doenÇa e escravidÃo no sÉculo xviii: construindo um …

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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia 14º SNHCT Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 DOENÇA E ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XVIII: CONSTRUINDO UM QUADRO NOSOLÓGICO Maria Cristina Rosa 1 Júlia Carvalho Oliveira 2 INTRODUÇÃO A produção acadêmica sobre saúde abrangendo o século XVIII no Brasil ainda é pouco expressiva, mas em plena ascensão. Simpósios temáticos que tratam sobre o tema história da saúde e da doença, em eventos nacionais e internacionais, são oportunidades impares para aprofundamento e discussões de trabalhos que privilegiam o assunto. Estudos abrangendo doenças dos escravos no século XVIII na América Portuguesa têm especialmente manuais e tratados médicos como fonte, como os trabalhos de Nogueira (2011), Abreu (2011) e Eugênio (2000). Esses são essenciais, todavia pesquisas que podem ser complementares estão sendo desenvolvidas a partir de outras fontes, como óbitos, inventários e testamentos, devassas, trazendo à tona situações e processos vivenciados pelos indivíduos na vida cotidiana. Esses podem ajudar a compreender práticas de cura, manifestações de doenças, ações de conservação e restabelecimento da saúde, cuidados com o corpo etc. como partes constituintes da vida, bem como suas relações com outras esferas, como a social, a política e a econômica. Em Minas Gerais, há um vasto corpus documental composto por fontes arquivísticas manuscritas disponibilizado em registros eclesiásticos e cartoriais, configurando-se como fontes potenciais para estudos que podem contribuir com a história das ciências da saúde. Exemplos: assento de óbito, devassa eclesiástica, inventário post-mortem, justificação, notificação, testamento e devassa civil que trazem 1 Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação. 2 Universidade Federal de Ouro Preto. Graduanda em Medicina, Bolsista de Iniciação Científica (FAPEMIG). Financiamento: FAPEMIG

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08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

DOENÇA E ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XVIII: CONSTRUINDO UM

QUADRO NOSOLÓGICO

Maria Cristina Rosa1

Júlia Carvalho Oliveira2

INTRODUÇÃO

A produção acadêmica sobre saúde abrangendo o século XVIII no Brasil ainda é

pouco expressiva, mas em plena ascensão. Simpósios temáticos que tratam sobre o tema

história da saúde e da doença, em eventos nacionais e internacionais, são oportunidades

impares para aprofundamento e discussões de trabalhos que privilegiam o assunto.

Estudos abrangendo doenças dos escravos no século XVIII na América

Portuguesa têm especialmente manuais e tratados médicos como fonte, como os

trabalhos de Nogueira (2011), Abreu (2011) e Eugênio (2000). Esses são essenciais,

todavia pesquisas que podem ser complementares estão sendo desenvolvidas a partir de

outras fontes, como óbitos, inventários e testamentos, devassas, trazendo à tona

situações e processos vivenciados pelos indivíduos na vida cotidiana. Esses podem

ajudar a compreender práticas de cura, manifestações de doenças, ações de conservação

e restabelecimento da saúde, cuidados com o corpo etc. como partes constituintes da

vida, bem como suas relações com outras esferas, como a social, a política e a

econômica.

Em Minas Gerais, há um vasto corpus documental composto por fontes

arquivísticas manuscritas disponibilizado em registros eclesiásticos e cartoriais,

configurando-se como fontes potenciais para estudos que podem contribuir com a

história das ciências da saúde. Exemplos: assento de óbito, devassa eclesiástica,

inventário post-mortem, justificação, notificação, testamento e devassa civil que trazem

1 Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação.

2 Universidade Federal de Ouro Preto. Graduanda em Medicina, Bolsista de Iniciação Científica

(FAPEMIG).

Financiamento: FAPEMIG

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descrições de corpos; apontamentos sobre doenças, sinais e sintomas; práticas de

cura, entre outros elementos.

Este trabalho tem por objetivo apresentar um perfil nosológico de doenças

encontradas no século XVIII no Termo de Mariana, tendo como referência a população

escrava. As principais fontes foram os inventários e inventários com testamentos.

Buscou-se também contemplar possibilidades, dificuldades e limites para a construção

do mesmo.

A dificuldade inicial revela-se sobre a possibilidade ou não de se construir um

perfil nosológico para o século XVIII, diante da qualidade das informações encontradas

nas fontes escolhidas. Karasch (2000) e Magalhães (2005, 2004), por exemplo, ao

organizar e classificar doenças dos escravos no Rio de Janeiro e Goiânia,

respectivamente, para o século XIX, tiveram como fonte registros de óbito. Todavia

esse tipo de documentação referente ao século XVIII traz limitações, pois, como mostra

Valadas (2008), não era uma exigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da

Bahia constar a descrição da causa da morte no assento de óbito. Em Porto Alegre, e em

outros locais, é a partir de 1799 que começa a aparecer com freqüência a causa da

morte. Até então era comum aparecer, especialmente, “afogamento”, “morreu

repentinamente”.

Além disso, Nogueira chama atenção para tentativas de classificação das

doenças a partir de padrões atuais. Como afirma:

como qualquer outro objeto de investigação histórica, as doenças devem ser

igualmente historicizadas. Ou seja, devemos estar atentos para as diferentes

formas de explicação e concepção dos males que acometiam os corpos de

indivíduos que, vivendo em épocas diferentes da nossa, certamente possuíam

outro tipo de arsenal mental para dar conta e remediar esse momento de

fragilidade da existência humana, a produzir, consequentemente, intervenções

e explicações diferentes das vigentes hoje (2011: 42).

Considerando esses e outros riscos, alguns exercícios estão sendo feitos e são

descritos abaixo. A tentativa é de melhor conhecer as doenças e seus acometimentos no

século XVIII a partir de fontes que dizem sobre a vida dos escravos.

Alguns cuidados estão sendo tomados, como: manter a descrição da referência à

doença, sinal ou sintoma encontrados na fonte consultada; trabalhar com dicionários de

época para compreensão dos termos; e tentar dialogar com classificações de

periodicidades mais próximas à estudada, como, por exemplo, as organizadas para o

século XIX, que são mais comuns. Todavia, esclarecemos que este é um trabalho em

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andamento, sendo oportuna a possibilidade de discussão do que está sendo construído,

que sofrerá alterações no decurso do trabalho.

INVENTÁRIOS POST MORTEM COMO FONTE

Inventários e testamentos, “quando bem analisados, mostram, ou deixam

transparecer, informações de ordem social, econômica, cultural, educacional, religiosa,

política e administrativa” (FLEXOR, 2005: 1). Os inventários, especificamente, são

tratados por Schnoor como “documentos príncipes”, termo do vocabulário de

colecionadores que designa “aqueles que por sua importância modificam de alguma

forma um ou outro ponto da historiografia” (2007: 3), assim considerados por trazerem

informações substanciais sobre a conjuntura histórica a que estão vinculados.

Foram pesquisados inventários post mortem no Arquivo da Casa Setecentista de

Mariana, especialmente o item bens materiais, em que escravos são listados e na sua

descrição são encontrados sintomas e sinais de doenças, uma vez que o valor do escravo

tem relação direta com a sua saúde.

No entanto, por serem redigidos por louvados, que são peritos avaliadores, e não

agentes das artes de curar, os inventários são uma fonte com limite de informações

sobre o estado de saúde e/ou doença dos cativos, negligenciado informações do

processo de adoecimento ou da doença já instalada. Há, pois, falta de especificação das

doenças nas descrições e avaliações dos escravos nos arrolamentos de bens. Em alguns

inventários as informações sobre as doenças são insuficientes, além do fato de que

muitas descrições têm sintomas mal definidos, como “com moléstia no peito e no

pescoço” ou “enfermidade no estômago”, sendo que a amplitude do termo empregado

na descrição pouco diz sobre o estado de saúde do indivíduo. Isso reflete a subjetividade

com que as descrições dos bens são feitas, negligenciado informações melhor

pormenorizadas, o que deixa os inventários numa condição de porta de entrada para os

dados, que precisam ser complementados com auxílio de outras tipologias de fontes,

dentre elas, as impressas, como os manuais e tratados de medicina.

Outro ponto a se considerar é a imprecisão da descrição das doenças dos

escravos nos arrolamentos de bens. Em grande parte, eles são listados apenas como

‘doentes’, ‘molestos’ ou ‘achacados’. Todavia, esse tipo documental nos possibilita

fazer um exercício complexo e importante de tentar compreender as doenças nessa

época.

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PRIMEIRA TENTATIVA DE CONSTRUIR UM QUADRO NOSOLÓGICO

A construção do perfil nosológico referente ao século XVIII iniciou-se na

pesquisa “Levantamento e catalogação de fontes para estudo da história dos corpos na

comarca de Vila Rica (1700 -1808)”, que realizou uma ampla pesquisa sobre acervos

em arquivos de Ouro Preto e Mariana, no recorte temporal de 1700-1808, num esforço

de sistematização de informações que aprofundassem conhecimentos sobre o corpo do

século XVIII. O presente trabalho é uma continuidade dessa pesquisa, que teve como

principal produto o Catálogo de Fontes História da Saúde e das Doenças na Comarca de

Vila Rica (1700-1808), disponível em http://www.nec.ufop.br/catalogo/catalogo.html,

em que foram catalogadas informações sobre moléstias, agentes das artes de curar, entre

outras informações.

Tendo em vista que os inventários tinham como função a listagem, a avaliação e

partilha de todos os bens, dívidas e créditos que o inventariado deixava, os escravos

eram descritos juntamente aos bens móveis e imóveis, com informações sobre nome,

sexo, origem ou nação, estado físico, habilidades e preço (FLEXOR, 2009: 2). Dessa

forma, as descrições dos bens dos inventários, principalmente no que se refere aos

escravos, permitiram identificar doenças mais recorrentes, sua relação com idade, etnia

e sexo e também a intrínseca relação das enfermidades com a desvalorização monetária

dos escravos. Esse fato é relatado por Schnoor em seu estudo sobre escravarias do vale

do Paraíba na primeira metade do século XIX, em que afirma: “muitos deles alcançaram

valores pequenos, justificados pelos Louvados. Eram os doentes, aleijados, loucos,

alcoólatras” (2007: 7).

Segue abaixo um primeiro agrupamento das doenças realizado por Rosa,

Quadros e Gelape (2013) 3

, tendo como referência inventários post-mortem do 1º Ofício,

do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, abrangendo a temporalidade de 1751 a

1808:

TABELA 1 – Doenças dos escravos encontradas nos inventários post mortem

Doenças

Doente, enfermo, achacado ou

molesto (sem outra

especificação)

Gota Coral Doença de fígado

3 Esses dados estão sendo trabalhados em outro artigo, constando o número de acometimentos por década

e outras variáveis.

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Aleijado, membro(s)

defeituoso(s)

Gota Expelindo sangue pela

boca

Quebrado, rendido da(s)

virilha(s)

Inútil e incapaz Falta de dentes e doença

na boca

Papo Demente, doido, pateta, sem

atenção

Cambota, zambro

Ferida(s) pelo corpo Cansaço, opilação, vício de

comer terra

Doente dos pés, azengas,

quizilas

Incapacidade por velhice, velho Suturado, operado Lobo

Erisipela Morféia, lepra, mal de lázaro Surdo, doente dos

ouvidos

Cego, zaino, com víscida e

belida nos olhos

Asma Queimadura

Inchado dos pés e pernas Gagueira Doença de sangue

Obstrução Mudo Estuporado

Lesão, fratura, destroncamento

de membro(s)

Outras

Fonte: AHCSM. Inventários, 1º Ofício, 1751-1808

A princípio, algumas das doenças mais recorrentes dos escravos no Termo de

Mariana encontradas nos inventários foram agrupadas com a finalidade de se apresentar

mais didaticamente os dados obtidos. Como exemplo, as virilhas rendidas ou quebradas,

que tratam-se de hérnia intestinal (Bluteau, 1792, p. 33), apareceram nas descrições

normalmente dessas formas, mas não é incomum que elas sejam escritas especificando

os escravos apenas como “quebrados” ou “rendidos”. São denominações diferentes para

a mesma doença, o que é o caso também do Papo, referente ao Bócio (Bluteau, 1792, p.

241), outra moléstia de grande decorrência no período.

O agrupamento inicial também foi feito para doenças que apresentam similitudes

de sintomas e implicações, tomando-se como exemplo o caso dos escravos aleijados e

os com membros defeituosos, e dos cativos com feridas e manchas pelo corpo. No

primeiro caso, ambas origens das moléstias podem ser provenientes de esforços de

trabalhos e castigos senhoriais, bem como as implicações, tendo como a principal a

privação de certos serviços. E quando se trata das feridas e manchas cutâneas, em

ambos os casos podem ser provenientes das más condições de higiene, vestimenta e

alimentação, tendo como principais implicações coceiras, sangramentos e infecções na

pele.

Alguns outros tipos de doenças ou sinais/sintomas também foram encontrados,

mas por se tratarem de casos isolados em meio à amostragem metodológica, foram

sintetizados na linha denominada “outros”, porém, não quer dizer que o estudo dessas

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doenças seja menos relevante à historiografia do tema, ou mesmo que não se tratavam

de preocupações no período colonial.

SEGUNDA TENTATIVA DE CONSTRUIR UM QUADRO NOSOLÓGICO

A partir dessa catalogação inicial, percebeu-se a necessidade de se conhecer de

maneira mais profunda o perfil nosológico dessas doenças, em busca da compreensão

de suas possíveis causas e sua correlação com o modo de viver daquela população

cativa naquele período.

Vendo a necessidade de se compreender a fundo termos descritos nas fontes,

está sendo feito um cruzamento de fontes manuscritas com fontes impressas, como

manuais e dicionários médicos, para que se possa construir uma classificação adequada

das descrições em sistemas do corpo humano acometidos ou fontes causais. Dessa

forma, tendo como referência o Glossário de Doenças, produzido por Rosa, Quadros e

Gelape (2013), que está sendo ampliado nesta pesquisa e tem como referência principal

o dicionário Bluteau (1712), está sendo construída uma nova tabela, contendo uma

coluna com o significado de descrições antes incompreendidas, o que dificultava a

classificação.

Percebeu-se também que a primeira tentativa de construção do quadro

nosológico não foi capaz de abordar todos os acometimentos descritos nos inventários,

negligenciando descrições como “escorbuto”, boubas”, “bexiga”, dentre outros

processos de adoecimento intrinsecamente relacionadas ao meio social vigente. Isso

reforçou a necessidade de se obter categorias que abrangessem todos os termos descritos

nos inventários analisados.

A princípio foram tomados como referência para essa categorização das doenças

dois quadros nosológicos estabelecidos para o século XIX, no Rio de Janeiro

(KARASCH, 2000) e em Goiás, (MAGALHÃES, 2004), que trazem as seguintes

formas de classificação.

Tabela 2 – Referências de Metodologias de Classificação

KARASCH, 2000 MAGALHÃES, 2004

Doenças infecto-parasitárias Doenças da infância, gravidez e parto

Sistema digestivo Doenças infecciosas e parasitárias

Sistema respiratório Doenças do aparelho digestivo

Sistema nervoso e sintomas neuro- Doenças do aparelho circulatório

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psiquiátricos

Primeira infância e malformações

congênitas

Doenças de transtornos mentais e sistema

nervoso

Morte violenta e acidental Doenças do sangue e nutricionais

Sistema circulatório Doenças do aparelho respiratório

Doenças reumáticas e nutricionais e

doenças da glândula endócrina

Doenças do aparelho geniturinário

Gravidez, parto e puerpério Doenças de neoplasias

Sistema Geniturinário Doenças de sintomas mal definidos

Causas desconhecidas (Variadas) Doenças de pele e do tecido subcutâneo

Causas de morte mal definidas Doenças de lesões, envenenamentos e

outras causas externas

A partir dessas referências, que classificam descrições encontradas em registros

de óbito, percebeu-se a necessidade de construir algumas novas categorias de

classificação, uma vez que este estudo analisa processos de adoecimento que não

necessariamente tenham levado ao óbito dos escravos descritos em inventário. Foram

então estabelecidas as seguintes categorias de classificação:

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Tabela 3 - Metodologia de Classificação Adotada

CATEGORIA DESCRIÇÃO ANATOMOPATOLÓGICA (em

termos atuais) EXEMPLO

Doenças do

sistema

digestório

Doenças relacionadas aos órgãos do sistema digestório e

seus anexos –

boca, faringe, esôfago, estômago, intestino

delgado, intestino grosso, reto, ânus, pâncreas,

o fígado e vesícula biliar (MOORE, 2007).

“quebrado das

virilhas” ou

“doente do

fígado”

Doenças do

sistema

respiratório

Doenças de fossas nasais, boca, faringe, laringe,

traquéia ou pulmões (BOGLIOLO, 2000).

“achaque de

asma” ou

“tísico”

Doenças do

sistema nervoso

e sintomas

neuro-

psiquiátricos

Doenças relacionadas anatomicamente ao Sistema

Nervoso Central ou Sistema Nervoso Periférico

(MOORE, 2007), ou que tenham levado a alterações das

funções psíquicas elementares (DALGALARRONDO,

2008).

“gota coral”

Doenças do

sistema

geniturinário

Doenças relacionadas aos rins, ureteres e bexiga e aos

órgãos genitais masculinos e femininos (BOGLIOLO,

2000), excluindo-se aquelas relacionadas à gestação ou

ao parto.

“com os

testículos

melhores”,

“doente da

madre com

esta de fora”

Doenças do

sistema

circulatório

Doenças relacionadas ao coração, veias, artérias,

linfáticos ou mesmo aos vasos de menor calibre

(BOGLIOLO, 2000).

“obstrução”

Doenças do

sistema sensorial

Doenças relacionadas aos sentidos - visão, audição,

olfato, tato, paladar (MOORE, 2007) – sejam elas de

origem traumática ou não traumática. No caso de

comprometimento da função do órgão – como “surdo”,

ou “cego” – essa classificação foi ainda acrescida de

Disfunção.

“belida”,

“surdo”

Doenças infecto-

parasitárias

Qualquer destruição tissular com manifestações clínicas

e

patológicas de infecção (BRASIL, 2014)– com exceção

das doenças infecciosas da pele, que foram descritas

separadamente;

“barriga

d´água”

Doenças

reumáticas,

nutricionais e

glandulares

As doenças reumáticas são aquelas doenças e alterações

funcionais que comprometem o aparelho músculo-

esquelético – ossos, cartilagem, estruturas peri-

articulares e/ou de músculos – de forma não traumática;

as doenças nutricionais são aquelas relacionadas à

deficiência de certos nutrientes, como vitaminas ou sais

minerais, gerando sintomatologia já bem caracterizada

desde o século XVII, como, por exemplo, o escorbuto;

as doenças glandulares são aquelas relacionadas ao

sistema endócrino, responsável pela produção e

secreção de hormônios (BOGLIOLO, 2000).

Exemplo:

“papo”,

“escorbuto”

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Doenças da pele

Referem-se a qualquer afecção do tecido epitelial,

culminado em lesões cutâneas superficiais ou profundas,

incluindo-se também nesta classificação as feridas

cancrosas (neoplasias cutâneas), além das doenças das

mucosas, como afecções na boca, lábios, gengiva,

língua (JUNQUEIRA & CARNEIRO, 2004). Neste

caso, excluem-se as lesões de pele traumáticas e as

doenças de mucosa genital, que foram descritas

separadamente.

“erisipela”.

Deformidades

congênitas ou

adquiridas

Abrangem todos os desvios em relação à forma,

tamanho, posição, número e coloração de uma ou mais

partes decorrentes de condição morfológica congênita,

além das deformidades adquiridas, decorrentes de

alguma condição pós-natal, seja ela de origem laboral,

acidental ou patológica (FREIRE-MAIA, 1976; OPAS,

1984). Lesões agudas, provenientes de acidentes ou

acometimentos externos, com ampla chance de cura sem

culminar em deformidades, foram classificadas

separadamente.

“aleijado”,

“malfeito”

Acidentes, lesões

externas

Lesões sabidamente ocasionadas por acidentes ou lesões

traumáticas, não representando doenças de mecanismos

fisiopatológicos. No caso de levaram à perda da função

do órgão, foram ainda classificadas como Disfunção.

fraturas,

“fístulas”, ou

quaisquer

outros achados

provenientes

de traumas,

incluindo as

“suturas”.

Gestação ou

problemas de

gravidez/parto

Gestante ou que apresente complicações que tenham

ocorrido durante a gestação ou durante o trabalho de

parto. Excluem-se as questões embriológicas, que foram

classificadas separadamente.

“pejada”

Senilidade

Sintomatologia sabidamente decorrente do processo de

envelhecimento, geralmente associada à Disfunção.

“velho de

idade”

Disfunção

Doença de qualquer órgão que tenha culminado em

perda de sua função. Essa classificação é uma

complementação do acometimento primário. Portanto,

no caso de disfunção, sempre há uma classificação

prévia.

“cego”

Ao iniciar o processo de classificação das descrições dos inventários, baseando-

se nessas categorias, notou-se uma forte limitação, também relatada por Magalhães

(2004:119)

Umas das dificuldades é a apreensão da terminologia das doenças, pois os

registros apresentam as denominações populares variáveis no tempo e no

espaço. Outra, é a ausência de padronização dos registros, pois em alguns

períodos o documento apresenta riqueza de detalhes e em outros, sequer a

causa da morte é registrada.

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Apesar de não nos interessar a causa da morte, a ausência de informações

precisas e/ou o desconhecimento de alguns termos se mostraram como uma limitação à

classificação de algumas descrições, fazendo-se necessário a utilização da categoria

doenças de sintomas mal definidos, sugerida por Magalhães (2004).

Nessa categoria foram inseridas descrições que não puderam, até o momento, ser

classificadas em nenhuma das categorias acima citadas, por descrição pobre da

sintomatologia, como “doente”, “achacado”, dentre outros, ou por desconhecimento da

terminologia utilizada, como “muito inferior”, “com um lobinho”, “com doença de

pestária”, “com falta de conjunção”, “alparcas no pescoço”, “com achaque de

congolha”, “fintes”, “serrador”, “costumeira”, “rendura”, “rendeira”, “trombeta”,

“palmilhador”, “chagas pelo corpo gallico”, “pés gretados”, “achaque de bamba”,

“zaino de um olho”, “víscida no olho”, “maneta”, “pranto no sangue”, “estípola”,

“espinha inchada”, “beiçudo”, “externado”, “doente de sílica”, “com defluxo no peito”,

“doente de pilouriz”, “doença de cística”.

A partir da adoção dessa terminologia para a construção do quadro nosológico, a

pesquisa encontra-se em fase de classificação das doenças com base nas categorias

adotadas, para uma posterior análise dos dados colhidos e cruzamento entre as variáveis

disponíveis, como gênero, idade e etnia. Todavia, no decorrer desse processo estão

ainda sendo estabelecidos critérios para tentar sanar possíveis interseções entre as

categorias. Isso ocorre, por exemplo, em descrições como edema não especificado

(“inchação”) que foi alocado em doenças de sintomas mal definidos, uma vez que pode

ter diversas causas que não sejam diretamente o acometimento circulatório, que vão

desde fraturas a infecções de tecidos moles; ou mesmo “achaque de fígado”, que pode

estar relacionado ao sistema digestório ou a doenças infecto-parasitárias, cirrose,

neoplasias, dentre diversas outras possibilidades.

Figueiredo aborda essa imprecisão das informações nas fontes e afirma: “os

sintomas são sempre resultados, e é difícil localizar uma descrição na qual os sintomas

estão diretamente associados a um diagnóstico. Logo, os sintomas podem ser assoados a

diversas doenças” (2006: 258).

Esse fato também é recorrente em descrições subjetivas, como “com

enfermidade no estômago”, “achaque no pescoço” ou “com o pé doente”, que se

referem ao local acometido, mas não especificam o tipo de acometimento. Outro caso é

a descrição “lança sangue pela via”, que poderia se referir tanto a uma doença do

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sistema respiratório, com hemoptise, quanto a uma doença do sistema digestório, com

melena. Segue abaixo exemplo desse processo de classificação, com algumas dessas

dificuldades aqui relatadas.

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Tabela 4 – Processo de classificação em andamento

Espera-se dessa análise estabelecer correlações entre as doenças, suas

implicações sócio-político-culturais e os conhecimentos médicos vigentes no período,

contribuindo com o aparato histórico-científico dos estudos sobre o corpo. De todo

modo, este estudo já vem identificando correlações entre as doenças, as condições de

vida e trabalho e suas implicações na temporalidade setecentista, compreendendo o

corpo como local de inscrição, produção e expressão da cultura vigente no contexto da

sociedade escravista.

REFERÊNCIAS

4 VERBETE QUEBRADO: O que tem hérnia intestinal (designação do termo em latim). IN:

BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes e da Companhia de

Jesus, 1712; p.33 5 Acometimento pobremente descrito

6 Leitura paleográfica dificultada pela letra ou pelo estado documental

7 Verbete desconhecido

Nome Procedê

ncia/Etn

ia

Idade Valor Acometiment

o

Ano

Categoria

André Benguela 28 130/8 Quebrado da

virilha4

1750 Doenças do sistema

digestório

Quitéria Mina-

courano

28 100$0

00

Achacada de

asma

1740 Doenças do sistema

respiratório

Miguel Mina 70 25$00

0

Gota coral 1762 Doenças do sistema

nervoso e sintomas

neuro-psiquiátricos

Antônio Carabaí 50 40/8 Aleijado de

ambos os

dedos grandes

do pé

1736 Deformidades

congênitas ou

adquiridas

Brisida de

Pernambuco

Mulata 29 Sem

valor

Incapaz de

serviço

1749 Disfunção

Antônio Cobu 20 110/8 Beiço de baixo

vermelho5

1744 Doenças de sintomas

mal definidos

Bernardo Mina 18 120 Com b[...] nos

joelhos6

1743 Doenças de sintomas

mal definidos

Miguel Congo 40 50$00

0

Com cosa

choques7

1761 Doenças de sintomas

mal definidos

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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

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