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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004 EDITORIAL C inema e psicanálise marcaram o século XX e forneceram argumen- tos para muitas das discussões que sustentam nosso século atual. Freud duvidou da capacidade plástica do cinema para representar o inconsciente, o que não impediu K. Abraham e H. Sachs de colaborar na primeira tentativa de colocar o cinema na tela (Segredos de uma alma, G. Pabst, 1926). Lacan, desde cedo – como lembrava Luís Buñuel em suas memórias – tinha o cinema como uma referência para os psicanalistas. Do lado dos cineastas podemos citar dois entre outros: Alfred Hitchcok e Woody Allen que se utilizaram da psicanálise explicitamente, sem falar nos críticos que se valeram dos conceitos psicanalíticos como ferramenta de análise. Tudo isto para dizer que a discussão está longe de terminar e tem um valor para nós. Em nosso entender, ainda produz atualidade; esta capacida- de de nos re-apresentar, nos devolver, em forma discursiva, os assuntos coletivos e individuais, nos situar entre a massa e a intimidade. No sul do Brasil, agosto é o mês do Festival de Cinema de Gramado, agora brasileiro e latino-americano. Bom mote para que o Correio da APPOA pudesse propor novamente o diálogo, a abordagem das interfaces entre cine- ma e psicanálise. Já havíamos feito isto anteriormente (n. 48, julho de 1997), e esta será uma oportunidade de avaliarmos as diferenças que o tempo pro- piciou. Uma delas, o fato de cineastas e estudiosos de cinema fazerem suas considerações sobre a complexidade destas relações, mostrando que esta discussão não está somente do lado dos psicanalistas. Não se trata mais de fazer psicanálise aplicada (faz tempo), mas de discutir as influências recíprocas e as conseqüências para cada um dos campos, tão diversos quanto fascinantes. Uma espécie de trabalho na transferência, onde cada um se coloca um pouco em questão. Enfim, segue a história, o rio de três margens, numa conversa que está longe de terminar como dissemos. Ainda bem; não estamos à procura de verdades universais. Outras cenas, vozes, escutas virão.

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Page 1: EDITORIAL C - APPOA · 2016. 12. 3. · Freud busca em Herbert Silberer (1882-1923) alguns procedimentos para observar a transformação de idéias em imagens e cita exemplos: um

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 127, ago. 2004

EDITORIAL

Cinema e psicanálise marcaram o século XX e forneceram argumen-tos para muitas das discussões que sustentam nosso século atual.Freud duvidou da capacidade plástica do cinema para representar o

inconsciente, o que não impediu K. Abraham e H. Sachs de colaborar naprimeira tentativa de colocar o cinema na tela (Segredos de uma alma, G.Pabst, 1926). Lacan, desde cedo – como lembrava Luís Buñuel em suasmemórias – tinha o cinema como uma referência para os psicanalistas. Dolado dos cineastas podemos citar dois entre outros: Alfred Hitchcok e WoodyAllen que se utilizaram da psicanálise explicitamente, sem falar nos críticosque se valeram dos conceitos psicanalíticos como ferramenta de análise.

Tudo isto para dizer que a discussão está longe de terminar e tem umvalor para nós. Em nosso entender, ainda produz atualidade; esta capacida-de de nos re-apresentar, nos devolver, em forma discursiva, os assuntoscoletivos e individuais, nos situar entre a massa e a intimidade.

No sul do Brasil, agosto é o mês do Festival de Cinema de Gramado,agora brasileiro e latino-americano. Bom mote para que o Correio da APPOApudesse propor novamente o diálogo, a abordagem das interfaces entre cine-ma e psicanálise. Já havíamos feito isto anteriormente (n. 48, julho de 1997),e esta será uma oportunidade de avaliarmos as diferenças que o tempo pro-piciou. Uma delas, o fato de cineastas e estudiosos de cinema fazerem suasconsiderações sobre a complexidade destas relações, mostrando que estadiscussão não está somente do lado dos psicanalistas. Não se trata maisde fazer psicanálise aplicada (faz tempo), mas de discutir as influênciasrecíprocas e as conseqüências para cada um dos campos, tão diversosquanto fascinantes. Uma espécie de trabalho na transferência, onde cadaum se coloca um pouco em questão.

Enfim, segue a história, o rio de três margens, numa conversa queestá longe de terminar como dissemos. Ainda bem; não estamos à procurade verdades universais. Outras cenas, vozes, escutas virão.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREA MASCULINIDADE

DIAS: 22, 23 E 24 DE OUTUBRO DE 2004

A civilização, nas suas mais diversas variantes, tem se estruturadoem torno de representações fálicas. Pais criadores e cultos totêmicos cons-tituíram o pivô das crenças sobre as origens e garantia da continuidade hu-mana. Ao longo dos tempos foi encomendado aos homens e não às mulhe-res a representação, vigilância, preservação e proliferação desse tesourosimbólico. As mulheres podiam ser importantes sacerdotisas, deusas até,mas a eles cabia encarnar e executar a lei e a ordem de toda e qualquercosmogonia.

Durante milênios, os homens foram lançados aos campos de batalhapara provar a glória dos impérios, a honra das etnias, a potência da estirpe.Como conseqüência disso, percorreram léguas a esmo em busca deste santoGraal. Arriscando suas vidas, em nome de qualquer missão incerta, quepassava a ser vital desde que lhe fosse designada. Navegaram por maresdesconhecidos, penetraram mundos ignorados, morreram por causas quenem sempre eram suas.

Nas mais diversas culturas, as mulheres eram compreendidas e cria-das como carentes do atributo que permitia tal potência. Tal modo de conce-ber as coisas era uma lógica conseqüência da costura social, que privilegia-va o convívio entre os homens e o resguardo do tesouro fálico de cada civili-zação como uma incumbência masculina. Desta forma, partindo do campoda anatomia, a diferença sexual tomou uma extensão imaginária: os ho-mens seriam o sexo forte, as mulheres o sexo frágil, dito em outros termos,os homens são os detentores do falo e as mulheres castradas.

O divórcio entre a anatomia e a condição fálica (que se registra a partirdo século XX) separa pênis e falo, assumindo este último múltiplas formasde representação. O poder deixou de depender de modos diretos de influên-cia, relacionados à força física e ao risco de vida. A inteligência e a diploma-cia, assim como a valorização da invenção e da criação, abriram espaçopara que o falo pudesse se desamarrar dos corpos e seus atributos viris.

O corpo masculino deixa assim de ser imaginado como a encarnaçãoda potência por sua própria natureza. O falo circula com infinitas máscaras,até mesmo com cara de mulher. Se o pênis não é mais o representante dofalo, se a relação tangencial com a morte não é mais prova da virilidade, se ohomem já não pode mais tirar a sua identidade de uma oposição imagináriaentre forte e o fraco, onde reside atualmente a masculinidade?

Eixos de trabalhos:– As representações da masculinidade hoje;– Desejo, amor e gozo sexual;– As relações de trabalho, sexo e poder;– Mudanças na estruturação familiar e na educação de meninos e meninas;– História das diferenças sexual;– A lei e a violência: a relação do masculino com a morte.

PALESTRANTES CONFIRMADOS

Alfredo Jerusalinsky – APPOAAna Laura Giongo – APPOAAna Maria Costa – APPOAÂngela Lângaro Becker – APPOABenilton Bezerra Jr. – Rio de JaneiroContardo Calligaris – APPOA, São PauloEdson Luiz André de Sousa – APPOAGerard Pommier (a confirmar) – PARISIeda Prates da Silva – APPOAInajara Erthal Amaral – APPOAJaime Betts – APPOAJean-Louis Chassing – PARISJurandir Freire Costa – Rio de JaneiroLigia Gomes Víctora – APPOALucia Alves Mees – APPOALúcia Serrano Pereira – APPOA

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Marcelo Masagão – São PauloMarcio Pizarro Noronha – GoiâniaMaria Ângela Cardaci Brasil – APPOAMaria Cristina Poli – APPOAMaria Rita Kehl – APPOA, São PauloMiriam Schnaiderman – São PauloOtávio Augusto Winck Nunes – APPOARobson de Freitas Pereira – APPOARosane Monteiro Ramalho – APPOARossana Oliva – APPOASandrine Malem – PARIS

Data: 22, 23 e 24 de outubro de 2004.Local: Centro de Eventos Plaza São RafaelEndereço: Avenida Alberto Bins, 509 – Porto Alegre – RS – Brasil

INSCRIÇÕES:

Antecipadas Associados Universitários Profissionais ou parceladas da APPOA de graduação

ATÉ 02/09

ATÉ 30/09 R$ 120,00 R$ 130,00 R$ 180,00

Após ou R$ 150,00 R$ 160,00 R$ 210,00 no local

– As vagas são limitadas– Inscrições para universitários, inscrições antecipadas e/ou parceladas: nasecretaria da APPOA.– Inscrições mediante depósito bancário, para: Banco Itaú, agência 0604, conta-corrente: 32910-2. Neste caso, ENVIAR POR FAX O COMPROVANTE DE PAGA-

À vista R$ 100,00ou 3 chequesde R$ 40,00

À vista R$ 110,00ou 3 chequesde R$ 45,00

À vista R$ 160,00ou 3 chequesde R$ 60,00

MENTO DEVIDAMENTE PREENCHIDO, para a inscrição ser efetivada.– Horário da secretaria da APPOA das 13h30min às 21h30min.– Agência de viagens oficial: BMZ turismo – (51) 3321.1133.

RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOA

Entre os dias 18 e 20 de junho, estivemos reunidos em Canela paramais um “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”. Mais uma vez, oencontro foi atravessado por um clima acolhedor e informal, o qual tem setornado uma marca constante do evento.

Dessa vez, foi proposta uma novidade: ao invés de um texto de Freud,trabalhamos com um conjunto de três artigos – “Um tipo especial de escolhade objeto feita pelos homens” (1910), “Sobre a tendência universal à depreci-ação na esfera do amor” (1912) e “O tabu da virgindade” (1918) –, os quaisforam reunidos por Freud sob o título “Contribuições à psicologia do amor”.Mesmo que uma certa unidade possa ser delimitada entre eles, cada umaborda questões bastante específicas a respeito da vida amorosa de ho-mens e mulheres. Por este motivo, no encontro, optamos por dedicar um diade trabalho para cada um desses artigos.

As discussões no evento giraram em torno da atualidade das formula-ções propostas por Freud nesses três textos. Entre os pontos abordados,discutimos a divisão entre objeto de amor e objeto de desejo, se haveria umadiferença com relação ao ciúme nos homens e nas mulheres, que tabusrelativos ao corpo tem vigência na atualidade, qual o limite das modificaçõesimpostas pela cultura em relação à estrutura. Mesmo que algumas das idéi-as desses artigos necessitem ser revistas, a partir das modificações docontexto cultural contemporâneo, as “Contribuições à psicologia do amor”continuam mantendo toda sua validade. Reler este conjunto de textos e pen-sar sua atualidade foi uma tarefa fundamental para a seqüência do trabalhoque temos feito em torno do tema do masculino e da diferença sexual.

Os momentos reservados ao “Conversando sobre a APPOA” dedica-ram-se a pensar as relações da APPOA com outras instituições. Este deba-

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NOTÍCIAS

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SONHOS E LEMBRANÇASNO CINEMA E NA PSICANÁLISE

Liliane Seide Froemming

Ocinema combina imagem e narrativa. Ao se movimentar de umaimagem para outra os fotogramas produzem uma narrativa. O efeitoproduzido pelo encadeamento de imagens se converte em lingua-

gem, desde os tempos do cinema mudo. Mas foi longo o processo e osinstrumentos forjados pelo cinema para contar histórias.

Algumas disposições seqüenciais dos filmes tendem a repetir certosmodelos adotados como consenso para representar algumas idéias. Filmesantigos tendiam a usar o recurso da imagem trêmula ou fora de foco paraindicar uma passagem para a dimensão de irrealidade do sonho, da imagina-ção ou do delírio. Hoje este recurso é considerado tão pueril quanto um pôrdo sol ou um galo cantando sobre uma cêrca para indicar a passagem danoite para o dia.

Como é que os sonhos representam os pensamentos oníricos e asrelações entre estes? Um problema para os sonhos – formados predomi-nantemente por imagens visuais – é dar forma a idéias abstratas. A elabora-ção onírica consiste, em certa medida, na modelagem de pensamentosoníricos e na busca de encontrar imagens que representem as relaçõesestabelecidas entre os diversos pensamentos.

Freud busca em Herbert Silberer (1882-1923) alguns procedimentospara observar a transformação de idéias em imagens e cita exemplos: umescritor adormece enquanto se impõe como tarefa suavizar seu estilo, consi-derando-o um pouco áspero; o sonho que surge é de se ver envolvido emuma tarefa que consiste em lapidar e lixar um pedaço de madeira. Silbererfez várias pesquisas sobre o simbolismo nos sonhos e sobre os estadostransitórios entre a vigília e o sonho.

O sonho se afasta muito do texto que motivou sua elaboração, tanto nasformas de expressão de idéias como nos enlaces lógicos que se estabelecementre elas. A censura atua determinando um trabalho de deformação.

te, denso e consistente, pôde resgatar a história e o lugar de nossa Associ-ação no movimento psicanalítico, tanto na cidade quanto em nível internaci-onal. É verdade que as interrogações ali trabalhadas já vem sendo ponto depauta em vários âmbitos da instituição. Porém, como de costume, o trabalhodo “Conversando sobre a APPOA” teve um importante efeito de produção eelaboração sobre as mesmas.

Gerson Smiech Pinho

NÚCLEO DAS TOXICOMANIAS

O Núcleo das Toxicomanias convida a todos os interessados para umimportante debate que será realizado no dia 07/08/2004, sábado, com o dr.Luiz Matias Flach, advogado, magistrado aposentado, professor de DireitoPenal da Escola Superior da Magistratura, ex-presidente do Conselho Fede-ral de Entorpecentes e ex-Secretário Nacional de Entorpecentes.

O eixo do debate será a respeito da lei de drogas e a cidadania dosusuários.

Contamos com sua presença, lembrando que esta é uma atividadeaberta a todos os interessados.

Coordenação do Núcleo

MUDANÇA DE ENDEREÇO

Centro Lydia Coriat informa seu novo endereço: Av. Independência, 944 – PortoAlegre – RS. Fones: 3311.0091 e 3311.2243.

SEÇÃO TEMÁTICA

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SEÇÃO TEMÁTICA

ou literatura mas extrai lições destes diferentes campos da arte. É a sétimaarte, marcada pelo significante “mais um”.

A introdução do som no cinema colocou questões diferentes do queas postas ao tempo do cinema mudo. Questões técnicas e artísticas novasse imbricam. Como articular som e imagem? Como sincronizá-los? Comocontar uma história com diálogos e imagens combinados? O cinema tende ase fazer narrativo e um novo trabalhador entra em cena: o roteirista. O roteiristaé um escritor singular que opera uma transposição narrativa buscando com-binar texto e imagem.

Tarkovski (1998) relembra a cena inaugural do trem avançando sobreos telespectadores realizada pelos irmãos Lumiére para afirmar que, no campoda arte, fora encontrada uma forma ímpar de registrar uma impressão dapassagem do tempo. A retrospectiva sobre seu método de trabalho e o relatoda experiência da realização de vários filmes como “A Infância de Ivan”, “OEspelho” e “Nostalgia” estão expostos em seu livro “Esculpir o Tempo”. Elepropõe, em seu trabalho, substituir a causalidade narrativa pelas articula-ções poéticas. Para filmar os sonhos de Ivan, Tarkovski utiliza as imagensem negativo, causando um efeito sobrenatural, produzindo um estranhamento.

Nem narrativa, nem discurso designam o “texto” fílmico. Diegese é otermo proposto, enquanto substituto de história e oposto à descrição. Adiegesis e a mimesis são modalidades da lexis para Platão e Aristóteles. Aacepção é mais ampla do que a de história. Falar em universo diegético“compreende tanto a série de ações, seu suposto contexto (seja ele geográ-fico, histórico ou social), quanto o ambiente de sentimentos e de motivaçõesnos quais elas surgem” (Aumont, 1995, p. 114).

E ao “texto” produzido por um paciente mediante a consigna da asso-ciação livre (nem tão livre assim pois guiado pelas amarras transferenciais,pela suposição da escuta do analista) que nome daremos? Discurso, narra-tiva, diegese, fala?

Um analisante diz: “É difícil explicar, tenho muitas lembranças contadas.Não sei se são minhas. Me dão uma sensação muito vaga de me sentir culpa-do... Lembro tão pouco. Me sinto inventando, como se tivesse que encher umpouco esta história. Têm fotos desta época... Têm dores que não passam...”

O uso da simultaneidade no sonho opera como em certas pinturas,reunindo numa comunidade filósofos ou poetas que nunca se encontraramefetivamente, nem conviveram no mesmo período histórico, mas que apre-sentam afinidades de alguma ordem. O uso da antítese ou da contradição nosonho é singular: para o sonhador não há contradição e duas idéias opostaspodem estar reunidas numa só.

“Sempre que um elemento psíquico se acha unido a outro poruma associação absurda ou superficial existe ao mesmo tem-po entre ambos uma conexão correta e mais profunda, quesucumbiu à censura” (Freud, cap. VII, Interpretação dos So-nhos. p. 669).

O dispositivo da continuidade narrativa no cinema mudo começa a serconstruído visando fazer o espectador “esquecer” o caráter descontínuo dasimagens coladas umas às outras. Convenções começam a ser criadas li-gando as cenas. Assim, dois planos consecutivos onde aparece um sujeitoque olha e logo, no plano seguinte, um objeto, leva o espectador a deduzirque o alvo do olhar do sujeito do primeiro plano é o objeto representado noplano subseqüente.

Algumas imagens inaugurais do cinema demonstram a constantepesquisa que se desenvolvia. A roda e o movimento da máquina de costuraservem de modelo para fazer rodar a seqüência de fotogramas no primeirocinematógrafo dos irmãos Lumière. Por injunções técnicas, como a ilumina-ção, as tomadas tinham que ser externas. Assim, dada a amplitude dosplanos destas tomadas foi possível perceber variações no ângulo e na pro-fundidade que a posição da câmera permitia apreender. Na primeira fase decoleta de imagens pelos irmãos Lumiére o modelo fotográfico era dominante.A câmera era fixa e buscava captar os movimentos circundantes: folhas,fumaça, pessoas caminhando, meios de transportes. Foi o olhar de um via-jante – dos tantos que partiram em busca de imagens com protótipos defilmadoras – que percebeu a possibilidade de movimentar a própria câmera.

Com Eisenstein temos a reflexão sobre a montagem como elementosingular da produção fílmica, situando o cinema como justaposição de se-qüências de imagens em movimento. O cinema não é fotografia, nem teatro

FROEMMING, L. S. Sonhos e lembranças...

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é o caso do filme “Amnésia” (2000) exigindo do espectador um exercício “dever o filme de trás pra diante”. A construção do filme está baseada em cons-tantes flashbacks, onde o sentido de uma cena é ressignificado pela cenaque a antecede mas que aparece, na seqüência, só depois.

Há filmes que nos inspiram, nos fazem romper com a crono-lógica,instaurando a lógica do significante. São como exercícios para a escutaclínica.

No Seminário 8, Lacan faz referência à tela do cinema como o reveladormais sensível de como se modela no imaginário popular um certo ideal dafigura do analista e aponta o filme “mais recente” de Hitchcock. A data emquestão é do seminário proferido no dia 16 de novembro de 1960. “Vertigo” éum filme de 1958 e “Psicose” de 1960, mas não parece se endereçar a elesa referência. Talvez o filme tenha passado recentemente. Algumas linhasdepois, Lacan nomeia o filme “De Repente, no Último Verão” que é de 1959e cujo diretor é Joseph Mankiewicz – uma adaptação da peça de TenesseeWilliams. Neste momento do texto, a cena do beijo descrita também guardasemelhanças com uma cena de “Quando fala o coração”.

Quanto ao que vem a ser amar e ao que vem ser o amor, não há quese fazer confusão, nos alerta Lacan, a propósito da transferência.

Definir-se como cinéfilo tende a ser registrado na ordem do fetichismo.Glauber Rocha se definia, baseado em Buñel, como um “Amador”, recusan-do ser nomeado como um profissional do Cinema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:Aumont, J. (1995). A Estética do Filme. São Paulo: Ed. Papirus.Freud, S. (1899/1976). Lembranças Encobridoras. Rio: Ed. Imago.Freud, S. (1900/1976). A Interpretação dos Sonhos. Rio: Ed. Imago.Froemming, L. (2002). A Montagem no Cinema e a Associação Livre na Psicaná-

lise Tese de Doutorado. Porto Alegre:UFRGS (não publicada)Lacan, J. (1992). A Transferência. Livro 8. O Seminário. Rio: Jorge Zahar.Tarkovski, A. (1998). Esculpir o Tempo. São Paulo: Ed. Martins Fontes.

Contadas, lembradas, inventadas – como são construídas estas ce-nas na memória? Nos sonhos, o infantil não surge como passado, mas sem-pre como uma marca do atual. Um sujeito diz sonhar com um rio semelhanteao de sua terra natal, porém bem maior. As associações seguintes levam-noa considerar que não é o rio que é grande, mas ele é que é pequeno nosonho.

O momento em que o sujeito situa sua fala num determinado tempo,conectando o momento atual com outros momentos nos remete a uma iden-tificação que se opera por sucessivos deslocamentos. Há que atentar para otempo dos verbos, para o uso de advérbios e outros indicadores da lingua-gem que aparecem no decurso de uma cadeia associativa. Que recursos osujeito utiliza para nos dizer de sua posição no tempo, no espaço? Algunsconsideram que compartilhamos com eles tais referências e por isso dispen-sam maiores explicações? Outros explicam com extremos detalhes supon-do uma ignorância naquele que o escuta?

O flashback é um recurso muito difundido no cinema para costurarrelações causais e documentar lembranças. A cena que determina as ra-zões de certos atos de determinados personagens aparecem com atraso,só depois, redimensionando sentidos até então insuspeitados.

Desde 1945, quando Hitchcock filmou “Quando fala o coração” colo-cando em pauta a conexão entre a formação de sintomas e o esquecimentode cenas da infância numa explícita referência à Psicanálise muito se produ-ziu nesta intersecção. Seria mais próprio dizer que Cinema e Psicanáliseconstituem inter-sessões. Antes temos os antológicos filmes de Pabst (Se-gredos de uma alma, 1926) e de John Houston (Freud, Além d’Alma, 1962).

A questão que se coloca para a Psicanálise e para o Cinema quandose trata de pensar a produção de cadeias associativas, de operar com alógica das representações, das considerações quanto a figurabilidade deidéias expressas em sonhos ou lembranças tem alguma similitude?

O Cinema tem construído formas mais elaboradas do que a ondula-ção da tela ou o movimento das folhinhas de um calendário para demarcar apassagem do tempo. Têm construído formas muito elaboradas de demons-trar o efeito provocado pelo esquecimento!de acontecimentos recentes como

FROEMMING, L. S. Sonhos e lembranças...

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renascentista predominou sobre todas as demais formas de representaçãodo espaço, e a partir dela foi desenvolvido o sistema ótico da câmera fotográ-fica e, depois, da cinematográfica.

Autores, como Pierre Francastel, já haviam estabelecido relação en-tre a predominância da perspectiva renascentista e a ideologia humanistaburguesa como representação dominante do mundo. Baudry recupera estalinha de pensamento para enfatizar a função preenchida pelo cinema comosuporte e instrumento desta ideologia, fazendo o espectador acreditar, pelofato dele ocupar um ilusório lugar central, que é um Deus sabe-tudo, vê tudo,conhece tudo. Esta crença do espectador só é possível porque o instrumen-to ótico/mecânico é oculto, sem nunca dar a conhecer a este sujeito/espec-tador que ele só está vendo o que lhe é dado ver.

Dessas discussões queremos reter o tema do olhar. O prazer associ-ado ao olhar em muito elucida os artifícios de uma linguagem montada parasustentar a indústria do entretenimento. O voyeurismo é central na estruturaçãoda linguagem cinematográfica e seu significado está associado ao grau deprazer experimentado pelos espectadores. No final do século XIX, enquantoFreud assombrava a ordem da época dizendo que possuímos internamenteum inconsciente produtor de imagens reguladas por desejos não manifestos(ou revelados apenas simbolicamente), as primeiras máquinas davam aces-so a imagens fixadas em emulsões para uma prazerosa experiência visual,com forte componente erótico.

Arlindo Machado4 lembra muito bem que as primeiras imagens cine-matográficas não foram as do cinematógrafo dos irmãos Louis e AugustLumière, dos operários saindo da fábrica da família ou do trem chegando naestação de Ciotat. Antes dos franceses, Thomas Edison concebeu oquinetoscópio, uma máquina para visualização individual de imagens, ou seja,para uma experiência de “espiar” através de visores. O voyeurismo, enquantoprática de espiar algo da instância íntima e privada do outro, se confirma peloerotismo destas primeiras imagens. Para o desejo de ver, eram oferecidasdesde cenas ingênuas de garotas em trajes de dormir brincando de guerra

4 MACHADO, A. Pré-cinemas & pós-cinemas . Campinas : Papirus, 1997.

NO JOGO DOS OLHARES

Fatimarlei Lunardelli1

Entre as muitas possibilidades de aproximação entre a psicanálise e ocinema, encontra-se uma das principais contribuições da psicanáli-se para a teoria do cinema: entender a condição do espectador em

relação ao filme. O momento de maior aproximação desses dois camposocorreu na primeira metade dos anos 70, sob o impacto da revisão de Freudfeita por Jacques Lacan e sua forte inserção nos temas da cultura. No ambi-ente francês de ressaca do Maio de 68 e dos impasses do estruturalismo eda lingüística como instrumentos para as formulações da linguagem cinema-tográfica, a psicanálise ofereceu a oportunidade de novas abordagens. Em“O significante imaginário”, Christian Metz2 aproximou-se da psicanálise paraentender porque as pessoas escolhem retornar ao cinema, mantendo emfuncionamento a indústria do entretenimento.

Um outro autor, Jean-Louis Baudry3, articulou conceitos da psicanáli-se à ideologia dominante no cinema narrativo, demonstrando como ela seapresenta no próprio dispositivo cinematográfico, válido ainda hoje. Chamouatenção para o fato do equipamento cinematográfico (a máquina de capta-ção e o projetor de imagens) serem concebidos a partir da perspectivaartificialis surgida no Renascimento. Nela, todo o espaço representado noplano é organizado a partir de um ponto de fuga central, a partir do olhar dopintor que constrói a cena (e do sujeito que irá vê-la). Oferecendo-se comouma representação natural, científica e verdadeira do espaço, a perspectiva

1 Jornalista. Professora. Doutora em cinema ECA/USP.2 METZ, Christian. O significante imaginário: psicanálise e cinema. Lisboa :Livros Horizon-te, 1980. O livro reúne textos escritos entre 1973 e 1976 e o original francês foi publicado em1977.3 BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base inXAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro : Edições Graal/Embrafilme, 1983. O artigo foi originalmente publicado na revista Cinéthique, n. 7/8 (1970).

LUNARDELLI, F. No jogo dos olhares.

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eram oferecidas ao espectador a visão aproximada das cenas. Invariavel-mente íntimas. Machado ressalta o tema do buraco de fechadura como umadas chaves para a compreensão do próprio cinema como lugar da pulsãoescópica, preparando o espectador para uma nova experiência do olhar, quehoje chamamos de subjetiva. A partir de uma variedade de argumentos, des-de mensageiros procurando destinatários de cartas, mulheres em busca demaridos infiéis, até funcionários de hotel procurando localizar clientes, fazia-sedesfilar uma infinidade de cenas da ordem do privado através do olhar de perso-nagens abelhudos e indiscretos. Naqueles filmes, do chamado primeiro cine-ma, que vigorou até o estabelecimento da narratividade, o objetivo era produzira gag e o riso. Ao final da cena, o “espião” era punido de forma exemplar e divertida.

Os filmes de pulsão escópica conduziram gradativamente o especta-dor cinematográfico para a assimilação do plano aproximado como recursoexpressivo, naturalizando o corte do plano geral para o plano aproximado. Aomesmo tempo, deslocou o ponto de vista do personagem interno ao filmepara a internalização do ponto de vista do filme pelo espectador. Antes danarratividade havia uma frontalidade na linguagem, que reconhecia a presen-ça do espectador para o qual o filme estava sendo dirigido. Em alguns ca-sos, os atores dirigiam-se diretamente à câmera, interpelando o espectadorcom gestos como piscadelas de olhos, convidando à cumplicidade. Àlinearização narrativa corresponde a substituição do público das feiras e doscinturões marginais dos grandes centros urbanos por uma classe média euma pequena burguesia com melhores condições financeiras para sustentara indústria nascente. Conseqüentemente, uma nova ordem moral se estabe-lece, deslocando o jogo dos olhares.

O avanço da narratividade vai eliminando as intermediações óticas,fazendo a câmera assumir pontos de vistas dos personagens envolvidos noenredo, através do campo/contracampo. As decisões de seleção e articula-ção dos planos visam atender as demandas do olhar do espectador, suanecessidade e prazer de ver para acompanhar o desenrolar dos aconteci-mentos na tela. Já não mais através da frontalidade, mas de uma certaangulação oblíqua, para que os personagens e objetos possam ser compre-endidos como campos ou pontos de vista contrapostos.

de travesseiros, até de mulheres nuas saindo como pérolas de dentro deconchas.

Desde sua origem, o cinema foi concebido (e ainda hoje se sustenta)sobre o prazer do olhar. É uma máquina de espiar um mundo que se oferecepara o olhar e cuja satisfação é intensificada pela experiência da sala escu-ra, o sentimento suscitado pela proteção do escuro que convida à entrega eao abandono. Edgar Morin5, um dos primeiros autores a aproximar a psicolo-gia do cinema na década de 50, já havia chamado atenção para a liberaçãodo imaginário sob o efeito do intenso foco de luz concentrador da tela emcontraste com a escuridão da sala de cinema.

A narratividade torna-se hegemônica na linguagem cinematográficapor meio de um processo gradativo que se consolida no filme exemplar “Onascimento de uma nação” (Birth of a nation, EUA) de David W. Griffith, em1914. Nele há um pleno domínio dos recursos de enquadramento do real,alternância de planos e montagem para envolvimento e emoção do especta-dor em uma história com longas duas horas de duração. A esta altura, oparque industrial norte-americano já estava instalado, com uma ampla redede salas espalhadas por todo o país, e necessitava de um tipo de produtocapaz de manter e expandir a estrutura nascente. O espectador foi captura-do pelo olhar. As técnicas vinham sendo depuradas pelo sistema desde osprimeiros filmetes, antes mesmo de 1895.

A relevância do olhar na história do cinema é demonstrada, desde oprincípio, por um tipo de filme cujo volume de produção nos primeiros anosdo cinematógrafo levou a constituir-se em um gênero. Eram os filmes deburaco de fechadura ou de voyeurismo. Através deles ocorreu a passagemda linguagem do plano geral para o primeiro plano, oportunizando aos reali-zadores vencer o obstáculo de aproximar a câmara de um objeto, sem, comisso, provocar um estranhamento para o espectador do final do século XIX.

Sob a justificativa de fazer os personagem verem algo através de dis-positivos óticos como lupas, lunetas ou através de buracos de fechadura,

5 MORIN, E. A alma do cinema. in XAVIER, Is. Op. cit. Publicação original Paris : Ed. De Minuit,1958.

LUNARDELLI, F. No jogo dos olhares.

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UM CINEASTA EMBAIXO DO DIVÃ

Carlos Gerbase1

As relações do cinema com o mundo da psicanálise e das psicoterapiasem geral têm origens variadas, múltiplos objetivos e resultados, àsvezes, bastante discutíveis, mas há um fato inegável: filmes e divãs

têm papéis fundamentais em todas as representações possíveis dos temposmodernos. Fecundados no final do século 19, paridos nas primeiras décadasdo século 20, em constante crescimento desde então e, eventualmente,chamados de senis, ou coisa pior, nos tempos iconoclastas que vivemos,cinema e psicanálise não apenas refletiram e interpretaram o nosso mundo,como também o protagonizaram e o construíram.

Sabemos (eu, via Foucalt; vocês, através de Lacan) que os discursosnos atravessam, nos conformam e nos definem enquanto seres. Somos oque somos porque, entre outras atividades menos modernas, assistimosemocionadamente a alguns filmes e ouvimos (ou lemos) atentamente a al-guns psicanalistas. O singelo objetivo deste texto é cruzar estas duas áreasdiscursivas a partir das minhas experiências como cineasta e de algumasidéias – bem primárias, já que sou quase um leigo no assunto – sobre omundo da psicanálise. A lista que se segue, assim, pretende ser apenas opontapé inicial para reflexões mais consistentes. Vamos a ela.

(1) OS PERSONAGENS DOS FILMESCOMO PACIENTES DE PSICANALISTAS

Este cruzamento é dos mais divertidos, tanto para os psicanalistas,que podem fazer todo tipo de exercício associativo entre os signos presen-tes num filme, como para os cineastas, que, em debates animados que seseguem à projeção de seus filmes, descobrem, que, em suas obras, o painão é o pai, e sim a mãe; que a filha não é a filha, e sim o pai; e que o guarda-

1 Cineasta e Doutor em Comunicação Social pela PUCRS.

Nos anos 70, Metz6 usou o conceito psicanalítico da denegação paradizer como o filme narrativo é exibicionista e, ao mesmo tempo, não é. Oespectador olha para o filme, mas o filme não olha para o espectador. O filmesabe que é olhado, mas finge que não sabe. É um objeto fechado, que apagao suporte discursivo, fazendo predominar apenas e, tão somente, a “histó-ria”, o narrado sem narrador. Mas o discurso existe e quem enuncia é ainstituição cinema.

Retornando à transição dos filmes de buraco de fechadura para anarratividade, vamos descobrir o momento de formação do discurso que setornaria dominante nos filmes de entretenimento da indústria cinematográfi-ca. Nos filmes voyeuristas, o olhar “interno” do personagem, que o especta-dor assumia até com as mesmas motivações psicológicas, é substituídopelo olhar externo e interpretante que rege a narrativa. É uma cisão brutal eirreconciliável, salienta Arlindo Machado, apontando como esta regulaçãoserá ordenada a partir da moral protestante e burguesa da sociedade norte-americana representada em Griffith. Ele não inventa a linguagem, como su-jeito de uma sociedade, manifesta-se nele a cultura e o pensamento de umaépoca e uma classe social, cujo discurso é dominante.

Poderíamos considerar que, passados 109 anos da sessão inauguraldo cinematógrafo pelos irmãos Lumière, essas questões estariam supera-das. Penso que não. A relação do espectador com o filme narrativo, com oqual estabelece um prazeroso jogo de voyeurismo/exibicionismo continuasendo a base que sustenta a indústria cinematográfica. É em busca destafórmula narrativa que ainda se desenrolam muitos debates estéticos nascinematografias não hegemônicas, que lutam por espaço no circuito exibidor.Podemos celebrar a contemporaneidade das novas formas narrativas, masbasta um olhar sobre a grade de exibição da cidade para verificar o predomí-nio do filme narrativo, de inspiração norte-americana, cuja indústria audiovisualocupa, em média, 80% dos mercados mundiais.

6 METZ, C. História/Discurso (Nota sobre dois voyeurismo) in ISMAIL, Xavier. Op. Cit., p.403.

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(3) A PSICANÁLISE COMO MODELODE ANÁLISE DE FILMES E INFLUÊNCIA

IMPORTANTE NAS TEORIAS CINEMATOGRÁFICASMaurice Merleau-Ponty escreveu que “para o cinema, como para a

psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio traduzemcomportamento” e “o filósofo e o cineasta têm em comum um certo modo deser, uma determinada visão do mundo que é aquela de uma geração. Umaocasião ainda de constatar que o pensamento e a técnica se correspondeme que, segundo Goethe, o que está no interior também está no exterior.” Boaparte das teorias cinematográficas dos anos 50 para cá são dominadas pelasemiologia e incluem a psicanálise em suas formulações estéticas e ideoló-gicas. A figura paradigmática de Freud é a mais evidente nos filmes (vide asmuitas apropriações feitas por Hitchcock, algumas delas até didáticas), masé Lacan, com sua rebeldia, que domina as teorias narrativas, tanto na litera-tura como no cinema. Se o inconsciente é estruturado como uma lingua-gem, e o cinema é a linguagem por excelência do século XX, compreendercomo funcionam os filmes pode ser útil para entender as pessoas, e vice-versa. Outra constatação importante é que filmes não são feitos para “curar”as pessoas, no sentido da psicanálise freudiana clássica, que pretende ex-plicar e, de certa forma, iluminar os sofrimentos mentais usando um determi-nado discurso. Porém, se acreditarmos, como faz Lacan, que não há saídapossível da linguagem, que nós não a “usamos”, mas a “somos”, a lingua-gem do cinema, com sua sofisticada combinação de matrizes lingüísticas,surge como uma nova e extraordinária oportunidade de expressão existenci-al dos seres humanos. E, para compreender a estrutura dessa linguagem, épreciso, ao mesmo tempo, entender como funcionam as mentes do cineastae do espectador.

(4) O CINEMA, COMO LINGUAGEME FENÔMENO SOCIAL, “ANALISADO” PELA PSICANÁLISELembram do sujeito que matou não sei quantos espectadores depois

de, segundo as primeiras reportagens, ver “O clube da luta” num cinema deshopping em São Paulo? Lembram que depois descobriu-se que ele não

chuva não é o guarda-chuva, e sim a filha. Isso, é claro, se a análise forfreudiana. Se for lacaniana, o guarda-chuva é o falo do pai. Brincadeiras àparte, já participei de discussões muito interessantes, que tentavam explicarprosaicos detalhes da trama do filme à luz de intrincados modelos psicana-líticos, e eu estava quase acreditando neles, quando lembrava que a sombri-nha vermelha estava na cena porque o diretor de arte achara bonito, e nãoporque ela representava o desejo homossexual do personagem. Creio, sin-ceramente, que colocar os personagens de filmes num divã é tão divertidoquanto inconseqüente (para não dizer inútil). Mas podem continuar me con-vidando, que eu adoro ver os personagens que criei deitados num divã, tãoindefesos quanto quando estavam no roteiro e na tela.

(2) A PSICANÁLISE COMO FERRAMENTADO CINEASTA PARA CONSTRUIR E

MELHOR DEFINIR SEUS PERSONAGENSUm cruzamento utilíssimo! Digamos que um roteirista esteja escre-

vendo uma história sobre um motorista de táxi psicótico. Digamos que elenunca tenha conversado com um psicótico. Como imaginar e tornar verossí-mil um personagem distante da experiência pessoal do criador? Há doisgrandes riscos: a idealização pura e simples, sem vínculo com a realidade,e o uso abusivo de clichês narrativos, retirados, quase todos, dos romancesdo século XIX. Aí entra a psicanálise, com mais de um século de observa-ções sobre o comportamento da humanidade, e vai dar ao roteirista umaespécie de “mapa” para as psicopatologias. Por contraste e por exclusão, apsicanálise também fala de um personagem bastante comum nos filmescontemporâneos, o “normopata”, o cara que se adaptou perfeitamente atodas as restrições que lhe foram impostas e parece ser um sujeito muitosaudável. Eu tenho que confessar que sempre utilizei bastante o conceitode esquizofrenia na hora de construir os traços fundamentais dos persona-gens que crio. E, para mim, uma certa dose de esquizofrenia, principalmen-te num personagem “saudável”, é fundamental para que haja verossimilhan-ça. Talvez isso prove que eu é que sou esquizofrênico. Por favor, não espa-lhem.

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roteiros como para dirigir atores. E cada filme que faço, é claro, não deixa deser uma pequena e secreta auto-análise, uma catarse estética, que aliviatensões, provoca descobertas e, eventualmente, até diverte aos espectado-res.

tinha visto o filme coisa nenhuma? A psicanálise tem o dever de impedir queos jornalistas – esta raça tão útil quanto apressada, e na qual às vezes meincluo – façam acusações absurdas ao cinema e à TV. E mostrem o grau deimbecilidade de certos programas pretensamente bem intencionados. A psi-canálise deve mostrar a todos que a mente humana é um mecanismo sofis-ticado, que as ações de um sujeito só podem ser explicadas até certo ponto(e que é preciso um grande esforço para chegar a esse ponto). Acho que apsicanálise deveria se meter muito mais do que se mete na questão dacensura e da classificação dos espetáculos por faixa etária. Tenho certezaque a psicanálise é ferramenta fundamental no embate que travamos todosos dias entre o indivíduo e a coletividade. Onde termina a liberdade de ex-pressão de um drama sobre uma mulher explorada pelos homens e começao exercício sádico de misoginia? Onde termina a comédia satírica a umhomossexual e começa o mais baixo preconceito?

(5) A PSICANÁLISE COMO FORMADISCURSIVA “RETRATADA” NOS FILMES

Lembrei logo de “Um estranho no ninho” e “Vida em família” (“Takingoff”), ambos de Milos Forman. São dois filmes extraordinários, que discutemquestões relativas à saúde mental – dos indivíduos, da família e da socieda-de. Creio que, assim como a psicanálise pode ajudar o cinema, defendendo-o de acusações fundamentalistas, o cinema pode ajudar a psicanálise,sociabilizando alguns conceitos e fazendo críticas a procedimentos de saú-de mental equivocados (como em “Um estranho no ninho”). Claro que a quan-tidade de filmes ruins sobre psicanálise ou psicanalistas é muito grande,mas a psiquê humana será sempre importante para filmes que colocam oser humano em frente à câmara para carinhosamente (ou não) dissecá-lo edar-lhe sentido.

É claro que existem muitos outros cruzamentos possíveis entre cine-ma e psicanálise. Só estes, contudo, já são suficientemente desafiadores.Como acadêmico, gostaria de, um dia, me dedicar um pouco a estas ques-tões. O cineasta, porém, fala mais alto, e, por enquanto, faço um uso bas-tante funcional (mesmo que inconsciente) da psicanálise, tanto para escever

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do com que personagens e público sintam-se invadidos, usurpados de suaprivacidade e segurança. Tudo isto é mostrado no filme com uma delicadezairônica e sem apresentar nenhuma cena de violência explícita.

Neste meio tempo Ivan, o sócio que mais sofre com a incômoda inva-são (também com um pouco de culpa e remorso, mas isto fica apenas naintenção) envolve-se com uma prostituta (Malu Mader) e parece ver nela arendição de sua vida infeliz. O lado podre da vida é escancarado em todos oslados do filme. Quase todos são infelizes, mentirosos ou marginais, ou sim-plesmente tem uma vida vazia, sem grandes emoções, apenas vivem o dia adia.

Adaptado da novela homônima de Marçal Aquino pelo próprio autor,pelo diretor e pelo produtor do filme Renato Ciasca, “O Invasor” é o terceirolonga-metragem de Brant e o terceiro no qual o tema assassino / assassina-to é abordado, margeando sem delicadeza a sociedade brasileira contempo-rânea. É a primeira vez, no entanto, em que o cineasta mescla os setoreslegais da sociedade com a dita marginalidade, misturando situações e açõese deixando para o espectador decidir afinal, quem é o marginal.

No seu primeiro longa-metragem, “Os Matadores” (São Paulo, 1997),Beto Brant enfoca como tema principal a ação do pistoleiro profissional. Ofilme conta uma história de matadores no Brasil Central, na fronteira com oParaguai. Dois homens, um velho e um estreante (Wolney de Assis e MuriloBenício, respectivamente) estão num bar, um boteco sujo na beira de umaestrada, e esperam por um terceiro homem que virá encontrá-los e deveráser assassinado por eles. Esta é a linha mestra e por ali vagueiam uma sériede histórias e personagens interessantes. Dentro da narrativa apresentada,a atividade principal das personagens do filme é inquestionável. A vida éassim, resta-nos apenas conhecer melhor seus macetes e detalhes. A per-sonagem de Wolney de Assis, Alfredão, é um homem mais velho, calejado,que tem uma linda família, uma casa e que almoça aos domingos, cercadopela esposa e filhas, após o dever cumprido. O matador mais novo tem a vidatoda para aprender e o exemplo dos matadores mais experientes para seguire se inspirar. A atividade é considerada como estabilizada: é uma profissãoexercida por pessoas que têm este dom, esta vocação. Fala-se no filme na

QUEM É O MARGINAL? A TÊNUE FRONTEIRA ENTRE OLÍCITO E O ILÍCITO NO FILME O INVASOR

Flávia Seligman1

Numa das primeiras cenas de “O Invasor”2 (Beto Brant, 2001, SãoPaulo, Brasil), a personagem Gilberto / Giba (Alexandre Borges)está se despedindo de seu sócio Ivan (Marco Ricca) depois de acer-

tarem a sentença de morte do sócio majoritário da empresa na qual traba-lham, uma construtora paulistana, contratando um matador para realizar ocrime (o músico integrante da banda Titãs, Paulo Miklos no papel do assas-sino Anísio). Ivan não parece bem certo do que fez, parece até estar arrepen-dido, mas Giba leva a situação com uma naturalidade repugnante. Ao sedespedir do amigo sentencia: “Qual é o problema, Ivan? Não pense que vocênão está sujando as mãos só porque é outro cara que vai fazer o serviço. Dána mesma, meu velho. Bem vindo ao lado podre da vida.”3

Em seguida Estevão, o sócio majoritário, é morto e o assassino con-tratado para o serviço decide conviver forçadamente com seus contratantes.Anísio praticamente invade a empresa querendo trabalhar lá como seguran-ça, namora Marina (Mariana Ximenez), a filha de Estevão e transtorna umplano que parecia perfeito. Sua presença constante e inadequada vai fazen-

1 Cineasta e Professora do Curso de Realização Audiovisual, Unisinos, [email protected] Sinopse: Companheiros desde os tempos de faculdade de Engenharia, Estevão, Ivan eGilberto são sócios em uma construtora há mais de 15 anos. Tudo corre bem até o dia emque o desentendimento na condução dos negócios os coloca em conflito. De um lado,Estevão, o sócio majoritário, que ameaça desfazer a sociedade; de outro, Ivan e Gilberto,que, acuados, resolvem eliminar o sócio, acreditando que poderão conduzir a construtoraao seu estilo após a morte de Estevão. Para isso, contratam Anísio, um matador, que executao serviço. É o início de uma nova fase para Ivan e Gilberto e também de um pesadeloinesperado. Anísio tem planos de ascensão social e pouco a pouco invade a vida dos doisamigos, confrontando-os com o processo de violência que desencadearam. (Disponível emhttp://www.brazilianfilmfestival.com/scripts/filmes/oinvasor.asp)3 AQUINO, 2002, p.151.

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CARA À CARA COM A REALIDADEOs “trabalhadores” apresentados por Beto Brant em seus filmes fa-

lam a linguagem da periferia, do dia a dia de um país real. Talvez isto seja omais dolorido para o espectador na obra do cineasta, um Brasil cruel, mos-trado sem maquiagem. Brant fala da falta de fronteira ética entre as persona-gens, a falta de diferença entre aqueles que seguem as regras, que “fazem obem” e os que não fazem. Em “O Invasor”, a diferença entre os dois sócios,que no início do filme planejam e contratam o assassinato de um terceiro, éque um deles se arrepende e o outro não. Dentro da safra dos filmes daprimeira década do século XXI5 é, portanto, um dos mais sinceros. O filme éhonesto com o país em que vive. “O Invasor” parece em alguns momentosestar documentando determinadas situações. O filme trabalha de uma ma-neira tão naturalista que fica difícil diferenciar o que é ficção e o que não é.

Numa das cenas em que força a sua entrada e aceitação na constru-tora de Giba e Ivan, Anísio tenta que os dois financiem um CD de um rapperamigo seu, o músico Sabotage que aparece no filme fazendo o papel delemesmo6. Além desta participação, o músico foi responsável por uma parteda trilha e ajudou a compor a personagem de Anísio, escrevendo inclusivealguns dos diálogos.

A cena do encontro dos dois sócios com o músico poderia ser abso-lutamente real. Ivan, muito irritado, quer dar um fim naquela situação:

“Péra aí, Anísio, isso tá passando dos limites. Você tá pensando queisso aqui é um banco ?” (...) “Não”, diz Anísio ameaçador, “Eu tô pensandoque o meu chegado aqui andou duas horas de ônibus e não vai voltar sem odinheiro”7 .

5 Entre várias estréias encontramos alguns títulos que também abordam de forma bastanteincisiva a questão da violência como Bicho de sete cabeças de Laís Bodansky, São Paulo,2000; Cidade de Deus de Fernando Meirelles, Rio de Janeiro, 2002 e Ônibus 174, JoséPadilha, Rio de Janeiro, 2002.6 Sabotage morreu baleado em 24 de janeiro de 2003, quando saia de uma festa perto de suacasa, na região da Saúde, na Zona Sul da cidade de São Paulo.7 AQUINO, 2002,p.206.

extrema habilidade de uma personagem específica, Múcio, vivido pelo atorChico Dias, que só se deu mal porque se envolveu com a mulher do patrão(Adriano Stuart), vivida pela atriz Maria Padilha.

O segundo filme, “Ação entre amigos”, 1999, conta a história de qua-tro homens marcados por uma atuação política nos anos sessenta no Brasil.Participantes da luta armada, os quatro foram presos e tiveram a vida modi-ficada pela crueldade e truculência das força militares. Anos mais tarde umdeles (Zécarlos Machado), certo de que encontrou o policial que fora seualgoz, inclusive tendo assassinado sua namorada que estava grávida, armauma emboscada levando os demais amigos para que possam vingar suajuventude. A atitude criminosa de pessoas ditas normais está então justificada.“Aquilo era uma guerra”4, diz o velho torturador quando é cercado pelo grupoque subjugou.

No primeiro e no terceiro filme as personagens “matadores” são consi-deradas assim pela sua opção profissional. Ocupam, explicitamente, a mar-gem da sociedade. São assassinos, bem definidos que usam deste ofíciopara viver. No segundo longa o diretor desenhou toda uma trajetória que levaas personagens a se tornarem assassinos, mas não profissionais. Na verda-de nem assassinos. Os ex-militantes de “Ação entre amigos” penam tentan-do colocar o passado em ordem. São justiceiros e assim estão à margem dasociedade temporariamente e por uma boa causa.

A razão deste ensaio é a observação da representação do lícito e doilícito através da construção de personagens marginais e a tênue linha queas separa das personagens “não marginais”. Em “O invasor”, Anísio é omatador contratado e, em nenhum momento do filme é questionada a sua“profissão”. As outras personagens, os contratantes, o sócio que morreu e afilha dele são todos integrantes da classe “não marginal” da sociedade e,mesmo assim, têm um comportamento naturalmente ilícito. Lidam com situ-ações e ações ilegais como se estivessem lidando com suas profissões,suas famílias, seu cotidiano.

4 BRANT, Beto. Ação entre amigos . Videocoleção ISTOÉ/ Novo Cinema Brasileiro. VHS/NTSC/ 80 minutos. Editora Três, São Paulo, 1998.

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atuar na ilegalidade. Por sua vez, o desenho da personagem Anísio é atéprevisível: frio, calculista, sem nenhuma emoção (tanto é que conta sem amenor preocupação que acabou matando a mulher do homem encomendadoporque ela o estava olhando, a princípio sem nenhum motivo mais forte,apenas o olhar da mulher o ameaçara): “A mulher dele não estava no trato”,diz Ivan quando Anísio vem cobrar o restante do dinheiro combinado peloserviço; “Não se preocupe. Eu não vou cobrar a mais por isso” 10, diz Anísio.

Como “trabalhador” e membro da parte “marginal” da sociedade, Aní-sio tem atitudes compatíveis com seu modo de encarar a vida e mais, com-patíveis com o modo com que seus contratantes também agem. Tudo é umaquestão de oportunidade nos diz o filme. Não importa se estamos certos ouerrados, o importante é não perder a viagem.

Anísio vai indo muito bem dentro da previsão de Giba e Ivan, até omomento em que resolve ocupar um lugar ao lado deles. Equipara-se à clas-se dominante, tão marginal quanto, e resolve trabalhar também na constru-tora. “Gostei daqui. Tô pensando em trampar aqui com vocês”11, diz ele.Depois de conhecer o paraíso, o marginal não quer mais voltar para a favela.

O grande problema colocado aqui, porém, não tem resposta. A per-gunta fica no ar: quem é o marginal? De um lado personagens verossímeis,ricas, bonitas morando em bairros nobres da cidade de São Paulo e convi-vendo normalmente com o crime, com a mentira e com a oportunidade delevar vantagem sobre seus pares. Do outro lado a personagem marginal, afavela, a criminalidade cotidiana, porém também com um lado banal, de umcotidiano sem grandes emoções. Numa das cenas mais bonitas do filme acâmera faz um passeio pela periferia acompanhando Anísio e Marina. Elesvão até um bar, visitam uma cabeleireira. Tudo muito normal, sem nenhumamaquiagem. Tranqüila é a vida longe dos bairros nobres da cidade e deslum-brante para aqueles que a estão descobrindo. Marina parece, todo o tempo,fascinada pela novidade que a periferia apresenta.

10 AQUINO, 2002, p.18111 IDEM, p.189

Ao lado de “temas suaves, visões festivas do país e (re)visões históri-cas”8 em filmes feitos para assegurar um lugar no circuito de exibição, ocinema brasileiro também entrou no século XXI perdendo a vergonha de serexplícito e sem nenhuma necessidade de contar uma história com final feliz.Convivendo com comédias de costumes e com a estética da teledramaturgia,surgiram filmes que causam agonia e desconforto, inseridos no sangue ruimda sociedade nacional. A voz dos oprimidos que já foi tema de protesto evanguarda nos anos do Cinema Novo agora vem à tona sem tanto compro-misso com a ideologia. “Estamos aqui”, nos diz o invasor Anísio todo otempo, “não adianta nos mandar embora porque vamos voltar sempre”.

Neste filme, a periferia não está se mobilizando por um mundo melhor.Anísio, por exemplo, quer apenas resolver a sua vida. Na Revista Sinopse, ocrítico de cinema Cléber Eduardo define bem a posição do filme quanto aocontraste social:

“Saímos do terreno da visão marxista da luta de classes. Anísio nãoquer protagonizar uma inversão de pólos entre periferia e burguesia. Desejaapenas se incorporar à classe dominante. Dispõe-se a defender os interes-ses dela para compartilhar seus prazeres. ‘ Tô pensando em me envolver, darum trampo, cuidar da segurança para vocês irem à praia – diz a Giba e Ivan’os patrões à contragosto que ele vê como sócios em potencial.” 9

TUDO É UMA QUESTÃO DE OPORTUNIDADEAs personagens apresentadas no filme “O Invasor” são, em geral, muito

infelizes. Mesmo aquelas que desfrutam de uma vida abastada com privilégi-os das classes altas, são vazias e enfrentam uma grande falta de emoçãopela vida. Ivan tem um casamento desmoronado e praticamente não falacom a esposa nas poucas cenas em que ela aparece. Giba parece ser felizcom sua família, mas, ao mesmo tempo, vive cercado por uma outra realida-de, como o convívio com prostitutas e bandidos. Seu sócio no prostíbulo éum delegado de polícia que usa de seus contatos e conhecimentos para

8 CLÉBER EDUARDO, Revista Sinopse, p.20.9 CLÉBER EDUARDO, Revista Sinopse, p.21.

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Gilberto (rindo): Eu sabia. Ta vendo como você é inocente, Ivan? OEstevão e os amigos dele vão lá toda terça, depois do futebol. Ele é clientepreferencial da casa. Foi assim que ele descobriu. E da Alessandra, elefalou alguma coisa? A menina preferida dele. Procê ter uma idéia eu sei atéo que ele gosta de fazer com ela... (...) Ponha uma coisa na cabeça, Ivan. OEstevão não é santo. Se a gente bobear, ele põe no nosso rabo. É só umaquestão de oportunidade, meu amigo.”13

A questão da violência neste filme não é tratada como uma questãoisolada. A violência não aparece como uma conseqüência de uma socieda-de desigual, de uma crise social, política e econômica. A violência aparececomo uma questão de oportunidade, que pode surgir em qualquer classesocial, dependendo da hora e da vez. Esta foi a oportunidade de Giba e Ivan.E de Anísio no momento em que ele descobre como é bom viver entre aburguesia. Quando finalmente não agüenta mais, Giba interpela Anísio: “Es-cuta aqui, Anísio, quanto você quer para sumir da minha vida ?” Porém Aní-sio é categórico: “Nada. Tô gostando daqui.”14

Um bom exemplo disto é a personagem Marina, que é uma garota declasse média alta preocupada com festas, baladas e drogas. Sem nenhumareação ao assassinato dos pais, ela torna-se a ponte de Anísio para umavida nova. Por uma coincidência previsível acaba conhecendo e envolvendo-se com o matador. Nem a juventude burguesa e bem nascida se salva daartilharia do filme. A menina parece fazer pouco caso da morte dos pais ecomo nova sócia da construtora quer apenas retirar um dinheiro por mês.Fascinada pelo novo e talvez até pelo proibido, namora um sujeito marginal(embora não saiba que ele matou seus pais, sabe que ele veio da periferia eque provavelmente leva uma vida “diferente da sua”) e para se divertir, tomaecstasy e dança nas “baladas”.

13 AQUINO, 2002, p. 165.14 AQUINO, 2002, p. 214.

No lado nobre da sociedade, o fascínio pela marginalidade vai maislonge. Giba, um dos mandantes do crime, além de engenheiro, também temsociedade numa boate, uma espécie de prostíbulo de luxo. Uma atividadeque ele encara com a maior naturalidade, e isto acontece durante todo ofilme: atividades ilícitas ou mesmo antiéticas são encaradas como naturais.“Não acredito, você é sócio de um puteiro e eu nunca desconfiei de nada. Éde fuder”, diz Ivan quando descobre a sociedade do amigo. “Diversificação denegócios. É a onda do momento”12, responde Giba. Uma vez desencadeadoo “lado podre da vida”, ele não volta atrás. Mais marginal talvez seja este bompai de família, que conta histórias para a filha dormir, que cursou engenharia,que tira férias na praia e à noite toca um prostíbulo em parceria com umdelegado de polícia amigo de assassinos.

“O Invasor” é, portanto, um filme sem mocinhos. Todos têm algumaculpa e se ainda não fizeram nada de errado é porque não tiveram oportuni-dade. Um filme sem esperança, talvez. O realizador trabalha apenas comum dos lados da moeda: o lado do mal.

Avaliando os retratos da classe média e da periferia nas personagensde Anísio, Giba e Ivan, consideramos que a grande violência que o filme nosapresenta é o retrato cru de indivíduos da classe média, bem nascidos einstruídos que, para conseguir uma ascensão profissional, contratam ummatador para acabar com o sócio “careta”. O pior de tudo é que quandosentimos pena do sócio que sabemos, vai morrer, descobrimos que ele tam-bém tem as suas artimanhas para conquistar seus objetivos. Numa cenainicial, antes do assassinato, Ivan se arrepende e tenta desistir do plano.Procura Giba e o sócio acaba por desvendar-lhe a outra face de Estevão:

“Ivan: Conversei com o Estevão hoje de manhã. Ele sabe do teu negó-cio com aquele puteiro.

Gilberto: Eu sei que ele sabe. Mas ele te contou como ele descobriuisso ?

Ivan: Não, não contou.

12 AQUINO, 2002, p. 151

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para a maturidade do cinema brasileiro. A heterogeneidade da safra de fil-mes nacionais dos últimos tempos permite que cada realizador trabalhe comhonestidade, tenha espaço para expor sua visão e represente a sociedadeem que vive da forma que melhor lhe couber.

A opção pela falta de perspectivas é uma opção ideológica dos seuscriadores. Autores, atores, diretor, todos entram num acordo de mostrar umBrasil sem rumos. Do jeito que estamos não vamos a lugar nenhum, nos dizo filme. E mais, somos todos culpados e a linha que separa o certo e oerrado na sociedade brasileira está por se romper, é só aguardar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:AQUINO, Marçal. O Invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002.CLÉBER EDUARDO. A convivência forçada com O Invasor. Revista Sinopse,

São Paulo, São Paulo: CINUSP / Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universi-tária / Universidade de São Paulo. n. 8, ano IV, p. 20-24, abr. 2002.

SELIGMAN, Flávia. Os matadores de tirar o fôlego. Revista Eletrônica Motim Cul-tural (Cidades Virtuais www.zaz.com.br), setembro de 1998.

VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise filmica.Campinas,SP: Papirus Editora, 1994.

NO FINAL, NINGUÉM É BOM...O filme encerra com uma afirmativa: ninguém é bom. O sócio que

morreu queria ganhar mais em cima de seus parceiros, os outros sóciospara aumentarem suas chances na empresa mandam matá-lo, o assassinoresolve que vai desfrutar da vida boa ao lado de seus contratantes e a filhaórfã e rica herdeira namora um marginal. “O Invasor” é um filme sem esperan-ça, e talvez, uma história sem final. O realizador retrata com muita dureza afalta de esperança que a sociedade brasileira vive hoje e que assusta a to-dos, sem exceção. Segundo Vanoye e Goliot-Lété:

“Um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contextosócio-histórico. Embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte(com relação a outros produtos culturais como a televisão ou a imprensa), osfilmes não poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da socieda-de que os produz (quer se trate da economia, quer da política, das ciênciase das técnicas, quer, é claro, das outras artes).”15

Uma opção difícil: um filme sem personagens bons. Uma opção esté-tica: uma fotografia trêmula e inquieta que procura por algo o tempo todo. Nacena em que Marina e Anísio tomam ecstasy, numa boate, a câmera pareceestar também drogada, girando para todos os lados sem uma base fixa.Assim é o filme todo, não há certezas, bases ou algum porto seguro nasociedade retratada. É o momento histórico na visão do diretor, sem espe-ranças.

“O Invasor” é um filme que em alguns momentos nos causa repulsa.Como conviver com esta realidade tão dura e não ter condições de mudá-la ?Como conseguir entender uma história sem mocinhos e sem personagensbons ? Este é o filme, que não consegue fugir da sua época na história e nasociedade brasileira. Importante que visões como estas apareçam no meiode tantas outras num momento em que a cultura brasileira está tãodiversificada. Nunca tantas tendências e tantos estilos diferentes conviveramno mesmo período cinematográfico e isto configura um encaminhamento

15 VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p 54.

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psiquismo da nossa civilização. Podemos dizer que quanto mais perto daestrutura esteja, menos livre será o escritor nas escolhas dos avatares daspersonagens da trama ficcional. Qualquer escritor sabe disso, que ele émais conduzido do que condutor de suas personagens. É nesta submissãoàs coerções da estrutura, precisamente, que o psicanalista enxerga a gran-deza da obra. Motivo que me leva a centrar meu comentário na lógica quesubtende a trama do enredo, em detrimento dos aspectos mais logrados decomicidade e ternura, assim como da fotografia, a direção ou o desempenhodos atores, que deveriam constar de qualquer resenha crítica deste filmeencantador.

Não é por livre arbítrio, portanto, mas empurrado pela lógica da trama,que o roteirista decide fazer entrar em coma a personagem depois de uminfarto acontecido... Quando? No momento de testemunhar a cena do filholhe sendo tomado pela polícia durante uma manifestação contra o regimeque ela serve como cão fiel. Coma que reproduz, um grau acima, a depres-são catatônica em que ficara durante longos meses quando anos antes des-cobrira que o marido nunca mais voltaria, tendo fugido para o lado ocidentaldo Muro da Vergonha.

E o filho empenha todas as horas do seu dia em conceber e realizar amistificação destinada a manter a convalescente ignorante do fato de que omundo, seu mundo, desabou durante a sua “ausência”. Restaura, pois, oquarto da acamada, como estava antes das mudanças e fecha a janela quedá para a rua, abrindo outra, virtual, a televisão, que, mediante falsos jornaisde notícias, gravados em vídeo por um amigo, cria a ilusão, primeiro, de queo status quo continua o mesmo e, depois, inventa um desfecho para o soci-alismo, não como de fato foi, mas como deveria ter sido, conforme o idealmaterno interpretado pelo filho. Reprodução irônica da real politik do stalinismoque, ao invés de adaptar a realidade e reescrever a história conforme osinteresses do partido, está motivada pelo bem do outro. O bem do outrointerpretado, claro, por aquele que apresenta a realidade para que coincidacom uma fantasia.

É difícil não lembrar, neste ponto, o oscarizado filme de Begnini, “Avida é bela”, cujo enredo e fonte de comicidade (e de polêmica) consistiatambém num engano. Desta vez, do filho pelo pai, que pretende salvá-lo do

ADEUS, LÊNIN! OU, DA MISTIFICAÇÃO

Ricardo Goldenberg

É difícil pensar num gênero de cinema mais puro do que a comédia eo musical, cinematograficamente falando. Digo “puro” no sentido emque a forma se liberta da tirania do realismo, do dever de fingir a

realidade, para ocupar-se apenas da coisa cinematográfica, liberando o es-pectador, ao mesmo tempo, da exigência de Coleridge de suspender a des-crença para apreciar a ficção. São filmes irônicos por sua própria natureza, emque a composição mesma declara publicamente a sua essência de artifício.

Deste ponto de vista, a decisão dos exibidores de classificar comocomédia o “Adeus, Lênin!”, de Wolfgang Becker, é duplamente pertinente.Primeiro, por ser um filme que cumpre com uma das convenções do gênero:explorar a comicidade inerente aos maus entendidos do amor, aqui, maternoe filial. Segundo, por fazer da ilusão mesma o eixo da sua trama.

Com efeito, temos a ação situada em Berlim do leste durante a que-da do muro, e um filho empenhado em ocultar da sua mãe a realidade do fimdo comunismo e a ocidentalização da Alemanha Oriental. Trata-se de umconluio organizado entre amigos, família e vizinhos para mistificar esta se-nhora, cuja vida, nos é dito, fora dedicada e só faz sentido pela CausaSocialista. O núcleo de nonsense, origem das situações cômicas, é a pres-crição médica de evitar “absolutamente” a esta mulher cardíaca – sobrevi-vente de um infarto que a deixara em coma durante os oito meses em que ocomunismo era varrido de Alemanha – qualquer emoção violenta. E, claro,que emoção mais violenta para uma militante de coração que o fim da cau-sa pela qual milita?

Um observação, antes de continuar. A psicanálise costuma se deterem obras de arte compostas de tal modo que a realidade do inconsciente seapresenta de modo a obrigar o espectador a implicar-se naquilo que vê ouescuta, sem poder permanecer indiferente. É nesta implicação que reside,para o psicanalista, o interesse da obra. Assim, por exemplo, Freud creditaa durabilidade do impacto estético do Rei Édipo de Sófocles, ao fato de estatragédia pôr em cena a textura de uma fantasia universal constituinte do

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WOODY ALLEN E OUTRASCONTRIBUIÇÕES AOS PSICANALISTAS

Robson de Freitas Pereira

Há algum tempo, depois de assistir “Dirigindo no escuro”, de WoodyAllen (“Driving mad”, no original), fiquei pensando que esta era maisuma de suas contribuições à psicanálise e, mais especificamente,

aos psicanalistas. Explico melhor: na filmografia de Allen, pelas própriascaracterísticas de seu humor e estilo (onde fazem parte o personagem ju-deu, classe média, intelectualizado e urbano / nova iorquino), a psicanálise éconstantemente referida1. Freqüentemente de forma irônica ou satírica, ou-tras vezes mordaz (em “Desconstruindo Harry”, por exemplo), a maior partedo tempo em aparecimento pontual e secundário e, por vezes, sendo perso-nagem seu filme – lembremo-nos de “A outra” (Another woman).

Desta vez, a especificidade estaria articulada ao desenrolar de umtratamento e sua descontinuidade, onde no decorrer do filme podemos ob-servar a demanda de análise, o desdobramento das sessões e seus efeitossurpreendentes para o analisante. Mesmo correndo o risco de incorrer numametáfora irônica (dirigindo no escuro); pois para os analistas a direção dacura é um tema caro, acreditamos que vale a pena a discussão.

Como para comprovar que as escolhas são sempre circunstanciais,recentemente participei de uma “mesa redonda” num ciclo dedicado a obrade David Lynch2. Ocasião de rever “A estrada perdida” (Lost Highway) pelícu-la emblemática na filmografia do diretor que reafirma algumas marcas de seu

1 Estas observações, com o acréscimo de considerar Woody Allen como o maior humoristado cinema, podem ser conferidas no “Dicionário de Cinema – os diretores”, de Jean Tulard,ed. LPM; “Dicionário de cineastas”, de Rubens Ewald Filho, ed. LPM e na biografia “WoodyAllen”, escrita por Eric Lax, ed. Cia das Letras.2 O ciclo “Tarja Preta – a obra de David Lynch”, produzido e coordenado por estudantes deComunicação da UFRGS, apresentou, além dos longa-metragens,diversos filmes de Lynch,muitos deles praticamente inéditos no Brasil – curtas e filmes experimentais. A oportunidadeda discussão deu outro rumo ao texto pensado inicialmente, daí a menção às contingências.

horror da rotina de tortura e morte de um campo de extermínio nazista fazen-do com que ele acredite que tudo não passa de uma gincana com prêmios.O núcleo cômico sendo precisamente os esforços para que o ludibriado per-maneça inocente (cego?) apesar das sucessivas fraturas da montagemficcional pelas quais irrompe a insuportável realidade. Insuportável, em tese,para o mistificado (o filho, no caso de Begnini; a mãe, no de Becker), masque o filme não consegue evitar mostrar como uma “paixão de ignorar” me-nos do enganado que do “enganador”.

O enredo de “Adeus” mostra isso quando nos surpreende com a con-fissão da mãe de que tinha mentido o tempo todo no concernente ao supostoabandono do lar pelo pai deles atrás de uma saia. Não teria havido tal; omarido dela fora obrigado a fugir para o outro lado da cortina de ferro para nãocair nas mãos da Stasi e ela, que devia seguí-lo, por medo de ser surpreen-dida e terminar os dias num campo de concentração, separada dos seus,opta por tocar a vida contando para si mesma e para os filhos a estória daesposa abandonada.

A aplicada militante passara a vida ocultando(se) a própia covardia:“Quando meu pai foi embora”, nos diz o filho, “a minha mãe casou definitiva-mente com o Partido.” Não é um detalhe menor as cartas escondidas ejamais abertas, que o homem abandonado do lado da “liberdade”, escreverapara a sua família, que desistira de juntar-se a ele sem uma única palavra.

Podemos indicar, então, os dois pontos em que o autor, quando pertodo real da estrutura, revela-se arrastado pela ficção talvez à sua revelia. Umdeles é o infarto e conseqüente estado de coma da mãe, no momento emque vê o filho – pelo qual renunciara ao marido – ser levado dela pela polícia.Outro, o momento em que, ainda sem saber supostamente que está sendoludibriada, confessa a verdade sobre o abandono do pai. Revela-se nestemomento, senão para a personagem ao menos para o público, que a mistifi-cação toda era um exemplo da lógica pela qual o emissor recebe do receptora sua própia mensagem de modo invertido. A mentira amorosa filial, comefeito, reproduz em espelho a mentira amorosa materna, destinada menos aenganá-lo do que a ocultar a si própria sua opção de abandonar o homempara ficar com o filho.

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articulou para que ele voltasse a dirigir um longa metragem de grande orça-mento.

Nas vésperas de iniciar as filmagens, o inesperado: o diretor fica cego!Estava lendo o roteiro do filme. Deitou-se para cochilar um pouco e, ao des-pertar, não enxergava mais. Escuridão completa. Levado ao analista por seuagente, faz sua demanda: está cego e precisa recuperar a visão em poucosdias (estamos na quinta-feira e ele começa a trabalhar na segunda). Ao queo psicanalista lhe responde com as restrições habituais: um tratamento nãopode prometer resultados, é demorado, mas ele pode retornar na sessãoseguinte.

Wal vai retornar para suas sessões, enquanto inventa estratégias paraque ninguém possa perceber sua mais completa “deficiência visual”. As tra-palhadas se sucedem. Escolhe um fotógrafo chinês que não entende sualíngua e assim consegue um tradutor que seja seu cúmplice. Sua ex-espo-sa, num primeiro momento supostamente só interessada na realização dofilme, também se transforma em cúmplice da farsa.

No decorrer de suas entrevistas com o “shrink” , o diretor vai relatandoas condições que desencadearam seu sintoma – cegueira – e como ele teveinício. Nestes relatos e na importância que lhe dá o analista a determinadostemas, vai-se operando uma mudança de posição do “analisante”. Suas as-sociações da noite em que perdeu a visão são exemplares. Estava lendo oroteiro e começou a ficar cansado e com sono. Qual a história? Simples; umcaso policial, onde um matador mafioso tem que assassinar o próprio pai.Não cumprindo a “missão”, coloca sua vida em jogo. A partir deste episódio,ele começa a falar das relações com o próprio filho. Estão rompidos, briga-ram chegando as vias de fato. Afinal, seu filho é adito às drogas e formouuma banda de rock, quando seu pai desejava que ele fosse músico clássicoe cursasse uma universidade.

Mesmo com suas queixas, sem saber muito bem porque vai procuraro filho e retoma um diálogo há muito interrompido. É obrigado a ouvir o quenunca quis. Por exemplo: “não sei como você foi atirar-se nas drogas”. “Orapai, você foi meu maior exemplo. Tomava medicamentos todo o dia! Semfalar nas bebedeiras que presenciei”.

estilo e prenuncia outras (A cidade dos sonhos/Mulholand Drive). Com este“estímulo”, pude articular que a contribuição de Lynch para a psicanáliseseria diferente daquela propiciada pelos filmes de Allen. Para o diretor nasci-do em 1946, a psicanálise não é referência enquanto terapia. Ele coloca emcena muito mais a dimensão do inconsciente com seus aspectos oníricos,seus elementos recalcados, seu gosto pelas cores, pelos detalhes que ad-quirem importância fundamental, na transformação dos restos em objetosdesejáveis e na inclusão e valorização dos excluídos.

DEIXANDO O SIGNIFICANTE DIRIGIR“Dirigindo no escuro” pode não ser o melhor filme de Woody Allen.

Nem precisa. Alfred Hitchcock dizia que bons livros nunca deram ótimosfilmes. Ele preferia roteirizar obras medianas. Parafraseando o diretor inglêsque tinha a psicanálise em alta conta para sua cinematografia, talvez possa-mos afirmar que películas muito empolgantes podem inibir nossas associa-ções. Fica difícil elaborar alguma coisa que vá um pouco além do lugar co-mum, tamanho o impacto causado no espectador. Há controvérsias, a dis-cussão é tão antiga quanto o advento do cinema falado x cinema mudo.Façamos então a ressalva de que isto não precisa ser uma regra; pois hápessoas corajosas que, depois de assistir a uma obra prima, sempre temsua contribuição a dar ao diretor. Neste caso particular, vamos nos ater aalguns aspectos da película em questão; pois a multiplicidade de significa-ções ou o feixe de significantes que performa um filme exigiria um esforçomuito maior do que os parâmetros deste texto.

Wal Waxman é um diretor de cinema que, depois de algum sucesso, vêsua carreira entrar em franca decadência. Atualmente, limita-se a dirigir comer-ciais – tipo vender geladeiras para os esquimós. No decorrer do filme, apresen-tam-se alguns aspectos que o levaram a decadência. Todos ligados a seucomportamento cada vez mais obsessivo no set e outras bizarrices quefizeram ruir seu reconhecimento junto aos grandes estúdios. A derrocada foitamanha que até sua mulher o deixou para ir viver com um chefão de estúdio.

Subitamente, surge uma grande chance: ele é contratado para dirigirum blockbuster. Sem que ele saiba, sua ex-mulher – agora produtora –

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pre determinada discursivamente. Se nos limitarmos ao que é visto estare-mos sempre sob a hegemonia do imaginário. O que é visto pode servir paraconfirmar aquilo que queremos ver. Lembremo-nos da disjunção entre a visãoe o olhar, tão bem trabalhada por Lacan e outros autores3, ou mesmo oreconhecimento de que a psicanálise introduziu uma forma de escuta – a dosignificante – que contribuiu para uma abertura da cultura ocidental4.

A HIGHWAY DO INCONSCIENTEA abertura que citamos acima foi o rompimento com a leitura de índi-

ces e signos, quer dizer, uma escuta/leitura que se desprendeu das amarrasdo sentido, da hermenêutica e da verdade universal religiosa. David Lynch,cineasta nascido no pós-guerra, vindo de uma escola de artes plásticas, trazuma outra possibilidade de articulação nesta relação complexa do cinemacom a psicanálise. Explora a multiplicidade de estilos, fazendo uma atuali-zação da realidade do inconsciente de maneira diferente de Woody Allen.Bem entendido que diversidade não implica um juízo de valor.

Sua contribuição para a psicanálise, se é que podemos utilizar estaexpressão, está na atualização da dimensão onírica e de alguns aspectosque tentaremos sintetizar a seguir. Os sonhos são atemporais e colocam osujeito nesta intersecção das dimensões reais, simbólicas e imaginárias.Hegemonia do imaginário, mas sempre tributário da linguagem e dadiscursividade que nos (des)organiza. Utilizando em sua filmografia elemen-tos caros a cultura ocidental e oriental – o duplo, as relações com o demoní-aco, a morte e o sexo, o sangue e as cores, Lynch nos impulsiona a lidarcom aspectos recalcados. Aqueles que muitas vezes preferimos deixar lon-ge da realidade cotidiana.

3 Lacan trabalha a esquize do olho/olhar em seu seminário “Os quatro conceitos fundamen-tais da psicanálise” e a dimensão escópica como um dos objetos pulsionais, juntamente coma voz e a escuta, em diversos momentos de seu ensino. Georges Didi-Huberman é outroautor que, desde a iconografia da histeria no século XIX, vem pesquisando sobre o quevemos e o que nos olha. Em seu último trabalho “Images malgré tout”, ed. Du Minuit , ele lançaa questão: ver uma imagem nos ajuda a saber sobre nossa história?4 “Écoute”, Roland Barthes, Ob. Cs. Vol. III.

Sua vida amorosa e sexual também é questionada. Viu-se cúmplicedo fracasso de seu casamento anterior e na posição que ocupava junto acompanheira atual. Toda a atenção só para ele. Toda a sustentação somentedo lado dela. Não acreditando que ela possa ser efetivamente uma boa atriz,lhe consegue uma “ponta”b, mas atribui isto a sua cegueira.

O roteiro chega ao final, as filmagens também. O filme é um fracassode crítica e público nos EUA; pois WW não conseguiu recuperar a visão atempo de terminar pelo menos a montagem. Pelo menos conseguiu reconci-liar-se com o filho e a ex-mulher. Um dia, sentado num banco de praça juntocom ela, admitindo seu fracasso, e pensando no que fazer dali por dianteele, subitamente, recupera a vista perdida. Pode refazer planos conjugais ede trabalho – os franceses adoraram seu filme sem pé nem cabeça e elerecebeu convites para trabalhar na Europa!

Banal? Sim. Poderíamos acrescentar que todos os clichês psicanalí-ticos estavam em jogo – Édipo, castração, problemas com a sexuação ecom a função paterna . Entretanto, apesar e mesmo em função dos clichêsvale a idéia de que uma cura vai além das intenções imediatas do analisante.Ele pode esperar “o melhor” – lembrando as respostas de Jacques Lacan em“Television”. Mas os resultados esperados podem comparecer nos momen-tos mais surpreendentes, só depois que o trabalho com alguns significantesfundamentais para o sujeito tiverem passado pela dimensão transferencial.Daí a importância de que o personagem e mesmo seus dramas existenciaisfiquem próximos da caricatura ou do lugar comum. Isto só reforça esta di-mensão fundamental de que a atenção tem que ser flutuante e o foco nãopode estar sempre condicionado pelo esbatimento da queixa. A dimensãodo sintoma articula-se com este sinthoma (sinthomem) fundamental queenlaça o sujeito com a linguagem que o determina. Cada um faz sua articu-lação particular dos significantes fundamentais – morte, sexo, pai, filho, en-tre eles.

Não poderíamos deixar de mencionar outros elementos em cena. Apiada final (cultura norte-americana x européia) pode ser lida também comoautoreferencial (Woody Allen tem mais reconhecimento na Europa que nosEUA) ou mesmo como uma metáfora do quanto uma interpretação está sem-

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servem para resguardar o sono e decifrar enigmas. Com Lacan, o inconsci-ente transforma-se num saber, através do qual o sujeito pode tentar se deci-frar. Não como adivinhação de um texto já escrito – um destino – mas umconjunto de cifras, de letras que esperam por um sentido, de preferênciamais de um. A verdade tem estrutura de ficção, a mesma da linguagem queé condição inconsciente.

Os dois cineastas citados nos ajudam a enfrentar a complexidade, aparcialidade e incluir o intervalo e a desarmonia como parte de nossa vida. Ocego que só consegue recuperar a visão das cores e da vida num outromomento, depois de suportar a descontinuidade de um tratamento. ComLynch, a descontinuidade se formaliza (sexo não existiria sem ela, videGeorges Bataille), articulando a teia de sangue, sexo e violência quecostumeiramente está protegida pelo véu de nossa cordialidade cotidiana.

A “Estrada perdida” com sua estória de mistério, pacto diabólico, as-sassinato e velocidade é exemplar neste movimento de re-introduzir o que setenta manter afastado/excluído, tanto da subjetividade, como das relaçõessociais5. Em uma entrevista, o diretor afirmava: “os lugares mais belos po-dem conter doenças e outras coisas sob sua superfície”, basta rasgar acortina de veludo azul ou enfrentar o rechaço provocado por uma figura gro-tesca. “O homem elefante” é exemplar ao nos apresentar a história do perso-nagem de circo que retirado do rol das atrações bizzarras, consegue seapresentar como espelho de nossa própria humanidade.

“Veludo Azul” (Blue Velvet) é outra história de voyeurismo, sexualida-de misturada com dinheiro e morte. Com o detalhe da orelha achada numgramado. “Porta para um outro mundo”, no dizer do diretor. Único orifício docorpo que nunca se fecha, como nos lembra Lacan.

Nestes filmes, somos levados a incluir os fragmentos de história e deobjetos, fazendo uma trajetória de inclusão e reconhecimento de que osrestos são fundamentais em nossa cultura e podem se transformar em obje-to de desejo (não é este um dos ensinamentos da psicanálise? Reconhecera travessia do objeto causa de desejo em resto da operação?). Impulsiona-dos a produzir significações das mais diversas a partir das lacunas, dosintervalos. Nestes intervalos, onde irrompe a angústia e um preenchimentoconduzido inicialmente pelos nosso fantasmas. A realidade é uma espéciede sonho que o sujeito conforma para suportar sua existência. Não há outrocaminho, até que reconhecemos que o essencial (se é que ele existe) estános restos, nos objetos perdidos.

Os sonhos e sua interpretação fazem parte da história de nossa hu-manidade. A partir de Freud (precedido por dramaturgos e poetas comoCalderón de la Barca, “a vida é sonho”), aprendemos que eles são realiza-ções de desejos inconscientes e tributários da linguagem; ou seja, o sujeitoprecisa relatar, dizer o que sonhou para encontrar algum sentido. Sonhos

5 Não vamos detalhar o roteiro do filme por questões de espaço. Deixamos ao leitor a tarefade preencher as lacunas. De resto uma das tarefas que todo o espectador dos filmes deDavid Lynch é convocado a fazer.

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SEÇÃO DEBATES

sos devaneios de livres aventuras quanto nossas exigências de engajamentoradical.

Falando em radical, há, no filme, um diálogo memorável entre Albertoe Ernesto, sentados nas pedras de Machu Picchu. Nessa altura, os doisamigos já sentem os efeitos da viagem: a injustiça os assombra. Alberto tema idéia de casar-se com uma descendente de inca: “Fundaríamos um partidoindígena (...). Incentivamos todo o povo a votar, reativamos a revolução deTupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você acha?”. Ernesto res-ponde: “Uma revolução sem tiros? Você está louco” (é, aliás, um dos váriosmomentos em que Gael García Bernal, no papel de Ernesto, passa repenti-na e perfeitamente da ternura à dureza).

Brincando, poderíamos dizer que a proposta de Alberto foi tentada porJoão Ramalho com a ajuda de Bartira: chama-se Brasil. Quanto à propostade Ernesto, ela não parou de fracassar durante o século 20: do Camboja àprópria Cuba, passando pela China, o que foi ganho na ponta do fuzil custoucaríssimo em liberdade e em vidas.

Mesmo assim, o caráter radical dos sentimentos de Alberto e Ernestodeixa um gosto amargo. É por decepção ou por covardia que nos tornamosincapazes de inventar e projetar utopias radicais?

É estranho assistir à viagem dos dois amigos numa época em quemal se consegue imaginar um mundo diferente e nos resta sonhar apenascom uma melhoria progressiva das condições econômicas de todos. É es-tranho escutar a conversa de Machu Picchu numa época em que nossaimagem do radicalismo extremo é o MST, um movimento inspirado por umaideologia católica do fim do século 19, cuja visão do futuro é um mundoarcaico de pequenos proprietários rurais em economia de subsistência, to-dos rezando o ângelus do fim do dia. Legal e bem melhor que a fome, mas éisso que chamamos de radical?

Claro, a frustração de não saber mais sonhar é acompanhada pelaconsciência do malogro que sempre parece espreitar nossos sonhos. É difí-cil olhar para Ernesto jogando pedras no caminhão de uma mineradora sempensar em suas lutas futuras. Mas, para mim (e deve ser assim para mui-tos), o caminho entre a raiva do jovem Ernesto e a morte do Che na Bolívia

DIÁRIOS DE MOTOCICLETA1

Contardo Calligaris

Estréia amanhã “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, inspiradonos diários que Ernesto Guevara escreveu em 1952, quando, com oamigo Alberto Granado, percorreu a América Latina da Argentina à

Venezuela, de moto, a pé, de barco ou de carona.No filme (como provavelmente aconteceu na realidade), a experiência

de Ernesto e Alberto é um momento mágico, em que convivem as duas gran-des aspirações das gerações que cresceram na segunda metade do século20: o anseio de liberdade individual, que nos tornou todos um pouco mochileiros(de verdade ou em sonho), e o anseio de viver numa sociedade justa.

Essas vertentes de nossas esperanças se divorciaram precocemen-te, e o mundo se dividiu em dois blocos: os mochileiros sem justiça e osjusticeiros sem mochila. Somos os filhos problemáticos desse casal divorci-ado e, como tais, logicamente, gostaríamos de juntar os cacos.

Talvez a vontade de reconciliar nossos dois anseios explique por quea figura do Che se tornou uma marca registrada do espírito de revolta.

Na vida de Ernesto Guevara, a travessia narrada no filme não é só umepisódio juvenil, mas uma espécie de matriz. Guevara, por mais que se tor-nasse uma eminência da Revolução Cubana, nunca tirou o pé da estrada.Pouco importa decidir se, do ponto de vista político e estratégico, as expedi-ções congolesa e boliviana fizeram sentido ou não. Para entender o mito doChe, vale uma outra consideração: as expedições foram, para ele, uma ma-neira (desvairada, se você quiser) de continuar a viagem, de não se transfor-mar num burocrata do poder (num justiceiro sem mochila). Se o Che foi umídolo pop de ambos os lados da Cortina de Ferro, é porque, durante toda asua vida, como naquela viagem inicial, ele não parou de encarnar tanto nos-

CALLIGARIS, C. Diários de motocicleta.

1 Publicado no jornal “Folha de São Paulo”, em 06/05/2004.

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SEÇÃO DEBATES

ANTES A CHUVA, DEPOIS O QUÊ?

Rosane Palacci Santos

Este escrito é sobre um filme que me mobilizou. “Antes da Chuva”(Before the Rain, 1994) foi roteirizado e dirigido por um macedônio,Milcho Manchevski, que depois deste filme não pode dirigir mais ne-

nhum: morreu logo após esta realização.O filme que tem como subtítulo “Uma história em três partes” (A tale

in three parts), inicia com uma imagem das montanhas da Macedônia (naantiga Iugoslávia) e uma voz que diz “Com um grito, os pássaros fugirampara o céu escuro, as pessoas se calaram, meu sangue dói pela espera.”Em seguida, como que no prólogo do filme, se vê um monge colhendo toma-tes vermelhos; é Kiril. A seu lado está um monge mais velho que lhe diz “Vaichover, as moscas estão picando. Lá já está chovendo.” Kiril não comenta:fez voto de silêncio. O monge mais velho diz então que tem medo de trovões.Quando estão indo na direção do templo, passam por crianças que brincamcom tartarugas de verdade, como se estas fossem ninjas. O monge maisvelho diz: “O tempo nunca morre. O círculo não é redondo. Quase fiz votosde silêncio como você. Mas essa beleza celestial merece palavras.”

“Palavras” (Words) é o nome do primeiro conto do filme. Vê-se entãoum serviço religioso dos macedônios ortodoxos. Enquanto isso, lá fora, ascrianças estão fazendo um círculo de fogo em torno da tartaruga. Eles têmbalas de verdade, que explodem quando jogadas sobre o fogo. O som inter-rompe a reza. São tempos de guerra.

É noite, e os monges vão lado a lado para seus quartos. Kiril, em seuquarto reza, tira a roupa e quando vai se deitar encontra Zamira, que pareceum menino. Ela assusta-se tanto quanto ele, que tenta acender uma luz. Elao impede de fazê-lo. Ela tenta falar com ele. Entende que ele não fala albanêse encolhe-se num canto com uma coberta. Seu pé fica descoberto e Kirilolha. Notando o interesse, ela cobre o pé. Ele então sai do quarto, pensandoem denunciá-la. Ao olhar para ela, vê seu pavor. Desiste. O monge maisvelho abre a porta; vão juntos urinar. Quando volta para o quarto, Kiril coloca

não é uma gloriosa ascensão em direção à santidade. A regra (trágica) éesta: a magnanimidade que pode nos levar a menosprezar nossa própria vidae a encarar o martírio é a mesma que pode nos induzir a menosprezar a vidados que obstaculizam nossos projetos. Medindo as palavras: quase sempreas melhores intenções alegam sua generosidade para justificar a piorintransigência.

Constato que falei do filme menos do que queria. Mas falei da viagemna qual Alberto e Ernesto me levaram: montanhas-russas de contradiçõesnão resolvidas, no mundo e dentro de mim.

Na chegada, fico dividido dolorosamente entre a nostalgia de umacapacidade perdida de sonhar livremente e a consciência das restrições queos próprios sonhos, quando se realizaram, impuseram à liberdade. Acompa-nha a sensação de que essa divisão nos condena a uma intolerável preguiça.

P.S.: 1) O filme, isso consegui dizer (ao menos, espero), é uma via-gem ao coração das esperanças (as quais carregam a ameaça das trevas,como qualquer sol de verão carrega a ameaça da chuva). Mas ele não é sóisso: é também uma maravilhosa história de amizade entre dois jovens.

2) Rodrigo de la Serna, no papel de Alberto, deveria ser um sériocandidato ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

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entende. “Ninguém a encontrará!” ele promete. Beija seu rosto e ela se en-trega em seu abraço. Estão assim enlaçados quando o avô dela chega e osafasta. Zamira fica feliz por ver o avô; recebe dele um tapa no rosto. Kiril tentareagir e apanha dos outros dois que estão junto com o avô. Este continua abater em Zamira e interroga-a, enquanto fala: “Sangue chama sangue. Vaicomeçar uma guerra. ... Quem é aquele?” Zamira responde “Me salvou” e“Ele me ama”. Mostrando que o amor não dura contra a dor, o avô manda,gesticulando, Kiril embora. Este começa a correr. Zamira o olha afastar-se.Detém-se por um tempo. Corre em sua direção, gritando para que ele espe-re. Ele se vira, ela vem correndo... o irmão de Zamira atira com sua metralha-dora. Kiril a vê cair perto; passa a mão em seu rosto; pede desculpas. Elafaz sinal que não quer palavras – sinal de silêncio, dedo sobre a boca. Ele sesenta em sua mala, a seu lado, ela já morta. Sem palavras. Aí se vê muitaágua: é o banho da editora da revista londrina. Ela chora enquanto se banha.Cena do ralo, a água levando tudo, tudo escorre.

Estamos, então, entrando na segunda história: “Rostos” (Faces). Anneestá na editora, vendo fotos de guerra, não se sente bem. Recebe uma liga-ção telefônica: está grávida. Alexsander, fotógrafo famoso, chega por umaporta, ela sai por outra. Ao tentar atravessar uma rua, Anne parece perdida,confusa. Carros, ônibus, motos, roupas coloridas, faces, pés. Encontra en-tão sua mãe, que sempre lhe diz como fazer, que sempre lhe diz que quersua felicidade. Preocupa-se demais com a filha...até porque não tem umemprego de verdade. Caminhando passam por uma igreja, onde um coro demeninos ensaia. Anne pára para olhar. Ela está dizendo à mãe que veráNick, seu marido, quando chega Alexsander. Chega por trás e lhe dá umbeijo no rosto. “Vem tempestade”, ele diz. A mãe diz para a filha que “Não háproblema do qual não se possa se afastar.” Anne se despede e sai comAlexsander de táxi, a rodar pela cidade. Ela quer saber por que ele não estána Bósnia, onde era suposto estar. Ele diz que se demitiu e quer transar comela. Anne pede para que seja sério. “Vamos ter filhos na Macedônia.” diz ele.Ela argumenta que lá não é seguro, ao que ele replica: “Claro que é. Lá osbizantinos capturaram 14 mil macedônios. Arrancaram seus olhos e osmandaram para casa. 28 mil olhos.”

tomates vermelhos ao lado dela e se deita. Zamira devora os tomates; Kirilescuta o som com prazer. Ela, então, diz a ele o seu nome. Diz que ele ébondoso.

Amanhece. Vê-se um enterro: são dois corpos e uma mãe inconsolável.Guerrilheiros – parecem guerrilheiros – estão presentes. Armas e bandeiraspor todo lado, na imensidão do lugar, cheio de montanhas. Bastante afasta-da do local do enterro, se vê uma mulher. Não é dali. É diferente das outrasmulheres; veste-se, parece, diferente. Olhos vermelhos de chorar. No enter-ro, derramam sobre os corpos um líquido, parece vinho, vermelho. “Oh, meuDeus!” diz a mulher diferente. Ao mesmo tempo, alguém fotografa não se vêo quê; ao mesmo tempo, Kiril corre entre as montanhas, em direção aomonastério. Os guerrilheiros que estavam no enterro dirigem-se também aomonastério. Um deles entra e interrompe os serviços religiosos. São trêshomens e estão armados. Mitre, o “líder”, conhecido pelo “chefe” dos mon-ges, diz que procuram uma albanesa que matou seu irmão. Discutem sobrerevistar o local. Kiril mexe negativamente a cabeça, olhando fixamente paraMitre, quando inquirido sobre a presença de alguém. Revistam. Por último,vão ao quarto de Kiril. Ele espera apreensivo. Nada encontram. Kiril volta aoquarto. Ele vomita ao ver um dos guerrilheiros matar e fazer jorrar o sanguede um gato no telhado.

É noite. Os guerrilheiros montam acampamento na saída domonastério. Dentro dele, Kiril dorme e, sonhando, reza em voz alta. Acordae vê Zamira a seu lado. Era uma ilusão. Fica triste, volta a dormir. Acordanovamente e desta vez ela é real; a convida para deitar-se a seu lado. Elanão aceita, deita-se no chão, virada para ele, olhando para ele.

Pela manhã são flagrados por dois monges. “Que vergonha!” diz umdeles. Kiril é expulso. “Boa sorte para os dois” diz o monge-chefe, depois deter dado um tapa no rosto de Kiril. Então as primeiras palavras de Kiril:“Obrigado, padre. Me perdoe.” Conseguem passar pelo guarda dormindo.Caminham durante a noite, com uma imensa lua a iluminar seus passos.

Amanhece novamente. Novamente são flagrados ao pararem paradescansar. Kiril estava falando sobre um irmão a quem deviam encontrar,para depois irem ver seu tio, em Londres, um fotógrafo famoso. Zamira não o

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entende, não quer ouvir. Ela quer o divórcio. Discutem. Ela já tomou suadecisão, tomou seu partido. Ele se levanta, joga dinheiro na mesa. Annepede para que volte, espere. Ele chora. Anne segura seu rosto nas mãos ediz que ainda o ama. Ele se abraça em seu corpo e soluça. Depois diz quesó precisam de tempo. Mas o tempo não espera ... volta o sujeito barbudogritando e dando tiros em todas as direções. Vai embora depois de muitoestrago. Muito sangue, vidro, gritos, olhares esbugalhados. Uma mão mortasobre o seio de Anne; um rosto morto, muito sangue, sobre o seu colo. Annelevanta-se, procura por Nick. Pessoas se arrastam – como tartarugas. Elaolha em volta, chama por ele. Encontra; seu rosto tem um tiro no olho. “Seurosto, Nick, seu rosto.” O olho que era azul, está agora vermelho. Annepassa a mão no rosto morto: “Seu rosto, seu rosto”. Voltamos para aMacedônia, para as montanhas.

Começa a terceira parte: “Imagens” (Pictures). Panorâmica da cidadeSkopie. O avião que chega é vermelho. Alexsander está de volta: olha oslugares, os carros blindados, as marcas de refrigerantes nos outdoors, aspessoas, as ruas, rápidas. Crianças, animais, tanques de guerra. Vermelhodos ônibus, vermelho de alguns carros, vermelho do chapéu e do cachecolda moça com quem o companheiro discute na rua. Tudo é olhado porAlexsander; que está num ônibus; que deixa a cidade. A paisagem vai mu-dando, as vestimentas, as pessoas, seus olhares. Então a cidade está lon-ge, é só campo, montanha. Rostos marcados. Envelhecidos. Um sujeitofardado senta a seu lado, puxa conversa. Vai a colheita. Alex vai a um batis-mo. De quem? Seu. Não, brincadeira, de um sobrinho. O outro perguntasobre tempo; Alex responde: “Há 16 anos. Fugi há 24 anos, só vim aqui umavez.” O fardado pega seu livro e descobre Alex e Anne em uma foto. Segun-do Alex, ela “Morreu ... num táxi”. O outro quer saber qual o motivo da volta,explica que tudo está diferente, “Podem cortar a sua cabeça”. Alex não seassusta, isto porque esta ele já perdeu.

Desce do ônibus, chega ao seu vilarejo. É abordado então por umguerrilheiro, cabelo vermelho, jovem, de quem com facilidade toma a arma.“Vai se ver com meu tio Mitre” ameaça o rapaz. Alex caminha em direção ascasas, passa por gente de olhar desconfiado. Reconhece o lugar. Sorri para

Falam sobre as guerras. Anne diz “É importante tomar partido.” Elenão quer tomar partido algum; pra ele a paz é a exceção, não a regra. Muitasguerras. Ela deve largar tudo e ir com ele para a Macedônia; mas ela quer terum filho. Ele promete então que vai mudar. Anne olha para o rosto dele comatenção – se vê a cidade passando refletida no vidro da janela do carro: “Jámudou, olhe para o seu rosto.” Alex – como ela o chama – diz que aprendeu,que envelheceu. O tempo – duas semanas – é pouco pra isso, segundoAnne. “Eu matei. Matei” diz Alex, chorando; Anne o abraça. Abraçam-se, setocam. Chegam a um cemitério. Ele diz que tem passagem para viajaremjuntos... ela precisa ficar. Então “Seja feliz” diz Alex, e vai indo, não semantes deixar com ela o bilhete e a fala: “Tome partido”.

Anne volta a editora: vê Kiril em uma foto; vê o rosto de Zamira e seusolhos mortos. Recebe ligação que era pra Alexsander Kirkov. Ouve-se a vozde Kiril. Não quer deixar mensagem. Alex, na rua, vê mensagem pixada emuma parede: “O Tempo Nunca Morre. O círculo não é Redondo”. Pega umtáxi e vai para o aeroporto. Anne sai do escritório e olha pra cima: vê umavião e uma imensa lua. Vai jantar com Nick, o marido que a espera em umrestaurante. Tartarugas estão num aquário na sua entrada. Nick chega e abeija. No mesmo momento, chega um sujeito barbudo. Nick e Anne se olhamconstrangidos. Ela vai bem, ele não, precisa de um drinque. Sentem os doismuito pela separação. Mas um terceiro está vindo; “Estou grávida” diz Anne.Nick se levanta e a beija. Pede, efusivo, champagne. Ela quer ir embora; elenão a escuta. Fala que ela tem que se cuidar agora; que agora vai ser dife-rente. Ao fundo, o sujeito barbudo mostra notas de dinheiro ao garçom, jogao dinheiro. Discutem. Joga mais dinheiro, moedas e notas, na direção dogarçom. O maître intervém; despede o garçom. Os dois brigam a socos.Outros garçons tentam apartar, segurar o sujeito; dizem que a polícia estáchegando. O sujeito barbudo vai saindo: ele e o garçom se olham, se amea-çam com gestos. Poucos clientes se levantam, vão embora.

O maître se desculpa. Nick diz que pelo menos o sujeito não eranorte-irlândês. O maître responde: “Não, senhor. Eu sou norte-irlândês.” Nickdesculpando-se diz “Que as guerras civis sejam mais civilizadas ao chega-rem aqui.” Propõe à Anne irem para casa, mas ela quer conversar; ele não

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ja sem olhá-lo. Para o pai ela olha. Nisso são espiados: Zamira e o irmãopassam atrás de uma cortina. Hana deseja boas vindas a Alex e o olha porum minuto; retira-se. Zekir chama o neto, que não entende a presença deAlex na casa e acaba por ameaçá-lo: “Cortarei a garganta dele.” O intruso vaiembora; Hana o olha mais uma vez pela janela.

Carteiro chega a um escritório. O telefone toca: é alguém, Anne, ten-tando se entender com a telefonista e chamar Alexsander Kirkov. O telefoneé desligado. Não era para ninguém. Nisso, no curral de ovelhas, uma estánascendo. Muito sangue. Escuta-se o sorriso de dois homens. Alex se diri-ge para lá. Ao chegar pergunta se é macho ou fêmea. “Tanto faz, desde queseja macho” diz o doutor-veterinário. Nasce mais um animal. Mais sangue.O veterinário pede conhaque para comemorar. O primo sai para buscar, olhapara o alto da montanha e vê Zamira dar a mão a uma criança. Alex e oDoutor ficam a falar de outras guerras, de outros tempos; “é tudo a mesmamerda.” Primo está indo na direção de Zamira. Doutor vai lavar as mãos ediz: “Não imagina as matanças que vi. Será que estas mãos jamais estarãolimpas?” O sangue junto com a água cai na bacia. Vê-se a ovelhinha pondo-se de pé. Falam sobre lugares antes pacíficos e que estão agora em guerra.Lembram ferimentos de guerra. Sobre cansaço. “Não há razão para conflitoaqui” diz Alex. “Acharão uma razão. A guerra é um vírus. ... Todos se olhamcom rancor.” diz o médico. A mulher do primo os interrompe, está atrás domarido.

É noite, e Alex está novamente em casa. “Querida Anne. O tempoestá bom. Vai chover. Queria tê-la aqui. E seu marido? Espero que estejafeliz com ele. Esse lugar não mudou. Mas meus olhos mudaram, como umfiltro novo na lente. Eu tinha lhe dito que matara. Fiquei amigo de um milicianoe me queixei com ele de que não estava conseguindo fotos chocantes. Eledisse ‘Não tem problema’. Tirou um preso da fila e o fuzilou. ‘Fotografou?’Ele me perguntou. Eu fotografei. Eu tomei partido. Minha câmera matou umhomem. Nunca mostrei essas fotos pra ninguém. Agora são suas. Comamor, Alexsander.”

Amanhece. Alex acorda com os gritos de mulheres. Mulheres cho-ram, homens e crianças do lado de fora das casas com olhar triste. Alexsander

ele. Caminha mais. Vê sua casa. Diz um palavrão, sorri. Vai até lá. Dormeencolhido à noite. Quando acorda, crianças o estão olhando, espiando, pelajanela. Anda de bicicleta, assoviando música inglesa. Cai; vê menininho, sóde camisa, com a metralhadora que tirara do ruivo. Consegue retomar aarma, no mesmo instante em que um homem aparece atrás dele. Era seuprimo; parecem se estranhar e logo se abraçam. “Não o reconheci, tambémcom essa barba. Também está mais velho.” diz o primo. Alguém os olha: éMitre. O primo está a exaltar: “Alexsander, ganhador do prêmio Pulitzer. Faz100 anos”. Só faz 16, lembra Alex. Mitre vem na direção deles e exige aarma que tomou do seu sobrinho. Recebe-a de volta com a advertência deque deve deixá-la em lugar seguro. Almoçam todos juntos. Alex pergunta porHana; Mitre diz para esquecê-la, é albanesa. Mas qual o problema, quersaber Alex; “o pai dela corta o teu pau”, explica Mitre. Outro conta que elaficou viúva e tem uma filha linda, que vê perto do curral das ovelhas. “Essesalbaneses procriam como coelhos” diz um deles. “Acabam nos dominando”diz Mitre. “Quanto tempo vai ficar conosco?” pergunta o primo. “Pra sempre”responde Alex. Todos riem. É hora da foto de todos juntos; nela Alex apare-ce matando a mosca que pousara em seu rosto.

À noite, em sua casa, de ressaca, Alex recebe visita de Kate; recebemassagem, mas não quer mais que isso. Ainda sonha com Hana. Assim,vai visitá-la no dia seguinte, no bairro dos islâmicos. Ouve-se o som dasmesquitas e suas rezas. Alguns homens se interpõem em seu caminho,armados com metralhadoras. Alex os olha e diz que vai visitar Hana Halili,amiga da escola, que não vê há 16 anos. Trouxe presente para os filhos dela.Crianças assistem a conversa. Diz que veio de Londres; os outros riem. Épreciso que mencione o nome do pai de Hana, Zekir. Este o recebe repetindoseu nome duas vezes. Zekir pergunta “Como vivem as pessoas no mundo?”“Bem, se sabem viver, como aqui” responde Alex. Estão já dentro da casa,são tempos ruins, avisa Zekir, “tem cheiro de sangue no ar.” Sentem-seabafados, os dois, ao mesmo tempo. Zekir olha para fora e diz que deviachover. Mas vai chover, cedo ou tarde, sustenta Alex. Ele entrega os presen-tes que trouxe. Hana entra com chá para eles. Ele a olha, ela sempre deolhos baixos. Ele se serve, sempre a olhando, enquanto ela segura a bande-

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e cai. Ela começa a fugir, mas depois se esconde atrás de uma pedra próxi-ma, e espia. O primo corre na direção do corpo. Alex diz de novo “Atire,primo, atire”. Depois olha para o céu: “Veja ... vai chover.” Olham para o céu.Alex morre. Zamira olha mais uma vez; foge. Mitre chega até corpo de Alex:“Cego idiota”. Zamira correu muito, precisa parar: está perto do monastério.Os primeiros pingos de chuva estão caindo. Logo chove forte. O chão secorecebe a chuva; o corpo de Alex sem vida recebe grossas gotas de chuva.Zamira vira seu rosto marcado de sangue para receber a chuva. Volta a cor-rer. Chega onde ainda não está chovendo. Kiril colhe tomates vermelhos. Émordido por um inseto. Ouve do outro monge: “Vai chover, as moscas estãopicando. Lá já está chovendo. ... Vamos, está na hora. E o tempo não espe-ra, porque o círculo não é redondo”. Zamira se aproxima do local, correndocom um casaco vermelho na mão, casaco que lhe deu Alex, que veio parasempre. Morto, com 2 manchas vermelhas de sangue em sua camisa azul,recebe a chuva forte, em seu corpo, morto.

O OLHAR, O SANGUE E A ÁGUA: ALGUMAS ASSOCIAÇÕESAssim como o filme, também o meu olhar sobre ele tem três tempos.

A primeira vez que o assisti, me enredei em seu enredo (com a licença doplágio à Liliane Froemming). Entendo as histórias que se passam; ao final,quando a luz se faz na sala de projeção, minha cabeça tem dentro de si umquebra-cabeça. Mas, ao mesmo tempo, ou mesmo assim, o filme me mobi-liza, falo um pouco sobre ele, sobre as histórias de guerra, sobre os lugaresque parecem tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais. Fico nisso. Nahistória. Na segunda vez, já o assisto procurando algo; procuro detalhes queliguem as três histórias, que me dêem pistas do que está por vir, do que veioantes; mas ainda estou sem poder ver o que está aparecendo de simbóliconesta história. Na minha terceira vez, por fim, identifico três elementos sem-pre presentes, como significantes que ressignificam toda a história: o olhar,o sangue e a água. Eles “costuram” todo o filme.

Pensei, já quando escrevia este texto, nos três tempos de Lacan(1998): instante de ver, tempo de compreender, momento de concluir, e tam-bém nas três categorias universais de Pierce (apud Santaella, 1983) –

corre até a casa do primo. Vê o primo ensangüentado no peito. Mãeinconsolável. O sangue pinga pelo lençol, cai no chão. Uma criança espiaentre as pernas de alguém. Uma mosca anda sobre o corpo do morto. Odoutor chega, examina os olhos do morto, dá o veredicto. Alex assiste acena colocando a mão sobre os olhos e os descobrindo como se tirasseuma foto. A mãe sacode o corpo, não entende. Alex e médico saem dacasa. Mitre, cabelo vermelho, e outros saem de uma cabana. Estão arma-dos. Cruzam-se. Alex quer saber aonde vão. “Que apodrecem na ponta deum forcado” é a resposta. A explicação: crianças viram quem matou oprimo.Uma puta albanesa com um forcado. Primo diz para Alex ficar foradisso, não é do lugar. Mitre pensa diferente: “Está na hora de cobrar 5 sécu-los de nosso sangue” .

De noite, chove lá fora. Dormindo Alex imagina ver Hana em seu quar-to; esfrega os olhos, olha de novo, não era verdade. Volta a dormir. Acorda,desta vez ela está lá. “Vê o que está acontecendo com nosso povo? Você sóobserva” acusa Hana. Ele olha para ela; ela baixa os olhos. Ele pega em suamão. Hana encoraja-se e diz que sua filha foi capturada pelo primo dele.Pede por sua ajuda. “Como se ela fosse sua” implora, ou revela, Hana. Vaiembora. Ele procura, agitado, algo em suas coisas. Encontra: acende umcigarro de maconha e fica a olhar pela janela a vila mais embaixo. Ouvetrovoadas. Volta-se para dentro. Pega as fotos do assassinato na Bósnia.

Amanhece. Em meio aos rituais de um casamento, Alex se dirigepara o celeiro. Lá encontra Zamira presa. Seu primo acorda quando tentalevá-la dali. “Que vergonha! Ela é uma criança” diz Alex. O primo se defendeacusando a criança de ter matado seu irmão. Alex tenta argumentar que apolícia e a lei devem se encarregar do caso; o primo argumenta que ele foiembora há muito tempo, que não sabe como são as coisas por lá. Alex sedesvencilha do primo, dizendo que não poderia viver sua vida se o deixassefazer aquilo; lhe dá um tapa no rosto e sai. Caminham, Alex e Zamira; oprimo atrás grita para que voltem. Ameaça atirar. Mitre, já acordado e fora doceleiro, o encoraja. “Vou atirar, covarde” diz o primo. “Atire primo, atire” res-ponde Alex. Então atira, erra, acerta. Zamira olha Alex, ainda de pé, mascom sangue na camisa. Ele diz para ela fugir, caminha mais alguns passos

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tanto, é menos pessimista, já que “uma fronteira não é o ponto onde algotermina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partirdo qual algo começa a se fazer presente” (apud Bhabha, 1998, p.19).

E é aqui que eu paro, ou, talvez, de onde eu possa partir.

OBRAS CONSULTADASASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Adolescência: Entre o Pas-

sado e o Futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1997.BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o Legado de Freud

e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.RASSIAL, Jean-Jacques. A Passagem Adolescente: da Família ao Laço Social.

Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1997.SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.

primeiridade, secundidade e terceriedade. Assim, Alexsander precisa vercom seus próprios olhos, não mais com a lente de sua câmera, para podercompreender seu tempo – que não morre, porque o círculo não é redondo –e então poder implicar-se em sua vida, ou ainda, tomar partido, poder morrer,finalizar.

Parece-me que este filme com seu tempo circular (em espiral, talvez),mas não redondo, não harmônico, com seu tempo que também não é linear,cronológico, com seu tempo sem fronteiras bem delimitadas – as históriaspodem ser vistas umas dentro das outras, intertextualidade baktiniana – mostraum pouco do discurso dos sujeitos: é preciso que alguns significantes apa-reçam depois, a posteriore, para que se possa ressignificar todo o materialtrazido anteriormente. Os significantes se inserem depois, e é aí que se vairessignificar todo o anterior.

Estar trancado por fora é um dos primeiros sentidos da foraclusão(Kaufmann, 1996) – mecanismo psíquico mais comumente encontrado napsicose. É isso o que se passa com Alexsander? Sente-se exilado indiferen-temente de onde se encontra.

E, neste sentido, mais do que Kiril ou Zamira, Alexsander é um perso-nagem paradigmático para se entender a posição do adolescente. Mesmoque aparentemente seja ali retratado um personagem adulto, ele nos remetea questões centrais da adolescência. Está fechado em exterioridade.Alexsander quando, por assim dizer, tenta voltar para casa, quando pareceestar se sentindo pertencendo a algo, assovia em uma língua que não amaterna, cai com o que vê. Segundo Rassial (1997), o adolescente estámobilizado pela distância entre as duas dimensões do Édipo (Freud, 1987),a da interdição e a da transmissão. Na reedição do Édipo, é com esta distân-cia entre o que lhe foi proibido e o nome que desta operação pode receberque o adolescente se faz problema. O que também pode remeter ao “entre-lugares” proposto por Bhabha (1998), especialmente quando este autor o defi-ne como excedente da soma das partes da diferença. Ou ainda quando trata do“além”, do estar no além que significa habitar um espaço intermediário.

E com isto retornamos a Alexsander e ao pedido que lhe é feito: tomarpartido. Quando ele o faz, já sabemos que é o fim. Martin Heidegger, entre-

SANTOS, R. P. Antes a chuva...

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RESENHA RESENHA

ou seja, a discussão com estes autores aponta para a tentativa de aprofundaro exame da estrutura narrativa no trabalho analítico e daí tecer ligações coma clínica fundada na ferramenta do conto. E este aprofundamento tem apreocupação de manter o alcance do conto como um mediador aberto, istoé, um produtor de metáforas de infinitos sentidos, fazendo com que se possapensar, por diferentes vias teóricas, as aplicações do conto em psicopatologia.

Nesse percurso, Celso fixa duas direções ou dois eixos para pensaros efeitos clínicos: o eixo lúdico e o reflexivo. O primeiro remete a um espaçode criação onde a criança poderá jogar, inventar, imaginar, criar, olhar deoutra forma a experiência; e o segundo aponta para uma função de continên-cia do conto que favoreceria uma melhor organização psíquica, estimulandoe dando sentido ao pensamento.

Por fim, percorrendo os casos, acompanhamos as histórias se mistu-rarem à construção de representações das crianças em seus processos desimbolização e observamos a função de suporte que o conto pode adquirir.Não tenho dúvidas sobre a riqueza de elaborações que podemos empreen-der sobre a infância compartilhando com Celso a posição de contador, leitor,analista, narrador de histórias, pois como no dito popular “quem conta umconto, aumenta um ponto...”

Tatiana Guimarães Jacques

O TERAPEUTA E O LOBO

Gutfreind, Celso. “O Terapeuta e o Lobo – a utilização doconto na psicoterapia da criança”. São Paulo: Casa doPsicólogo, 2003. 224p.

Apossibilidade de construir um comentá-rio sobre o texto de Celso é um convite acompartilhar com vocês um pensar so-

bre a clínica.O desdobramento de seu trabalho, histó-

rias de histórias, nos convocam a acompanhá-lonas suas construções sobre o lugar e os efeitosdo conto e da própria narrativa no psiquismo dascrianças. Os lobos, fadas, caçadores, anões eoutros personagens que povoaram a nossa infância pela palavra de nossosavós e pais são pensados e investigados em sua função organizadora, emuma transmissão que vai muito mais longe que as próprias histórias. Ouseja, na direção do recontar as histórias singulares de cada criança.

Para além da produção no âmbito de um doutoramento na França, otexto de Celso redimensiona o processo acadêmico em uma elaboraçãosobre a história do seu fazer clínico. O leitor passeia por articulações entre apsicanálise e a educação, a constituição do sujeito através de uma questãoderivada da obra de Winnicot – “uma mãe suficientemente narrativa” – e aidéia-ferramenta do trabalho clínico através de ateliê terapêutico.

Como a infância nos remete à abertura de muitas possibilidades, otrabalho com o conto é pensado como um espaço de prevenção mais do quede tratamento e a história da investigação começa por uma pergunta que édesdobrada da trajetória de médico comunitário e psiquiatra infantil: “um ate-liê – conto pode agir de maneira positiva sobre o estado emocional de crian-ças, mobilizando-lhes a vida imaginária como possibilidade de expressarvivências e capacidades criativas?”

Um amplo diálogo é tecido com Freud, Winnicott, Bettelheim, Lafforguee Bonnafé como interlocutores privilegiados na articulação narrativa-análise,

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20h30min21h8h30min20h30min15h15min21h

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AGOSTO – 2004

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Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

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Comissão do CorreioCoordenação: Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Robson de Freitas Pereira

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ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2003/2004

Presidência: Maria Ângela C. Brasil1a Vice-Presidência: Mario Corso

2a Vice-Presidência: Ligia Gomes Víctora1a Secretária: Marieta Rodrigues

2a Secretária: Marianne Stolzmann1a Tesoureira: Grasiela Kraemer

2a Tesoureira: Luciane Loss JardimMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, Ângela Lângaro Becker,Carmen Backes, Clara von Hohendorff, Edson Luiz André de Sousa,

Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Jaime Betts, Liliane Seide Froemming,Lucia Serrano Pereira, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Beatriz Kallfelz,

Maria Lúcia Müller Stein e Robson de Freitas Pereira

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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N° 127 – ANO XIN° 127 – ANO XI AGOSTO AGOSTO – 200– 200 44

PSICANÁLISE CINEMA:PSICANÁLISE CINEMA:INTERFACESINTERFACES

S U M Á R I O

EDITORIALEDITORIAL 1 1

NOTÍCIASNOTÍCIAS 2 2

SEÇÃO TEMÁTICASEÇÃO TEMÁTICA 7 7SONHOS E LEMBRANÇAS NOCINEMA E NA PSICANÁLISELiliane Seide Froemming 7NO JOGO DOS OLHARESFatimarlei Lunardelli 12UM CINEASTAEMBAIXO DO DIVÃCarlos Gerbase 17QUEM É O MARGINAL? A TÊNUEFRONTEIRA ENTRE O LÍCITO E OILÍCITO NO FILME O INVASORFlávia Seligman 22ADEUS LÊNIN! OU,DA MISTIFICAÇÃORicardo Goldenberg 32WOODY ALLEN E OUTRASCONTRIBUIÇÕES AOSPSICANALISTASRobson de Freitas Pereira 35

SEÇÃO DEBATESSEÇÃO DEBATES 4242DIÁRIOS DE MOTOCICLETAContardo Calligaris 42ANTES A CHUVA, DEPOIS O QUÊ?Rosane Palacci Santos 45RESENHARESENHA 5656“O TERAPEUTA E O LOBO” 56AGENDAAGENDA 5858

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