do espírito da pobreza

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Do espírito da pobreza Quando os dentes se gastam e ficam frouxos, a gente os substitui por uma dentadura. A dentadura parece com os dentes. Só que não mordem bem. Assim acontece também com as significações das palavras. Gastam-se, afrouxam-se e são substituídas por outras que não mordem mais a realidade. Uma dessas significações que perderam o seu mordente é “espírito”. Por isso, hoje o espírito é algo interior, abstrato, vago, oposto ao material, que vale como real, determinado e concreto; “espiritual” e “espiritualidade” chegam até a cair sob a suspeita de ter um quê de ensimesmamento, um quê da interioridade do cultivo do eu privativo e alienado, em oposição à ação, à prática, à doação ao outro, à realidade atuante. A seguir, vamos ler o texto de São Francisco de Assis, onde a palavra “espírito” ainda conserva a força mordente de seus dentes firmes e afiados. Diz São Francisco de Assis nas Admoestações: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Muitos há que, insistindo nas orações e nos ofícios divinos, fazem muitas abstinências e aflições em seus corpos, mas por causa de uma única palavra que parece ferir seus corpos ou de alguma coisa que se lhes tire, logo se perturbam escandalizados. Estes não são pobres de espírito; porque quem é autenticamente pobre de espírito, odeia a si mesmo (cf. Lc 14,26; Jo 12,25) e ama os que lhe socam os queixos (Mt 5,39). De espírito na expressão “pobre de espírito” significa plenitude do crescimento na identidade do que se busca ser. Tentar, pois, entender a palavra “espírito” não como índice para apontar a entidade imaterial chamada “espírito”, diferenciada da entidade “corpo”. Antes interpretá-la dentro do movimento de realização no aperfeiçoamento da aprendizagem para se tornar um mestre artesão. Quando um artista não é um artista por acaso, esporádica e aparentemente, mas sim total, completa e comprovadamente, costumamos dele dizer: ele é bom mesmo! O sentido “mesmo” é mais ou menos o que quer dizer a expressão “de espírito”. “Pobre”, nessa perspectiva, não indica um estado privativo de ser, nem um estado social, nem uma virtude-ornato de uma

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Page 1: Do Espírito Da Pobreza

Do espírito da pobreza

Quando os dentes se gastam e ficam frouxos, a gente os substitui por uma dentadura. A dentadura parece com os dentes. Só que não mordem bem. Assim acontece também com as significações das palavras. Gastam-se, afrouxam-se e são substituídas por outras que não mordem mais a realidade. Uma dessas significações que perderam o seu mordente é “espírito”. Por isso, hoje o espírito é algo interior, abstrato, vago, oposto ao material, que vale como real, determinado e concreto; “espiritual” e “espiritualidade” chegam até a cair sob a suspeita de ter um quê de ensimesmamento, um quê da interioridade do cultivo do eu privativo e alienado, em oposição à ação, à prática, à doação ao outro, à realidade atuante.

A seguir, vamos ler o texto de São Francisco de Assis, onde a palavra “espírito” ainda conserva a força mordente de seus dentes firmes e afiados. Diz São Francisco de Assis nas Admoestações:

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Muitos há que, insistindo nas orações e nos ofícios divinos, fazem muitas abstinências e aflições em seus corpos, mas por causa de uma única palavra que parece ferir seus corpos ou de alguma coisa que se lhes tire, logo se perturbam escandalizados. Estes não são pobres de espírito; porque quem é autenticamente pobre de espírito, odeia a si mesmo (cf. Lc 14,26; Jo 12,25) e ama os que lhe socam os queixos (Mt 5,39).

De espírito na expressão “pobre de espírito” significa plenitude do crescimento na identidade do que se busca ser. Tentar, pois, entender a palavra “espírito” não como índice para apontar a entidade imaterial chamada “espírito”, diferenciada da entidade “corpo”. Antes interpretá-la dentro do movimento de realização no aperfeiçoamento da aprendizagem para se tornar um mestre artesão. Quando um artista não é um artista por acaso, esporádica e aparentemente, mas sim total, completa e comprovadamente, costumamos dele dizer: ele é bom mesmo! O sentido “mesmo” é mais ou menos o que quer dizer a expressão “de espírito”.

“Pobre”, nessa perspectiva, não indica um estado privativo de ser, nem um estado social, nem uma virtude-ornato de uma piedosa santidade, mas sim o vigor do ser, o qual busco de corpo e alma como a riqueza suprema da minha identidade: é uma meta de perfeição. Perfeição é a ação que me leva a ser per-feito. Perfeito é o que se fez, o que se consumou per, isto é, através de um longo processo de árduo trabalho de conquista, e está no ponto, isto é, no auge da sua identidade.

Para ser pobre de espírito, isto é, para ser bom mesmo, no vigor do ser chamado pobreza, é necessária muita garra, muita persistência no trabalho e nos exercícios de aprendizagem desse modo de ser. É necessário que eu insista no estudo, na repetição, no recomeçar, no retomar corpo a corpo cada vez de novo. Corpo aqui não é apenas aquela entidade física diferenciada da alma ou do espírito. O “corpo” significa “eu mesmo”. Mas como a palavra “eu” é muito fraca, é melhor dizer “todo o meu ser” ou “eu mesmo de corpo e alma”. Estudo, repetição, recomeçar, retomar corpo a corpo indicam os exercícios reais e bem trabalhados para libertar, purificar e dispor todo o ser do homem para a busca de sua identidade.

Assim, diz São Francisco mais ou menos o seguinte: Há muita gente que manda brasa e se exercita, dia e noite com muito empenho, para se libertar, se purificar e se dispor para

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a aquisição da sua identidade profunda. No entanto, todo esse zelo, todo esse empenho ainda não é garantia para ser bom mesmo na pobreza. Isso porque, com tudo isso, posso estar engordando o ensimesmamento do próprio eu, de tal sorte que qualquer coisa que realmente me atinje me derruba com facilidade.

Para ser bom mesmo na pobreza, isto é, para ser pobre de espírito, é necessário uma luta corpo a corpo, uma luta de vida e morte, travada concreta e realmente na carne nua e crua de todo o meu ser. Essa busca não é portanto para a gente aparecer, não é para se sentir melhor e mais autêntica, não é uma vivência de satisfação, não é nenhuma das realizações que cheiram à grã-finagem ou burguesia espiritual, por mais sublimes e zelosas que sejam. É, antes, uma luta selvagem, assumida com gosto, com amor, uma luta terra à terra, a dentes e unhas, uma luta real e perigosa, na qual se arrisca a ter realidades-mestres que me quebram os queixos. Só quem tem amor a essa maneira de lutar é bom mesmo na pobreza, isto é, é tido pelo espírito de pobreza. Se é assim, o espírito, o espiritual em São Francisco tem muito mais de suor e sangue da terra, do corpo, do que de uma interioridade grã-fina e celestial.