edição 308 - de 22 a 28 de janeiro de 2009

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ISSN 1978-5134 São Paulo, de 22 a 28 de janeiro de 2009 www.brasildefato.com.br Ano 7 • Número 308 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 No dia 25, o novo texto constitucional será votado em referendo nacional. Equanto a campanha pelo SIM – que tem a participa- ção de diversos movimen- tos sociais, partidos políti- cos e outros grupos, além de setores independentes – colore a cidade com ma- nifestações bem-humora- das, os defensores do NÃO Na Bolívia, Constituição vai a referendo popular divulgam mentiras como as afirmações de que a nova Constituição não defende Deus e confronta o pre- sidente Evo Morales com Jesus Cristo. Pág. 12 Sob o lema “Um outro mundo é possível”, 120 mil ativistas de movimentos so- ciais de todo o mundo devem participar das 2,6 mil ativi- dades da 9ª edição do Fórum Social Mundial. De 27 de janeiro a 1º de fevereiro, os participantes devem debater os rumos da crise financeira e os danos ao meio ambiente, além de outros temas suge- ridos pelas organizações que irão ao Fórum. Para Chico Whitaker, da organização do FSM, o modelo de auto- gestão, presente desde a pri- meira edição, é uma “vacina contra o fracionamento da esquerda”. Pág. 3 Belém aguarda 120 mil pessoas para o Fórum Social Mundial Gaza, primeiro teste para avaliar o governo Obama Barack Obama tomou posse no dia 20. Eleito como resultado de uma grande crise do capitalismo, seu governo terá de enfrentar o desemprego, a perplexidade da classe média vitimada pela ganância de banqueiros e a sensação de decadência. Isso contribuiu para criar um clima de agitação nos EUA. Obama é reflexo desse processo. Resta saber como reagirá às expectativas nele depositadas. A questão palestina” é um termômetro – o principal, em se tratando da política externa estadunidense. Págs. 2, 9 a 11 Em comemoração aos 25 anos do MST, o artista plástico de ori- gem judaica Gershon Knispel criou 15 séries de quadros para retratar tragédias e lutas popu- lares da história, como a dos sem-terra (foto). Em entrevista, ele fala sobre arte engajada e os ataques a Gaza. Pág. 8 Artista plástico retrata luta de trabalhadores Em encontro nacional, MST celebra 25 anos de luta Págs. 4 e 5 Oposição à Carta Magna faz terrorismo A crise econômica mundial já atingiu o Brasil. E o patronato está contribuindo para piorá- la. Em dezembro, 655 mil trabalhadores foram dispensados. Como al- ternativa ao desemprego, os empresários propõem reduzir a jornada de tra- balho com diminuição de salários. Pág. 6 No Brasil, crise se intensifi ca com demissões Ao conceder refúgio para o ativista político italiano Cesare Battisti, o governo brasileiro de- sencadeou uma reação entre os porta-vozes da direita nacional, que se curvam claramente aos interesses italianos. O episódio também revela a arrogância de gover- nos europeus. Pág. 7 Caso Battisti enfurece a direita Gershon Knispel Aude Guerrucci/Polaris/Other Images/Folha Imagem Ao lado da esposa Michelle, Barack Obama presta juramento durante a sua posse Militantes chegam a Sarandi (RS) para participar do 13º Encontro Nacional do MST Douglas Mansur Emílio Gutierrez Colque, deputado constituinte por La Paz Fernanda Chaves

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 308 - de 22 a 28 de janeiro de 2009

ISSN 1978-5134

São Paulo, de 22 a 28 de janeiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno 7 • Número 308

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

No dia 25, o novo texto constitucional será votado em referendo nacional. Equanto a campanha pelo SIM – que tem a participa-ção de diversos movimen-tos sociais, partidos políti-cos e outros grupos, além de setores independentes – colore a cidade com ma-nifestações bem-humora-das, os defensores do NÃO

Na Bolívia, Constituição vai a referendo popular

divulgam mentiras como as afirmações de que a nova Constituição não defende Deus e confronta o pre-sidente Evo Morales com Jesus Cristo. Pág. 12

Sob o lema “Um outro mundo é possível”, 120 mil ativistas de movimentos so-ciais de todo o mundo devem participar das 2,6 mil ativi-dades da 9ª edição do Fórum Social Mundial. De 27 de janeiro a 1º de fevereiro, os participantes devem debater os rumos da crise financeira e os danos ao meio ambiente, além de outros temas suge-ridos pelas organizações que irão ao Fórum. Para Chico Whitaker, da organização do FSM, o modelo de auto-gestão, presente desde a pri-meira edição, é uma “vacina contra o fracionamento da esquerda”. Pág. 3

Belém aguarda 120 mil pessoaspara o FórumSocial Mundial

Gaza, primeiro teste paraavaliar o governo ObamaBarack Obama tomou posse no dia 20. Eleito como resultado de uma grande crise do capitalismo, seu governo terá de enfrentar o desemprego, a perplexidade da classe média vitimada pela ganância de banqueiros e a sensação de decadência. Isso contribuiu para

criar um clima de agitação nos EUA. Obama é reflexo desse processo. Resta saber como reagirá às expectativas nele depositadas. A “questão palestina” é um termômetro – o principal, em se tratando da política externa estadunidense. Págs. 2, 9 a 11

Em comemoração aos 25 anos do MST, o artista plástico de ori-gem judaica Gershon Knispel criou 15 séries de quadros para retratar tragédias e lutas popu-lares da história, como a dos sem-terra (foto). Em entrevista, ele fala sobre arte engajada e os ataques a Gaza. Pág. 8

Artista plásticoretrata luta detrabalhadores

Em encontro nacional, MST celebra 25 anos de luta Págs. 4 e 5

Oposição à Carta Magna faz terrorismo

A crise econômica mundial já atingiu o Brasil. E o patronato está contribuindo para piorá-la. Em dezembro, 655 mil trabalhadores foram dispensados. Como al-ternativa ao desemprego, os empresários propõem reduzir a jornada de tra-balho com diminuição de salários. Pág. 6

No Brasil, crise se intensifi cacom demissões

Ao conceder refúgio para o ativista político italiano Cesare Battisti, o governo brasileiro de-sencadeou uma reação entre os porta-vozes da direita nacional, que se curvam claramente aos interesses italianos. O episódio também revela a arrogância de gover-nos europeus. Pág. 7

Caso Battistienfurecea direita

Gershon Knispel Aude Guerrucci/Polaris/Other Images/Folha Imagem

Ao lado da esposa Michelle, Barack Obama presta juramento durante a sua posse

Militantes chegam a Sarandi (RS) para participar do 13º Encontro Nacional do MST

Douglas Mansur

Emílio Gutierrez Colque, deputado constituinte por La Paz

Fernanda Chaves

Page 2: Edição 308 - de 22 a 28 de janeiro de 2009

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Patrícia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam),

João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

Gaza, a prova dos nove de Obama

CERTAMENTE, Obama tem uma po-pularidade tão grande quanto o vo-lume de problemas socioeconômicos acumulados pelo capitalismo esta-dunidense ao longo de décadas, mas agudizados fortemente pela nefasta administração delinquente de George W. Bush.

Essa popularidade, em fase de cres-cimento, não é apenas resultado de um jogo midiático cevado pelo poder econômico que o apoiou, cujo leque de participantes vai de segmentos ligados ao complexo militar indus-trial, a poder sionista composto pela ditadura fi nanceira, indústria bélica e mídia pré-paga. Afi nal, eleição presi-dencial nos EUA é sempre um palco de bilionárias movimentações fi nan-ceiras em busca de espaço no jogo do poder. E esse poder econômico busca infl uenciar toda a cena política, os dois grandes partidos, e também controlar por meio das fi nanças o fun-cionamento do Congresso. Há idiotas que chamam isso de democracia. Os sindicatos estão sempre reprimidos, ou marginalizados, ou corrompidos. O controle midiático é fortíssimo.

Esta é grande contradição que se instala: de um lado houve a operação da forma clássica de se fazer política nos EUA, derramando dinheirama, comprando-se delegados nessa elei-ção indireta, cooptando a mídia e os jornalistas pré-pagos de sempre. De outro, a novidade, um movimento difuso, de espectro progressista tam-bém difuso e programaticamente muito eclético, mas com uma carac-terística que já havia tentado intervir antes, em 1968, quando a candidatura de Bob Keneddy foi destruída com balaços na cabeça. Tiros que também acertaram a todo aquele movimento esperançoso que sonhava em acabar com a guerra do Vietnã, e que apoiava Bob com o mesmo sentido e esperan-ça que uma grande parte dos que se mobilizam agora por Obama. É um apoio difuso e contraditório. Mas é assim que se faz política num país em que, desde o Tacão de Ferro – tão talentosamente descrito e denunciado por Jack London –, os sindicatos, o movimento operário e camponês e os partidos de esquerda foram duramen-te reprimidos e esmagados para fazer funcionar a democracia do dólar.

Evidentemente, os problemas socio-econômicos herdados de Bush são de-masiados complexos e gigantescos. O desastre do neoliberalismo ainda está longe de mostrar toda a sua face ma-cabra, mas está cobrando o seu preço, além de espalhar a cobrança por todo o planeta. É provável que os jovens que se mobilizaram, os setores antes avessos a qualquer participação eleito-ral que reduziram a crônica e clássica abstenção na eleição presidencial estadunidense desta vez esperam de Obama no mínimo que ele tenha algo de Roosevelt, o presidente que buscou dinamizar o capitalismo na crise de 1929 com uma ação ampla do Estado. Ocorre que o mundo de Obama já não é mais o da era de Roosevelt. E a crise é muito mais drástica e generalizada. A tal ponto que a Inglaterra já fala claramente em criar um banco esta-tal. Se pensasse em seguir Roosevelt,

que obras públicas Obama poderia fazer agora que não tocassem nos indecentes privilégios orçamentários do Complexo Militar Industrial? Aí está o ponto central. Assim foi para o primeiro Kennedy assassinado, depois para o segundo, e cada vez mais a pre-sença desse Complexo Militar Indus-trial, considerado o verdadeiro presi-dente dos EUA, é o fator fundamental na política desse país, cuja principal atividade econômica é a bélica, e que tem bases militares espalhadas por todos os continentes.

Certamente os jovens e ativistas que votaram em Obama esperam que os investimentos dirijam-se não ao setor bélico, nem às guerras, nem à economia de papéis especulativos. Há uma vasta faixa de pobreza extrema nos EUA que abrange mais de 50 milhões de cidadãos, segundo esta-tísticas ofi ciais. Há ainda uma classe média cada dia mais empobrecida e cada dia mais endividada, que foi conduzida ao endividamento pela ditadura “vídeo-fi nanceira”. Há de-semprego galopante, falências gene-ralizadas, e com toda intervenção es-tatal que teve que começar no próprio governo Bush, as previsões apontam para mais falências, mais crises. No entanto, nos últimos anos o orçamen-to do Complexo Militar Industrial multiplicou-se várias vezes. Não é muito difícil perceber que será na ad-ministração das pressões da indústria da guerra, e aquelas vindas da crise real e da necessidade de dar respostas às legítimas pressões sociais que se avolumarão, que se localizará o epi-centro de um governo que, apesar da popularidade, já começa em crise. Até onde pode ir Obama, que foi apoiado pelo poder bélico, pelo poder sionista, fi naceiro, midiático, em medidas que eventualmente, em função da profun-didade da crise, possam arranhar os privilégios dessa verdadeira casta que manda no poder imperial dos EUA? E como poderá administrar as pres-sões inadiáveis que vieram de setores jovens, trabalhadores, intelectuais, artistas, que também votaram em Obama, mas esperando paz, esperan-do que as prioridades sejam coloca-das na geração de emprego, de renda, na solução de problemas ambientais. Entres as frases progressistas que

Obama pronunciou na campanha, como por exemplo ao defender inves-timentos na energia renovável em vez de gastar com guerras por petróleo no Iraque, e a verdadeira estrutura do imperialismo, de suas transnacionais de rapina espalhadas pelo mundo, há toda uma distância, um sinal de tensão e uma contradição que a pouca experiência dos movimentos sociais e sindicais dos EUA deverão enfrentar com alguma difi culdade, porque a pressão imperialista internamente também será implacável. Vale lem-brar o legado de demolição de direitos civis que Bush deixou, toda uma série de temas sensíveis que, se não forem enfrentados com clareza, afetarão es-ta popularidade.

Por fi m, a possibilidade de Obama fazer uma outra política internacional tem também margens muito estreitas. Haja visto a reiteração de ameaças contra o Irã, a manutenção da guerra no Afeganistão, ainda que tenha que começar a sair do Iraque, assim como a enorme quantidade de bases milita-res espalhadas pelo mundo, todo um sistema que não se desarticula sem riscos, sem tensões. É por isso que o presidente russo, Dmitry Medvedev, mandou a Obama uma mensagem dura advertindo-o sobre reações vigo-rosas de seu país caso os EUA mante-nham a idéia imperialista de instalar “escudos antimísseis” na Europa. Do mesmo modo, tanto Chávez (Vene-zuela), quanto Evo (Bolívia), quanto Ahmadinejad (Irã) advertem Obama sobre a necessidade inadiável de revi-sar toda postura imperial dos EUA e de respeitar os caminhos que outros povos estão escolhendo para cons-truir seu futuro. Defi nitivamente, não há a menor segurança de que mudan-ças internas nos EUA sejam feitas em grande alcance, nem que sejam sem tensões. Pode-se apenas afi rmar que o desastre Bush para toda a humani-dade signifi ca para Obama começar seu governo com a maior crise já vivi-da por aquele país. Mas o Complexo Militar Industrial segue intocável. De suas ações virão as respostas para os grandes impasses que a política esta-dunidense terá que atravessar.

Beto Almeida é jornalista e membro do conselho político do Brasil de Fato.

debate Beto Almeida

Obama e o complexo militar industrialcrônica Luiz Ricardo Leitão

GAZA É A prova dos nove de Barack Obama. Que estratégias o presidente eleito dos Estdos Unidos vai adotar sobre a “questão palestina” e, mais precisamente, sobre o desafi o re-presentado pelo governo do Hamas, que conta com aprovação da vasta maioria dos quase dois milhões de habitantes da miserável Faixa de Gaza? Manterá o apoio incondi-cional ao Estado agressor sionista, como fi zeram os presidentes estadu-nidenses a partir de Ronald Reagan, nos anos de 1980? Não é uma ques-tão menor, muito ao contrário: a relação entre Estados Unidos, Israel e Autoridade Palestina confi gura o ponto nevrálgico da conjuntura mundial contemporânea, pois re-fl ete, entre outras coisas, a política adotada por Washington para con-trolar os recursos energéticos do planeta (em particular, o petróleo).

Obama já deu sinais de que pre-tende manter a política de conces-sões ao lobby sionista estadunidense (representado, em particular, pelo Conselho de Relações Públicas Es-tados Unidos - Israel). Várias vezes,

afi rmou reconhecer Jerusalém como a capital una e indivisível de Israel, assim descartando liminarmente as reivindicações históricas e religiosas do povo árabe palestino. A nome-ação de Hillary Clinton ao cargo de secretária de Estado é um claro aceno a Israel. Em 2006, quando Israel horrorizava a opinião pública mundial, ao lançar todo o seu pode-rio militar contra a população civil do sul do Líbano (como fez agora em Gaza), a mulher do ex-presidente Bill Clinton, então senadora, chegou a participar de passeatas em apoio ao “direito de defesa” de Israel. O senador Joe Biden, vice de Obama, é conhecido por suas posições fran-camente sionistas (além der ter sido o autor, em 1999, de uma resolução que autorizava o ataque aéreo dos Estados Unidos ao Kossovo).

Mas a história não está escrita. Barack Obama foi eleito como resul-tado de uma grandiosa crise do ca-pitalismo. Não será necessário, aqui,

analisar detidamente a complexida-de da crise, amplamente noticiada e comentada ao longo dos últimos meses. Seu governo será marcado pela transição de uma ordem ins-tituída nas duas últimas décadas, conhecida como neoliberalismo, para uma nova ordem, cujos contor-nos ainda não estão delineados. Os Estados Unidos terão que enfrentar o funeral de seus sonhos hegemôni-cos. Obama será obrigado a negociar com outras potências capitalistas, ao contrário do que fi zeram os facíno-ras neoconservadores que ocuparam a Casa Branca sob George W. Bush (que Deus o tenha). Isso tudo se re-fl etirá, necessariamente, na política dos Estados Unidos para o Oriente Médio, pois todas as potências que-rem o seu petróleo. O jogo se torna-rá mais complexo.

Há, ainda, os aspectos ideológicos e culturais que a eleição de Obama mobilizou. Os eleitores estaduniden-ses deixaram bastante claro o seu

anseio por mudança (lema principal da campanha de Obama). Não su-portam mais a atmosfera opressiva do neoliberalismo, emoldurada pela demencial “guerra ao terror”, fábrica permanente de um pânico artifi -cialmente criado contra um suposto inimigo universal – de preferência, identifi cado como árabe e/ou islâ-mico. O desemprego, a perplexidade de uma parte da classe média viti-mada pela ganância dos banqueiros e especuladores, a sensação de deca-dência – tudo contribuiu para criar um clima importante de agitação política e cultural nos Estados Uni-dos, como não se via desde as gran-des mobilizações contra a Guerra do Vietnã. O governo Obama é um refl exo desse processo. O problema é saber como ele reagirá às expecta-tivas nele depositadas, e a “questão palestina” é um bom termômetro – certamente o principal, em se tra-tando de análise da política externa dos Estados Unidos.

Se Obama se inclinar à “esquer-da”, rompendo com o establishment absolutamente reacionário que to-mou conta de Washington nas duas últimas décadas, cumprirá com o seu programa de reformas sociais, atenderá às demandas de milhões de jovens, trabalhadores e desem-pregados e, nesse caso, imprimirá uma outra lógica à sua política ex-terna, mais aberta às negociações e ao diálogo, incluindo os palestinos. Claro: não será nenhum Lênin, não é absolutamente disso que se trata, mas poderá abrir espaços para a luta política. Ou poderá, ao conatrário, agir como um John Kennedy da vida: comandou um governo com muito brilho e maquilagem, enquan-to promoveu a fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos e a escalada da Guerra do Vietnã. Será, então, a frustração generalizada de todos os que nele depositaram o vo-to e a confi ança.

Em nenhuma outra região do pla-neta Obama será posto à prova de modo tão explícito, claro e direto: Gaza será sua prova dos nove.

de 22 a 28 de janeiro de 20092

editorial

No meio do caminho tinha uma pedraMEU PAI era médico numa pequena cidade da Baixada Flu-minense. Como em terra de cego quem tem um olho (até com catarata) é rei, o doutor era o cacique da cocada preta em sua aldeia. A bem da verdade, ele era apenas um cidadão de classe média mais avantajado, mas que destoava bastante da vizi-nhança pobre e desempregada. Já no fi nal da carreira, cons-truiu uma casa confortável, com piscina e churrasqueira, em que reunia os amigos e parentes no fi nal de semana. Quando o visitei pela primeira vez no novo endereço, logo observei que a piscina estava cheia de pequenas pedras no fundo, e ele me respondeu que eram as crianças da vila ao lado que as joga-vam, num misto de frustração e inveja por não dispor da mes-ma “regalia” que o médico famoso.

O doutor nunca reagiu ao “bombardeio” dos vizinhos. Ele sabia o que sua bela casa representava naquele mundo desigual e injusto. Por isso, apesar de politicamente conservador (eleitor de Collor & FHC e com franca antipatia por Lula, Chávez, Fidel & Cia), jamais chamou a polícia ou adotou medidas mais vio-lentas contra os moradores da vila, que em realidade era uma velha “cabeça-de-porco” (ou aquilo que os adolescentes que logram cursar o ensino médio conhecerão como um “cortiço”, se porventura lerem a prosa naturalista de Aluísio Azevedo em suas aulas de Literatura). Assim, com o tempo as pedras escas-searam e uma espécie de “trégua” permanente se estabeleceu naquele modesto rincão da Baixada.

Meu pai não era um Golias, nem tampouco as crianças eram Davis, mas lembrei-me do doutor e de seus vizinhos lendo as notícias sobre a faixa de Gaza, em que as pedras dos jovens palestinos contra as bombas do exército genocida de Israel reeditam, em pleno século 21, a velha alegoria bíblica. A ação israelense, não resta dúvida, visa a massacrar os “incômodos” vizinhos, satisfazendo, em última instância, o projeto imperia-lista estadunidense para o Oriente Médio, onde se encontram as maiores reservas de petróleo do planeta. Uma parte da bur-guesia árabe já foi cooptada pelos EUA, mas há setores e grupos mais nacionalistas e “radicais” que não aceitam a presença ian-que na região. Para estes, pelo visto, após o fracasso da invasão ao Iraque e ao Afeganistão, talvez seja melhor estimular o velho cão de guarda sionista, cuja existência autocentrada ignora todo e qualquer apelo internacional em favor da paz.

Em 2006, Davi – travestido em Hisbollah – infl igiu a Golias uma contundente derrota na investida militar de Israel contra o Líbano. As pedras feriram profundamente o orgulho israelita. Agora, às vésperas de uma decisiva eleição, a burguesia judia decidiu dar uma “lição” a um adversário mais frágil, atacando com uma desfaçatez inédita alvos civis e as próprias instalações da ONU. Como escreveu o colunista Janio de Freitas, o bom-bardeio israelense se dá “a esmo e a granel”: alega-se que os ativistas do Hamas se abrigam em hospitais e escolas, e pronto – lá vão as bombas “cirúrgicas” da armada genocida destroçar a cabeça-de-porco palestina em Gaza. Em suma, inteiramente hostil à criação de um Estado soberano e autônomo em toda a Cisjordânia e na faixa de Gaza, Israel reinventa o Holocausto e promove sua “limpeza étnica”, acirrando ainda mais o regime de segregação ou apartheid que se impôs na região.

Ciente de que boa parte da mídia mundial, controlada por poderosos grupos judeus, prefere adotar uma postura de “neu-tralidade” e condenar, em tom solene e professoral, os ‘excessos’ de ambas as partes (omitindo, aliás, que a primeira ruptura da trégua fi rmada proveio justamente do Exército israelita), o regime nazi-sionista não demonstra qualquer comoção pelo cla-mor pacifi sta dos povos do Oriente e Ocidente. Seu isolamento, porém, já preocupa o poderoso padrinho EUA, que apregoa aos quatro ventos tempos de “mudança” com a posse do bom-moço e bom-crioulo Obama. Afi nal de contas, as manifestações mun-do afora têm sido impressionantes e revelam uma hostilidade crescente a Israel entre setores que sequer possuem simpatia pelos árabes, como ocorreu na Austrália há poucos dias.

As pedras santas dos palestinos estilhaçam a consciência dos povos e servem para nos lembrar que, mais do que lixo, “toda a cultura do Ocidente é um crime”, conforme enunciou Mauro Santayana em sua oportuna paráfrase ao comentário de Adorno sobre Auschwitz. No meio do caminho, ainda há muitas pedras – e os pequenos Davis continuarão a fustigar os Golias em bus-ca de terra, pão, paz e liberdade.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

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Chico Whitaker é arquiteto, membro do secretariado interna-cional do Fórum So-cial Mundial e foi vere-ador na Câmara Muni-cipal de São Paulo (SP) entre 1988 e 1996 pelo PT, partido que deixou em 2006.

Quem é

de 22 a 28 de janeiro de 2009 3

brasil

Renato Godoy de Toledoda Redação

DE VOLTA ao Brasil depois de cinco anos, o Fórum Social Mundial 2009, em Belém (PA), deve ser marcado por discussões acerca da cri-se do modelo econômico mundial e dos danos ao meio ambiente causados pela busca inces-sante pelo lucro. Entre 27 de janeiro e 1º de fe-vereiro, cerca de 120 mil pessoas participam das 2,6 mil atividades que serão realizadas nas universidades Federal do Pará (UFPA) e Fe-deral Rural da Amazônia (UFRA).

Dando sequência à série de entrevistas e reportagens com opiniões de especialistas sobre os rumos do Fórum, o Brasil de Fato entrevistou Chico Whitaker, membro do Se-cretariado Internacional do Fórum, e o soci-ólogo Luis Fernando Novoa Garzón, que le-ciona na Universidade Federal de Rondônia, Estado pertencente à região amazônica.

da Redação

Brasil de Fato – Quais foram as principais motivações que levaram a se escolher Belém como a sede o FSM 2009?Chico Whitaker – A es-colha de Belém foi uma de-corrência natural da deci-são de vir para uma região do mundo na qual incidem de maneira intensa todas as consequências trágicas da lógica econômica per-versa que hoje o conduz: a busca do lucro a qualquer preço, depredando a natu-reza, explorando os traba-lhadores, destruindo cul-turas originárias. Por ou-tro lado, os olhos de todo o planeta estão voltados para essa região, pelo papel que ela cumpre no seu equilí-brio ecológico.

E, ao voltar ao Brasil, em Belém, no extremo norte, depois de vários fóruns re-alizados em Porto Alegre (RS), no seu extremo sul, a dinâmica desse proces-so poderá reativar muitas das lutas que se travam no Brasil todo por “um outro mundo possível”, permitin-do que as articulações que o Fórum torna possíveis se apoiem em novas conver-gências nacionais e interna-cionais que lhes darão mais força transformadora.

Por último, ao voltar para o Brasil, se chamará a aten-ção para o que está ocorren-do na América Latina, con-tinente no qual o voto po-pular está apontando para mudanças políticas necessá-rias, alimentando a esperan-ça em todo o mundo.

Inicialmente, se falava num fórum com uma característica mais ambiental, pelo fato de o aquecimento global ter imposto uma agenda “verde” até para os mais conservadores. O que a organização do FSM fará para que o tema não seja atropelado pelas discussões acerca da crise fi nanceira internacional?

O Fórum Social Mundial é sempre autogestionado, com atividades que são pro-postas pelos seus próprios participantes, de baixo pa-ra cima, e não pelos seus organizadores – que se au-tointitulam “facilitadores” –, de cima para baixo. E ele sempre aborda o conjunto de problemas que o mun-do enfrenta, e não somen-

da Redação

Brasil de Fato – Qual é a importância simbólica da capital paraense como sede do FSM?Luís Fernando Novoa Garzón – É o FSM buscan-do um terreno concreto on-de os mercados ainda não são absolutamente hegemônicos, grande parte do território e de seus bens não foram conver-tidos em mercadoria e ainda existem atores – os povos tra-dicionais – que mantêm uma relação não-instrumental com seu meio, com predomínio do uso coletivo e do comparti-lhamento de riquezas somen-te renováveis por serem co-muns. A questão não é preser-var a Amazônia como bioma, mais sim fortalecer os povos amazônidas que constroem a Amazônia como ela é: diversa, rica, para todos que nela e dela vivem. Apesar das previsíveis interferências corporativas e governamentais, o que há de promissor no FSM de Belém é a perspectiva de avanço do aprofundamento das alianças dos movimentos sociais da re-gião com os movimentos e re-des do país e dos demais con-tinentes contra a continuidade da incorporação da Amazônia pelo grande capital.

Alguns ativistas ligados ao Fórum apontam que relacionar a crise fi nanceira internacional com os danos ao meio-ambiente será o maior desafi o desta edição. Como se deve casar essa discussão?

Os temas estão interligados. A livre organização e movimen-tação dos capitais, pavimenta-da pelos estados da OCDE [Organização para a Coopera-ção e Desenvolvimento Eco-nômico, composta por 23 paí-ses europeus, mais Estados Unidos, Canadá, México, Aus-trália, Nova Zelândia, Coreia do Sul e Japão] e pelas IFMs [Instituições Financeiras Mul-tilaterais], predam a poupan-ça, o valor-trabalho passado e futuro dos trabalhadores, os direitos sociais, os bens pú-blicos e o dinamismo dos pe-quenos mercados. São esses mesmos capitais que, em no-me da máxima escala de ren-dimentos no menor prazo pos-sível, degradam recursos natu-rais para depois postular a ad-ministração de sua escassez de forma parasitária.

Para agonia dos setores que achavam que era possível te-matizar ou setorializar o FSM de Belém de forma a apresen-tar agendas pragmáticas e pa-latáveis numa espécie de “Eco-

te uma de suas dimensões. Se, no entanto, alguns de-les se sobressaírem no con-junto, é por que a consciên-cia dos participantes dos fó-runs o sente como mais im-portante. No caso concre-to, se constatou, pela ins-crição de atividades que foi feita, que nenhuma discus-são atropelará as demais. E é interessante notar que várias delas apontam pa-ra a crise civilizatória que o mundo está vivendo, na qual todos esses aspectos têm que ser considerados em seu conjunto.

Como o FSM pretende ligar a crise aos danos ao meio ambiente?

O FSM não liga nada a na-da. Ele não é um movimento ou uma entidade, com seus programas próprios. São os seus participantes que fa-zem tais tipos de ligação. E se muitos estão se propondo a discutir a crise civilizatória do mundo atual, é por que estão querendo justamen-te buscar novos paradig-mas nos quais tudo interfere em tudo, com a solução dos problemas exigindo mudan-ças estruturais.

De que forma o Fórum pretende apontar alternativas à crise fi nanceira mundial?

De novo tenho que di-zer que o Fórum, enquan-to espaço aberto de encon-tro, não aponta nada. Quem o aponta são os seus parti-cipantes, nas discussões e intercâmbios que farão du-rante o Fórum. Temos, por-tanto, que esperar que ele se realize para ver que alter-nativas serão apontadas.

Qual deve ser o formato do Fórum? Deve haver um documento fi nal?

O Fórum de 2009 com-portará uma série de ino-vações metodológicas posi-tivas, como o aumento de um dia na sua duração, para que seus participantes pos-sam tratar nesse dia especi-fi camente da problemática amazônica, além da reali-zação de assembléias no úl-timo dia para a formulação de propostas de ação.

Na prática, também se avançou bastante no pro-cesso de inscrição de ativi-dades, uma vez que quase um mês antes do Fórum o programa geral já se encon-tra à disposição de todos, para que melhor organizem sua participação e seus con-tatos e identifi quem mais facilmente as articulações possíveis. Sempre no for-

mato de somente ativida-des autogestionadas, avan-çou-se também na integra-ção entre atividades cultu-rais e os debates. Mas, co-mo sempre, não haverá um documento fi nal do Fórum enquanto Fórum. Esse é um dos princípios básicos de sua Carta, que funciona co-mo uma vacina contra a di-visão, que é o que destrói os movimentos de esquerda. Em compensação, se espe-ra que se multipliquem ao máximo os “documentos fi -nais” das redes de organi-zações participantes, a par-tir das propostas de ação que tenham discutido, en-gajando plenamente quem as adote.

O Fórum ainda pretende fi rmar-se como um contraponto a Davos ou admite a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas?

O Fórum nasceu como um contraponto a Davos e con-tinuará sempre sendo esse contraponto, na medida em que a visão de seus partici-pantes sobre o mundo é an-tagônica a dos participantes de Davos. Impossível, por-tanto, trabalhar em con-junto com Davos, inclusive porque ambos são espaços, e não entidades, não tendo portanto cúpulas represen-tativas ou direções que fa-lem ou decidam em nome desses participantes.

Por fi m, você acha que a crise, de alguma forma, pode afetar a própria realização do Fórum, com redução do número de participantes internacionais ou problemas de estrutura?

Já fi cou demonstrado, pe-lo número de participantes e atividades inscritas, que a crise não afetou a realiza-ção do Fórum. Se tudo con-tinuar correndo bem como aconteceu até agora, o FSM de 2009 será um dos me-lhores que já foram realiza-dos. (RGT)

92 social”, a premissa de ra-cionalidade e sustentabilida-de nos marcos do capitalismo implodiu com a crise fi nancei-ra global, subsequentemen-te produtiva, e daí sistêmica. O FSM será uma oportunida-de preciosa para repolarizar o campo internacional depois do esboroamento do terror unipolar de George W. Bush, que encobriu uma intensiva pilhagem corporativo-fi nan-ceira global. O império foi ao chão, mas está se reerguendo às nossas custas, com recursos públicos, vampirizando a ri-queza social, incluindo o meio ambiente, patrimônio dos po-vos. O que precisamos fazer avançar nesse FSM é a agenda de uma alternativa socialista, democrática e ecológica à cri-se sistêmica colocada.

Pode se dizer que a crise fi nanceira é um “prato cheio” para o debate sobre as alternativas para o atual modelo?

A profundidade da crise fez com que os grandes gestores do capital fi nanceiro, os “fun-damentalistas do livre mer-cado”, se apropriassem rapi-damente do instrumental key-nesiano para socorrer justa-mente os “fundamentos” do mercado norte-americano, os grandes bancos, corretoras e agências fi nanceiras. Quem está propondo fórmulas cor-retivas, agora com muita fl e-xibilidade teórica e senso prá-tico, contribui na verdade pa-ra um novo ciclo de centraliza-ção e concentração do capital, de forma planejada, sem sola-vancos, que parece que será a tônica do governo de Barack Obama.

O momento é de devassar o fundo do poço, verifi car os fa-tores orgânicos e operacionais que nos levaram a essa situa-ção. Mas a negação do capita-lismo e de sua irracionalidade inerente é apenas o ponto de partida. É preciso vislumbrar áreas de descostura e áreas de costura em uma estratégia cumulativa. Para intervirmos na conjuntura de crise, preci-samos de um programa ime-diato que, entre outros pon-tos, passa pela publicização do sistema fi nanceiro em dis-tintas escalas, o que pressu-põe diversas formas de con-trole – nacionais – regionais e internacionais, sobre os fl u-xos fi nanceiros. Envolve cer-tamente a soberania social e o uso equilibrado dos recursos naturais, em especial da água e da energia.

O FSM ainda deve manter a posição inicial de contrapor-se ao Fórum Econômico Mundial de

Davos ou admitir a idéia de trabalhar em conjunto em alguns temas?

Davos nunca teve represen-tatividade além dos estreitos círculos dos conglomerados fi nanceiros. Tentativas ante-riores de criar “pontes” entre os dois fóruns só serviram pa-ra rebaixar o FSM como espa-ço consultivo do poder econô-mico global. Os últimos “te-mas” de Davos – “confi ança” e “transparência” – expunham esquizofrenicamente o rever-so das práticas de seus propo-sitores, como todos podem ver agora a olho nu.

Desde a primeira edição do FSM até os dias atuais, o que mudou na estrutura do evento, positiva e negativamente?

Como não participei direta-mente da Secretaria Nacional ou do Comitê Internacional, não poderia fazer essa avalia-ção em detalhe. Mas a experi-ência colocou a necessidade de se buscar espaços de aglutina-ção que dessem conta da enor-me diversidade de temas, lu-tas e processos de resistên-cia. Segue a preocupação, pe-la sua escala pretendida, social e mundial, com a generalidade de seus resultados. Esperamos que as forças sociais vivas pre-sentes no FSM de Belém pos-sam indicar caminhos de con-vergência que estejam à altura desse momento histórico.

A crise, de alguma forma, pode afetar a própria realização do evento, com redução do número de participantes internacionais ou problemas de estrutura?

Se por um lado há um estrei-tamento das fontes de fi nancia-mento internacionais de ONGs e movimentos, agências de co-operação, fundações etc., há por outro uma radicalização da conjuntura que predispõe a mobilização e recursos tam-bém são obtidos por meio da mobilização espontânea. Há ainda expectativa de forte con-tinentalização com presença signifi cativa de delegações dos países sul-americanos. (RGT)

Autogestão do FSM é vacina contra fracionamento da esquerda

Desafi o: construir uma agenda socialista, democrática e ecológica

Luis Fernando NovoaGarzón é sociólogo, membro do Fórum Inde-pendente Popular do Ma-deira e da Rede Brasil, professor da Universidade Federal de Rondônia e mi-litante da ATTAC (Asso-ciação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos)

Quem é

Com 120 mil pessoas, Fórum Social Mundial terá a sua maior ediçãoENTREVISTA Ativistas opinam sobre os principais desafi os colocados para a nona edição do evento

Indianos fazem protesto na 7ª edição do Fórum Social Mundial, em Nairóbi, Quênia

Agência Brasil

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de 22 a 28 de janeiro de 20094

brasil

Dafne Melo e Marcelo Netto Rodrigues

enviados a Sarandi (RS)

DEPOIS DE mais de duas dé-cadas de a fazenda Anonni, no Rio Grande do Sul, ter sido al-vo da primeira grande ocupa-ção do Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Ter-ra (MST) – no ano de 1985 – a área volta a entrar para a his-tória da organização como o palco para as comemorações dos seus 25 anos. Desde o dia 20, cerca de 1.500 militantes, vindos de 23 estados, discutem em Sarandi (RS) os rumos que o movimento deve tomar nes-te ano. As comemorações vão até o dia 24, quando também se encerra o 13º Encontro Na-cional do movimento.

Segundo Marina dos San-tos, da coordenação nacio-nal do MST, os encontros na-cionais, que ocorrem a cada dois anos, têm o objetivo de reunir a militância para dis-cutir a situação da agricultu-ra no país e os desafi os e lu-tas do movimento. “Este ano, o diferencial é que também comemoramos 25 anos, en-tão, além do encontro, haverá uma grande festa no dia 24, na qual iremos reunir uma série de organizações da so-ciedade civil, personalidades e intelectuais, para também demonstrar o apoio da socie-dade à luta do MST”.

Logo na entrada do assenta-

do enviado a Sarandi (RS)

A ocupação, em 1985, da fa-zenda Anonni – onde o en-contro se realiza – é conside-rada um marco do Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Foi o pri-meiro grande acampamen-to organizado pelo movimen-to, que havia acabado de ser criado um ano antes. Dentre as 8.500 pessoas que passa-ram anos embaixo da lona, es-tava Darci José Antunes Mas-chio, considerado um dos pio-neiros do MST. Em entrevis-ta, Darci – que já foi da dire-ção nacional e é um dos per-sonagens principais do docu-mentário O Sonho de Rose, de Tetê Moraes – comenta os 25 anos do movimento.

Brasil de Fato – Você imaginava que o movimento duraria 25 anos?Darci José Antunes Mas-chio – Quando, em 1984, iniciamos o movimento, a gente tinha pouca coisa clara na cabeça nossa. Sabíamos que existia um direito cons-titucional de que cada traba-lhador tinha direito de aces-so à terra. Tínhamos cons-ciência, dada a história, de que nada viria de mão beija-da, que nenhum governo iria fazer por pura bondade a re-forma agrária. Assim, com o

da Redação

O presidente da Associa-ção Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e ex-depu-tado federal Plinio Arruda Sampaio, hoje membro do Psol, viu o nascimento do MST e sempre apoiou ativa-mente suas bandeiras. Ali-ás, Sampaio é um defensor da reforma agrária há déca-das. Como deputado fede-ral, propôs a reforma agrária já em 1963. O projeto, como de praxe, foi emperrado pela ação da direita. “Para a direi-ta, a hora da reforma agrária ou não chegou ou já passou”. Para ele, ironicamente, o pe-ríodo do governo Lula tem sido o mais difícil para o mo-vimento. Veja abaixo entre-vista com Plínio.

Brasil de Fato – Quando e como foi o primeiro contato que o senhor teve com o MST?Plinio Arruda Sampaio – Não tenho mais lembran-ça da data exata em que en-trei em contato com o MST, mas creio que foi bem no co-meço do movimento, quan-do eu dirigia o Proter (Pro-grama da Terra), da PUC de São Paulo. Os contatos amiudaram-se quando pas-sei a dirigir a Associação Brasileira de Reforma Agrá-ria (Abra) e me tornei depu-tado federal.

Dentro da história da luta pela terra no Brasil, como o senhor analisa o surgimento do movimento?

Celso Furtado considera-va o MST o maior e mais im-portante movimento cívico da história brasileira após a campanha abolicionista. As-sino embaixo.

Para o senhor, que acompanha o MST desde o início, quais

mento Novo Sarandi, estão es-palhadas cinco lonas pintadas que ostentam os lemas dos cinco Congressos que o movi-mento já realizou: “Terra para quem nela Trabalha” (1985), “Ocupar, resistir e produ-zir” (1990), “Reforma Agrá-ria: uma luta de todos” (1995), “Reforma Agrária, por um Brasil sem latifúndio” (2000) e o atual “Reforma Agrária: por Justiça Social e Soberania Popular” (2007).

No local do encontro, três lonas gigantes de circo, ar-madas num campo de fute-bol, servem de alojamento às delegações, fazendo com que fronteiras inimagináveis aconteçam: Minas Gerais, por exemplo, está ao lado do Ceará e de Rondônia.

Longo caminhoApesar de o encontro ter

apenas cinco dias, para mui-tas delegações, ele começou mais cedo. No caminho até o Rio Grande do Sul, muitas

Brigada Militar tem feito plantão na entrada do assentamento em que se realiza o encontro

MST comemora 25 anos no Rio Grande do SulLUTA PELA TERRA Cerca de 1,5 mil militantes discutem em Sarandi a situação do campo e os desafi os do movimento

passaram mais de três dias nas estradas, como a do Ce-ará, por exemplo, que levou 78 horas para chegar a Sa-randi, conforme relata um dos seus delegados, Linden-berg Pereira, que debate com seu grupo como será a místi-ca apresentada pelos estados do Nordeste.

Além de convidados na-cionais, 55 amigos estran-geiros do MST eram espera-dos, vindos da Espanha, No-ruega, Alemanha, Itália, Ve-nezuela, entre outros países. Mas um convidado inespera-do também se fez presente: o frio, que tem sido um proble-ma já que as temperaturas baixaram abruptamente ape-nas na véspera do encontro, quando quase todas as dele-gações já haviam partido dos seus Estados de origem com a informação de que o clima estaria muito quente.

Esse, entretanto, não é o único imprevisto. Na entra-da do assentamento, desde o dia 19, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul tem feito plantão, parando os veículos que entram, conferindo do-cumentos e licenças de via-gens interestaduais. Os bri-gadianos têm permanecido na entrada inclusive duran-te a noite, com fogueiras ace-sas. Para além da intimidação desnecessária, há o receio de que se usem os dados recolhi-dos para criminalizar partici-pantes do Encontro.

apoio da CPT, nós começa-mos a nos organizar. Eu par-ticipava do movimento de igreja quando ajudei a criar o MST no Estado.

Como foram as primeiras ocupações?

Em 1982, já existiam acam-pamentos no Paraná, no Ma-to Grosso que ainda não eram tratados como acampamen-tos do MST. No Rio Grande do Sul, em 1981, aconteceu o acampamento da Encruzi-lhada Natalino, que foi o em-brião de tudo. Mas ainda não era uma organização propria-mente dita da classe sem-ter-ra. Ainda eram lutas localiza-das. A CPT criou condições para que a gente conheces-se esses processos de luta, fa-zendo encontros, trocas de ex-periências. E a idéia da cria-ção de uma organização per-manente surgiu em 1984. Pa-ra que o processo de organiza-ção, de luta das famílias, não terminasse com a formação de um acampamento.

A princípio, era possível prever que o movimento ganharia a dimensão política que adquiriu ao longo desses anos?

A primeira coisa que me vi-nha na cabeça à época, eu, co-mo trabalhador sem-terra, era ter o meu pedaço de ter-

ra. Deixar de ser meeiro. Para que eu pudesse fi car com to-da a produção que produzisse. Bom, como seria o futuro? Na época, nem imaginava. De-pois, quando o movimento foi se consolidando, começamos a perceber que ele seria forte, viria a ser uma espécie de re-ferência, capaz de apontar ca-minho para a mudança da so-ciedade. Agora, quantos anos nós iríamos durar? Tu olhas na história brasileira e o MST é um dos movimentos campo-neses que mais durou. Eu não imaginava que hoje, em 2009, eu estaria, com 51 anos, come-morando 25 anos de um mo-vimento que a gente ajudou a criar em 1983, 1984.

Como seria a sua vida se o MST não tivesse acontecido?

Na época, eu morava no la-do brasileiro da costa da Ar-gentina. Como era pequeno agricultor, acredito que eu de-veria estar lá, isolado, tentan-do ganhar a vida miseravel-mente ou teria ido para a cida-de, quem sabe para uma des-sas favelas das grandes cida-des. Eu e todos os que da mi-nha época participaram des-se processo e que hoje temos nosso pedaço de terra, nos-sa casa, nossa família, temos uma vida digna. Hoje, eu não consigo nem me imaginar lá onde eu morava.

O que representa a escolha do Rio Grande do Sul, especifi camente da fazenda Anonni, para ser palco das comemorações dos 25 anos do movimento?

É como se tivéssemos num momento de seca, de estia-gem, e viesse uma chuva que fi zesse com que o verde vol-tasse a fl orescer. (MNR)

“Sabíamos que nada viria de mão beijada”

A primeira coisa que me vinha na cabeça à época, eu, como trabalhador sem-terra, era ter o meu pedaçode terra

Darci José, um dos fundadores do movimento, relembra as primeiras lutas dos sem-terra

foram os maiores desafi os enfrentados pelos movimento nesses 25 anos?

Parece incrível, mas é ago-ra, que, teoricamente, de-veria ser o período mais fá-cil, uma vez que o presiden-te advogou a reforma agrá-ria a vida inteira. Como ele não fez a reforma agrária e chegou a paralisar o pro-graminha de assentamentos que havia iniciado, o quadro tornou-se muito difícil para o MST. Piorou logo depois que o governo chamou os usineiros de “heróis” e pas-sou a apoiar exclusivamente o agronegócio.

O MST surge no início da década de 1980, num período em que também surgem o PT e a CUT. Para muitos, esse “ciclo PT” se encerrou. Como o senhor vê o MST dentro dessa perspectiva?

PT, CPT, Comunida-des Eclesiais de Base, CUT, MST – todas essas organi-zações fazem parte do pro-cesso de ascensão de mas-sas que se verifi cou no início dos anos de 1980. A defec-ção do PT e da CUT e o cer-co às CEBs foram um golpe duro no movimento popu-lar. Obviamente não pode-ria deixar de causar impacto no MST. Apesar disso, o mo-vimento mantém-se como a principal referência de luta camponesa no país.

A direita afi rma que o MST não faz mais sentido hoje, pois não há mais necessidade de se fazer a reforma agrária no país. Qual sua opinião sobre isso?

Esse argumento é mais ve-

lho que a Sé de Braga. Para a direita, a hora da reforma agrária ou não chegou ou já passou. Quando propus a reforma agrária em 1963, eles diziam: “não está na ho-ra, não dispomos de estatís-ticas fundiárias confi áveis; vai atrapalhar a produção”; quando o MST reclama a re-forma agrária em 2008, eles gritam: “Já passou”. Tudo porque não têm coragem de dizer claramente: “nós, lati-fundiários, não queremos e nunca aceitaremos a refor-ma agrária”. Por isso, ela te-rá que ser feita por obra da pressão camponesa.

Como elaborador do 2º Plano de Reforma Agrária, como o senhor vê o seu andamento dela nesses últimos 25 anos?

O Lula não teve coragem de aprovar o Plano e cha-mou de reforma agrária o programinha de assenta-mentos que o MDA começou a realizar daquele jeito deva-gar quase parando que o ca-racteriza. Agora, nem isso.

Ainda que a reforma agrária não tenha se concretizado, quais são, na sua opinião, as principais vitórias do MST nos seus 25 anos?

A grande vitória do MST é trazer a reforma agrária pa-ra a pauta política do país e especialmente para a pau-ta dos partidos verdadeira-mente de esquerda. Esse é um avanço político formi-dável. Além disso, é impor-tante considerar a contri-buição do movimento para a formação de quadros di-rigentes no meio rural. Eles estão amadurecendo e, sem dúvida, comandarão a pró-xima investida contra o lati-fúndio (que agora chamam de agronegócio).

Para o futuro, quais os principais desafi os?

O maior desafi o do mo-vimento é deixar claro pa-ra a população rural que o Lula não é mais um aliado dos trabalhadores do cam-po. Essa população precisa conscientizar-se de que ou vai para a luta ou nenhum pai bondoso lhe dará a terra de mão beijada. (DM)

O maior desafi o do movimento é deixar claro para a população rural que o Lula não é mais um aliado dos trabalhadores do campo

“O maior movimento cívico do Brasil desde a abolição”Para Plinio Arruda Sampaio, atual período é o que mais impôs desafi os ao MST

Militantes do MST celebram a abertura do 13º Encontro da entidade, em Sarandi (RS)

Douglas Mansur / Novo Movimento

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de 22 a 28 de janeiro de 2009 5

brasil

Dafne Meloda Redação

O GEÓGRAFO da Univer-sidade de São Paulo (USP) Ariovaldo Umbelino acredi-ta que o nascimento e o for-talecimento do Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estão rela-cionados a fatores conjuntu-rais desenhados ainda no iní-cio da ditadura militar. No fi -nal dos anos de 1970, com o fracasso dos projetos de colo-nização dos militares – perso-nifi cados em rodovias como a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém –, os colonos insa-tisfeitos voltaram aos centros urbanos. Nesse cenário, com o auxílio da ala progressista da Igreja e da crise econômi-ca, criou-se um clima propício para a articulação de campo-neses descontentes com a si-tuação. Confi ra abaixo entre-vista com o geógrafo.

Brasil de Fato – Qual a conjuntura agrária em que nasce o MST?Ariovaldo Umbelino – A origem do MST remonta a meados da década de 1960. Com o golpe militar, desarti-cula-se o embrião das organi-zações que as Ligas Campone-sas haviam conseguido cons-truir. Se alteram, no plano le-gal, os avanços na legislação e na criação de órgãos governa-mentais, como a Superinten-dência de Política Agrária (Su-pra). Também havia o decreto do governo João Goulart, no qual se determinava que os 20 quilômetros ao longo das ro-dovias brasileiras eram áre-as prioritárias para a reforma agrária. O governo militar de-sarticula tudo isso.

Mas em novembro de 1964, contraditoriamente, manda ao Congresso um projeto de lei que cria o Estatuto da Terra, ainda hoje a legislação prin-cipal relativa à reforma agrá-ria. Essa aprovação não signi-fi cou, naturalmente, uma re-al tentativa de implantar a re-forma. Em nenhum momento em que estiveram no poder, os militares elaboraram um pla-no nacional de reforma agrá-ria. Houve apenas projetos de colonização na Amazônia, que estiveram na mídia com toda uma divulgação e propagan-da, e que foram feitos no con-texto do programa de integra-ção nacional que construiu a Transamazônica, a Cuiabá-Santarém e parte da Perime-tral Norte, dentre outras ro-dovias. Esses projetos de co-lonização foram realizados na Transamazônica, e dois anos depois de implantados já re-velavam seu fracasso. Ain-da apostando na mesma táti-ca, começaram a fazer proje-tos de colonização na rodovia Cuiabá-Porto Velho.

Por que esses projetos fracassaram?

Nesses projetos da década de 1970, os colonos que mi-graram fi caram sem apoio e sem políticas agrícolas. Então, retornam para o Estado de origem, particularmente para os do Sul. A partir daí, vamos ter uma continuação do pro-cesso migratório para a Ama-zônia, sobretudo de pessoas do Mato Grosso, o que hoje é o Tocantins e Maranhão. Nes-ses estados, o confl ito sobre a abertura das posses vai se es-

tabelecer, pois os governos militares, também no marco do projeto de integração na-cional, fi zeram programas de incentivo fi scal em que re-nunciavam parte do imposto de renda de empresas que im-plantassem projetos agrope-cuários na Amazônia. Quan-do iam para lá, esses empre-sários achavam nessas terras os posseiros. Ou seja: o Esta-do estava alienando terras, a princípio devolutas, para gru-pos privados sem respeitar o direito desses posseiros que a Constituição brasileira garan-te. Então, a década de 1970 foi marcada pelo confl ito de pos-seiros, sobretudo na região do Araguaia, inclusive tendo co-mo um dos episódios a pre-sença da guerrilha do PCdoB.

Como o fracasso desses projetos se relacionam com o surgimento de organizações no campo, como o MST?

Esse quadro de fracasso da colonização e a não-realização da reforma agrária fez com que, no fi nal de década de 1970, os colonos retornassem desses projetos. Isso, aliado a um quadro de urbanização crescente e crise econômica, cria todo um ambiente social, no qual também se encaixam as ações da igreja progressista nas comunidades eclesiais de base. Daí, começam a ocorrer no país – sem que houvesse um processo de organização nacional – ações camponesas em diferentes pontos. Esses processos já ocorriam no Rio Grande do Sul ainda no perí-odo militar. Um dos episódios ocorre quando a Funai tira das terras indígenas, sobretu-do dos Caigangue no RS e SC, os colonos que haviam ocupa-do e aberto posses nessas ter-ras indígenas.

A partir desse contexto, os colonos vão iniciar um conjun-to de ocupação de terras, den-tre elas a da Encruzilhada do Natalino [norte do RS]. O go-verno militar manda o Major Curió com a intenção de le-var os acampados para a re-gião amazônica do Mato Gros-so. Consegue levar 200 famí-lias para o assentamento de Lucas do Rio Verde. São le-vados de avião, de madruga-da, justamente para não te-rem noção do deslocamento a que eram submetidos. Havia lá uma empresa já contratada pelo Incra para fazer os assen-tamentos. Estive em Lucas no início dos anos de 1980 e, em uma das entrevistas, o colo-no dizia assim: “Nós passáva-mos a manhã sentados na por-ta da sala e a tarde na porta da cozinha, e só mudávamos de lugar porque a sombra muda-va de lugar”. Esses colonos ca-íram numa armadilha que en-volvia o executor do Incra em Rio Verde – o gerente do Ban-co do Brasil em Diamantina –,

o que redundou num escânda-lo naquela época. A maior par-te deles voltou, vendendo, sem que isso pudesse ser feito le-galmente, seu lote em troca da passagem de volta para o Sul.

E são as articulações a partir desse cenário que culminam com o MST?

Essa articulação come-ça em vários pontos. No Pa-raná, há uma articulação a partir dos colonos que foram atingidos pela construção de Itaipu e que não receberam uma indenização que possi-bilitasse a compra de uma ter-ra igual a que tinham antes. Então, fi zeram acampamen-tos. Em São Paulo, duas áre-as conheceram, nesse perío-do de fi nal dos anos de 1970 e começo dos de 1980, pro-cessos de luta pela terra: An-dradina, na Fazenda Primave-ra, em que rendeiros se rebe-laram quando houve aumento desses arrendamentos; e tam-bém em Sumaré, próximo a Campinas, no início da déca-da de 1980, quando foi arti-culada uma ocupação de ter-ra e a conquista de Sumaré I. Isso tudo antes do surgimen-to do MST. Então, essa articu-lação camponesa está na base da formação do MST. Desde 1974, havia a Lei da Reforma Agrária, mas ela não era fei-ta, e esses movimentos colo-cavam na agenda política a lu-ta pela terra. Tendo, agora, as ocupações de terras como ins-trumento político a partir do qual buscavam suas reivindi-cações. Na medida em que a terra se concentra e a reforma agrária não se realiza, cria-se a base na qual os movimentos sociais vão nascer.

E como a ocupação de terras vai se consolidar como instrumento de luta?

Há três experiências impor-tantes de organizações cam-ponesas que já revelam o pa-pel dos posseiros e o uso da ocupação de terras como ins-trumento político. Guerra do Contestado (1912-1916); na década de 1950, a formação de Trombas e Formoso em Goiás, numa ação inclusive articula-da pelo PCB; depois, as Ligas Camponeses que vão nascer no Nordeste, na Zona da Ma-ta e Agreste, mas que depois ampliam sua bandeira de luta no período do governo de João Goulart. Nas duas primeiras, estava em jogo o destino de

terras públicas. No Contesta-do, o Estado queria dar terras onde já havia posseiros a uma empresa de capital internacio-nal que ia construir uma fer-rovia. Em Goiás, queria dar a terra para as elites locais. A di-ferença das duas primeiras ex-periências para a das Ligas, na década de 1970, é que as ações são individuais, as famílias migram, ocupam, e o confl ito surge quando alguém afi rma que é o verdadeiro dono da-quelas terras. Quando o con-fl ito se instaurava, aí sim cria-vam mecanismos de articula-ção comum e ganhavam algu-ma organização social e políti-ca, mas na medida que o con-fl ito se solucionava, para o bem ou para o mal, essas orga-nizações desapareciam.

No começo da década de 1980, a necessidade da arti-culação de caráter político vai se por primeiro, de forma an-terior ao processo de ocupação de terra. Ou seja: dá-se o pro-cesso inverso do que acontecia antes, onde se fazia a ocupação e a partir daí se organizava al-go que logo se extinguia. A es-tratégia muda e o campesinato percebe que a organização de-ve preceder a ocupação, o que está nas origens do MST. Uma organização política que vai reivindicar, com uso das ocu-pações, a reforma agrária.

Em relação aos marcos legais, eles por si só garantem a reforma, mas por que ela não ocorreu até agora?

Desde o fi m da escravidão, com a Lei de Terras de 1850, foi negado aos que não tinham terra o acesso a ela sem que fosse pela compra. Então, a história do campesinato brasi-leiro é a história dos sem terra. Nunca tiveram terra, sempre tiveram que lutar pelo aces-so a ela. A Lei de Terras, no seu artigo segundo, criminali-za a posse. O posseiro ia preso e tinha que indenizar a União por possíveis estragos. Mas os camponeses e os latifundiários não pararam de abrir posses.

A Constituição de 1934 teve que garantir o direito de pos-se, desde que uma parte dela fosse destinada para o man-timento da família. A pos-se era de 25 hectares. Mes-mo os militares, na Consti-tuição de 1977, reconhecem as posses e ampliam a área para 100 hectares. O curioso é que o processo histórico dessa lu-ta pela terra fez com que o Es-tado ampliasse, do ponto de vista legal a possibilidade, do acesso. O Estatuto da Terra, de 1964, era o reconhecimen-to do Estado de que o país te-ria que fazer a reforma agrá-ria mais cedo ou mais tarde. O problema é que as elites bra-sileiras não querem a reforma agrária sob hipótese nenhuma e querem para si as terras de-volutas do país.

Antes do MST, outras organizações promoviam a luta. Qual diferencial que traz o movimento?

O MST, no meu entendi-mento, nasce como instru-mento político do campesi-nato brasileiro, tornando os camponeses cientes dos seus direitos e em processo de lu-ta. E traz uma novidade, que é a idéia de que enquanto exis-tisse um sem-terra todos os camponeses brasileiros se-riam sem-terra, ou seja, mes-mo os assentados continuam no processo de luta para que todos tenham acesso à terra.

São esses instrumentos de consciência política que vão estar na base da força política que o MST tem até hoje. Se-gundo, vão inaugurar na lu-ta política brasileira a demo-cracia de massa, ou seja, de-mocracia construída na base. Todos seus militantes são su-jeitos sociais em processo de luta e capazes de falar em no-me da organização que estão criando. Por isso que o MST não nasce como organização formal, mas como movimen-to socioterritorial. Vai reve-lar ao Brasil e ao mundo que uma parte das terras não estão sendo usadas produtivamente ou estão ocupadas por pesso-as que não têm direito legal de estar nelas. O MST põe a nu a estrutura fundiária brasileira. Ou seja, a presença da terra devoluta e da terra improdu-tiva. Ao mesmo tempo é um instrumento de luta política.

No governo Sarney há o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária e a expectativa de que o Estado possa resolver a questão fundiária. Em seguida, o neoliberalismo. Como se dá a luta nesse processo?

Com o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária, que seria realizado entre 1985-89, fi ca claro que o Estado não fará a reforma agrária. Esse 1º Plano previa o assentamento de 1,4 milhão de famílias, e o Sarney termina seu governo tendo as-sentado pouco mais de 10 mil. Na realidade, também essa contingência política da não-realização da reforma agrária vai surgir como instrumento de consciência para que es-sa luta avance na década de 1990. Claro que todo o con-junto das mudanças impos-tas pelo neoliberalismo vai es-tar na base das ações das po-

líticas de Estado. O Collor go-vernou sem plano nacional de reforma agrária, assim como seu vice que assumiu depois. O Fernando Henrique Cardo-so vai se eleger e tampouco tem um plano.

Então, na década de 1990 o processo de luta vai se acir-rar, revelando a consciência de que a reforma agrária só pode-rá ser obtida pelo processo de enfrentamento político e de ocupação da terra. Desse mo-do os confl itos de ampliam. O Raul Jungmann, ministro do Desenvolvimento Agrário no governo FHC, sempre afi rmou que foram os confl itos de Co-rumbiara e de Eldorado de Ca-rajás que o tornaram ministro, revelando de forma clara que o FHC só “assumiu” a tarefa da reforma agrária porque era uma imposição dos movimen-tos camponeses, sobretudo do MST, que até metade da década de 1990 é o único que faz ocupações de terra. Passa-do o governo FHC, a relação acampamento/assentamento sempre foi desfavorável: mos-trava que o governo só faz as-sentamento quando há pres-são política.

No governo Lula há o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária e uma nova esperança. Como você o avalia?

Nos primeiros anos, houveuma certa espera para ver seo governo Lula levaria a caboo 2º Plano. Em 2005, fi coumais claro que a reforma nãoestava sendo feita. É quan-do há uma espécie de rom-pimento entre MST, Incra eMDA, quando esses órgãosdivulgam os números de as-sentados e o MST faz umanota desmentindo-os. Tor-nou-se claro que o governoLula estava usando o mes-mo expediente do governodo PSDB: incluir no númerode assentados os casos de re-gularização fundiária e reco-nhecimento de assentamen-tos antigos.

Nos dados divulgados de 2005, por exemplo, incluiu-se um assentamento em Bar-ra do Corda, Maranhão, de 950 famílias, que na verdade foi feito no governo de Getú-lio Vargas. Mas como foi reco-nhecido pelo governo naque-le ano, entrou na relação pa-ra engordar as estatísticas. Is-so foi revelando ao MST que a luta pela reforma agrária teria que ter outra dimensão políti-ca, não se limitando apenas à disputa de terras em si, e que a luta deveria ser contra o agro-negócio, o que se consolidou no seu 5º Congresso, defen-dendo também o patrimônio público brasileiro em relação a seus recursos naturais.

A reforma agrária está longe de ser alcançada, e as disputas pela terra se acirram. Quais os maiores desafi os do MST nos próximos anos?

Está claro hoje que as eli-tes brasileiras se apropriam de terras públicas de forma ilegal. Diante da legislação de terras que temos, não se po-de legalizar essas situações, então há uma grande investi-da para alterar esses marcos legais. O governo Lula quer permitir essa apropriação ile-gal. Um exemplo é a MP 422, já transformada em lei pelo Congresso, que permite a le-galização de terras na Ama-zônia legal até 1.500 hecta-res, uma afronta à Constitui-ção brasileira.

Então, essa postura que o governo tem tomado parece que tende a se ampliar. O mi-nistério ocupado por Manga-beira Unger quer aprofundar essa legalização fundiária na Amazônia, o que é uma afron-ta e vai ser contestado pela sociedade civil. A ampliação dessas ações de entrega das terras para a iniciativa priva-da, grandes empresas e trans-nacionais deverá ser combati-da em diversos fl ancos. A lu-ta contra o agronegócio e as transnacionais revela o papel efetivo que ele tem no Brasil. Quem produz alimento são as pequenas propriedades, isso todos os dados comprovam.

O MST põe a nu a estrutura fundiária brasileira. Ou seja, a presença da terra devoluta e da terra improdutiva

Reforma agrária, luta de ontem e hojeLUTA PELA TERRA Ariovaldo Umbelino, geógrafo da USP, analisa processo que deu origem ao MST

A estratégia muda e o campesinato percebe que a organização deve preceder a ocupação

O problema é que as elites brasileiras não querem a reforma agrária sob hipótese nenhuma

Douglas Mansur

Trabalhadores rurais preparam mística para celebrar a abertura do 13º encontro do MST

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de 22 a 28 de janeiro de 20096

brasil

Banco MundialEm tese sobre o Banco Mundial,

aprovada na Universidade Federal Fluminense, João Marcio Mendes Pereira afi rma que “do ponto de vista fi nanceiro, o banco seguirá sendo um ator na gestão da crise, cuja voz ressoará apenas em paí-ses da periferia”. Ele lembra que a soma de todos os empréstimos realizados pelo banco desde 1947 (639 bilhões de dólares) é inferior ao primeiro pacote de socorro do Tesouro dos Estados Unidos (700 bilhões de dólares), em outubro de 2008. Haja crise!

Ironia cibernéticaA crise econômica pegou a Goo-

gle no contrapé: a maior empresa estadunidense que opera na inter-net anunciou na última semana a demissão de 100 pessoas do setor de recrutamento e seleção – exata-mente quem cuida de contratação e demissão de pessoal – e o fecha-mento de escritórios em várias ci-dades estadunidenses, no momento em que dava a entender que estava em plena expansão.

Agenda burguesaEnquanto o noticiário da grande

imprensa fala em demissões, falên-cias, quebra da safra, redução de investimentos, crédito escasso etc, a agenda do empresariado – lidera-do pela Fiesp – fala em redução dos salários, corte dos encargos traba-lhistas, dinheiro barato dos cofres públicos, redução de impostos, privatização de serviços e subsídios para exportações. Tudo para garan-tir os lucros!

Crimes apuradosO prêmio Nobel de Economia de

2008, Paulo Krugman, em corajoso artigo publicado no jornal The New York Times cobra do novo presi-dente dos Estados Unidos, Barack Obama, a investigação dos crimes cometidos pelo governo Bush. Ele diz que ocorreram abusos da polí-tica ambiental ao direito de voto, além de o ex-presidente ter delibe-radamente iludido o país para justi-fi car a invasão do Iraque.

Reação direitistaJornalistas e políticos de direita

centraram fogo no ministro Tarso Genro, da Justiça, porque ele apro-vou a condição de refugiado político ao italiano Cesare Battisti, que nos anos de 1970 foi membro da orga-nização Proletários Armados pelo Comunismo, na Itália. Fica claro que a burguesia brasileira só aceita refugiados como os ex-ditadores Marcelo Caetano, de Portugal, e Al-fredo Stroessner, do Paraguai.

Eleição presidencialEmbora não admitam em pú-

blico, os principais jogadores da disputa presidencial de 2010 inicia-ram 2009 com o esquentamento de seus esquemas de campanha, seja na articulação de alianças, marca-ção de posição e no cuidado com o marketing. O governo do Estado de São Paulo baixou orientação para a criação de projetos diferenciados do governo federal com ampla pro-paganda nacional. Evidente, né?

Luta permanenteO movimento contra a privati-

zação do petróleo e do gás não se abateu com a repressão policial ocorrida nas manifestações de de-zembro passado, no Rio de Janeiro, e, em nota distribuída na última semana, manda recado para quem quer entregar a riqueza do Brasil: “Não vamos fi car só na defensiva. Estamos nos preparando para a grande batalha em defesa da sobe-rania nacional, para garantir que o petróleo tem que ser nosso”.

Extermínio baianoVárias entidades populares e de

defesa dos direitos humanos de Sal-vador (BA) denunciam a falência da “política” de segurança pública do governo, que, segundo dados divul-gados em janeiro, é responsável pelo aumento de 94% do número de ho-micídios registrados no Estado em 2008, especialmente na região me-tropolitana, onde a morte em “con-fronto” com a polícia virou rotina.

Carnaval cariocaFamiliares de vítimas da violên-

cia policial e entidades de direitos humanos estão dando todo apoio para o desfi le do Grêmio Recreativo Escola de Samba Corações Unidos do Amarelinho, de Acari, que vai apresentar, no dia 24 de fevereiro (terça-feira de Carnaval), na Mar-quês de Sapucaí, o enredo “Um ato de Amor e Rebeldia por Uma Pátria Livre”, que fala das revoltas popula-res no Brasil. Força total!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Eduardo Sales de Lima da Redação

EM DEZEMBRO de 2008 foram fe-chados 655 mil postos de trabalho, o pior resultado desde 1999. E se de-pender dos grandes empresários, esse número vai aumentar. Como alternativa à crise, o patronato ten-ta convencer os trabalhadores a re-duzir a jornada de trabalho com di-minuição de salários e sem garantia de manutenção do emprego.

As propostas dos empresários para enfrentar a crise fi nanceira mundial, e que afeta diretamente o Brasil, foram consensuadas em reunião realizada dia 14, na Fede-ração das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), entre diversos representantes patronais como o próprio presidente da Fiesp, Pau-lo Skaf, e Roger Agnelli, presidente da Vale, que no fi nal do ano passa-do demitiu 1.300 funcionários em todo o mundo.

Os patrões querem reduzir a jor-nada e salário em até 25%. Pro-põem que os contratos possam ser suspensos em até cinco meses, e que, nesse período recebam so-mente o seguro-desemprego. Júlio Turra, membro da executiva nacio-nal da Central Única dos Traba-lhadores (CUT), considera cínica a ação encabeçada por Skaf. “A Fiesp está com uma atitude provocadora ao dizer que a garantia de empre-go é o mercado que determina. E é o mercado que determina mesmo, por isso que o mundo está nessa crise ”, ironiza Turra.

E os empresários vão além. Não querem aceitar a exigência de con-trapartidas por parte do governo que tenha como objetivo a manu-tenção dos empregos em troca das ações que benefi ciaram as empre-sas neste momento de crise, como a desoneração de impostos e o au-mento das linhas de crédito ofere-cidas por Banco do Brasil, Caixa

da Redação

As negociações entre centrais sindicais e patrões estão suspen-sas. O ponto que impossibilitou o diálogo foi a proposta dos empre-gadores de reduzir a jornada mais o salário. Dentre as centrais sindi-cais, Conlutas e Central Única dos Trabalhadores (CUT) não aceita-ram sequer discutir a pauta de re-dução de salários.

A CUT se posicionou rechaçan-do qualquer demissão e propondo a estabilidade no emprego, libe-rando a redução constitucional da jornada máxima de trabalho para 40 horas semanais sem redução dos salários e com limitação das horas extras.

O advogado especialista em di-reito trabalhista Magnus Facatti, explica que a redução do salário é permitida pela Constituição Fe-deral, mas apenas mediante um acordo coletivo dos trabalhado-res. Ele explica que o artigo séti-mo, inciso quinto, fi xa como prin-cípio que o salário não pode ser re-duzido, salvo disposto em conven-ção ou acordo coletivo pelo sindi-cato da categoria e com a aprova-ção dos trabalhadores em assem-bléia. Ou seja, qualquer decisão desse tipo só pode ser assinada com a aprovação de uma assem-bleia geral dos trabalhadores.

Facatti, entretanto, diz que após reduzir jornada e salário, “recupe-rar as condições que foram perdi-das é sempre mais difícil. O que não quer dizer que seja impossí-vel, até porque nesse exemplo do acordo e da convenção coletiva há um prazo de validade que não po-de exceder a dois anos”, pondera o advogado. Para ele, resta saber se o empregador vai retornar às con-dições originais ou criar obstácu-los para negociar em outras bases essa retomada dos contratos.

da Redação

Diante das 802 demissões ocorridas em janeiro, uma das fi -liais da General Motors no Bra-sil, a de São José dos Campos (SP), argumenta que a queda nas vendas, sobretudo no mês de de-zembro, foi um dos principais fa-tores para a dispensa em massa de trabalhadores.

A empresa não mencionou, en-tretanto, que viveu em 2008 seu 84º ano e melhor ano no Brasil. De acordo com Luiz Carlos Pra-tes, diretor do Sindicato dos Me-talúrgicos de São José dos Cam-pos (SP), a GM remeteu boa parte de seu lucro para sua matriz, nos Estados Unidos.

A GM do Brasil tem 1,5 bilhão de dólares de investimentos em cur-so. Por isso, segundo Prates, a em-presa teria condições de manter os funcionários mesmo que tives-se uma queda mais acentuada nas vendas. Além disso, Jaime Ardila, presidente da empresa no Brasil e no Mercosul, já informou publica-mente que mais 1 bilhão de dóla-res serão aportados até 2012.

Assim, mesmo lucrando e com investimentos a todo o vapor, a montadora se caracteriza, a exem-plo de outras, como uma empre-sa que desrespeita o trabalhador. “Ela condicionou que as leis tra-balhistas fossem fl exibilizadas pa-ra manter os investimentos em sua fábrica aqui em São José dos Cam-pos (SP). Agora, ela demite e man-tém ainda os investimentos. Isso é uma contradição e mostra que fl e-xibilização não garante emprego”, argumenta Prates.

Econômica Federal e Banco Nacio-nal de Desenvolvimento Econômi-co e Social (BNDES).

“Mão livre”Dados da Associação Nacional

dos Fabricantes de Veículos Auto-motores (Anfavea) revelam que em 1998 foram produzidos 1,6 milhão de veículos. Dez anos depois, o nú-mero chegou a 3,2 milhões. “Onde fi cou esse dinheiro dos lucros das montadoras? Essas empresas, que além de tudo são multinacionais, têm gordura para queimar”, defen-de Turra.

Para o dirigente da CUT não há motivos para que os direitos traba-lhistas sejam fl exibilizados e haja demissões, sobretudo no setor au-tomobilístico, que só em dezembro demitiu 3.200 trabalhadores. Ape-sar da queda de produção no fi nal do ano, o setor bateu recorde histó-rico de carros produzidos.

No entanto, segundo Turra, isso não refl etiu em melhorias para os trabalhadores. Além disso, acres-centa, nenhuma medida de prote-

ção ao emprego ocorreu de fato até agora, porque isso não faz parte da natureza do sistema. “Eles querem fi car com mão livre para demitir e buscar acordos de fl exibilização de direitos, para impor banco de ho-ras”, explica.

Para Luiz Carlos Prates (Man-cha), diretor do Sindicato dos Me-talúrgicos de São José dos Cam-pos (SP) e da coordenação nacio-nal da Conlutas, os empresários tentam hoje impor um “arrocho sobre os trabalhadores para ga-rantir a mesma margem de lu-cro das empresas antes da crise”. O sindicalista defende que a luta contra as demissões e a fl exibiliza-ção dos direitos trabalhistas preci-sam estar juntas, porque “o preço do arroz, do feijão, do aluguel, da mensalidade escolar, todos esses, não vão diminuir”.

Trabalho e poder de compraPor pensarem a curto prazo, os

empresários, além de prejudicar individualmente o trabalhador e sua família, causam danos à so-

ciedade como um todo e, em con-seqüência, ao seu próprio negócio, num jogo contraditório e inerente ao próprio sistema capitalista, ex-plica o presidente do Conselho Re-gional de Economia do Rio de Ja-neiro, Paulo Passarinho.

Para ele, na crise, a variável do trabalho é logo vista como uma maneira de cortar despesas. “Se is-so obedece uma lógica dentro do universo microeconômico empre-sarial, sob o ponto de vista da ma-croeconomia e do interesse da so-ciedade, é muito nocivo, porque ao operar demissões representa a per-da de capacidade de consumo por parte daquele trabalhador que per-de o emprego e da sua família”, ex-plica o economista.

Passarinho acredita que o im-pacto das demissões, por fi m, re-cai também sobre as próprias em-presas, que fi cam impedidas de vender mais e auferir lucros. Nesse sentido, o economista defende que a principal ação dos empresários num momento de crise econômi-ca deva ser a manutenção do em-prego sem nenhuma fl exibilização e a criação de novos postos de tra-balho. “Para atacar a crise em su-as raízes, exige-se um maior poder aquisitivo dos trabalhadores. Des-sa forma, garantir e ampliar os em-pregos é fundamental”, avalia.

Mesmo se declarando pessimista em relação ao governo Lula no âm-bito da política macroeconômica, Passarinho acredita que mudan-ças ainda podem ser operadas. “É necessário, acima de tudo, que se rompa o domínio dos bancos em relação ao sistema fi nanceiro para que o emprego e a produção inter-na sejam favorecidos. Para tanto, é preciso não somente reduzir a taxa de juros de forma substantiva, mas haver uma redução muito forte do spread bancário”, explica. Além disso, Passarinho vê também como essencial o controle de fl uxo de ca-pitais para enfrentar a crise.

Demissões e redução salarial aprofundam a crise econômicaTRABALHO Reduzir a jornada com diminuição de salários e sem garantia de manutenção do emprego: essas são as propostas dos empresários apenas para piorar a crise

Júlio Turra, membro da executi-va nacional da CUT, vê a proposta da Federação das Indústria do Es-tado de São Paulo (Fiesp), de sim-plesmente reduzir jornada e salá-rios, como contraproducente em relação à crise global. “A própria Força Sindical foi forçada a aban-donar essa tentativa de acordo, porque pegou mal”, pondera. Tur-ra reforça que não foram os traba-lhadores que fi zeram a crise e por isso não podem pagar por ela. “A Força Sindical, lamentavelmente, serviu para eles como balão de en-saio ao aceitar o rebaixamento dos salários”, critica.

Por sua vez, o presidente da Cen-tral dos Trabalhadores e Traba-lhadoras do Brasil (CTB), Wagner Gomes, considera que o presiden-te da Fiesp, Paulo Skaf, “passou de provocador à cara-de-pau”, por ter afi rmado que não é possível garan-tir o emprego, mesmo com salá-rios reduzidos. Mas Gomes afi r-mou ao Brasil de Fato que, nu-ma conversa entre o presidente da Força Sindical, Paulinho da Força, e o próprio Skaf, no dia 15, o últi-mo já teria sido convencido de que a saída não era reduzir o salário do trabalhador. “Se forem redu-zidos os salários, põe-se gasolina na crise; produz menos, o traba-lhador compra menos e a empre-sa demite mais”, completa o presi-dente da CTB.

O integrante da coordenação na-cional da Conlutas, Luiz Carlos Pra-tes, vê o atual momento como fun-damental para articular a resistên-cia em cada empresa. Da CUT, Jú-lio Turra é categórico: “Ameaçou facão, para!”, referindo-se às de-missões em massa praticadas por empresas sob argumentos de cri-se mundial. Reforçando a tese de unidade dos trabalhadores, o presi-dente da CTB, Wagner Gomes, con-clui: “na unidade a luta já é brutal, imagine divididos”. (ESL)

Ele afi rma que a maioria das montadoras fi rmam contratos com prazo determinado para par-te dos trabalhadores, e criam as-sim uma mão-de-obra com um custo menor de demissão. Tanto que a maior parte de 802 funcio-nários demitidos tinham esse tipo de contrato.

Prates explica que, pela legisla-ção trabalhista, se a pessoa é de-mitida sob a vigência desse tipo de contrato, ela só tem direito a Fun-do de Garantia e a metade do valor dos salários até a data que compre-ende o término do contrato.

IlegalEntre os 802 demitidos está Ro-

naldo Garcia. Afastado desde o dia 12 de agosto de 2008 por aciden-te de trabalho, adquiriu seis lesões em cada ombro devido ao esforço repetitivo na empresa. “Conside-ro um desrespeito muito grande. Eu conheço outros companheiros que também estavam afastados e foram demitidos por telegrama”, conta Ronaldo, que recebeu o te-legrama no dia 13 de janeiro.

Ronaldo afi rma não esperar mais nada da empresa: “Ela co-nhece muito bem minha ativida-de e, sinceramente, não teve ne-nhum respeito comigo”, comple-ta. Em 2007, por meio do con-trato por prazo determinado, foi para o setor de usinagem e a empresa prometeu que após um ano de contrato iria efetivá-lo. “A quantidade de dezes que eu su-bia na máquina e a quantidade que tinha que descer era o equi-valente a 1.500 peças produzi-das”, lembra.

O advogado Magnus Faccati, especialista na área trabalhista, explica que quando o emprega-do está afastado para tratamento de saúde, o contrato fi ca suspenso para todos os fi ns e efeitos de di-reito. Para ele, portanto, essa de-missão é ilegal. (ESL)

“Ameaçou facão, para!”Sindicalistas prometem mobilização e defendem unidade na luta para fortalecer trabalhadores

Após bater recorde de lucro no Brasil, GM despede 802Empresa se aproveita da fl exibilização dos direitos trabalhistas para demitir

Antônio Cruz /Agência Brasil

Principais centrais sindicais participam da 5ª Marcha da Classe Trabalhadora

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mente em Paris e temia, já na-quela época, por sua vida, caso fosse extraditado. Além disso, Battisti constituíra família e já era pai de duas fi lhas.

O então presidente francês François Mitterrand (1981-1995) tinha dado asilo a to-dos os italianos, antigos ex-tremistas dos anos de 1960-1970 que tivessem abandona-do a luta armada e se integra-do na sociedade. Para Battisti, sua participação durante dois anos no movimento Proletá-rios Armados pelo Comunis-mo era coisa passada, da qual se desligara havia tempo. Mas sua fuga e ausência, deixando folhas em branco assinadas com o advogado, tiveram um preço – um dos dirigentes do movimento lançou sobre ele (ausente) a responsabilidade e a autoria de quatro crimes. Em consequência, julgado à revelia, foi condenado a pri-são perpétua. Com base nes-sa condenação, o governo Ja-cques Chirac ignorou a prote-ção dada por Mitterrand e ini-ciou o processo de extradição. Faltavam apenas dois meses para Battisti adquirira nacio-nalidade francesa, pois havia iniciado um processo de na-turalização.

Battisti foi obrigado a fugir pouco antes de ser extradita-do e desapareceu. Para Fred Vargas, que se tornara líder do movimento em favor de Bat-tisti, começou um longo perío-do de tortura psicológica. Sua casa foi visitada diversas vezes por agentes secretos franceses para instalação de microfones, seus telefones e computadores foram grampeados. Como sus-peitasse de um carro sempre parado na sua rua, Fred mu-dou de apartamento, mas logo reapareceu, no seu novo ende-reço, o mesmo furgão de an-

de 22 a 28 de janeiro de 2009 7

brasil

Rui Martins

“ITÁLIA AMEAÇA o Brasil”; “Ministro brasileiro das Re-lações Exteriores discorda do ministro da Justiça”; “Gover-nador de São Paulo esquece seu passado de exilado”; edi-torialistas da grande mídia co-mercial ignoram que o Brasil é uma nação soberana e assu-mem as dores do governo ita-liano. Todos esses títulos mos-tram que a decisão do minis-tro Tarso Genro de dar refúgio ao ex-extremista italiano Ce-sare Battisti provocou um ver-dadeiro terremoto.

O caso é quase inédito – um presidente italiano interpela e protesta junto ao nosso pre-sidente contra uma decisão de um ministro brasileiro, en-quanto um ministro, também italiano, ameaça o Brasil de “retorsões”, retaliações. Desde a época do presidente Floria-no Peixoto (1891-1894), nun-ca se tinha visto tal quebra de protocolo e afronta. Na época, Floriano respondeu aos embai-xadores estrangeiros, apoiados por uma frota ancorada perto da Guanabara, que discorda-vam da proclamação da Repú-blica, que os receberia “a bala”.

Como o caso não chega a ser tão grave, só motivado pela ar-rogância de um país europeu que confunde o Brasil com a Abissínia dos anos de 1930, a resposta de Lula à carta do presidente italiano poderia ser apenas um “pro lixo”, depois de devidamente amassada.

Esta informação é ainda inédita – teria si-do um plano prepara-do por bandidos inte-ressados em ganhar di-nheiro com o caso Bat-tisti ou alguma coisa mais séria, envolven-do serviço secreto de algum país interessa-do em tumultuar o ca-so Battisti e evitar uma decisão do ministro Tarso Genro?

Como num autênti-co romance policial, um membro do Comitê de Defesa de Battisti foi contatado, nos últimos dias de dezembro, por um advogado que pro-punha um rápido habe-as corpus para Battisti, aproveitando o recesso do STF e alegando con-tatos infalíveis, mas que seria necessário bastan-te sigilo.

Se fosse paga uma certa importância (a so-ma não era astronômi-ca), Battisti seria liber-tado no fi m de semana e Fred Vargas deveria ir ao Rio de Janeiro para se encontrar, já na ma-nhã de segunda-feira, com Battisti.

Fred percebeu a cila-da, mas quis pagar pa-ra ver. Assim, entregou ao seu advogado Luiz Eduardo Greenhalgh nome e conta bancá-ria autênticos e ainda o CPF do estranho con-tato, cujo número de OAB era falso. Inclusi-ve um documento falsi-fi cado, com o nome de uma alta funcionária do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A tentativa de seques-tro era evidente. Se Fred tivesse ido ao Rio de Ja-neiro na segunda-feira de manhã, dia 12, teria sido sequestrada. Resta saber a mando de quem.

Certamente isso deve-rá ser apurado. (RM)

A mídia brasileira pouco fa-lou de Fred Vargas, mas sem ela não teria havido o “ca-so Cesare Battisti”. Incansá-vel combatente, foi ela quem criou o primeiro comitê de defesa, na França, e buscou o apoio de políticos, intelectu-ais e da imprensa francesa pa-ra Cesare Battisti.

A missão não foi fácil – a maioria dos líderes do Parti-do Socialista, envolvidos nu-ma séria luta interna, prefe-riu se manter à distância, vis-to ser uma questão que pode-ria provocar controvérsia e funcionar de modo negativo do ponto de vista eleitoral; o jornal Le Monde, logo depois de alguns artigos favoráveis, deu marcha-à-ré. Do mesmo modo agiu a revista Nouvel Observateur. Mas Fred pô-de contar com o apoio do co-tidiano Libération, do jornal l´Humanité, do fi lósofo Ber-nard-Henri Levy e da ex-can-didata à presidência da Fran-ça Segolène Royal.

Embora pouco conheci-da no Brasil, Fred Vargas, de 51 anos, é escritora do gêne-ro policial, bastante conheci-da entre os franceses. Seus li-vros estão entre os dez mais vendidos na França, com mais de 1 milhão de exempla-res, a maioria deles premia-dos e transformados em ro-teiros de fi lmes.

Cientista, arqueóloga do prestigioso Centro Nacio-nal de Pesquisas Científi cas (CNRS), seu nome verdadeiro é Frédérique Audouin-Rouze-au e foi por acaso que come-çou a escrever romances poli-ciais. Assim ela conheceu Ce-sare Battisti, que, nas horas vagas de zelador de um pré-dio em Paris, escrevia tam-bém romances policiais, ativi-dade que já começara quando clandestino no México, depois de ter fugido da Itália.

Ser minuciosa, ela aprendeu com a Arqueologia. Assim, quando a Itália pediu a ex-tradição de Battisti, em 2004, Fred se interessou pelo caso, estudou o processo, foi às fon-tes e concluiu serem verdadei-ras as declarações de inocên-cia de Battisti. Fazia 11 anos que o italiano vivia modesta-

Fred Vargas pediu a Carla Bruni que intercedesse junto ao marido em favor de Battisti

Sem Fred Vargas, Itália já teria o escritor

tes, provavelmente equipado para todo tipo de escuta.

O que antes escrevia en-quanto tramas de fi cção pas-sava a se concretizar enquan-to vida: a polícia achava que Fred sabia onde se escondia Battisti e fazia de tudo pa-ra encontrar uma pista. Até a prisão de Battisti no Rio de Janeiro, foram três anos sen-tindo-se todo tempo seguida e vigiada, o que só agora, com o estatuto de refugiado a Battis-ti, deve terminar.

Fred esteve cinco vezes no Brasil, entre março de 2007 e dezembro de 2008, quan-do constituiu Luiz Eduardo Greenhalgh como seu advo-gado, encontrando-se com políticos, juristas e procuran-do sensibilizar a mídia para o caso. Se o senador Eduardo Suplicy, o deputado Fernan-do Gabeira e o jurista Dalmo Dallari lhe deram apoio desde o primeiro momento, novas adesões à causa foram muito difíceis de conseguir.

Apoiar Battisti – e o minis-tro Tarso Genro experimen-ta hoje essa incômoda situa-ção – poderia ter como con-sequência se tornar impopu-lar, visto as acusações feitas pela Itália, facilmente explo-radas pela mídia comercial e de direita. O papel da revis-ta Carta Capital, dirigida por Mino Carta, foi bastante nega-tivo, pois uma grande reporta-gem por ela publicada, em ju-lho de 2007, mostrava Battisti como um frio assassino.

Ora, considerada como o único veículo com expressi-va infl uência defensor de uma posição política diferenciada, num país em que toda a gran-de mídia comercial é de direi-ta, a Carta Capital circula nos meios de esquerda e chega mesmo a orientar alguns seto-res desse campo. Sua reporta-gem criou a dúvida e provocou uma indecisão em setores de esquerda e, praticamente até a decisão do Conare, era certa a extradição de Battisti.

Foi quando a internet se re-velou novamente, como na primeira eleição de Lula, um instrumento de grande impor-tância e penetração, difundin-do textos por redes, blogs e si-

tes favoráveis a Cesare Battisti. Celso Lungaretti era ponta de lança, Laerte Braga, Luiz Car-los Azenha e Amyra El Khalili foram extremamente ativos.

A página inteira do Brasil de Fato, em meados de de-zembro, justifi cando a neces-sidade do apoio a Battisti, logo depois de um encontro nacio-nal do PT adiando a discussão do tema, teria também fortale-cido a linha esquerda do par-tido. Mesmo porque num con-gresso sobre direitos huma-nos, em Brasília, defi niu-se, nesse mesmo mês, o apoio a Battisti.

Ao mesmo tempo, Fred Var-gas, no Brasil, se encontrou com a esposa do presidente francês Clara Bruni, em visita ofi cial ao país, em companhia do seu marido. Fred pediu à senhora Sarkozy para que in-tercedesse junto ao marido em favor de Battisti, do mes-mo modo como fi zera com Marina Petrella, a brigadis-ta perdoada in extremis pelo presidente francês. Com efei-to, Sarkozy transmitiu a Lula a mensagem de que a França se desinteressava do caso Battis-ti, colocando-o no mesmo pla-no que Marina Petrella, asse-gurando que o governo fran-

cês não reagiria se o Brasil acolhesse Battisti.

Do lado italiano, a pressão era forte. O embaixador em Brasília pediu e obteve seis au-diências com o ministro Tar-so Genro e não baixava guarda ao perceber que a ala esquerda do PT abandonava a indecisão e começava a assumir uma po-sição fi rme no sentido de ga-rantir refúgio para Battisti.

Um argumento era forte em favor de Battisti: a Itália não reagira quando a França de Sarkozy perdoara a brigadis-ta Petrella e, por certo, não iria ser diferente com Battisti, que pertencera a um grupo peque-no, não envolvido em mortes de personalidades. Esperava-se uma decisão de Tarso Gen-ro durante as festas do Natal e Fim de Ano. Como nada foi anunciado, pensou-se o pior. Foi quando Fred recebeu um e-mail de Marco Aurélio Gar-cia, secretário especial da pre-sidência para Assuntos Inter-nacionais, informando que o ministro ia lhe comunicar sua decisão no dia 15 de janeiro, mas que acabou sendo toma-da no dia 13.

Quando Fred Vargas soube da boa notícia, já era madru-gada em Paris. (RM)

No Rio, o sequestro programado de Vargas

O que os editorialistas bra-sileiros, entreguistas, funcio-nários de uma imprensa sem brio e sem cheiro de patrio-tismo, não perceberam, ao to-mar as dores italianas no caso Cesare Battisti, é que a decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, é soberana.

O Brasil tem de ser tratado pela Itália com o mesmo res-peito com que foi a França, quando seu presidente Nicolas

Sarkozy perdoou, “numa deci-são humanitária”, Marina Pe-trella, ex-membro da Brigada Vermelha que participara de diversos atentados e mortes.

A Itália não gostou mas não piou, engoliu em seco, apesar de Sarkozy haver, anterior-mente, praticamente prome-tido essa extradição ao atual premiê italiano, Silvio Berlus-coni, especialista em driblar a Justiça do seu país.

Por que mostrar ago-ra os dentes ao Brasil, que no passado acolheu tantos imigrantes italianos e ou-tros considerados anarco-sindicalistas indesejáveis por suas posições políticas? Aliás, hoje a Itália, dirigida por Berlusconi, rejeita nos-sos trabalhadores imigran-tes numa prova indecente de retorno a valores do perí-odo do Duce.

Recado ao governo italia-no: a época dos colonizado-res já passou, e o Brasil (como qualquer país) tem de ser res-peitado. Nesse caso, respeita-do também como um grande país emergente.

Recado aos coleguinhas en-treguistas, travestidos em ins-petores Javert “sedentos de Justiça”: podem discordar do ministro da Justiça, mas as-sumir as dores de um país es-

trangeiro, ignorar nossa so-berania, é traição, ainda mais quando essa atitude implica desumanidade e total falta de compaixão e solidariedade.

Vitória da ala esquerdaA decisão de Tarso Genro

de conceder refúgio a CesareBattisti foi justa, digna e cora-josa e pode também ser con-siderada histórica, porque as-sinala a vitória política da es-querda petista, que compu-nha o governo sempre de for-ma subjugada.

Apesar das gesticulações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), querendo questionar uma decisão do ministro Gen-ro, ela já foi respaldada pelo presidente Lula, e é defi nitiva.

É claro que algumas racha-duras vão fi car – por que o mi-nistro Celso Amorim, um dos mais ativos e respeitados do governo, queria a extradição de Battisti, como já havia de-monstrado no Comitê Nacio-nal para os Refugiados (Cona-re)? Para contar com o apoio futuro, mas duvidoso, da Itá-lia, mesmo se tivesse de en-tregar na bandeja um homem cuja culpa não foi provada?

E por que o governador José Serra, ex-exilado, também se distanciou da decisão de Gen-ro? Mera tática política e elei-toreira, mas que implicaria no sacrifício de um antigo mili-tante que clama inocência?

Rui Martins é jornalista brasileiro radicado em Berna, na Suíça.

Um terremoto chamado Cesare BattistiSOBERANIA Concessão de refúgio para escritor italiano expõe arrogância de governantes europeus e entreguismo da burguesia

Tarso: alvejado pela Itália, STF e direita, mas com respaldo de Lula

Fabio Rodrigues Pozzebom

Fred Vargas: mobilização pela liberdade de Battisti

Reprodução

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de 22 a 28 de janeiro de 20098

cultura

Gershon Knispel, radicado no Brasil, nasceu em Koln, na Alemanha, em 1932. Aos três de idade, foi com os pais para a Palestina, fugindo do nazismo. É artista plástico e militante na luta contra a ocupação da Palestina pelo exército de Israel.

Quem é

Patrícia Benvenutida Redação

EM COMEMORAÇÃO aos 25 anos do Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Terra (MST), o artista plástico Ger-shon Knispel criou 15 séries de quadros intituladas Os Ca-maradas. Compostas por 24 obras de 1,20 m de altura por 1,80 m de largura cada, as sé-ries retratam tragédias e lutas populares ao longo da histó-ria, como o massacre dos be-duínos, o Holocausto, a dita-dura militar no Chile e a ques-tão do desemprego, entre ou-tros acontecimentos. As obras, que também têm assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer, devem ser expostas nas gale-rias de arte mais famosas de todo o mundo. Em entrevis-ta ao Brasil de Fato, o artis-ta plástico, de origem judaica, fala sobre a ofensiva israelense na Faixa de Gaza, a inspiração para as séries, a importância do MST e o papel da arte para reformar o mundo.

Brasil de Fato – Qual sua relação política com os palestinos e com o governo de Israel?Gershon Knispel – Como cidadão de Israel, uso meus esforços para fazer de tudo para mudar a situação injus-ta dos cidadãos árabes no pa-ís, que são diferentes dos pa-lestinos, mas também estão enfrentando situações bem chatas. Por exemplo, quando houve um massacre em 1976 no qual foram mortas seis crianças – duas eram minhas alunas –, um companheiro e eu decidimos fazer um monu-mento que se chama Dia da Terra. Esse massacre aconte-ceu em 30 de março e, desde essa data, são feitas celebra-ções que se chamam “Dia da Terra”, com milhares e milha-res de árabes. Depois, foi feita uma grande exposição dedi-cada a esse monumento. São exemplos de como trabalha-mos junto a palestinos e ára-bes. Nós fi zemos isso como dois artistas plásticos que re-presentam dois povos e acre-ditamos que o povo palestino também merece o seu Estado, ao lado do Estado de Israel.

Em 1980, eu encabeçava a União dos Artistas Plásticos em Israel e três artistas plás-ticos palestinos me falaram que as autoridades militares na Cisjordânia ocupada não deixavam eles fazerem expo-sições. Daí decidimos que eles fariam essas exposições em nossas galerias em Tel Aviv e Jerusalém. E foi realmen-te um ato muito forte, como um grande protesto, que vi-rou uma coisa simbólica. De-

pois disso, começamos, 15 ar-tistas plásticos, pintores, po-etas de Israel, junto com 15 dos mais importantes artistas plásticos e expositores pales-tinos, a fazer encontros, a ca-da duas semanas, uma vez em Tel Aviv, outra em Jerusalém oriental, para fazer um docu-mento que fi ncasse a base da paz entre os dois povos. Esse documento está comigo, nós o assinamos em 1988, e ele foi a base do acordo que depois foi levado a Oslo e também assi-nado em Camp David.

O que é ser um artista hoje? E, sobretudo, o que é ser um artista assumidamente engajado?

Você fala em artista engaja-do, mas eu não posso me di-vidir. Desde os meus estudos na Academia de Artes em Je-rusalém, entre 1949 e 1954, eu realizava a grande ideia do meu famoso professor Ardon Mordechai. Tinha relações muito especiais com ele, que sempre me pediu para pin-tar e desenhar tudo que eu estivesse vendo em torno de mim. Ardon falava: “Veja as pessoas nas ruas, veja a dife-rença das classes, veja os di-ferentes grupos étnicos, uma parte tem vida melhor, ou-tra parte tem vida pior”. Is-so me acompanha até hoje. Ele sempre queria ver os re-sultados. Daí até ser um pin-tor engajado é uma coisa na-tural, porque você está aberto a qualquer acontecimento so-cial em torno de si.

É evidente que, nessas úl-timas décadas, museus em grandes capitais, como No-va York, Paris e, ultimamen-te, também Berlim, estão fa-zendo de tudo para esquecer todos esses grandes artis-tas plásticos engajados, que realizaram obras sobre este mundo injusto que a gente está encontrando. Eles pre-feriam dar força para esses pintores formalistas, con-ceptualistas, artistas do ví-deo ou até mesmo minima-listas. Hoje, por exemplo, a gente fala de Diego Rive-ra como o marido da Frida Kahlo, por exemplo. E a Fri-da Kahlo fi ca como a grande estrela, e o Diego, completa-mente esquecido.

Por que esse esforço das galerias para esconder esse tipo de obra?

Porque eles têm medo des-sas pinturas. Lembram que Diego Rivera fez um grande afresco no Centro Rockfeller dedicado a Lênin, Marx, e eles tiraram isso. Eles têm medo das coisas que atingem tam-bém a massa. Queriam que as coisas fi cassem fechadas nos museus, para as camadas so-ciais mais ricas. E os outros vão ser esquecidos.

O que você acha mais importante, enquanto mensagem, para todos aqueles (especialmente os jovens) que se dedicam às artes plásticas?

Lembre a fala do Niemeyer que aparece em cada gravu-ra, dedicada a acontecimentos mundiais: “O mais importante não é a arquitetura, mas a vi-da, os amigos e este mundo in-justo que devemos modifi car”. Quer dizer que, seguindo essa ideia de Oscar, eu acho que a gente vai achar o mundo intei-ro. Por exemplo, Goya fez es-ta pintura enorme, O Massa-cre, que vai viver para a eter-nidade. Picasso fez Guernica, que foi a sua mais importante pintura. Nós já tínhamos con-dições de esquecer completa-mente esse massacre dos ale-mães que ajudaram Franco a bombardear essa aldeia bas-ca. Só que a pintura de Picas-so levou esse período da Guer-ra Civil a uma altura que nin-guém mais vai esquecer. Eu acho que essas são coisas às quais devemos nos dedicar. Não sei se alguém vai chegar à altura do Picasso, mas tentar fazer coisas que mudem o seu mundo, em qualquer lugar onde a gente esteja. Eu quero dar a ideia a cada um de nos-sos jovens que não esqueça de apontar o lápis, pegar o pincel e a tinta e pintar, desenhar tu-do que encontrar. Aí você vai pegar o caminho certo.

Você fez essa série de trabalhos com o título

geral de Os camaradas para o MST. Nela aparecem os mais diversos assuntos, como o massacre dos beduínos, massacre dos palestinos, o Holocausto, o desemprego, a ocupação da USP etc. Qual o motivo dessa escolha de subtemas?

Oscar fala em modifi car este mundo injusto. Essa foi a fa-la dele, e eu utilizei isso e os desenhos dele que estavam na parede do seu escritório na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Utilizei tudo isso nessas gravuras, junto com ele. Então, para modifi car es-te mundo injusto, é preciso sa-ber, realmente, que mundo a gente quer modifi car. Por is-so nós escolhemos eventos que foram signifi cativos, co-mo massacres e coisas terrí-veis que quebram todos os di-reitos humanos. Então peguei a entrega da Olga Benário pe-lo Getúlio nas mãos da Gesta-po, toda essa 2ª Guerra que foi terrível, o Holocausto de um lado, a defesa formidável dos soviéticos em Stalingrado, que foram os únicos que con-seguiram parar os nazistas de continuar a guerra deles.

Do seu ponto de vista, qual a importância do MST hoje? E o fato de estar completando 25 anos?

Cheguei ao Brasil pela pri-meira vez em 1958 e tive sor-te, porque vim justamente quando Fidel e Che Guevara entraram em Havana. E nós achamos que, enfi m, chegava o momento no qual o sonho da América Latina iria se rea-lizar. E que as reformas agrá-rias – que começaram no iní-cio do século com líderes fa-mosos no México, como Za-pata e Pancho Villa – iriam se espalhar em todos os paí-ses da região. Nós nunca en-tendemos essa pobreza pe-la qual passa o povo brasilei-ro. Daí começamos a traba-lhar dentro do Centro Popular de Cultura (CPC), com todos os meios de expressão que a gente tinha, mas chegou o gol-pe de 1964, quando Oscar e eu fugimos. Por isso, eu acho que nesses 25 anos de atividade do MST, ele virou o principal mo-

vimento e o mais importante do Brasil. Precisamos cuidar dele com todos os meios que temos para que consiga rea-lizar todo o sonho que tínha-mos de reforma agrária.

Na série Os camaradas é recorrente (e quase onipresente) a mão espalmada com as veias abertas – escultura de Niemeyer que se encontra no Memorial da América Latina, em São Paulo (SP). Mais do que isso, o Niemeyer também assina essa sua série de gravuras. Por quê?

A série foi inspirada em fi -chas de desenhos que Oscar fez na parede dele e já desapare-ceram. Esse é o único meio de lembrar isso, incluindo o sím-bolo dos sem-terra, junto com os dois membros da família e uma criança do lado, e embai-xo a fala “A terra é nossa”. Essa foi a idéia do Oscar, de pôr es-ses desenhos que eu fi z em Je-rusalém no tempo que eu esta-va lá, em 1964. Ele me pediu para fazer um desenho da ve-lha Jerusalém oriental, e eu fi z uma série. Daí ele lembrou e disse: “Leva essa série de Jeru-salém e põe em cima dela esse monumento meu dos sem-ter-ra, aí a gente vai entender que o monumento não só se justifi -ca como sendo do movimento sem-terra, ele signifi ca a mes-ma coisa no mundo inteiro”. E, assim, a gente faz a cone-xão dessa famosa e brilhante luta da terra em paralelo com essa luta terrível. Olha o quan-to ela custou ultimamente. Nessas últimas três semanas, são mais de 1,3 mil mortos na Palestina. É natural que a mão que se levanta protestan-do, do Oscar, no Memorial, vá se levantar contra qualquer crime contra a humanidade.

Por que a escolha da gravura enquanto linguagem? Qual o papel, em sua obra e em sua concepção, da gravura e das técnicas possíveis de reprodução?

Arte para “não deixar esquecer”MEMÓRIA E RESISTÊNCIA Artista plástico produz séries de gravuras sobre tragédias e lutas populares históricas

Da esquerda para direita: “A solução fi nal, 1943-1945”, “Olga Benário entregue aos nazistas e assassinada” e “Chacina dos palestinos”

Gostamos desse meio de ex-pressão, a gravura, porque ela simplifi ca a difusão de nossas ideias para todo mundo. Tam-bém há a possibilidade de fa-zer uma obra de arte que qual-quer um possa receber. Nós não queremos que nossos tra-balhos sejam enterrados den-tro de um museu, dentro de galerias, porque somente pou-ca gente vai conseguir man-ter contato com eles. Quere-mos que tudo isso fi que como um patrimônio do público in-teiro. Como artista, decidi me dedicar a essas formas de ex-pressão para manter conta-to com camadas sociais dife-rentes. Algumas camadas so-ciais querem esquecer certos eventos, mas nós queremos que eles sejam lembrados pa-ra sempre, como esse “Dia da Terra”, em Israel.

Fale um pouco sobre a atual ofensiva do governo de Jerusalém contra Gaza.

Junto com seu aliado Geor-ge W. Bush e os governos eu-ropeus que aceitaram consi-derar o Hamas como uma or-ganização terrorista e atravésde provocações mútuas, con-seguiram criar áreas de con-fl ito e Israel aproveita seuexército armado, com arma-mento do mais sofi sticado do mundo, contra 1,5 milhãode palestinos que se encon-tram em uma panela de pres-são, num espaço que não pas-sa de 30 quilômetros quadra-dos. Jogam bombas de fósfo-ro branco e mísseis, atacamde navios pelo mar e os pa-lestinos têm somente mísseisprimitivos, de fabricação ca-seira, que quase sempre nãoatingem seu alvo – são arre-messados para áreas abertas.

Quiseram se adiantar à en-trada de Barack Obama na Ca-sa Branca e iniciar o massacre, que matou, na maior parte, ci-dadãos inocentes – até agora, foram mortos 45 guerrilhei-ros do Hamas, na sua maio-ria refugiados das guerras de 1948 e 1967 que fugiram ou foram retirados de suas ter-ras e, já há algumas gerações, vivem uma vida de cachorro, em habitações precárias mui-to piores do que as favelas queconhecemos.

Eles têm medo das coisas que atingem também a massa. Queriam que as coisas fi cassem fechadas nos museus

Os palestinos têm somente mísseis primitivos, de fabricação caseira, que quase sempre não atingem seu alvo

credito

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internacional

Danilo Darada Redação

“SIM, NÓS podemos”, o slo-gan da campanha de Barack Hussein Obama para a pre-sidência dos Estados Unidos talvez tenha sido a frase mais escutada no país – e no mun-do – ao longo dos últimos meses, completamente im-pregnado pela bilionária dis-puta eleitoral na nação mais rica e poderosa do planeta.

E a posse do primeiro pre-sidente negro dos EUA, de-pois dos 43 brancos (!) que o antecederam, não poderia ser diferente: talvez a mais espetacular da história das chamadas democracias mo-dernas. As cerca de 2 milhões de pessoas que estiveram em Washington, e os bilhões que a acompanharam ao redor do globo, seguiram sendo bombardeados, com exces-so de pirotecnias, pela mes-ma mensagem da campanha. Agora, após o entreato de no-vos bombardeios israelenses contra o território palestino – apoiados pela Casa Branca –, de maneira renovada. Com destaque para duas palavras-chaves repetidas e reiteradas inúmeras vezes durante to-do o evento: “esperança” de “mudança”.

Tendo como principal pa-no de fundo os profundos impactos da crise econômica mundial – impulsionada jus-tamente pelo colapso do mer-cado fi nanceiro e imobiliário estadunidense –, o novo pre-sidente, alçado a popstar, transformou o seu primei-ro discurso em uma verda-deira conclamação patriótica para o longo enfrentamen-to de “mais essa difi culdade” colocada às novas gerações dos Estados Unidos. “Hoje, eu lhes digo que os desafi os que enfrentamos são reais. São sérios e são muitos. Eles não serão resolvidos facil-mente ou em um curto perí-odo de tempo. Mas saiba dis-to, América, eles serão resol-vidos […]. O mundo mudou e precisamos mudar com ele”, afi rmou o presidente recém-empossado.

Slogan de LulaE, por falar em “mudança”,

uma das coisas que deve ter chamado a atenção dos bra-sileiros no primeiro discur-so de Barack foram as seme-lhanças, algumas vezes lite-rais, com o discurso de pos-se de Luiz Inácio Lula da Sil-va, há mais de seis anos, num país periférico como o Brasil. Dizia o atual presidente bra-sileiro na ocasião, de manei-ra involuntariamente ante-cipadora: “Mudança; esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da socie-dade […] nas eleições de ou-tubro. A esperança fi nalmen-te venceu o medo, e a socie-dade decidiu que estava na hora de trilhar novos cami-nhos. Diante do esgotamen-to de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produ-ziu estagnação, desemprego e fome; [...] diante do impas-se econômico, social e moral do país, a sociedade escolheu mudar e começou, ela mes-ma, a promover a mudan-ça necessária. Vamos mu-dar, sim. Mudar com cora-gem e cuidado, humildade e ousadia”.

Um discurso construído milimetricamente por mar-queteiros também desde a campanha eleitoral, que caiu como uma luva para o primeiro retirante nordesti-no eleito para o cargo máxi-mo da nação. Mas que no ca-so periférico brasileiro não foi exatamente o que se con-cretizou nos anos seguintes.

Obama, o primeiro presi-

Elaine Tavares

O presidente George W. Bush deixa a Casa Branca depois de oito anos de uma desastrosa (para nós) atua-ção. É claro que para os ban-queiros, milionários, mega-empresários e os mercená-rios de plantão não houve presidente melhor. Ao longo desses tristes anos ele pro-vocou guerras, empantur-rou as burras da indústria de armas, manipulou o ta-buleiro da geopolítica ao bel prazer das armas, da violên-cia e do que o estadunidense John Perkins chamou de as-sassinos econômicos. Assim, o que não conseguiu com seu exército armado, garantiu na dependência econômica. Tu-do isso, é claro, com a coni-vência das elites entreguistas dos países onde meteu o na-riz. Os traidores estão sem-pre prontos a entregar suas almas a troco de algum pu-nhado de dólares.

Não bastasse isso, no inte-rior dos Estados Unidos tam-bém aprontou das suas. Em nome da segurança nacio-nal, depois do 11 de setembro – que muita gente boa diz ter sido provocado pelas agên-cias secretas do próprio país – aboliu direitos individuais, acabou com o habeas corpus, instituiu a caça às bruxas e

Autocrítica“Nossa economia está gravemente enfraquecida,

uma consequência da cobiça e da irresponsabilida-de de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era. Lares foram perdidos; empregos, cortados; empresas, fechadas. Nosso sistema de saúde é caro demais; nossas escolas falham para muitos; e cada dia traz novas evidências de que os modos como usa-mos a energia reforçam nossos adversários e amea-çam nosso planeta.”

Sobre as guerras“Vamos começar de maneira responsável a deixar o

Iraque para sua população e forjar uma paz duramen-te conquistada no Afeganistão. Com antigos amigos e ex-

“Escolhemos a esperança acimado medo”, afi rma também ObamaESTADOS UNIDOS Semelhança entre o discurso do novo presidente estadunidense com o de Lula é marcante

anunciou uma guerra sem trégua contra o “terrorismo”, leia-se aí, qualquer povo que não aceite o domínio dos Es-tados Unidos. Destruiu paí-ses, matou gente, tudo base-ado em mentiras.

Assim, o encerramento de seu mandato não poderia ter sido mais paradigmático. Pa-ra agradecer aos chacais que garantiram seu domínio so-bre os “de abajo”, ofereceu a Medalha Presidencial da Li-berdade, a mais alta conde-coração do país, a três dos seus mais importantes alia-dos: Tony Blair, da Inglater-ra; John Howard, da Austrá-lia; e o latino-americano Ál-varo Uribe, da Colômbia.

Para os latino-americanos essa medalha é uma provo-cação. Condecorar o pre-sidente colombiano – res-ponsável pela ocupação do país por tropas estaduni-denses, terrorismo de Esta-do, violência, crimes de to-da ordem – com uma meda-lha que leva o nome de “li-berdade” é tripudiar sobre todo um povo. “Esses ho-mens foram responsáveis por levar esperança e liber-dade aos povos”, disse Bush. Sim, é verdade. Esperança e liberdade para os empresá-rios da construção civil que estão “re-construindo” (?) o Afeganistão e o Iraque. Es-perança e liberdade para os

donos das indústrias de ar-mas, de alimentos, e até de fi ltro solar. Enfi m, esperan-ça e liberdade para os mes-mos de sempre, que têm do-minando o planeta apoiados na força dos canhões.

No caso da América Lati-na, a presença maciça dos marines e dos treinadores de soldados na região amazôni-ca é uma clara ameaça para a segurança das gentes. O go-verno da Colômbia foi, nes-ses anos de Bush, um fi el ser-vidor, um vassalo escrupulo-so que não hesitou em assas-

sinar e desalojar sua gente para garantir o domínio es-tadunidense na região. Ser-ve de base para a espiona-gem à Venezuela, à Bolívia e ao Equador, o qual atacou numa ação de guerra, com a desculpa de buscar “terroris-

tas” das Farc. Assim, do pon-to de vista do poder, nada mais justo do que espetar o peito desses criminosos com medalhas de mérito.

Agora, os Estados Uni-dos terão um novo presiden-te. Mas, pelo que se vê, nada de novo acontecerá. A polí-tica imperialista seguirá seu curso, e os servos de plan-tão já preparam suas baju-lações. O ataque genocida à Gaza, o silêncio dos gover-nantes – com raras exceções – mostra que nada mudou. A única esperança de liberdade para os que estão sob as bo-tas continua sendo a orga-nização e a luta renhida. No mundo dos “felizes”, como diria Wittgenstein, as meda-lhas vão para os assassinos. Já no nosso mundo, o único metal que nos chega ao pei-to é a bala dos matadores. Por isso há que recuperar o ódio, “o ódio são, aos vilões do amor”, como dizia o poeta Cruz e Souza.

Não é à toa que uma or-ganização de direitos civis dos Estados Unidos, a Wa-shington Peace Center, pro-mete exigir, durante a posse de Obama, a prisão de Bush como criminoso de guer-ra. “Prendam Bush” é o gri-to de guerra de uma mino-ria valente que se expressa lá dentro, nas entranhas do im-pério. Mas não há dúvida de que o presidente Obama fará ouvidos moucos.

O que resta é a luta. Com sapatos, poemas e balas.

Para acompanhar a bata-lha dos estadunidenses pela prisão de Bush, basta acessar a página na internet http://arrestbush2009.com.

Elaine Tavares é jornalista.

dente afro-americano dos EUA, chegou a utilizar o mesmo jargão de Lula, qua-se literalmente: “Neste dia, estamos reunidos porque es-colhemos a esperança acima do medo, a unidade de obje-tivos acima do confl ito e da discórdia”. E, assim como o presidente brasileiro, ressal-tou muito a importância da criação de empregos e de no-vas condições para a econo-mia crescer: “Para todo lu-gar aonde olharmos há tra-balho a ser feito. A situação da economia pede ação ou-sada e rápida, e vamos agir – não apenas para criar no-vos empregos, mas deposi-tar novas bases para o cres-cimento”. Veremos se o fi l-me se repetirá, agora em es-cala imperial.

LiberalismoSeguindo a longa tradi-

ção estadunidense, Obama exaltou muito as fi guras dos “pais fundadores” da nação e os valores liberais que fun-damentalmente a movem: “nossa jornada nunca foi de tomar atalhos ou de nos conformar com menos. Não foi um caminho para os fra-cos de espírito – para os que preferem o lazer ao trabalho, ou buscam apenas os praze-res da riqueza e da fama. Fo-ram, sobretudo, os que as-sumem riscos, os que fazem coisas – alguns célebres, mas com maior frequência homens e mulheres obscu-ros em seu labor – que nos levaram pelo longo e aciden-tado caminho rumo à pros-peridade e à liberdade”.

Ao mesmo tempo, diante da crise, teceu críticas à atu-ação desmedida e desregu-lada dos mercados, sinali-zando que deverá aumen-tar relativamente os meca-nismos de controle dos capi-tais. No entanto, sempre de uma perspectiva fundamen-talmente liberal: “Tampou-co enfrentamos a questão de se o mercado é uma força do bem ou do mal. Seu poder de gerar riqueza e expan-dir a liberdade é inigualável, mas essa crise nos lembrou que, sem um olhar vigilante, o mercado pode sair do con-trole – e que uma nação não pode prosperar por muito tempo quando favorece ape-nas os prósperos”.

Nesse contexto, Bush não poderia ser poupado. Nem pelo seu sucessor, de manei-ra um pouco mais comedi-da, nem pela massa presen-te à posse, esta que o vaiou bastante. Ao menos no que se refere à atual situação dos serviços e seguridade social do país; à postura (religio-sa e fundamentalista) fren-te a certas pesquisas cientí-fi cas – como a utilização de células-tronco; e, sobretudo, a violação de direitos huma-nos sob pretexto de ques-tões de segurança (como no Patriot Act), Obama foi en-fático: “quanto a nossa de-fesa comum, rejeitamos co-mo falsa a opção entre nos-sa segurança e nossos ide-ais. Nossos pais fundado-res, diante de perigos que mal podemos imaginar, re-digiram uma carta para ga-rantir o regime da lei e os di-reitos do homem, uma car-ta expandida pelo sangue de gerações. Aqueles ideais ainda iluminam o mundo, e não vamos abandoná-los em nome da conveniência”.

E, realmente, um de seus primeiros atos administrati-vos foi cancelar as chamadas “regulações pendentes” de-terminadas, de última hora, pela gestão anterior. O jogo real entre as mensagens mi-diáticas, slogans construídos e as medidas efetivas de seu governo apenas começava...

O ex-presidente dos Estados Unidos aboliu direitos individuais, acabou com o habeas corpus, instituiu a caça às bruxas e anunciou uma guerra sem trégua contra o “terrorismo”, leia-se aí, qualquer povo que não aceite o domínio estadunidense

Grotesca despedida“Prendam Bush” é o grito de guerra de uma minoria valente que se expressa lá dentro, nas entranhas do império

inimigos, trabalharemos incansavelmente para reduzir a ameaça nuclear e reverter o espectro do aquecimento do planeta. Não pediremos desculpas por nosso modo de vi-da, nem vacilaremos em sua defesa, e aos que buscam im-por seus objetivos provocando o terror e assassinando inocentes, dizemos hoje que nosso espírito está mais for-te e não pode ser dobrado; vocês não podem nos superar, e nós os derrotaremos.”

Papel dos EUA“Para todos os outros povos e governos que nos obser-

vam hoje, das maiores capitais à pequena aldeia onde meu pai nasceu: saibam que a América é amiga de toda nação e de todo homem, mulher e criança que busque um futuro de paz e dignidade, e que estamos prontos para li-derar novamente.”

Confi ra trechos do discurso de Obama em sua posse

Legenda: Cartaz em Washington divulga a posse de Obama. “A mudança começa agora”, diz o anúncio

Reprodução

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internacional

Patrícia Benvenutida Redação

O RECONHECIMENTO do Hamas por parte de Israel co-mo o governo democratica-mente eleito dos palestinos e o direito de retorno dos refu-giados são alguns dos prin-cipais desafi os postos atual-mente para a criação do Esta-do palestino. A avaliação é do historiador Christian Karam, estudioso da História do Islã, do Oriente Médio e do confl ito palestino-israelense. Em en-trevista, ele explica como se deu o Estado de Israel e como a infl uência de outros países tem prejudicado o processo de paz entre os dois povos.

Brasil de Fato – O mundo assistiu estarrecido o terror que o Estado de Israel impõe ao povo palestino. Para entender melhor a origem desse confl ito, o senhor poderia recuperar como se deu a criação do Estado de Israel?Christian Karam – O ter-mo “Sionismo” foi criado em 1885 pelo escritor judeu-aus-tríaco Nathan Birnbaum co-mo uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusa-lém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “Sionismo” basicamente sig-nifi cava uma resposta ao pro-blema nacional judeu que ad-vinha de dois fatos principais: da dispersão judaica em vá-rios países e regiões do mun-do; e da sua constituição, em cada um desses países, como uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos, como era o caso da Europa antissemi-ta do século 19. Assim, a solu-ção sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion”, onde confor-mariam uma maioria popula-cional e uma entidade polí-tico-estatal independente. É nesse espectro que surge o sio-nismo político internacional, fundado pelo jornalista ju-deu-húngaro, Theodor Herzl, na Europa de fi ns do século 19, como um movimento nacio-nalista preponderantemen-te laico e secular que visava à fundação de um Estado nacio-nal judaico.

Após o término da guer-ra, diante do impacto do Ho-locausto nazista, a Inglaterra propôs à Organização das Na-ções Unidas (ONU) a divisão da Palestina entre árabes e ju-deus. Assim, uma vez aprova-da a partilha da Palestina bri-tânica em novembro de 1947, fi cou estabelecido que o Esta-do judeu deveria ocupar 56% do território, enquanto ao Es-tado árabe competiria con-trolar os restantes 43%. Já o 1% remanescente de Jerusa-lém e seu entorno seria colo-cado sob mandato internacio-nal da ONU. Essa divisão res-peitava muito pouco dois fa-tores essenciais: a ocupação das terras e a maioria popula-cional, já que grande parte do território seria controlada pe-la minoria judaica, que soma-va apenas 30%.

Qual o porquê da localização geográfi ca, do lugar escolhido para o Estado de Israel?

Penso que pela simbolo-gia histórica e religiosa que a região da Palestina históri-ca representa no imaginário dos judeus (por mais que is-so tenha sido uma construção histórica idealizada dos sécu-los 19-20), herdeiros da últi-ma grande diáspora que os expulsou dali, aquela perpe-trada pelos romanos no sécu-lo primeiro. Em fi ns do século 19, os sionistas haviam pro-posto a colonização judaica da Palestina otomana, apesar de terem cogitado outras re-giões, como Uganda (na Áfri-ca oriental) e a bacia do rio da Prata, na Argentina.

Assim, se em algum mo-mento do período entre-Guer-ras (1918-1945) especulou-se sobre outro território que não

o da província turca da Pales-tina e, após 1920, aquele da Palestina colonial britânica para a fundação de um Esta-do hebreu, a imigração e a co-lonização em curso compro-varam que a decisão pela Pa-lestina turca já havia sido to-mada, especialmente quan-do, a partir de 1917, a Declara-ção Balfour britânica passou a “ver com bons olhos” a cria-ção de um “lar nacional judai-co” na Palestina turco-otoma-na (de maioria populacional árabe e islâmica). Isso deno-ta o claro apoio à causa nacio-nal sionista por parte do im-perialismo inglês, que plane-java benefi ciar-se da presen-ça de uma terceira força polí-tico-nacional na região, prin-cipalmente em um contexto de guerra contra os alemães e seus aliados na região, os tur-cos.

Qual território deveria ser ocupado pelos palestinos?

Se fossem cumpridas as re-soluções da ONU, o território que o Estado hebreu hoje te-ria de ocupar seria aquele an-terior às fronteiras de 1967, quando, com o fi m da Guer-ra dos Seis Dias, Israel inva-diu e passou a ocupar ilegal-mente a Faixa de Gaza (então parte do Egito), a Cisjordânia e Jerusalém Oriental (então pertencentes à Jordânia) e as colinas de Golã (eram da Sí-ria). Desse modo, o território que hoje constituiria o Estado de Israel seriam aproximada-mente 70% da Palestina britâ-nica. Em torno de 13% a 14% dessa área foram conquista-dos ao território árabe-pales-tino e anexados como resulta-do da primeira guerra árabe-israelense de 1948-9.

Desse modo, hoje não se fa-la dos territórios que a parti-lha da ONU de 1947 determi-nara para a constituição do Estado árabe-palestino (43%) e do Estado judeu (56%), mas, no caso de Israel, deste per-centual, acrescido da parce-la acima mencionada, que foi conquistada na chamada “pri-meira guerra árabe-israelen-se” de 1948-9, quando inclu-sive Jerusalém, que, pela pro-posta original, seria uma área internacional, teve sua por-ção ocidental anexada por Is-rael, que a declarou como sua capital em 1950, embora sem obter reconhecimento inter-nacional.

Por outro lado, o território que o Estado palestino ocu-paria, caso hoje fosse decla-rada sua criação, não seria mais de 20 a 22% da área da Palestina britânica, se fossem mantidos os enclaves de co-lonos sionistas na Cisjordâ-nia e a ocupação de Jerusa-lém Oriental. Porém, se ocor-resse uma completa desocu-pação por parte de Israel des-sas regiões, então ambos ter-ritórios, somados à retirada unilateral israelense da Faixa de Gaza ocorrida em 2005, te-ríamos os 30% de terras pales-tinas correspondentes aos ou-tros 70% de território israe-lense. Em suma, o Estado da Palestina estaria formado pe-la Cisjordânia, Faixa de Gaza e por Jerusalém Oriental, que o nacionalismo palestino quer ter como sua capital.

A criação do Estado de Israel foi uma proposta da Organização das Nações Unidas. E agora a ONU parece ter perdido o controle sobre a questão. Qual seria a causa dessa “perda de autoridade” ao longo dos anos?

Parece-me que a ONU nun-ca foi um ator politicamente muito ativo na questão, uma vez que suas principais reso-luções, como a que obriga Is-rael a retirar-se dos territórios invadidos durante a Guerra dos Seis Dias, nunca foram implementadas. Além disso, durante a Guerra Fria, quem realmente deu as cartas do jo-go político foram, em nível in-ternacional, os EUA e a URSS e, em nível regional, além de Israel, o Egito, a Síria, o Ira-que e as chamadas “monar-

quias árabes conservadoras” lideradas pela Arábia Saudi-ta. Após a revolução islâmi-ca de 1979, outro importan-te ator político que entra em cena é o Irã. E, com o fi m da Guerra Fria e a dissolução da URSS, os EUA reafi rmam-se enquanto potência interna-cional hegemônica no Orien-te Médio, que é apoiada, im-portante dizer, não somente por Israel, mas cada vez mais, pelos árabes conservadores do Golfo Pérsico, pelo Egito e, em menor medida, pela ala mais centrista da OLP, a Fatah, que, na época, dava sua guina-da à direita.

Os discursos da Fatah e do Hamas parecem denotar diferenças entre os próprios palestinos a respeito da criação de um Estado. Como podem ser resumidas essas diferenças e como elas interferem no processo de paz na região?

Não me parece que os dis-cursos e ações políticas de ambos partidos caracterizam diferenças a respeito da cria-ção do Estado palestino, mas sim demonstram a diversida-de política, ideológica e eco-nômica que permeia a ques-tão, ou seja, que tipo de Es-tado e de sociedade se dese-ja para a população palesti-na. No que se refere à ado-ção de determinado mode-lo econômico e programa po-lítico-ideológico e à formação de alianças regionais e inter-nacionais, Fatah e Hamas di-vergem em vários aspectos. Aquela, oriunda de uma tra-dição da esquerda naciona-lista e terceiro-mundista dos anos de 1960-70, que fl ertou com o nasserismo e o socia-lismo árabe, porém sem nun-ca ter sido comunista, sofreu

uma guinada à direita após o fi m da Guerra Fria nos anos 1990 e, hoje, não contesta o li-beralismo econômico e políti-co dominantes.

O Hamas, por outro lado, surgiu de uma conjuntura de crise política: a Intifada pales-tina de 1987-90. Expulsa do Líbano em guerra em 1982, a OLP, desacreditada e politica-mente enfraquecida para lidar com a questão nacional pales-tina e para lutar contra a ocu-pação israelense de Gaza e da Cisjordânia, verá nascer um importante adversário, po-rém, à época, ainda informal e secundário. O próprio Estado de Israel fomentou e armou o Hamas contra a OLP de Ara-fat e suas facções nacionalis-tas laicas de tradição esquer-dista, a fi m de dividir o mo-vimento nacional palestino, e também para tentar lidar com um novo grupo político que fosse mais fraco e, portanto, menos exigente quanto às de-mandas nacionais palestinas. Inicialmente, o Hamas se abs-teve de realizar ataques aber-tos contra Israel. Porém, em pouco tempo, isso mudou, e o Hamas assumiu um impor-tante protagonismo na resis-tência e no nacionalismo pa-lestinos, ainda numa fase em que sua ideologia e ação po-lítica poderiam ser conside-radas conservadoras ou “fun-damentalistas”. Porém, es-pecialmente após as primei-ras crises do processo de paz dos anos 1996-2000, o Hamas vem assumindo grande parte da ação política e social entre as classes sociais mais pobres e marginalizadas da sociedade palestina, que a Fatah, quan-do no poder, relegou ao se-gundo plano, em parte devido ao próprio “aburguesamento” liberal e à corrupção de vários de seus quadros.

A respeito da interferência dessas divergências políticas e econômicas que existem en-tre a Fatah e o Hamas no pro-cesso de paz com Israel, cos-tuma-se afi rmar que um dos principais empecilhos seria o não-reconhecimento ao di-reito de existência de Israel por parte do Hamas. De fa-to, em algum momento o Ha-mas terá de repensar a ques-tão e emitir uma declaração formal que reconheça o Es-tado hebreu, embora já te-nha havido vários posiciona-mentos informais nesse sen-tido por parte de algumas li-deranças. Por outro lado, ini-migo que não se reconhece é aquele contra o qual não se luta. E, nesse sentido, a ex-periência histórica prova que, embora informalmente, Isra-el e o Hamas têm se relacio-nado, mesmo que na maioria das vezes seja para divergir e combater entre si. Da mes-ma forma, Israel, assim como os EUA e a União Europeia, precisam reconhecer formal-mente o Hamas como partido político e movimento social legítimo da sociedade palesti-na, que o elegeu democratica-mente como seu representan-te no parlamento e no gover-no, a fi m de que se possa par-tir de um diálogo em um ní-vel pelo menos política e juri-dicamente igualitário.

Que outros desafi os poderiam ser citados para a criação de um Estado palestino?

Outros importantes desa-fi os, que preferiria chamar de direitos palestinos inalie-náveis, são: a questão dos re-fugiados (de três a quatro mi-lhões) espalhados em diversos países do Oriente Médio; a de-claração de Jerusalém Orien-tal (uma vez desocupada por Israel) como sede da capi-tal palestina; a determinação precisa das fronteiras da Pa-lestina, tanto com Israel quan-to com os demais países vizi-nhos (Egito e Jordânia); a sus-pensão da construção e a pos-terior destruição do muro que Israel hoje constrói na Cisjor-dânia, inclusive anexando ter-ritório palestino, mais conhe-cido por “Muro da Vergonha”, que somente serve para se-mear mais segregação entre os dois povos; e, o principal de todos, a retirada total e in-condicional de Israel e de su-as tropas e colonos da Cisjor-dânia e da Faixa de Gaza, que

seria o retorno às fronteiras de 1967. Nesta questão, é preciso mencionar Gaza, pois, em-bora tenha havido, em 2005, a desocupação unilateral de que falávamos, Israel segui-damente viola o espaço aéreo de Gaza e realiza incursões militares terrestres na região. Da forma como a imprensa e a mídia burguesas têm abor-dado esta última crise ocorri-da em Gaza, parece que o Ha-mas resolveu pôr um fi m à tré-gua e atacar Israel sem quais-quer motivos, quando, na ver-dade, Israel se retirou apenas formalmente da Faixa de Ga-za em 2005, pois nunca dei-xou de invadir a região e, in-clusive, imiscuir-se nos assun-tos de política interna do go-verno do Hamas, isso sem fa-lar no fato de que nunca o re-conheceu como representan-te político legítimo dos pales-tinos de Gaza, pois foi demo-craticamente eleito por estes em 2006.

Em relação ao tema dos re-fugiados e seu direito de re-torno, a solução da questão é bem mais complexa, uma vez que estes reivindicam re-tornar para as áreas que su-as famílias ocupavam quando da criação de Israel em 1948, o que poderia acarretar nu-ma incursão em massa de pa-lestinos ao atual território is-raelense. Ainda que essa so-lução fosse implantada, não creio que a maioria dos pa-lestinos que vive na diáspora exerceria esse direito de retor-no, pois muitos já possuem la-ços sociais, familiares e profi s-sionais em outros países. Po-rém, se esse direito de retorno fosse concedido, ele deveria ser conferido a todos os des-cendentes dos refugiados de 1948 sem restrições. Parece-me que uma solução diplomá-tica intermediária seria que se procedesse à retirada incondi-cional de Israel da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental e, as-sim, através da proclamação de um Estado palestino, o di-reito de retorno talvez pudes-se ser exercido nessas regiões e em Gaza.

Na sua avaliação, qual é o peso da questão religiosa nesse confl ito?

A questão religiosa mui-tas vezes serve como pretex-to para encobrir fi ns políticos e econômicos. Para mim, es-tá muito claro (e a maioria dos pesquisadores do tema afi rma isso) que o problema é de or-dem nacional e, portanto, re-quer soluções políticas e eco-nômicas de ambos os lados. Assim, volta-se à questão so-bre em que tipo de Estado a sociedade palestina quer vi-ver. E a resposta dada nas úl-timas eleições, que conduzi-ram o Hamas ao poder, parece ser a rejeição do projeto políti-co-econômico liberalizante da Fatah e de parte da OLP, bem como a desaprovação de práti-cas de corrupção na condução da Autoridade Nacional Pales-tina, associadas ao fracasso do processo de paz dos anos de 1990 e à irrupção da Segun-da Intifada em 2000. A tese equivocada de que o “funda-mentalismo islâmico” – e, no caso palestino, o Hamas seria, segundo o senso comum, seu representante – abriga os ide-ais da maioria das sociedades muçulmanas do mundo é um profundo erro. Em termos po-lítico-ideológicos e econômi-cos, talvez ainda não seja pos-sível determinar com precisão aquilo que o Hamas e seu pro-grama político realmente re-presentam, porém a estraté-gica política de luta e alguns de seus ideais os fazem assu-mir um papel dissonante da-quele da globalização neolibe-ral. Em geral, hoje se diz que o dilema político dos EUA e da Europa no Oriente Médio é ter de escolher entre o apoio a muitas ditaduras militares de direita ou esquerda (po-rém laicas e seculares) e o res-paldo a governos adeptos de um programa político-religio-so islamista/fundamentalista (porém cada vez mais eleitos democraticamente).

Origens da guerra entre Israel e PalestinaENTREVISTA Para o historiador Christian Karam, a questão religiosa muitas vezes serve como pretexto para encobrir fi ns políticos

Fotos: Amir Farshad Ebrahimi

Cenas da destruição na Faixa de Gaza

Garoto palestino observa estrago feito por ataque israelense

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de 22 a 28 de janeiro de 2009 11

internacional

Clara Politi

A PRIMEIRA vez que me de-parei com uma barreira que dizia “Não pode, você é ju-dia” foi ainda nos primeiros anos do curso primário, nu-ma escola pública de um vi-larejo chamado Hernanda-rias, no Estado de Entre Rios, na Argentina. Em meados dos anos de 1950, era uma tradi-ção nas pequenas cidades do interior que, na comemora-ção do fi m do ano escolar, o/a melhor aluno/a da classe le-vasse a bandeira nacional pa-ra que o padre da paróquia lo-cal a benzesse. Eu tinha sido naquele ano designada para levá-la e me aprontei para is-so. Ao chegar à porta da igre-ja, no entanto, o diretor da es-cola aproximou-se de mim e, tirando a bandeira de minha mão, pediu que esperasse fo-ra do recinto da igreja.

Meu pai era comunis-ta, nunca havia sequer fa-lado conosco de religião ou de judaísmo. Apenas sabía-mos que éramos judeus por-que nosso sobrenome era di-ferente dos demais.

Desde aqueles dias, não pa-rei de pensar na discrimina-ção como um fator de isola-mento entre as pessoas e os povos. Como não tive expli-cações em casa, comecei a ler sobre o que era o “povo ju-deu” de que tanto se falava, e ao qual as pessoas se referiam quando olhavam para mim.

A primeira coisa que vi é que havia alguma distinção fundamental, e que era pre-ciso estudar. Percebi que os que nasciam num “lar judeu e religioso” não tinham a mes-ma inquietação: eles não ti-nham o que explicar a si mes-mos, iam às sinagogas duran-te as festas religiosas e isso, para eles, era “ser judeu”.

O difícil era poder dizer: “sou socialista/comunista, sou ateu e também sou judeu”.

E a partir dos anos de 1970, mais difícil ainda era po-der afi rmar: “sou judeu, sou socialista/comunista e sou a favor da paz entre árabes e judeus”.

A questão nacional e a luta de classes

Lendo os ideólogos da cria-ção do Estado de Israel (The-odor Herzl, Meir Dizengoff, A. D. Gordon, entre outros) encontrei a clara evidência de que aqueles que ideologica-mente se identifi cavam com os partidos socialistas fala-vam claramente da formação de um Estado onde pudes-sem conviver judeus e ára-bes. Também me tranquili-zou saber que muitas discus-sões sobre a “Questão Judai-ca” tiveram como protago-nistas grandes líderes da Se-gunda Internacional, como Lênin, Rosa de Luxemburgo e outros que publicaram en-saios a respeito.

Dov Ber Borojov, talvez o mais consequente dos intelec-tuais socialistas que lidaram com esse problema, foi o pri-meiro a conceber, no seu livro editado em 1905 A questão nacional e a luta de classes, o povo judeu como uma na-ção em pé de igualdade com as demais nações do mundo e sua necessidade de autodeter-minação, para o que era im-prescindível um território on-de se estabelecer.

A esse respeito, Borojov nos diz que as classes trabalhado-ras árabes e judias tinham in-teresses comuns na luta con-tra o colonialismo inglês e a exploração nas terras da Pa-lestina, e podiam (e deviam) conviver em paz. Ele escre-ve: “Quando as terras impro-dutivas forem preparadas pa-ra o cultivo, quando comece-mos a aplicar novas técnicas de produção e quando ambos os povos desenvolvam a terra da Palestina, haverá sufi cien-te terra para que judeus e ára-

bes nela habitem: nesse mo-mento as relações normais entre judeus e árabes preva-lecerão”. (Eretz Yisrael in our Program and Tactics, edita-do em 1917).

A guerra fria joga por terra a Declaração de Balfour

Como acontece muitas ve-zes na história, a natural e gra-dual evolução política-ideoló-gica dos povos judeus e ára-bes acabou sendo “atropela-da” por fatores externos.

A complexidade da coloni-zação da Palestina por dois povos e duas nações distin-tas (tal como havia sido pre-visto na Declaração Balfour, de 1917) acabou sendo levada de roldão pelas trágicas conse-quências de uma guerra mun-dial que não somente ceifou a vida de milhões de pessoas de todas as raças e credos, fru-to de uma ideologia racista e discriminatória, como tam-bém deu origem a uma nova divisão do mundo. A criação do Estado de Israel em 1948 é fruto dessa nova partilha en-tre Oriente e Ocidente que ca-racterizou o mundo pós-guer-ra e deu início ao que se co-nheceu como a “guerra fria”.

Apesar disso, e certamen-te ainda movidos pela dou-trina “borojoviana”, os par-tidos de esquerda (Mapam e Mapai), que assumem a van-guarda do novo Estado du-rante os primeiros 30 anos de sua existência, insistiam na tese de que “‘Os palesti-nos’ não existe. Somos todos palestinos”. Desde os tempos dos fi listeus e depois durante o Império Otomano, a Pales-tina era uma parte do Orien-te Médio onde sempre convi-veram judeus, árabes cristãos e árabes muçulmanos.

A criação da OLP e a virada de 1964

Esse conceito utilizado até 1964 muda quando se cria, pela Liga Árabe, a Organiza-ção para a Libertação da Pa-lestina (OLP). No seu docu-mento de criação, a OLP usa, pela primeira vez, o termo pa-lestino referindo-se somente aos árabes que vivem na re-gião e não aceitam ter docu-mentação israelense, distin-guindo-os daqueles árabes que, também vivendo na re-gião, aceitaram a nacionali-dade israelense. Uma situação nova e complexa.

Essa situação se agra-va ainda mais quando o rei-no da Jordânia, criado qua-se ao mesmo tempo que o Es-tado de Israel, não aceita que

aqueles palestinos que não optaram pela cidadania is-raelense se transfi ram para o seu território. Como se is-so não bastasse, no momen-to em que a OLP decide inva-dir pela forca o território jor-daniano, ocorre uma guer-ra que termina com o gran-de massacre que se conheceu como “Setembro Negro” (em 1971). Não se pode esquecer que, nessa guerra entre jor-danianos e palestinos, a Jor-dânia é ajudada pela Síria e pelo Iraque.

Como resultado desse mas-sacre, e diante da passivida-de dos governos árabes da re-gião, o povo árabe palestino não tem outra alternativa se-não a de se refugiar na faixa entre a Jordânia e Israel (que passa a se chamar Cisjordâ-nia), na Faixa de Gaza e no sul do Líbano. Enquanto isso, os dirigentes e líderes da OLP se refugiam no Marrocos.

Depois da chamada Guer-ra de Yom Kipur (1973) e dos sucessivos confl itos bélicos na região, começam a surgir gru-pos pacifi stas e de esquerda que começam a pensar que, para pôr termo ao confl ito que produz vítimas quase que constantemente, de ambos os lados, era necessária a criação de um Estado palestino, que deveria conviver pacifi camen-te ao lado do Estado de Isra-el. A ideologia que move esses grupos, se bem que não seja a mesma que moveu os adeptos da teoria borojoviana do iní-cio do século 20, trata de ade-quar-se a uma nova realidade não somente geográfi ca e po-lítica, mas também subjetiva/psicológica dos povos envolvi-dos no confl ito.

Dos anos de 1980 até o presente, uma nova virada de página

Não podemos esquecer que entre os anos de 1980 e o iní-cio do século 21, novamente fatos históricos atropelaram as idéias da paz para a região e mudaram a realidade do dia-a-dia dos povos que ali vivem. Se, por um lado, a assinatu-ra dos acordos de Camp Da-vid tinha dado um alento para a perspectiva da paz e da co-existência pacífi ca de dois Es-tados, outros fatos – tais como o surgimento de organizações mais radicais que a OLP e os ataques terroristas nos anos de 1980; a invasão sangren-ta do Líbano pelas forças mi-litares de Israel em 1982; ou ainda o fracasso da gestão de Yasser Arafat como presiden-te da entidade palestina re-conhecida como única inter-

locutora resultaram na situa-ção de hoje.

A liderança da OLP, mergu-lhada em práticas corruptas, viu-se rapidamente desafi ada por uma nova força política, bem mais radical, que ganhou as eleições na Faixa de Ga-za – o Hamas. Israel desocu-pou em 2005 os territórios de Gaza e Cisjordânia, isolando-se, construindo muros e esta-belecendo novos controles em fronteiras para impedir que os palestinos passem ao seu ter-ritório. O Hamas, não reco-nhecendo o Estado de Israel, estabeleceu como prioridade sua eliminação, lançando fo-guetes a partir de Gaza con-tra as cidades do sul israelen-se. Em resposta, Israel decre-tou para os habitantes de Ga-za um severo bloqueio econô-mico. Como os palestinos, de-vido à exiguidade do território em que vivem e a situação eco-nômica de total dependência, têm poucas fontes de traba-lho, a maioria da população começou a ver minguar o su-primento de suas necessida-des vitais, como trabalho, saú-de e alimentação. Isso só ali-mentou o círculo vicioso que leva à miséria e, desta, ao de-sespero, fonte de recrutamen-to para os fundamentalistas radicais do Hamas. Não se pode esquecer que Gaza so-breviveu, nos últimos anos, com base na ajuda de outros países árabes e do Irã, assim como da ajuda humanitária internacional.

Todo esse panorama termi-na com a atual agressão de Is-rael contra os líderes do Ha-mas, e contra os habitantes da Faixa de Gaza, ação que pare-ceria ter o beneplácito ou pelo menos a conivência de todos. “Israel tem que proteger seus habitantes e o Hamas é um agressor” – para tanto, não importa a que preço. As vias e mecanismos diplomáticos são interrompidos e só se escuta o som dos bombardeios.

Uma notável resistência dentro e fora de Israel

No entanto, é preciso notar e não esquecer que, apesar de toda a censura da mídia isra-elense, existe uma notável re-sistência por parte de grupos dentro e fora de Israel com re-lação à ocupação de Gaza pelo Estado de Israel. Essa resistên-cia é levada a cabo tanto por ci-vis – em importantes manifes-tações dentro e fora do territó-rio israelense, como por solda-dos que, negando-se a servir em Gaza, preferem enfrentar a prisão a participar da matança indiscriminada de inocentes.

Vamos relatar alguns exemplos dentro do territó-rio de Israel.

Para o Partido Comunista, o importante é que existe uma oposição interna

O Partido Comunista de Is-rael (PCI) manifesta que to-dos os dias existem ativida-des nas ruas das grandes ci-dades de Israel e da Cisjor-dânia em protesto contra a guerra. Dov Khenin, mem-bro do Parlamento pelo parti-do Hadash e dirigente do Par-tido Comunista, em entrevis-ta à jornalista Amy Good-man, no programa Democra-cia Agora, declarou:

“Bom, o mais importan-te é que estamos perceben-do que existe uma oposição dentro de Israel que se ma-nifesta contra a guerra e con-tra tudo o que acontece atu-almente em Gaza. Essa po-sição é Judio-Árabe. Na noi-te do sábado, dia 3, uma mo-bilização em Tel Aviv reuniu 2 mil jovens, a maior par-te judeus, e há muitas ma-nifestações em todo o terri-tório de Israel, de judeus e árabes, contra a atual políti-ca de guerra do governo. Es-sa oposição está crescendo constantemente. É muito im-portante saber disso e enten-der que existem outras vozes na sociedade israelense que se opõem à guerra e acredi-tam que outra situação en-tre israelenses e palestinos é possível” (para assistir, aces-se: http://www.fuerzasocialistaantv.org/fuerzaantv/index.php?option=com_content&view=article&id=3:en-israel-salieron-150-mil-personas-a-las-calles-para-protestar-contra-la-masacre-en-gaza).

O socialista Meretz e os ativistas do Paz Agora

O partido político Meretz (http://www.meretzusa.org) expressou também seu repú-dio à guerra e condenou a per-seguição aos parlamentares árabes por expressarem no Parlamento a oposição à inva-são da Faixa de Gaza.

O grupo pacifi sta Paz Ago-ra pede uma solução diplomá-tica para o confl ito e alega que essa nova guerra não elimina a insegurança no sul de Isra-el, nem debilita as forças do Hamas. Ao contrário, inten-sifi cam os bombardeios e as matanças indiscriminadas de adultos e crianças e fazem a população odiar cada vez mais fortemente o Estado de Israel.

Um de seus principais ati-vistas e fundador do grupo,

o escritor conhecido inter-nacionalmente Amos Oz es-creveu – ainda em feverei-ro 2008 – um artigo premo-nitório, no qual afi rma: “Rai-va, impaciência e frustraçãoestão cada dia mais presen-tes entre o povo de Israel. Noentanto, não podemos cair naarmadilha que nos preparamos dirigentes do Hamas – deque deveríamos mandar nos-sos soldados a Gaza...”.

O Bloco da Paz e seu professor Ury Avnery

Finalmente, vejamos o que pensa um outro grupo quetem grande participação nasmanifestações de protes-to contra a invasão de Ga-za, o Gush Hashalom (Blo-co da Paz). Um de seus prin-cipais ativistas é Ury Avnery,professor universitário e ex-membro do Parlamento isra-elense. Seus integrantes, tan-to em suas declarações escri-tas como durante as manifes-tações que promovem, afi r-mam claramente estaremconvencidos de que a atualinvasão de Gaza se deu ex-clusivamente em função daspróximas eleições em Israel,no mês de fevereiro.

No dia 3, em manifestação na cidade de Haifa, o profes-sor Ury Avnery leu um longo poema, do qual extraímos al-gumas estrofes:

Eles nos chamam de traidores Eles nos acusam de destruir Israel Eles nos qualifi cam de criminososMas nós dizemos a eles: Criminosos são aqueles que começaram Esta guerra criminosa e desnecessária

Uma guerra desnecessária Porque era possível parar os Quassams (*) Se o governo parasse o bloqueioDe um milhão e meio de habitantes de Gaza

Uma guerra criminosa porque, acima de tudo,É aberta e desavergonhadamenteParte de Ehud Barak e Tzipi LivniCampanhas eleitorais

Acuso Ehud Barak De explorar os soldados do nosso Exército Para obter mais assentos no Knesset

Acuso Tzipi LivniDe querer matanças indiscriminadas Para tornar-se Primeira Ministra

Acuso Ehud OlmertDe encobrirPodridão e Corrupção Com uma guerra desastrada

Conclamo desta tribunaEm nome de toda esta corajosa e decente multidãoParem a Guerra de imediato!Cessem com o derramamento de sangue Dos nossos soldados e de civis sem sentidoParem com o derramamento de sangueDos habitantes de Gaza

(...)

Milhões de pessoas ao redor do globo estão com vocês, agora,Observando-os e saudando cada um de vocês.Como Ser Humano,Com israelenseComo um amante da pazEstou eu também Orgulhoso de estar hoje aqui

(*) Foguetes disparados a partir de Gaza.

Clara Politi é administradora de ONGs, judia, socialista e lutadora pela paz mundial.

O atual confl ito na Faixa de Gaza ea reação dos judeus amantes da pazMASSACRE NA PALESTINA A resistência aos ataques também parte de partidos e organizações de dentro do Estado de Israel

Judeus realizam manifestação na cidade de Londres, Inglaterra

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Page 12: Edição 308 - de 22 a 28 de janeiro de 2009

de 22 a 28 de janeiro de 200912

américa latina

Fernanda ChavesCorrespondente do Brasil

de Fato em La Paz (Bolívia)

PRAÇA Triangular, domingo, dia 18, por volta de meio-dia. Após uma manhã de chuva forte, com direito à graniza-da, que lavou o céu de La Paz e abriu passagem para um sol escaldante, aos poucos sur-gem dezenas de carros enfei-tados com adesivos e bandei-ras, além de milhares de ma-nifestantes que caminharam cerca de 20 quilômetros, des-de as proximidades de El Alto até esta zona central da capital boliviana, mais precisamente no bairro de Mirafl ores.

Uníssonos pelo SIM, os ma-nifestantes pertenciam a di-versos movimentos sociais, partidos políticos e outros grupos, além de setores in-dependentes que defendem a aprovação do novo texto cons-titucional, que será votado no domingo, 25 de janeiro, em referendo nacional.

SocializaçãoSocializar o conteúdo da

nova Carta tem sido esforço prioritário do governo e de movimentos que apoiam o SIM. Até nas farmácias a No-va Constituição é exposta na vitrine em sua versão inte-gral e vendida pelo equivalen-te a R$ 1 ou R$ 2, dependendo do tipo de encadernação. Pe-las ruas, o texto compatibili-zado, impresso em papel jor-nal, é massivamente distribu-ído e debatido.

Emilio Gutierrez Colque foi deputado constituinte por La Paz e esteve na manifestação da Praça Triangular. Em sua opinião, a aprovação do no-vo texto constitucional signifi -ca o fi m da exploração do po-vo boliviano. “Todas as políti-cas anteriores foram maneja-das pelo Banco Mundial, pe-

de La Paz (Bolívia)

2008 foi, defi nitivamente, um ano positivo para os bo-livianos. Neste período, o go-verno Evo Morales Ayma de-marcou uma expressiva vi-tória sobre a oposição inter-na, investiu pesadamente em ações sociais e expulsou do país a CIA, a DEA e o embai-xador dos Estados Unidos.

Com a expulsão dos agentes estadunidenses, o governo bo-liviano rompeu um histórico domínio imperialista sobre o país. Philip Goldberg, embai-xador expulso, teve participa-ção decisiva no movimento separatista nos Bálcãs. Na Bo-lívia, junto com a CIA, fecha-va com a a oposição de direita, enquanto a DEA exercia forte infl uência sobre as Forças Ar-madas e a Polícia Nacional.

De acordo com o sociólogo Eduardo Paz Rada, “em mui-tos casos, durante as últimas décadas, os Ministros de Go-verno deveriam receber o ‘vis-to bueno’ do embaixador dos Estados Unidos e ‘ter visto’ de ingresso ao país do Norte para serem nomeados ofi cialmen-te pelo presidente da Repúbli-ca. Somente na gestão do atu-al presidente da Bolívia essas práticas mudaram de maneira radical a partir do questiona-

Desesperada, oposição à nova Constituição faz terrorismoBOLÍVIA No dia 25, novo texto constitucional será votado em referendo nacional. Defensores do NÃO divulgam mentiras como as afi rmações de que a Nova Carta Magna não defende Deus e confronta o presidente Evo Morales com Jesus Cristo

mento que fez e faz Evo Mo-rales em relação às ações de dominação regional dos Es-tados Unidos na América La-tina”, avalia.

Avanços sociaisNo plano interno, o gover-

no boliviano anunciou a con-clusão do Plano Nacional de Alfabetização, que erradi-cou o analfabetismo no país. Resultado do trabalho de 30 meses em associação com os governos de Cuba e Venezue-la: mais de 800 mil pessoas aprenderam a ler e escrever e a Bolívia passou a ser o ter-ceiro país latino-america-no livre desse mal. No cam-po da saúde, a presença dos médicos cubanos resultou em 250 mil atendimentos, 3 mil cirurgias de vista, além de terem entregado cerca de 210 mil óculos de grau pa-ra a parte mais pobre da po-pulação. As medidas motiva-ram inscrições como “Saú-de: antes para poucos, ago-ra para todos”, espalhadas pelos muros de La Paz e El Alto, chegando também em áreas rurais como nos vilare-jos em torno de Tihuanaco. A terceira medida de gran-de impacto social foi chama-da Renda Dignidade, espécie de aposentadoria que remu-nera em Bs 200 (cerca de R$

70) mais de 730 mil anciãos maiores de 60 anos, men-salmente, desde fevereiro de 2008. Desses, mais de 600 mil não tinham qualquer fonte de renda até então, de acordo com o Centro de Do-cumentação e Informação da Bolívia. O investimento na Renda Dignidade, de 205 milhões de dólares, é produ-to da nacionalização dos hi-drocarbonetos.

Derrota da oposiçãoO ano de 2008 também

demarca a expressiva vitó-ria do governo sobre a opo-sição de direita, que durante anos teve a iniciativa políti-ca. O ícone maior dessa alte-ração na correlação de forças aconteceu em setembro, com a prisão do então prefeito de Pando. Leopoldo Fernandez

é acusado de ser o principal mandante do massacre que deixou 20 pessoas mortas e dezenas de feridos, no episó-dio em que Evo Morales obte-ve amplo respaldo da Unasul e a intenção golpista da direi-ta foi neutralizada.

Desse modo, a oposição re-presentada pelas prefeituras de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, os denominados Comi-tês Cívicos, o Senado Nacional com maioria opositora, o Po-der Judiciário e os meios de comunicação de massa foram derrotados. Segundo Eduardo Paz Rada, “esses instrumen-tos obedecem aos latifundiá-rios, às transnacionais petro-leiras e mineiras e aos podero-sos grupos fi nanceiros, em co-ordenação com a embaixada dos Estados Unidos. Essa oli-garquia utilizou todos os mé-

todos para debilitar o governo do Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo Morales, des-de bloqueios e ocupação de instituições até ações armadas com forte conteúdo racista”.

Respaldo popularUm mês antes, em 10 de

agosto, o governo obteve im-portante vitória no referen-do para ratifi car o mandato do presidente e dos governa-dores (prefectos). Além de o povo boliviano ter confi rmado Evo com 67,4%, foram man-dados para casa três gover-nadores oposicionistas: José Luiz Paredes (La Paz), Man-fred Reyes Villa (Cochabam-ba) e Alberto Aguilar (Oruro) garantindo assim ao gover-no do MAS o controle de mais três departamentos, sendo um deles a capital política, La Paz

las grandes empresas e pelo setor fascista radical de Santa Cruz, com o apoio dos Estados Unidos. No dia 25 vamos aca-bar com esse Estado corrupto, excludente e expulsar a máfi a que vive em nosso país”, afi r-ma o pequeno empresário que faz campanha pelo SIM com seu fusca coberto com as co-res da Bolívia.

Direita raivosaEnquanto a campanha pelo

SIM colore a cidade com ma-nifestações bem-humoradas, é difícil perceber o mesmo en-tre os partidários do NÃO. Se-gundo o geógrafo brasileiro

João Laguens, que percorre a Bolívia para acompanhar o momento político da região, o que existe é uma diferença es-tética: “Enquanto a esquerda é movida pelo sentimento de desejo real, a direita atua por dever, um dever raivoso”.

Isso pode ser observado nas campanhas televisivas promo-vidas por entidades como Igle-sias Re-Unidas, Basta Ya, Jo-venes por Bolívia e Comisión Nacional de Defensa de Valo-res y Princípios Cristianos. Há menos de um mês do referen-dum, foram divulgadas peças a partir de premissas falsas, como as afi rmações de que a

nova Constituição não defen-de Deus e confronta o presi-dente Evo Morales com Jesus Cristo. Ao fi nal a mensagem afi rma: “Não seja cúmplice do pecado, vote NÃO”. Isso ape-sar de o artigo 4o garantir que “O Estado respeita e garante a liberdade de religião e de crenças espirituais”.

O tema da propriedade pri-vada também foi bastante ma-nipulado em emissoras de rá-dio e televisão. As mensagens falsas diziam que o novo tex-to permitirá ao Estado expro-priar casas e automóveis de quem possua mais que um desses bens. Tanto repetiram

que certa vez um taxista co-mentou: “Vou votar NÃO por-que minha única fonte de ren-da depois que me aposentar será o aluguel de uma segun-da casa que tenho”. Entretan-to, o artigo 56o afi rma, textu-almente: “A propriedade ur-bana imóvel não está sujeita a reversão”.

AgressõesO caráter raivoso da oposi-

ção de direita também fi ca ex-plícito nas agressões aos par-tidários do SIM. Somente na semana anterior ao referendo foram relatados pelo menos dois casos em La Paz. Um de-

les teria acontecido em El Pra-do, quando dezenas de simpa-tizantes do NÃO agrediram um militante do SIM que es-tava sozinho, segundo um ge-rente bancário que trabalha na região. Outro caso foi o de Rolando Rea, carpinteiro de 31 anos que protestou na Pra-ça Murillo, em frente ao Con-gresso e ao Palácio de Gover-no. Ele afi rma ter sido vítima de agressão por integrantes da União Juvenil Cruceñista no departamento Santa Cruz quando fazia campanha pelo SIM na Praça 24 de Setembro. “Cerca de 400 rapazes chega-ram em caminhonetes, inclu-sive da prefeitura, armados com paus e pedras. Éramos um grupo de vinte manifes-tantes apenas. Sofri agressão na própria carne por manifes-tar uma opinião, isso é crime”, afi rma o militante que reside no Plan 3000, bairro de maio-ria evista e por isso mesmo bastante alvejado pela oposi-ção de direita.

As campanhas deverão se encerrar em 22 de janeiro, três dias antes do referendo. Desde o início do mês as ses-sões eleitorais têm estado lo-tadas de cidadãos dispostos a participar do processo elei-toral como fi scais de mesa ou que simplesmente deseja-vam renovar/validar seus re-gistros. Além disso, tendas de informação foram espalhadas pela capital para que o eleitor pudesse esclarecer suas últi-mas dúvidas. Na cédula de pa-pel, duas perguntas deverão ser respondidas: “Qual o ta-manho máximo da proprieda-de rural: 5 ou 10 mil hectares? E “Você está de acordo com o texto do projeto de Constitui-ção Política de Estado: SIM ou NÃO?” Apesar de ninguém ar-riscar um resultado defi nitivo, a maioria aposta na vitória do SIM, com aproximadamente 70% dos votos.

Bolívia, avanços e desafi os do governo Evo MoralesEm 2008, o governo boliviano demarcou uma expressiva vitória sobre a oposição interna, investiu pesadamente em ações sociais e expulsou do país a CIA, a DEA e o embaixador dos Estados Unidos

(Sucre sedia o Poder Judici-ário). Por outro lado, Rúben Costas, de Santa Cruz, maior opositor de Evo, foi ratifi cado com mais de 70%.

Em outubro, o CongressoNacional se reuniu para dis-cutir o texto da nova Consti-tuição. As sessões vararammadrugadas de um fi nal desemana. Uma grande mar-cha saída de Oruro, há 200quilômetros de La Paz, che-gava com 25 mil pessoas, de-pois de uma semana de ca-minhada, às portas do parla-mento, para pressionar a fa-vor do novo texto. A mobili-zação popular surtiu efeito eos congressistas aprovaram aconvocação do referendo emque a população vai decidir,no dia 25, se a nova Consti-tuição entra em vigor ou não.O texto tem avanços impor-tantes, como a proibição dese privatizar os recursos bá-sicos como energia e água;reconhecimento pleno dospovos indígenas originários;direitos das mulheres e ga-rantia da administração dosrecursos minerais pelo Esta-do boliviano em benefício deseu povo.

Mas, apesar de ter sido um ano extremamente positivo, não se pode dizer que foi per-feito. A oligarquia ainda teve força para negociar a perma-nência, no novo texto consti-tucional, da propriedade pri-vada de grandes latifúndios. Além disso, a direita ainda controla as fi nanças do país, cujas reservas avaliadas em 7,7 bilhões de dólares seguem depositadas em bancos e ins-tituições fi nanceiras dos Esta-dos Unidos e Europa. (FC)

Manifestações em prol da nova Constituição; no alto, à direita, Emílio Gutierez e seu famoso fusca

Fotos: Marcelo Salles

Marcelo Salles

Saldo de 2008: rompimento com o imperialismo e avanços sociais