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Um modelo de classificação e de periodização dos estudos científicos em Geografia Dante F. C. Reis Jr. Prof. Adjunto, Departamento de Geografia, Universidade de Brasília LAGIM, Laboratório de Geo-Iconografia e Multimídias [email protected] Resumo Design de um modelo “tripartido”, pelo qual propomos o tratamento de temas de história e filosofia da ciência geográfica mediante (i) rearticulação lógica entre termos correntes mas de uso descuidado (Sistema de Pensamento, Vertente, Corrente), (ii) rearranjo simples de grandes marcos temporais e (iii) configuração de um campo particular para os estudos de “geografia da ciência” (caso exclusivo em que o termo “Escola” estaria habilitado). Os dois primeiros aspectos do modelo dizem respeito a uma “Epistemologia da Geografia”; enquanto o terceiro, a uma “Epistemologia Geográfica”. O protótipo, portanto, pode ter serventia no ensino universitário, a fim de propiciar exercícios interpretativos da dimensão tanto científica, quanto metacientífica da Geografia. Palavras-chave: sistemas de pensamento filosófico; correntes de prática científica; geografia da ciência Abstract Design of a “three-way” model for which we propose an approach of history and philosophy of geographical science topics by (i) logic re-articulation between current terminology although of careless use (Thought System, Strand, Current), (ii) simple rearrangement of large turning points and (iii) setting up a particular field for studies in “geography of science” (the single case in which “School” term would be enabled). The first two aspects of the model relate to an “Epistemology of Geography”; the third, to an “Geographical Epistemology”. The prototype therefore may have usefulness in higher education, in order to provide interpretative exercises about scientific and meta- scientific dimensions of Geography. Keywords: systems of philosophical thought; currents of scientific practice; geography of science Introdução: o problema e algumas táticas de abordagem

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Page 1: Um modelo de classificação e de periodização dos estudos ... · Manuais correntes que tratam de “pensamento geográfico” (geographical thought, pensée géographique, pensamiento

Um modelo de classificação e de periodização dos estudos científicos em Geografia

Dante F. C. Reis Jr.

Prof. Adjunto, Departamento de Geografia, Universidade de Brasília

LAGIM, Laboratório de Geo-Iconografia e Multimídias

[email protected]

Resumo

Design de um modelo “tripartido”, pelo qual propomos o tratamento de temas de história e filosofia

da ciência geográfica mediante (i) rearticulação lógica entre termos correntes mas de uso descuidado

(Sistema de Pensamento, Vertente, Corrente), (ii) rearranjo simples de grandes marcos temporais e

(iii) configuração de um campo particular para os estudos de “geografia da ciência” (caso exclusivo

em que o termo “Escola” estaria habilitado). Os dois primeiros aspectos do modelo dizem respeito a

uma “Epistemologia da Geografia”; enquanto o terceiro, a uma “Epistemologia Geográfica”. O

protótipo, portanto, pode ter serventia no ensino universitário, a fim de propiciar exercícios

interpretativos da dimensão tanto científica, quanto metacientífica da Geografia.

Palavras-chave: sistemas de pensamento filosófico; correntes de prática científica; geografia da

ciência

Abstract

Design of a “three-way” model for which we propose an approach of history and philosophy of

geographical science topics by (i) logic re-articulation between current terminology although of

careless use (Thought System, Strand, Current), (ii) simple rearrangement of large turning points

and (iii) setting up a particular field for studies in “geography of science” (the single case in which

“School” term would be enabled). The first two aspects of the model relate to an “Epistemology of

Geography”; the third, to an “Geographical Epistemology”. The prototype therefore may have

usefulness in higher education, in order to provide interpretative exercises about scientific and meta-

scientific dimensions of Geography.

Keywords: systems of philosophical thought; currents of scientific practice; geography of science

Introdução: o problema e algumas táticas de abordagem

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Manuais correntes que tratam de “pensamento geográfico” (geographical thought, pensée

géographique, pensamiento geográfico) nem sempre esclarecem com precisão os muito diferentes

ângulos pelos quais uma análise filosófica pode ser feita. Por exemplo, para o caso Geografia,

mesmo – que tanto compreende setores que seguem uma trilha alinhada com os cânones da prática

científica (ou seja, com a normatividade dos critérios de validação), quanto envolve a manifestação

de posturas estéticas e políticas (ou seja, para além daquela trilha, onde paixões e afiliações, embora

se infiltrem, têm de ser minimamente controladas, a fim de que não tornem a processualística refém

de seus pendores ideológicos).

Numa tomada genérica, para a Geografia poderíamos traçar dois particulares ângulos de ataque para

uma análise filosófica: um de segunda ordem (epistemológico, portanto) e um de “ordem zero”,

digamos assim (ontológico, presumivelmente). Em Reis Jr. (2016) definiu-se este último ângulo

como “Filosofia da Geografia” (notação simbólica “F:G”). Demarca análise de “ordem zero” por

constituir âmbito em que se trata de questões que não chegam propriamente a interferir de modo

direto na prática da ciência. O “filósofo da Geografia”, neste caso, especula detalhes

“essencialistas”; se pergunta coisas do tipo: “Que ‘espaço’ é esse que interessa a Geografia?”;

“Qual sua ‘natureza’?”; “Qual a ‘condição existencial’ dos sujeitos que têm experiências em/com

‘ele’?”; “Que ‘significa’ explora-lo, produzi-lo, percebê-lo?”; “Qual é, afinal, seu estatuto

realístico?” ... é uma materialidade “constatada”, um panorama “enaltecido”, uma estrutura

“organizada”, um sistema “planejado”, um território “apropriado”, um mundo “vivido”? Em F:G

tendemos a nos aproximar de filosofias generalistas. Um procedimento natural e não grave – posto

que (se presume) o filósofo da Geografia deva estar, decerto, consciente de que, servindo-se de

autores clássicos associados aos sistemas filosóficos pivôs, não se chega necessariamente em

teorização robusta sobre o conhecimento científico. Em outras palavras, abre-se em F:G margem a

juízos estéticos e morais (mais sintonizados, por conseguinte, com aquelas referidas “posturas”, não

normativas); juízos que, realmente, não são diretos interferentes na prática da investigação

científica. Por outro lado, em F:G o exercício intelectual de diagnosticar incorporação de orientações

filosóficas pode redundar em análises interessantes, tais como a de uma “poética do espaço”

(aproximação potencial com as artes) ou a de “injustiça espacial” (com o pensamento político,

agora).

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Já numa mirada especialmente dirigida à produção de conhecimento científico, em Reis Jr. (2016)

definiu-se o patamar da “Epistemologia da Ciência Geográfica” (notação “E:cg”). Este ângulo

exprime sua especialidade numa espécie de “redução”, visto que no domínio metateórico dos

estudos de natureza da ciência (entendamos: já além ou “acima” das investigações sobre, p.ex.,

fenômenos da natureza – logo, uma típica ação epistemológica, de “mezanino”; e mais um pouco

acima ainda das especulações essencialistas do gênero “natureza da natureza” – ontológicas, de

“subsolo”), o agora “epistemólogo da ciência geográfica” examina os aspectos internalistas e

externalistas da produção do conhecimento particularmente científico, em Geografia. Ou seja, tanto

os expedientes racionais envolvidos na representação abstrata das dinâmicas de interface

natureza|sociedade (racionalidade presente na semiologia dos mapas, p.ex.), quanto as circunstâncias

conjunturais motivadoras da (ou intervenientes na) prática social desta geociência. Em síntese, o

epistemólogo (filósofo “reduzido”) da Geografia se interessa antes pelas normatividades e contextos

– todos eles fatores mobilizados na geração de saberes de “ordem um” (sobre, digamos, feições

paisagísticas ou padrões de ocupação e uso do solo).

Figura 1 – Encontros entre Filosofia e Ciência, em “Três Pisos”

Duas ordens de sistematização (sobre a natureza e a história) da ciência geográfica encontram,

naqueles mesmos manuais, propostas díspares. Porque apesar de haver certa proximidade entre

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algumas delas, são também notáveis os dissensos e as divergências. Resulta disso, por exemplo, o

emprego livre de terminologias que, a nosso juízo, mereceriam uma categorização mais

disciplinada: “escolas” (schools of geographical thought; écoles géographiques; escuelas de

pensamiento geográfico), “correntes” (currents of geographic thought; courants géographiques;

corrientes de pensamiento geográfico), “tendências” (trends in geographic thought; tendances de la

géographie; tendencias del pensamiento geográfico), etc.

Quadro 1 – Análise Bibliométrica da Ocorrência de Termos1

Outro efeito simplificador – preocupante, ademais, se pensarmos sobre ao que ele induz em termos

de imaginário de “mudança científica”, junto aos graduandos em Geografia – é o design de uma

trajetória unilinear, contínua ou descontínua, que parte de uma determinada era, atravessa estações

de alteração e aporta numa temporada pluralista. Como ilustração de um desenho do tipo

descontínuo, é comum encontrarmos nos manuais o esquema geral: era tradicionalista (dos

inventários descarregados de teoria), percurso por estações mais normativas (que alguns enaltecerão

como revolucionárias) e alcance de uma temporada polifônica (que outros alguns exaltarão como

aquela em que teria sido definitivamente sancionada a natureza social da ciência geográfica).

Por outro lado, baseados numa literatura amostral anglo-saxônica, francesa e hispânica, pudemos

intuir serem atenuáveis as discordâncias desde que proponhamos uma perspectiva ainda mais

1 Organização do autor, a partir de um rastreamento em <https://www.google.com.br/advanced_search>, com filtros de

configuração (“expressão exata”, “idioma” e arquivo em formato “.PDF”), nos dias 15 e 16 Jul. 2016. [Nestas ocasiões

identificamos o seguinte número de ocorrências para cada termo: “Schools...” (998), “Écoles...” (164) e “Escuelas...”

(513); “Currents...” (7), “Courants...” (123) e “Corrientes...” (639); “Trends...” (1410), “Tendances...” (14500) e

“Tendencias...” (239).].

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radicalmente destoante. Explicamos: conquanto essa intuição pareça contraditória, a ideia reside no

fato de que, a despeito dos desacordos, paira sobre as leituras uma relativa “sintonia”; harmonia esta

que, sendo alvo de uma modelagem teórica, constituiria a guia para uma nova leitura interpretativa –

embora, de fato, a sistematização vá repousar agora sobre uma outra sorte de parâmetros.

Partimos da noção de “3 Quadrantes”, segundo a qual as sistematizações preveriam

enquadramentos complementares:

• o primeiro (Q1), abstraindo tempo e espaço (isto é, o modelo neste caso apenas ressaltaria os

“Timbres” gerais dos estudos geográficos);

• o segundo (Q2), abstraindo conjunturas espaciais (quando o modelo apenas faz demarcar numa

linha abstrata de tempo as “Grandes Épocas” da prática e pensamento geográficos); e

• o terceiro (Q3), dando, enfim, ênfase às conjunturas espaciais (quadrante em que a noção de

“Escola” – de pensamento e/ou prática – estaria, a nosso juízo, efetivamente habilitada).

Remontando a partir do conceito de Escola (que definiria, pois, o alcance de uma “Geografia da

Ciência”), passaríamos pelos conceitos de “Corrente” e “Matiz” (respectivamente delimitadores de

“tendências investigativas” e de “variantes de tendência” em pesquisa científica), e atingiríamos

o conceito de “Vertente” (o qual seria uma espécie de derivação – com vistas a viabilizar reflexões

aplicadas – de determinados “Sistemas de Pensamento”, já de ordem particularmente filosófica).

Ou, se preferirmos, em ordem inversa, teríamos uma relativa “descendência” do tipo: Sistema de

Pensamento > Vertente > Corrente > Matiz > Escola.

Pensamos que a sistematização aqui proposta apresenta uma vantagem funcional no âmbito do

ensino de história e filosofia da ciência geográfica.

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Figura 2 – As Três Trilhas Discursivas da Geografia

(sent. horário: “postura política”, “prática científica” e “postura estética”)

1. Quadrante primeiro (Q1): modelo de “timbres”, a partir de uma imagem de fluência

Descreveremos o esquema seguindo aquela linha de descendência acima referida (SP>V>C>M>E).

Em nossa proposição os “Sistemas de Pensamento” (SP’s) são os timbres formados pelas grandes

orientações filosóficas do entendimento humano. Grandes visões de mundo que, muito

naturalmente, tenderão a estar infiltradas (“mais adiante”, na cadeia das constituições explanatórias)

nos esquemas científicos de descrição/interpretação. Três pares de SP’s são particularmente

motrizes, sendo que há uma certa predisposição de um dos constituintes do par inserir-se no plano

do concreto e dos sentidos (enquanto o outro parece enraizado mais no plano do abstrato, da razão ...

com alguma migração possível à sensibilidade emocional). Os três pares seriam: Empirismo e

Racionalismo, Realismo e Idealismo, Materialismo e Humanismo. A História da Filosofia

demonstra quão vasta pode ser se tomarmos cada um destes seis SP’s como uma “família” ou

“ordem” de pensamento. Fato verificado já pela heterogeneidade de autores possíveis de vincular,

por dado motivo, a uma dessas famílias.

Podemos enxergar os Sistemas como que canais encravados num altiplano. Quando, porém, escoam

em declive assumem a condição as Vertentes.

“Vertente” viria a ser, portanto, uma derivação a partir de um ou vários SP’s; sendo que detentora já

de uma característica muito peculiar: tem intenção concentrada (ou, ação centrada) a um fim.

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Descola-se das moções meramente especulativas e/ou essencialistas, rumando a um plano que logo

poderá redundar em argumentações propriamente resolutivas, ou pelo menos dirigidas a contextos

mais aplicados. Isso significa, então, que uma Vertente, de certo modo, intermedeia ou conecta um

planalto de reflexões filosóficas a uma planície de práticas científicas. E, como se presume, também

pode ser entendida como uma ordem mais especial de SP’s “antecedentes”. O Positivismo Lógico,

assim como as várias modalidades de Pragmatismo, seriam bons exemplos de Vertentes – chamando

a atenção para o fato de que o primeiro verteria uma mescla ou confluência dos sistemas empirista e

racionalista.

[Em pesquisas anteriores já nos referimos a essa transição PhiSci como uma “introjeção” de

“preceitos filosóficos” em “premissas científicas” (Reis Jr., 2014), ou como uma “correspondência”

relativa entre “cláusulas” do sistema filosófico e “atributos” do discurso científico (Reis Jr. et al.

2016).].

Realizada a “derivação” encontramo-nos, por fim, no baixo terreno do pensamento e da prática

científicos. Por esta planície mundana escoam todos aqueles canais que serão, em última análise,

“rebatimentos” (no plano agora das investigações normatizadas) de SP’s e V’s ascendentes. É nesta

planície ou campo aberto que localizaremos a atuação de uma ciência. E chamaremos “Corrente”

cada possível manifestação (já, é claro, embebida em projetos aplicados e/ou resolutivos) de

pensamentos filosóficos redivivos. Ela consiste, então, de uma “tendência” verificada dentro de um

campo científico.

Seguindo na analogia fluvial, é conveniente incorporarmos também a imagem dos canais que se

ramificam em avulsão. Estes ramos instituiriam o timbre “Matizes”.

“Matiz” representaria uma “variante” alternativa de certa tendência. Sendo assim, considerando o

caso da ciência geográfica, enquanto tendências que aqui denominaríamos Geografia “Descritivo-

Classificatória”2, Geo. “Matemático-Mensurativa”3, Geo. “Modelística” e Geo. “Irracionalista”

configurariam Correntes, variantes de tendência tais como (digamos) Geografia “I.-Humanística”,

G.“M.-Quantitativa” e G.“M.-Representacional” configurariam Matizes. (Ressaltando que estas

2 Sugestão de timbre particular para a prática (das mais antigas na história de nossa disciplina) dos inventários

“catalográficos” a campo, descarregados de qualquer grade teórica sofisticada. 3 Sugestão de timbre particular para a prática (tão ou mais datada que a catalográfica) das representações geométricas e

estabelecimento de sistemas de localização. Timbre que aproximou, por largo tempo, geógrafos e astrônomos.

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duas últimas seriam, particularmente, as variantes da Corrente “Modelística” de Geografia; enquanto

a primeira, uma ramificação de sua Corrente Irracionalista).

Quadro 2 – Exemplo de Proposta de Reclassificação

Um modelo de classificação que interponha esses específicos dois timbres (da Corrente e do Matiz)

é particularmente oportuno para o caso do ensino de Epistemologia da Ciência Geográfica (E:cg).

Isso porque os manuais correntes também costumam difundir (talvez mesmo a despeito das boas

intenções de seus autores) a imagem de “paradigmas” da investigação geográfica que seriam quase

que perfeitamente homogêneos, identitários, em suas (aparentes) estritas manifestações –

“Geografía Clásica” (Gomez-Mendonza; Muñoz-Jiménez; Ortega-Cantero, 1994), “Applied

Geography” (Martin; James, 1993), “Humanistic Geography” (Dikshit, 2013) –; sendo que com o

certo agravante de, frequentemente, haver uma multi-rotulagem para cada um destes (supostos)

paradigmas identitários: “Geografía teorética” e “Geografía cuantitativa” (Capel, 1983), “nouvelle

géographie” (Deneux, 2006; Claval, 2008).

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Figura 3 – Dos Sistemas de Pensamento Filosófico aos Matizes de Investigação Científica

2. Quadrante segundo (Q2): “grandes épocas”, num modelo de marcos temporais

Nesta opção de tratamento, relativamente mais previsível e simples, admitimos a imagem clássica de

uma linha do tempo (LT) que não realça as conjunturas de espaço. Trata-se, portanto, de um modelo

bastante tradicionalista; e cuja originalidade – se assim podemos denominar – vai ser apenas

residual (se bem que igualmente útil para conferir alguma versatilidade ao ensino de E:cg): ele

remaneja os termos correntes nos manuais, a fim de pontuar as visíveis inflexões havidas na história

da Geografia (geografias “Antiga”, “Moderna”, “Científica”, etc.).

Em nossa LT é proposto o séc.18 como marco temporal fronteiriço entre uma longa “era pré-

científica” da Geografia e a atual “era científica”. O referido século é escolhido em função de ter

ambientado não as primeiras, decerto, mas as mais expressivas iniciativas de promover a

institucionalização dos saberes geográficos (neste contexto, saberes já concluindo sua decisiva

articulação com as instâncias político-administrativas e com os modernos códigos de localização e

representação do espaço).

Propomos, contudo, que dados os notórios feitos empreendidos por personagens precursores (tais

como Bernhard Varen, 1622-1650), a faixa temporal entre os séculos 17 e 18 constitua a “época

pré-moderna” – uma temporada de antecedentes; ou, de preparação da nova era a eclodir. Nesta

estreita faixa de tempo se arquitetarão, aos poucos, os princípios canônicos da vindoura ciência

Geografia: localização, distribuição, conectividade, dicotomia.

Por conseguinte, a época inaugural da era científica receberia a denominação de “época moderna”,

que entendemos se estender por cerca de dois séculos de meio (do séc.18 até meados dos anos

1950s). Uma temporada suficientemente longa para que se concebessem, disseminassem,

adaptassem e cristalizassem progressivas sistematizações do trabalho e da linguagem do geógrafo –

mas tendo havido em seus cerca de oitenta derradeiros anos um incremento discursivo e

bibliográfico mais substantivo (“Período Clássico”, nomearíamos). Esta brilhante microtemporada

seria sucedida pela “época contemporânea”, a contar dos anos 1950s.

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Como todos sabemos, esta nossa época está fundamentalmente caracterizada pelo emprego

generalizado de protótipos teóricos que, como a adjetivação já indica, operam na interposição de um

parâmetro analítico-interpretativo a partir do qual os geógrafos estimam a causalidade (ou os

significados) dos fenômenos e processos.

No sentido de uma hipotética “ponta” extrema oposta dessa LT, estaria demarcada a “época

antiga”. Difícil de estabelecer qualquer marco preciso de sua eclosão, o fato é que ela (excetuando

aquela pequena temporada sugerida, pré-moderna) praticamente coincidiria com a grande era pré-

científica. E se admitirmos a ideia de que os saberes geográficos já teriam estado presentes e ativos

quando o exercício das faculdades cognitivas habilitou nossa espécie, em tempos já remotos, a

desenharem as estratégias de sobrevivência que tinham a ver com táticas de mobilidade e

demarcação de territórios de uso, então essa extensa era deverá ser contada em dezenas de milênios.

Isto é, a “tardia” ciência geográfica teria numa antiquíssima prática sociobiológica da geografia

(uma geografia da sobrevivência, praticamente) sua ancestralidade.

Figura 4 – Linha do Tempo com Grandes Épocas

3. Quadrante terceiro (Q3): o advento de “escolas”, numa geografia das práticas científicas

Este terceiro âmbito do modelo geral de sistematização eleva a Geografia ao piso dos ângulos já

metacientíficos. Isto é, a disciplina deixa de ser apenas “mais um” objeto a ser examinado pela

Epistemologia (logo, filosófica e historicamente), e passa a constituir, também ela, uma lente

analítica disposta sobre (possivelmente) outras ciências que não ela própria – a exemplo do que faz

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uma Sociologia da Ciência, lente analítica mirando as relações de grupo operantes na prática da

Física, por exemplo. Assim, sem qualquer dúvida, se fariam estudos, por exemplo, de “Geografia da

Química”, “Geo. da Ciência Política”, etc. Isso porque, digamos, uma “geografia do pensamento e

da prática científicos” falaria do advento (sempre local) de certo estilo interpretativo (ou modalidade

técnica) que, uma vez perceptível (o que chamaríamos “eclosão”), se desenrolaria por um

determinado lapso de tempo, findo o qual (por fatores naturais de amadurecimento) poderíamos

atribuir a essa etapa de epílogo o termo “ocaso”. Há, portanto, neste quadrante três, fortemente a

presença da noção de tempo; muito embora, é claro, seja a ênfase na conjuntura espacial o que

interessa à análise. “Onde” se constituíram (ou foram adaptados/reinterpretados, ou pura e

simplesmente aplicados, ou, ainda, retransmitidos) certo modelo teórico ou artefato/procedimento

técnico? Um Δt decorre e fala da trajetória de um local tornado bastante vívido: um coletivo de

professores de ações bem harmonizadas, um programa de pós-graduação centrado em projetos

originais e fecundos, uma agremiação de pesquisadores bem estribada em infraestrutura laboratorial

e favorecedora de interlocuções efervescentes ... enfim, places onde os empreendimentos – tenham

ocorrido por um jogo caprichoso de contingências, ou sido perfeitamente deliberados pelos atores do

lugar – tenderão a atrair mais sujeitos, vindos “de fora” (novos jovens doutorandos, p.ex.), bem

como a propagar ideários e exportar profissionais capacitados. Numa dinâmica local (provisória,

mas com prazo não fixo) onde passam a operar o que poderíamos referir como forças “centrípetas”

e “centrífugas”.

Figura 5 – Geografia dos Pensamentos e das Práticas Científicas

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Considerações finais

Mas então o que teria de significar um necessário “quarto quadrante”? Uma abstrata geografia onde

pudessem estar rebatidas filosofia, história e geografia da(s) ciência(s)? Não saberíamos por ora

asseverar.

O certo é que as confusões que se manifestam no imaginário dos estudantes de Geografia, muito

previsivelmente, decorrem desta falta de aclaramento: em que precisos momentos sobre a prática ou

postura geográfica (a da investigação científica ou a do engajamento político) cabe fazer uma

análise filosófica? E de que natureza ela precisaria ser, caso a caso? Já de saída é preocupante ver

que, pelo menos em se tratando de Brasil, não é tão frequente na literatura sobre Epistemologia da

Geografia o recurso a tudo aquilo que a bibliografia mais específica em Filosofia da Ciência tem

documentado aos interessados. Como é perturbador notar que, talvez mirando alvos errados, temos

estado a extrair de uma filosofia continental generalista orientações que se provam, na realidade,

débeis se a nossa meta é compreender e avaliar a prática da investigação especialmente “científica”

em Geografia.

A referida bibliografia – literatura longeva e extensa –, sem dúvida, poderia nos auxiliar, numa das

trilhas da Geografia, a melhor perceber os entretons dos sistemas de pensamento e suas dimanações

até os terrenos da metodologia científica. Não é que pelos quadrantes queiramos trazer à vista vieses

originais; é quase o contrário. Pelo modelo apenas intentamos propor o design de unidades didáticas

mediante as quais “melhor enquadrar” (a nosso modesto juízo) três questões-chave para o ensino de

natureza da ciência geográfica: (a) como sistemas de pensamento filosófico se transpõem ou

desembocam nos variantes tipos de procedimento investigativo do geógrafo; (b) como os

empreendimentos sucessivos na história da Geografia podem ser distribuídos em eras e épocas,

tirando-se proveito das principais denominações já correntes nos manuais; e (c) como ressaltar que a

própria Geografia pode constituir-se em uma perspectiva analítica a mais dentro das disciplinas

metacientíficas – validando-se aí o campo da “Geografia da Ciência” e, nesta precisa mira de tiro, o

termo “Escola”.

Literatura Consultada

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