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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAO E EXPRESSO
PS-GRADUAO EM ESTUDOS DA TRADUO
Romeu Porto Daros
O IMPERADOR TRADUTOR DE DANTE: O PROCESSO
CRIATIVO NA TRADUO DE DOM PEDRO II DO EPISDIO
DE PAOLO E FRANCESCA DA DIVINA COMDIA
Florianpolis
2012
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Romeu Porto Daros
O IMPERADOR TRADUTOR: O PROCESSO CRIATIVO NA
TRADUO DE DOM PEDRO II DO EPISDIO DE PAOLO E
FRANCESCA DA DIVINA COMDIA
Dissertao submetida ao Programa de
Ps-Graduao em Estudos da Traduo como requisito final
obteno do ttulo de Mestre em Estudos da Traduo pela
Universidade Federal de Santa Catarina.
rea de Concentrao: Processos de Retextualizao
Orientador: Prof. Dr. Sergio Romanelli Co-orientadora: Profa. Dra. Silvana de
Gaspari
Florianpolis
2012
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Romeu Porto Daros
O IMPERADOR TRADUTOR: O PROCESSO CRIATIVO NA
TRADUO DE DOM PERO II DO EPISDIO DE PAOLO E FRANCESCA DA DIVINA COMDIA
Esta Dissertao foi julgada adequada para obteno do Ttulo de MESTRE EM
ESTUDOS DA TRADUO, e aprovado em sua forma final pelo Programa de Ps-
Graduao em Estudos da Traduo da Universidade Federal de Santa Catarina, com sugesto
para publicao.
Florianpolis, 24 de agosto de 2012
________________________
Prof. Dra. Andria Guerini
Coordenadora do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof. Dr. Sergio Romanelli
Orientador
UFSC
________________________
Prof. Dra. Silvana de Gaspari
Co-Orientadora
UFSC
________________________
Prof. Dr. Maria Teresa Arrigoni
UFSC
________________________
Prof. Dr. Karine Simoni
UFSC
________________________
Prof. Dr. Mrcia Ivana de Lima e Silva
UFRGS
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Para Dete e Vanildo, mais que
pais, incansveis animadores de meus
sonhos.
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AGRADECIMENTOS
s minhas filhas pelo incentivo e compreenso.
Juliana pelo inestimvel apoio.
Ao meu orientador, Sergio Romanelli, pela dedicao, amizade e
incentivo.
minha co-orientadora, Silvana de Gaspari, por manter-me na
diritta via.
Aos amigos e colegas pela colaborao.
PGET/UFSC, pelo apoio institucional.
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Assim, afirmo que se aqueles que partiram dessa vida h mil anos voltassem para as prprias
cidades, pensariam que estivessem ocupadas por estrangeiros, por causa da diferena da lngua.
(Dante Alighieri, 1304-1307)
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RESUMO
A pesquisa analisa o processo criativo na traduo, do italiano para o
portugus, do episdio de Paolo e Francesca do canto V do Inferno da Divina Comdia de Dante Alighieri, feita por Dom Pedro II, ltimo imperador do Brasil. Investigam-se as estratgias utilizadas pelo
Monarca no seu processo tradutrio. Do mesmo modo, averigua-se a
razo da escolha do canto V, se houve motivao poltica ou de qualquer
outra natureza para traduzir Dante. Por fim, objetiva-se demonstrar,
atravs da anlise dos manuscritos do tradutor, observando suas rasuras,
anotaes e pesquisando em materiais da poca, que possvel remontar
ao processo de criao e aos elementos que influenciaram na traduo,
identificando normas e padres na sua gnese. A pesquisa fundamenta-
se terica e metodologicamente nos princpios da Crtica Gentica, com
o auxlio da Teoria dos Polissistemas e dos Estudos Descritivos da
Traduo.
Palavras-chaves: Dom Pedro II, processo criativo, traduo, Divina Comdia.
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SOMMARIO
La ricerca ha analizza il processo creativo nella traduzione dallitaliano al portoghese dellepisodio di "Paolo e Francesca" del canto V dellInferno" della Divina Commedia di Dante Alighieri, realizzato da Dom Pedro II, ultimo imperatore del Brasile. Si esamina le strategie
utilizzate dal Monarca nel suo processo di traduzione. Allo stesso modo,
si cerca di capire il motivo della scelta del canto V, se esisteva una
motivazione politica o di altro tipo per tradurre Dante. Infine si cerca di dimostrare, attraverso l'analisi dei manoscritti del traduttore, osservando
le cancellature, le annotazioni e ricercando nei materiali del periodo che
possibile ricomporre il processo di creazione e i fattori che hanno
influenzato la traduzione, identificando le norme e le ricorrenze nella
sua genesi. La ricerca stata condotta in base ai principi teorici e
metodologici della Critica Genetica, con l'ausilio della Teoria dei
Polisistemi e degli Studi Descrittivi della Traduzione.
Parole chiave: Dom Pedro II, processo creativo, traduzione, Divina Commedia.
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ABSTRACT
The research analyzes the creative process in translation from Italian to
Portuguese, the episode of "Paolo and Francesca" canto V of the
"Inferno" the Divine Comedy by Dante Alighieri, done by Dom Pedro II, last emperor of Brazil. The strategies used by the monarch in his
translation process are investigated. Similarly, the reason for choosing
the canto V is verified, if there was political motivation or otherwise to
translate Dante. Finally, the demonstration objectifies, through
examining the manuscripts of the translator, observing their erasures,
notes and researching in materials available that time, that is possible to
trace the creative process and the factors which influenced the
translation, identifying standards and patterns in their genesis. The
research is based on theoretical and methodological principles of
Genetic Criticism, with aid of Polysystem Theory and Descriptive
Translation Studies.
key-words: Dom Pedro II, the creative process, translation, Divine
Comedy.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Mapa baseado em Holmes 43
Figura 2 - Exemplo de manuscrito de Dom Pedro II, referente
verso 1, flio 1.
53
Figura 3 - Dante e Virgilio encontram Paolo e Francesca 95
Figura 4 Manuscrito de Dom Pedro II, referente verso 1,
flio 2
139
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LISTA DE QUADROS
Quadro I - Dirio: anotaes de Dom Pedro II 85
Quadro II - Anlise comparativa: Dom Pedro II x Pinheiro x
Mauro
88
Quadro III - Tradues brasileiras da Divina Comdia 106
Quadro IV - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x Pinheiro 116
Quadro V - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x Baro da
Vila da Barra
117
Quadro VI - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni 118
Quadro VII - Anlise Comparativa: 3 Verso de Dom Pedro II
x manuscrito definitivo x De Simoni
119
Quadro VIII - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni 121
Quadro IX - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni
x Baro da Vila da Barra x Pinheiro
122
Quadro X - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni
x Baro da Vila da Barra x Pinheiro
123
Quadro XI - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni
x Baro da Vila da Barra x Pinheiro
123
Quadro XII - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni
x Baro da Vila da Barra x Pinheiro
124
Quadro XIII - Quadro Diacrnico da Transcrio do canto V 127
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CG Crtica Gentica
EDT Estudos Descritivos da Traduo
vv Verso
T Terceto
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SUMRIO
INTRODUO 27
1 A CRTICA GENTICA COMO FUNDAMENTAO TERICA E METODOLGICA DA PESQUISA
34
1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DA TRADUO COMO SUPORTE PARA A ANLISE GENTICA DAS TRADUES
41
1.2 A CONSTITUIO DO PROTOTEXTO DA PESQUISA 52
2 PEDRO II - O HOMEM, O IMPERADOR E O TRADUTOR 57
2.1 O CONTEXTO DO SCULO XIX 58
2.2 A TRADUO NO BRASIL - SINOPSE DA TRAJETRIA PR SEGUNDO IMPRIO
63
2.3 O MENINO IMPERADOR 66
2.4 AS ARTES E A ARTE DE GOVERNAR 71
3 POETAS EM DOIS TEMPOS 89
3.1 A DIVINA COMDIA 92
3.2 A PRESENA DE DANTE NO BRASIL E NA LITERATURA BRASILEIRA
98
3.3 AS TRADUES DA DIVINA COMDIA NO BRASIL 105
3.4 DOM PEDRO II TRADUTOR DA DIVINA COMDIA 109
4 O PROCESSO CRIATIVO EM DOM PEDRO II A ANLISE GENTICA DOS MANUSCRITOS TRADUTRIOS
125
4.1 TRANSCRIO DIPLOMTICA DAS TRADUES DO CANTO V
125
4.2 VISO DIACRNICA DO PROCESSO CRIATIVO AS CAMPANHAS DE CRIAO
135
4.3 OS MOMENTOS DO PROCESSO CRIATIVO EM DOM PEDRO II 146
4.4 O ENCADEAMENTO DOS MOMENTOS DO PROCESSO CRIATIVO NOS TERCETOS
149
4.5 ANLISE ESTRUTURAL - CONSIDERAES SOBRE O PROCESSO TRADUTRIO DE DOM PEDRO II
167
CONCLUSO 180
REFERNCIAS 187
BIBLIOGRAFIA 194
APNDICE A Transcrio diplomtica dos manuscritos do episdio de Francesca da Rimini
197
APNDICE B Quadro comparativo: texto de partida - texto chegada 225
APNDICE C - Quadro comparativo de tradues do episdio de Francesca da Rimini
227
ANEXO A - Carta de Dom Pedro II atriz italiana Adelaide Ristori 233
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27
INTRODUO
O Brasil carece de pesquisa sobre processos tradutrios e, em
modo especfico, de estudos sobre tradutores brasileiros. No entanto,
mesmo tendo-se como verdadeira a afirmao de que ainda h no pas
poucas pesquisas sobre o processo criativo do tradutor, h que se
considerar que, com o advento da Crtica Gentica (CG), no final do
sculo XX, isso tem mudado. Nesta pesquisa, tratar-se- do estudo da
traduo a partir do trabalho de um importante personagem brasileiro, o
imperador Dom Pedro II, na traduo de trechos de uma das mais
extraordinrias obras literrias do mundo ocidental, a Divina Comdia,
escrita por Dante Alighieri.
A anlise descritiva, ao estudar a traduo como ela se
manifesta, e no como pretende-se que seja, pode alimentar hipteses
tericas, que venham a adquirir valor aplicado e ajudar a fornecer ideias
para novas pesquisas, elevando a compreenso dos procedimentos no
ato da traduo (Toury, 1995). Portanto, esta pesquisa se insere no
mbito terico e no esforo cumulativo das pesquisas dos Estudos
Descritivos da Traduo (EDT). Este mbito de conhecimento, que
consiste na compreenso do comportamento das variveis consideradas
relevantes no processo tradutrio em situaes particulares, a base
para a formulao de leis de natureza probabilstica e o caminho para a
formulao de teorias que colaborem na reflexo geral sobre a traduo.
A presente pesquisa pretende estudar o processo criativo que se
d durante o ato tradutrio de poemas. Aquilo que Haroldo de Campos,
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28
no ensaio O afreudisaco Lacan na galxia de la lngua (Freud, Lacan a
escritura) (1989), discorrendo sobre a transposio do texto de partida
para a lngua de chegada, resguardando a significncia do texto, chama
de operao transcriadora:
Numa transposio criativa (Jakobson), numa
transpoetizao (Umdichtung, como quer W.
Benjamin), numa operao transcriadora (como
eu a chamo), onde o significante prima (tem
primazia), [...] (1989, p. 12).
Para Haroldo de Campos a traduo, ao promover o encontro
entre culturas de um mesmo ou de diferentes perodos da histria,
proporciona a relao de autores entre si, desses e suas obras, de espaos
e tempos, de lnguas e sociedades.
Assim, se usar como estudo de caso para anlise do processo
criativo a traduo do episdio de Francesca da Rimini, mais conhecido
como episdio de Paolo e Francesca, do canto V do Inferno, da
Divina Comdia de Dante Alighieri, feita por Dom Pedro de Alcntara,
ltimo imperador do Brasil, poeta e tradutor.
A operao transcriadora a ser analisada, neste caso, acrescida
de uma complexidade peculiar. Na Divina Comdia, escrita no incio do
sculo XIV,1 Dante descreve o esprito profundo da cultura em que o
ocidente vive e tambm as razes do prprio ser interior do homem,
recolhendo os valores subjacentes aos princpios da vida intelectual e
moral, que so fundamentais para o ser humano. Por conseguinte, o
1 H dvidas sobre a data precisa na qual a Divina Comdia foi escrita: De fato, a primeira
parte, o Inferno, escrita entre 1304 e 1305, segundo alguns autores, ou entre 1306 e 1307,
segundo outros, era conhecida a partir de 1313, provvel poca em que j se preanunciava o
Purgatrio, enquanto que a ltima parte, o Paraso, praticamente ocupou o poeta at a data de
sua morte. (ARRIGONI, 2008, p. 37).
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objetivo do poeta florentino no dizer o que existe no alm-morte, mas
o de mostrar um percurso para se visualizar a vida de todos os homens.
Talvez a complexidade desses temas, que perpassam a Divina Comdia,
tenha atrado o Imperador e o tenha levado traduo de alguns cantos.
Dom Pedro II viveu entre 1825 e 1891 e, alm de governante,
foi um intelectual, admirador das cincias, apreciador das artes e da
literatura; uma das caractersticas de seu governo - como se ver mais
adiante - foi a liberdade de informao. Lia muito, sobre vrios temas e
estudou idiomas. Traduziu poemas e textos religiosos da tradio
judaica e catlica e fez tradues entre vrios pares de lnguas, clssicas
e modernas. Entretanto, o seu trabalho como tradutor pouco
conhecido, tanto pela populao quanto pelo mundo acadmico, onde
so exguas as pesquisas a respeito do tema Dom Pedro II e a traduo.
No banco de dados da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior (CAPES), por exemplo, entre os anos 2000 e 2010 h o
registro de somente uma pesquisa em cujo tema Dom Pedro II e
traduo aparece.
Segundo Medeiros e Albuquerque (1932)2, os netos do
Monarca publicaram, em 1889, um livro de poesias e tradues do
Imperador. Nesse livro constam os cantos V e XXXIII do Inferno da
Divina Comdia. A motivao de Dom Pedro II em escolher esses dois
cantos do Inferno para traduzir foi pessoal, poltica ou de outra
natureza? 2 Medeiros e Albuquerque, escritor, poltico e professor nasceu em 1867, no Recife. Aps a
proclamao da Repblica foi nomeado secretrio do Ministrio do Interior. Foi o autor da
letra do Hino da Proclamao da Repblica. Morreu em 1934. ACADEMIA BRASILEIRA DE
LETRAS. Os imortais. 2001. Disponvel em: http://www.academia.org.br. Acesso em: maio
2012.
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Dom Pedro II traduziu de diversas lnguas, trabalhou a partir de
textos em prosa e poesia e tambm era poeta. Dante Alighieri, no incio
do sculo XIV, considerava a traduo de poesia difcil, pois: [...] o que
foi harmonizado pelo toque das musas no se pode transpor de sua
lngua para outra sem quebrar toda a suavidade e a harmonia
(GUERINI, 2005, p. 23). Opinio que comungada, entre outros, pelo
russo Roman Jakobson (1969) com sua tese da unio no reproduzvel
de som e sentido. Recusando-se a tese da impossibilidade de se traduzir
poesia e, por conseguinte, aceitando a possibilidade da sua traduo
seja do contedo, seja da forma - ao se analisar a obra de Dom Pedro II,
quais desses pressupostos se encontram e a qual ele deu maior
relevncia? Teria o Imperador, durante a leitura dos cantos, percebido o
processo de criao de sentidos existentes no texto?
Partindo-se da noo de que traduzir poesia recri-la, que se
exige do tradutor potico que ele desvende o processo criativo do texto
de partida e que, ao se produzir um equivalente potico como texto de
chegada, requer-se uma reescritura criativa. Qual teria sido a
sensibilidade potica do Imperador? E, uma vez que o tradutor no se
pe diante de um texto potico da mesma forma como se pe diante de
um texto no potico, qual viso de fidelidade acompanhou Dom Pedro
II durante o processo criativo?
Aceitando-se a tese de Laranjeira (1993) e outros, de que
traduo uma reescritura na lngua de chegada da leitura que se faz de
um texto, e que, portanto, possvel a reescritura da sua significncia,
mas, considerando a reflexo de Paul Ricoeur (2011, p. 24) para quem a
traduo de poesia oferece [...] a dificuldade maior da unio
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inseparvel do sentido e da sonoridade, do significado e do
significante, quais regras ele seguiu?
Dom Pedro II, durante o processo criativo, preocupou-se em
retransmitir a leitura da realidade feita por Dante? Queria ele,
ressignificando cantos da Divina Comdia em portugus, influenciar, no
sentido ideolgico, pessoas e/ou grupos de sua poca?
Assim sendo, e aceitando-se que a ao tradutria de um texto
um processo criativo atravs do qual o tradutor compelido a fazer
escolhas entre vrias possibilidades, a pesquisa busca analisar diante de
quais opes Dom Pedro II esteve, quais mtodos e critrios usou para
fazer escolhas e para aceitar e rejeitar opes. Na pesquisa se busca,
tambm, identificar a existncia de estratgias de procedimento que
indiquem um padro tradutrio no processo problema-soluo e, ainda,
investiga-se por que o Imperador escolheu esses dois cantos do
Inferno para traduzir. Sintetizando, a situao problema que se
pretende trabalhar como, do ponto de vista da CG, se deu o processo
criativo das tradues de Dante feitas por Dom Pedro II. Para tanto,
resolve-se tomar, como objeto de estudo, a traduo do episdio de
Francesca da Rimini, do canto V, do Inferno da Divina Comdia.
Alm da contribuio ao processo de reflexo dentro dos
estudos da traduo, da aplicabilidade e da existncia ou no de padres
que possam orientar a tarefa do tradutor, esta pesquisa se destaca por
estar inserida no trabalho pioneiro que vem sendo desenvolvido pelo
Ncleo de Estudos de Processo Criativo NUPROC, no Departamento
de Lnguas e Literaturas Estrangeiras, da UFSC, em torno das tradues
de Dom Pedro II. Muito se estudou e se estuda sobre o Imperador
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erudito, que se preocupava e se ocupava no s da poltica, mas,
tambm, das cincias, da arte e da literatura. Todavia, como j dito,
ainda bastante modesta a pesquisa em torno do seu trabalho como
tradutor, sobre seu processo criativo, quais etapas percorria, como fazia
escolhas e se tinha conscincia destas e, tambm, para quem escrevia.
Enfim, que tipo de tradutor era e qual o papel da traduo na sua
formao como escritor e imperador, e na vida da sociedade qual
estava relacionado. Nas biografias3 e obras
4 que tratam do Imperador,
pesquisadas durante a elaborao desse trabalho, pouco se aborda o
tema Dom Pedro II e a traduo. Os textos limitam-se, basicamente, a
informar que ele exercia esta atividade. Alguns estudos mais
aprofundados neste sentido comeam a ser encontrados em alguns
trabalhos acadmicos5.
3 Biografias de Dom Pedro II pesquisadas, em ordem cronolgica de edio:
Visconde de Taunay. O Grande Imperador, 1933.
Heitor Lyra. Histria de Dom Pedro II, 1825-1891, 1977.
Pedro Calmon. Histria de D. Pedro II: no pas e no estrangeiro (1870-1887), 1975 e A
Vida de Pedro II, o Rei Filsofo, 1975.
Jos Murilo de Carvalho. D. Pedro II: Ser ou no Ser, 2007.
Lilia M. Schwarcz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trpicos,
1998. 4 Obras sobre Dom Pedro II pesquisadas, em ordem cronolgica de edio:
Amrico Laconbe e L. Jacobina. O Mordomo do Imperador, 1994.
Nelson Werneck Sodr. Panorama do segundo Imprio. 2. ed, 1998.
Alessandra Vannucci. Uma amizade revelada. Correspondncia entre o Imperador dom
Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo, 2004.
5 Trabalhos acadmicos sobre Dom Pedro II pesquisados, em ordem cronolgica de
apresentao:
Nadja Paraense dos Santos. Pedro II, sbio e mecenas, e sua relao com a qumica . Artigo de 2004.
Pedro Falleiros Heise. A introduo de Dante no Brasil: o Ramalhete potico do parnaso italiano de Luiz Vicente de Simoni. Dissertao de 2007.
Rosane de Souza. A gnese de um processo tradutrio: as mil e uma noites de D. Pedro
II, Dissertao de 2010.
Mrcia A. P Martins e Anna Olga P. de Oliveira. D. Pedro II, monarca-tradutor. Artigo
de 2010.
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33
Esta dissertao a continuao, de alguma forma, da pesquisa
iniciada na graduao e que resultou no Trabalho de Concluso de
Curso (TCC), Il paradiso dantesco: vedere Dio per salvare l'umanit,
de 2009, no qual analiso o canto XXXIII do Paraso da Divina
Comdia.
A dissertao estrutura-se em quatro captulos: na introduo se
apresentam o tema e a contextualizao da pesquisa. O primeiro captulo
dedicado aos fundamentos tericos e metodolgicos nos quais a
pesquisa se sustenta. O segundo captulo trata do perodo, da obra e do
autor Dom Pedro II, abordando a formao do homem, do imperador, do
intelectual e da origem de seu interesse pelas artes, pelas lnguas e pela
traduo. O terceiro captulo tem a finalidade de falar do encontro com
Dante e a Divina Comdia e do interesse do Imperador em traduzir
partes da obra. O quarto captulo intenta analisar o processo criativo do
tradutor, discorrendo sobre as campanhas de criao, os momentos do
processo e fazendo conjecturas sobre o mecanismo de funcionamento da
ao tradutria de Dom Pedro II, abrindo assim o caminho para as
concluses da pesquisa.
Sergio Romanelli. Entre lnguas e culturas: as tradues de Dom Pedro II. Artigo de
2012.
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34
1 A CRTICA GENTICA COMO FUNDAMENTAO
TERICA E METODOLGICA
Nesta pesquisa se assume a ideia de traduo como reescritura,
de acordo com a tica de Lefevere, para quem a traduo:
[...] representa a modalidade mais reconhecvel
de reescritura, e [] potencialmente a mais influente, pois capaz de projetar a imagem de
um autor, e/ou de uma obra, alm dos confins
da sua cultura de origem (2007, p. 24).
Para Lefevere, o texto original manipulado e reinterpretado.
Essa alterao porta a traduo a um estgio de reinterpretao criativa,
via a qual o tradutor se faz presente no texto de chegada, introduzindo
sua voz atravs do efeito que deseja causar na cultura alvo.
A ideia de Lefevere soma-se percepo da traduo como um
processo, conforme a definio de Marie-Hlne Passos para quem:
[...] o processo tradutrio um processo criativo remetendo ao ato de escrever, Isto , ao
ato de criar um discurso prprio a partir de um
discurso alheio. Esta criao do discurso,
representada pelo fazer, pelo escrever da traduo em processo, no uma simples
tcnica lingustica de passagem de uma lngua
para outra, uma escritura, ou uma
(re)escritura, oriunda do espao recndito do
pensamento em criao (2011, p. 15).
Esse entendimento conceitual do que a traduo norteou a
anlise processada nesta pesquisa. Anlise, por sua vez, fundamentada
terica e metodologicamente nos princpios da CG.
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35
A CG originou-se na Frana, em 19686, a partir do estudo de
manuscritos literrios e, segundo Romanelli (2006), chegou ao Brasil
em 1985, por iniciativa de Philippe Willemart. A CG considera que o
resultado de um trabalho artstico fruto de uma sucesso complexa de
fatos e fenmenos, que vo da preparao da pesquisa, s tcnicas de
escritura e correes, at as influncias de diversas ordens, que incidem
na composio da obra. Seu princpio, segundo Biasi:
[...] o de dar uma ateno to grande quanto
possvel ao trabalho do escritor, aos seus
gestos, s suas emoes, s suas incertezas: o
que ela prope redescobrir a obra por meio da
sucesso dos esboos e das redaes que a
fizeram nascer e a levaram at sua forma
definitiva. Com que inteno? A de melhor
compreend-la: conhecer por dentro a sua
composio, as intenes recnditas do escritor,
seus procedimentos, sua maneira de criar, os
elementos pacientemente construdos que ele
acaba eliminando, os que ele conserva e desenvolve. Observar seus momentos de
bloqueio, seus lapsos, suas voltas para trs,
adivinhar seu mtodo e sua prtica de trabalho,
saber se ele faz planos ou se ele se lana
diretamente na redao, reencontrar o rastro
preciso dos documentos e dos livros que ele
usou, etc. A gentica dos textos faz penetrar no
laboratrio secreto do escritor, no espao
ntimo de uma escritura que se busca [...] (2010,
p. 11).
6 Para o Grsillon o contexto sociopoltico da Frana do final da dcada de 1960 influenciou
ideologicamente a CG:
[...] as condies da vida intelectual na Frana no fim dos anos sessenta que, como qualquer
conjuntura ideolgica precisa, influenciaram a orientao e o foco da crtica gentica
nascente. Esta tomou seu impulso ao mesmo tempo em pleno estruturalismo e, pelo menos em
parte, contra ele. Herdando dessa corrente o rigor metodolgico, a crtica gentica, embora
fazendo romper o fechamento do texto, foi utilizada para isolar e descrever as diferentes fases
dos antetextos (...); e estabelecer, em funo dos hbitos variveis dos escritores, tipologias
antetextuais (1991, p. 11).
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36
Para Romanelli, a CG mostra o avesso do texto publicado, processo
que permite que se desmitifique a ideia de que uma obra nasce j
pronta como resultado espontneo de pura inspirao" (2006, p. 88).
Portanto, a CG se concentra, prioritariamente, no terceiro foco
dos estudos descritivos, conforme indicado por Holmes, ou seja, no
estudo do processo criativo do tradutor ao realizar o ato tradutrio, com
a preocupao de analisar o processo desde a sua gnese, ou seja, desde
o primeiro plano, o primeiro rabisco, o primeiro rascunho, ou mesmo,
desde a primeira inteno de realizar o ato tradutrio, posto que essa
inteno esteja grafada em algum lugar.
O que interessa:
[...] so os rastros interpretveis do trabalho
intelectual, tais como os arquivos permitem
observ-los e elucid-los em termos de
processo. Ao procurar construir uma
epistemologia histrica e talvez materialista da
escritura literria, a gentica literria arranca a
relao crtica da fico de sua soberania
hegemnica e reinsere a obra na lgica profana
de sua gnese. Mas esse gesto, longe de tornar
nula a relao crtica, enriquece o texto com uma dimenso, a do tempo humano, em que o
sentido retoma a posse de sua prpria histria
(DE BIASI, 2010, p. 114-115).
De tal modo, a CG vem agregar uma importante contribuio
aos EDT e vice-versa. A CG estuda todos os documentos que antecedem
a elaborao do texto de chegada, inclusive aqueles que dizem respeito
ao seu processo de elaborao e que so, portanto, anteriores ao texto
final. Este conjunto de documentos usualmente chamado de
prototexto.
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37
O prototexto constitui-se principalmente de manuscritos. Hay
descreve o manuscrito como sendo:
[...] de uma extraordinria diversidade, e
pertencente a todas as etapas e a todos os
estados do trabalho, dossis, cadernos, esboos,
planos, rascunhos. Mas, desde que o
pensamento ou imaginao os tocaram, todos,
do documento inerte dicionrio, relatrio at a pgina inspirada, encontram-se dotados de
vida e convocados a desempenhar seu papel
num projeto de escritura (2007, p. 17).
Os manuscritos podem ser constitudos por rasuras, cartas,
anotaes, rascunhos, jornais, livros, metatextos, depoimentos, entre
outros indcios que remetem compreenso de mecanismos da gnese
da criao artstica, bem como os elementos que influenciam as escolhas
do tradutor. De acordo com Willemart (2008), os estudos do processo de
criao podem ser captados tanto nos rascunhos, croquis ou esboos
quanto no texto publicado, mas no primeiro caso falamos de CG
propriamente dita, no outro de crtica textual.
Para De Biasi (2010, p. 70), o que caracteriza o manuscrito a
[...] presena de uma escritura, mais ou menos bem formada [...]. Este,
ao contrrio do que induz a nossa experincia cultural com a palavra
manuscrito, no se relaciona a algo morto e inerte. No atrs de uma
pea de museu que a CG caminha, mas ela se mobiliza pela busca do
movimento que h em cada trao do escrito e do no escrito, pelo
escritor. a vida que h por detrs do que parece, primeira vista,
esttico, que interessa CG.
Este tipo de anlise requer a superao da noo de que o texto
-
38
somente existe na sua redao considerada final e impressa. Os limites
deste tipo de anlise: sincrnica e estruturalista, que concebe o texto
como se fosse uma foto, feita em um instante e destinado a uma nica
forma para todo o sempre, impede esse descobrir de configuraes e de
entre textos, que s uma anlise diacrnica pode permitir. Estudar
processos requer que se leve em considerao a dimenso histrica que
levou redao do texto considerado final. Se este esforo no uma
condio sine qua non para que se possa ler um texto, possvel afirmar
que o conhecimento do processo permite desse uma melhor leitura.
A anlise gentica, como visto, requer do pesquisador a ateno
a alguns procedimentos, tais como a construo do dossi gentico e o
estabelecimento do prototexto. O dossi gentico o conjunto de
materiais, autgrafos ou no, recolhidos pelo pesquisador e que se
reportam gnese do texto a ser analisado. O prototexto a organizao
que o pesquisador faz do dossi levantado. Esta organizao nica e
exclusiva do pesquisador que a faz e, como tal, integrante do processo
de anlise, uma vez que o encadeamento diacrnico do material j
requer uma postura analtica. A organizao diacrnica do material deve
levar em conta as fases da criao do escritor, desde a ideia inicial at a
impresso do texto. Essa classificao pode ser mais simples se o
escritor trabalhou com um projeto de escritura da obra, esquematizando
e antecipando os passos de sua produo em um roteiro. E, mais
complexa, quando a estrutura de sua redao se conforma medida que
o texto vai sendo escrito. Para De Biasi (2010), existem quatro grandes
fases de trabalho na produo de um texto que se sucedem e possuem
importncia varivel, que so: a fase pr-redacional, a redacional, a pr-
editorial e a editorial.
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39
Concomitante organizao do prototexto, necessria a
classificao e a transcrio dos manuscritos para prepar-los para a
anlise. A transcrio dos rascunhos - dependendo de seu estado e do
estilo do escritor - pode exigir um rduo processo de deciframento que
nem sempre se atinge na totalidade. Durante o processo de transcrio
dos rascunhos tornam-se perceptveis os contornos da histria do
processo de criao, facilitando a classificao dos rascunhos em funo
do texto supostamente definitivo.
Em escritores que trabalham sem um roteiro pr-estabelecido,
como o caso de Dom Pedro II, a classificao mais complexa e
somente se delineia no transcorrer do processo de transcrio. o estado
do rascunho e o tipo de rasuras; os cancelamentos, deslocamentos e
acrscimos que vo clareando a trajetria temporal feita pelo escritor.
Para Levaillant, ao ser citado por De Biasi:
[...] o rascunho no conta a boa histria da gnese, a histria bem orientada por esse final
feliz: o texto. O rascunho no conta, ele d a ver: a violncia dos conflitos, o custo das
escolhas, os acabamentos possveis, o esbarro, a
censura, a perda, a emergncia das
intensidades, tudo o que o ser inteiro escreve. O
rascunho no mais preparao, mas o outro
texto (2010, p. 118).
Para Hay (2010), o crtico gentico cumpre concomitantemente
dois papeis no seu trabalho analtico: por um lado, ele atua como juiz,
pois decide qual objeto material ser fruto de um processamento
cientfico ao classific-lo, organiz-lo diacronicamente e
sincronicamente e articul-lo entre si e com outros materiais de cunho
mais amplo; e, por outro lado, se comporta como parte implicada,
-
40
quando faz concluses acerca do processo criativo da obra de outro.
Certo que o crtico gentico no tem certezas:
Ningum poderia reviver uma experincia que
o autor primeiro viveu sozinho, depois
ultrapassou e deixou atrs de si. O que o crtico
observa so os ndices visveis de um trabalho;
o que ele decifra no o movimento de um
esprito, mas o trao de um ato: no o que o
escritor queria dizer, mas o que ele disse. A
anotao exibe a marca de um acontecimento que a escritura objetivou. Entre esse
acontecimento e os movimentos desordenados dos espritos, de que fala Valry, existe uma ligao paradoxal, uma vez que a escritura
procede do esprito, que a pe em movimento,
mas, ao mesmo tempo, dele se destaca, e no
permite mais regressar a ele (HAY, 2010, p.19-
20).
A tarefa do crtico gentico , portanto, a compreenso da
dinmica do ato tradutrio, ver alm e atravs do texto, a ao do
escritor acontecendo e desemaranhar o seu significado. A instabilidade
a regra e o movimento a constante. Trata-se de um movimento no
linear, mas elptico e multidimensional. neste terreno no adensado
que o crtico especula, observa e deve dizer como as coisas se fizeram
(HAY, 2010, p. 20).
Resumidamente, pode-se dizer que a CG uma abordagem
analtica que procura entender os signos, indo gnese do texto tido
como final, cotejando-o com os manuscritos. Seu objetivo
compreender o mecanismo da criao buscando identificar processos de
escritura do autor.
-
41
1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DA TRADUO COMO
SUPORTE PARA A ANLISE GENTICA DAS TRADUES
Os EDT podem ajudar a CG no estudo do processo criativo do
ato tradutrio, pois o foco da anlise descritiva tambm indagar o
processo que antecede o texto considerado final e no o produto.
A anlise descritiva da traduo do episdio de Francesca da
Rimini do canto V do Inferno, feita por Dom Pedro II, foi, portanto,
realizada com o auxlio do modelo metodolgico proposto por Lambert
e Van Gorp (2010), que avalia as diferenas e semelhanas preliminares,
macroestruturais e microestruturais entre as tradues e o texto de
partida. Em se tratando de uma anlise sistmica, comparar-se- tambm
as tradues de Dante feitas por outros autores para o portugus do
Brasil, tendo, entre eles, alguns dos mais conhecidos tradutores da
Divina Comdia como o Baro da Vila da Barra, Jos Xavier Pinheiro e
talo Eugnio Mauro.
Os EDT nascem da crtica aos modelos tradicionais adotados
em traduo, a chamada abordagem prescritivista, que ambicionava
estabelecer regras universais para fazerem-se tradues que fossem
aplicveis para qualquer caso. Os EDT surgiram na universidade de Tel
Aviv, a partir das reflexes de Itamar Even-Zohar e Gideon Toury, com
a preocupao no s de descrever, mas de explicar os produtos, funes
e processos tradutrios e, ainda, de medir o impacto das tradues no
sistema receptor. Estabelece-se a viso da traduo como criadora de um
novo jogo de linguagem na cultura de chegada, o que pode produzir
novas prticas, novas ideias e novos comportamentos (TOURY, 1995).
-
42
Gideon Toury (2001) sustenta que as culturas recorrem
traduo como uma forma de preencherem as suas lacunas e que esta
feita a partir de normas concebidas para satisfazer certas necessidades da
cultura receptora e dos seus membros. Para Toury, um texto pode ser
considerado uma traduo quando assim aceito pelas normas da
cultura de chegada:
Portanto, num primeiro momento, qualquer que
seja a razo para definir um texto como uma
traduo, essa pretensa traduo ser analisada
exclusivamente em termos da sua aceitabilidade
(por tipo e extenso) no sistema de chegada, ou
seja, em termos de sua submisso s normas
dominantes naquele sistema especfico (traduo nossa)7 (1980, p. 194).8
A anlise realizada com base na abordagem descritiva uma
vertente metodolgica relativamente nova e tem em Holmes um dos
fundadores do conceito. Para Holmes (1972), a traduo no
meramente uma transposio lingustica, mas um ato de comunicao
que (re)interpreta textos em outra lngua sob determinado contexto
sociocultural e com uma determinada finalidade. Ainda para Holmes, os
estudos da traduo podem estar focados em trs linhas de pesquisa: no
produto, na funo e no processo.
7 Todas as outras tradues do italiano so do autor do texto. Portanto, a partir deste ponto, no se usar mais a expresso entre parnteses (traduo nossa).
8 Perci, qualunque sia la ragione per definire un testo come traduzione, in una prima fase
ogni presunta traduzione verr analizzata esclusivamente dal punto di vista della sua
accettabilit (per tipo ed estensione) nel sistema di arrivo, cio nei termini della sua sottomissione alle norme dominanti in quello specifico sistema. (1980, p. 194)
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43
Figura 1. Mapa baseado em Holmes.9
Os estudos descritivos, focados no produto, descrevem as
tradues existentes. A descrio pode ser de tradues isoladas ou comparadas, de um perodo determinado, numa certa lngua e ou tipo
textual ou discursivo.
Os estudos descritivos, focados na funo, para alm da
traduo em si mesma, procuram descrever as tradues
circunstanciadas na realidade sociocultural receptora, ressaltando os
contextos e no somente os textos (Toury, 1995). O estudo de contextos
requer um esforo de descrio do papel que a traduo ocupa no
polissistema cultural e literrio do perodo.
9 Mapa baseado em Holmes produzido por Pagano & Vasconcellos, publicado em 2003, na revista Delta e apresentado no III Congresso Interamericano de Traduo e Interpretao
CIATI- 2004. Aqui, extrado do manual: Estudos da Traduo I, de autoria de Lautenai
Antonio Bartholamei Junior e Maria Lucia Vasconcellos, do CCE UFSC, 2008, p. 6.
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44
Os estudos descritivos, focados no processo - no qual se
inserem os estudos de gnese, e, portanto, esta pesquisa -, buscam
descrever o processo criativo durante o ato tradutrio em si, o que
acontece na mente do tradutor enquanto cria um texto novo a partir de
um texto pr-existente numa outra lngua.
Um dos instrumentos tericos fundamentais da concepo
descritiva a teoria dos polissistemas, de Even-Zohar (1990), que
pressupe a existncia de uma rede de sistemas inter-relacionados
dialeticamente. Nesta teoria, a literatura traduzida compe um sistema
que faz parte do polissistema da literatura da lngua de chegada e este,
por sua vez, parte do polissistema cultural. Um polissistema mantm
relaes com outros sistemas da cultura de chegada e de outras culturas.
A noo de polissistemas fundamental para o entendimento da
traduo tambm como um processo de transferncia cultural.
Para Even-Zohar (1990), existe uma interdependncia entre
processos e produtos, o que implica em intervenes nos produtos de
acordo com os interesses dominantes que atuam no polissistema. Para
Andr Lefevere (1992) e Gideon Toury (1995), ambos associados
teoria polissistmica, a traduo uma reescrita que, assim como o
original, no interior de seu polissistema poltico-cultural, tem o poder de
influenciar a cultura de chegada. Deste modo, a relao produto-
processo-funo viva e uma pesquisa para chegar a concluses
pertinentes exige, invariavelmente, a identificao dos parmetros de
relao entre eles. Gideon Toury (1995) e Theo Hermans (1996) deram
sequncia aos estudos polissistmicos de Zohar e neles nos embasamos
para a nossa anlise das tradues de Dom Pedro II. A Teoria dos
Polissistemas, portanto, ajudou a entender qual lugar ocupavam os
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45
textos traduzidos e as tradues de Dom Pedro II no polissistema
literrio nacional do perodo e, desse, no polissistema literrio mundial.
A traduo um tipo de atividade que, inevitavelmente,
envolve pelo menos duas lnguas e duas tradies culturais, ou seja, pelo
menos dois sistemas de normas em cada polo. A traduo constitui uma
representao de um texto de partida na lngua e na cultura de outro.
um texto em uma determinada lngua e, portanto, ocupando uma posio
em meio a uma cultura, ou em uma determinada seo dessa. Parte de
um texto existente em outra lngua, que pertence a outra cultura e ocupa
uma posio definitiva dentro dela.
A traduo pode ter uma maior ou menor conformao s
normas da cultura e lngua de partida ou da cultura e lngua de chegada.
Toury titula de adequada a traduo que se desvia dos padres
sancionados pela cultura que a abriga, ou seja, quando ela reproduz as
normas, tanto lingusticas como textuais, do texto de partida, e
aceitvel quando se coaduna com os padres da cultura-meta. Sobre
esta problemtica Toury diz:
Assim, um tradutor pode sujeitar him-/herself
(ele-/se) tanto para o texto original, com as
normas que tem realizado, ou com as normas
ativas na cultura alvo [...]. Se a primeira a
postura aprovada, a traduo tende a inscrever-
se nas normas do texto fonte e, atravs dele,
tambm as normas da lngua e cultura de
origem. Esta tendncia, que tem sido muitas vezes caracterizada como a busca da traduo
adequada, pode muito bem implicar em
determinadas incompatibilidades com as
normas e prticas de destino, especialmente
aquelas que esto alm da mera lingustica. Se
por outro lado a segunda postura adotada, os
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46
sistemas de normas da cultura-alvo so
acionados e postos em movimento. Deslocar-se
do texto de origem um preo quase inevitvel.
Assim, enquanto a adeso s normas de origem
determina uma adequao da traduo em
relao ao texto fonte, subscrio as normas
da cultura-alvo determina sua aceitabilidade.
(1995, p. 59).10
O comportamento da traduo dentro de uma cultura tende a
manifestar determinadas regularidades, ou seja, normas, que formam um
continuum graduado, ao longo de uma escala. Algumas so mais fortes e
outras so mais fracas. As fronteiras entre elas so difusas. As normas
mais explcitas e objetivas constituem regras e as mais difusas e
subjetivas, idiossincrasias.
Ao longo do eixo temporal, cada tipo de norma pode se mover
atravs de processos de ascenso e declnio. A regularidade de
comportamento em situaes de repetio demonstra se a norma ativa
e eficaz. A regularidade o principal elemento a ser observado para
qualquer estudo de normas. Os pesquisadores identificam as normas
comportamentais de traduo por meio de padres regulares de traduo
e da estratgia escolhida pelo tradutor. possvel identificar normas
predominantes de determinada cultura e perodo por meio do exame dos
textos traduzidos e das declaraes feitas por tradutores, revisores,
editores e outros participantes do processo tradutrio.
10
Traduo extrada de: TOURY, A natureza e o papel das Normas de Traduo. In: Estudos
Descritivos de Traduo e alm. Amsterdam Philadelphia: John Benjamins, 1995b, p. 53-69.
Texto digitalizado para uso educacional, Unidade de Pesquisa em Educao, Universidade de
Tel Aviv. http://spinoza.tau.ac.il/ Toury ~ / obras.
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47
A noo de norma pressupe que o tradutor se v diante da
necessidade de tomar decises, pois ele desempenha um papel social;
exerce uma funo determinada pela comunidade e precisa faz-lo da
maneira estabelecida por esse grupo. Para Toury:
O ato de traduzir, enquanto atividade teleolgica por excelncia, fortemente
condicionado por seus fins prprios, e esses,
so sempre determinados a partir da perspectiva
do sistema (ou dos sistemas) receptor.
Consequentemente, os tradutores operam em
primeiro lugar no interesse da cultura para a
qual esto traduzindo, e no em razo do texto
de partida, colocando, assim, de fato, entre
parnteses a cultura de origem do texto (1980,
p. 186).11
Toury destaca trs tipos de normas de traduo: preliminares,
iniciais e operacionais. As normas preliminares dizem respeito
natureza e poltica da traduo. So os fatores que determinam a
escolha do texto a ser importado, atravs da traduo, em uma
determinada cultura/linguagem, em um determinado perodo. A escolha
no aleatria e aplica-se seleo de textos e aos autores a serem
traduzidos, bem como estratgia global para a realizao e insero
das tradues no sistema-alvo.
As normas iniciais envolvem as decises bsicas tomadas pelo
tradutor quanto a tornar a traduo adequada ou aceitvel. Vale frisar
que os dois plos adequao e aceitabilidade no so excludentes; 11
Latto del tradurre, in quanto attivit teleologica per eccellenza, largamente condizionato dai suoi stessi fini, e questi, vengono sempre determinati dalla prospettiva del sistema, o dei
sistemi, riceventi. Di conseguenza, i traduttori operano innanzitutto, e, nellinteresse della
cultura in cui stanno traducendo, e non certo in ragione del testo di partenza, mettendo cos di
fatto tra parentesi la cultura da cui il testo ha tratto origine.
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48
o tradutor pode adotar uma soluo intermediria e fazer uma
combinao de normas. A atitude do tradutor com relao ao texto-fonte
afetada pela posio do texto no sistema poliliterrio da cultura-fonte.
As normas operacionais referem-se s decises tomadas durante
o processo tradutrio e dividem-se, por sua vez, em duas categorias: as
matriciais e as textuais. As primeiras determinam omisses, acrscimos,
mudanas de localizao e manipulao de feitos em relao ao texto de
partida. As fronteiras entre os vrios fenmenos matriciais no so
claras. J as textuais revelam as opes lingusticas e estilsticas do
tradutor.
No modelo desenvolvido por Toury, as normas iniciais se
situam no topo da hierarquia, visto que, se forem consistentes, acabam
por influenciar todas as outras decises tradutrias. J as normas
operacionais decorrem da posio central ou perifrica ocupada pela
literatura traduzida no polissistema da cultura alvo.
As normas so instveis pela sua prpria natureza e se alteram.
A multiplicidade e variao no devem ser tomadas como critrio para
sugerir que no h normas ativas na traduo. Elas s significam que, na
vida real, as situaes tendem a ser complexas. Essa complexidade deve
ser observada, em vez de ignorada. Deve-se contextualizar cada
fenmeno, cada item, cada texto, cada ato e listar os fatores que podem
ocorrer em um corpus. Um eixo importante de contextualizao o
histrico. A contextualizao histrica um dever no apenas para um
estudo diacrnico, mas tambm para os estudos sincrnicos.
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49
As normas no so diretamente observveis. H duas fontes
principais para a reconstruo das normas de traduo: a textual, ou
seja, os textos traduzidos, e a extratextual, que compreende as
formulaes semitericas ou crticas como teorias normativas de
traduo, testemunhos de tradutores, de editores ou de quaisquer outras
pessoas envolvidas ou ligadas atividade, em metatextos e paratextos.
A traduo intrinsecamente multidimensional: os fenmenos
muitas vezes so fortemente interligados e no permitem um fcil
isolamento. A tarefa do pesquisador pode ser caracterizada como uma
tentativa de estabelecer as relaes que existem entre as normas relativas
a vrios domnios, correlacionando seus resultados individuais e
pesando-os uns contra os outros. Deve-se ter em conta que os tradutores
no so passivos e tentam interferir com o curso dos eventos e desvi-
los de acordo com suas preferncias, bem como, considerar a hiptese
do comportamento no normativo. As normas podem ser quebradas, a
depender da natureza e da fora destas e da motivao do tradutor. A
existncia de normas no torna impossvel o desenvolvimento de
comportamentos errticos ou idiossincrticos.
A formulao do conceito de normas por Toury (1980) acabou
por redefinir outro de suma importncia nos EDT, o de equivalncia.
A noo de equivalncia, aqui, difere dos conceitos correntes de equivalncia na
traduo, pelo fato de que no se limita a uma
simples relao entre o texto-fonte e o de chegada, estabelecida com base em certos
padres, mas, de um conceito funcional-
relacional, ou seja, a mesma relao (ou um
conjunto de relaes ordenadas) que, por
definio, permite distinguir uma traduo de
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50
uma no traduo em um dado contexto scio-
cultural na lngua-alvo, isto , discernir entre
uma adequada ou inadequada performance
lingustica em relao aos modelos e normas
vigentes nesse contexto (1980, p. 219).12
No objeto deste trabalho discutir aprofundadamente o
conceito de equivalncia, mas importante que se estabelea com qual
noo de equivalncia se dialoga nesta pesquisa, uma vez que esta tem
sido uma das questes mais delicadas e polmicas dos Estudos da
Traduo. Dado o controvertido debate entre os tericos da traduo
acerca do que seja equivalncia, faz-se necessrio, para uma melhor
apreenso desta pesquisa, o conhecimento das noes introduzidas por
Toury sobre o tema, somadas reflexo de Paul Ricoeur (2011).
Na prtica tradutria, a equivalncia um conceito fixo ou se
aceita a ideia de certa mobilidade, que permite que seja dialeticamente
aplicado s diversas situaes do ato tradutrio, em especial, no que diz
respeito funo da traduo? Tradicionalmente prescritiva, a noo de
equivalncia ganhou uma dimenso de historicidade. Em vez de se
referir apenas relao entre o texto de partida e o de chegada, com as
teorias descritivas, passou a designar toda relao que tenha
caracterizado uma traduo num dado contexto. O conceito de
equivalncia adquiriu, assim, um carter funcional e relacional,
deixando de ser um fim em si mesmo para tornar-se uma consequncia.
12 La nozione di equivalenza come viene qui intensa differisce dai correnti concetti di
equivalenza nella traduzione nel fatto che non si tratta di una semplice relazione tra testo di
partenza e di arrivo stabilita sulla base di un determinato genere di costante, ma di un altro
concetto funzionale-relazionale, vale a dire, quella stessa relazione (o un insieme di relazioni
ordinate) che, per definizione, permette di distinguere una traduzione da una non-traduzione
in un determinato contesto socio-culturale in lingua di arrivo, cio di discriminare tra
unadeguata o inadeguata performance linguistica rispetto ai modelli e alle norme dominanti in quel contesto.
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51
A equivalncia pode ser usada para se estabelecer as relaes existentes
entre textos de duas lnguas ou pode assentar-se em uma observao
terica, estabelecendo abstratamente uma relao ideal entre os dois
textos.
Para Paul Ricoeur, no existem critrios absolutos para se
avaliar o que uma boa traduo:
[...] para que se pudesse dispor de tal critrio
seria preciso poder comparar o texto de partida
e o texto de chegada a um terceiro texto
portador de sentido idntico quele que se
supe circular no primeiro e no segundo. A
mesma coisa dita de um lado e de outro (2011,
p. 46).
Portanto, antes do dilema, h um paradoxo: [...] uma boa
traduo s pode visar uma equivalncia presumida, no fundada na
identidade de sentido demonstrvel. Uma equivalncia sem identidade.
Essa equivalncia pode ser apenas buscada, trabalhada, presumida
(RICOEUR, 2011, p. 47).
A existncia da equivalncia entre o texto de partida e o de
chegada um fato. Portanto, a questo a ser posta que tipo e que grau
de equivalncia tradutria revela a anlise desses dois textos. Essa
anlise deve ser dialtica, ou seja, no pode apenas ficar circunscrita
comparao palavra-palavra, frase a frase, etc. Deve-se levar em
considerao o conjunto das circunstncias que operam sobre o ato
tradutrio: a funo da traduo, o tipo de texto, o estilo e a inteno do
tradutor, etc.
Assim sendo, pressupe-se como fundamental, para se analisar
a performance lingustica em termos de equivalncia, que esta seja feita
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52
a partir dos padres e das normas que operam predominantemente no
sistema de chegada. Cabe cultura de chegada aceitar um texto como
equivalente a outro.
1.2 A CONSTITUIO DO PROTOTEXTO DA PESQUISA
O objeto da anlise desta dissertao o canto V, mais
especificamente o episdio de Francesca da Rimini, do Inferno da
Divina Comdia, de Dante Alighieri, traduzido por Dom Pedro II e
publicado em Petrpolis, em 1889, no livro de poesias e tradues do
Imperador, organizado pelos netos D. Pedro e D. Luiz, filhos da
princesa Isabel. Alm desta primeira edio, h uma edio de 1932, da
Editora Guanabara, com prefcio de autoria do jornalista e escritor
Medeiros e Albuquerque que , para o caso desta pesquisa, o de
referncia, pois somente tivemos acesso a este.
A tcnica de pesquisa foi bibliogrfica e histrica, com estudo
de textos, documentos, registros e dados empricos existentes com vistas
a organizar o dossi gentico.
O dossi gentico composto por:
a. 13 flios13
de manuscritos digitalizados da traduo do episdio
de Francesca da Rimini, cujos originais se encontram no
arquivo histrico do Museu Imperial, em Petrpolis;
13 [...] o flio, o elemento de um conjunto arquivstico, constitudo de duas pginas que apresentam ou no marcas de escritura ou grafismos (quando no h nenhuma marca, fala-se
de folha vazia) (BIASI, 2010, p.69).
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53
b. Cpia digitalizada de partes do Dirio Pessoal de Dom Pedro II,
cujo original completo se encontra no arquivo histrico do
Museu Imperial, em Petrpolis;
c. Carta de Dom Pedro II atriz italiana Ristori, publicado no
livro Uma Amizade Revelada: Correspondncia entre o
Imperador dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de
seu tempo. Rio de Janeiro: Edies Biblioteca Nacional, 2004.
Organizado por Alessandra Vannucci.
Figura 2. Exemplo de manuscrito de Dom Pedro II, referente verso 1, flio 1.
Vale aqui destacar que esses so os documentos de que
atualmente dispomos, mas que no se trata de todos os documentos de
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54
processo referentes s tradues de Dante. Outros provavelmente ainda
existam em outros acervos, mas no foram ainda encontrados.
O dossi gentico ser estudado considerando-se os
pressupostos tericos e metodolgicos da CG e dos EDT. A CG nos
auxiliar na organizao, ordenao, numerao, transcrio do dossi
gentico e na anlise do prototexto. Os EDT iro subsidiar a anlise e
interpretao dos dados, agregando anlise gentica a base cientfica
de uma teoria gestada para o estudo do ato tradutrio.
A organizao crtica do dossi gentico nos ajudar na
composio do prototexto - a reconstruo dos antecedentes do texto
final de Dom Pedro II. Adota-se, assim, a definio de Bellemin-Nol
(1993), para quem o prototexto um conjunto de documentos
empiricamente selecionados pelo pesquisador, para reconstituir os
antecedentes do texto. Para Cecilia Salles:
[...] o prototexto no o conjunto de
documentos, mas um novo texto formado por
esses materiais, que coloca em evidncia os sistemas tericos e lgicos que o organizam. O
prototexto no existe em lugar nenhum fora do
discurso crtico que o produz; nasce da
competncia do crtico gentico que se
encarrega de estabelec-lo e, principalmente,
explor-lo em um processo analtico e
interpretativo (2000, p. 58-59).
A CG considera o processo que conduz redao do texto de
chegada um ato complexo, regido por diferentes condies e influncias
e que deve ser priorizado na anlise tradutria em relao ao produto.
Desse modo, a anlise procedida do prototexto busca detectar conexes,
recorrncias de modo de ao, normas literrias e o tipo de escritura de
Dom Pedro II. Em seguida, se elencaro os critrios que, acredita-se,
-
55
possam ter levado o tradutor a fazer escolhas para a edio considerada
final e ter norteado as estratgias de criao no ato de traduzir.
Posteriormente, a pesquisa busca explicar os fatos observados com base
nos pressupostos tericos.
Todo o procedimento parte do princpio de que os fatos no
devem ser avaliados fora do contexto social, poltico e econmico em
que foram gerados. A pesquisa considera, em suas descries, a
dinamicidade da relao entre o mundo real e o sujeito, visando
identificar os fatores que determinaram ou contriburam para a
ocorrncia destes, focando no processo que provocou o fato.
A partir da observao de regularidades factuais, possvel
fazer inferncias conjecturais com o propsito de chegar a
generalizaes, buscando explicar os fatos observados na tentativa de
elucidar o processo criativo. A cadeia de raciocnio busca, ainda,
estabelecer uma conexo ascendente dos fatos observados. A inteno
perseguir a gnese da obra via experimentao de suposies tericas,
indutivamente, baseadas em princpios lgicos e racionais, mas tambm
histricos, avaliando a influncia dos acontecimentos e processos no
sistema da cultura de chegada, considerando-se as diferenas e
similaridades entre as culturas, as pocas e as linguagens.
Assim, a presente pesquisa tem como escopo analisar o
processo criativo na traduo, do italiano para o portugus, do episdio
de Francesca da Rimini da Divina Comdia feita por Dom Pedro II na
segunda metade do sculo XIX. Pretende-se investigar as estratgias
utilizadas por Dom Pedro II e descobrir quais mtodos e tcnicas foram
usados, analisando suas escolhas e, se possvel, encontrar padres no seu
-
56
processo tradutrio, verificando a influncia desses nos tipos de
equivalncia usadas e no estilo do seu texto. Mas, tambm, olhar, a
partir do contexto, qual foi a motivao do Imperador para traduzir
Dante, a razo da escolha desse episdio do Inferno, se houve
motivao poltica ou de qualquer outra natureza, e se essas cumpriram
alguma funo na cultura brasileira naquele perodo e, mesmo
posteriormente. Enfim, demonstrar, atravs da anlise dos manuscritos
do autor-tradutor, de seus rascunhos, de suas rasuras, cartas, anotaes,
jornais, livros, metatextos, depoimentos etc., que possvel remontar ao
processo de criao, restaurando os elementos que influenciaram nas
escolhas e que conformaram um texto considerado final.
Feitas essas consideraes, torna-se possvel localizar essa
pesquisa, de acordo com o mapa de Holmes (1972, 1988, 2000), dentro
do ramo Puro-Descritivo, focado no processo, mas, considerando as
interfaces com o produto e a funo do texto traduzido.
Espera-se, enfim, contribuir com o processo de reflexo sobre
uma Teoria da Traduo e sua aplicabilidade, uma vez que a hiptese
norteadora desta pesquisa a de que, no percurso estratgico de suas
tradues, Dom Pedro II foi guiado por normas e que estas
estabeleceram padres no processo tradutrio.
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57
2 PEDRO II - O HOMEM, O IMPERADOR E O TRADUTOR.
Dom Pedro II teve seu governo (1840-1889) caracterizado pela
liberdade de informao e pela tolerncia. Governou um pas no qual o
analfabetismo atingia mais de 80% da populao. Era sensvel s
transformaes sociais e defensor da abolio, mas foi sob a regncia de
sua filha, a princesa Isabel, em 1888, que se deu a abolio da
escravido o Brasil foi o ltimo pas da Amrica a faz-lo. Morreu no
exlio, em 1891, sem jamais ter voltado a rever sua ptria. A morte
ocorreu em Paris, dois anos depois de proclamada a Repblica no Brasil.
O Imperador dividia as tarefas de governo com o estudo e o
incentivo s artes. Dom Pedro II dedicou-se leitura e estudou idiomas,
entre os quais grego, latim, ingls, francs, italiano, provenal, alemo,
hebraico, snscrito, alm do tupi-guarani. Os netos do Imperador
publicaram, em 1889, um livro de poesias e tradues do Imperador.
Nesse livro, constam poemas de sua autoria e tradues diversas. Outra
parte de suas tradues foi publicada em 1891, em Poesies Hebraico-
Provenales, na qual constam poesias hebraico-provenais traduzidas do
hebraico para o francs. Algumas tradues nunca foram publicadas e
seu acesso requer pesquisa direta nos locais onde estas obras se
encontram.
-
58
2.1 O CONTEXTO DO SCULO XIX
O sculo XIX irrompeu na Europa marcado pelos abalos
gerados pela Revoluo Francesa e pelo novo papel social da burguesia.
Entre 1789 e 1815, a cultura da Europa foi transformada por revolues
e guerras, colocando em crise as bases econmicas, sociais e culturais
do sculo XVIII. Quirico Filopanti, no primeiro volume de sua obra
Storia di un secolo, dal 1789 ai giorni nostri, assim demarca a
importncia da revoluo francesa para o mundo:
A Revoluo Francesa, nas palavras de
simpatizantes e antagonistas, mudou de alguma
forma, a face da Europa. Repito a pergunta que
eu j tinha feito: ela mudou para melhor ou para
pior? Sem dvida, mudou para melhor a vida
material. Pelo fato que promoveu a abolio da
Servido feudal, dos primognitos de mo-
morta,14
, e dos mais odiados tributos; estimulou
a difuso da educao atravs do ensino
fundamental e a liberdade de imprensa [...]
(1891, p. 47).15
No meio da disputa entre a Frana napolenica, com seus ideais
iluministas, e a Inglaterra, em expanso industrial, aliada ustria,
Prssia e Rssia, o prncipe regente de Portugal, Dom Joo VI, mudou a
corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, elevando a categoria
da colnia para reino. Para Sodr, em seu Panorama do Segundo
14
Condio legal que impedia servos de transmitirem seus bens a herdeiros por testamento.
Condio legal de inalienabilidade de bens (como os que pertencem a entidades como
hospitais, instituies religiosas etc.). (iDicionrio Aulete. Disponvel em
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital. Acesso em 30 ago 2011). 15
La rivoluzione Francese, per confessione di amici e di nemici, ha cangiato, in qualche guisa,
la faccia dell'Europa. Ripeto la domanda gi da me fatta: l'ha mutata in meglio od in peggio?
Senza dubbio in meglio dal lato materiale. Imperciocch l'abolizione della servit della gleba,
dei maggioraschi della mano morta, e dei pi odiosi balzelli; la diffusione dell'istruzione
mediante le scuole elementari e la libert della stampa [...].
-
59
Imprio, a fuga de D. Joo VI16
foi o momento culminante da migrao
Lusitana (1998, p. 36) para o Brasil e Agora, no so mais os
necessitados, de toda a espcie e de todos os graus que acorrem ao
Brasil. a sua nobreza. a sua corte. o seu rei (1998, p. 36).
A Europa, na primeira metade do sculo XIX, atingiu nveis de
desenvolvimento significativos. Hobsbawm, em seu livro A Era das
Revolues, acentua que: A cincia nunca fora to vitoriosa; o
conhecimento nunca fora to difundido (2010, p. 466).
O desenvolvimento industrial europeu consolidou o
capitalismo e fez emergir suas contradies e antagonismos de classe. O
liberalismo, derivado do racionalismo iluminista, originou uma
sociedade baseada na explorao do trabalho assalariado e
fundamentada na liberdade de produo e de comrcio. No plano
poltico, o liberalismo sustentou os princpios da liberdade individual e
de pensamento e defendeu a formao de governos constitucionais.
Hobsbawm expe que O mundo da dcada de 1840 era
completamente dominado pelas potncias europeias, poltica e
economicamente, s quais se somavam os Estados Unidos (2010, p.
473) e destaca que:
[...] dentro deste domnio ocidental, a Gr-
Bretanha era a maior potncia, graas a seu
maior nmero de canhoneiras, comrcio e
bblias. A supremacia britnica era to absoluta
que mal necessitava de um controle poltico
para funcionar (2010, p. 473).
16
Em 1804, Napoleo proclamou-se imperador e ele prprio se coroou. Entre 1805 e 1810 conquistou praticamente toda a Europa: s no conquistou a Inglaterra. Em 1807, enviou a D.
Joo VI um ultimato, forando-o a declarar guerra aos britnicos. Ainda que por vias indiretas,
o Brasil iria lucrar duplamente com Napoleo: alm da vinda da famlia real, deve a ele, por
vias transversais, o envio da misso francesa, em 1816 (BUENO, 2003, p. 136).
-
60
Em 1848, a Europa era um caldeiro de revolues na qual se
enfrentavam as nobrezas absolutistas e as burguesias liberais. No meio
desta disputa nasceu uma nova filosofia de postulaes socialistas e
anticapitalistas, cujas ideias foram publicadas, em 1848, no Manifesto
Comunista de Marx e Engels. Sobre o "espectro do comunismo" que
aterrorizava a Europa neste perodo, Hobsbawm registra:
[...] a revoluo que eclodiu nos primeiros
meses de 1848 no foi uma revoluo social
simplesmente no sentido de que envolveu e
mobilizou todas as classes. [...] Quando a
poeira se assentou sobre suas runas, os
trabalhadores - na Frana, de fato, trabalhadores
socialistas - eram vistos de p sobre elas,
exigindo no s po e emprego, mas tambm
uma nova sociedade e um novo Estado (2010,
p. 477-478).
Entre 1815 e 1871, a Europa foi palco de um grande nmero de
conflitos e guerras de independncia, com as populaes incorporando o
ideal nacionalista (SCHNEEBERGER, 2006). Alemanha e Itlia
concluram as suas respectivas unificaes e se tornaram pases. O
Imprio Britnico emergiu como o primeiro poder.
Na segunda metade do sculo XIX, Inglaterra, Frana e
Alemanha, as grandes potncias industriais, competiam entre si na
formao de grandes imprios econmicos e na influncia sobre os
pases dos outros continentes. Para Alencar:
Os pases industrializados, j na fase do
capitalismo monopolista, se expandiram agora
no apenas exportando mercadorias, mas
-
61
atravs de investimentos de capitais nos pases
perifricos (1996, p. 163).
E quanto insero do Brasil nesse contexto, ele expe que
Atravs da exportao do caf, a economia brasileira reintegrou-se ao
mercado mundial (1996, p. 163). Como os demais pases no
industrializados, cabia ao Brasil, na nova diviso internacional do
mercado mundial gerada pela revoluo industrial,17
a condio de
fornecedor de matrias-primas e alimentos aos pases que compunham
os centros dinmicos do capitalismo em sua fase monopolista.
Como j exposto anteriormente, o Segundo Reinado foi o
perodo em que o Brasil foi governado por Dom Pedro II, de 1840 a
1889. Iniciou-se com a declarao de sua maioridade, em 23 de julho de
1840, quando o jovem imperador tinha quinze anos incompletos de
idade. A antecipao de sua maioridade foi arquitetada pelos liberais,
em oposio aos conservadores, que dominavam o cenrio poltico
nacional durante o perodo regencial, iniciado com a abdicao de Dom
Pedro I, em 1831. Mas, tanto liberais como conservadores
representavam os proprietrios rurais. Paulo Bonavides descreve o
panorama partidrio do perodo da seguinte forma:
No entanto, essa linha divisria e imaginria,
traada pelo historiador poltico, nem sempre
reflete a coerncia das posies que assumiram
as duas foras partidrias do Imprio, pois em face do poder que cobiavam, a bandeira dos
17 [...] A grande revoluo de 1789-1848 foi o triunfo no da indstria como tal, mas da indstria capitalista; no da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe mdia ou da
sociedade burguesa liberal; no da economia moderna ou do Estado moderno, mas das economias e Estados de uma determinada regio geogrfica do mundo (parte da Europa e
alguns trechos da Amrica do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Gr-
Bretanha e Frana [...] (HOBSBAWM, 2010, p. 20).
-
62
princpios era no raro deposta para
prevalecerem os interesses ulicos, as
convenincias de ocasio, as abdicaes, as
acomodaes (1994. p. 492).
Nelson Werneck Sodr, no seu livro a Sntese de Histria da
Cultura Brasileira, diz que:
Ao iniciar-se a segunda metade do sculo XIX,
a economia brasileira havia superado a longa
crise que a golpeava desde o declnio da
minerao. A lavoura do caf expandira-se no
vale do Paraba, nas provncias do Rio de
Janeiro e de So Paulo. A produo crescera em
ritmo acelerado, passando das 100.000 sacas de
1820 ao milho de sacas de 1840, aos dois
milhes de 1860 (1978, p. 44-45).
A consagrao do caf como grande produto agrcola nacional,
dada a grande demanda no mercado europeu, foi inicialmente sustentada
pelo uso da mo de obra escrava e, posteriormente, a imigrante. A
diminuio do fluxo de escravos, a partir de 1850, com a consequente
substituio da mo de obra escrava pela assalariada, fez surgir um
mercado consumidor. A industrializao comeou a apresentar um
considervel crescimento, especialmente com o investimento nas
atividades industriais no setor txtil. A criao de ferrovias tambm faz
parte deste contexto, possibilitando a circulao de mercadorias para
exportao (TEIXEIRA, 1979).
A perda de apoio junto elite cafeeira, motivada pelo fim da
escravido, fragilizou o imprio e impulsionou as ideias liberais e o
movimento republicano no Brasil. O antagonismo conservadores versus
liberais acabou em um desfecho um pouco diferente do que estava
acontecendo nos pases vizinhos: a mudana de regime teve o exrcito
-
63
brasileiro como maior protagonista. Sobre as causas da queda do
imprio, Alencar destaca:
As transformaes econmicas e ideolgicas da
sociedade brasileira tornaram superado o
regime monrquico. As chamadas questes religiosa, militar, escravista e eleitoral eram manifestaes conjunturais do declnio poltico
do imprio (1996, p. 216).
Em 15 de novembro de 1889, militares proclamam a repblica,
sepultando a monarquia.
2.2 A TRADUO NO BRASIL - SINOPSE DA TRAJETRIA PR
SEGUNDO IMPRIO
O Brasil europeu nasceu sob o marco da traduo. Os primeiros
oriundos do velho continente, ao aportarem nas novas terras da Amrica,
foram compelidos, imediatamente aps a descida em solo, a exercitarem
sua competncia tradutria. Primeiramente, tentando compreender
signos atravs de gestos, olhares, sinais e, mesmo, mmica. E,
posteriormente, dominando as regras e o lxico da lngua do povo com o
qual iniciavam uma relao. A carta de Pero Vaz De Caminha a El-Rei
Dom Manuel I, em 1500, assim narra a situao comunicativa no
encontro dos portugueses com os habitantes do Brasil:
O Capito, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de
ouro mui grande ao pescoo, e aos ps uma
alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simo de
Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e ns
outros que aqui na nau com ele vamos, sentados
no cho, pela alcatifa. Acenderam-se tochas.
-
64
Entraram. Mas no fizeram sinal de cortesia,
nem de falar ao Capito nem a ningum. Porm
um deles ps olho no colar do Capito, e
comeou de acenar com a mo para a terra e
depois para o colar, como que nos dizendo que
ali havia ouro. Tambm olhou para um castial
de prata e assim mesmo acenava para a terra e
novamente para o castial, como se l tambm
houvesse prata (CASTRO, 1998, p. 21).
O empenho de fazer traduo neste primeiro contato foi
motivado pela necessidade de se relacionar com um povo do qual nada
se conhecia. No havia saber prvio dos seus costumes, da sua forma de
organizao social e poltica, da sua histria, da sua cultura e da lngua
falada por ele. Pode-se dizer que a traduo aqui exercitada foi uma
espcie de traduo pura e imediata, pois no foi mediada nem
orientada, seja do ponto de vista dos europeus, seja pelo ponto de vista
dos nativos, por nenhuma outra cincia. No foi mediada pela
antropologia, pela filosofia, pela lingustica e, nem mesmo, por relaes
interculturais. Deu-se apenas pela necessidade de comunicao e
exercitada de forma oral.
Sobre esse aspecto, Wyler coloca:
Em termos documentais a traduo oral teve
incio com o achamento do Brasil. A traduo
escrita, por sua vez, fez sua primeira apario
em 1549, com a vinda dos jesutas,
praticamente limitada, durante sculos, aos universos escolar e burocrtico e para
lnguas-alvos diferentes do portugus. (2003, p. 29)
A necessidade de comunicao em situao to adversa
estabeleceu, pode-se assim dizer, o primeiro mtodo de estudo de
-
65
lnguas da histria brasileira: aquele praticado pelos lnguas. De
acordo com a Carta de Pero Vaz de Caminha, um mancebo degradado
de nome Afonso Ribeiro foi mandado para ficar l junto aos ndios e
saber de seu viver e maneira (CASTRO, 1998, p. 22). Para Wyler
(2003, p. 34), os lnguas ou intrpretes funcionavam como mediadores
para que a comunicao efetivamente ocorresse entre os europeus e os
habitantes nativos.
Aps este primeiro momento, o uso da traduo se ampliaria
para alm da necessidade de comunicao imediata e passaria a fazer
parte das necessidades dos diversos contextos da colnia e, na
sequncia, da constituio da nao. Seu uso cresceria nas diversas reas
necessrias ao desenvolvimento da nova terra: quer seja na educao, na
literatura e mesmo na economia.
Com a fuga da famlia imperial para o Brasil, em 1808, uma das
primeiras aes do prncipe regente, Dom Joo VI, foi promover a
abertura dos portos brasileiros s potncias que se conservam em paz e
harmonia com a minha Real Coroa, [...] (CASTRO, 1998, p.98). E a
Inglaterra era a principal aliada de Portugal no cenrio europeu, uma vez
que, tanto Portugal como a Inglaterra se encontravam em guerra contra a
Frana napolenica e seus ideais iluministas. Essa medida aumentou a
necessidade prtica do uso do ingls, o que fez crescer sua importncia
no sistema de ensino, levando o prncipe a produzir o Decreto de 22 de
junho de 1809, criando as cadeiras de ingls e francs no ensino oficial
brasileiro (OLIVEIRA, 1999, p. 18). O francs, porque, apesar da
guerra, era a lngua de cultura, e o ingls, por conta das relaes
econmicas e alianas polticas.
-
66
Se detalhssemos a traduo em cada perodo da histria do
Brasil, poderamos examinar as influncias dos contextos e das classes
dominantes no uso da traduo. No entanto, um tradutor e um perodo
em particular compem o objeto de anlise deste trabalho: Dom Pedro II
e o segundo reinado, que se inicia em 1840 e se encerra com a
proclamao da Repblica em 1889.
2.3 O MENINO IMPERADOR
O Monarca louro, de 1,90 m e olhos azuis, nascera robusto, com
47 cm, em 2 de dezembro de 1825, j prncipe de uma nao que tinha
apenas 3 anos de existncia. Pedro II cresceu, amadureceu e se formou
homem ao mesmo tempo em que o pas, a que ele estava destinado a
governar, tambm crescia, amadurecia e se formava como nao.
Assim como ocorria com a nao, seus primeiros anos no
foram fceis; a robustez do nascimento se debilitou, herdou do pai a
epilepsia e ficou rfo de me com apenas 1ano e nove meses de vida. A
ptria, sob o comando do seu pai, o imperador Dom Pedro I, portugus
de nascimento, lutava para se afirmar no mundo das naes soberanas.
As ideias liberais do prncipe Dom Pedro I cederam lugar aos
atos conflitantes do incio de seu governo, como a demisso de Jos
Bonifcio, um dos principais articuladores da proclamao da
independncia e a dissoluo da Assembleia Constituinte. Em 1826,
com a morte de Dom Joo VI, rei de Portugal, Dom Pedro I contrariou a
constituio que encomendara a um grupo de notveis e foi a Lisboa
-
67
assumir o trono do pai. Mesmo abdicando em seguida ao trono de
Portugal, em favor de sua filha, este fato, somado s suas sucessivas
interferncias nos assuntos portugueses, gerou descontentamentos no
Brasil. A imagem de Dom Pedro I sofreria, ainda, novos abalos
motivados pela perda da provncia Cisplatina, em 1828, com a crise
econmica e a consequente decretao da falncia do Banco do Brasil,
em 1829, e com a crise poltica gerada pela demisso do gabinete liberal
de Barbacena, que culminou com as Noites das Garrafas, em maro de
1831 (ALENCAR, 1996, p. 132).
Alencar narra que Dom Pedro I, voltando de uma fracassada
viagem a Minas Gerais, em busca da popularidade perdida, foi
recepcionado com festa pela sociedade secreta Colunas do Trono,
composta por portugueses absolutistas (1996, p. 132), o que irritou os
brasileiros, que foram s ruas gerando um conflito de grande proporo.
Em 7 de abril de 1831, pressionado por uma multido, que
tomou as ruas para protestar contra a demisso do Ministrio dos
Brasileiros, abdicou em favor de seu filho Pedro de Alcntara
(CARVALHO, 2007, p. 14). Encerrava-se assim o perodo de dualidade
governamental entre Brasil e Portugal e completava-se a independncia
poltica do Brasil. Dom Pedro II ficava no Brasil e Dom Pedro IV em
Portugal. O Brasil ganhava um imperador nativo e Pedro de Alcntara
tornava-se, tambm, rfo de pai.
Ainda para Carvalho (2007), o temperamento impulsivo,
romntico, autoritrio, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor de Dom
Pedro I, levava-o a comportamentos que aviltavam a moral da poca,
como, por exemplo, ter vrias amantes e filhos. Entre as amantes
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68
destacava-se a marquesa de Santos, presena frequente no palcio e
motivo de humilhao e constrangimento para a imperatriz Leopoldina.
Estas caractersticas certamente influenciaram o tutor Jos
Bonifcio ao planejar a educao do menino imperador. De Dom Pedro
I, Jos Bonifcio Admirava-lhe o arrojo poltico, mas abominava o
tratamento que ele dava imperatriz (CARVALHO, 2007, p. 23).
Do pai, Dom Pedro II herdou o gosto pela msica, pela poesia e
a averso ao trabalho escravo. Todavia, o que mais foi til ao seu
destinado encargo foram os conselhos do pai para se dedicar aos
estudos.
Dom Pedro I deixou trs pessoas encarregadas de prepararem o
filho para exercer a funo de imperador do Brasil: Jos Bonifcio,
como tutor do menino, posio confirmada pela Assembleia Geral do
Imprio; Mariana de Verna, a aia desde o nascimento de Pedro II; e o
afro-brasileiro Rafael, da confiana pessoal de Pedro I, a quem
encarregou a segurana do filho. Com a sada de Jos Bonifcio do
cargo de tutor imperial, em 1833, substituiu-o o Marqus de Itanham,
que viria, junto com Frei Pedro de Santa Maria e Souza, a ter grande
influncia na educao do pequeno Imperador e, consequentemente,
sobre a formao do carter do menino. Itanham, diz Carvalho, queria
formar um monarca humano, sbio, justo, honesto, constitucional,
pacifista, tolerante (2007, p. 27), que considerasse todos os seres
humanos como iguais. Itanham, como descreve Calmon, tinha como
desgnio educar o menino para ser diferente do pai: Confiara-lhe o
-
69
Brasil o rfo: ordenara-lhe que fizesse dele um rei. Se sasse desastrado
como o pai, no lhe perdoariam. Seria sempre, ele, o culpado, o
desidioso, o imprevidente. (1975, p. 19).
O carmelita Frei Pedro de Santa Mariana e Souza, que assumiu
a condio de diretor geral dos estudos de Pedro II e foi professor de
latim, religio, lgica e matemtica, segundo Lyra, exerceu muita
influncia na formao moral e intelectual do Imperador e asseverava
que nenhum dos homens que ento o rodeavam exerceu influncia
igual (1977, p. 44).
O menino Pedro de Alcntara tinha uma jornada intensa de
estudos, acordava s seis e meia da manh e deitava s dez da noite.
Solitrio, tinha pouca convivncia com gente da sua idade, dispunha de
pouco horrio livre, podia se encontrar com as irms para se divertir
durante duas horas, aps o almoo. Lyra (1977, p. 47) diz que
Qualquer menino de famlia burguesa daquela poca possua,
certamente, melhores e mais adequados a crianas da mesma idade ao
falar do divertimento do pequeno prncipe. Isolado, no tinha
conhecimento do que se passava no mundo, mesmo, das questes
relativas ao governo (CARVALHO, 2007).
A educao do futuro imperador era bastante vasta e ecltica, ia
das cincias naturais religio, da literatura msica, da dana
esgrima e equitao, sem descuidar da matemtica, da geografia e da
histria, disciplina para a qual demonstrava muita aplicao. Mas, era ao
estudo das lnguas que Dom Pedro II demonstrava maior aptido e
predileo. Nas palavras de Lyra, o pequeno prncipe revelaria desde
cedo uma grande propenso para tais estudos (1977, p. 46). Fora deste
-
70
espectro, toda a soma de conhecimento adquirida pelo Imperador deveu-
se unicamente ao seu esforo individual animado pelo seu culto ao
conhecimento.
A solido da infncia acabou ajudando nesta erudio, pois era
nos livros que se refugiava para ludibri-la. Segundo Carvalho:
O hbito da leitura e do estudo foi totalmente assimilado pelo pupilo. Mais que hbito, leitura
e estudo transformaram-se numa de suas
paixes. Enfurnado no palcio, longe dos pais,
educado por estranhos, exceo de d.
Mariana, fez dos livros um mundo parte, em
que podia isolar-se e proteger-se (2007, p. 29).
No estudo das lnguas estrangeiras era onde se davam os
maiores progressos. Lyra destaca que Aos nove anos em 1834 j
lia, escrevia e traduzia regularmente o francs. Comeava a ler e traduzir
o ingls (1977, p. 46) e Aos 14 anos comeava a aprender o alemo.
No latim, continuava a fazer rpidos progressos, e compunha j com
raros erros. Mostra predileo por Virglio, dizia Frei Pedro. (1977, p.
47).
Nunca se cansou de estudar lnguas e adquiriu competncia de
fala e escrita, alm do portugus, em latim, francs, ingls, italiano,
alemo, espanhol, grego, rabe, hebraico, snscrito, chins, provenal e,
mesmo, em tupi-guarani (CARVALHO, 2007, p. 226).
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71
2.4 AS ARTES E A ARTE DE GOVERNAR
Dom Pedro II foi coroado imperador em julho de 184118
aps a
antecipao da sua maioridade em junho do ano anterior, quando os
liberais, descontentes com o regente conservador Arajo Lima e seu
gabinete, foram ao Pao de So Cristvo e ofereceram o governo ao
jovem Pedro de Alcntara, ento com apenas 14 anos, que o aceitou.
O governante, considerado um intelectual, admirador das
cincias, apreciador das artes e da literatura , ainda hoje, lembrado no
cenrio nacional e externo pelo incentivo educao e cultura, pela
defesa da nao e pela diplomacia. Cultivou relaes com
personalidades internacionais, como os escritores Alphonse de
Lamartine, Victor Hugo e Alessandro Manzoni, os cientistas Louis
Pasteur e Charles Darwin, as atrizes Adelaide Ristori e Sarah Bernhardt,
dentre outros. Durante seu governo, o Brasil viveu um perodo de
estabilidade e desenvolvimento.
Em artigo publicado na revista da SBHC, Nadja Paraense dos
Santos assim descreve Dom Pedro II:
Na Europa capitalista e industrial, o perodo denominado de sculo da cincia, com as
pesquisas, os laboratrios, o ensino tcnico e
cientfico, as associaes cientficas e os
museus nacionais. No Brasil, D. Pedro II a tudo
acompanhava. Assinava publicaes cientficas,
correspondia-se com sbios, organizava
expedies cientficas e culturais, convidava
cientistas para visitar o pas, concedia bolsas no
18 Schwarcz assim descreve a Corte no dia da coroao: No dia 18 de julho de 1841 o Rio de Janeiro amanheceu mais uma vez em festa. A corte, vestida com o mximo de rigor aguardava
pelo maior ritual j preparado no pas (1998, p.73).
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72
exterior para estudantes brasileiros, encorajava
as pesquisas e discutia os novos conhecimentos,
demonstrando um obsessivo amor cincia
(2004, p. 59).
O Imperador brasileiro traduziu poemas e textos religiosos da
tradio judaica e catlica e fez tradues entre vrios par