dossiê - evolução do pensamento geográfico

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o 1.1 - Do conhecimento Acadêmico o 1.2 - Da Disciplina Evolução do Pensamento Geográfico 1.3 - Epistemologia o 1.4 - Da Informação ao conhecimento o 1.5 - Vetor Epistemológico do Conhecimento Geográfico; Epistemologia da Geografia o 1.6 - A escala de análise da Geografia; 2- As Origens e a Essência da Atividade Geográfica: Os Primeiros Geógrafos; 3- As Geografias Pré-Helênicas; 4- Geografia Grega ; 5 - Geografia Romana; 6- Geografias Medievais o 6.1 - Geografia Chinesa o 6.2 - Geografia Muçulmana o 6.3 - Geografia Ocidental Cristã da Idade Média 7 - Os Antecedentes das Escolas Européias e a Universalização da Geografia o 7.1 - Varenius o 7.2 - A Enciclopédia o 7.3 - Kant o 7.4 - Darwin ; 8- A Escola Alemã de Geografia o 8.1 - Humboldt o 8.2 - Carl Ritter o 8.3 - Ratzel o 8.4 - Richthofen o 8.5 - Hettner ; 9 - A Escola Francesa de Geografia o 9.1 - As Geographies Universelles e o pensamento pioneiro de Reclus. o 9.2 - Vidal de La Blache e a Escola Regionalista ; 10 - Principais fundamentos e consequências da Primeira Revolução Quantitativa ; 11 - A Segunda Revolução Quantitativa os Sistemas de Informação Geográfica; 12 - Geografia Radical (ou Teorética); 13 - Geografia Cultural; 14 - A Geografia e a especialização; 15 - Pós-modernidade, Crise Paradigmática e Coexistência de Muitas Geografias

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PUC-Minas Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais PPG-TIE Programa de Ps-Graduao em Geografia: Tratamento da Informao Espacial

Dossi Evoluo do Pensamento GeogrficoVitor Vieira VasconcelosMESTRANDO Setembro de 2008

Sumrio:

1 - Introduo Geral o 1.1 - Do conhecimento Acadmico o 1.2 - Da Disciplina Evoluo do Pensamento Geogrfico o 1.3 - Epistemologia o 1.4 - Da informao ao conhecimento o 1.5 - Vetor Epistemolgico do Conhecimento Geogrfico; Epistemologia da Geografia o 1.6 - A escala de anlise da Geografia

2- As Origens e a Essncia da Atividade Geogrfica: Os Primeiros Gegrafos

3- As Geografias Pr-Helnicas

4- Geografia Grega

5 - Geografia Romana

6- Geografias Medievais o 6.1 - Geografia Chinesa o 6.2 - Geografia Muulmana o 6.3 - Geografia Ocidental Crist da Idade Mdia

7 - Os Antecedentes das Escolas Europias e a Universalizao da Geografia o 7.1 - Varenius o 7.2 - A Enciclopdia o 7.3 - Kant o 7.4 - Darwin

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8- A Escola Alem de Geografia o 8.1 - Humboldt o 8.2 - Carl Ritter o 8.3 - Ratzel o 8.4 - Richthofen o 8.5 - Hettner

9 - A Escola Francesa de Geografia o 9.1 - As Geographies Universelles e o pensamento pioneiro de Reclus. o 9.2 - Vidal de La Blache e a Escola Regionalista

10 - Principais fundamentos e conseqncias da Primeira Revoluo Quantitativa

11 - A Segunda Revoluo Quantitativa; os Sistemas de Informao Geogrfica

12 - Geografia Radical (ou Crtica)

13 - Geografia Cultural

14 - A Geografia e a especializao

15 - Ps-modernidade, Crise Paradigmtica e Coexistncia de Muitas Geografias

Bibliografia

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1 - Introduo Geral

1.1 - Do conhecimento Acadmico

A Academia, para a sociedade humana, pode ser caracterizada por duas funes bsicas:

- Evitar a banalizao, entendida como o nivelamento absoluto dos valores. Envolve saber reconhecer o que e quem especial ou importante, e no que vale a pena se dedicar para o progresso do conhecimento. - Combater o faz-de-conta, ou seja, a postura de fingir estar fazendo uma atividade, interessando-se apenas nas aparncias. Pelo contrrio, a Academia adota uma postura baseada no comprometimento e no esforo pessoal, em que se procura cumprir as metas a que se disps a realizar. O conhecimento exige trabalho, com tempo e dedicao, e no algo como somente intuio ou revelao. H etapas a serem seguidas para se chegar ao conhecimento acadmico; nesse caminho preciso cuidar de seus aspectos tericos, metodolgicos e tcnicos, antes de se elaborar hipteses cientficas.

A Academia d prosseguimento ao trabalho histrico realizado por grandes pensadores. A cada poca, ela permite herdar todo o significativo trabalho acadmico j realizado e, a partir disso, procura dar-lhe um prosseguimento altura. Podemos considerar os mestrandos e doutorandos como um grupo privilegiado, na sociedade, do ponto de vista de serem o grupo em formao para a manuteno da Academia.

1.2 - Da Disciplina Evoluo do Pensamento Geogrfico

A disciplina Evoluo do Pensamento Geogrfico tem importncia fundamental nos cursos de Geografia por duas razes:

- Est voltada para o modo de pensar geogrfico, fornecendo embasamento para a realizao dos trabalhos posteriores. Como um estudo da histria da Geografia, no que tambm acompanha a histria da humanidade, ser estudado, 4

contextualizadamente na histria e no espao, como a concepo de espacialidade de cada poca gerou determinadas propostas de Geografia. A partir do estudo sobre como os gegrafos mais importantes de todos os tempos pensaram esperado que o estudante possa distinguir os contextos epistemolgicos dos trabalhos da Academia, assim como amalgame estas formas de pensar, e construa sua prpria forma de pensar geograficamente.

- Outro motivo, para que esta seja a primeira disciplina do curso, de que um programa voltado ao tratamento das informaes espaciais possui um grande risco de tecnocratizao. Iconoclasticamente, o tecnocrata seria aquele profissional que considera saber tudo e, nesse af de poder, exatamente por isso considera que apenas ele pode fazer o que quiser. Porm, os softwares de tratamento de informao espacial vo passar e transformar-se rapidamente, tornando-se obsoletos, enquanto o pensamento geogrfico acadmico ir continuar atravs dos sculos. Essa disciplina poderia ser considerada, ento, como uma vacina contra a tecnocratizao. Isto no significa que as demais disciplinas da Geografia no possuam reflexes epistemolgicas, mas o predomnio do ensino tcnico poderia acabar no passando o valor essencial da Epistemologia.

A informao sozinha no resolve os problemas, preciso de epistemologia para passar para o nvel do conhecimento, e ir alm do nvel meramente tcnico. Seria possvel produzir mapa sem epistemologia, mas toma-se como certo que, utilizando desta, possvel produzir cartografia com muito mais qualidade. Aprender a pensar geograficamente tanto um pr-requisito para o profissional pesquisador em Geografia, como tambm ser algo que o indivduo levar consigo at o fim de sua vida, nos mais diferentes momentos, como a maneira de experienciar uma viagem, ou de analisar relatos sobre outros lugares.

Alm desses objetivos principais, um curso de Evoluo do Pensamento Geogrfico municia os estudantes de um instrumental composto de vocabulrio, terminologia e capacidade de dissertar sobre temas internos Geografia. Tambm auxilia a valorizar e melhorar os mapas mentais de cada um, aprimorando sua conscincia espacial do mundo em que vivemos. Por fim, acompanhar a contextualizao histrica na evoluo 5

do pensamento geogrfico tambm proporciona um novo olhar sobre a histria da humanidade.

1.3 - Epistemologia A Epistemologia, a partir de sua origem etimolgica grega, significaria o Estudo da Cincia 1. Seu sentido quase o mesmo de Gnosiologia, ou seja, uma reflexo sobre o conhecimento2. Sobre esse aspecto, ela lida com noes cognitivas correlatas, como crena, compreenso, razo, julgamento, sensao, imaginao, aprendizado e esquecimento 3. Contudo, o conceito de Gnosiologia costuma se dirigir mais para o conhecimento em geral, enquanto a Epistemologia tem como objeto principal as cincias acadmicas 4.

A epistemologia se interessa pela histria do conhecimento, mais especificamente pela histria do desenvolvimento das cincias. Parte-se da premissa de que, para construir e reconhecer algo de maior valor em um campo de saber, preciso conhecer a tradio desse conhecimento, percorrendo esse caminho de suas origens at os dias de hoje. A Metodologia, por sua vez, considerada pela maioria dos epistemlogos como uma parte da Epistemologia 5. A metodologia seria o estudo dos mecanismos internos da cincia, enfocando seus procedimentos 6.

A Epistemologia tambm pode ser especfica, na medida em que trabalha sobre uma ou outra cincia em particular. So exemplos os trabalhos sobre Epistemologia da Geografia, Epistemologia da Biologia, etc. Todavia, a Epistemologia tambm pode estudar a relao entre as diversas cincias e disciplinas. Nesse tocante, de seu interesse o surgimento constante de novas disciplinas pela especializao extrema, na

1

FERREIRA, 1987 e VIRIEUX-REYMOND, 1972 Le terme d pistmologie est form du mot grec pistm signifiant science et du suffixe logie (construit sur le mot grec logos), significant thorie, tude critique sur la science. 2 MORA, 1964 3 LACEY, 1976 4 DICIONRIO DE FILOSOFIA LAROUSSE, 1969, e MORA, 1964 puede proponerse o seguinte: usar gnoseologia para designar la teoria del conocimiento em cualquiera de sus formas, y epistemologa para designar la teora del conocimento cuando el objeto de esta son principalmente las ciencias. 5 DICIONRIO DE FILOSOFIA, 1964, P. 93, 94 e 203. 6 MICRO ROBERT, 1971, p. 665

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qual h o risco da perda da unidade do conhecimento acadmico 7. Tambm so de seu interesse as reas de entroncamento das disciplinas, nas quais os diversos conhecimentos acadmicos convergem, interagem e se agrupam, criando novos campos de conhecimento8

. Tradicionalmente, a Filosofia e a Geografia so reas de

entroncamento de diversas cincias, e atualmente tm surgido novas reas convergentes, como a Ciberntica. Geografia, em particular, cabe o ttulo tradicional de rea de entroncamento entre as cincias humanas e a cincia da natureza. Essa a razo pela qual, nas classificaes acadmicas, s vezes a Geografia seja classificada como parte das Cincias da Terra e, em outras, o seja como parte das Cincias Sociais.

Apesar de a Epistemologia enfocar o saber acadmico, preciso ter claro que existe uma linha muito tnue entre o conhecimento cientfico e o conhecimento geral. Essa relao entre os dois muito prxima, como constantemente re-frisado pela corrente ps-moderna. Houve um perodo em que o conhecimento cientfico quis colocar barreiras muito grandes entre ele e o conhecimento comum, como maneira de delimitar com mais preciso o que seria o verdadeiro mtodo cientfico. O objetivo desse alheamento seria garantir o seu valor frente s demais formas de conhecimento.

Na Epistemologia, o filsofo Feyerabent, combateu esta posio, propondo que h formas de conhecimento mais adequadas que a cincia. Segundo ele, a cincia tornarase um conhecimento hermtico e fechado, criando bice ao prprio desenvolvimento do saber humano. Feyerabent, em sua oposio aos mtodos tradicionais cientficos, props uma posio radical, combatendo inclusive o mtodo e a razo acadmicos. salutar atentar-se para a fora dos argumentos de Feyerabent; contudo, a opo por dar prosseguimento Academia, por diversos profissionais, baseia-se ao menos na suposio de ainda existir um certo valor na produo do conhecimento cientfico.

Mas o que estuda a Epistemologia? A Epistemologia, como ramo da Filosofia, se interessa pelo conhecimento, no que abarca seus princpios, hipteses e resultados, procurando sua produo, origem lgica, validade e finalidade. Seus objetivos poderiam ser sintetizados com perguntas comuns, tais como: O que eu fao est correto metodologicamente? Para que serve? Que valor possui?7 8

VIRIEUX-REYMOND, 1972 VIRIEUX-REYMOND, 1972

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Nessa ltima pergunta, cabe ressaltar que no se trata de um valor financeiro, e sim de valor em termos de utilidade, moralidade, apreciabilidade, entre outras tantas formas de valorao axiolgica. Louis Lavelle escreveu que s existe valor quando h ruptura da indiferena 9. nesse ponto que podemos nos remeter novamente importncia da funo da Academia em combater a banalizao ou generalizao absoluta, visto que um conhecimento, para ter valor, no pode ser nivelado de plano com tudo mais.

O valor do conhecimento, at certo ponto, pode ser contextualizado pelo momento histrico. As percepes, valores e atitudes das pessoas atuam na produo do conhecimento, assim como o contexto social, cultural, econmico e poltico. Contudo, h conhecimentos que perduram ao longo da histria, os quais, portanto, transcendem essa abordagem valorativa meramente contextual. Como exemplo, tomem-se as obras de arte clssicas, que continuam a ser apreciadas h sculos, demonstrando escapar em boa medida de um mero determinismo histrico.

Tambm de interesse da Epistemologia a valorizao ou desvalorizao de certas reas de conhecimento cientfico, ao longo da histria 10. A preocupao com o que nos permite construir o conhecimento, ou seja, uma fundamentao epistemolgica de bom nvel, no permite utilizar os instrumentos e informaes a nossa disposio para gerar um conhecimento de maior valor 11. A epistemologia um modo de debater o valor de uma teoria com um mnimo de consenso, sem recorrer a questes religiosas ou pessoais.

Esse o motivo pelo qual se d tamanha importncia Epistemologia no meio acadmico. Pois, apesar de seu estudo ser uma tarefa complexa, o efeito de seu aprendizado epistemolgico pelo pesquisador o torna mais crtico em relao ao conhecimento que produz, assim como o torna crtico para avaliar e se movimentar em

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PERELMAN, 1993, p. 45 - pode dizer-se que o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indiferena ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela julgada superior e lhe merea ser preferida". 10 VIRIEUX-REYMOND, 1972 par la redcouverte, grace des travaux d histoire des sciences, des disciplines dont lobjet avait t disloqu par la spcialisation. 11 BUNGE, 1983 Methodology, like logic and decision theory, is a normative discipline.

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meio ao conhecimento produzido pelos seus pares acadmicos e pelos demais produtores de conhecimento na sociedade 12.

1.4 - Da informao ao conhecimento

H algumas dcadas atrs, quando a estrutura de comunicaes era pobre no Brasil, existia pouco acesso informao, e muito menos ainda para a populao desprivilegiada socioeconomicamente. Algumas pessoas possuam rdios, poucos jornais circulavam, e somente em algumas cidades havia televiso. De qualquer forma, a disponibilidade desses meios de informao j era melhor do que no existir acesso a informao alguma. Se considerarmos a enorme disponibilidade de informao de hoje em dia, facilmente podemos asseverar que nossa vida muito menos tediosa que a de antigamente.

O problema atual, por outro lado, seria conseguir selecionar a informao til, em meio a tantas disponveis13

. Contudo, no se pode precipitar e afirmar haver muita

informao, pois comparado a toda informao existente no universo, o que possumos acessvel no deixa der ser infinitamente pequeno. Com efeito, isso vale para as duas dimenses cognitivas nas quais vivemos, ou seja, o espao e o tempo. A ttulo demonstrativo, na escala geolgica o tempo do indivduo quase inexistente. A partir de tal reflexo, ponderamos que seria muito ambicioso para um ser humano almejar conhecer a totalidade do universo.

Uma informao percorre um longo caminho at transformar-se em conhecimento. Ela triada por um sujeito, entre suas percepes, colocada em um contexto intelectual, expressa em um cdigo especfico e ento disponibilizada a outros sujeitos. Importa12

LOSEE, 1979 O cientista que ignora os precedentes na avaliao das teorias provavelmente no far, ele prprio, uma boa avaliao. 13 GOULD & WHITE, 1974 - O comportamento humano afetado somente pela poro do ambiente que realmente percebido. Ns no podemos absorver e reter a quantidade virtualmente infinita de informaes que incide sobre ns no dia-a-dia, mas construmos filtros percepcionais que peneiram as informaes de modo altamente seletivo. A nossa memria, em vez de armazenar toda impresso sensorial provinda do ambiente, seleciona e retm somente pequena poro. A nossa viso do mundo, e sobre as pessoas e lugares que nele se encontram, formada a partir de um conjunto de impresses altamente filtradas, e as nossas imagens so fortemente influenciadas pelas informaes que recebemos atravs dos nossos filtros.

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voltar a destacar que apenas uma nfima parte de toda informao do universo est disponibilizada em cdigo.

H muitas informaes que no conseguimos entender e que, portanto, no nos apresentam valor, pelo simples fato de no sabermos interpretar o cdigo pela qual ela se manifesta. Por exemplo, podemos ter em mos um jornal russo, e mesmo sabendo que existe informao ali, no a conseguimos decifrar, por no ser um idioma de nosso domnio. No mundo existem centenas de lnguas, e milhares de dialetos, o que representa um grande desafio para a comunicao e o acesso a informaes.

Um exemplo clssico de cdigo til para o Gegrafo o relacionado s tcnicas de localizao, onde, atravs do Sol, estrelas, coordenadas, clculos e instrumentos, o profissional consegue interpretar informaes externas e inferir sua posio no espao. Pode-se at dizer que quanto maior o nmero de meios pelo qual o gegrafo consegue localizar-se, melhor gegrafo ele . Isso especialmente verdadeiro nas atividades de trabalho de campo, onde crucial o senso de orientao e localizao do pesquisador.

Na Geografia, outro exemplo de importncia do cdigo no sensoriamento remoto, pois neste necessrio interpretar as cores falsas dispostas a partir das informaes de satlite. O domnio desse cdigo essencial boa interpretao das informaes associadas imagem.

A interpretao de informaes pode seguir caminhos mltiplos. A contextualizao do momento e lugar em que foi posta em cdigo uma informao tambm pode trazer novos caminhos de interpretao. A escolha de uma palavra, e no de outra, em uma manchete de jornal pode levar a todo um caminho de reflexo. H notcias que so publicadas para um grupo especial de leitores, os quais tero conhecimentos e valores especficos para interpretar a informao da maneira como foi pretendida pelo comunicador. Portanto, para uma melhor interpretao de um cdigo, auxiliam muito certos conhecimentos prvios, como um conhecimento de uma regio, de sua histria, de sua populao e de seu contexto geopoltico.

O risco do conhecimento se transformar em dogma grande. Conseguinte, ele deixa de ser conhecimento, pois este deve ser mutvel, por definio. Por isso, importante 10

manter uma atitude de abertura a novas informaes, incentivando o dilogo entre antigos e novos saberes.

1.5 - Vetor Epistemolgico do Conhecimento Geogrfico Epistemologia da Geografia

No processo de transformao de uma informao em conhecimento, podemos reconhecer vrias etapas, as quais formam uma espcie de caminho (ou vetor) epistemolgico, rumo a uma abstrao e complexidade crescentes do conhecimento. Podemos resumir esse vetor em fases, e dentre elas algumas so apresentadas a seguir:

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Figura 1 Processos e Etapas na produo do Conhecimento Geogrfico. Fonte: Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho, PUC-Minas, 2008

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1 - Campo da Realidade: muito amplo e variado, e apenas uma pequena parcela dele termina por chegar a ns. Uma das maiores angstias humanas, ao lado da idia da morte, a da angstia de no podermos ter uma idia da amplitude do universo, j que, por deduo racional, este infinito. Ademais, a posio humana no universo tornou-se mais nfima e irrelevante a partir do momento histrico em que se passou do geocentrismo para vises mais relativas do espao; pois o ser humano, alm de ser apenas um pequeno gro de areia no universo, ainda perdeu sua posio de centralidade. Para evitar essas angstias e manter nossa sade mental, muitos recorrem religio e espiritualidade, tal como proposto pelo filsofo Blaise Pascal em sua obra Pensamentos 14.

2 - Campo da Informao: Ressalta-se que mesmo o nosso contato com a realidade j filtrado, atravs das capacidades e limitaes sensoriais de nosso corpo e mente. A partir de nosso aparato sensorial e cognitivo, podemos estruturar as informaes captadas de forma esttica, temporal e espacial.

3 - Campo do Conhecimento: o principal objeto de estudo da Epistemologia. Dividese em: a) Tratamento da Informao: cdigos e compreenso. b) Quadros e Sistemas Metodolgicos e Conceituais: no caminho para transformar a informao em conhecimento, necessrio toda uma reflexo em torno da epistemologia e da organizao racional dos dados. c) Conhecimento: as teorizaes so a principal funo da Academia. A funo principal da Academia no aprender a trabalhar com a informao, mas sim transform-la em conhecimento.

4 - Campo da Atividade: o momento em que o conhecimento torna-se valor, ao ser utilizado pelo o ser humano, seja para sua sobrevivncia, seja para o seu prazer.

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PASCAL, 1670 - Pensamentos

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Conseguinte, podemos classificar as abstraes ao longo desse vetor nos seguintes nveis:

1 - Mundo Emprico (ou Campo da Realidade): Cada pessoa possui um bloco de experincia diferente dos outros; isso o que torna um grupo de pessoa algo rico e heterogneo.

2 - Identificaes elementares: nomes bsicos de lugares e coisas, partindo da constatao de que cada um singular e diferente dos demais. Esta etapa foi muito enfocada pelos gegrafos viajantes, em seus relatos. Ainda hoje, constitui uma etapa fundamental para o trabalho geogrfico.

3 - Conceitos: distinguem-se das definies elementares por se interessarem mais por classificaes coletivas referentes a conjuntos de objetos, por meio da utilizao de termos genricos, em vez de se referirem a objetos individuais. A reflexo detida sobre os conceitos de vital importncia na atividade acadmica, visto que a informao no se torna conhecimento preciso se no houver conceitos bem estruturados.

4 - Princpios: Possuem carter abstrato e muito mais duradouro que os nveis de abstrao anteriores. Podemos dizer que sempre h princpios guiando a atividade cientfica. Um exemplo geral de princpio o da Conexo, pressupondo que as coisas neste mundo esto interligadas; princpio esse que tornou possvel erigir a Teoria de Sistemas. Existem princpios que foram desenvolvidos dentro da Geografia; tambm h princpios que vieram de outras disciplinas, mas que foram incorporados prtica geogrfica; bem como se podem supor princpios gerais da prtica cientfica e extracientfica.

5 - Leis: so padres e regras aos quais a natureza e o ser humano esto sujeitos. Chega-se a erigir poucas leis na Geografia, contudo, h de se apontar algumas na Geografia Fsica. Exemplos de status de lei na Geografia Fsica seriam as transformaes ambientais mensurveis, tais como a declividade, o tipo de rocha e a eroso. Hoje existe uma desconfiana considervel quanto proposio de leis nas reas das Cincias Humanas. Outrossim, segundo o cientista Prigogine, estamos na era da incerteza das leis da cincia, inclusive no tocante s cincias exatas. 14

6 - Modelos: Normalmente, so construes abstratas, explicativas, constitudas a partir de princpios e leis15 16

. Atualmente, as explicaes mais audaciosas, abstratas e

academicamente reconhecidas dos Gegrafos chegam a esse ponto. O mapa, para a Geografia, pode ser considerado como um modelo. Como o contexto espacial o mais importante da Geografia, tambm importante pensar no modelo mental que temos da espacialidade de nosso mundo.

7 - Teorias: so o trabalho intelectual mais elevado. Distinguem-se dos modelos justamente por sua maior durabilidade na histria acadmica, alm de possurem uma capacidade mais abrangente de explicao. De fato, preciso que a teoria tenha uma estabilidade um pouco maior que os modelos. Inclusive, uma teoria pode incorporar vrios modelos, e estes podem ser aperfeioados e substitudos dentro do arcabouo terico mais amplo, sem com isso determinar a rejeio de uma teoria. Mas, com o passar do tempo, ao acrescentar mais e mais dados empricos s teorias, estas impreterivelmente vo mudando. Pois a teoria dura enquanto ainda consegue explicar as coisas.

Conforme vo aparecendo dados inexplicveis, poderemos dizer apenas, no mximo, que a antiga teoria explica parte das coisas. As teorias no chegam a ser abandonadas de plano falar de substituio paradigmtica de teorias, da forma proposta inicialmente por Thomas Kuhn, como um fenmeno brusco e repentino, seria uma concepo muito maniquesta da histria das cincias. No preciso chegar ao ponto de queimar os livros antigos depois de uma suposta quebra paradigmtica. Aos poucos, no obstante, as teorias antigas vo perdendo a centralidade que anteriormente ocupavam, dando espao a novas teorias que chamam cada vez mais ateno, em virtude da sua capacidade de

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CHRISTOFOLETTI, 1985 - O modelo instrumento que formaliza a hiptese para ser devidamente testada, implicando formulaes quantitativas, verificveis e universalmente aplicveis.16

SANTOS, 2002 Um modelo , sem dvida, uma representao da realidade, cuja aplicao, ou uso, s se justifica para chegar a conhec-la, isto , como hiptese de trabalho sujeita a verificao. Da mesma maneira que dos fatos empiricamente apreendidos se chega teoria por intermdio de conceitos e de categorias historicizadas, volta-se da teoria coisa emprica atravs dos modelos. Dessa forma e com ou sem intuito de reformul-la, submete-se a teoria a um teste pois a realidade no imutvel. Assim, o modelo se encontra no mesmo nvel do conceito neste caminho incessante de vai-e-vem, do fato cru teoria e desta, de novo, ao emprico. Este movimento permite que os fatos sejam melhor conhecidos (pela utilizao da teoria) e que a teoria seja melhorada (pela prova dos fatos). Assim, os dois conceito e

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explicao. Portanto, a teoria no deve ser encarada como dogma. Esse o mote para buscarmos novas teorias, procurando entender o que atualmente ainda no parece bem explicado. Contudo, a atividade teortica, em si, bastante difcil, so poucos os pesquisadores que conseguem chegar a esboar uma verdadeira teoria. O trabalho acadmico mais comumente trabalha com fragmentos de teorias, chegando mais das vezes, em seu pice, a propor modelos.

As teorias e os modelos so teis porque, mesmo sendo sempre incompletos e imperfeitos, ajudam a no ter que reconstruir o conhecimento a partir do nada a cada tentativa de pesquisa. Podemos dizer que a trajetria acadmica, rumo aos seus objetivos constitutivos, se completa conforme o estudioso avana ante as etapas cada vez mais abstratas.

As teorias, conceitos e princpios permanecem em discusso por milhares de anos, devido a serem construtos abstratos. Acontece o contrrio com os dados empricos, que so infinitos e vastos, e que, por motivo de acessibilidade, praticidade e utilidade, costumamos trabalhar apenas com os mais recentes. Ademais, para o contexto acadmico, s utilizamos os dados empricos medida que teorizamos.

Os princpios so orientaes bsicas e duradouras, e dificilmente so desmentidos. Ao contrrio das teorias e modelos, que so volta e meia contestados e reformados ao longo da histria. Os princpios advm em grande parte do senso comum, enquanto as teorias so bem mais artificializadas. Por isso mesmo, difcil saber desde quando as pessoas utilizam certo princpio, ao menos at que um estudioso o formalize explicitamente. Poderamos dizer que o princpio pertence, qui, mais categoria da sabedoria que do conhecimento. Enfim, talvez seja por essas caractersticas que eles durem mais e sejam to difceis de serem contraditos.

Ademais, existem princpios sem os quais no possvel trabalhar na Geografia. Por exemplo, o princpio da diferenciao de reas, formulado pela escola alem de Geografia, entendendo que as regies seriam reas em que as diferenas internas so

modelo devem permanentemente ser revistos e refeitos; e isto s pode ser obtido levando em conta que tanto a teoria como a realidade se encontra em processo de permanente evoluo.

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menores que as diferenas externas. Hartshorne afirmava que esse seria o maior princpio da Geografia 17.

Outro princpio geogrfico relacionado o das regies polarizadas, segundo o qual certas reas possuem uma maior fora de relacionamento com outras reas, o que acaba, em mbito geral, por criar sistemas de polarizao. Os modelos matemticos dedicados a esse tipo de estudo mostram regies em que a polarizao bem explcita, enquanto em outras h interferncias complexas entres diferentes reas de polarizao. Contudo, nesses modelos, e em especial nas reas onde a resposta de polarizao no se mostra to evidente, preciso considerar que o produto de anlise nunca exatamente conforme a realidade, visto que existem fatores culturais, sociais e individuais difceis de mensurar.

Um outro princpio, o qual tambm utilizado para outras cincias, o da observao morfolgica: tanto o gegrafo precisa reconhecer a morfologia da paisagem, quanto um mdico necessita analisar a morfologia de uma radiografia ou exame por imagem. Uma anlise morfolgica pode detectar padres como o de centralidade, embora essa deteco incorpore tambm a necessidade de se entender padres de movimento como no caso das ruas de uma cidade, que tendem para o seu centro. J o princpio da extenso patente: os elementos necessitam possuir uma extenso mensurvel para serem tratados pela Geografia. Outro princpio basilar da Geografia seria o da Unidade Terrestre.

17

[GOMES, 1996]

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Figura 2 Princpios orientadores da Geografia Clssica ou Tradicional Fonte: Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho PUC-Minas, 2008.

18

Apesar de serem apresentadas uma a uma, no vinculante que sejam seguidas todas as etapas do vetor epistemolgico. Um exemplo disso a construo de modelos geogrficos que comumente no chegam a se estabelecer a partir de leis18

. H certas

explicaes, na Geografia, que inclusive tm de recorrer a modalidades de argumentao no sistematizadas academicamente, com grau de confiabilidade e incerteza inferiores ou pouco conhecidos, como o caso de fatores culturais e emocionais. Todavia, no se pode desconsider-las, visto que so fatores importantes na constituio do espao geogrfico.

Nos debruando sobre a progressiva abrangncia abstrativa no vetor epistemolgico, podemos utilizar os conceitos de teoria, mtodo e tcnica, respectivamente do mais abstrato para o mais especfico. Uma teoria pode abarcar e utilizar uma diversidade mtodos, dentro de seu construto terico. Por sua vez, um mtodo pode abarcar vrias tcnicas. Uma tcnica, conforme se desenvolva e se torne cada vez mais sofisticada, pode chegar a ser considerada como um mtodo.

Exemplificando, na Geografia, o trabalho de campo normalmente considerado como uma tcnica, porm, caso o tipo de trabalho de campo seja suficientemente sofisticado e elaborado, pode chegar ao status de mtodo. Em verdade, a prtica de campo se torna quase uma sabedoria do gegrafo, incorporada sua percepo contnua do mundo. Onde quer que v, o Gegrafo observa e pensa sobre o meio de maneira peculiar, que podemos denominar como uma expresso do esprito geogrfico.

H vrias outras tcnicas de observao na Geografia, como as tcnicas de anlise de fotografias, aerofotos e de imagens de satlite, variando em seus graus de sofisticao e tambm no tipo de informao que apreendida. Disso pode-se depreender sobre a importncia da observao para a Geografia; logo, o Gegrafo deve procurar sempre aprimorar e aperfeioar sua capacidade de observao.

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SANTOS, 2002 Os modelos no so obrigatoriamente interpretativos e podem ser puramente descritivos. Isto no suprime a necessidade de inscrev-los em um quadro terico, pois deste depende, em sua maior parte, o bom resultado de qualquer que seja a pesquisa.

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A Semiologia, da escola francesa, ou Semitica, pela escola anglo-saxnica, o ramo epistemolgico que trabalha com as representaes. Todas as etapas do trabalho acadmico trabalham com representaes: mesmo as teorias e modelos no deixam de ser representaes, em ltima anlise.

A Semiologia muito importante para a Geografia, em especial para a Cartografia. Afinal, a Geografia trabalha com diversos tipos de representao: verbal (escrito ou oral), numrica, metalinguagem, cartogrfica, entre outras. Os mapas, na linguagem cartogrfica, so muito teis para se comunicar um conhecimento espacializado sobre um lugar. O cuidado e as reflexes semiolgicas na Cartografia ajudam a elaborar mapas mais claros e informativos. Isso importante para no se elaborar mapas de difcil compreenso, devido ao excesso mal arranjado de informaes. Outros mapas pecam por um maior cuidado na escolha de cores e de delimitaes adequadas.

Uma das distines basilares da Geografia, em relao s outras cincias, a possibilidade de mapear (cartografar) a informao. Portanto, a padronizao semiolgica da atividade cartogrfica uma tarefa essencial para uma comunicao mais adequada atravs de mapas. Afinal, um bom gegrafo deve saber tanto fazer quanto interpretar mapas, constituindo-se atividade essencialmente comunicativa, tanto intra-acadmica quanto para sua comunicao externa.

A padronizao semiolgica evitaria situaes como mapas desenvolvidos por setores acadmicos ou militares que s conseguem ser bem interpretados por profissionais das respectivas reas. Essa padronizao deve ser, idealmente, interdisciplinar, visto que a cartografia no uma atividade exclusiva da Geografia. Outra situao a ser destacada refere-se ao uso geral das formataes cartogrficas pr-existentes nos diversos softwares de SIG, sem um conhecimento e reflexo prvios sobre a semiologia cartogrfica.

20

1.6 - A escala de anlise da Geografia19

O termo escala pode ser entendido como graduao ou categoria de anlise

. J em

termos de reproduo cartogrfica e arquitetnica, tambm pode se referir correlao entre a representao de um objeto e seu tamanho real. O mundo pode ser examinado em diferentes escalas de observao, desde a escala de observao da Fsica Quntica e da nanotecnologia, atinentes a elementos atmicos e sua interao, at a escala de observao das pesquisas astronmicas, que podem alar s galxias e a todo o universo conhecido.

Em cada escala, podemos observar elementos e estruturas diferentes, a partir de nosso aparato perceptivo e de instrumentos de anlise21 20

. como se cada escala fosse uma

maneira de enxergar o mundo, dando ensejo criao de diferentes teorias, conforme o enfoque da escala de abordagem . Essas abordagens e teorias fornecem-nos vises de

mundo, paralelas e concomitantes, como tais como, por exemplo, o mundo visto pela Fsica Atmica, pela Biologia Celular, pela Geografia, pela Astronomia, e vrias outras cincias, cada qual com sua escala de abordagem apropriada.

A escala de anlise da Geografia inicia-se com o habitat, espao de vivncia cotidiano, e vai at a representao do Planeta Terra como um todo. Esse limite mximo de seu objeto de anlise pode ser inferido etimologicamente do prprio nome da disciplina, visto que Geo refere-se deusa Gaia, a qual representa simbolicamente o nosso planeta, enquanto Graphia pode ser interpretado como a representao grfica desta deusa. Ao contrrio do que ocorre na Astronomia, para a qual o homem seria apenas um ponto nfimo no meio do Universo, a ocupao e aes humanas tem papel significativo na escala e objeto de anlise geogrficos.

A variao de escalas de anlise um tema precioso para o gegrafo. preciso cuidado ao comparar objetos de tamanhos muito diferentes, em escalas diferentes. Os estudos geogrficos debruam-se em vrias escalas, da qual podemos traar uma lista exemplificativa, em conformidade com a aproximao: Terra, Continente, Pas, Estado,

19 20

CASTRO, 1995 DOLLFUS, 1970 Sabe-se tambm que, quando se muda de escala, os fenmenos mudam no somente de grandeza, mas, de natureza.

21

Cidade, Bairro, Quarteiro. No limite de proximidade, a Geografia j perpassa o campo da Arquitetura, nos espaos pessoais cotidianos, casas e prdios, na escala do habitat.

Em cada escala de anlise, o Gegrafo deve escolher um nvel de detalhamento adequado (tambm chamado de escala de detalhe")22

. Por exemplo, uma escala de

1:25.000 seria adequada para estudos em um Municpio, enquanto uma escala de 1:250.000 j seria melhor para trabalhar com as meso-regies de um Estado como Minas Gerais. Por exemplo, ao comparar pases de tamanhos, riqueza e populao muito diferentes, preciso manter sempre em conta essas diferenas de proporo.

Figura 3 Municpio de Cornlio Procpio e sua regio de entorno, visualizados em diversas escalas.

21 22

CASTRO, 1995 CASTRO, 1995

22

Isso no significa que o Gegrafo no utilize o conhecimento vindouro de outras escalas de anlise, para em seguida distribuir espacialmente informaes resultantes desses conhecimentos23

. Na Geografia Fsica pode-se utilizar conhecimentos de Fsica

Quntica, como, por exemplo, para rastrear o fluxo hidrolgico subterrneo em reas de carste por meio de istopos radioativos. O estudo do calibre de gros de areia, silte e argila, para estudos de eroso da Geografia Fsica, um outro caso de como a Geografia pode utilizar-se de anlises laboratoriais de outras escalas.

Passando para as escalas do infinitamente grande, desde a antiguidade houve uma vinculao entre a Geografia e a Astronomia, que auxiliava na localizao, orientao e medies. Contudo, com o passar dos sculos, o desenvolvimento da Astronomia e da Geografia seguiu caminhos cada vez mais afastados, aqueles se voltando mais e mais para as estrelas e estes para o Planeta Terra.

Inobstante, bastante evidente que o Gegrafo apenas utiliza de informaes vindas de outras cincias, tomando-as de emprstimo, em vez de se dedicar produo acadmica desses conhecimentos 24. A Fsica Atmica no Geografia, embora possa ser til a esta ltima, eventualmente. Assim tambm ocorre com a Psicologia, Astronomia, Ciberntica, dentre outras disciplinas.

23 24

DOLLFUS, 1970. DOLLFUS, 1970. (...) o conhecimento mais profundo de certos nveis tem que fazer apelo a outras disciplinas que no so diretamente geogrficas em sentido estrito.

23

2 - As origens e a Essncia da Atividade Geogrfica: Os Primeiros Gegrafos25

O homem primitivo j era ocupante do espao deste em suas atividades26

, por definio, e usurio-explorador27

. Em suas atividades relacionava-se com o ambiente em seu . Nesse nterim, a sada28

entorno, e este, por sua vez, influa em seu desenvolvimento

dos homens arborcolas para os campos, adquirindo a postura ereta

e comportamento

caminhante, significou uma nova percepo e relao em meio ao espao. A observao da paisagem poderia ser considerada como o primeiro ato geogrfico.

Importantssimo, nesse caminho evolutivo humano, foi o comportamento simblico, podendo ser entendido como uma verdadeira evoluo de conscincia. A partir dele, o homem comear construir uma via comunicativa e emotiva atravs de representaes, rituais, adornos, msicas, as quais incluem tambm o relacionamento simblico com o espao em que vive29

. A linguagem, juntamente memria, aparece ento como

possibilidade de reconstruir mentalmente o mundo, sem necessidade do contato direto com os sentidos. A partir da tradio oral e do registro grfico, os seres humanos comeam a referir-se a histrias que envolvem a descrio de paisagens e suas caractersticas. Desse ponto, seria um passo para o desenvolvimento dos primeiros mapas 30.

Quando comeam a ser elaborados mapas, ento podemos partir do pressuposto de h algum que domina o espao e capaz de represent-lo. J podemos falar ento de um desenvolvimento conceitual da prtica geogrfica.

25

NOUGIER, 1966 Desde a existncia dos primeiros homens, h ocupao do solo, apropriao dos recursos primordiais. Ocupante pelo fato mesmo de sua existncia, explorador para sua subsistncia elementar, o homem nascente cria a Geografia Humana. 26 CLOZIER, 1972 Os grupos humanos aparecem, com efeito, como os infatigveis usurios do globo onde, para fins variados, eles multiplicam suas idas e vindas. 27 NOUGIER, 1972 Nesses tempos to remotos, uma constatao evidente: nunca o homem foi to dependente dos fatos fsicos! 28 NOUGIER, 1966 Abandonando a horizontalidade dos antropomorfos para se postar na vertical (...) 29 NOUGIER, 1966 No Magdaliano, entre os milnios XV e X, um pensamento mais profundo aparece. A terra, sustento dos homens e dos animais, parece assumir um outro valor. (...) Insensivelmente, a terra tornou-se a Me-terra, a criadora de homens e animais. (...) Vrios lugares tornam-se lugares sagrados. 30 AMORIM FILHO, 1982 Quando os homens primitivos desenhavam nas paredes das cavernas, nas areias das praias, no piso de suas moradias a localizao presumvel de caa ou do poo de gua

24

Figura 4 - mapa (planta) de atlhyuk, pintado na pedra h cerca de 6000 anos, descrevendo uma cidade neoltica.

Figuras 5 e 6 Histrias contadas a partir da escrita primitiva dos ndios norteamericanos, onde h referncias a caractersticas do ambiente, como rios, lagos, florestas, habitaes, variaes de distncia entre os caminhos, dentre outros.

potvel, eles elaboravam, sem disso ter conscincia os primeiros mapas de que se tem notcia, produzindo os primeiros exemplos de geografia aplicada.

25

Figura 7 Mapa dos ndios norte-americanos, datado de 1825, elaborado originalmente sobre couro. Fonte: British Museum, por Raymond Wood.

Figura 8 Mapa indgena, em couro de bfalo, das plancies centrais norte-americanas, a pelo menos 500 anos.

26

Pode-se dizer que o homem sempre teve sua caracterstica de viajante, e nesta atividade construiu um relacionamento especial com o espao. Necessidade de movimento, seja atravs de migraes foradas, para sua prpria sobrevivncia31

, ou devido tambm a

um sentimento intrnseco, a que compete denominar de curiosidade. Podemos postular que a representao dos lugares se conjuga com a busca humana de se explorar novas terras, e nesse contexto se desenvolve.

A compreenso de um espao linear, ou seja, referente s rotas e itinerrios, com certeza foi de vital importncia para os seres humanos primitivos, dada a sua caracterstica predominantemente nmade. J o espao amplo se apresentaria, por exemplo, no momento em que indivduo se elevasse a um ponto elevado no relevo para planejar espacialmente as aes de seu interesse. Obviamente, ainda tratava-se de uma atividade extremamente aplicada e intuitiva, em contraposio atividade geogrfica reflexiva, histrica, sistematizada e explanativa que possumos na Geografia atual.

A escala de ao do homem, no perodo primitivo, est restrita ao mbito local e pontual, sem grande capacidade de usos e transformaes substanciais da paisagem. Seria uma atividade exploratria, descritiva e diretamente aplicada. Mas marcam o incio do que ser o esprito geogrfico.

A localizao, a orientao e o conhecimento do ambiente so aspectos cruciais para o ser humano, em todos os tempos. Por exemplo, na pr-histria, podemos destacar a eficincia das atividades humanas atravs da reflexo sobre a localizao caa, dos perigos sobrevivncia, e inclusive de lugares insalubres relacionados a molstias. No caso especfico da caa, de se esperar que o ser humano tenha aprendido a utilizar armadilhas geogrficas, em que atravs do mapeamento mental do terreno, traavamse as rotas da caa e dos caadores, rumo a um terreno em que o segundo obtivesse uma posio privilegiada.

Um exemplo de atividade, geogrfica em essncia, a dos guias, presentes desde as sociedades primitivas at a nossa sociedade moderna. Nas migraes, sua importncia

31

CLOZIER, 1972 Um dos fatos mais caractersticos revelados pela pr-histria reside precisamente nos deslocamentos, nas incessantes pulsaes dos grupos humanos. (...) xodos em massa (...), premidos pela necessidade de alcanar regies mais frteis, pastagens mais ricas(...)

27

se fazia sentir, em uma relao quase messinica com o grupo, apontando o caminho para as novas terras, assim como tambm na escolha dos caminhos mais seguros. Sua importncia se dava inclusive nos conflitos com outros grupos, indicando por onde fugir, esconder e mesmo por onde atacar32

. Ao guia, como se o ambiente estivesse

cheio de sentido, emitindo sinais a todo tempo, convidando a ser decifrado por sua especial capacidade de observao.

Nos guias se percebe uma vocao, aptido e cultivo de uma noo espacial especial, de um relacionamento ntimo entre o ser humano e o espao, que se reconhece como misso pessoal em relao comunidade em que vive. H algumas caractersticas que so comuns aos guias, exploradores, viajantes e gegrafos, entres as quais podemos citar: - Capacidade de correr riscos. - Anti-conformismo. - Necessidade de liberdade. - Desejo de explorar e conhecer novas realidades.

possvel pensar, suscitando a atualidade desta abordagem dos guias como iniciadores do esprito geogrfico, que se os professores atuais de Geografia incorporassem mais o esprito dos guias, a prtica de ensino de Geografia obteria um grande salto de qualidade. Alm dessa geografia aplicada das comunidades primitivas, tambm deve haver existido sempre uma geografia ligada ao simblico, afetivo, cultural, remetendo-se relao das pessoas com o espao, suas paisagens e elementos constitutivos, o qual inclua tambm o senso de curiosidade, necessidade de liberdade e esprito de aventura33. No tocante a estes dois ltimos, podemos dizer que o fato das viagens atrarem o ser humano no se resume resoluo de problemas prticos. Partindo da conjetura que h mais na mente humana que a estrita racionalidade, e de que temos32

AMORIM FILHO, 1982 O que caracteriza os guias? Exatamente o fato de conhecerem o territrio, o espao; o fato de saberem orientar-se tanto nas plancies cobertas por florestas, quanto nas montanhas ou nos desertos; o fato de saberem localizar as tribos inimigas, seja para se poder atac-las, seja para delas fugir; a capacidade de identificarem a localizao das fontes de alimentos ou dos produtos que formavam a riqueza dos homens. 33 CLOZIER, 1972 A aventura qualquer que seja seu motor: lucro, curiosidade, necessidade , de fato, o ponto de partida, a primeira etapa da Geografia.

28

outras necessidades alm da sobrevivncia, h que se refletir sobre uma Geografia ligada a esse vis, baseada no senso esttico e curiosidade, tecida entre o homem e os ambientes que se desdobram alm dos obstculos do horizonte. A Geografia, at os dias atuais, apresenta esta face de ajudar a saciar prazerosamente, mesmo que temporariamente, esse permanente senso de incompletude e inquietude que se apresentam atravs da curiosidade pelos lugares alm de nosso conhecimento.

A histria da Geografia acompanha a histria da humanidade desde os seus primrdios. Desde a pr-histria at os dias atuais, o homem sempre observou a paisagem, a fim de se proteger, sobreviver (inclusive em termos de obteno de alimentao e dessedentao), ou mesmo admirar, atravs de seu sentimento esttico. Hoje ns sofisticamos nossa maneira de observar e analisar a paisagem, atravs de toda uma histria de reflexo, sistematizao e acumulao de conhecimentos, a qual nos brinda com uma ampliao da capacidade de enxergar e pensar o mundo, assim tambm como a ampliao de nossa escala de ao. Os computadores nos auxiliam a interpretar melhor a paisagem, todavia, so apenas um meio, enquanto a relao entre o sujeito (humano) e o objeto (paisagem) continua a mesma em essncia.

Contudo, os problemas espaciais continuam, em grande parte, muito semelhantes aos do alvorecer da humanidade, embora em escalas diferentes, e com contextos metodolgicos diversos. Como no considerar cruciais, nos dias de hoje, questes sobre localizao, distribuio34

, locomoo no espao, planejamento espacial de atividades, e mesmo

relaes de afetividade com espaos cotidianos e da feliz descoberta de novos lugares atravs de viagens? E talvez seja justamente pela continuidade de seus objetivos fundamentais, que nos possvel reconhecer uma conexo entre o fazer e o pensar geogrfico das diferentes pocas, ao longo da evoluo histrica do pensamento geogrfico.

De uma maneira formal, a Geografia s se transformou em formao acadmica aps o sculo XIX, contudo, como atividade prtica, bastante razovel conjeturar que a atividade geogrfica sempre existiu, embora nem sempre tenha sido denominada com

34

AMORIM FILHO, 1982 A localizao e a distribuio dos homens, a localizao e a distribuio das coisas e fenmenos que interessam aos homens so e sero preocupao permanentes da

29

esse nome. E provavelmente continuar existindo, se supormos que muitas das razes de sua criao e existncia ao longo da histria se prolongam at nosso perodo atual, e no do ensejo de que deixaro de existir to rpido. Able dizia que a Geografia somente iria deixar de existir quando a superfcie da Terra fosse lisa como uma bola de bilhar. Caso isso acontecesse, a partir da precisaramos apenas da Geodsia, alm da tecnologia de GPS. Agradeamos que tal fato no acontecer, pois um mundo sem diferenas espaciais seria deveras montono.

3 - As Geografia Pr-Helnicas A palavra Geografia ainda no existia na antiguidade pr-helnica, visto que s comeou a ser utilizado na Grcia Antiga.

As civilizaes pr-helnicas do Oriente Mdio se desenvolveram ao longo de rios (Nilo, Jordo, Tigre e Eufrates), porm rodeadas por desertos, com difceis condies de sobrevivncia. As paisagens desrticas tambm provocam no homem uma sensao de pequenez diante da amplido do mundo, o que pode ter contribudo para o surgimento de vrias religies nessa regio.

Pode-se facilmente inferir que esses territrios ao longo dos rios eram bastante conflituosos, do ponto de vista geopoltico, assim como tambm do simbolismo religioso. Eis que esto, lado a lado, os beros de vrias grandes civilizaes e religies que ainda hoje convivem de maneira bastante tensa. Criou-se ento uma Geografia dos imprios e das guerras, com interesses militares, polticos e religiosos, em que o conhecimento do territrio era primaz para sobreviver e garantir o poder de cada sociedade.

Tambm o perodo de incio dos recenseamentos, no Egito e na Mesopotmia, devido necessidade dos reis em saber at onde iam seus imprios e qual seria a populao abarcada sob seu domnio. Esses recenseamentos marcam o incio do que ser a Geografia Populacional.humanidade. E so, justamente, problemas dessa natureza que esto na origem e na base da atividade geogrfica.

30

Nas civilizaes pr-helnicas, inicia-se uma valorizao da transmisso dos conhecimentos e tcnicas e, com isso, as sociedades humanas apresentam um grande salto em sofisticao e organizao. A Geografia passa a ser til para a mensurao de propriedades, para a Agronomia e para as rotas comerciais. Criam-se faixas verdes ao redor dos rios, pujantes de agricultura, onde era essencial saber at onde plantar, alm de ser preciso distinguir o qu plantar em quais lugares. Nesse aspecto, a Geografia comea a ser utilizada para o planejamento territorial.

Claro que ainda era uma Geografia pouco reflexiva sobre si mesma, e muito voltada para questes prticas: enchentes, secas, migraes, agropecuria, comrcio, navegao, administrao imperial e guerras. Paralelamente, tambm se desenvolvia uma geografia dos territrios simblicos e sagrados, que suscitavam ao povo uma relao com sua terra atual ou originria, e os instigavam a lutar por elas. Seriam lugares religiosos, clnicos, tribais, nacionais, naturais/paisagsticos notveis e, inclusive, lugares sagrados imaginrios, criados pelas lendas e crenas.

4 - Geografia Grega

A geografia pr-helnica, abrangendo os antigos imprios do Egito, assim como da Mesopotmia e dos demais povos do oriente mdio, era predominantemente prtica, orientada a possibilitar a sobrevivncia sobre as difceis condies naturais da regio desrtica, alm de assegurar a proteo contra outros povos, e se possvel, elimin-los. Nesse contexto que destacamos o pensamento geogrfico grego como ruptura epistemolgica do que estava sendo praticado at ento. Para tanto, torna-se necessrio nos interrogar sobre o processo de construo do conhecimento grego, para em seguida nos determos especificamente sobre sua cincia geogrfica.

A civilizao grega, no seu conjunto, pode ser considerada como uma civilizao diagonal, enquanto as demais civilizaes pr-helnicas seriam sociedades axiais. Entende-se por sociedades axiais aquelas que no procuravam contato cultural com outras civilizaes, e que tendiam, de modo predominante, a competir, dominar e eliminar as culturas alheias. 31

De modo diferente das outras civilizaes, os Gregos construram seus saberes tecendo contatos e apropriando-se de elementos de diversos povos, acumulando ao mximo o conhecimento j produzido por povos anteriores ou contemporneos a eles. Da caracteriz-los como uma sociedade diagonal, ou seja, que perpassa as demais. Estudando-se a histria da humanidade e observando a ascenso dos gregos e de outras grandes civilizaes, pode-se levantar a hiptese de que uma das condies para o surgimento de grandes civilizaes seja justamente um contexto no qual se gesta uma maior miscigenao de culturas e saberes.

A Grcia uma regio de pennsula, circundada pelo mar mediterrneo por praticamente todos os lados, e que ao longo sua histria antiga e clssica, contava com vizinhos bastante beligerantes ao norte. Essa sua situao geogrfica foi um ponto de partida para que os gregos se tornassem um povo navegador por excelncia. Esta peculiaridade auxiliou no estabelecimento de contato com outros povos, atravs de exploraes, rotas de comrcio, colonizaes35

e migraes. Eram bastante valorizadas

as viagens de sbios a outros povos, para trazer novas idias e conhecimentos.

Tambm deve ser lembrada a importncia da tradio de expedies militares, iniciada por Alexandre, o Grande, e que consistia de uma comitiva composta de sbios, militares, tradutores, medidores, cartgrafos, espies, e diversos outros especialistas, e que aproveitavam a campanha para assimilar o mximo possvel de conhecimento e cultura dos povos com os quais travavam contato. As exploraes gregas expandiram seu ecmeno (mundo conhecido), assim como trouxe o contato com diversos outros povos.

35

PEDECH, 1976 A explorao, que conduziu descoberta da bacia mediterrnea, (...) teve incio com o fenmeno social e econmico ao qual se d o nome de colonizao. (...) Esse fenmeno corresponde a uma expanso de vrios grupos de migrantes que, do sculo VIII ao VI (a.C.) instalaramse em numerosos pontos do entorno do Mediterrneo e do Mar Negro, para fundar a emprios e cidades, povoar e explorar as terras do interior.

32

Figura 9 A colonizao grega.

Mas no foi apenas pela simples concatenao de conhecimentos externos que os gregos construram a sua ruptura epistemolgica. Cumpre ento analisar em que base o modo de pensar grego se diferenciou dos demais povos.

Ao longo da histria de formao do povo grego, tem-se que em torno de 1200 a.C., o povo drico ocupa a regio da Grcia. Esse advento foi responsvel pela instaurao de um novo regime social, em que a monarquia tradicional d lugar s oligarquias. Esse um momento crucial na preparao da passagem do conhecimento mtico, tradicional, para um novo tipo de sociedade, em que, como as concluses e decises so tomadas por vrias pessoas em conjunto, passa a ser extremamente importante a capacidade de convencimento e de consenso. A verdade e a justia j no so mais impostas por um monarca, mas sim elaboradas a partir de uma discusso e acordo entre os cidados livres dominantes.

Esse sistema oligrquico dar origem ao regime democrtico grego, em que as decises so tomadas em grandes assemblias. Nesta nova forma de organizao, passa-se a valorizar bastante a figura dos sbios, por seu conhecimento, associada ao poder singular de expresso e convencimento. Vrios sbios e professores de oratria so pagos por cidados ricos, para que possam ensinar esta arte a seus filhos e a eles prprios. Destarte, h uma grande valorizao da acumulao e transmisso dos 33

conhecimentos, no papel dos sbios e professores, aos quais dada a possibilidade de viver pelo exerccio de sua atividade. 36

Contudo, o conhecimento no ser valorizado apenas e simplesmente por sua capacidade de convencimento. Como Plato ilustra em seu dilogo Protgoras37

, a

sociedade grega passa a valorizar, mais do que a beleza dos discursos, a capacidade de procurar a verdade. Esta seria a passagem do predomnio dos sofistas (professores de retrica) para a valorizao da Filosofia e da Cincia propriamente ditas.

A passagem do conhecimento mtico (ou mgico) para a racionalidade base essencial para a compreenso da alterao de pensamento travada em curso pela civilizao helnica. No conhecimento mtico, se recorria a uma explicao do mundo baseada em intervenes divinas e sobrenaturais, de mundos aos quais o ser humano no tinha acesso direto e nem possua grande poder de interveno. Esse conhecimento mtico era apresentado pela tradio ancestral do povo, assim como pelos sacerdotes e reis, e era aceito como verdadeiro, sem questionamentos.

J com o pensamento racional, a veracidade de um discurso precisa ser comprovada pelo valor atribudo a seus prprios argumentos. As explicaes e teorias passam a poder ser discutidas por quem se demonstrar capaz de tanto, e so passveis de ser rejeitadas ou alteradas pela constatao de que existe uma opo mais coerente a ser adotada. Esse tipo de conhecimento valoriza a capacidade humana de explicar os fenmenos, e abre a possibilidade para um caminho de evoluo para os conhecimentos humanos.

nesse contexto que poderemos falar da Filosofia e da Cincia da maneira como a concebemos hoje, ou seja, sempre abertas a uma contnua discusso, e re-elaborao, rumo a um conhecimento pretensamente cada vez mais completo, coerente e eficaz sobre o mundo. Esse seria um sentido implcito na conhecida Alegoria da Caverna, do livro VIII da Repblica38

, em que Plato apresenta, de maneira metafrica, o

processo de tomada de conscincia de maneiras mais corretas de compreender o mundo.

36 37

JAEGER, 2001. PLATO (427-347 a.c.) Protgoras, e JAEGER, 2001. 38 PLATO (427-347 a.c.) Repblica

34

Em sua alegoria, Plato conta a histria de um personagem que vivia acorrentado em uma caverna, e que pensava que o mundo se resumiria ao teatro de sombras a que estava exposto 39; contudo, ao se libertar de sua priso, consegue perceber uma nova realidade, ou seja, obtm acesso a uma compreenso mais verdadeira do mundo.

A civilizao grega antiga apresentou uma ruptura no tocante s atividades intelectuais, e assim tambm o podemos dizer para o caso da Geografia. At os dias de hoje, muito do que a civilizao ocidental deve-se a essas novas formas de pensar trazidas tona com os gregos. Nisso se inclui a forma de ver o mundo e se colocar nele, o que crucial para a Geografia. Igualmente se inclui um sistema de valores que so norteadores da tica e moral da sociedade at os dias de hoje, baseada em princpios como amizade, fidelidade, justia, e sacrifcio pelos outros.

Os gregos tambm forneceram a matriz para os dois mtodos cientficos basilares. A partir do pensamento de Plato, podemos identificar o delineamento do mtodo dedutivo40

, em que se parte das idias para ento compreender mais corretamente o41

mundo sensvel indutivo42

. J em Aristteles, discpulo de Plato, nos apresentado o mtodo43

, no qual predomina um caminho que parte da observao sistemtica da . Ambas estas abordagens sero

realidade, a partir da qual so elaboradas as teorias

fundamentais em toda a histria da cincia, includa a a histria da Geografia.

Os mtodos indutivos e dedutivos continuam sendo, em grande medida, bases metodolgicas para os trabalhos geogrficos, embora algumas correntes privilegiem mais o aspecto indutivo, enquanto outros enfatizem mais o vis dedutivo. Um exemplo de abordagem indutiva na Geografia seria a abordagem morfofuncional, que parte da descrio rumo explicao nesta abordagem, a Geografia pode ser considerada mais como arte e observao do que como cincia. A abordagem indutiva na Geografia compreende as seguintes etapas:39

BONNARD, 1984 Tomam pois estas sombras pela prpria realidade, quando elas no so mais que o obscuro reflexo duma imitao do real. 40 JAMES & MARTIN, 1981 41 BAILLY & BEGUIN, 1982 labore une construction thorique des processus quelle prsume explicatifs du monde rel eu elle la confronte ensuite avec la ralit afin den vrifier la validit. 42 JAMES & MARTIN, 1981 43 BAILLY & BEGUIN, 1982 Les tudes sont donc fondes sur lobservation dtaile de la ralit partir de donnes htrognes (physiques, biologiques. conomiques, ...) puisque par hypothse (souvent implicite)(...)

35

1 - Observao analtica por meio de dados de uma rea (fsicos, biolgicos, econmicos, etc.). 2 - Classificao das morfologias e mapeamento dos dados, para encontrar padres e ligaes. 3 - S aps, ento, vem a explicao, atravs das relaes entre os elementos, pelo princpio da causalidade.

O processo indutivo geogrfico consegue explicar melhor a realidade justamente medida que os dados sejam de mais variados aspectos. Quanto mais processos e abordagens (inclusive de paradigmas geogrficos diferentes) forem utilizados para estabelecer as relaes entre os elementos, mais rica e segura a explicao geogrfica. Apesar desse aspecto positivo, essa demanda de pluralidade traz uma dificuldade iminente, que o trabalho, dificuldade e custo extras de realizarem-se estudos muito amplos.

Em contraposio ao mtodo indutivo, o mtodo dedutivo segue uma metodologia diferenciada, que pode ser expressa nas seguintes etapas: 1 Escolha de uma problemtica a estudar. 2 Escolha (ou elaborao) de uma teoria que ser a base para a explicao. 3 Confrontao com a realidade. 4 Concluso pela rejeio, no-rejeio ou modificao da teoria.

No era acadmica atual, muito comum o pesquisador j partir de teorias acadmicas estabelecidas, ao menos como uma orientao inicial para suas pesquisas. Essa valorizao dos construtos tericos prvios e o seu processo de sua aplicao demonstram uma tendncia atual que talvez retrate uma predominncia cada vez maior do mtodo dedutivo.

Aps essa primeira abordagem sobre a ruptura epistemolgica grega na Geografia e outras cincias, importante nos debruarmos brevemente sobre as principais contribuies e desenvolvimentos geogrficos na histria da Grcia Antiga.

36

Em um primeiro momento, podemos reconhecer na Grcia Antiga uma geografia marcadamente mtica, em Homero (em suas obras Ilada e Odissia) e em Apolnio (com a obra Os Argonautas). Nestas obras, o geogrfico se mistura literatura, e marca o incio do que mais a frente se desenvolveria como o pensamento geogrfico grego. certo que a Geografia apenas um elemento menor nessas obras, tal como um cenrio para uma pea maior, a qual seria desenvolvida pelos personagens. Essa forma de misturar Literatura e Geografia tambm estar presente em grandes picos ao longo da histria posterior da humanidade, como o caso dos Lusadas, de Cames; da Divina Comdia, de Dante; da Volta ao Mundo em Oitenta Dias, de Jlio Verne; do Grande Serto Veredas, de Guimares Rosa; entre muitos outros picos enquadrados como literatura de viagem.

A Geografia jnica se caracterizava pela preocupao pelos problemas da fsica terrestre. Isso inclua a elaborao de mapas e, posteriormente, uma complementao textual ao mapeamento44

, a qual marca o nascimento de uma Geografia Descritiva.

Essa Geografia Descritiva interessava-se pelos estudos das cidades e povos, assim como do meio geomorfolgico, natural e dos oceanos. Alis, essa forma de estudo foi referida por alguns gregos como Corografia, que s vezes era considerada como uma rea de saber distinta da Geografia propriamente dita.

Os Hipocrticos, a partir das experimentaes e teorias mdicas iniciadas por Hipcrates (aprox. 460-377 a.C.) e continuadas pela escola que fundou, estudaram como o ambiente poderia influir em aspectos da sade das pessoas. Em suas teorias, partiam do pressuposto de que indivduo deveria procurar um equilbrio entre os seus fluidos internos. Todavia, fatores como a idade, influncias psicolgicas e o ambiente (clima, altitude, ventos, umidade, etc.) poderiam afetar esse equilbrio45

. Essas

reflexes sobre como o as variaes ambientais de cada regio participariam como um dos fatores para o estabelecimento de enfermidades pode ser considerado como o

44 45

PEDECH, 1976 VIETES, 2007, pp. 191 Na concepo hipocrtica, o corpo humano e tudo aquilo que o circunda que, em conjunto, constituem a physis - eram pensados por meio da composio dos elementos ar, terra, gua e fogo, e pelas qualidades de frio, quente, seco e mido. Corpo e espao eram compreendidos a partir desses elementos e qualidades. Da, a importncia de estudar o meio ambiente e o clima das diferentes regies da Terra para se compreender a sua influncia (melhor dizendo, a sua marca) sobre o homem. e REBOLLO, 2006

37

princpio histrico para teorias muito posteriores

46

, como a Geografia Mdica, o

Determinismo Ambiental e vrias outras escolas de Geografia que refletiram sobre a relao do homem com o meio ambiente.

Os gregos comearam a se interessar por uma geografia da escala do globo, com a mensurao da Terra, coordenadas, reas de continentes e mares, comparao de paisagens distantes, entre outros estudos. Eraststenes foi o principal gegrafo grego no tocante s grandes medies47, dedicando-se a temas como a forma, curvatura e circunferncia da Terra. Para possibilitar esses trabalhos, considera-se essencial o desenvolvimento intelectual grego nos campos da Matemtica (especialmente a Geometria) e da Astronomia, assim como a elaborao de ferramentas e equipamentos auxiliares Cartografia e Astronomia.

Outra vertente de atuao da Geografia Grega foi a das descries regionais, como de Herdoto, um habilidoso historiador-gegrafo48

. Histria foi a principal obra de

Herdoto, que atravs do tema da guerra entre Grcia e Prsia, pe a termo sua proposta de buscar o passado para entender o presente. Cabe ressaltar que o conceito de Histria dos gregos um pouco diverso do conceito atual, e refere-se fortemente ao sentido de investigao, pesquisa e inqurito 49.

Herdoto era muito crdulo, e acreditava bastante nos relatos que os viajantes lhe contavam50

, mas no se rogava de expor sua opinio sobre a veracidade destas

exposies de terceiros. Escreveu sobre a Mesopotmia (Babilnia), os Citas, o Egito e o Norte da frica. Em sua obra, valorizou muito o comportamento de cada povo que visitou e estudou, procurando descrever, bem como comparar, as caracterstica de cada um, utilizando-se de uma noo embrionria do que posteriormente seria denominado de gneros de vida. Pode-se dizer que a obra de Herdoto apresenta uma anlise bastante completa e abrangente para um estudo de Geografia, visto que se empenhou em

46 47

GLACKEN, 2000 DE MARTONNE, 1948 48 BONNARD, 1987 Ao dar o ttulo de Inqueritos a sua obra (ao mesmo tempo Histria e Geografia), Herdoto assenta estas duas cincias sobre a investigao cientfica. 49 BONNARD, 1987 O ttulo de sua obra precisamente Inquritos, em grego Historiai, palavra que na poca no tem outro sentido. 50 BONNARD, 1987 Sua credulidade parece to infinita quanto a curiosidade...

38

estabelecer relaes entre quatro dimenses epistemolgicas: histria (tempo), geografia (espao), quantificao (matemtica) e representao (por mapas e desenhos).

A partir das ponderaes tecidas at aqui, podemos apreender que houve, na Grcia antiga, entre 3.000 e 2.000 anos atrs, uma primeira Geografia completa e madura. Completa no sentido de ser totalizante por princpio, procurando compreender os fenmenos atravs de um estudo integrado pelos mais diversos processos, sem restringir o estudo somente a um campo de conhecimento especializado. Uma Geografia, que ao contrrio de tudo que j havia feito antes, apresentava qualidades como a argumentao racional, metodologias cientfico-filosficas para a investigao da verdade e, enfim, uma procura intrnseca pelo seu prprio crescimento como cincia, por meio da busca de novos mundos, novos povos, e principalmente, novas formas de compreender o mundo.

5 - Geografia Romana

H duas posies quanto aos romanos que merecem uma anlise mais atenta, para no incorrer em preconceitos infundados. A primeira de que eles teriam sido meros executores das teorias gregas o que podemos considerar como uma posio extremamente reducionista quanto aos trabalhos geogrficos que realizaram51

. A

segunda seria achar que no houve em Roma um verdadeiro pensamento geogrfico o que tambm seria uma posio bem extremada.

Esses dois posicionamentos partem do fato de que os Romanos foram, verdadeiramente, de esprito mais prtico que os gregos. Portanto, seus trabalhos no campo geogrfico estaro muito direcionados para atividades prticas do imprio, como explorao de reas vizinhas, conquistas militares, recenseamentos administrativos, rotas comerciais, etc52

. Os recenseamentos merecem destaque especial, pois permitiram avaliaes

51

NICOLET, 1988 Alis, qualquer dicotomia do gnero cincia grega e prtica romana ilusria, tanto a simbiose cultural, seja no plano prtico, seja no terico, completa. 52 NICOLET, 1988

39

globais inditas, classificaes e orientaes das polticas pblicas, como, por exemplo, a formulao e cobrana de impostos, assim como o recrutamento militar 53.

Tambm relevante que os romanos, apesar de haverem vencido militarmente os gregos, foram muito influenciados culturalmente por estes ltimos, ao longo de sua histria. A Geografia grega buscava explicaes para os fenmenos espaciais, e os romanos incorporaram bastante do desenvolvimento realizado at ento, mas com um forte direcionamento para o que seria uma geografia aplicada aos interesses do imprio. Nisso os romanos contriburam com vrias tcnicas de mensurao de distncias, utilizando-se de conhecimentos como Astronomia e Topografia. As medies e a Cartografia tornaram-se muito valorizadas, por auxiliarem na dominao imperial, na administrao e na engenharia de obras pblicas. Entre as obras pblicas que mais se beneficiaram desses novos conhecimentos, est a construo de aquedutos e de estradas.

Tambm, ao longo do perodo romano, foi extremamente relevante a ampliao do ecmeno (mundo conhecido), seja atravs da navegao, dominao imperial e, tambm, por contatos diplomticos e comerciais54

. Novas informaes que provinham

de vrias regies do mundo, em conjunto com as novas tcnicas de mensurao de distncias, possibilitaram a construo de mapas mais corretos e abrangentes dos que haviam sido elaborados em perodos anteriores 55.

53 54

NICOLET, 1988 JAMES & MARTIN, 1981 55 NICOLET, 1988 Polbio, assim como Estrabon, reconhecem aos romanos pelo menos o mrito de ter favorecido, como efeito indireto de sua dominao poltica e pacificao, as viagens e os levantamentos em mltiplas regies, em particular as ocidentais.

40

Figura 10 Extenso do Imprio Romano em aproximadamente 0 a.C.

Figura 11 Mapa de Agripa, relatando o conhecimento cartogrfico do mundo mensurado pelos romanos. Fonte: NICOLET, 1991, e http://www.arqweb.com/vitrum/liberivd2.jpg, em maio de 2008.

41

Estrabon elaborou uma sntese do conhecimento geogrfico desenvolvido at sua poca, baseando-se principalmente em livros e textos de outros estudiosos. Entre as fontes de Estrabon, esto os dados primrios dos lugares por onde passou, porm a maior parte foi realmente advinda do relato de viajantes. Foi historiador, filsofo, gegrafo e viajante. Embora tenha nascido na Grcia Oriental, durante sua vida presenciou o domnio e a crescimento do Imprio Romano por sobre uma extensa rea, incluindo a sua terra natal.

Como vrios gegrafos daquele perodo, Estrabon concordava com uma superioridade das civilizaes gregas e romanas, em relao aos outros povos vistos como mais brbaros e cujos habitantes poderiam inclusive ser escravizados. Pode ser considerado como o gegrafo mais completo do perodo grego e romano, coroando o desenvolvimento da Geografia nesse perodo histrico. Nisto, sua obra foi muito til para os interesses prticos do imprio romano.

Figura 12 Estrabon, em uma figura do sculo XVI.

42

Figura 13 - Europa vista por Estrabon

Estrabon talvez tambm possa receber o ilustre ttulo de ser o primeiro a cunhar o termo Geografia com o sentido que possui hoje, e que doravante seria sempre usado para designar esta rea do saber. Outros atribuem o termo Geografia a Eraststenes, porm, para esse ltimo, o termo Geografia teria um sentido bem mais estrito, relacionado mensurao da Terra. O desenvolvimento geogrfico grego, anterior a Estrabon, carecia de uma unidade temtica e estava bastante disperso em discusses especficas, como geodsia fsica, filosofia poltica, astronomia e meteorologia, alm da medicina ambiental hipocrtica. O modelo proposto por Estrabon um mtodo integrador, que tem como referncia o espao, mas que tambm utiliza informaes de vrias outras cincias, buscando uma sntese. Em seu modelo terico, Estrabon se preocupa em responder as seguintes perguntas: 1 Qual o objeto de estudo da Geografia? Essa seria a reflexo epistemolgica inicial, abarcando o que se ir estudar, o porqu, e como ser realizado esse estudo. 2 - O que a Geografia permite conhecer de mais amplo? Esta seria a etapa em que se apresenta a viso integrada do que seria o mundo conhecido.

43

3 O que se pode conhecer regionalmente? Aqui so tecidos os comentrios e informaes sobre cada regio conhecida, especificamente. 4 Concluso. Enfim, chega-se novamente a uma viso de conjunto para todo o corpo da obra desenvolvida.

Estrabon no fazia diviso entre uma Geografia Fsica e Humana, tendendo a privilegiar o estudo que englobasse as duas reas. Mas distinguia como fundamental a diviso entre Geografia Geral e Regional, entretanto, como partes integrantes e complementares da Geografia, que deveriam se desenvolver em conjunto. Em sua grande obra Geografia, dedicou os primeiros dois livros a uma introduo, onde se aprofunda quanto reflexo epistemolgica sobre a Geografia, e que seria dedicada ao que chamou de Geografia Geral; enquanto os demais livros descrevem as vrias regies do mundo conhecido, constituindo o que Estrabon denominava Geografia Regional.

A Geografia Geral ocupar-se-ia mais das teorias gerais, dos mtodos de mensurao e Cartografia, e das teorias gerais sobre o funcionamento do ambiente, como a Climatologia, Hidrografia, etc. J a Geografia Regional estaria mais direcionada para o estudo aprofundado dos lugares, vinculando-se mais a relatos de viagens e tendendo a abarcar mais os aspectos humanos e etnogrficos 56, bom como uma valorizao de cada lugar no que ele possui de especfico. Esse modelo de estrutura tambm ser seguido pelas Geografias Universais, sculos mais tarde.

Varron desenvolveu uma proposta de Geografia Histrica, baseada no princpio de uma sucesso de estgios culturais. Esse enfoque aproxima-se do conceito de gnero de vida, e tambm pode ser observado de maneira semelhante nas obras de Ptheas e Herdoto (gregos) e de Pomponius Mela (romano).

Na passagem da era romana para a crist, Ptolomeu e Marino de Tiro avanaram no conhecimento geogrfico, lanando mo de sistemas de projeo que levavam em conta a curvatura terrestre e, a partir disso, calculando posies em termos de latitude e

56

DE MARTONNE, 1948 Observa-se que a geografia regional e descritiva muito mais humana, mais atenta etnografia, s migraes dos povos, aos costumes e s instituies, ao passo que a geografia geral mais fsica, mais exata, ou pelo menos, mais exigente em preciso matemtica.

44

longitude

57

. Ptolomeu procurou realizar tambm uma sntese do conhecimento58

geogrfico, e sua obra foi adotada pela Igreja Catlica

. Entretanto, posteriormente,

parte de seus trabalhos mostraram ser incorretos ou equivocados e, por isso, foram duramente criticados; por exemplo, a tese de que a Terra o centro do universo.

Figura

14

Mapa

de

Ptolomeu

fonte:

http://www.arikah.net/commons/en/2/23/PtolemyWorldMap.jpg, em maio de 2008.

Muitos dos trabalhos geogrficos do perodo grego e romano foram perdidos. Todavia, foi preservada uma parte expressiva dos trabalhos de Ptolomeu e Estrabon, que nos permitem conhecer sobre o que foi feito nesta poca.

De Martonne analisa que a dualidade entre Geografia Geral e Regional, patente durante todo o perodo greco-romano e explicitada por Estrabon, foi um entrave ao desenvolvimento Geografia59

. Devido especializao desses ramos, muitos dos

representantes da geografia greco-romana no conseguiram cruzar satisfatoriamente a

57 58

DE MARTONNE, 1948 e PEDECH, 1976 JAMES & MARTIN, 1981. 59 DE MARTONNE, 1948.

45

ponte entre as Geografias Geral e Regional, dedicando-se em primazia a apenas uma das duas 60.

Essa mesma distino dualista teria gerado limitaes e obstculos ao desenvolvimento da Geografia durante grande parte do perodo posterior ao Greco-Romano, at nossa era contempornea. Contudo, preciso contextualizar a crtica de De Martonne, que se situava em um debate de crtica Geografia Regional do incio do sculo XX, a qual se deteria muito em descries e valorizaria pouco a elaborao terica, importante para um desenvolvimento conjunto da Geografia Geral. De Martonne se situava em um contexto de insatisfao com a Geografia Regionalista, que marcava o incio do perodo ao qual sucederia a revoluo quantitativo-teortica.

6 - Geografias Medievais

As Geografias muulmana e chinesa, durante a maior parte da Idade Mdia, foram mais sofisticadas que a Geografia crist europia. S ao final da Idade Mdia que a Geografia ocidental assumiu a dianteira do desenvolvimento geogrfico.

6.1 - Geografia Chinesa

Para entender a produo geogrfica chinesa, importante notar certos aspectos de sua cultura e das principais correntes de pensamento de seu povo filosofia chinesa, apresenta o homem integrado Natureza intenso dinamismo 63.62 61

. O Taosmo, antiga

e coloca como meta de

sabedoria justamente aprender a imitar e viver em harmonia com o mundo natural e seu

60

DE MARTONNE, 1948 Ver-se-o antes dois ramos de uma mesma cincia desenvolverem-se par a par sem se encontrarem e sem se interpenetrarem. 61 JAMES & MARTIN, 1981 62 TAO TE KING O grande Tao espraia-se como uma onda; (...) todos os seres nasceram dele; (...) protege e alimenta todos os seres 63 TAO TE KING A virtude suprema profunda e vasta; Opera de acordo com os hbitos dos seres; Permite atingir a harmonia universal;

46

Essa valorizao da harmonia da relao entre o homem e a natureza pode ser muito bem observada na arte chinesa. marcante como cultura chinesa influenciou o seu desenvolvimento na Geografia, e isso inclui tanto a poca medieval quanto os desenvolvimentos da Geografia chinesa do sculo passado, com os do gegrafo Yi-FuTuan.

Figura 15 Pintura de Dai Jin (1388-1462), da Dinastia Ming Fonte: Zhejiang School of Painting.

Tambm deve ser considerada a grande influncia do Confucionismo no desenvolvimento da sociedade chinesa. Corrente de pensamento com enfoque tico, o 47

Confucionismo partia dos valores familiares de ordem e respeito aos pais, para transcender aos valores sociais de organizao pblica e obedincia ao imperador64

. A

ampla difuso do Confucionismo possibilitou o grande progresso da sociedade chinesa, quando comparado aos demais pases do perodo medieval. Ao longo desse perodo, a China foi provavelmente o pas com maior desenvolvimento e qualidade de vida65

.

Comparativamente Europa, durante a Idade Mdia o Imprio Chins possua uma estrutura social, intelectual, administrativa, econmica e de sade bastante superior. Seu sistema de crdito, como exemplo, era bem desenvolvido, incluindo o uso de papel moeda. Enfim, essa superioridade a tornava muito atraente para todos os povos.66

Tambm a Geografia foi bastante desenvolvida pelos chineses

. Destacam-se os

personagens como Chang Heng, do sculo II d.C., que estudou Sismologia e Cartografia, inventou o primeiro sismgrafo e props a representao cartogrfica por redes de coordenadas. Ainda, vale mencionar Phei Hsiu, do sculo III d.C., que cartografou grande parte da China e desenvolveu uma cartografia bastante aplicada execuo de obras pblicas. O sbio chins Ken Shua (1031-1095), dentre outros estudos, tambm inventou a bssola, instrumento que se tornar essencial navegao e cartografia para todos os povos do mundo.

Figuras 16 e 17 Sismgrafo inventado por Chang Heng (esquerda) e croqui da bssola, dos escritos de Ken Shua (direita).

64 65

COOPER, 1996 JAMES & MARTIN, 1981 66 JAMES & MARTIN, 1981 O estudo da geografia na China, como parte de uma tradio escolar mais abrangente, estava bem avanada em relao a tudo que se conhecia na Europa crist da poca.

48

Figura 18 Mapa chins entalhado em pedra, de 1137 d.C., descrevendo o sistema hdrico sobre uma rede de coordenadas.

49

Figura 19 Mapa datado de 1389, pintado em pano, descrevendo parte do mundo conhecido para os chineses.67

Os chineses relatam como, em suas viagens, descobriram a Europa

. Como em geral

somos muito eurocntricos, normalmente imaginamos a Europa descobrindo o mundo, mas pensamos pouco em outras civilizaes realizando esse descobrimento. O desenvolvimento chins em navegao e cartografia possibilitou um domnio sobre os mares orientais durante o perodo medieval. Entre os diversos exploradores e navegantes chineses, deve-se mencionar Zeng He, embaixador da dinastia Ming, que comandou uma grande frota de navios em expedies diplomticas e comerciais 68.

67

JAMES & MARTIN, 1981 Na verdade, a Europa e a ndia foram descobertas pelos missionrios chineses bem antes dos missionrios cristos terem alcanado o Oriente. 68 YAMASHITA, 2007

50

Figura 20 Um dos mapas de navegao utilizado pela frota de Zeng-He. Fonte: YAMASHITA, 2007.

51

Figura 21 Domnios do imprio chins entre os sculos XIV e XVII, em conjunto com as rotas relativas s expedies de Zeng-He. Fonte: www.chinapage.com/zhenghe.html, em abril de 2008.

6.2 - Geografia Muulmana

O nascimento e o surpreendente crescimento da religio islmica ocasionaram o surgimento de uma grande civilizao, com importante papel no desenvolvimento da Geografia. Fundado por Mahomed, o Islamismo se espalhou por grande do mundo em pouco mais de um sculo, abrangendo desde a Pennsula Ibrica, passando pelo Norte da frica e estendendo-se do Oriente Mdio em direo ndia. Tal expanso apoiou-se muito no carter proselitista de sua religio, que se dedicava bastante divulgao das palavras do Alcoro, o respectivo livro sagrado. Alm disso, com suas regras de conduta social, a religio de Mahomed conseguia estruturar admiravelmente comunidades tribais que antes viviam em estado de barbrie.

52

Figura 22 Mapa demonstrando a expanso do Isl, de 630 d.C. at os dias atuais. Fonte: Viso mundial, 1995 Global Mapping International.

53

O deserto do Oriente Mdio no era pujante ao cultivo e, como alternativa, os rabes dedicavam-se predominantemente ao comrcio. Com a expanso do Isl, tornou-se possvel viajar a comrcio por uma larga faixa de extenso, o que, junto com as peregrinaes religiosas caractersticas, auxiliou na circulao de informaes e no desenvolvimento geogrfico 69.

Os rabes preservaram muitas obras provenientes da Grcia antiga e empenharam-se bastante na traduo, interpretao e desenvolvimento dos conhecimentos gregos70

.

Com o alvorecer da civilizao rabe, constituram-se muitos centros produtores de saber. O principal era Bagd, cidade que foi o centro intelectual do mundo entre os sculos VIII e XIX71

. Em Bagd, havia a Casa da Sabedoria, instituio que se72

dedicava com grande diligncia traduo de muitos textos antigos. Muito da Geografia grega que chegou ao Ocidente deu-se por intermdio dos rabes ; contudo, no foi

uma mera re-transmisso, pois estes ltimos tambm ampliaram significativamente esses conhecimentos.

Um dos grandes nomes da Geografia muulmana foi Al-Biruni, cientista e filsofo. AlBiruni estudou amplas reas dos conhecimentos, seguindo o modelo de estudioso da dos gregos antigos. De certa forma, pode-se defender que ele foi um continuador do desenvolvimento intelectual grego, na Geografia e nos outros campos do saber, em um perodo em que houve uma interrupo da transmisso do conhecimento da Europa ocidental.

Nas campanhas militares dos muulmanos em direo ndia, Al-Biruni aproveitou para estudar a histria e a cincia dos lugares por onde passava. Posteriormente, foi contratado pelo governante islmico da ndia, para que se dedicasse somente aos estudos. Desde ento, atrelou o conhecimento existente na ndia, Grcia e Isl, convergindo essas produes intelectuais, com um notvel esprito de sntese, para um novo patamar de conhecimentos por ele construdo. Al-Biruni baseava-se na tolerncia s crenas e costumes de todos os povos, como condio para que fosse possvel apreender o que havia sido desenvolvido por cada sociedade. Suas pesquisas

69 70

CLOZIER, 1972 JAMES & MARTIN, 1981 71 JAMES & MARTIN, 1981

54

envolveram reas como a Geografia, Fsica, Matemtica, Farmacologia e Botnica, com grande trabalho de compilao, alm de pesquisas de experimentais.

Figura 23 Vrios selos rabes em homenagem a Al-Biruni, considerado o maior nome da cincia islmica.

Outro nome importante da Geografia Islmica foi Ibn-Batuta, muulmano rabe de Marrocos. Batuta escreveu o livro Viagem com uma exposio de suas jornadas pelo mundo (entre de 35.000 e 75.000 milhas pelo Isl73), na qual relatou sobre regies de uma boa parte do mundo islmico. Suas peregrinaes incluram o Norte da frica, a ndia, a China e o Leste Asitico (estes dois ltimos como embaixador da China). Dessa forma, podemos dizer que sua atuao deu-se mais dentro do que seria uma Geografia descritiva regional. Ao longo de suas viagens, prestava assessoria aos Califas, bem como dava aulas, compartilhando as suas experincias.

72 73

JAMES & MARTIN, 1981 JAMES & MARTIN, 1981

55

Figura 24 Peregrinaes e Expedies de Ibn-Batuta

Al-Idrisi (1100-1116) nasceu na costa da frica e estudou na Espanha, e tambm figura importante na Geografia islmica. Viajou bastante pelo mundo muulmano, alm de recolher informaes de expedies enviadas pelo reio Rogrio da Siclia. Como coroao de seu conhecimento, escreveu o Livro de Roger Entretenimento para aquele que deseja viajar ao redor do mundo. Nesse livro, Idrisi corrige e amplia muito do trabalho que havia sido realizado por Ptolomeu, vrios sculos antes reconhecido por suas contribuies cartografia e descrio de lugares.74

. Idrisi

Figura 25 Al Idrisi

74

JAMES & MARTIN, 1981

56

Figura 26 Mapa do mundo conhecido, elaborado por Al Idrisi.

Ibn-Khaldum (1332-1406) tambm fez interessantes contribuies Geografia. Era filsofo e doutrinador, e se interessava bastante pela dinmica das civilizaes. Na sua Introduo Histria Mundial, discutiu sobre a interao entre o ser humano e o ambiente, analisando tambm governos, cidades e Geografia Fsica75

. Para Khaldun, o

clima era um grande responsvel pela distribuio das civilizaes sobre o mundo. Apesar de uma hiptese como essa ser vista com ressalvas se considerarmos a sociedade humana atual, devemos nos lembrara que, anteriormente s revolues tecnolgicas dos ltimos sculos, os povos ainda eram muito dependentes dos fenmenos naturais.

75

JAMES & MARTIN, 1981

57

Figura 27 Ibn-Khaldum

6.3 - Geografia Ocidental Crist da Idade Mdia

A Idade Mdia Crist costuma ser delimitada do perodo que vai da queda do Imprio Romano Ocidental (aproximadamente 500 d.C.) at a Queda do Imprio Romano Oriental (1453 d.C.).

O mundo grego e o Imprio Romano conferiam uma unidade social, uma centralidade que beneficiava as cincias, e principalmente a Geografia. Na Idade Mdia crist, do contrrio, no havia essa centralidade e, portanto, a produo de conhecimento geogrfico foi assaz dispersa. O desenvolvimento intelectual estava restrito aos membros da Igreja Catlica, que eram praticamente os nicos letrados. Os estudiosos existentes, normalmente centralizados em mosteiros, praticamente no se comunicavam entre si.

Quando a locomoo humana restrita, em determinados perodos histricos, a Geografia minada de sua fora, e a humanidade perde com isso. Durante a Idade Mdia, as nicas informaes externas a que se tinha acesso eram as histrias contadas de boca em boca. Essas histrias acabavam mesclando-se imaginao humana e, com isso, davam origem a lendas, mitos, crenas e preconceitos.

As concluses dos gregos sobre a esfericidade da Terra caram no esquecimento, e passou-se por um longo tempo a acreditar que a Terra fosse um disco plano, com mar

58

por todos os lados, o qual desaguava em um precipcio logo na linha do horizonte. Ao ver nos navios desaparecendo no oceano, no limiar da viso, pensava-se que eles estavam caindo nesse grande precipcio. Todas essas lendas e crenas, aliadas ao clima de medo e insegurana que levava o povo a se refugiar nos feudos e mosteiros, contribua para um medo colossal de viagens e exploraes.

A Igreja Catlica tambm manipulava bastante o conhecimento, adequando-o segundo os seus interesses e dogmas. Havia extrema censura a tudo que pudesse contrariar ou diferir das teses catlicas. Um expoente desta censura foi o Tribunal do Santo Ofcio (ou Inquisio), que queimou vrios livros considerados pagos e herticos, alm de punir e executar vrios intelectuais.

A Cartografia crist, da mesma forma que arte sacra medieval, no se preocupava tanto em retratar a realidade, e sim em transmitir uma mensagem religiosa, veiculando uma concepo de mundo crist 76. Nessa concepo de mundo, o divino era mais importante que o terrestre, o que pode ser observado pelas representaes pictricas ao redor dos mapas, e tambm pela centralidade dada a Jerusalm.

Os mapas tpicos desse perodo eram denominados de T/O, ou Orbis Terrarium. A letra O significava o crculo, forma geomtrica perfeita, representando tanto Deus quanto o oceano que circulava o mundo 77. J a letra T, conotava a cruz, o martrio de Jesus, e era cartograficamente representada pela juno dos trs corpos dgua mais conhecidos. Os continentes eram divididos em sia, frica e Europa, sendo que cada um teria sido colonizado por um dos filhos de No, aps o Grande Dilvio. Ademais, a Terra Santa estava sempre localizada como o centro do mundo mapeado, expressando cartograficamente o que seria a centralidade da religio.

76

JAMES & MARTIN, 1981 Os pensadores que s