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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE COMUNICAO E EXPRESSO

    PS-GRADUAO EM ESTUDOS DA TRADUO

    Romeu Porto Daros

    O IMPERADOR TRADUTOR DE DANTE: O PROCESSO

    CRIATIVO NA TRADUO DE DOM PEDRO II DO EPISDIO

    DE PAOLO E FRANCESCA DA DIVINA COMDIA

    Florianpolis

    2012

  • Romeu Porto Daros

    O IMPERADOR TRADUTOR: O PROCESSO CRIATIVO NA

    TRADUO DE DOM PEDRO II DO EPISDIO DE PAOLO E

    FRANCESCA DA DIVINA COMDIA

    Dissertao submetida ao Programa de

    Ps-Graduao em Estudos da Traduo como requisito final

    obteno do ttulo de Mestre em Estudos da Traduo pela

    Universidade Federal de Santa Catarina.

    rea de Concentrao: Processos de Retextualizao

    Orientador: Prof. Dr. Sergio Romanelli Co-orientadora: Profa. Dra. Silvana de

    Gaspari

    Florianpolis

    2012

  • Romeu Porto Daros

    O IMPERADOR TRADUTOR: O PROCESSO CRIATIVO NA

    TRADUO DE DOM PERO II DO EPISDIO DE PAOLO E FRANCESCA DA DIVINA COMDIA

    Esta Dissertao foi julgada adequada para obteno do Ttulo de MESTRE EM

    ESTUDOS DA TRADUO, e aprovado em sua forma final pelo Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Traduo da Universidade Federal de Santa Catarina, com sugesto

    para publicao.

    Florianpolis, 24 de agosto de 2012

    ________________________

    Prof. Dra. Andria Guerini

    Coordenadora do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________

    Prof. Dr. Sergio Romanelli

    Orientador

    UFSC

    ________________________

    Prof. Dra. Silvana de Gaspari

    Co-Orientadora

    UFSC

    ________________________

    Prof. Dr. Maria Teresa Arrigoni

    UFSC

    ________________________

    Prof. Dr. Karine Simoni

    UFSC

    ________________________

    Prof. Dr. Mrcia Ivana de Lima e Silva

    UFRGS

  • Para Dete e Vanildo, mais que

    pais, incansveis animadores de meus

    sonhos.

  • AGRADECIMENTOS

    s minhas filhas pelo incentivo e compreenso.

    Juliana pelo inestimvel apoio.

    Ao meu orientador, Sergio Romanelli, pela dedicao, amizade e

    incentivo.

    minha co-orientadora, Silvana de Gaspari, por manter-me na

    diritta via.

    Aos amigos e colegas pela colaborao.

    PGET/UFSC, pelo apoio institucional.

  • Assim, afirmo que se aqueles que partiram dessa vida h mil anos voltassem para as prprias

    cidades, pensariam que estivessem ocupadas por estrangeiros, por causa da diferena da lngua.

    (Dante Alighieri, 1304-1307)

  • RESUMO

    A pesquisa analisa o processo criativo na traduo, do italiano para o

    portugus, do episdio de Paolo e Francesca do canto V do Inferno da Divina Comdia de Dante Alighieri, feita por Dom Pedro II, ltimo imperador do Brasil. Investigam-se as estratgias utilizadas pelo

    Monarca no seu processo tradutrio. Do mesmo modo, averigua-se a

    razo da escolha do canto V, se houve motivao poltica ou de qualquer

    outra natureza para traduzir Dante. Por fim, objetiva-se demonstrar,

    atravs da anlise dos manuscritos do tradutor, observando suas rasuras,

    anotaes e pesquisando em materiais da poca, que possvel remontar

    ao processo de criao e aos elementos que influenciaram na traduo,

    identificando normas e padres na sua gnese. A pesquisa fundamenta-

    se terica e metodologicamente nos princpios da Crtica Gentica, com

    o auxlio da Teoria dos Polissistemas e dos Estudos Descritivos da

    Traduo.

    Palavras-chaves: Dom Pedro II, processo criativo, traduo, Divina Comdia.

  • SOMMARIO

    La ricerca ha analizza il processo creativo nella traduzione dallitaliano al portoghese dellepisodio di "Paolo e Francesca" del canto V dellInferno" della Divina Commedia di Dante Alighieri, realizzato da Dom Pedro II, ultimo imperatore del Brasile. Si esamina le strategie

    utilizzate dal Monarca nel suo processo di traduzione. Allo stesso modo,

    si cerca di capire il motivo della scelta del canto V, se esisteva una

    motivazione politica o di altro tipo per tradurre Dante. Infine si cerca di dimostrare, attraverso l'analisi dei manoscritti del traduttore, osservando

    le cancellature, le annotazioni e ricercando nei materiali del periodo che

    possibile ricomporre il processo di creazione e i fattori che hanno

    influenzato la traduzione, identificando le norme e le ricorrenze nella

    sua genesi. La ricerca stata condotta in base ai principi teorici e

    metodologici della Critica Genetica, con l'ausilio della Teoria dei

    Polisistemi e degli Studi Descrittivi della Traduzione.

    Parole chiave: Dom Pedro II, processo creativo, traduzione, Divina Commedia.

  • ABSTRACT

    The research analyzes the creative process in translation from Italian to

    Portuguese, the episode of "Paolo and Francesca" canto V of the

    "Inferno" the Divine Comedy by Dante Alighieri, done by Dom Pedro II, last emperor of Brazil. The strategies used by the monarch in his

    translation process are investigated. Similarly, the reason for choosing

    the canto V is verified, if there was political motivation or otherwise to

    translate Dante. Finally, the demonstration objectifies, through

    examining the manuscripts of the translator, observing their erasures,

    notes and researching in materials available that time, that is possible to

    trace the creative process and the factors which influenced the

    translation, identifying standards and patterns in their genesis. The

    research is based on theoretical and methodological principles of

    Genetic Criticism, with aid of Polysystem Theory and Descriptive

    Translation Studies.

    key-words: Dom Pedro II, the creative process, translation, Divine

    Comedy.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Mapa baseado em Holmes 43

    Figura 2 - Exemplo de manuscrito de Dom Pedro II, referente

    verso 1, flio 1.

    53

    Figura 3 - Dante e Virgilio encontram Paolo e Francesca 95

    Figura 4 Manuscrito de Dom Pedro II, referente verso 1,

    flio 2

    139

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro I - Dirio: anotaes de Dom Pedro II 85

    Quadro II - Anlise comparativa: Dom Pedro II x Pinheiro x

    Mauro

    88

    Quadro III - Tradues brasileiras da Divina Comdia 106

    Quadro IV - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x Pinheiro 116

    Quadro V - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x Baro da

    Vila da Barra

    117

    Quadro VI - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni 118

    Quadro VII - Anlise Comparativa: 3 Verso de Dom Pedro II

    x manuscrito definitivo x De Simoni

    119

    Quadro VIII - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni 121

    Quadro IX - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni

    x Baro da Vila da Barra x Pinheiro

    122

    Quadro X - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni

    x Baro da Vila da Barra x Pinheiro

    123

    Quadro XI - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni

    x Baro da Vila da Barra x Pinheiro

    123

    Quadro XII - Anlise Comparativa: Dom Pedro II x De Simoni

    x Baro da Vila da Barra x Pinheiro

    124

    Quadro XIII - Quadro Diacrnico da Transcrio do canto V 127

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CG Crtica Gentica

    EDT Estudos Descritivos da Traduo

    vv Verso

    T Terceto

  • SUMRIO

    INTRODUO 27

    1 A CRTICA GENTICA COMO FUNDAMENTAO TERICA E METODOLGICA DA PESQUISA

    34

    1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DA TRADUO COMO SUPORTE PARA A ANLISE GENTICA DAS TRADUES

    41

    1.2 A CONSTITUIO DO PROTOTEXTO DA PESQUISA 52

    2 PEDRO II - O HOMEM, O IMPERADOR E O TRADUTOR 57

    2.1 O CONTEXTO DO SCULO XIX 58

    2.2 A TRADUO NO BRASIL - SINOPSE DA TRAJETRIA PR SEGUNDO IMPRIO

    63

    2.3 O MENINO IMPERADOR 66

    2.4 AS ARTES E A ARTE DE GOVERNAR 71

    3 POETAS EM DOIS TEMPOS 89

    3.1 A DIVINA COMDIA 92

    3.2 A PRESENA DE DANTE NO BRASIL E NA LITERATURA BRASILEIRA

    98

    3.3 AS TRADUES DA DIVINA COMDIA NO BRASIL 105

    3.4 DOM PEDRO II TRADUTOR DA DIVINA COMDIA 109

    4 O PROCESSO CRIATIVO EM DOM PEDRO II A ANLISE GENTICA DOS MANUSCRITOS TRADUTRIOS

    125

    4.1 TRANSCRIO DIPLOMTICA DAS TRADUES DO CANTO V

    125

    4.2 VISO DIACRNICA DO PROCESSO CRIATIVO AS CAMPANHAS DE CRIAO

    135

    4.3 OS MOMENTOS DO PROCESSO CRIATIVO EM DOM PEDRO II 146

    4.4 O ENCADEAMENTO DOS MOMENTOS DO PROCESSO CRIATIVO NOS TERCETOS

    149

    4.5 ANLISE ESTRUTURAL - CONSIDERAES SOBRE O PROCESSO TRADUTRIO DE DOM PEDRO II

    167

    CONCLUSO 180

    REFERNCIAS 187

    BIBLIOGRAFIA 194

    APNDICE A Transcrio diplomtica dos manuscritos do episdio de Francesca da Rimini

    197

    APNDICE B Quadro comparativo: texto de partida - texto chegada 225

    APNDICE C - Quadro comparativo de tradues do episdio de Francesca da Rimini

    227

    ANEXO A - Carta de Dom Pedro II atriz italiana Adelaide Ristori 233

  • 27

    INTRODUO

    O Brasil carece de pesquisa sobre processos tradutrios e, em

    modo especfico, de estudos sobre tradutores brasileiros. No entanto,

    mesmo tendo-se como verdadeira a afirmao de que ainda h no pas

    poucas pesquisas sobre o processo criativo do tradutor, h que se

    considerar que, com o advento da Crtica Gentica (CG), no final do

    sculo XX, isso tem mudado. Nesta pesquisa, tratar-se- do estudo da

    traduo a partir do trabalho de um importante personagem brasileiro, o

    imperador Dom Pedro II, na traduo de trechos de uma das mais

    extraordinrias obras literrias do mundo ocidental, a Divina Comdia,

    escrita por Dante Alighieri.

    A anlise descritiva, ao estudar a traduo como ela se

    manifesta, e no como pretende-se que seja, pode alimentar hipteses

    tericas, que venham a adquirir valor aplicado e ajudar a fornecer ideias

    para novas pesquisas, elevando a compreenso dos procedimentos no

    ato da traduo (Toury, 1995). Portanto, esta pesquisa se insere no

    mbito terico e no esforo cumulativo das pesquisas dos Estudos

    Descritivos da Traduo (EDT). Este mbito de conhecimento, que

    consiste na compreenso do comportamento das variveis consideradas

    relevantes no processo tradutrio em situaes particulares, a base

    para a formulao de leis de natureza probabilstica e o caminho para a

    formulao de teorias que colaborem na reflexo geral sobre a traduo.

    A presente pesquisa pretende estudar o processo criativo que se

    d durante o ato tradutrio de poemas. Aquilo que Haroldo de Campos,

  • 28

    no ensaio O afreudisaco Lacan na galxia de la lngua (Freud, Lacan a

    escritura) (1989), discorrendo sobre a transposio do texto de partida

    para a lngua de chegada, resguardando a significncia do texto, chama

    de operao transcriadora:

    Numa transposio criativa (Jakobson), numa

    transpoetizao (Umdichtung, como quer W.

    Benjamin), numa operao transcriadora (como

    eu a chamo), onde o significante prima (tem

    primazia), [...] (1989, p. 12).

    Para Haroldo de Campos a traduo, ao promover o encontro

    entre culturas de um mesmo ou de diferentes perodos da histria,

    proporciona a relao de autores entre si, desses e suas obras, de espaos

    e tempos, de lnguas e sociedades.

    Assim, se usar como estudo de caso para anlise do processo

    criativo a traduo do episdio de Francesca da Rimini, mais conhecido

    como episdio de Paolo e Francesca, do canto V do Inferno, da

    Divina Comdia de Dante Alighieri, feita por Dom Pedro de Alcntara,

    ltimo imperador do Brasil, poeta e tradutor.

    A operao transcriadora a ser analisada, neste caso, acrescida

    de uma complexidade peculiar. Na Divina Comdia, escrita no incio do

    sculo XIV,1 Dante descreve o esprito profundo da cultura em que o

    ocidente vive e tambm as razes do prprio ser interior do homem,

    recolhendo os valores subjacentes aos princpios da vida intelectual e

    moral, que so fundamentais para o ser humano. Por conseguinte, o

    1 H dvidas sobre a data precisa na qual a Divina Comdia foi escrita: De fato, a primeira

    parte, o Inferno, escrita entre 1304 e 1305, segundo alguns autores, ou entre 1306 e 1307,

    segundo outros, era conhecida a partir de 1313, provvel poca em que j se preanunciava o

    Purgatrio, enquanto que a ltima parte, o Paraso, praticamente ocupou o poeta at a data de

    sua morte. (ARRIGONI, 2008, p. 37).

  • 29

    objetivo do poeta florentino no dizer o que existe no alm-morte, mas

    o de mostrar um percurso para se visualizar a vida de todos os homens.

    Talvez a complexidade desses temas, que perpassam a Divina Comdia,

    tenha atrado o Imperador e o tenha levado traduo de alguns cantos.

    Dom Pedro II viveu entre 1825 e 1891 e, alm de governante,

    foi um intelectual, admirador das cincias, apreciador das artes e da

    literatura; uma das caractersticas de seu governo - como se ver mais

    adiante - foi a liberdade de informao. Lia muito, sobre vrios temas e

    estudou idiomas. Traduziu poemas e textos religiosos da tradio

    judaica e catlica e fez tradues entre vrios pares de lnguas, clssicas

    e modernas. Entretanto, o seu trabalho como tradutor pouco

    conhecido, tanto pela populao quanto pelo mundo acadmico, onde

    so exguas as pesquisas a respeito do tema Dom Pedro II e a traduo.

    No banco de dados da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior (CAPES), por exemplo, entre os anos 2000 e 2010 h o

    registro de somente uma pesquisa em cujo tema Dom Pedro II e

    traduo aparece.

    Segundo Medeiros e Albuquerque (1932)2, os netos do

    Monarca publicaram, em 1889, um livro de poesias e tradues do

    Imperador. Nesse livro constam os cantos V e XXXIII do Inferno da

    Divina Comdia. A motivao de Dom Pedro II em escolher esses dois

    cantos do Inferno para traduzir foi pessoal, poltica ou de outra

    natureza? 2 Medeiros e Albuquerque, escritor, poltico e professor nasceu em 1867, no Recife. Aps a

    proclamao da Repblica foi nomeado secretrio do Ministrio do Interior. Foi o autor da

    letra do Hino da Proclamao da Repblica. Morreu em 1934. ACADEMIA BRASILEIRA DE

    LETRAS. Os imortais. 2001. Disponvel em: http://www.academia.org.br. Acesso em: maio

    2012.

  • 30

    Dom Pedro II traduziu de diversas lnguas, trabalhou a partir de

    textos em prosa e poesia e tambm era poeta. Dante Alighieri, no incio

    do sculo XIV, considerava a traduo de poesia difcil, pois: [...] o que

    foi harmonizado pelo toque das musas no se pode transpor de sua

    lngua para outra sem quebrar toda a suavidade e a harmonia

    (GUERINI, 2005, p. 23). Opinio que comungada, entre outros, pelo

    russo Roman Jakobson (1969) com sua tese da unio no reproduzvel

    de som e sentido. Recusando-se a tese da impossibilidade de se traduzir

    poesia e, por conseguinte, aceitando a possibilidade da sua traduo

    seja do contedo, seja da forma - ao se analisar a obra de Dom Pedro II,

    quais desses pressupostos se encontram e a qual ele deu maior

    relevncia? Teria o Imperador, durante a leitura dos cantos, percebido o

    processo de criao de sentidos existentes no texto?

    Partindo-se da noo de que traduzir poesia recri-la, que se

    exige do tradutor potico que ele desvende o processo criativo do texto

    de partida e que, ao se produzir um equivalente potico como texto de

    chegada, requer-se uma reescritura criativa. Qual teria sido a

    sensibilidade potica do Imperador? E, uma vez que o tradutor no se

    pe diante de um texto potico da mesma forma como se pe diante de

    um texto no potico, qual viso de fidelidade acompanhou Dom Pedro

    II durante o processo criativo?

    Aceitando-se a tese de Laranjeira (1993) e outros, de que

    traduo uma reescritura na lngua de chegada da leitura que se faz de

    um texto, e que, portanto, possvel a reescritura da sua significncia,

    mas, considerando a reflexo de Paul Ricoeur (2011, p. 24) para quem a

    traduo de poesia oferece [...] a dificuldade maior da unio

  • 31

    inseparvel do sentido e da sonoridade, do significado e do

    significante, quais regras ele seguiu?

    Dom Pedro II, durante o processo criativo, preocupou-se em

    retransmitir a leitura da realidade feita por Dante? Queria ele,

    ressignificando cantos da Divina Comdia em portugus, influenciar, no

    sentido ideolgico, pessoas e/ou grupos de sua poca?

    Assim sendo, e aceitando-se que a ao tradutria de um texto

    um processo criativo atravs do qual o tradutor compelido a fazer

    escolhas entre vrias possibilidades, a pesquisa busca analisar diante de

    quais opes Dom Pedro II esteve, quais mtodos e critrios usou para

    fazer escolhas e para aceitar e rejeitar opes. Na pesquisa se busca,

    tambm, identificar a existncia de estratgias de procedimento que

    indiquem um padro tradutrio no processo problema-soluo e, ainda,

    investiga-se por que o Imperador escolheu esses dois cantos do

    Inferno para traduzir. Sintetizando, a situao problema que se

    pretende trabalhar como, do ponto de vista da CG, se deu o processo

    criativo das tradues de Dante feitas por Dom Pedro II. Para tanto,

    resolve-se tomar, como objeto de estudo, a traduo do episdio de

    Francesca da Rimini, do canto V, do Inferno da Divina Comdia.

    Alm da contribuio ao processo de reflexo dentro dos

    estudos da traduo, da aplicabilidade e da existncia ou no de padres

    que possam orientar a tarefa do tradutor, esta pesquisa se destaca por

    estar inserida no trabalho pioneiro que vem sendo desenvolvido pelo

    Ncleo de Estudos de Processo Criativo NUPROC, no Departamento

    de Lnguas e Literaturas Estrangeiras, da UFSC, em torno das tradues

    de Dom Pedro II. Muito se estudou e se estuda sobre o Imperador

  • 32

    erudito, que se preocupava e se ocupava no s da poltica, mas,

    tambm, das cincias, da arte e da literatura. Todavia, como j dito,

    ainda bastante modesta a pesquisa em torno do seu trabalho como

    tradutor, sobre seu processo criativo, quais etapas percorria, como fazia

    escolhas e se tinha conscincia destas e, tambm, para quem escrevia.

    Enfim, que tipo de tradutor era e qual o papel da traduo na sua

    formao como escritor e imperador, e na vida da sociedade qual

    estava relacionado. Nas biografias3 e obras

    4 que tratam do Imperador,

    pesquisadas durante a elaborao desse trabalho, pouco se aborda o

    tema Dom Pedro II e a traduo. Os textos limitam-se, basicamente, a

    informar que ele exercia esta atividade. Alguns estudos mais

    aprofundados neste sentido comeam a ser encontrados em alguns

    trabalhos acadmicos5.

    3 Biografias de Dom Pedro II pesquisadas, em ordem cronolgica de edio:

    Visconde de Taunay. O Grande Imperador, 1933.

    Heitor Lyra. Histria de Dom Pedro II, 1825-1891, 1977.

    Pedro Calmon. Histria de D. Pedro II: no pas e no estrangeiro (1870-1887), 1975 e A

    Vida de Pedro II, o Rei Filsofo, 1975.

    Jos Murilo de Carvalho. D. Pedro II: Ser ou no Ser, 2007.

    Lilia M. Schwarcz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trpicos,

    1998. 4 Obras sobre Dom Pedro II pesquisadas, em ordem cronolgica de edio:

    Amrico Laconbe e L. Jacobina. O Mordomo do Imperador, 1994.

    Nelson Werneck Sodr. Panorama do segundo Imprio. 2. ed, 1998.

    Alessandra Vannucci. Uma amizade revelada. Correspondncia entre o Imperador dom

    Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo, 2004.

    5 Trabalhos acadmicos sobre Dom Pedro II pesquisados, em ordem cronolgica de

    apresentao:

    Nadja Paraense dos Santos. Pedro II, sbio e mecenas, e sua relao com a qumica . Artigo de 2004.

    Pedro Falleiros Heise. A introduo de Dante no Brasil: o Ramalhete potico do parnaso italiano de Luiz Vicente de Simoni. Dissertao de 2007.

    Rosane de Souza. A gnese de um processo tradutrio: as mil e uma noites de D. Pedro

    II, Dissertao de 2010.

    Mrcia A. P Martins e Anna Olga P. de Oliveira. D. Pedro II, monarca-tradutor. Artigo

    de 2010.

  • 33

    Esta dissertao a continuao, de alguma forma, da pesquisa

    iniciada na graduao e que resultou no Trabalho de Concluso de

    Curso (TCC), Il paradiso dantesco: vedere Dio per salvare l'umanit,

    de 2009, no qual analiso o canto XXXIII do Paraso da Divina

    Comdia.

    A dissertao estrutura-se em quatro captulos: na introduo se

    apresentam o tema e a contextualizao da pesquisa. O primeiro captulo

    dedicado aos fundamentos tericos e metodolgicos nos quais a

    pesquisa se sustenta. O segundo captulo trata do perodo, da obra e do

    autor Dom Pedro II, abordando a formao do homem, do imperador, do

    intelectual e da origem de seu interesse pelas artes, pelas lnguas e pela

    traduo. O terceiro captulo tem a finalidade de falar do encontro com

    Dante e a Divina Comdia e do interesse do Imperador em traduzir

    partes da obra. O quarto captulo intenta analisar o processo criativo do

    tradutor, discorrendo sobre as campanhas de criao, os momentos do

    processo e fazendo conjecturas sobre o mecanismo de funcionamento da

    ao tradutria de Dom Pedro II, abrindo assim o caminho para as

    concluses da pesquisa.

    Sergio Romanelli. Entre lnguas e culturas: as tradues de Dom Pedro II. Artigo de

    2012.

  • 34

    1 A CRTICA GENTICA COMO FUNDAMENTAO

    TERICA E METODOLGICA

    Nesta pesquisa se assume a ideia de traduo como reescritura,

    de acordo com a tica de Lefevere, para quem a traduo:

    [...] representa a modalidade mais reconhecvel

    de reescritura, e [] potencialmente a mais influente, pois capaz de projetar a imagem de

    um autor, e/ou de uma obra, alm dos confins

    da sua cultura de origem (2007, p. 24).

    Para Lefevere, o texto original manipulado e reinterpretado.

    Essa alterao porta a traduo a um estgio de reinterpretao criativa,

    via a qual o tradutor se faz presente no texto de chegada, introduzindo

    sua voz atravs do efeito que deseja causar na cultura alvo.

    A ideia de Lefevere soma-se percepo da traduo como um

    processo, conforme a definio de Marie-Hlne Passos para quem:

    [...] o processo tradutrio um processo criativo remetendo ao ato de escrever, Isto , ao

    ato de criar um discurso prprio a partir de um

    discurso alheio. Esta criao do discurso,

    representada pelo fazer, pelo escrever da traduo em processo, no uma simples

    tcnica lingustica de passagem de uma lngua

    para outra, uma escritura, ou uma

    (re)escritura, oriunda do espao recndito do

    pensamento em criao (2011, p. 15).

    Esse entendimento conceitual do que a traduo norteou a

    anlise processada nesta pesquisa. Anlise, por sua vez, fundamentada

    terica e metodologicamente nos princpios da CG.

  • 35

    A CG originou-se na Frana, em 19686, a partir do estudo de

    manuscritos literrios e, segundo Romanelli (2006), chegou ao Brasil

    em 1985, por iniciativa de Philippe Willemart. A CG considera que o

    resultado de um trabalho artstico fruto de uma sucesso complexa de

    fatos e fenmenos, que vo da preparao da pesquisa, s tcnicas de

    escritura e correes, at as influncias de diversas ordens, que incidem

    na composio da obra. Seu princpio, segundo Biasi:

    [...] o de dar uma ateno to grande quanto

    possvel ao trabalho do escritor, aos seus

    gestos, s suas emoes, s suas incertezas: o

    que ela prope redescobrir a obra por meio da

    sucesso dos esboos e das redaes que a

    fizeram nascer e a levaram at sua forma

    definitiva. Com que inteno? A de melhor

    compreend-la: conhecer por dentro a sua

    composio, as intenes recnditas do escritor,

    seus procedimentos, sua maneira de criar, os

    elementos pacientemente construdos que ele

    acaba eliminando, os que ele conserva e desenvolve. Observar seus momentos de

    bloqueio, seus lapsos, suas voltas para trs,

    adivinhar seu mtodo e sua prtica de trabalho,

    saber se ele faz planos ou se ele se lana

    diretamente na redao, reencontrar o rastro

    preciso dos documentos e dos livros que ele

    usou, etc. A gentica dos textos faz penetrar no

    laboratrio secreto do escritor, no espao

    ntimo de uma escritura que se busca [...] (2010,

    p. 11).

    6 Para o Grsillon o contexto sociopoltico da Frana do final da dcada de 1960 influenciou

    ideologicamente a CG:

    [...] as condies da vida intelectual na Frana no fim dos anos sessenta que, como qualquer

    conjuntura ideolgica precisa, influenciaram a orientao e o foco da crtica gentica

    nascente. Esta tomou seu impulso ao mesmo tempo em pleno estruturalismo e, pelo menos em

    parte, contra ele. Herdando dessa corrente o rigor metodolgico, a crtica gentica, embora

    fazendo romper o fechamento do texto, foi utilizada para isolar e descrever as diferentes fases

    dos antetextos (...); e estabelecer, em funo dos hbitos variveis dos escritores, tipologias

    antetextuais (1991, p. 11).

  • 36

    Para Romanelli, a CG mostra o avesso do texto publicado, processo

    que permite que se desmitifique a ideia de que uma obra nasce j

    pronta como resultado espontneo de pura inspirao" (2006, p. 88).

    Portanto, a CG se concentra, prioritariamente, no terceiro foco

    dos estudos descritivos, conforme indicado por Holmes, ou seja, no

    estudo do processo criativo do tradutor ao realizar o ato tradutrio, com

    a preocupao de analisar o processo desde a sua gnese, ou seja, desde

    o primeiro plano, o primeiro rabisco, o primeiro rascunho, ou mesmo,

    desde a primeira inteno de realizar o ato tradutrio, posto que essa

    inteno esteja grafada em algum lugar.

    O que interessa:

    [...] so os rastros interpretveis do trabalho

    intelectual, tais como os arquivos permitem

    observ-los e elucid-los em termos de

    processo. Ao procurar construir uma

    epistemologia histrica e talvez materialista da

    escritura literria, a gentica literria arranca a

    relao crtica da fico de sua soberania

    hegemnica e reinsere a obra na lgica profana

    de sua gnese. Mas esse gesto, longe de tornar

    nula a relao crtica, enriquece o texto com uma dimenso, a do tempo humano, em que o

    sentido retoma a posse de sua prpria histria

    (DE BIASI, 2010, p. 114-115).

    De tal modo, a CG vem agregar uma importante contribuio

    aos EDT e vice-versa. A CG estuda todos os documentos que antecedem

    a elaborao do texto de chegada, inclusive aqueles que dizem respeito

    ao seu processo de elaborao e que so, portanto, anteriores ao texto

    final. Este conjunto de documentos usualmente chamado de

    prototexto.

  • 37

    O prototexto constitui-se principalmente de manuscritos. Hay

    descreve o manuscrito como sendo:

    [...] de uma extraordinria diversidade, e

    pertencente a todas as etapas e a todos os

    estados do trabalho, dossis, cadernos, esboos,

    planos, rascunhos. Mas, desde que o

    pensamento ou imaginao os tocaram, todos,

    do documento inerte dicionrio, relatrio at a pgina inspirada, encontram-se dotados de

    vida e convocados a desempenhar seu papel

    num projeto de escritura (2007, p. 17).

    Os manuscritos podem ser constitudos por rasuras, cartas,

    anotaes, rascunhos, jornais, livros, metatextos, depoimentos, entre

    outros indcios que remetem compreenso de mecanismos da gnese

    da criao artstica, bem como os elementos que influenciam as escolhas

    do tradutor. De acordo com Willemart (2008), os estudos do processo de

    criao podem ser captados tanto nos rascunhos, croquis ou esboos

    quanto no texto publicado, mas no primeiro caso falamos de CG

    propriamente dita, no outro de crtica textual.

    Para De Biasi (2010, p. 70), o que caracteriza o manuscrito a

    [...] presena de uma escritura, mais ou menos bem formada [...]. Este,

    ao contrrio do que induz a nossa experincia cultural com a palavra

    manuscrito, no se relaciona a algo morto e inerte. No atrs de uma

    pea de museu que a CG caminha, mas ela se mobiliza pela busca do

    movimento que h em cada trao do escrito e do no escrito, pelo

    escritor. a vida que h por detrs do que parece, primeira vista,

    esttico, que interessa CG.

    Este tipo de anlise requer a superao da noo de que o texto

  • 38

    somente existe na sua redao considerada final e impressa. Os limites

    deste tipo de anlise: sincrnica e estruturalista, que concebe o texto

    como se fosse uma foto, feita em um instante e destinado a uma nica

    forma para todo o sempre, impede esse descobrir de configuraes e de

    entre textos, que s uma anlise diacrnica pode permitir. Estudar

    processos requer que se leve em considerao a dimenso histrica que

    levou redao do texto considerado final. Se este esforo no uma

    condio sine qua non para que se possa ler um texto, possvel afirmar

    que o conhecimento do processo permite desse uma melhor leitura.

    A anlise gentica, como visto, requer do pesquisador a ateno

    a alguns procedimentos, tais como a construo do dossi gentico e o

    estabelecimento do prototexto. O dossi gentico o conjunto de

    materiais, autgrafos ou no, recolhidos pelo pesquisador e que se

    reportam gnese do texto a ser analisado. O prototexto a organizao

    que o pesquisador faz do dossi levantado. Esta organizao nica e

    exclusiva do pesquisador que a faz e, como tal, integrante do processo

    de anlise, uma vez que o encadeamento diacrnico do material j

    requer uma postura analtica. A organizao diacrnica do material deve

    levar em conta as fases da criao do escritor, desde a ideia inicial at a

    impresso do texto. Essa classificao pode ser mais simples se o

    escritor trabalhou com um projeto de escritura da obra, esquematizando

    e antecipando os passos de sua produo em um roteiro. E, mais

    complexa, quando a estrutura de sua redao se conforma medida que

    o texto vai sendo escrito. Para De Biasi (2010), existem quatro grandes

    fases de trabalho na produo de um texto que se sucedem e possuem

    importncia varivel, que so: a fase pr-redacional, a redacional, a pr-

    editorial e a editorial.

  • 39

    Concomitante organizao do prototexto, necessria a

    classificao e a transcrio dos manuscritos para prepar-los para a

    anlise. A transcrio dos rascunhos - dependendo de seu estado e do

    estilo do escritor - pode exigir um rduo processo de deciframento que

    nem sempre se atinge na totalidade. Durante o processo de transcrio

    dos rascunhos tornam-se perceptveis os contornos da histria do

    processo de criao, facilitando a classificao dos rascunhos em funo

    do texto supostamente definitivo.

    Em escritores que trabalham sem um roteiro pr-estabelecido,

    como o caso de Dom Pedro II, a classificao mais complexa e

    somente se delineia no transcorrer do processo de transcrio. o estado

    do rascunho e o tipo de rasuras; os cancelamentos, deslocamentos e

    acrscimos que vo clareando a trajetria temporal feita pelo escritor.

    Para Levaillant, ao ser citado por De Biasi:

    [...] o rascunho no conta a boa histria da gnese, a histria bem orientada por esse final

    feliz: o texto. O rascunho no conta, ele d a ver: a violncia dos conflitos, o custo das

    escolhas, os acabamentos possveis, o esbarro, a

    censura, a perda, a emergncia das

    intensidades, tudo o que o ser inteiro escreve. O

    rascunho no mais preparao, mas o outro

    texto (2010, p. 118).

    Para Hay (2010), o crtico gentico cumpre concomitantemente

    dois papeis no seu trabalho analtico: por um lado, ele atua como juiz,

    pois decide qual objeto material ser fruto de um processamento

    cientfico ao classific-lo, organiz-lo diacronicamente e

    sincronicamente e articul-lo entre si e com outros materiais de cunho

    mais amplo; e, por outro lado, se comporta como parte implicada,

  • 40

    quando faz concluses acerca do processo criativo da obra de outro.

    Certo que o crtico gentico no tem certezas:

    Ningum poderia reviver uma experincia que

    o autor primeiro viveu sozinho, depois

    ultrapassou e deixou atrs de si. O que o crtico

    observa so os ndices visveis de um trabalho;

    o que ele decifra no o movimento de um

    esprito, mas o trao de um ato: no o que o

    escritor queria dizer, mas o que ele disse. A

    anotao exibe a marca de um acontecimento que a escritura objetivou. Entre esse

    acontecimento e os movimentos desordenados dos espritos, de que fala Valry, existe uma ligao paradoxal, uma vez que a escritura

    procede do esprito, que a pe em movimento,

    mas, ao mesmo tempo, dele se destaca, e no

    permite mais regressar a ele (HAY, 2010, p.19-

    20).

    A tarefa do crtico gentico , portanto, a compreenso da

    dinmica do ato tradutrio, ver alm e atravs do texto, a ao do

    escritor acontecendo e desemaranhar o seu significado. A instabilidade

    a regra e o movimento a constante. Trata-se de um movimento no

    linear, mas elptico e multidimensional. neste terreno no adensado

    que o crtico especula, observa e deve dizer como as coisas se fizeram

    (HAY, 2010, p. 20).

    Resumidamente, pode-se dizer que a CG uma abordagem

    analtica que procura entender os signos, indo gnese do texto tido

    como final, cotejando-o com os manuscritos. Seu objetivo

    compreender o mecanismo da criao buscando identificar processos de

    escritura do autor.

  • 41

    1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DA TRADUO COMO

    SUPORTE PARA A ANLISE GENTICA DAS TRADUES

    Os EDT podem ajudar a CG no estudo do processo criativo do

    ato tradutrio, pois o foco da anlise descritiva tambm indagar o

    processo que antecede o texto considerado final e no o produto.

    A anlise descritiva da traduo do episdio de Francesca da

    Rimini do canto V do Inferno, feita por Dom Pedro II, foi, portanto,

    realizada com o auxlio do modelo metodolgico proposto por Lambert

    e Van Gorp (2010), que avalia as diferenas e semelhanas preliminares,

    macroestruturais e microestruturais entre as tradues e o texto de

    partida. Em se tratando de uma anlise sistmica, comparar-se- tambm

    as tradues de Dante feitas por outros autores para o portugus do

    Brasil, tendo, entre eles, alguns dos mais conhecidos tradutores da

    Divina Comdia como o Baro da Vila da Barra, Jos Xavier Pinheiro e

    talo Eugnio Mauro.

    Os EDT nascem da crtica aos modelos tradicionais adotados

    em traduo, a chamada abordagem prescritivista, que ambicionava

    estabelecer regras universais para fazerem-se tradues que fossem

    aplicveis para qualquer caso. Os EDT surgiram na universidade de Tel

    Aviv, a partir das reflexes de Itamar Even-Zohar e Gideon Toury, com

    a preocupao no s de descrever, mas de explicar os produtos, funes

    e processos tradutrios e, ainda, de medir o impacto das tradues no

    sistema receptor. Estabelece-se a viso da traduo como criadora de um

    novo jogo de linguagem na cultura de chegada, o que pode produzir

    novas prticas, novas ideias e novos comportamentos (TOURY, 1995).

  • 42

    Gideon Toury (2001) sustenta que as culturas recorrem

    traduo como uma forma de preencherem as suas lacunas e que esta

    feita a partir de normas concebidas para satisfazer certas necessidades da

    cultura receptora e dos seus membros. Para Toury, um texto pode ser

    considerado uma traduo quando assim aceito pelas normas da

    cultura de chegada:

    Portanto, num primeiro momento, qualquer que

    seja a razo para definir um texto como uma

    traduo, essa pretensa traduo ser analisada

    exclusivamente em termos da sua aceitabilidade

    (por tipo e extenso) no sistema de chegada, ou

    seja, em termos de sua submisso s normas

    dominantes naquele sistema especfico (traduo nossa)7 (1980, p. 194).8

    A anlise realizada com base na abordagem descritiva uma

    vertente metodolgica relativamente nova e tem em Holmes um dos

    fundadores do conceito. Para Holmes (1972), a traduo no

    meramente uma transposio lingustica, mas um ato de comunicao

    que (re)interpreta textos em outra lngua sob determinado contexto

    sociocultural e com uma determinada finalidade. Ainda para Holmes, os

    estudos da traduo podem estar focados em trs linhas de pesquisa: no

    produto, na funo e no processo.

    7 Todas as outras tradues do italiano so do autor do texto. Portanto, a partir deste ponto, no se usar mais a expresso entre parnteses (traduo nossa).

    8 Perci, qualunque sia la ragione per definire un testo come traduzione, in una prima fase

    ogni presunta traduzione verr analizzata esclusivamente dal punto di vista della sua

    accettabilit (per tipo ed estensione) nel sistema di arrivo, cio nei termini della sua sottomissione alle norme dominanti in quello specifico sistema. (1980, p. 194)

  • 43

    Figura 1. Mapa baseado em Holmes.9

    Os estudos descritivos, focados no produto, descrevem as

    tradues existentes. A descrio pode ser de tradues isoladas ou comparadas, de um perodo determinado, numa certa lngua e ou tipo

    textual ou discursivo.

    Os estudos descritivos, focados na funo, para alm da

    traduo em si mesma, procuram descrever as tradues

    circunstanciadas na realidade sociocultural receptora, ressaltando os

    contextos e no somente os textos (Toury, 1995). O estudo de contextos

    requer um esforo de descrio do papel que a traduo ocupa no

    polissistema cultural e literrio do perodo.

    9 Mapa baseado em Holmes produzido por Pagano & Vasconcellos, publicado em 2003, na revista Delta e apresentado no III Congresso Interamericano de Traduo e Interpretao

    CIATI- 2004. Aqui, extrado do manual: Estudos da Traduo I, de autoria de Lautenai

    Antonio Bartholamei Junior e Maria Lucia Vasconcellos, do CCE UFSC, 2008, p. 6.

  • 44

    Os estudos descritivos, focados no processo - no qual se

    inserem os estudos de gnese, e, portanto, esta pesquisa -, buscam

    descrever o processo criativo durante o ato tradutrio em si, o que

    acontece na mente do tradutor enquanto cria um texto novo a partir de

    um texto pr-existente numa outra lngua.

    Um dos instrumentos tericos fundamentais da concepo

    descritiva a teoria dos polissistemas, de Even-Zohar (1990), que

    pressupe a existncia de uma rede de sistemas inter-relacionados

    dialeticamente. Nesta teoria, a literatura traduzida compe um sistema

    que faz parte do polissistema da literatura da lngua de chegada e este,

    por sua vez, parte do polissistema cultural. Um polissistema mantm

    relaes com outros sistemas da cultura de chegada e de outras culturas.

    A noo de polissistemas fundamental para o entendimento da

    traduo tambm como um processo de transferncia cultural.

    Para Even-Zohar (1990), existe uma interdependncia entre

    processos e produtos, o que implica em intervenes nos produtos de

    acordo com os interesses dominantes que atuam no polissistema. Para

    Andr Lefevere (1992) e Gideon Toury (1995), ambos associados

    teoria polissistmica, a traduo uma reescrita que, assim como o

    original, no interior de seu polissistema poltico-cultural, tem o poder de

    influenciar a cultura de chegada. Deste modo, a relao produto-

    processo-funo viva e uma pesquisa para chegar a concluses

    pertinentes exige, invariavelmente, a identificao dos parmetros de

    relao entre eles. Gideon Toury (1995) e Theo Hermans (1996) deram

    sequncia aos estudos polissistmicos de Zohar e neles nos embasamos

    para a nossa anlise das tradues de Dom Pedro II. A Teoria dos

    Polissistemas, portanto, ajudou a entender qual lugar ocupavam os

  • 45

    textos traduzidos e as tradues de Dom Pedro II no polissistema

    literrio nacional do perodo e, desse, no polissistema literrio mundial.

    A traduo um tipo de atividade que, inevitavelmente,

    envolve pelo menos duas lnguas e duas tradies culturais, ou seja, pelo

    menos dois sistemas de normas em cada polo. A traduo constitui uma

    representao de um texto de partida na lngua e na cultura de outro.

    um texto em uma determinada lngua e, portanto, ocupando uma posio

    em meio a uma cultura, ou em uma determinada seo dessa. Parte de

    um texto existente em outra lngua, que pertence a outra cultura e ocupa

    uma posio definitiva dentro dela.

    A traduo pode ter uma maior ou menor conformao s

    normas da cultura e lngua de partida ou da cultura e lngua de chegada.

    Toury titula de adequada a traduo que se desvia dos padres

    sancionados pela cultura que a abriga, ou seja, quando ela reproduz as

    normas, tanto lingusticas como textuais, do texto de partida, e

    aceitvel quando se coaduna com os padres da cultura-meta. Sobre

    esta problemtica Toury diz:

    Assim, um tradutor pode sujeitar him-/herself

    (ele-/se) tanto para o texto original, com as

    normas que tem realizado, ou com as normas

    ativas na cultura alvo [...]. Se a primeira a

    postura aprovada, a traduo tende a inscrever-

    se nas normas do texto fonte e, atravs dele,

    tambm as normas da lngua e cultura de

    origem. Esta tendncia, que tem sido muitas vezes caracterizada como a busca da traduo

    adequada, pode muito bem implicar em

    determinadas incompatibilidades com as

    normas e prticas de destino, especialmente

    aquelas que esto alm da mera lingustica. Se

    por outro lado a segunda postura adotada, os

  • 46

    sistemas de normas da cultura-alvo so

    acionados e postos em movimento. Deslocar-se

    do texto de origem um preo quase inevitvel.

    Assim, enquanto a adeso s normas de origem

    determina uma adequao da traduo em

    relao ao texto fonte, subscrio as normas

    da cultura-alvo determina sua aceitabilidade.

    (1995, p. 59).10

    O comportamento da traduo dentro de uma cultura tende a

    manifestar determinadas regularidades, ou seja, normas, que formam um

    continuum graduado, ao longo de uma escala. Algumas so mais fortes e

    outras so mais fracas. As fronteiras entre elas so difusas. As normas

    mais explcitas e objetivas constituem regras e as mais difusas e

    subjetivas, idiossincrasias.

    Ao longo do eixo temporal, cada tipo de norma pode se mover

    atravs de processos de ascenso e declnio. A regularidade de

    comportamento em situaes de repetio demonstra se a norma ativa

    e eficaz. A regularidade o principal elemento a ser observado para

    qualquer estudo de normas. Os pesquisadores identificam as normas

    comportamentais de traduo por meio de padres regulares de traduo

    e da estratgia escolhida pelo tradutor. possvel identificar normas

    predominantes de determinada cultura e perodo por meio do exame dos

    textos traduzidos e das declaraes feitas por tradutores, revisores,

    editores e outros participantes do processo tradutrio.

    10

    Traduo extrada de: TOURY, A natureza e o papel das Normas de Traduo. In: Estudos

    Descritivos de Traduo e alm. Amsterdam Philadelphia: John Benjamins, 1995b, p. 53-69.

    Texto digitalizado para uso educacional, Unidade de Pesquisa em Educao, Universidade de

    Tel Aviv. http://spinoza.tau.ac.il/ Toury ~ / obras.

  • 47

    A noo de norma pressupe que o tradutor se v diante da

    necessidade de tomar decises, pois ele desempenha um papel social;

    exerce uma funo determinada pela comunidade e precisa faz-lo da

    maneira estabelecida por esse grupo. Para Toury:

    O ato de traduzir, enquanto atividade teleolgica por excelncia, fortemente

    condicionado por seus fins prprios, e esses,

    so sempre determinados a partir da perspectiva

    do sistema (ou dos sistemas) receptor.

    Consequentemente, os tradutores operam em

    primeiro lugar no interesse da cultura para a

    qual esto traduzindo, e no em razo do texto

    de partida, colocando, assim, de fato, entre

    parnteses a cultura de origem do texto (1980,

    p. 186).11

    Toury destaca trs tipos de normas de traduo: preliminares,

    iniciais e operacionais. As normas preliminares dizem respeito

    natureza e poltica da traduo. So os fatores que determinam a

    escolha do texto a ser importado, atravs da traduo, em uma

    determinada cultura/linguagem, em um determinado perodo. A escolha

    no aleatria e aplica-se seleo de textos e aos autores a serem

    traduzidos, bem como estratgia global para a realizao e insero

    das tradues no sistema-alvo.

    As normas iniciais envolvem as decises bsicas tomadas pelo

    tradutor quanto a tornar a traduo adequada ou aceitvel. Vale frisar

    que os dois plos adequao e aceitabilidade no so excludentes; 11

    Latto del tradurre, in quanto attivit teleologica per eccellenza, largamente condizionato dai suoi stessi fini, e questi, vengono sempre determinati dalla prospettiva del sistema, o dei

    sistemi, riceventi. Di conseguenza, i traduttori operano innanzitutto, e, nellinteresse della

    cultura in cui stanno traducendo, e non certo in ragione del testo di partenza, mettendo cos di

    fatto tra parentesi la cultura da cui il testo ha tratto origine.

  • 48

    o tradutor pode adotar uma soluo intermediria e fazer uma

    combinao de normas. A atitude do tradutor com relao ao texto-fonte

    afetada pela posio do texto no sistema poliliterrio da cultura-fonte.

    As normas operacionais referem-se s decises tomadas durante

    o processo tradutrio e dividem-se, por sua vez, em duas categorias: as

    matriciais e as textuais. As primeiras determinam omisses, acrscimos,

    mudanas de localizao e manipulao de feitos em relao ao texto de

    partida. As fronteiras entre os vrios fenmenos matriciais no so

    claras. J as textuais revelam as opes lingusticas e estilsticas do

    tradutor.

    No modelo desenvolvido por Toury, as normas iniciais se

    situam no topo da hierarquia, visto que, se forem consistentes, acabam

    por influenciar todas as outras decises tradutrias. J as normas

    operacionais decorrem da posio central ou perifrica ocupada pela

    literatura traduzida no polissistema da cultura alvo.

    As normas so instveis pela sua prpria natureza e se alteram.

    A multiplicidade e variao no devem ser tomadas como critrio para

    sugerir que no h normas ativas na traduo. Elas s significam que, na

    vida real, as situaes tendem a ser complexas. Essa complexidade deve

    ser observada, em vez de ignorada. Deve-se contextualizar cada

    fenmeno, cada item, cada texto, cada ato e listar os fatores que podem

    ocorrer em um corpus. Um eixo importante de contextualizao o

    histrico. A contextualizao histrica um dever no apenas para um

    estudo diacrnico, mas tambm para os estudos sincrnicos.

  • 49

    As normas no so diretamente observveis. H duas fontes

    principais para a reconstruo das normas de traduo: a textual, ou

    seja, os textos traduzidos, e a extratextual, que compreende as

    formulaes semitericas ou crticas como teorias normativas de

    traduo, testemunhos de tradutores, de editores ou de quaisquer outras

    pessoas envolvidas ou ligadas atividade, em metatextos e paratextos.

    A traduo intrinsecamente multidimensional: os fenmenos

    muitas vezes so fortemente interligados e no permitem um fcil

    isolamento. A tarefa do pesquisador pode ser caracterizada como uma

    tentativa de estabelecer as relaes que existem entre as normas relativas

    a vrios domnios, correlacionando seus resultados individuais e

    pesando-os uns contra os outros. Deve-se ter em conta que os tradutores

    no so passivos e tentam interferir com o curso dos eventos e desvi-

    los de acordo com suas preferncias, bem como, considerar a hiptese

    do comportamento no normativo. As normas podem ser quebradas, a

    depender da natureza e da fora destas e da motivao do tradutor. A

    existncia de normas no torna impossvel o desenvolvimento de

    comportamentos errticos ou idiossincrticos.

    A formulao do conceito de normas por Toury (1980) acabou

    por redefinir outro de suma importncia nos EDT, o de equivalncia.

    A noo de equivalncia, aqui, difere dos conceitos correntes de equivalncia na

    traduo, pelo fato de que no se limita a uma

    simples relao entre o texto-fonte e o de chegada, estabelecida com base em certos

    padres, mas, de um conceito funcional-

    relacional, ou seja, a mesma relao (ou um

    conjunto de relaes ordenadas) que, por

    definio, permite distinguir uma traduo de

  • 50

    uma no traduo em um dado contexto scio-

    cultural na lngua-alvo, isto , discernir entre

    uma adequada ou inadequada performance

    lingustica em relao aos modelos e normas

    vigentes nesse contexto (1980, p. 219).12

    No objeto deste trabalho discutir aprofundadamente o

    conceito de equivalncia, mas importante que se estabelea com qual

    noo de equivalncia se dialoga nesta pesquisa, uma vez que esta tem

    sido uma das questes mais delicadas e polmicas dos Estudos da

    Traduo. Dado o controvertido debate entre os tericos da traduo

    acerca do que seja equivalncia, faz-se necessrio, para uma melhor

    apreenso desta pesquisa, o conhecimento das noes introduzidas por

    Toury sobre o tema, somadas reflexo de Paul Ricoeur (2011).

    Na prtica tradutria, a equivalncia um conceito fixo ou se

    aceita a ideia de certa mobilidade, que permite que seja dialeticamente

    aplicado s diversas situaes do ato tradutrio, em especial, no que diz

    respeito funo da traduo? Tradicionalmente prescritiva, a noo de

    equivalncia ganhou uma dimenso de historicidade. Em vez de se

    referir apenas relao entre o texto de partida e o de chegada, com as

    teorias descritivas, passou a designar toda relao que tenha

    caracterizado uma traduo num dado contexto. O conceito de

    equivalncia adquiriu, assim, um carter funcional e relacional,

    deixando de ser um fim em si mesmo para tornar-se uma consequncia.

    12 La nozione di equivalenza come viene qui intensa differisce dai correnti concetti di

    equivalenza nella traduzione nel fatto che non si tratta di una semplice relazione tra testo di

    partenza e di arrivo stabilita sulla base di un determinato genere di costante, ma di un altro

    concetto funzionale-relazionale, vale a dire, quella stessa relazione (o un insieme di relazioni

    ordinate) che, per definizione, permette di distinguere una traduzione da una non-traduzione

    in un determinato contesto socio-culturale in lingua di arrivo, cio di discriminare tra

    unadeguata o inadeguata performance linguistica rispetto ai modelli e alle norme dominanti in quel contesto.

  • 51

    A equivalncia pode ser usada para se estabelecer as relaes existentes

    entre textos de duas lnguas ou pode assentar-se em uma observao

    terica, estabelecendo abstratamente uma relao ideal entre os dois

    textos.

    Para Paul Ricoeur, no existem critrios absolutos para se

    avaliar o que uma boa traduo:

    [...] para que se pudesse dispor de tal critrio

    seria preciso poder comparar o texto de partida

    e o texto de chegada a um terceiro texto

    portador de sentido idntico quele que se

    supe circular no primeiro e no segundo. A

    mesma coisa dita de um lado e de outro (2011,

    p. 46).

    Portanto, antes do dilema, h um paradoxo: [...] uma boa

    traduo s pode visar uma equivalncia presumida, no fundada na

    identidade de sentido demonstrvel. Uma equivalncia sem identidade.

    Essa equivalncia pode ser apenas buscada, trabalhada, presumida

    (RICOEUR, 2011, p. 47).

    A existncia da equivalncia entre o texto de partida e o de

    chegada um fato. Portanto, a questo a ser posta que tipo e que grau

    de equivalncia tradutria revela a anlise desses dois textos. Essa

    anlise deve ser dialtica, ou seja, no pode apenas ficar circunscrita

    comparao palavra-palavra, frase a frase, etc. Deve-se levar em

    considerao o conjunto das circunstncias que operam sobre o ato

    tradutrio: a funo da traduo, o tipo de texto, o estilo e a inteno do

    tradutor, etc.

    Assim sendo, pressupe-se como fundamental, para se analisar

    a performance lingustica em termos de equivalncia, que esta seja feita

  • 52

    a partir dos padres e das normas que operam predominantemente no

    sistema de chegada. Cabe cultura de chegada aceitar um texto como

    equivalente a outro.

    1.2 A CONSTITUIO DO PROTOTEXTO DA PESQUISA

    O objeto da anlise desta dissertao o canto V, mais

    especificamente o episdio de Francesca da Rimini, do Inferno da

    Divina Comdia, de Dante Alighieri, traduzido por Dom Pedro II e

    publicado em Petrpolis, em 1889, no livro de poesias e tradues do

    Imperador, organizado pelos netos D. Pedro e D. Luiz, filhos da

    princesa Isabel. Alm desta primeira edio, h uma edio de 1932, da

    Editora Guanabara, com prefcio de autoria do jornalista e escritor

    Medeiros e Albuquerque que , para o caso desta pesquisa, o de

    referncia, pois somente tivemos acesso a este.

    A tcnica de pesquisa foi bibliogrfica e histrica, com estudo

    de textos, documentos, registros e dados empricos existentes com vistas

    a organizar o dossi gentico.

    O dossi gentico composto por:

    a. 13 flios13

    de manuscritos digitalizados da traduo do episdio

    de Francesca da Rimini, cujos originais se encontram no

    arquivo histrico do Museu Imperial, em Petrpolis;

    13 [...] o flio, o elemento de um conjunto arquivstico, constitudo de duas pginas que apresentam ou no marcas de escritura ou grafismos (quando no h nenhuma marca, fala-se

    de folha vazia) (BIASI, 2010, p.69).

  • 53

    b. Cpia digitalizada de partes do Dirio Pessoal de Dom Pedro II,

    cujo original completo se encontra no arquivo histrico do

    Museu Imperial, em Petrpolis;

    c. Carta de Dom Pedro II atriz italiana Ristori, publicado no

    livro Uma Amizade Revelada: Correspondncia entre o

    Imperador dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de

    seu tempo. Rio de Janeiro: Edies Biblioteca Nacional, 2004.

    Organizado por Alessandra Vannucci.

    Figura 2. Exemplo de manuscrito de Dom Pedro II, referente verso 1, flio 1.

    Vale aqui destacar que esses so os documentos de que

    atualmente dispomos, mas que no se trata de todos os documentos de

  • 54

    processo referentes s tradues de Dante. Outros provavelmente ainda

    existam em outros acervos, mas no foram ainda encontrados.

    O dossi gentico ser estudado considerando-se os

    pressupostos tericos e metodolgicos da CG e dos EDT. A CG nos

    auxiliar na organizao, ordenao, numerao, transcrio do dossi

    gentico e na anlise do prototexto. Os EDT iro subsidiar a anlise e

    interpretao dos dados, agregando anlise gentica a base cientfica

    de uma teoria gestada para o estudo do ato tradutrio.

    A organizao crtica do dossi gentico nos ajudar na

    composio do prototexto - a reconstruo dos antecedentes do texto

    final de Dom Pedro II. Adota-se, assim, a definio de Bellemin-Nol

    (1993), para quem o prototexto um conjunto de documentos

    empiricamente selecionados pelo pesquisador, para reconstituir os

    antecedentes do texto. Para Cecilia Salles:

    [...] o prototexto no o conjunto de

    documentos, mas um novo texto formado por

    esses materiais, que coloca em evidncia os sistemas tericos e lgicos que o organizam. O

    prototexto no existe em lugar nenhum fora do

    discurso crtico que o produz; nasce da

    competncia do crtico gentico que se

    encarrega de estabelec-lo e, principalmente,

    explor-lo em um processo analtico e

    interpretativo (2000, p. 58-59).

    A CG considera o processo que conduz redao do texto de

    chegada um ato complexo, regido por diferentes condies e influncias

    e que deve ser priorizado na anlise tradutria em relao ao produto.

    Desse modo, a anlise procedida do prototexto busca detectar conexes,

    recorrncias de modo de ao, normas literrias e o tipo de escritura de

    Dom Pedro II. Em seguida, se elencaro os critrios que, acredita-se,

  • 55

    possam ter levado o tradutor a fazer escolhas para a edio considerada

    final e ter norteado as estratgias de criao no ato de traduzir.

    Posteriormente, a pesquisa busca explicar os fatos observados com base

    nos pressupostos tericos.

    Todo o procedimento parte do princpio de que os fatos no

    devem ser avaliados fora do contexto social, poltico e econmico em

    que foram gerados. A pesquisa considera, em suas descries, a

    dinamicidade da relao entre o mundo real e o sujeito, visando

    identificar os fatores que determinaram ou contriburam para a

    ocorrncia destes, focando no processo que provocou o fato.

    A partir da observao de regularidades factuais, possvel

    fazer inferncias conjecturais com o propsito de chegar a

    generalizaes, buscando explicar os fatos observados na tentativa de

    elucidar o processo criativo. A cadeia de raciocnio busca, ainda,

    estabelecer uma conexo ascendente dos fatos observados. A inteno

    perseguir a gnese da obra via experimentao de suposies tericas,

    indutivamente, baseadas em princpios lgicos e racionais, mas tambm

    histricos, avaliando a influncia dos acontecimentos e processos no

    sistema da cultura de chegada, considerando-se as diferenas e

    similaridades entre as culturas, as pocas e as linguagens.

    Assim, a presente pesquisa tem como escopo analisar o

    processo criativo na traduo, do italiano para o portugus, do episdio

    de Francesca da Rimini da Divina Comdia feita por Dom Pedro II na

    segunda metade do sculo XIX. Pretende-se investigar as estratgias

    utilizadas por Dom Pedro II e descobrir quais mtodos e tcnicas foram

    usados, analisando suas escolhas e, se possvel, encontrar padres no seu

  • 56

    processo tradutrio, verificando a influncia desses nos tipos de

    equivalncia usadas e no estilo do seu texto. Mas, tambm, olhar, a

    partir do contexto, qual foi a motivao do Imperador para traduzir

    Dante, a razo da escolha desse episdio do Inferno, se houve

    motivao poltica ou de qualquer outra natureza, e se essas cumpriram

    alguma funo na cultura brasileira naquele perodo e, mesmo

    posteriormente. Enfim, demonstrar, atravs da anlise dos manuscritos

    do autor-tradutor, de seus rascunhos, de suas rasuras, cartas, anotaes,

    jornais, livros, metatextos, depoimentos etc., que possvel remontar ao

    processo de criao, restaurando os elementos que influenciaram nas

    escolhas e que conformaram um texto considerado final.

    Feitas essas consideraes, torna-se possvel localizar essa

    pesquisa, de acordo com o mapa de Holmes (1972, 1988, 2000), dentro

    do ramo Puro-Descritivo, focado no processo, mas, considerando as

    interfaces com o produto e a funo do texto traduzido.

    Espera-se, enfim, contribuir com o processo de reflexo sobre

    uma Teoria da Traduo e sua aplicabilidade, uma vez que a hiptese

    norteadora desta pesquisa a de que, no percurso estratgico de suas

    tradues, Dom Pedro II foi guiado por normas e que estas

    estabeleceram padres no processo tradutrio.

  • 57

    2 PEDRO II - O HOMEM, O IMPERADOR E O TRADUTOR.

    Dom Pedro II teve seu governo (1840-1889) caracterizado pela

    liberdade de informao e pela tolerncia. Governou um pas no qual o

    analfabetismo atingia mais de 80% da populao. Era sensvel s

    transformaes sociais e defensor da abolio, mas foi sob a regncia de

    sua filha, a princesa Isabel, em 1888, que se deu a abolio da

    escravido o Brasil foi o ltimo pas da Amrica a faz-lo. Morreu no

    exlio, em 1891, sem jamais ter voltado a rever sua ptria. A morte

    ocorreu em Paris, dois anos depois de proclamada a Repblica no Brasil.

    O Imperador dividia as tarefas de governo com o estudo e o

    incentivo s artes. Dom Pedro II dedicou-se leitura e estudou idiomas,

    entre os quais grego, latim, ingls, francs, italiano, provenal, alemo,

    hebraico, snscrito, alm do tupi-guarani. Os netos do Imperador

    publicaram, em 1889, um livro de poesias e tradues do Imperador.

    Nesse livro, constam poemas de sua autoria e tradues diversas. Outra

    parte de suas tradues foi publicada em 1891, em Poesies Hebraico-

    Provenales, na qual constam poesias hebraico-provenais traduzidas do

    hebraico para o francs. Algumas tradues nunca foram publicadas e

    seu acesso requer pesquisa direta nos locais onde estas obras se

    encontram.

  • 58

    2.1 O CONTEXTO DO SCULO XIX

    O sculo XIX irrompeu na Europa marcado pelos abalos

    gerados pela Revoluo Francesa e pelo novo papel social da burguesia.

    Entre 1789 e 1815, a cultura da Europa foi transformada por revolues

    e guerras, colocando em crise as bases econmicas, sociais e culturais

    do sculo XVIII. Quirico Filopanti, no primeiro volume de sua obra

    Storia di un secolo, dal 1789 ai giorni nostri, assim demarca a

    importncia da revoluo francesa para o mundo:

    A Revoluo Francesa, nas palavras de

    simpatizantes e antagonistas, mudou de alguma

    forma, a face da Europa. Repito a pergunta que

    eu j tinha feito: ela mudou para melhor ou para

    pior? Sem dvida, mudou para melhor a vida

    material. Pelo fato que promoveu a abolio da

    Servido feudal, dos primognitos de mo-

    morta,14

    , e dos mais odiados tributos; estimulou

    a difuso da educao atravs do ensino

    fundamental e a liberdade de imprensa [...]

    (1891, p. 47).15

    No meio da disputa entre a Frana napolenica, com seus ideais

    iluministas, e a Inglaterra, em expanso industrial, aliada ustria,

    Prssia e Rssia, o prncipe regente de Portugal, Dom Joo VI, mudou a

    corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, elevando a categoria

    da colnia para reino. Para Sodr, em seu Panorama do Segundo

    14

    Condio legal que impedia servos de transmitirem seus bens a herdeiros por testamento.

    Condio legal de inalienabilidade de bens (como os que pertencem a entidades como

    hospitais, instituies religiosas etc.). (iDicionrio Aulete. Disponvel em

    http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital. Acesso em 30 ago 2011). 15

    La rivoluzione Francese, per confessione di amici e di nemici, ha cangiato, in qualche guisa,

    la faccia dell'Europa. Ripeto la domanda gi da me fatta: l'ha mutata in meglio od in peggio?

    Senza dubbio in meglio dal lato materiale. Imperciocch l'abolizione della servit della gleba,

    dei maggioraschi della mano morta, e dei pi odiosi balzelli; la diffusione dell'istruzione

    mediante le scuole elementari e la libert della stampa [...].

  • 59

    Imprio, a fuga de D. Joo VI16

    foi o momento culminante da migrao

    Lusitana (1998, p. 36) para o Brasil e Agora, no so mais os

    necessitados, de toda a espcie e de todos os graus que acorrem ao

    Brasil. a sua nobreza. a sua corte. o seu rei (1998, p. 36).

    A Europa, na primeira metade do sculo XIX, atingiu nveis de

    desenvolvimento significativos. Hobsbawm, em seu livro A Era das

    Revolues, acentua que: A cincia nunca fora to vitoriosa; o

    conhecimento nunca fora to difundido (2010, p. 466).

    O desenvolvimento industrial europeu consolidou o

    capitalismo e fez emergir suas contradies e antagonismos de classe. O

    liberalismo, derivado do racionalismo iluminista, originou uma

    sociedade baseada na explorao do trabalho assalariado e

    fundamentada na liberdade de produo e de comrcio. No plano

    poltico, o liberalismo sustentou os princpios da liberdade individual e

    de pensamento e defendeu a formao de governos constitucionais.

    Hobsbawm expe que O mundo da dcada de 1840 era

    completamente dominado pelas potncias europeias, poltica e

    economicamente, s quais se somavam os Estados Unidos (2010, p.

    473) e destaca que:

    [...] dentro deste domnio ocidental, a Gr-

    Bretanha era a maior potncia, graas a seu

    maior nmero de canhoneiras, comrcio e

    bblias. A supremacia britnica era to absoluta

    que mal necessitava de um controle poltico

    para funcionar (2010, p. 473).

    16

    Em 1804, Napoleo proclamou-se imperador e ele prprio se coroou. Entre 1805 e 1810 conquistou praticamente toda a Europa: s no conquistou a Inglaterra. Em 1807, enviou a D.

    Joo VI um ultimato, forando-o a declarar guerra aos britnicos. Ainda que por vias indiretas,

    o Brasil iria lucrar duplamente com Napoleo: alm da vinda da famlia real, deve a ele, por

    vias transversais, o envio da misso francesa, em 1816 (BUENO, 2003, p. 136).

  • 60

    Em 1848, a Europa era um caldeiro de revolues na qual se

    enfrentavam as nobrezas absolutistas e as burguesias liberais. No meio

    desta disputa nasceu uma nova filosofia de postulaes socialistas e

    anticapitalistas, cujas ideias foram publicadas, em 1848, no Manifesto

    Comunista de Marx e Engels. Sobre o "espectro do comunismo" que

    aterrorizava a Europa neste perodo, Hobsbawm registra:

    [...] a revoluo que eclodiu nos primeiros

    meses de 1848 no foi uma revoluo social

    simplesmente no sentido de que envolveu e

    mobilizou todas as classes. [...] Quando a

    poeira se assentou sobre suas runas, os

    trabalhadores - na Frana, de fato, trabalhadores

    socialistas - eram vistos de p sobre elas,

    exigindo no s po e emprego, mas tambm

    uma nova sociedade e um novo Estado (2010,

    p. 477-478).

    Entre 1815 e 1871, a Europa foi palco de um grande nmero de

    conflitos e guerras de independncia, com as populaes incorporando o

    ideal nacionalista (SCHNEEBERGER, 2006). Alemanha e Itlia

    concluram as suas respectivas unificaes e se tornaram pases. O

    Imprio Britnico emergiu como o primeiro poder.

    Na segunda metade do sculo XIX, Inglaterra, Frana e

    Alemanha, as grandes potncias industriais, competiam entre si na

    formao de grandes imprios econmicos e na influncia sobre os

    pases dos outros continentes. Para Alencar:

    Os pases industrializados, j na fase do

    capitalismo monopolista, se expandiram agora

    no apenas exportando mercadorias, mas

  • 61

    atravs de investimentos de capitais nos pases

    perifricos (1996, p. 163).

    E quanto insero do Brasil nesse contexto, ele expe que

    Atravs da exportao do caf, a economia brasileira reintegrou-se ao

    mercado mundial (1996, p. 163). Como os demais pases no

    industrializados, cabia ao Brasil, na nova diviso internacional do

    mercado mundial gerada pela revoluo industrial,17

    a condio de

    fornecedor de matrias-primas e alimentos aos pases que compunham

    os centros dinmicos do capitalismo em sua fase monopolista.

    Como j exposto anteriormente, o Segundo Reinado foi o

    perodo em que o Brasil foi governado por Dom Pedro II, de 1840 a

    1889. Iniciou-se com a declarao de sua maioridade, em 23 de julho de

    1840, quando o jovem imperador tinha quinze anos incompletos de

    idade. A antecipao de sua maioridade foi arquitetada pelos liberais,

    em oposio aos conservadores, que dominavam o cenrio poltico

    nacional durante o perodo regencial, iniciado com a abdicao de Dom

    Pedro I, em 1831. Mas, tanto liberais como conservadores

    representavam os proprietrios rurais. Paulo Bonavides descreve o

    panorama partidrio do perodo da seguinte forma:

    No entanto, essa linha divisria e imaginria,

    traada pelo historiador poltico, nem sempre

    reflete a coerncia das posies que assumiram

    as duas foras partidrias do Imprio, pois em face do poder que cobiavam, a bandeira dos

    17 [...] A grande revoluo de 1789-1848 foi o triunfo no da indstria como tal, mas da indstria capitalista; no da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe mdia ou da

    sociedade burguesa liberal; no da economia moderna ou do Estado moderno, mas das economias e Estados de uma determinada regio geogrfica do mundo (parte da Europa e

    alguns trechos da Amrica do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Gr-

    Bretanha e Frana [...] (HOBSBAWM, 2010, p. 20).

  • 62

    princpios era no raro deposta para

    prevalecerem os interesses ulicos, as

    convenincias de ocasio, as abdicaes, as

    acomodaes (1994. p. 492).

    Nelson Werneck Sodr, no seu livro a Sntese de Histria da

    Cultura Brasileira, diz que:

    Ao iniciar-se a segunda metade do sculo XIX,

    a economia brasileira havia superado a longa

    crise que a golpeava desde o declnio da

    minerao. A lavoura do caf expandira-se no

    vale do Paraba, nas provncias do Rio de

    Janeiro e de So Paulo. A produo crescera em

    ritmo acelerado, passando das 100.000 sacas de

    1820 ao milho de sacas de 1840, aos dois

    milhes de 1860 (1978, p. 44-45).

    A consagrao do caf como grande produto agrcola nacional,

    dada a grande demanda no mercado europeu, foi inicialmente sustentada

    pelo uso da mo de obra escrava e, posteriormente, a imigrante. A

    diminuio do fluxo de escravos, a partir de 1850, com a consequente

    substituio da mo de obra escrava pela assalariada, fez surgir um

    mercado consumidor. A industrializao comeou a apresentar um

    considervel crescimento, especialmente com o investimento nas

    atividades industriais no setor txtil. A criao de ferrovias tambm faz

    parte deste contexto, possibilitando a circulao de mercadorias para

    exportao (TEIXEIRA, 1979).

    A perda de apoio junto elite cafeeira, motivada pelo fim da

    escravido, fragilizou o imprio e impulsionou as ideias liberais e o

    movimento republicano no Brasil. O antagonismo conservadores versus

    liberais acabou em um desfecho um pouco diferente do que estava

    acontecendo nos pases vizinhos: a mudana de regime teve o exrcito

  • 63

    brasileiro como maior protagonista. Sobre as causas da queda do

    imprio, Alencar destaca:

    As transformaes econmicas e ideolgicas da

    sociedade brasileira tornaram superado o

    regime monrquico. As chamadas questes religiosa, militar, escravista e eleitoral eram manifestaes conjunturais do declnio poltico

    do imprio (1996, p. 216).

    Em 15 de novembro de 1889, militares proclamam a repblica,

    sepultando a monarquia.

    2.2 A TRADUO NO BRASIL - SINOPSE DA TRAJETRIA PR

    SEGUNDO IMPRIO

    O Brasil europeu nasceu sob o marco da traduo. Os primeiros

    oriundos do velho continente, ao aportarem nas novas terras da Amrica,

    foram compelidos, imediatamente aps a descida em solo, a exercitarem

    sua competncia tradutria. Primeiramente, tentando compreender

    signos atravs de gestos, olhares, sinais e, mesmo, mmica. E,

    posteriormente, dominando as regras e o lxico da lngua do povo com o

    qual iniciavam uma relao. A carta de Pero Vaz De Caminha a El-Rei

    Dom Manuel I, em 1500, assim narra a situao comunicativa no

    encontro dos portugueses com os habitantes do Brasil:

    O Capito, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de

    ouro mui grande ao pescoo, e aos ps uma

    alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simo de

    Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e ns

    outros que aqui na nau com ele vamos, sentados

    no cho, pela alcatifa. Acenderam-se tochas.

  • 64

    Entraram. Mas no fizeram sinal de cortesia,

    nem de falar ao Capito nem a ningum. Porm

    um deles ps olho no colar do Capito, e

    comeou de acenar com a mo para a terra e

    depois para o colar, como que nos dizendo que

    ali havia ouro. Tambm olhou para um castial

    de prata e assim mesmo acenava para a terra e

    novamente para o castial, como se l tambm

    houvesse prata (CASTRO, 1998, p. 21).

    O empenho de fazer traduo neste primeiro contato foi

    motivado pela necessidade de se relacionar com um povo do qual nada

    se conhecia. No havia saber prvio dos seus costumes, da sua forma de

    organizao social e poltica, da sua histria, da sua cultura e da lngua

    falada por ele. Pode-se dizer que a traduo aqui exercitada foi uma

    espcie de traduo pura e imediata, pois no foi mediada nem

    orientada, seja do ponto de vista dos europeus, seja pelo ponto de vista

    dos nativos, por nenhuma outra cincia. No foi mediada pela

    antropologia, pela filosofia, pela lingustica e, nem mesmo, por relaes

    interculturais. Deu-se apenas pela necessidade de comunicao e

    exercitada de forma oral.

    Sobre esse aspecto, Wyler coloca:

    Em termos documentais a traduo oral teve

    incio com o achamento do Brasil. A traduo

    escrita, por sua vez, fez sua primeira apario

    em 1549, com a vinda dos jesutas,

    praticamente limitada, durante sculos, aos universos escolar e burocrtico e para

    lnguas-alvos diferentes do portugus. (2003, p. 29)

    A necessidade de comunicao em situao to adversa

    estabeleceu, pode-se assim dizer, o primeiro mtodo de estudo de

  • 65

    lnguas da histria brasileira: aquele praticado pelos lnguas. De

    acordo com a Carta de Pero Vaz de Caminha, um mancebo degradado

    de nome Afonso Ribeiro foi mandado para ficar l junto aos ndios e

    saber de seu viver e maneira (CASTRO, 1998, p. 22). Para Wyler

    (2003, p. 34), os lnguas ou intrpretes funcionavam como mediadores

    para que a comunicao efetivamente ocorresse entre os europeus e os

    habitantes nativos.

    Aps este primeiro momento, o uso da traduo se ampliaria

    para alm da necessidade de comunicao imediata e passaria a fazer

    parte das necessidades dos diversos contextos da colnia e, na

    sequncia, da constituio da nao. Seu uso cresceria nas diversas reas

    necessrias ao desenvolvimento da nova terra: quer seja na educao, na

    literatura e mesmo na economia.

    Com a fuga da famlia imperial para o Brasil, em 1808, uma das

    primeiras aes do prncipe regente, Dom Joo VI, foi promover a

    abertura dos portos brasileiros s potncias que se conservam em paz e

    harmonia com a minha Real Coroa, [...] (CASTRO, 1998, p.98). E a

    Inglaterra era a principal aliada de Portugal no cenrio europeu, uma vez

    que, tanto Portugal como a Inglaterra se encontravam em guerra contra a

    Frana napolenica e seus ideais iluministas. Essa medida aumentou a

    necessidade prtica do uso do ingls, o que fez crescer sua importncia

    no sistema de ensino, levando o prncipe a produzir o Decreto de 22 de

    junho de 1809, criando as cadeiras de ingls e francs no ensino oficial

    brasileiro (OLIVEIRA, 1999, p. 18). O francs, porque, apesar da

    guerra, era a lngua de cultura, e o ingls, por conta das relaes

    econmicas e alianas polticas.

  • 66

    Se detalhssemos a traduo em cada perodo da histria do

    Brasil, poderamos examinar as influncias dos contextos e das classes

    dominantes no uso da traduo. No entanto, um tradutor e um perodo

    em particular compem o objeto de anlise deste trabalho: Dom Pedro II

    e o segundo reinado, que se inicia em 1840 e se encerra com a

    proclamao da Repblica em 1889.

    2.3 O MENINO IMPERADOR

    O Monarca louro, de 1,90 m e olhos azuis, nascera robusto, com

    47 cm, em 2 de dezembro de 1825, j prncipe de uma nao que tinha

    apenas 3 anos de existncia. Pedro II cresceu, amadureceu e se formou

    homem ao mesmo tempo em que o pas, a que ele estava destinado a

    governar, tambm crescia, amadurecia e se formava como nao.

    Assim como ocorria com a nao, seus primeiros anos no

    foram fceis; a robustez do nascimento se debilitou, herdou do pai a

    epilepsia e ficou rfo de me com apenas 1ano e nove meses de vida. A

    ptria, sob o comando do seu pai, o imperador Dom Pedro I, portugus

    de nascimento, lutava para se afirmar no mundo das naes soberanas.

    As ideias liberais do prncipe Dom Pedro I cederam lugar aos

    atos conflitantes do incio de seu governo, como a demisso de Jos

    Bonifcio, um dos principais articuladores da proclamao da

    independncia e a dissoluo da Assembleia Constituinte. Em 1826,

    com a morte de Dom Joo VI, rei de Portugal, Dom Pedro I contrariou a

    constituio que encomendara a um grupo de notveis e foi a Lisboa

  • 67

    assumir o trono do pai. Mesmo abdicando em seguida ao trono de

    Portugal, em favor de sua filha, este fato, somado s suas sucessivas

    interferncias nos assuntos portugueses, gerou descontentamentos no

    Brasil. A imagem de Dom Pedro I sofreria, ainda, novos abalos

    motivados pela perda da provncia Cisplatina, em 1828, com a crise

    econmica e a consequente decretao da falncia do Banco do Brasil,

    em 1829, e com a crise poltica gerada pela demisso do gabinete liberal

    de Barbacena, que culminou com as Noites das Garrafas, em maro de

    1831 (ALENCAR, 1996, p. 132).

    Alencar narra que Dom Pedro I, voltando de uma fracassada

    viagem a Minas Gerais, em busca da popularidade perdida, foi

    recepcionado com festa pela sociedade secreta Colunas do Trono,

    composta por portugueses absolutistas (1996, p. 132), o que irritou os

    brasileiros, que foram s ruas gerando um conflito de grande proporo.

    Em 7 de abril de 1831, pressionado por uma multido, que

    tomou as ruas para protestar contra a demisso do Ministrio dos

    Brasileiros, abdicou em favor de seu filho Pedro de Alcntara

    (CARVALHO, 2007, p. 14). Encerrava-se assim o perodo de dualidade

    governamental entre Brasil e Portugal e completava-se a independncia

    poltica do Brasil. Dom Pedro II ficava no Brasil e Dom Pedro IV em

    Portugal. O Brasil ganhava um imperador nativo e Pedro de Alcntara

    tornava-se, tambm, rfo de pai.

    Ainda para Carvalho (2007), o temperamento impulsivo,

    romntico, autoritrio, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor de Dom

    Pedro I, levava-o a comportamentos que aviltavam a moral da poca,

    como, por exemplo, ter vrias amantes e filhos. Entre as amantes

  • 68

    destacava-se a marquesa de Santos, presena frequente no palcio e

    motivo de humilhao e constrangimento para a imperatriz Leopoldina.

    Estas caractersticas certamente influenciaram o tutor Jos

    Bonifcio ao planejar a educao do menino imperador. De Dom Pedro

    I, Jos Bonifcio Admirava-lhe o arrojo poltico, mas abominava o

    tratamento que ele dava imperatriz (CARVALHO, 2007, p. 23).

    Do pai, Dom Pedro II herdou o gosto pela msica, pela poesia e

    a averso ao trabalho escravo. Todavia, o que mais foi til ao seu

    destinado encargo foram os conselhos do pai para se dedicar aos

    estudos.

    Dom Pedro I deixou trs pessoas encarregadas de prepararem o

    filho para exercer a funo de imperador do Brasil: Jos Bonifcio,

    como tutor do menino, posio confirmada pela Assembleia Geral do

    Imprio; Mariana de Verna, a aia desde o nascimento de Pedro II; e o

    afro-brasileiro Rafael, da confiana pessoal de Pedro I, a quem

    encarregou a segurana do filho. Com a sada de Jos Bonifcio do

    cargo de tutor imperial, em 1833, substituiu-o o Marqus de Itanham,

    que viria, junto com Frei Pedro de Santa Maria e Souza, a ter grande

    influncia na educao do pequeno Imperador e, consequentemente,

    sobre a formao do carter do menino. Itanham, diz Carvalho, queria

    formar um monarca humano, sbio, justo, honesto, constitucional,

    pacifista, tolerante (2007, p. 27), que considerasse todos os seres

    humanos como iguais. Itanham, como descreve Calmon, tinha como

    desgnio educar o menino para ser diferente do pai: Confiara-lhe o

  • 69

    Brasil o rfo: ordenara-lhe que fizesse dele um rei. Se sasse desastrado

    como o pai, no lhe perdoariam. Seria sempre, ele, o culpado, o

    desidioso, o imprevidente. (1975, p. 19).

    O carmelita Frei Pedro de Santa Mariana e Souza, que assumiu

    a condio de diretor geral dos estudos de Pedro II e foi professor de

    latim, religio, lgica e matemtica, segundo Lyra, exerceu muita

    influncia na formao moral e intelectual do Imperador e asseverava

    que nenhum dos homens que ento o rodeavam exerceu influncia

    igual (1977, p. 44).

    O menino Pedro de Alcntara tinha uma jornada intensa de

    estudos, acordava s seis e meia da manh e deitava s dez da noite.

    Solitrio, tinha pouca convivncia com gente da sua idade, dispunha de

    pouco horrio livre, podia se encontrar com as irms para se divertir

    durante duas horas, aps o almoo. Lyra (1977, p. 47) diz que

    Qualquer menino de famlia burguesa daquela poca possua,

    certamente, melhores e mais adequados a crianas da mesma idade ao

    falar do divertimento do pequeno prncipe. Isolado, no tinha

    conhecimento do que se passava no mundo, mesmo, das questes

    relativas ao governo (CARVALHO, 2007).

    A educao do futuro imperador era bastante vasta e ecltica, ia

    das cincias naturais religio, da literatura msica, da dana

    esgrima e equitao, sem descuidar da matemtica, da geografia e da

    histria, disciplina para a qual demonstrava muita aplicao. Mas, era ao

    estudo das lnguas que Dom Pedro II demonstrava maior aptido e

    predileo. Nas palavras de Lyra, o pequeno prncipe revelaria desde

    cedo uma grande propenso para tais estudos (1977, p. 46). Fora deste

  • 70

    espectro, toda a soma de conhecimento adquirida pelo Imperador deveu-

    se unicamente ao seu esforo individual animado pelo seu culto ao

    conhecimento.

    A solido da infncia acabou ajudando nesta erudio, pois era

    nos livros que se refugiava para ludibri-la. Segundo Carvalho:

    O hbito da leitura e do estudo foi totalmente assimilado pelo pupilo. Mais que hbito, leitura

    e estudo transformaram-se numa de suas

    paixes. Enfurnado no palcio, longe dos pais,

    educado por estranhos, exceo de d.

    Mariana, fez dos livros um mundo parte, em

    que podia isolar-se e proteger-se (2007, p. 29).

    No estudo das lnguas estrangeiras era onde se davam os

    maiores progressos. Lyra destaca que Aos nove anos em 1834 j

    lia, escrevia e traduzia regularmente o francs. Comeava a ler e traduzir

    o ingls (1977, p. 46) e Aos 14 anos comeava a aprender o alemo.

    No latim, continuava a fazer rpidos progressos, e compunha j com

    raros erros. Mostra predileo por Virglio, dizia Frei Pedro. (1977, p.

    47).

    Nunca se cansou de estudar lnguas e adquiriu competncia de

    fala e escrita, alm do portugus, em latim, francs, ingls, italiano,

    alemo, espanhol, grego, rabe, hebraico, snscrito, chins, provenal e,

    mesmo, em tupi-guarani (CARVALHO, 2007, p. 226).

  • 71

    2.4 AS ARTES E A ARTE DE GOVERNAR

    Dom Pedro II foi coroado imperador em julho de 184118

    aps a

    antecipao da sua maioridade em junho do ano anterior, quando os

    liberais, descontentes com o regente conservador Arajo Lima e seu

    gabinete, foram ao Pao de So Cristvo e ofereceram o governo ao

    jovem Pedro de Alcntara, ento com apenas 14 anos, que o aceitou.

    O governante, considerado um intelectual, admirador das

    cincias, apreciador das artes e da literatura , ainda hoje, lembrado no

    cenrio nacional e externo pelo incentivo educao e cultura, pela

    defesa da nao e pela diplomacia. Cultivou relaes com

    personalidades internacionais, como os escritores Alphonse de

    Lamartine, Victor Hugo e Alessandro Manzoni, os cientistas Louis

    Pasteur e Charles Darwin, as atrizes Adelaide Ristori e Sarah Bernhardt,

    dentre outros. Durante seu governo, o Brasil viveu um perodo de

    estabilidade e desenvolvimento.

    Em artigo publicado na revista da SBHC, Nadja Paraense dos

    Santos assim descreve Dom Pedro II:

    Na Europa capitalista e industrial, o perodo denominado de sculo da cincia, com as

    pesquisas, os laboratrios, o ensino tcnico e

    cientfico, as associaes cientficas e os

    museus nacionais. No Brasil, D. Pedro II a tudo

    acompanhava. Assinava publicaes cientficas,

    correspondia-se com sbios, organizava

    expedies cientficas e culturais, convidava

    cientistas para visitar o pas, concedia bolsas no

    18 Schwarcz assim descreve a Corte no dia da coroao: No dia 18 de julho de 1841 o Rio de Janeiro amanheceu mais uma vez em festa. A corte, vestida com o mximo de rigor aguardava

    pelo maior ritual j preparado no pas (1998, p.73).

  • 72

    exterior para estudantes brasileiros, encorajava

    as pesquisas e discutia os novos conhecimentos,

    demonstrando um obsessivo amor cincia

    (2004, p. 59).

    O Imperador brasileiro traduziu poemas e textos religiosos da

    tradio judaica e catlica e fez tradues entre vrios par