesquisa que fizemos o levantamento e análise dos próximos
dois GTs. No caso GT Educação Ambiental, dos 68 textos que analisamos, 16 foram
pré-selecionados e 4 indicados como centrais.
Interessante notar que os 4 textos se concentram na problematização do
conhecimento científico hegemônico e na valorização de conhecimentos populares ou
tradicionais e dos sujeitos que os produzem como os mestres canoeiros durante a feitura
de canoas no pantanal mato-grossense ou os sujeitos “conhecedores de plantas”.
Problematizam a estrutura produtiva atual e como ela se perpetua e legitima a partir do
entendimento da natureza que convém à cultura hegemônica e ao capitalismo. A ideia
de desenvolvimento ligada ao crescimento, ao aumento de ganhos de capitais tornou-se
uma lógica difícil de ser superada a despeito de toda degradação gerada até aqui. Desta
maneira, na questão ambiental, a legitimação e visibilidade de outros conhecimentos
não pautados pela racionalidade técnico-científica, mas em outras lógicas nas quais a
natureza é entendida de forma mais integrada ao homem, sendo este, parte indissociável
dela, poderiam inspirar novas maneiras de ordenar os usos e apropriações dos bens
naturais. A escola neste contexto, não é capaz de resolver a crise ambiental sozinha,
pois não pode reconfigurar estruturas sociais degradantes do ecossistema determinadas
pelo modelo capitalista atual de desenvolvimento. Mas teria uma importante função, a
de formar integralmente cidadãos autônomos, críticos e capazes de fazer escolhas
conscientes e sustentáveis, valorizando o diálogo com os saberes locais e as identidades
dos diferentes sujeitos. Sendo assim, consideramos que a perspectiva da educação
intercultural crítica tem importantes contribuições para o campo da educação ambiental,
sobretudo porque coloca em destaque as relações entre a natureza e a estruturação
econômica e política do país.
Por fim, o GT Educação e Arte, existente a partir de 2009. No período
pesquisado apresentou 77 trabalhos, 18 foram pré-selecionados e 3 indicados como
centrais sendo 2 textos teóricos, conceituais e 1 relato de experiência.
O campo do ensino de Artes se nos mostrou bastante heterogêneo. Embora
poucos, os artigos centrais tangem as tensões e conflitos que emergem em torno das
questões identitárias de mulheres, suburbanos, jovens, “pichadores” e “funkeiros” e
histórias de vida de sujeitos inferiorizados/subalternizados que lutam por afirmação e
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visibilidade quando confrontados com o establishment social e a estética por ele
autorizada. Os 3 trabalhos propõem o enfrentamento de preconceitos, discriminações
e estereótipos dentro e fora da escola, questionam a belas artes, a estética acadêmica, o
pensamento moderno, disciplinar e racionalista que ainda impregna o ensino da arte
acolhendo infidelidades, imperfeições e incompletudes que se chocam com a lógica da
perfeição e harmonia do status quo. Por outro lado, defendem um ensino da arte que
subverta o conhecimento disciplinar definido pelo conceito de arte pura em nome de
uma concepção de ensino da arte contemporâneo em que saberes artísticos se
apresentem atravessados por histórias de vida (experiências de atelier conjugadas com
experiências de vida). Ou seja, trabalhar com o conceito de arte expandida que significa
ir além das cores, formas, texturas, elementos gráficos e composicionais das obras dos
artistas, a fim de estabelecer interlocuções entre a arte (principalmente a arte
contemporânea) e outras áreas de conhecimento e temas do mundo atual.
Considerações Finais
Estamos atentos aos limites que trabalhos qualitativos como o nosso têm ao
construir categorias que servem como instrumentos de análise e sem nenhuma
pretensão, portanto, de assumir dimensões absolutas e definitivas. O seu potencial
analítico consiste justamente na explicitação dos critérios utilizados na sua construção, o
que, se por um lado, torna possível identificar os seus limites e fragilidades, por outro,
garante uma base de rigor metodológico para a realização de um trabalho desse tipo.
É possível afirmar após nosso trabalho de levantamento, análise e categorização
dos textos apresentados nos GTs da ANPED no período 2009-2013 que a perspectiva da
interculturalidade com a qual operamos aqui, ainda é pouco significativa na produção
acadêmica que definimos como significativa, isto é, ainda é pouco incorporada,
articulada e propugnada pela vasta parcela daquilo que poderíamos nomear como
campo da pesquisa em educação.
Autoras como Leite (2006) e Koff (2012) que se debruçaram sobre os trabalhos
dos GTs ANPED, esquadrinhando-os por um período de 14 anos ao todo, já alertaram
que a educação intercultural crítica “tem uma significativa trajetória para percorrer e
vários desafios para vencer no que se refere à sua incorporação e desenvolvimento no
contexto educacional, de um modo mais efetivo e abrangente” (Koff, 2012, 002178).
De um total de 699 textos analisados, 181 foram pré-selecionados, o que
representa 25.9% do total e apenas 40 artigos, isto é, 5.7% do universo dessa produção e
segundo nossos critérios, tratavam do tema de forma central.
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Tal fragilidade foi constatada especialmente nos GTs de Gênero, Sexualidade e
Educação, Didática, Formação de Professores e Currículo. No GT de Formação de
Professores, de 104 trabalhos analisados há apenas 1 destacado como central. Chama a
atenção que somados os GTs Didática, Currículo e Formação de Professores
encontramos somente 8 trabalhos categorizados como centrais, o que representa apenas
20% do total, o que consideramos grave quando diferentes pesquisas demonstram o
acirramento da violência na/da escola oriunda de conflitos com sede nas diferenças
religiosas, de gênero, raciais, homofobia e transfobia. Como é prática no Brasil,
pensamos que a existência de uma lei (Lei Federal 13.185 de 6 de novembro de 2015-
“Lei anti-bullying”), poderá sanar situações que dependem de mudança de mentalidades
e enraizamento na cultura escolar que deveria ser promovidas pelos próprios sujeitos
escolares, por aqueles que pensam e produzem acerca do “chão da escola”.
Na outra extremidade temos o GT de Educação e Relações étnico-raciais que
responde por 19 textos centrais dentre os 40 totais, isto é 45% deles e do total
apresentado no GT de 92 textos, representa 20.6%. A educação diferenciada, a educação
voltada aos quilombolas e às etnias indígenas, os desafios da implementação da
educação para as relações étnico-raciais, as ações afirmativas lá foram problematizadas,
o que se constituiu num terreno fértil ao debate da interculturalidade em seus aspectos
éticos, políticos e epistemológicos.
Do ponto de vista do diálogo teórico encontrado nos textos centrais, aparecem
com frequência, dentre outros, os autores do campo dos Estudos Culturais, Boaventura
de Sousa Santos, Frantz Fanon, Paulo Freire, do Grupo Modernidade-Colonialidade,
especialmente Anibal Quijano, Walter Mignolo e Catherine Walsh, Vera Candau e
Miguel Arroyo.
O fato de termos avançado em relação às questões estruturais não apaga a
realidade de que ainda somos um país de desigualdades sociais severas que demandam
redistribuição. Nesse contexto, afirmamos que o racismo também se constitui como
estruturante de uma sociedade iniqua. As muitas diferenças culturais clamam por
reconhecimento, por uma igualdade na diversidade que só se alicerça com a luta contra
os estereótipos, discriminações, preconceitos, sexismo e racismo.
A interculturalidade crítica é prática política alternativa à geopolítica hegemônica,
monocultural e monorracional de construção do conhecimento, de distribuição do poder
e de caráter social. Trata-se de uma ferramenta, uma estratégia e uma manifestação de
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uma maneira “outra” de pensar e agir que se constrói de baixo para cima e que exige
articulação em suas propostas dos direitos de igualdade com os direitos da diferença.
Os textos aqui entendidos como centrais quanto à intensidade da incorporação da
perspectiva da Educação Intercultural contribuem para a (re)construção e o refinamento
de formas de intervenção na educação formal ou não. Identidades, protagonismos,
diferentes linguagens, pluralidade epistêmica, práticas comunitárias, reconhecimento
cultural, redistribuição das riquezas, visibilização de sujeitos e grupos subalternizados
historicamente, políticas públicas de ação afirmativa, educação diferenciada aparecem
não só como vocabulário semântico, mas também como horizonte de sentidos nesses
textos que reconhecemos de grande contribuição ainda que quantitativamente exíguos.
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11037ISSN 2177-336X
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O ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA E AS DIFERENÇAS CULTURAIS:
PRODUÇÕES DA ANPED (2010-2015)
Ana Paula da Silva Santos
PUC-RIO e Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias
Rita de Cassia Silva
UNISUAM e Secretaria Municipal de Educação do RJ
O presente artigo teve como objetivo analisar como as diferenças culturais são tratadas
na produção acadêmica do campo do ensino da Educação Física escolar, buscando
ênfases e/ou silenciamentos. A afirmação das diferenças de raça, étnicas, de gênero,
orientação sexual, entre outras, no campo educacional se apresentam cada vez mais
demandada, desafiando práticas, currículos e concepções pedagógicas. Teoricamente
entendemos que as diferenças devam ser reconhecidas e tratadas como riquezas
pedagógicas. Assumimos, para tanto, a perspectiva da interculturalidade crítica para
fundamentar nossas proposições. Optamos por fazer um levantamento e análise dos
textos apresentados em 10 Grupos de Trabalho nas Reuniões da ANPED, no período de
2010 -2015, por considera-los como espaços privilegiados acerca das pesquisas em
educação. Os GTs selecionados foram os que consideramos fundamentais para a análise
dos processos escolares – Didática, Educação de crianças de 0 a 6 anos, Formação de
Professores, Política de Educação Superior, Currículo, Educação Fundamental,
Educação Especial e Educação de Pessoas Jovens e Adultas. Também optamos por
selecionar os GTs que, a princípio, consideramos sensíveis à questão das diferenças
culturais – Educação e Relações Étnico-raciais e Gênero, Sexualidade e Educação. Dos
948 trabalhos, encontramos 12 relacionados ao ensino da Educação Física escolar. É
possível afirmar que destes, 6 apresentaram preocupações relacionadas às diferenças
culturais. Destacamos que o número de artigos indica a frágil produção teórica no
campo da Educação Física, todavia 50% da produção destacada apresenta indícios para
a temática das diferenças. Em relação as ênfases, identificamos as questões de gênero e
étnico-raciais como as preocupações mais evidentes e, no que se refere aos
silenciamentos, fica visível o fato de que a diferença cultural, mesmo que presente nas
discussões não é tratada como uma riqueza pedagógica.
Palavras-chave: Educação Física; Diferença; Interculturalidade
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
11038ISSN 2177-336X
O ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA E AS DIFERENÇAS CULTURAIS:
PRODUÇÕES DA ANPED (2010-2015)
Ana Paula da Silva Santos
PUC-RIO e Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias
Rita de Cassia Silva
UNISUAM e Secretaria Municipal de Educação do RJ
Introdução
Atualmente, diferentes grupos culturais ocupam espaços públicos exigindo a
garantia de direitos e o reconhecimento de suas identidades. Conflitos, tensões e
desafios se intensificam na tentativa de, paralelamente, buscar a igualdade e reconhecer
as diferenças.
Para Candau (2014, p. 23) “as diferenças socioculturais são componentes
fundamentais das relações sociais”, atravessando o cotidiano, tanto no que se refere as
relações interpessoais, quanto entre os diversos grupos culturais e movimentos sociais
presentes na nossa sociedade.
A afirmação das diferenças étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosa, entre
outras, se revela a partir dos mais distintos rituais, saberes, crenças e linguagens. Tal
problemática se torna visibilizada, principalmente, pelos movimentos sociais, que
denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, pleiteando igualdade na
acessibilidade de bens e serviços, bem como no reconhecimento político e cultural
(CANDAU, 2012).
No campo educacional, esse conjunto de questões também se apresenta cada vez
mais evidente, desafiando práticas escolares fundamentadas em concepções modernas
que priorizam o comum, o uniforme, o padrão, o universal. Neste enfoque, as diferenças
são silenciadas ou consideradas um problema a resolver.
Tal evidência também se manifesta no campo da Educação Física escolari, que
passou a ser questionada a partir dos anos de 1980 o que culminou em um novo modo
de pensar da área, deslocando a ideia da presença de um corpo biológico para um corpo,
também, social e cultural. Nesse sentido, a percepção sobre as diferenças culturais
começou a ganhar espaços de reflexão nas práticas escolares, a partir de um enfoque
sociocultural (OLIVEIRA e DAOLIO, 2011).
Deste modo, defendemos neste estudo que as diferenças culturais devem ser
reconhecidas como riqueza pedagógica, superando a padronização nas práticas escolares
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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e, como consequência, o apagamento de grupos culturais excluídos historicamente.
Adotamos para tanto, a perspectiva da interculturalidade crítica (CANDAU, 2014) para
fundamentar nossas proposições.
Partindo desse contexto, o presente estudo tem como objetivo analisar como as
diferenças são tratadas na produção acadêmica do campo da Educação Física escolar,
buscando presenças e/ou ausências, ênfase e/ou silenciamento.
Para tanto, realizamos uma revisão de literatura, acerca da questão, onde
optamos por fazer um levantamento de textos de comunicações orais apresentados na
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), considerado
como um local privilegiado de discussões a respeito das questões ligadas ao âmbito
educacional. Buscamos a partir deste levantamento analisar em que medida as
diferenças culturais são tratadas nas produções acadêmicas no campo da EF escolar.
Como recorte temporal, foram analisadas as produções no período de 2010 a
2015 da ANPED, onde selecionamos os Grupos de Trabalho (Gts) que consideramos
fundamentais para a análise da prática pedagógica na escola básica – Didática,
Currículo e Educação Fundamental e os Gts que consideramos sensíveis à questão das
diferenças no campo da EF – Educação e relações étnico-raciais e Gênero, sexualidade e
educação.
Deste modo, este estudo se estruturou da seguinte forma: inicialmente
procuramos discutir algumas questões relacionadas às diferenças no contexto escolar.
Num segundo momento situamos a perspectiva intercultural crítica, que fundamenta o
presente trabalho. Terminamos apresentando os resultados referentes a revisão de
literatura realizada, tecendo breves considerações finais.
Qual (is) diferença (s) estamos falando?
Estudos recentes indicam que a relação diferenças culturais e cotidiano escolar,
vem se tornando como um dos principais debates no cenário educacional (CANDAU,
2012, 2014; CANDAU e LEITE, 2011; RUSSO e ARAÚJO, 2013; VALENTIM et al
2010).
A princípio, consideramos importante destacar sobre qual (is) diferença (s)
estamos falando. Silva (2000 apud CANDAU, 2012) propõe uma diferenciação entre
diversidade e diferença que julgamos fundamentar destacar:
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
11040ISSN 2177-336X
3
Em geral, utiliza-se o termo “diversidade” para advogar uma política
de tolerância e respeito entre as diferentes culturas. Ele tem,
entretanto, pouca relevância teórica, sobretudo por seu evidente
essencialismo cultural, trazendo implícita a ideia que a diversidade
está dada, que ela pré-existe aos processos sociais pelas quais – numa
outra perspectiva – ela foi, antes de qualquer outra coisa, criada.
Prefere-se, neste sentido, o conceito de “diferença” por enfatizar o
processo social de produção da diferença e da identidade, em suas
conexões, sobretudo com relações de poder e autoridade (SILVA,
2000 apud CANDAU, 2012, p.90)
Deste modo, as diferenças são concebidas num processo sociohistórico de
desconstrução e reconstrução contínuo e dinâmico, estabelecidas nas relações sociais
permeadas por questões de poder.
Para Candau (2012, p. 90), as diferenças:
São constitutivas dos indivíduos e grupos sociais. Devem ser
reconhecidas e valorizadas positivamente no que tem de marcas
sempre dinâmicas de identidade, ao mesmo tempo em que combatidas
as tendências às transformá-las em desigualdades, assim como a tornar
os sujeitos a ela referidos objeto de preconceito e discriminação.
Como “diferenças” tratadas no presente estudo, incluímos as diferenças de raça,
classe social, orientação sexual, gênero, etnia, linguagem, religião, deficiência, entre
outras. Isto posto, advertimos que não basta apenas reconhecer a diferença como parte
das relações sociais, mas ir além desse reconhecimento. Ressaltamos ser fundamental
entender que essas relações são marcadas por tensões e conflitos em função de
mecanismos de poder que, por esse motivo, provocam a construção de hierarquias,
processos de subalternização, preconceitos e discriminações em relação aos grupos
sociais historicamente inferiorizados (CANDAU, 2014).
Para Oliveira e Daolio (2011), ao entrar em cena a discussão da cultura no
campo da EF, especialmente nos anos de 1990, não houve mais como negar a existência
das diferenças. Para o referido autor, a cultura é o principal conceito para a EF, pois
todas as manifestações corporais humanas são construídas na dimensão da cultura.
Deste modo, a EF parte da cultura para se constituir como um campo de conhecimento
que aborda as práticas corporais construídas ao longo da história – os jogos, as
ginásticas, as lutas, os esportes e as danças – tal contexto, segundo o autor, deve levar
em consideração o cenário sociocultural onde ele acontece e as diferenças presentes nos
alunos e alunas. “Uma prática escolar de EF deve fazer da diferença entre os alunos
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condição de sua igualdade, em vez de ser critério para legitimar a subjugação de uns
sobre os outros” (OLIVEIRA e DAOLIO, 2011, p.6).
Para Neira (2011) em uma abordagem cultural da EF escolar, os/as estudantes
são levados a refletirem sobre as diversas práticas corporais advindas dos diferentes
grupos sociais, possibilitando um novo olhar para tais práticas de modo a superar
discriminações e preconceitos.
Neste sentido:
O currículo cultural da Educação Física pretende fazer “falar”, por
meio do estudo das manifestações corporais, a voz de várias culturas
no tempo e no espaço, além de problematizar as relações de poder
explícitas e implícitas. Neste prisma, pode ser concebido como terreno
de luta pela validação dos significados atribuídos às práticas corporais
pelos diversos grupos, visando a ampliação ou conquista de espaços
na sociedade (NEIRA, 2011, p. 48)
A partir do exposto, corroboramos com Candau (2014) quando afirma que a
perspectiva intercultural crítica pode ser uma ferramenta importante ao enfrentamento
dos processos descritos anteriormente, bem como um mecanismo de valorização das
diferenças culturais.
Interculturalidade crítica: um caminho para tratar as diferenças nas aulas de EF
Para Candau (2008) a perspectiva intercultural crítica apresenta algumas
características que lhes são peculiares. A primeira delas é a promoção da inter-relação
entre os diferentes grupos presentes em uma determinada sociedade e a valorização de
suas identidades e diferenças culturais.
Outra característica fundamental é a ruptura de uma visão essencialista das
culturas e identidades culturais, pois a perspectiva intercultural concebe as culturas em
um contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução das identidades. A
terceira característica destacada por Candau (2008) em relação a perspectiva
intercultural são os processos de hibridização cultural presentes na dinâmica dos
diferentes grupos socioculturais. Estes processos são mobilizadores da construção de
identidades abertas, em construção permanente, o que admite que as culturas não são
“puras”, mas construídas a partir da interação de diferentes culturas. Nesta perspectiva,
entende-se que as relações culturais são construídas na história e, portanto, atravessadas
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por questões de poder e relações fortemente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito
e discriminação de determinados grupos.
A referida autora destaca que outra preocupação da perspectiva intercultural é a
articulação entre igualdade e diferença de modo que esta relação possibilite a
valorização do que é comum a todos e todas e reconheça da mesma forma, os diferentes
sujeitos socioculturais.
Esta perspectiva busca a problematização das diferenças e desigualdades
construídas ao longo do tempo entre os diferentes grupos socioculturais, étnico-raciais,
de gênero, orientação sexual, entre outros. Torna-se indispensável para tal perspectiva a
construção de sociedades que assumam as diferenças como parte da democracia,
estabelecendo relações igualitárias entre os diferentes grupos.
As pesquisas no campo da EF: qual o lugar das diferenças culturais?
Consideramos relevante detectar ênfases e silenciamentos no que se refere à
questão das diferenças culturais nos artigos do campo do ensino da EF escolar
apresentados na ANPED no período de 2010 a 2015. Tal escolha se justifica pelo fato
desse espaço ser considerado um dos mais importantes e privilegiados locais de
discussão do campo da educação brasileira.
Dos 948 trabalhos apresentados, encontramos apenas 12 trabalhos relacionados
ao ensino da EF escolar. É possível afirmar que destes, 6 apresentaram indícios para as
questões relacionadas às diferenças culturais.
Selecionamos para a presente análise, os Grupos de Trabalhos (GTs) que
consideramos fundamentais para a compreensão dos processos escolares – Didática,
Educação de crianças de 0 a 6 anos, Formação de Professores, Política de Educação
Superior, Currículo, Educação Fundamental, Educação Especial e Educação de Pessoas
Jovens e Adultas. Também optamos por selecionar os GTs que, a princípio,
consideramos sensíveis à questão das diferenças culturais – Educação e Relações
Étnico-raciais e Gênero, Sexualidade e Educação.
O foco neste levantamento foi identificar em que medida a questão das
diferenças culturais aparece nos artigos publicados - há indicações para a questão?
Ênfases ou silenciamentos? É importante ressaltar que a análise utilizou a perspectiva
intercultural crítica como “pano de fundo teórico” para subsidiar reflexões e
apontamentos.
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6
Inicialmente analisamos o GT4 - Didática, que de um total de 71 trabalhos
apresentados no período destacado, apenas 1 era pertencente ao campo da EF escolar e
neste percebemos indícios para a questão das diferenças culturais.
No texto intitulado Epistemologia e avaliação no campo da Educação Física
Escolar, Vargas (2012) procurou problematizar algumas questões sobre a epistemologia
e avaliação na EF escolar, levando em conta a crise de identidade do campo e a própria
crise da modernidade. Argumenta a existência de uma fragilidade da avaliação na EF, já
que a mesma não apresenta uma sustentabilidade epistemológica própria. Para o
referido autor, parece não haver um conhecimento próprio produzido pela área.
Como metodologia, utilizou entrevista semi-estruturada com um professor de
uma escola pública, procurando abordar suas experiências com a avaliação na EF e
como referencial teórico apontou os estudos de Valter Bracht e Phillipe Perrenoud para
pensar a EF e a avaliação respectivamente. Como resultados, o autor indica que a EF
escolar não necessita valorizar a avaliação para legitimar o seu lugar, por não possuir
uma epistemologia própria. Segundo Vargas (2012, p. 2): “(...) tentar criar ou melhorar
avaliações na EF da escola, isto é, investigar e interrogar a “realidade” da área sem
abordar o conjunto dos sistemas epistemológicos, históricos, culturais, pedagógicos e
políticos que a regem, torna-se complexo, senão utópico. ” Sustenta a ideia de que a EF
deve ser vivenciada livremente sem as “amarras” da avaliação, pois assim podem ser
respeitadas as diferenças existentes entre os alunos em todos os níveis da escola.
Por mais que o autor citado tenha destacado “as diferenças existentes entre os
alunos” ele não mostra preocupação em aprofundar o tema e destacar que diferenças são
estas e quais as formas como isso pode acontecer. Mesmo considerando como um limite
do trabalho, a questão das diferenças culturais parece atravessar o texto, de forma frágil
e periférica.
No GT8 - Formação de professores, num total de 119 trabalhos apresentados
foram identificados 5 trabalhos relacionados ao campo da EF escolar. Destes, apenas 1
traz alguma preocupação com a diferença cultural.
Lopes e Molina (2102) no texto intitulado A reinvenção da docência pela
autoformação: a educação do campo e a Educação Física escolar ante um horizonte
cosmopolita, destacam que o objetivo do estudo foi compreender de que modo um
professor de Educação Física principiante que construiu sua identidade em cultura
diferente da vivida na zona rural, constrói a sua docência neste contexto, tomando como
base o seu percurso formativo e o processo de construção de um Projeto Político-
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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Pedagógico (PPP) orientado pelos princípios da Educação do Campo. Para tal fim os
autores utilizaram como instrumentos metodológicos duas narrativas: uma
autobiográfica e outra autoetnográfica. Os referidos autores sustentam que os novos
conhecimentos e reafirmações empreendidas pelo professor sujeito da pesquisa, a partir
do processo de autoformação, fizeram-no reinventar a si mesmo. A percepção da sua
incapacidade em assumir uma identidade docente do campo e a reivindicação por maior
reconhecimento da diversidade cultural existente nessa localidade foram as principais
tomadas de consciência produzidas por ele nesse processo. Destacam também que o
professor pesquisado procurou defender a construção de um mundo dialógico, aberto à
diversidade e à solidariedade intercultural, assim como também às diferenças presentes
no interior dessa cultura.
Neste estudo percebemos a preocupação do autor com as diferenças, no caso da
valorização da cultura do campo e seu reconhecimento nos processos educacionais
articulados na escola. O fato de destacar a importância do diálogo, abertura à
diversidade e à solidariedade intercultural denota indícios da valorização das diferenças
culturais na escola.
Em se tratando do GT 3 Currículo, num total de 107 trabalhos apresentados,
somente 3 pertenciam ao campo da EF. Após a análise, consideramos que apenas 1
trabalho, de uma certa forma, indicou algum indício para o trato com as diferenças
culturais na escola.
Copolillo (2010) em seu texto Corpos, cotidianos escolares e imagens: fios que
movimentam as redes que tramam os processos curriculares, destaca a compreensão
dos sentidos e usos dos corpos nos processos de escolarização, especialmente na
Educação Física escolar relacionando com as questões dos cotidianos das escolas e com
os processos curriculares que vão sendo construídos pelos praticantes desses contextos.
Para tal, a autora traz uma experiência de pesquisadora, vivida em uma escola,
ao longo do tempo em que realizou o Doutorado-Sanduíche, no segundo semestre de
2009, na cidade do Porto em Portugal, com apoio do Programa de Pós-Graduação a que
esteve vinculada e com Bolsa de Estudos da CAPES. Como metodologia a autora
destaca o uso da observação do cotidiano escolar e de fotografias do contexto
pesquisado. Destaca “que as escolhas por trabalhar com os cotidianos, bem como com
as imagens, precisam ultrapassar os limites da racionalidade moderna na qual a ciência
foi fundada exaltando o sentido da visão e buscando verdades únicas” (COPOLILLO,
2010, p. 4).
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É importante ressaltar que a autora opera com uma visão de corpo com
significados múltiplos e sentidos em aberto, ou seja, rompe com a visão de corpo
máquina tão presente no campo da EF escolar. Como resultados identifica nas aulas de
EF da escola pesquisada momentos de experiências corporais múltiplas, onde
professores e alunos embora estejam imersos em um currículo imposto, criam
oportunidades de tecer outros sentidos, significados e vivências corporais.
Para a autora:
(...) as aulas de Educação Física são mesmo para todos e todas com
suas semelhanças e diferenças, com suas satisfações e insatisfações,
pois isso é um encontro de jovens num espaçotempo cotidiano da
escola, onde há coisas boas e coisas não tão boas, digamos assim,
como no cotidiano de suas vidas foradentro e dentrofora da escola
(COPOLILLO, 2010, p. 14).
A nosso ver, o fato da autora citada abrir espaço para pensar o corpo de forma
múltipla e imerso em uma rede de significados e sentidos contingentes nos faz
reconhecer a preocupação com todas as “semelhanças e diferenças” presentes nos
alunos e alunas na aula de EF escolar, embora não destaque quais diferenças sejam
estas.
No GT21 – Educação e relações étnico-raciais, no total de 112 trabalhos
apresentados apenas 1 era relacionado ao ensino da EF escolar e apresentou indicativo
de trato com a diferença cultural.
Bins (2015) com o texto A Educação Física e os limites para o trabalho com a
questão étnico racial na rede municipal de ensino de Porto Alegre, analisou os limites
para o trabalho com as questões étnico raciais nas aulas de EF da rede municipal de
Porto Alegre e teve como objetivo compreender como os professores das escolas
municipais de Porto Alegre abordam as questões étnico-raciais em suas aulas e quais
dispositivos político - pedagógicos Municipais, Estaduais e Federais interferem nessa
abordagem.
Definindo-a com uma pesquisa qualitativa, a autora utilizou como instrumentos
metodológicos a pesquisa bibliográfica, um questionário diagnóstico e um estudo de
caso etnográfico com um professor que, segundo a referida autora, pautava sua prática
pedagógica em princípios étnicos-raciais.
Dentre os limites encontrados na escola no trato com as questões étnico-raciais
destaca a carência da temática na formação inicial e continuada de professores, o fato de
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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a lei 10.639/03 e a 11.645/08 serem políticas de direito, mas ainda não serem políticas
de fato, pois pouco são implementadas nas escolas e, ainda, a estrutura e visão da
escola.
De acordo com Bins (2015), a escola inviabiliza a reflexão sobre as questões
étnico-raciais nas quais os alunos e alunas negras estão envolvidos, os currículos dos
cursos de formação de professores de EF não mostram preocupações com as questões
étnicos-raciais, há pouca produção acadêmica no campo da EF relacionada ao tema das
questões étnico-raciais. A referida autora destaca também, que o modelo eurocêntrico
de escola, capitalista e individualista, se choca como o modelo de cosmovisão africana
que valoriza a cooperação e a solidariedade o que torna limitante o trabalho com as
questões étnico-raciais.
Neste texto, percebemos a ênfase do tema da diferença cultural ligada à questão
étnico-racial. A autora identifica quais os fatores limitantes para o trato com as
diferenças étnico-raciais e mostra que mesmo com a presença destes limites é possível
que a EF escolar possa trabalhar com tais questões no âmbito de suas aulas.
No GT23 – Gênero, sexualidade e educação, encontramos no universo de 90
trabalhos apresentados, um total de 2 trabalhos ligados ao ensino da EF escolar que
apresentaram, de algum modo, pistas em relação ao trato com as diferenças culturais.
No trabalho intitulado Gênero, sexualidade e diversidade sexual na Educação
Física escolar. Uma cartografia das práticas discursivas em escolas paranaenses,
Ribeiro (2012) mostra a presença, as ausências, e as diferentes maneiras das temáticas
de gênero, sexualidade e diversidade sexual nas narrativas escolares da Educação Física.
Para esse fim a autora utilizou uma cartografia que foi composta pela análise da
narrativa de 4 professoras de EF do Paraná, assim como também das Diretrizes
Curriculares da Educação Básica – Educação Física - DCEB/EF (2008) e da formação
continuada para professoras/es da rede estadual de ensino do Paraná, em especial o
curso Gênero e Diversidade na escola – GDE, etapa 2009-2010.
Como descoberta a autora destaca que de acordo com as narrativas das
professoras, a EF escolar não estaria relacionada ao reforço dos estereótipos de gênero,
embora tenham sido encontradas nessas narrativas indícios de fragilidades que a escola
apresenta, pois ainda trata o tema gênero dentro de padrões normativos. Outras
limitações foram encontradas nas narrativas como posições contrárias ao uso do nome
social, resistência ao uso compartilhado do banheiro. Em relação à formação continuada
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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no curso, Gênero e diversidade na escola – GDE, houve relatos da perspectiva do
respeito e tolerância em relação à diversidade.
Em outro trabalho apresentado intitulado “apoios ou agachamentos?”: a
normalização do gênero na Educação Física Escolar , Dornelles (2013) teve como
objetivo problematizar as práticas pedagógicas no trato com a sexualidade no contexto
da EF escolar. Para tanto, realizou sete entrevistas e um grupo focal com sete docentes
que ministravam aulas de EF em escolas públicas do Vale do Jiquiriçá/BA. A autora
também utilizou a análise dos projetos político-pedagógicos destas escolas, o que,
segunda a mesma, foi fundamental para a compreensão tanto dos modos pelos quais o
tema sexualidade é tratado na EF escolar, como das práticas pedagógicas empregadas
por esta disciplina para a normalização do gênero.
Deste modo, identificou que na EF escolar o tema gênero e sexualidade aparece
enviesado na discussão da saúde e prevenção de doenças através das feiras e seminários
pedagógicos, limitando a perspectiva que caminha na desconstrução de preconceitos e
estereótipos. Nesse sentido, a autora coloca que a EF escolar passa a ser a “peça chave”
na promoção do discurso da saúde e disciplinamento dos corpos nas questões da
sexualidade na escola. A autora também indica a presença de uma heteronormatividade
na escola e, ainda, a forma diferenciada como a EF escolar é apresentada aos sujeitos
com base nas distinções de sexo.
Nestes dois últimos textos, percebemos que a questão de gênero assume posição
central no que tange às diferenças culturais. As autoras destacam como as construções
de gênero são marcadas por padrões normatizadores e estereótipos que definem formas
diferenciadas com que a EF escolar tratada suas práticas. Em se tratando de sexualidade,
o discurso pedagógico atrelado ao campo da EF escolar caminha em direção à saúde e a
prevenção de doenças limitando a discussão mais ampla do tema.
Dando continuidade ao levantamento e análise dos textos, ressaltamos que nos
Gts Educação de crianças de 0 a 6 anos (91 trabalhos), Política de Educação Superior
(77), Educação Fundamental (92), Educação Especial (109) e Educação de Pessoas
Jovens e Adultas (80) não foram encontrados trabalhos relacionados ao ensino da EF
escolar.
Entre finalizações e continuações...
Dos 948 trabalhos apresentados nas comunicações livres da ANPED (2010-
2015), encontramos apenas 12 trabalhos relacionados ao ensino da Educação Física
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escolar. É possível afirmar que destes, 6 apresentaram preocupações para as questões
relacionadas às diferenças culturais. Destacamos que o número de trabalhos indica a
pouca produção teórica no campo da Educação Física, todavia 50% da produção
destacada apresenta indícios para a temática relativa às diferenças culturais.
Em relação as ênfases, identificamos as questões de gênero e étnico-raciais
como as preocupações mais evidentes percebidas nos textos selecionados, indicando
limites e dificuldades presentes na escola e na EF escolar em tratar pedagogicamente
estas questões.
No que se refere aos silenciamentos, fica visível o fato de que a diferença
cultural, mesmo que presente nas discussões não é pensada como uma riqueza
pedagógica, ou seja, como uma potencialidade a ser destacada nas práticas pedagógicas
cotidianas da escola.
Consideramos, a partir desta análise a necessidade de estudos mais aprofundados
sobre o tema na EF escolar, pois defendemos que as diferenças culturais são
constitutivas dos sujeitos e das relações sociais no qual estão imersos.
Assim, reconhecemos que a educação intercultural pode favorecer o diálogo
entre os diferentes grupos, possibilitando práticas educativas que levem em conta a
igualdade construída na diferença e vice-versa contribuindo para a construção de
relações democráticas e justas desde a sala de aula até a sociedade de forma geral.
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i A partir deste parágrafo utilizaremos EF escolar para representar Educação Física escolar.
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